Novos Rumosda Pesquisa Biblica

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22 Novos rumos na pesquisa bíblica Júlio Paulo Tavares Zabatiero* Resumo: Este artigo oferece uma visão panorâmica dos fundamentos teóricos e epistemológicos da pesquisa bíblica nos períodos chamados de Modernidade e Pós-Modernidade. Estuda as relações da pesquisa bíblica com a filosofia do sujeito e com a razão instrumental, características de boa parte do pensamento moderno, descrevendo sinteticamente sua crise paradigmática no presente. Ofe- rece, por fim, a partir das novas possibilidades abertas pela leitura feminista e pela leitura popular da Bíblia, a descrição de um possível novo paradigma para a pesquisa bíblica, centrado nos textos e na ação humana, a partir da incorporação das novas possibilidades epistêmicas contemporâneas. A intenção do artigo é contribuir para o diálogo teórico em curso no campo da pesquisa bíblica atual. Resumen: Este artículo ofrece una visión panorámica de los fundamentos teóricos y epistemológicos de la investigación bíblica en los períodos llamados de Modernidad y Post-Modernidad. Estudia las relaciones de la investigación bí- blica con la filosofía del sujeto y con la razón instrumental, características de buena parte del pensamiento moderno, describiendo sintéticamente su crisis paradigmática en el presente. Ofrece, finalmente, a partir de las nuevas posibilidades abiertas por la lectura feminista y por la lectura popular de la Biblia, la descripción de un posible nuevo paradigma para la investigación bíbli- ca, centrado en los textos y en la acción humana, a partir de la incorporación de las nuevas posibilidades epistémicas contemporáneas. La intención del artículo es contribuir para el diálogo teórico en curso en el campo de la investigación bíblica actual. Abstract: This article offers a panoramic view of the theoretical and epistemological foundations of Biblical research in the periods called Modernity and Post- Modernity. It studies the relations of Biblical research with the Philosophy of the subject and with instrumental reasoning, characteristics of a good part of modern thought, synthetically describing its paradigmatic crises in the present. Finally, it offers, by way of the new possibilities opened up by the feminist reading and the grass roots reading of the Bible, the description of a possible new paradigm for Biblical research, centered on the texts and on human action, based on the incorporation of the new contemporary epistemic possibilities. The intention of the article is to contribute to the theoretical dialog happening in the current field of Biblical research. *Dr. Júlio P. T. Zabatiero é profesor de Antigo Testamento na Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo, RS.

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Artigo sobre Hermenêutica. Novos Rumosda Pesquisa Biblica

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    Estudos Teolgicos, v. 46, n. 1, p. 22-33, 2006

    Novos rumos na pesquisa bblicaJlio Paulo Tavares Zabatiero*

    Resumo: Este artigo oferece uma viso panormica dos fundamentos tericos eepistemolgicos da pesquisa bblica nos perodos chamados de Modernidade ePs-Modernidade. Estuda as relaes da pesquisa bblica com a filosofia dosujeito e com a razo instrumental, caractersticas de boa parte do pensamentomoderno, descrevendo sinteticamente sua crise paradigmtica no presente. Ofe-rece, por fim, a partir das novas possibilidades abertas pela leitura feminista epela leitura popular da Bblia, a descrio de um possvel novo paradigma para apesquisa bblica, centrado nos textos e na ao humana, a partir da incorporaodas novas possibilidades epistmicas contemporneas. A inteno do artigo contribuir para o dilogo terico em curso no campo da pesquisa bblica atual.

    Resumen: Este artculo ofrece una visin panormica de los fundamentos tericosy epistemolgicos de la investigacin bblica en los perodos llamados deModernidad y Post-Modernidad. Estudia las relaciones de la investigacin b-blica con la filosofa del sujeto y con la razn instrumental, caractersticas debuena parte del pensamiento moderno, describiendo sintticamente su crisisparadigmtica en el presente. Ofrece, finalmente, a partir de las nuevasposibilidades abiertas por la lectura feminista y por la lectura popular de laBiblia, la descripcin de un posible nuevo paradigma para la investigacin bbli-ca, centrado en los textos y en la accin humana, a partir de la incorporacin delas nuevas posibilidades epistmicas contemporneas. La intencin del artculoes contribuir para el dilogo terico en curso en el campo de la investigacinbblica actual.

    Abstract: This article offers a panoramic view of the theoretical and epistemologicalfoundations of Biblical research in the periods called Modernity and Post-Modernity. It studies the relations of Biblical research with the Philosophy ofthe subject and with instrumental reasoning, characteristics of a good part ofmodern thought, synthetically describing its paradigmatic crises in the present.Finally, it offers, by way of the new possibilities opened up by the feministreading and the grass roots reading of the Bible, the description of a possiblenew paradigm for Biblical research, centered on the texts and on human action,based on the incorporation of the new contemporary epistemic possibilities.The intention of the article is to contribute to the theoretical dialog happening inthe current field of Biblical research.

    * Dr. Jlio P. T. Zabatiero profesor de Antigo Testamento na Escola Superior de Teologia (EST)em So Leopoldo, RS.

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    IntroduoO campo da pesquisa bblica tem se modificado consideravelmente

    nas trs ltimas dcadas. No h mais a exclusividade dos modelos histri-cos regendo o conjunto das disciplinas que compe a pesquisa bblica. Umapluralidade de mtodos e teorias tem se apresentado entre ns, beirandouma quase fragmentao dos estudos. Fronteiras disciplinares e geogrfi-cas se diluem, e novos paradigmas so afirmados. De todos os lados, o quevemos no campo da pesquisa bblica pode ser descrito como um perodo detransio paradigmtica. Esta situao no peculiar pesquisa bblica,mas se insere no quadro maior de reviso paradigmtica nas cincias huma-nas, descrita como virada lingstica, paradigma da complexidade, Ps-Mo-dernidade, etc. Neste breve artigo, procuro apresentar uma verso da hist-ria da pesquisa bblica moderna, e oferecer uma avaliao do quadro atualde nosso campo de pesquisa, reconhecendo o carter transitrio e parcialde minhas afirmaes e propostas. Como uma verso possvel da histriada pesquisa, este artigo se constitui, ento, numa proposta de dilogo comvistas ao aperfeioamento de nosso trabalho como pesquisadoras e pesqui-sadores da Bblia.

    1 - Acertando as contas com a Modernidade

    1.1 - A exegese como crtica do poder religiosoAs primeiras comunidades crists, seguindo o exemplo de Jesus, pra-

    ticaram uma leitura bblica que criticava a reduo da palavra de Deus aosdogmas do judasmo oficial da poca. A Reforma protestante retomou essaforma crtica de leitura da Bblia, afirmando que o cristianismo oficial (Igreja= instituio) no poderia impor Bblia sua interpretao dogmtica. AIgreja quem deveria submeter-se palavra de Deus emanada da Escritu-ra e lida por um sujeito racional livre (o apelo de Lutero conscincia, queajuda a fundar o sujeito moderno).

    Esse princpio crtico-emancipatrio da Reforma foi uma das forasgeradoras da Modernidade, que o ampliou com sua defesa da autonomia doser humano diante de toda e qualquer autoridade que no a razo somente.A Modernidade desenvolveu o chamado paradigma do sujeito (ou, daconscincia): fundado na distino entre sujeito (racional), que dirige todaatividade de pensamento, e objeto (realidade), que se submete ao epis-tmica do sujeito. Nesse paradigma, atravs do mtodo (razo instrumental),a objetividade da pesquisa garantida, juntamente com sua cientificidade.

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    A exegese moderna desenvolveu-se dentro dos limites do paradigmado sujeito: um sujeito racional interpreta metodicamente o sentido do texto(objeto), que deve corresponder tanto inteno do seu autor quanto coisa de que se fala no texto (referente). A atividade interpretativa foi divi-dida em duas grandes cincias: a hermenutica, tributria da filosofia, queformula os princpios gerais da interpretao e da atualizao do sentido, e aexegese, tributria da histria, que formula os princpios metodolgicos dadescoberta do sentido do texto em seu prprio contexto. A exegese moder-na, concebida como cincia crtica de tipo histrico, gerou dois modelosconcorrentes:

    1) O modelo histrico-gramatical, que subordinou a crtica racional autoridade do texto bblico, buscando ser fiel dimenso religiosa da Refor-ma. Diluiu, assim, o aspecto crtico, aceitando apenas os conceitos que noentrassem em contradio com o texto bblico. Nele, a historicidade do tex-to bblico foi entendida como um a priori: por ser fruto da ao de Deus, oque o texto diz historicamente verdadeiro, mas o prprio texto vistocomo que suspenso do juzo histrico. As tenses do modelo existem athoje, ao lidar com questes como datao e autoria de textos bblicos e,especialmente, com temticas do sobrenatural, podendo incorrer nos ex-tremos do fidesmo (a f explica tudo), ou do fundamentalismo (a doutrina a verdade absoluta).

    2) O modelo histrico-crtico, que aplicou ao texto bblico a crticaracional histrica, buscando ser fiel dimenso emancipatria da Reforma.Assim, a historicidade dos eventos narrados no texto bblico no foi considera-da como um a priori, mas deveria ser comprovada questionava-se, emespecial, tudo o que teria a ver com o sobrenatural, ou que entrasse emcontradio com cnones da cincia. A historicidade do texto bblico foi assu-mida de forma crtica: por estar na histria, o texto tem uma histria, e explicaressa histria do texto est na base da pesquisa histrico-crtica. Tambm estemodelo experimenta uma forte tenso at hoje, podendo incorrer nos extre-mos opostos do racionalismo (a razo explica tudo), ou do fidesmo.

    1.2 - A crise da exegese bblica modernaO paradigma do sujeito est em profunda crise j h algumas dca-

    das1. Diante da crise do paradigma do sujeito, a exegese histrico-crticatem realizado um interessante trabalho de autocrtica: refletindo sobre as

    1 Tomaria muito tempo e espao descrever essa crise. Por isso, remeto aos escritos de MichelFOUCAULT e Jrgen HABERMAS, entre outros, para tal descrio.

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    bases tericas de sua metodologia; incorporando metodologia, conceitos eperspectivas derivadas das cincias sociais e das teorias lingsticas e lite-rrias; incorporando novas temticas de pesquisa; refletindo mais intensa-mente sobre o seu lugar pblico na contemporaneidade2.

    O modelo histrico-gramatical tambm teve de lidar com a crise pa-radigmtica, e em sua autocrtica reafirmou a vinculao do sentido inten-o do autor ainda que do autor ltimo: Deus; aceitou de forma menostraumtica a historicidade da produo dos textos bblicos; releu o gramaticalcomo literrio; revisou as suas bases tericas, a fim de escapar do fundamen-talismo distinguindo a validade do mtodo da verdade confessional3.

    1.3 - Novos modelos de exegese modernaAlm da crtica metodolgica, a crise do paradigma moderno exigiu a

    crtica ao sujeito do saber. A exegese no ficou de fora desse processo epassou a afirmar novos sujeitos da leitura bblica pobres, mulheres, ne-gros, hispanos, etc. ; novos espaos de pesquisa fora da academia e daigreja-instituio (igreja engajada, luta poltica, movimentos sociais); novosinteresses crticos (libertao, fim do sexismo, racismo, empoderamento,etc.); novas metodologias de crtica; nova perspectiva para a exegese, queno foca mais o ento dos textos, mas sua significao para os leitores eleitoras atuais.

    A leitura popular da Bblia na Amrica Latina, por exemplo, propeum novo sujeito de interpretao bblica: no mais a academia, mas o povooprimido. Devolver a Bblia ao povo e reencontrar o papel libertador daBblia nas lutas do presente se tornaram as prioridades do estudo da Bblia.O texto fonte de motivao para a vida e no fonte de sentido para adoutrina. A apropriao acadmica da leitura popular da Bblia, na AmricaLatina, deu luz a leitura sociolgica, gestada tambm em dilogo com avertente sociolgica do modelo histrico-crtico no hemisfrio norte4.

    A leitura feminista da Escritura nasce nos vrios lugares sociais eculturais de luta das mulheres pela dignidade, igualdade e justia. Dirige suacrtica primariamente ao sexismo presente na sociedade e nos textos bbli-

    2 Igualmente, devo remeter literatura sobre o assunto, destacando obras de autores como RolfKNIERIM, Rolf RENDTORFF, Fernando SEGOVIA, entre outros.

    3 Vrios artigos no Boletim Teolgico da Fraternidade Teolgica Latino-Americana soexemplos dessa discusso. No hemisfrio norte, autores como K. VANHOOZER e AnthonyTHISELTON exemplificam tal busca.

    4 Autores como Carlos MESTERS, Milton SCHWANTES, Jorge PIXLEY esto entre os nomesque, na academia, procuram dar voz leitura popular da Bblia.

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    cos. Prope nas palavras de Elizabeth S. Fiorenza um paradigma re-trico-emancipatrio de interpretao bblica, que entende a leitora da B-blia como uma pessoa pblica, transformadora, ligada, ou integrada,capaz de comunicar-se com diferentes pblicos e de buscar transforma-es pessoais, sociais e religiosas com vistas justia e ao bem-estar5.

    Os novos modelos de leitura bblica, porm, mantiveram-se dentrodos limites do paradigma da conscincia em sua compreenso do sentidotextual. Ou seja, no modificaram radicalmente a concepo sujeito-objeto,nem a dependncia do sentido para com a inteno autoral e a referenciali-dade extra-textual. Neste aspecto, pode-se dizer que solucionaram apenasparcialmente a crise paradigmtica da Modernidade.

    Alm desses, os dois modelos histricos continuam sendo praticadosem ambientes teolgicos. Apesar das distines radicais, ambos mantmem comum: a concepo de sentido (significado = inteno + referente) etexto (documento histrico); a tarefa de descobrir o sentido verdadeiro dotexto em seu prprio contexto; a distino entre exegese e hermenutica, naqual esta depende daquela; a concepo de histria, centrada na descriodos fatos como verdadeiramente ocorreram; a filologia como guia para aanlise semntica do texto.

    Os novos modelos, ainda dentro do paradigma do sujeito, permane-cem tributrios da exegese histrico-crtica: a) partilham do mesmo espritocrtico do modelo histrico-crtico, centrado na razo instrumental, emboracom um interesse emancipatrio claramente acentuado em distino ao in-teresse cientfico do modelo histrico; b) baseiam sua interpretao do textoem resultados da exegese histrico-crtica. Diferem dos modelos histricosem: conceber a histria (cincia) como crtica (no descrio) da histria(factual), a partir dos novos sujeitos da leitura; subordinar a exegese her-menutica a verdade buscada no a do sentido do texto ento, mas atransformao social no presente.

    2 - A exegese como crtica da produo e difuso dos sentidos(superando o paradigma do sujeito, ou da conscincia)Ao final dos anos sessenta, do sculo passado, a crtica do paradigma

    da conscincia se expande a ponto de fazer surgir um novo paradigma, o da

    5 FIORENZA, Elisabeth S. Wisdom Ways: Introducing Feminist Biblical Interpretation. Ma-ryknoll: Orbis Books, 2001. p. 44s. Alm de Fiorenza, Athalya BRENNER, Nanci CARDOSO,Marga STRHER, Elaine NEUENFELDT, Ivoni REIMER, Elsa TAMEZ so tambm propo-nentes de uma nova leitura feminista da Bblia.

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    ao intersubjetiva6. Aplicado pesquisa bblica, o paradigma da intersubje-tividade postula que: o sentido no deve mais ser visto como correspondente inteno do sujeito, nem ao referente do texto, mas como fruto da intera-o humana (ou seja, passamos da crtica do sujeito para a intersubjetivida-de crtica); a distino entre hermenutica e exegese se dilui, j que no setrata mais de dois objetivos distintos: saber o que o texto significava e, de-pois, aplic-lo realidade atual; ler fazer dialogar entre si os discursos dopresente com os do passado; a historicidade passa a ser vista, principalmente,como parte da cadeia sem fim da produo de sentido na interao humana,e no como uma cadeia objetiva de acontecimentos7.

    Superar o paradigma do sujeito significa livrar a pesquisa do binmiosujeito-objeto e integr-la concepo da construo do saber como umprocesso intersubjetivo. A produo dos saberes ser vista como fruto dasaes e interaes humanas em sociedade, sob o eixo da enunciao: agen-te (autor/a), texto, contexto, referente, leitor/a. A pesquisa do sentido servista como um dilogo entre discursos, mediado pelo intrprete = co-enuncia-dor. Nesse sentido, esta nova proposta se insere no fluxo histrico abertopelas leituras feminista e popular da Bblia, encontrando nelas suas parcei-ras privilegiadas (no nicas) de dilogo.

    O foco da exegese passa a recair sobre as mltiplas relaes doprocesso de significao, no mais sobre o texto luz da inteno e doreferente8. De acordo com Knierim, a principal tarefa da exegese ser,portanto: a) interpretar este sistema [o sentido] como um todo, e no apenasum ou outro de seus aspectos. b) Por mais difcil que possa ser, a exegeseno deve simplesmente descrever o que o texto diz; deve tambm recons-truir as pressuposies sobre as quais ele se assenta. [...] c) Uma vez que otexto reclama para si a verdade, ela [a exegese] deve verificar e avaliaresta reivindicao, precisamente porque o texto, ao apresentar-se comoverdade, pede esta verificao9.

    Um modelo de interpretao dentro do novo paradigma pode ser a

    6 Para descries adequadas desse novo paradigma, pode-se consultar as obras de Jrgen HABER-MAS, Michel FOUCAULT, Richard RORTY, Manfredo Arajo de OLIVEIRA, entre outras.

    7 Na hermenutica, autores como Hans GADAMER, Paul RICOEUR e Anthony THISELTONexemplificam esta nova tendncia.

    8 Veja-se o texto de Arnaldo CORTINA para uma descrio dos trs grandes modelos de leitura,a partir das relaes do processo de significao: ler a partir do texto, do autor, ou do leitor.Cortina defende que uma leitura adequada deve incorporar todas estas relaes.

    9 KNIERIM, Rolf. A interpretao do Antigo Testamento. So Bernardo do Campo: Editeo,1990. p. 10s.

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    leitura smio-discursiva greimasiana10. A teoria greimasiana, em sua formamais recente, centrada na enunciao, trata a) o sentido como fruto dainter-ao em um contexto discursivizado e manifestado por textos e b) ainterpretao como um processo complexo que focaliza as relaes entretexto, autor, leitor e contextos. O mtodo de leitura centrado no percursogerativo do sentido e visa analisar o processo de produo, circulao einterpretao dos sentidos, no apenas o resgate do sentido preso no texto.As perspectivas interna e externa da leitura se complementam, e a histriareal entra de novo no processo interpretativo, tanto em relao pocado texto, quanto da leitora ou leitor do texto.

    Na leitura crtico-discursiva, a atualizao (hermenutica) do textono vista como um passo posterior ao resgate do sentido original do texto(exegese), mas perpassa todo o processo interpretativo. Os outros modelosno so negados, na medida em que tratam adequadamente de outros as-pectos da pesquisa (autoria, referente histrico, crtica do sujeito da leitura,formas de elaborao e estruturao dos textos), so, porm, relocalizadosno conjunto da mesma.

    Permitam-me apresentar, de forma muito sinttica, o campo da pes-quisa bblica luz do paradigma crtico-discursivo:

    1) As crticas genticas da exegese histrica continuam indispens-veis para a explicao do processo de produo do texto ao longo da hist-ria e para a reconstruo das lutas discursivas e prticas em Jud e Israel (oque indispensvel para o estudo das diversas correntes traditivas e pro-cessos redacionais envolvidos na produo de idias e de textos), mas noso necessrias para a compreenso do sentido do texto propriamente dito(seja em sua forma final, seja nas suas reconstrues hipotticas), na medi-da em que o sentido no est mais determinado por sua relao, seja com ainteno do autor, seja com o referente extra-lingstico. A pesquisa especi-ficamente histrica no estaria centrada nos fatos encobertos pelas fontes,mas na histria j interpretada atravs das fontes. Um enfoque mais globalda histria seria bem-vindo, rompendo com as fronteiras rgidas e desneces-srias entre histria factual, histria poltica, histria da religio e histriacultural. Anular-se-ia, assim, tanto o dualismo entre o mnimo historicamenteassegurado e o mximo querigmaticamente confessado como o abismoentre passado e presente:

    [...] a histria emerge de tradies, nas quais os limites da relao do passa-

    10 No posso fornecer uma descrio completa aqui. Sugiro que se comece a leitura pelas obrasprincipais de GREISMAS, elencadas nas Referncias.

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    do com o presente so ultrapassados: o passado torna-se consciente en-quanto tal, adquire uma qualidade temporal em seu contedo experiencial,fornecendo, assim, com essa nova qualidade temporal, novos elementos decompreenso da dimenso temporal da vida humana prtica.11

    2) Uma das aporias da teologia bblica recente o seu status perantea religio de Israel. Albertz, por exemplo, afirma a histria da religio comodisciplina vivel, no lugar da teologia bblica. Schmidt escreve sua F doAntigo Testamento como um meio-termo entre teologia do AT e histria dareligio de Israel. Na leitura discursiva, a religio praticada o significanteda teologia, que o significado da religio. No h oposio, mas comple-mentaridade uma no existe sem a outra. Religio vivida religio signifi-cada, ou, na linguagem de Foucault, uma prtica discursiva. A teologia bbli-ca passa, ento, a priorizar os processos de construo de significado da fvivida e as formas como esses significados se relacionam entre si na Escri-tura. Rolf Knierim um dos autores que j tm proposto, no mbito doparadigma histrico-crtico, este tipo de metodologia para a teologia bblica.Duas obras recentes, no campo da Teologia do Antigo Testamento, por exem-plo, tentam lidar com as novas possibilidades ps-paradigma do sujeito asteologias de W. Brueggemann e E. Gerstenberger.

    3) A disciplina de introduo Bblia teria como objeto os textos bbli-cos enquanto significantes, pesquisando, ento: sua localizao nas forma-es discursivas e ideolgicas ao longo da histria do povo de Deus (Antigoe Novo Testamentos) que inclui as questes de autoria, datao, fontes,transmisso, redao e canonizao, bem como relaes interculturais;e sua configurao retrica prosdia, estilstica e argumentao (que in-clui as questes literrias); e sua configurao intertextual e interdiscursiva(no restrita aos textos cannicos, nem aos textos do povo de Deus) incluias questes da histria das tradies e dos processos de leitura intra-bblica.

    4) A geografia do mundo bblico visar a compreenso da discursivi-zao do espao, ou seja, da atribuio scio-cultural de sentidos ao territ-rio ocupado em sua seqncia temporal. Em outros termos: os significantesgeogrficos (territrio e clima com seus derivados) sero estudados emsua relao com os significados geo-antropolgicos dos quais so expres-so o trabalho de Alt pode ser visto como um precursor deste modelo.Milton Santos dedicou sua carreira acadmica construo de uma teoriageogrfica do espao, na qual discute a ontologia do espao em relao

    11 RSEN, J. Razo histrica: teoria da histria: os fundamentos da cincia histrica. Braslia:Editora UnB, 2001. p. 83.

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    com a ao humana em sua temporalidade, e a racionalidade do espao esuas transformaes, incluindo as relaes entre o global e o local, que podeservir como referencial para a geografia bblica.

    5) A arqueologia tratar os artefatos como diferentes significantesdos discursos histrico-culturais, sujeitos a regras de interpretao discursi-va. Segundo Pedro Funari,

    [...] a cultura material pode ser concebida como constituda por uma srie designos metacrticos, signos cujo sentido mantm-se radicalmente dispersopor uma cadeia aberta de significantes-significados. O sentido do registroarqueolgico, nesta perspectiva, no se reduz aos seus elementos constitu-tivos, mas o que se busca so as estruturas e os princpios que compemessas estruturas, subjacentes tangibilidade visvel da cultura material. Aanlise visa, assim, descobrir o que est oculto nas presenas observveis,levar em conta as ausncias, as co-presenas e co-ausncias, as semelhan-as e diferenas que constituem o padro da cultura material em um contextoespacial e temporal especfico.12

    6) A rea em que o novo paradigma provocaria uma transformaomais radical seria a do ensino das lnguas bblicas. No paradigma do sujeito,o ensino de lnguas era identificado com o estudo da gramtica, centrado namorfologia. A sintaxe e a semntica sempre vinham depois do estudo morfo-lgico. No jargo da lingstica, era um estudo da lngua (sistema esttico) edo significante (ou plano da manifestao) e no do discurso (lngua emao), do significado (ou plano do contedo). Servia bem ao modelo histri-co, na medida em que fornecia boa base para a crtica textual e para aanlise do contedo textual centrada na semntica das palavras. No para-digma intersubjetivo, o eixo do processo a enunciao. Passam a ser pri-orizados: a) o mundo-da-vida (cultura) constitudo de discursos que esta-belece os limites e possibilidades da significao e comunicao; b) a estru-turao sinttico-semntica do texto (pois no temos mais a fala das lnguasantigas); c) a retrica estilstica e argumentativa da lngua em uso. Nestecaso, os dicionrios teolgicos e as teologias bblicas seriam ferramentasmais teis do que as tradicionais gramticas (que seriam usadas como obrasde consulta e no como manuais). Os livros-texto de grego e hebraico pas-sariam, a seguir, a lgica seqencial cultura-discurso-gramtica.

    12 FUNARI, Pedro P. Lingstica e Arqueologia. DELTA Revista de Estudos de LingsticaTerica e Aplicada, So Paulo, v. 15, n. 1, p. 161-176, 1999.

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    ConclusoPodemos destacar alguns ganhos para a pesquisa bblica que decor-

    rem de superar o paradigma do sujeito: a) teramos viabilizadas uma boadose de unidade terica e metodolgica, bem como a pluralidade de enfo-ques e interesses; b) simultaneamente, porm, abrir-se-iam as portas para ainter- e a trans-disciplinaridade. Pelas vias da ao e do discurso podem seestabelecer relaes fecundas com as demais divises do campo teolgicoe com as cincias humanas, cuja mediao viabilizaria o dilogo com ascincias naturais; c) f e razo no seriam mais vistas como antagnicas,mas como distintos olhares discursivos para a realidade dilui-se o risco defidesmo ou racionalismo.

    H que se lembrar que, em cincias humanas, a mudana de paradig-mas no significa que os anteriores no tenham mais qualquer validade. Osparadigmas anteriores devem ser incorporados pelo novo, que deve tirarproveito dos avanos que cada uma deles possibilitou. Um novo paradigmano um comear do zero, nem um reinventar da roda. Da mesma for-ma, um novo paradigma no se consolida mediante a inteno de alguns ealgumas pesquisadoras. Comea assim, mas precisar ser testado e aplica-do amplamente, at que encontre, ou no, ampla aceitao.

    Nesse sentido, penso que alguns rumos se impem: em um perodode transio paradigmtica, estudo intenso e certezas incertas so com-panhias constantes no possvel se fazer juzos de valor contundentes.H que se abrir ao novo, sem perder a histria da nossa disciplina a crticaaos modelos anteriores no pode ser totalizante, mas destacar os limites epossibilidades dos mesmos. necessrio abrir-se ao dilogo, sem perder aconvico previamente formulada, ambas atitudes indispensveis para oavano da cincia que quer estar a servio de Deus e da sua criao. Coo-perao, ao invs de concorrncia, deveria ser a filosofia de trabalho, poisem um momento de transio como o nosso no existem mais modelosnicos e fechados, mas diversas contribuies so necessrias para a con-solidao do paradigma emergente. Como cincia a servio, uma renovadapaixo pela Palavra tornar-se-ia uma exigncia mpar no como uma bus-ca moderna da verdade, mas como um colocar-se disposio da palavraque liberta e transforma integralmente. Por fim, a pesquisa bblica deveriaser vista como um momento da ao crist libertadora hoje e esta seria asua principal prioridade.

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    Estudos Teolgicos, v. 46, n. 1, p. 22-33, 2006

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