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Núcleo de Estudantes de Economia da AAC Textos traduzidos, montados e compilados por: Professor Doutor Júlio Mota; Professor Doutor Luís Peres Lopes; Professora Doutora Margarida Antunes. Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de publicações que compõem parte destes cadernos. O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos e da Fundação Calouste Gulbenkian. 1

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Núcleo de Estudantes de Economia da AAC

Textos traduzidos, montados e compilados por:

Professor Doutor Júlio Mota;

Professor Doutor Luís Peres Lopes;

Professora Doutora Margarida Antunes.

Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de

publicações que compõem parte destes cadernos.

O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se

insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos e da

Fundação Calouste Gulbenkian.

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Índice

1ª PARTE — Longe do Ruanda, sobre o Ruanda

I. Aula teórica sobre o Ruanda………… ……………….……………….4

II. Uma aula sobre a economia do Ruanda………………………….13

III. Das linhas de sombra e silêncio da ONU: “O que o

Mundo teria podido fazer para evitar o genocídio”…….30

2ª PARTE — Longe do Congo, sobre o Congo

I. Dois períodos determinantes na história do Congo……35

a. A “primeira Guerra Mundial” de África

b. Análise da recente situação política no Congo: o período de

transição

II. Duas cidades do Congo……………………………………………………49

a. KISANGANI, cidade “no interior do Mundo”

b. LUBUMBASHI: uma cidade arrasada

III. Produtos-chave na economia do Congo…………..……………54

a. KINSHASA, mercado clandestino de substâncias radioactivas

b. No QUÉNIA, o urânio de mobutu, verdadeiro ou falso, está em

venda livre

c. Como os “diamantes de sangue” financiam as guerras africanas

d. DiCaprio contra o Lobby do Diamante

e. Das taxas aos senhores da guerra, às receitas do Governo

Americano: o coltan

IV. A política do Banco Mundial no Congo…………………………66

3ª PARTE — Mensagem de Mandela

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1ª PARTE

Longe do Ruanda,

sobre o Ruanda

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I. Aula teórica sobre o Ruanda

Minhas senhoras e meus senhores, o tema da nossa aula é o Ruanda. O Ruanda é um país

pequeno, tão pequeno que em muitos dos mapas de África não é mais do que um ponto. Só nas notas explicativas desses mapas é que se poderá ler que esse ponto, precisamente no meio do continente africano, representa o Ruanda. O Ruanda é um país montanhoso. Embora o continente africano se caracterize mais pelas planícies e pelos planaltos, no Ruanda predominam as montanhas. Algumas atingem os dois, três mil metros de altura e até mais. É por isso que, muitas vezes, se faz referência a este país como sendo o Tibete de África – de resto não é apenas por causa das montanhas, mas também pela sua situação excepcional e pela sua singularidade. Esta singularidade não diz respeito apenas à geografia, mas também à sociedade. Enquanto as populações dos Estados africanos são geralmente compostas por membros de diversas tribos (no Congo vivem trezentas tribos, na Nigéria duzentas e cinquenta), no Ruanda existe apenas uma comunidade, a nação dos banyaruanda, dividida tradicionalmente em três castas: a casta dos proprietários das manadas de vacas – os tutsi (14 por cento da população) –, a casta dos camponeses – os hutu (85 por cento) – e a casta dos servos e criados – os twa (um por cento). Este sistema de castas (com algumas analogias em relação à Índia) foi criado há séculos, mas é ainda hoje controversa a sua origem. Discute-se se terá sido no século XII ou XV, porque não existem fontes escritas sobre esta matéria. Talvez seja suficiente saber que há muitos séculos houve aqui um reino, governado por um monarca, chamado mwami, oriundo da casta dos tutsi.

Esse reino, protegido por montanhas, era um Estado fechado ao exterior, que não mantinha relações com ninguém. Os banyaruanda não tinham o hábito de sair e – tal como outrora os japoneses – não deixavam os estrangeiros entrar no seu país (daí que também não conhecessem o comércio de escravos, a praga dos restantes povos africanos). Um dos primeiros europeus a chegar ao Ruanda, em 1894, foi o chefe de uma caravana alemã, que, mais tarde, foi governador da África oriental alemã, Gustav-Adolf, Conde de Götzen. Deve acrescentar-se que já quatro anos antes, num acordo entre a Inglaterra e o reino da Alemanha, o Ruanda tinha sido atribuído à Alemanha, facto que os ruandeses ignoraram, até mesmo o rei. Nesses anos, os ruandeses viveram como povo colonizado, sem que eles próprios soubessem. Os alemães também nunca manifestaram um grande interesse por esta colónia, que passou para as mãos da Bélgica, depois da Segunda Guerra Mundial. Também os belgas estiveram muito tempo sem desenvolver nenhum tipo de actividade no Ruanda. O Ruanda ficava longe da costa, a mais de 1500 quilómetros e, sobretudo, era um país pobre em matérias-primas e, por isso, de pouco interesse. Graças a estas circunstâncias, o sistema social dos banyaruanda, criado há séculos, manteve-se intacto, numa espécie de fortaleza, até à segunda metade do século XX. Este sistema revestia-se de algumas características que recordam o feudalismo europeu. O país era governado por um monarca, rodeado por um grupo de aristocratas e uma camada de fidalgos de província. Todos juntos formavam a casta dominante – os tutsi. A sua maior riqueza, na realidade a única, era o gado – os zebus –, uma espécie de vacas com longos e bonitos chifres em forma de sabre. Estas vacas não eram abatidas – eram sagradas e intocáveis. Os tutsi alimentavam-se do seu leite e do seu sangue (com a ponta de uma lança, rasgavam uma artéria e recolhiam o sangue num recipiente que tinham antes limpo com urina de vaca). Tudo isto era tarefa dos homens, pois as mulheres estavam proibidas de tocar nas vacas.

A vaca servia de medida para tudo: riqueza, prestígio e poder. Quanto mais vacas se possuísse, tanto mais rico se era. E quanto mais rico alguém fosse, mais poder tinha. O rei era quem possuía um maior número de vacas e as suas manadas eram tratadas com cuidados especiais. O ponto alto do feriado nacional era o desfile anual das vacas junto à tribuna real. Nessa altura passavam sob o olhar

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do monarca milhões de cabeças de gado. O desfile durava horas. As vacas levantavam nuvens de pó, que ficavam a pairar sobre o recinto muito para além do tempo que durava o desfile. A dimensão destas nuvens demonstrava o bem-estar da monarquia, e a festa em si foi ainda muitas vezes cantada na poesia patética dos tutsi.

«Um tutsi?», ouvi eu muitas vezes no Ruanda. «Um tutsi senta-se à entrada de sua casa e observa o seu gado a pastar no monte. Esta visão enche-o de orgulho e felicidade.»

Os tutsi não são pastores nem nómadas, nem sequer criadores de gado. São proprietários de manadas, uma casta dominante, aristocratas.

Os hutu, por seu turno, formam a casta dos camponeses (na Índia chamam-lhes vaishyas), muitíssimo mais numerosa e que está abaixo dos tutsi. Entre tutsi e hutu existiam relações de vassalagem; o tutsi tinha ascendente sobre o hutu, seu criado. Os hutu eram a clientela dos tutsi. Eram camponeses que viviam do cultivo das terras. Uma parte das colheitas era entregue ao senhor, que os protegia e lhes dava uma vaca (os tutsi detinham o monopólio das vacas, os hutu só podiam alugar as vacas ao seu senhor). Tudo como no feudalismo – a mesma dependência, os mesmos costumes, a mesma exploração.

Em meados do século XX, lentamente, vai-se desenvolvendo um conflito dramático entre as duas castas. O pomo da discórdia são as terras. O Ruanda é pequeno, muito montanhoso e densamente povoado. Como acontece muito frequentemente nos países africanos, também no Ruanda surgiram disputas entre criadores de gado e agricultores. Contudo, como a superfície do continente é tão grande, normalmente qualquer uma das partes pode sempre instalar-se numa zona não ocupada e assim evitar o conflito. No Ruanda, contudo, uma solução dessas não é possível – falta espaço para onde sair, para ceder. Além disso as manadas dos tutsi são cada vez maiores e, por isso, precisam cada vez de mais áreas de pastagem. E as novas pastagens só se podem criar por uma via: expulsando os hutu das suas terras. Mas a verdade é que os hutu já vivem também com uma terrível falta de espaço. O seu número tem vindo a aumentar rapidamente nos últimos anos. E para tornar a situação ainda mais complicada, as terras que os hutu cultivam são pobres e más. As montanhas do Ruanda são cobertas apenas por uma camada tão fina de húmus que as intempéries, que anualmente se abatem sobre o país na época das chuvas, arrastam grandes quantidades de terra, de tal modo que, muitas vezes, nos locais onde os hutu tinham campos de mandioca e milho, a rocha fica à mostra.

Por um lado, há manadas de vacas cada vez mais numerosas – símbolo da riqueza e da força dos tutsi – e, por outro lado, há os hutu cada vez mais apertados, oprimidos, encurralados: não há espaço, não há terras, alguém tem de partir para outras paragens ou morrer. É esta a situação que o Ruanda vive nos anos cinquenta, quando os belgas entram em cena. Tornam-se rapidamente muito activos, porque África vive um momento fulgurante. A onda dos movimentos independentistas e anticolonialistas bate cada vez com mais força, sendo por isso necessário agir, tomar decisões. A Bélgica faz parte dos países que são completamente apanhados de surpresa pelo movimento de emancipação. Este movimento não constava nos planos de Bruxelas, e os funcionários belgas não sabem o que fazer. Como a maioria naquela situação, encontram apenas um caminho: adiam a solução, vão-na empurrando à sua frente. Até então os belgas tinham governado o Ruanda com a ajuda dos tutsi, em quem se apoiavam. Mas os tutsi são a camada mais educada e ambiciosa dos banyaruanda, e são eles agora quem exige a independência. E tem de ser imediatamente, decisão para que os belgas não estão de todo preparados! Bruxelas muda então radicalmente a sua estratégia: deixa cair os tutsi e passa a apoiar os hutu, obedientes e dispostos a aceitar compromissos. Os hutu são convidados a virar-se contra os tutsi e as consequências desta política não se fazem esperar. Encorajados e instigados, os hutu partem para a luta. Em 1959 rebenta no Ruanda uma revolta de camponeses. O Ruanda foi precisamente o único país africano em que o movimento independentista assumiu a forma de uma revolução social antifeudal. Em toda a África, só o Ruanda viveu a sua

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tomada da Bastilha, a destituição do rei, a gironda e o terror. Multidões de camponeses, massas de hutu libertados avançam armados com machetes, picaretas e lanças contra os seus senhores e mestres, os tutsi. Dá-se um enorme massacre, a que há muito já não se assistia em África. Os camponeses incendeiam as quintas dos seus senhores e matam-nos cortando-lhes a cabeça. Correm rios de sangue e o país fica em chamas. Começa um abatimento em massa de gado e os camponeses podem, muitos pela primeira vez na vida, encher a barriga de carne. Nessa altura o país contava 2,6 milhões de habitantes, entre os quais trezentos mil tutsi. Calcula-se que terão morrido cerca de cinquenta mil tutsi tendo outros tantos conseguido refugiar-se nos países vizinhos – Congo, Uganda, Tanganica e Burundi. A monarquia e o feudalismo chegaram ao fim dos seus dias e a casta dos tutsi teve de abrir mão do seu papel dominante. Os camponeses hutu tomaram o poder. Quando o Ruanda alcançou a independência em 1962, os membros desta casta formaram o primeiro governo. A liderar este governo ficou o jovem jornalista Grégoire Kayibanda. Foi nessa altura que visitei o Ruanda pela primeira vez. Lembro-me da capital do país, Kigali, uma cidade pequena. Não encontrei nenhum hotel, se calhar não havia nenhum hotel. Por fim, umas freiras belgas albergaram-me num convento e deixaram-me pernoitar na secção de partos do seu pequeno hospital.

Tanto os hutu como os tutsi acordaram desta revolução como de um pesadelo. Ambas as castas assistiram a um massacre – uns foram os culpados, outros as vítimas. E este tipo de experiência deixa nas pessoas sequelas desgastantes e duradouras. Os sentimentos dos hutu são ambíguos. Por um lado, derrotaram os seus senhores, sacudiram o jugo feudal e tomaram pela primeira vez as rédeas do poder no país; mas, por outro lado, não aniquilaram por completo os seus senhores, não os exterminaram, e a consciência de que o adversário embora atingido, está ainda vivo e a pensar na vingança, cria-lhes um medo de morte (não nos podemos esquecer de que o medo de vingança está profundamente enraizado na mentalidade africana, dado que as relações entre as pessoas e os clãs continuam a reger-se pela lei da vingança). E há razão para se ter medo, porque, apesar de os hutu terem invadido a fortaleza que é o Ruanda e aí terem instalado o seu governo, existe ainda no país uma quinta coluna de tutsi (cerca de cem mil). Além disso, e este é um factor ainda mais ameaçador, os tutsi expulsos da fortaleza instalaram-se agora à volta dela.

A metáfora e a imagem da fortaleza não representam qualquer exagero, porque, independentemente do lado pelo qual se chega ao Ruanda, quer seja vindo do Uganda, da Tanzânia ou do Zaire, tem-se sempre a sensação de que se atravessam as portas de uma enorme fortaleza no meio das montanhas. Se um tutsi, agora desterrado, um sem-terra, acordar uma manhã no campo de refugiados e espreitar para fora da sua tenda miserável, só vê montanhas. De manhã, a visão é perfeitamente fantástica e sensacional. Muitas vezes acordei cedo, apenas para poder admirar esta paisagem única. Sob os nossos olhos estende-se uma cadeia interminável de montes altos, mas suaves, cor de esmeralda, violeta e verde, sempre emoldurados pela luz do sol. É uma paisagem onde não há rochedos, desfiladeiros e barrancos escuros e ameaçadores, não há ravinas mortais ou desabamentos de pedras a espiar-nos. Não, os montes do Ruanda irradiam calor e bem-estar, seduzem pela sua beleza e a sua calma, o seu ar cristalino e a perfeição das suas linhas e formas. De manhã, uma neblina diáfana preenche os vales verdejantes. Parece uma cortina clara, que brilha ao sol, leve e perfumada, através da qual se vêem os eucaliptos, as bananeiras e as pessoas que trabalham as terras. Mas o tutsi vê apenas o seu gado a pastar. Ali, no campo de refugiados, as manadas, de que o tutsi já não é o dono e que para ele foram a essência e a razão de ser da sua existência, assumem uma dimensão gigantesca, transformam-se num mito, uma lenda, sonhos, desejos e obsessões.

É assim que se desenvolve o drama do Ruanda, a tragédia do povo dos banyaruanda, comparável à tragédia palestiniana, devido à impossibilidade de encontrar um denominador comum de interesses de duas sociedades, que reclamam direitos sobre o mesmo pedaço de terra, que é demasiado pequeno e apertado para albergar as duas. E é no meio deste drama que amadurece o

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desejo de encontrar uma solução definitiva. Inicialmente débil e indefinido, esse desejo torna-se mais nítido e gritante com o passar dos anos.

Mas o caminho é longo. Está-se nos anos sessenta, os anos que em África são anos de promessas que geram um maior optimismo. Este clima de expectativa e de euforia que alastra a todo o continente faz com que ninguém preste atenção aos acontecimentos sangrentos que se passam no Ruanda. Não há ligações rodoviárias, não há jornais e, além disso, o que é o Ruanda? Onde é que fica? Como é que se chega lá? Na verdade, este país parece ter caído no esquecimento geral. Tudo é calmo, parado e, como rapidamente nos apercebemos, aborrecido. Não há, no Ruanda, nenhum percurso recomendado, não há grandes cidades, é raro vir cá alguém. Quando há alguns anos atrás contei a um colega, o repórter do Daily Telegraph, Michael Field, que tinha estado no Ruanda, a única pergunta que me fez foi: «E viste o presidente?» Disse-lhe que não.

«Então para que é que lá foste?», perguntou surpreendido. Muitos dos meus colegas achavam que a única atracção possível neste país seria o presidente. Se não pudermos ver o presidente, por que diabo é que havemos de lá ir?

Na realidade, a primeira coisa em que reparamos, quando nos encontramos com alguém num país deste tipo, é na sua forma absolutamente provinciana de pensar. Porque o nosso mundo, aparentemente uma aldeia global, é, na realidade, um planeta composto por milhares e milhares de províncias diferentes e que nunca se encontram. Uma viagem pelo mundo é, de facto, uma viagem de uma província para outra, sendo cada uma destas províncias uma estrela solitária que brilha apenas para si própria. Para a maioria das pessoas que lá vivem, o mundo real termina na soleira da sua porta, no limite da sua aldeia, na melhor das hipóteses na fronteira do seu vale. O mundo que fica para além disso parece-lhes irreal, sem importância e desnecessário, enquanto o pequeno mundo em que vivem assume proporções de cosmos, gigantesco e ofuscante. Muitas vezes é difícil para o indígena e o forasteiro encontrar uma linguagem comum, porque cada um utiliza uma lente diferente ao contemplar o mesmo panorama. O forasteiro recorre a uma lente de grande alcance, que dá uma imagem distante e redutora, mas que, em compensação, mostra claramente a linha do horizonte, enquanto o seu interlocutor indígena usa sistematicamente uma teleobjectiva ou mesmo um telescópio, que amplia tudo até o mais ínfimo pormenor.

Mas, para as pessoas que vivem num país assim, só os próprios dramas são reais e as tragédias

dolorosas e de modo algum exageradas. É isso que se passa no Ruanda. A revolução de 1959 cortou a nação dos banyaruanda em dois campos inimigos. Os anos que

se seguiram serviram para reforçar os mecanismos do conflito, agravar a situação, desencadeando cada vez mais batalhas sangrentas – até ao apocalipse.

Os tutsi, que vivem em campos ao longo da fronteira, planeiam vingança e passam ao contra-ataque. Em 1963 atacam a partir do sul, do vizinho Burundi, onde os seus irmãos, os tutsi do Burundi detêm o poder. Dois anos mais tarde, dá-se uma nova invasão dos tutsi. O exército dos hutu consegue travá-la e perpetra, como vingança, um enorme massacre contra os tutsi do Ruanda. Vinte mil tutsi, há quem diga cinquenta mil, foram eliminados pelos hutu. Nenhum observador independente nem nenhuma comissão ou meio de comunicação social entrou no território. Recordo-me de nós, um grupo de correspondentes, termos tentado na altura entrar no Ruanda, mas os detentores do poder não nos deixaram. Na Tanzânia conseguíamos apenas recolher testemunhos de quem tinha fugido, sobretudo mulheres e crianças, amedrontadas, feridas, esfomeadas. Na maioria dos casos, os homens eram os primeiros a ser mortos. (Em África, há muitas guerras sem testemunhas, em lugares escondidos e inacessíveis, sem que o mundo desconfie, num desconhecimento total de todos.) Foi isso que aconteceu também no Ruanda. Durante anos a fio, travaram-se ao longo da fronteira dolorosos combates, perseguições, massacres. Os guerrilheiros

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tutsi (a quem os hutu chamavam baratas) incendiavam aldeias e matavam a população local. Esta, por sua vez, vingava-se, apoiada pelo próprio exército, violando e massacrando.

Neste país há inúmeras aldeias e pequenas cidades com uma população mista. Hutu e tutsi são vizinhos, cruzam-se na rua, trabalham no mesmo sítio, mas conspiram às escondidas. Neste clima de desconfiança, de tensões e medos recíprocos, renasce a antiga tradição africana das alianças e organizações secretas, da �ilo�. Reais e imaginárias. Todos pertencem a uma qualquer e estão todos plenamente convencidos de que os seus vizinhos, os outros, também pertencem a uma, obviamente com interesses contrários, uma inimiga.

O país gémeo do Ruanda é o seu vizinho do sul, o Burundi. O Ruanda e o Burundi têm geografias semelhantes, uma população semelhante e uma história comum que se estende por vários séculos. Os seus destinos só se separaram em 1959: no Ruanda venceu a revolução dos camponeses hutu, cujos líderes tomaram o poder, enquanto no Burundi os tutsi mantiveram o seu domínio e ainda o consolidaram, aumentando o exército e criando uma espécie de ditadura militar feudal. Mas o antigo sistema de vasos comunicantes entre ambos os países continuou a funcionar, e o massacre dos tutsi pelos hutu foi vingado com um massacre dos hutu pelos tutsi no Burundi e vice-versa. Quando, em 1972, os hutu do Burundi, seguindo o exemplo dos seus irmãos no Ruanda, tentaram uma revolta, começando por matar uns milhares de tutsi, estes responderam matando mais de cem mil hutu. Não foi tanto a matança, em si, que abalou os hutu do Ruanda, uma vez que este tipo de matança era frequente e repetia-se com intervalos regulares, mas sim a sua dimensão assustadora. E os hutu do Ruanda decidiram responder. A sua reacção deveu-se ainda ao facto de que, na sequência desta perseguição, algumas centenas de milhares (às vezes fala-se num milhão) de hutu do Burundi se terem refugiado no Ruanda, o que colocou este país, pobre e constantemente devastado pela fome, perante o grave problema de como alimentar a multidão de refugiados.

Aproveitando esta situação crítica (eles matam os nossos irmãos no Burundi; nós não somos capazes de dar de comer a um milhão de imigrantes), o chefe do exército ruandês, o general �ilo�f� Habyarimana, perpetrou um golpe de Estado em 1973 e autoproclamou-se presidente. Este golpe permitiu que se tornassem patentes numerosos desentendimentos e conflitos no seio da sociedade hutu. O presidente vencido (e mais tarde assassinado) Grégoire Kayibanda, considerado como sendo relativamente liberal, representava um clã dos hutu do interior do país. O novo chefe, pelo contrário, provinha de um clã do noroeste do Ruanda. Este clã formava uma ala radicalmente chauvinista dos hutu (para tornar esta imagem mais compreensível, poder-se-ia dizer que Habyarimana era o Radovan Karadzic dos hutu ruandeses).

Habyarimana manter-se-á no poder durante 21 anos, até à morte em 1994. Forte, robusto e enérgico, concentra todos os seus esforços em criar uma ditadura de ferro. Introduz o sistema unipartidário e instala-se ele próprio na chefia do partido. Todos os cidadãos do país têm de entrar para o partido mal acabem de nascer. O general corrige também a imagem demasiado simplista do conflito entre tutsi e hutu. Acrescenta uma nova dimensão ao esquema, uma nova linha de separação – entre o poder estatal e a oposição. Se alguém for um tutsi leal, poder-se-á tornar juiz da aldeia ou alcaide (não poderá, contudo, ser ministro), mas se alguém criticar o poder estatal vai parar à cadeia ou ao cadafalso, mesmo se for cem por cento tutsi. O general tinha boas razões para proceder assim, pois não eram só os tutsi que se opunham ao regime, mas também muitos hutu que o odiavam e o combatiam com todos os meios de que dispunham. Na base do conflito do Ruanda não estavam apenas desavenças entre as diferentes castas, mas também uma incompatibilidade insolúvel entre a ditadura e a democracia. Por isso é arriscado pensar e discutir tudo em função de categorias étnicas. Estas encobrem e diluem todos os valores mais profundos – como por exemplo o bem e o mal, a verdade e a mentira, a democracia e a ditadura – limitando-se apenas a uma dicotomia superficial e secundária, a um contraste e a uma contradição: ele só tem esse mérito, porque é um hutu, ou ele não vale nada porque não passa de um tutsi.

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A consolidação da ditadura era, assim, a primeira tarefa a que Habyarimana tinha de se dedicar. Quanto maiores os progressos alcançados, tanto mais nitidamente se desenhava uma nova tendência – a privatização crescente do país. Com o passar dos anos, o Ruanda transformou-se numa propriedade privada do clã de Gisenya (uma pequena cidade, da qual era oriundo o general Habyarimana), ou mais precisamente – numa propriedade da mulher do presidente, Agathe, e dos seus três irmãos, Sagatawa, Seraphin e Zed, e um rancho de primos e primas. Agathe e os seus irmãos pertenciam ao clã dos Akazu, palavra mágica que abria muitas portas que nos levavam aos labirintos secretos do Ruanda. Sagatawa, Seraphin e Zed possuíam luxuosos palácios nas imediações de Gisenya, de onde controlavam, juntamente com a irmã e o seu marido, o exército, a polícia, os bancos e a administração do Ruanda. Um pequeno Estado, escondido nos montes deste imenso continente, dominado por uma família gananciosa, por caciques insaciáveis e despóticos. Como é que foi precisamente um país como este que ficou tão tristemente célebre junto da opinião pública de todo o mundo?

Já aqui foi referido o facto de em 1959 milhares de tutsi terem abandonado o país, para salvar as suas vidas. Nos anos seguintes seguiram-se-lhes mais algumas centenas de milhares. Partiram para o Zaire, o Uganda, a Tanzânia e o Burundi, onde viviam em campos de refugiados ao longo das fronteiras. Nestes campos acotovelavam-se refugiados infelizes e impacientes que tinham apenas um objectivo na vida: regressar a casa, às suas (entretanto já míticas) manadas. A vida nestes campos é apática, miserável e desesperante. Com o tempo vão surgindo gerações novas, mais empreendedoras, que querem pelo menos tentar, pela luta, alcançar aquilo por que anseiam. O seu principal objectivo é o regresso à terra natal dos progenitores. A terra natal dos antepassados é um conceito sagrado em África, um lugar de saudade, de atracção magnética, uma fonte de vida. Mas não é fácil escapar a um campo de refugiados, as autoridades locais não deixam. O Uganda constitui uma excepção; há anos que reina o caos, a desordem, a guerra civil. Nos anos oitenta, o jovem activista Yoveri Museveni desencadeia uma guerrilha contra o regime de terror do psicopata assassino Milton Obote. Museveni precisa de gente. E encontra-a rapidamente, porque além dos seus compatriotas do Uganda há muitos jovens rapazes dos campos dos tutsi ruandeses que se alistam como guerrilheiros. Museveni acolhe-os de boa vontade. Recebem treino militar, sob a orientação de instrutores experientes, nas florestas do Uganda e muitos são enviados para escolas de oficiais no estrangeiro. Em Janeiro de 1986, Museveni lidera as suas tropas no assalto a Kampala e toma o poder nas suas mãos. Grande parte das suas divisões militares são comandadas por jovens tutsi – filhos dos refugiados do Ruanda, já nascidos nos campos.

Durante muito tempo, ninguém parece dar-se conta de que no Uganda se está a formar um exército experiente de tutsi desejosos de vingança, que não pensam em mais nada senão em vingar o ultraje, a injustiça de que os seus pais foram vítimas. Inicialmente as suas reuniões mantêm-se envoltas num grande secretismo; são eles que criam a Frente Nacional do Ruanda e preparam tudo para a ofensiva. Na noite de 30 de Setembro de 1990, saem dos quartéis do exército ugandês e dos campos de refugiados próximos da fronteira e entram no Ruanda ao romper da aurora. Os detentores do poder em Kigali são colhidos de surpresa. Habyarimana tem à sua disposição apenas um exército enfraquecido e desmoralizado e da fronteira ugandesa até Kigali não são mais de 150 quilómetros, de modo que os guerrilheiros não necessitavam de mais do que um ou dois dias para chegar à capital. E teria sido isso que teria acontecido, dado que os soldados de Habyarimana não ofereceram qualquer resistência (e assim talvez não acontecessem os massacres de 1994), se não tivesse havido um telefonema. Um telefonema em que o general Habyarimana pediu ajuda ao presidente Mitterrand.

Mitterrand estava sob a poderosa pressão de um lobby pró-africano. Enquanto a maioria das capitais europeias cortou radicalmente com a sua herança colonial, a França reagiu de uma forma diferente. Em França há uma grande quantidade de pessoas activas e bem organizadas, que fizeram

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carreira na administração colonial e que viveram nas colónias (e não viveram nada mal!) e se sentem estrangeiros, inúteis e supérfluos na Europa. Ao mesmo tempo, estão plenamente convencidos de que a França é, não só um país europeu, como também a comunidade de todos os homens de cultura e língua francesas, numa palavra, que a França representa também um território cultural e linguístico global: a francophonie. Na linguagem um pouco mais simples da geopolítica, o que esta filosofia diz é que quando alguém ataca território francófono em qualquer parte do mundo, isso é quase tão grave como se atacasse a própria França. Além disso, os funcionários e generais do lobby pró-africano sofrem ainda os efeitos do complexo de Faschoda. Uma explicação breve sobre este tema: no século XIX, quando os países europeus dividiram África entre si, Londres e Paris estavam convencidos (e na altura isso era em certa medida compreensível) de que as suas possessões neste continente tinham de estar todas alinhadas e além disso deviam estar ligadas entre si. Londres ansiava ter uma linha de norte a sul, do Cairo até à Cidade do Cabo, e Paris aspirava a ter o eixo este-oeste, de Dakar a Djibouti. Se pegarmos num mapa de África e nele traçarmos duas linhas rectas, elas cruzar-se-ão no sul do Sudão, num local, junto do Nilo, onde se situa uma aldeia de pescadores chamada Faschoda. Naquele tempo, na Europa, pensava-se que quem possuísse Faschoda poderia concretizar o ideal da colonização expansionista: uma colonização rectilínea. Rapidamente, Paris e Londres se lançaram numa verdadeira corrida. Ambas as capitais enviaram expedições militares em direcção a Faschoda. Os franceses foram os primeiros a chegar lá. A 16 de Junho de 1898, o capitão J. D. Marchand chegou a Faschoda, após uma marcha cheia de aventuras desde Dakar, e lá içou a bandeira francesa. A divisão de Marchand era composta por 150 senegaleses – homens corajosos e que lhe eram fiéis. Paris exultou de júbilo. Os franceses não escondiam o seu orgulho. Mas, dois meses depois, chegaram os ingleses. O líder da expedição foi Lord Kitchener, que constatou, surpreendido, que Faschoda já tinha sido tomada. Sem se preocupar muito com isso, içou a bandeira britânica. Desta vez, foi Londres que vibrou de entusiasmo. Os ingleses encheram-se de orgulho. Ambos os países foram invadidos por uma febre de euforia nacionalista. De início, nenhuma das partes queria ceder. Há dados que apontam para que nessa altura (ano de 1898), a primeira guerra mundial tenha estado prestes a rebentar, por causa de Faschoda. Por fim (mas essa é uma longa história) os franceses tiveram de recuar. A Inglaterra tinha vencido. Entre os antigos colonialistas franceses, o episódio de Faschoda é uma ferida que continua aberta e, ainda hoje, soam hinos de combate sempre que os franceses ouvem dizer que os anglophones conquistaram o que quer que seja, onde quer que seja.

Foi isso que aconteceu também desta vez quando Paris teve conhecimento de que os tutsi anglófonos do Uganda de língua inglesa entraram no território do Ruanda francófono, violando a fronteira da francophonie.

As colunas da Frente Nacional do Ruanda tinham chegado às portas da capital, e o governo e o clã de Habyarimana já estavam de malas aviadas quando pára-quedistas franceses desceram no aeroporto de Kigali. Segundo dados oficiais, não eram mais do que duas companhias, mas foi o suficiente. Os guerrilheiros queriam lutar contra o regime de Habyarimana, mas não queriam arriscar uma guerra com a França, porque não teriam tido qualquer chance e, por isso, interromperam a marcha sobre Kigali. Mas permaneceram no Ruanda, onde se instalaram nas regiões do norte. O país foi dividido de facto, mas ambas as partes consideraram esta divisão como uma situação passageira e provisória. Habyarimana contava poder, com o tempo, reunir forças suficientes para expulsar os guerrilheiros, e estes consideravam que o regime, juntamente com o clã Akazu, iriam cair no dia em que as tropas francesas retirassem.

Não há nada pior do que uma situação deste tipo, que não é nem de guerra nem de paz. Uns tinham partido para o combate na esperança de vencer o inimigo e colher os frutos da vitória. Mas a verdade é que esse sonho não se realizou. A ofensiva teve de ser interrompida. Pior ainda era a moral dos atacados: tinham conseguido manter-se, mas sempre com o fantasma da derrota bem presente e

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com a sensação de que o seu domínio poderia estar a chegar ao fim. Procuravam, assim, com todas as forças uma saída redentora.

Durante os três anos que decorreram entre o ataque de Outubro de 1990 e o massacre de Abril de 1994, trava-se no principal campo de refugiados do Ruanda um debate aceso entre os apoiantes de um compromisso e da formação de um governo de coligação (as gentes de Habyarimana e os guerrilheiros), por um lado, e o clã fanático e despótico dos Akazu, liderado por Agathe e os seus irmãos, por outro. O próprio Habyarimana encontra-se dividido, hesitante, não sabe o que fazer e vai perdendo influência no desenrolar dos acontecimentos. Rapidamente, a linha chauvinista do clã Akazu consegue levar a melhor. É uma facção que tem os seus ideólogos – intelectuais e eruditos, professores do Departamento de História e Filosofia da Universidade ruandesa de Butare – Ferdinand Nahimana, Casimir Bizimungu, Leon Mugesira e outros. Formulam uma ideologia que justifica o massacre como única solução possível, como única forma de garantir a sobrevivência. Segundo a teoria de Nahimana e dos seus companheiros, os tutsi são uma raça estrangeira. São nilotas, que vieram de algures junto do Nilo para o Ruanda, subjugando a população autóctone daquela região, os hutu, explorando-a, escravizando-a e destruindo-a lentamente. Açambarcaram tudo o que havia de bom no Ruanda: as terras, o gado, os mercados e, com o passar do tempo, todo o Estado. Os hutu foram empurrados para uma situação de povo oprimido, que durante séculos se limitou a vegetar na miséria, na fome e numa grande humilhação. Agora, tinha chegado o momento de reconquistar a identidade e a dignidade e de ocupar de pleno direito um lugar entre as restantes nações do mundo.

Mas o que é que a História nos ensina?, pergunta Nahimana em dezenas de aparições públicas, em artigos de imprensa e em brochuras. As suas lições são trágicas, enchem-nos do mais negro dos pessimismos. Toda a história das relações entre hutu e tutsi é uma cadeia trágica de perseguições e massacres, de aniquilação de parte a parte, de imigração forçada, de ódio sem limites. No pequeno Ruanda não há lugar para dois povos, que são perfeitamente estranhos um ao outro e que nutrem um pelo outro uma inimizade mortal. Acresce ainda que a população do Ruanda tem aumentado brutalmente. Em meados do século, o país tinha dois milhões de habitantes e agora, cinquenta anos depois, já são quase nove milhões. Como é que pode sair deste círculo vicioso, deste destino cruel, de que os próprios hutu também têm culpa, como Mugesira constata em tom de autocrítica: «Em 1959, cometemos um erro fatal, quando permitimos aos tutsi que fugissem. Naquela altura devíamos ter agido e tê-los expulsado». O professor considera que esta era a oportunidade de reparar esse erro. Os tutsi deveriam regressar à sua verdadeira terra natal, algures nas margens do Nilo. Enviemo-los para lá, exclama: «mortos ou vivos». Os intelectuais de Butare, esses vêem uma outra saída – a solução definitiva: uma das partes tem de ser eliminada, tem de deixar de existir, de uma vez por todas.

E começaram os preparativos. O exército, que contava cinco mil homens, foi aumentado até contar 35 000 soldados. A guarda do presidente foi transformada numa segunda unidade de combate, uma unidade de elite, bem treinada e com armamento pesado moderno (a França enviou instrutores e o armamento chegou não só de França como também da África do Sul e do Egipto). Mas o maior investimento foi o da criação de um movimento de massas paramilitar – interahamwe (que significa: ataquemos todos juntos). Este movimento agrupava habitantes das aldeias e pequenas cidades, jovens desempregados, camponeses pobres, alunos, estudantes e funcionários públicos, que deveriam receber formação militar e ideológica – grandes massas, um verdadeiro movimento popular, cuja tarefa é impor uma espécie de apocalipse aos tutsi. Os chefes desta organização foram incumbidos pelo Governo da elaboração de listas com os nomes de todos os opositores do Governo, todos os suspeitos, inseguros e ambíguos, todos os insatisfeitos, pessimistas, cépticos e liberais. O órgão ideológico do clã Akazu é a revista Kangura, mas o principal instrumento de propaganda e de divulgação de instruções junto de uma população praticamente analfabeta é a emissora de rádio

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Mille Collines que, mais tarde, durante o massacre, transmitia, mais do que uma vez por dia, o grito de guerra: «Morte! Morte! As valas ainda só estão meio cheias de cadáveres de tutsi. Apressem-se a enchê-las!»

Em meados de 1993, os Estados africanos forçaram o entendimento entre Habyarimana e a Frente Nacinal do Ruanda (FNR). Os guerrilheiros deviam ser integrados no Governo e no Parlamento e representar quarenta por cento das forças militares. Mas para o clã akazu este compromisso estava completamente fora de causa. Os seus membros perderiam o monopólio de poder, coisa que eles não estavam dispostos a aceitar. No seu entender tinha chegado o momento de avançar para uma solução definitiva.

A 6 de Abril de 1994, «assassinos desconhecidos» abateram um avião que se fazia à pista do aeroporto de Kigali. Nesse avião vinha o presidente Habyarimana, no regresso de uma viagem ao estrangeiro. Tinha perdido a face, pois tinha assinado um compromisso com o inimigo. O derrube do aparelho foi o sinal para o início do massacre dos opositores do regime – sobretudo tutsi, mas também alguns hutu. Os massacres infligidos pelo Governo sobre a população indefesa duraram três meses, até à altura em que as tropas da FNR conquistaram todo o país e expulsaram o inimigo.

As estimativas relativas ao número de vítimas variam muito. Algumas apontam para meio milhão, outras um milhão. Não é possível fazer cálculos exactos. Mas o mais assustador é o facto de pessoas inocentes estarem a matar outros inocentes – sem qualquer motivo, sem qualquer necessidade. E mesmo que não tivesse sido um milhão, mas apenas uma vítima – não seria isso já uma prova de que o demónio vive entre nós e que na Primavera de 1994 se encontrava no Ruanda?

Entre meio e um milhão de mortos – é, de facto, um número tragicamente elevado. Mas, se se considerar o exército de Habyarimana com os seus helicópteros, as metralhadoras pesadas, os canhões e tanques, não é difícil imaginar-se que, recorrendo à chacina sistemática, durante três meses, o número de vítimas podia ter sido ainda maior. Mas isso não aconteceu. A maioria das pessoas não morreu por causa das bombas e das metralhadoras, mas atacada por armas muito mais primitivas – machetes, martelos, lanças e paus; morreu espancada e triturada. Os líderes do regime não estavam apenas preocupados com o objectivo da solução final e definitiva. Os meios para atingir esse fim eram mais importantes do que o objectivo em si. Importava que ao longo do percurso até ao objectivo final – a destruição definitiva do inimigo – o povo se transformasse numa comunidade de criminosos e que a participação colectiva no massacre criasse um sentimento de culpa que mantivesse as pessoas unidas. Todo aquele a quem a consciência pesasse por ter morto alguém sabia que, a partir de então, estava sujeito à lei da vingança, e que por trás dessa lei lhe sorria o fantasma assustador da própria morte.

Enquanto durante o nacional-socialismo e o estalinismo eram os membros de instituições especiais – SS ou NKWD – que matavam, e os crimes cometidos por estas brigadas eram cometidos longe dos olhares indiscretos, no Ruanda era importante que todos matassem, que o crime se tornasse produto de uma revolta popular maciça, quase espontânea, para que não restasse alguém que não tivesse as mãos manchadas do sangue daqueles que eram tidos como inimigos do regime.

Foi por essa razão que os hutu fugiram, depois de serem derrotados, fugiram apavorados para o Zaire e lá se mantinham em constante movimento, arrastando consigo os seus poucos haveres. As pessoas na Europa, que viam as intermináveis colunas de pessoas, não conseguiam perceber que força era aquela que movia estes caminhantes exaustos, o que é que ordenava àqueles esqueletos que estivessem em constante movimento, em longas e densas filas, sem parar, sem comer nem beber, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados, submissos e medindo com o seu olhar vazio o caminho-fantasma de culpa e dor.

Fonte: Ryszard Kapuscinski, Ébano, Febre Africana, Edições Campo das Letras, Lisboa, 2002.

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II. Uma aula sobre a economia do Ruanda

1. Algumas notas sobre a geografia e a história: aspectos relevantes da situação. 1.1. Introdução

O Ruanda é um pequeno país pobre, geograficamente situado num enclave, tem uma densidade

populacional elevada, com cerca de 7,6 milhões de habitantes. Os centros urbanos são poucos e pequenos. A capital, Kigali, tinha apenas 237 000 habitantes em 1993. Da capital, Mombasa fica a 1924 km e Dar-es-Salaam a 1715 km. Em 1992, apenas 10% da população vivia nos meios urbanos, ou antes, em meios “urbanizados”. A quase totalidade da população activa encontra-se no meio rural (95%), no sector agrícola, no comércio e ainda no artesanato rural. O sector moderno limita-se a algumas fábricas, produzindo produtos de primeira necessidade como chapas de metal, cimento, enxadas, têxtil, sabão, cerveja, etc.

Tornou-se independente em 1962 e gozou durante muito tempo de um sistema político estável. Até 1988, o sistema político era considerado relativamente democrático pela maior parte dos observadores. O regime económico era qualificado pela maior parte dos economistas como um regime de “liberalismo planificado”. O país beneficiava de uma ajuda internacional considerável.

A história do Ruanda é sobretudo a história dos camponeses, que tiveram êxito em sobreviver apesar da escassez das terras, da degradação do solo e da taxa elevada de crescimento da sua população. Até 1987, a média nacional de calorias por dia aproximava-se das normas da FAO, enquanto o consumo de proteínas situava-se um pouco abaixo. Esta média nacional esconde contudo grandes desigualdades regionais. Esconde também grandes desigualdades entre famílias e classes sociais no meio rural, embora estas sejam atenuadas pela repartição obrigatória num sistema complexo de relações interpessoais.

Sob a pressão do sobrepovoamento e da sobre-exploração, os camponeses do Ruanda dispersaram-se durante décadas por todo o país, desde as terras agrícolas férteis da região de Lava até às savanas semi-áridas que contornam a fronteira do Uganda e da Tanzânia. Estas migrações conduziram a uma diferenciação das culturas, sem contudo mudarem as estruturas ancestrais da sociedade. Os poderes públicos orientaram estas migrações e estimularam o comércio pela reordenação do sector agrícola, pela abertura de regiões novas que, do ponto de vista geográfico e social, estavam fechadas e isoladas, pela implementação de mercados e de centros de negócios, etc. 1.2. A geografia humana.

Há no Ruanda três etnias, duas das quais são importantes à escala do país: os hutu e os tutsi. Na sociedade pré-colonial, os hutu eram os agricultores. São aparentados dos bantús e começaram a instalar-se no país há pelo menos 1000 anos. Era uma população sedentária, que tinha no meio do seu território uma vasta floresta que os habitantes foram abrindo lentamente ao longo dos séculos.

Neste país de montanhas e de colinas, os campos estendiam-se pelas encostas das colinas entre, por um lado, os baixios junto do rio e, por outro lado, as arborizações e os pastos nas partes superiores das colinas. O camponês andava sempre a pé, tendo como únicos instrumentos agrícolas uma enxada, uma picareta e um machado.

A distribuição das terras no Ruanda foi muito igualitária até 1984-85: de acordo com o Inquérito Agrícola Nacional, em 1984, o coeficiente de concentração das terras era de 419, o que é um dos coeficientes mais baixos do mundo.

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Na época pré-colonial, os tutsi, pertencendo às etnias nilóticas, eram pastores. Na origem, era um povo nómada, vindo da Eritreia e da Etiópia ao longo dos séculos. Pertenciam às etnias e/ou a grupos culturais nilóticos, mas diferenciavam-se, de acordo com certos autores (etnólogos, antropólogos e linguistas), de outros povos-pastores nómadas da África, como os hamitas e Nilo-hamitas. As origens, os movimentos migratórios e a história política destas populações são incertas, dado que faltam documentos escritos. Mas é certo que havia pelo menos dois vastos reinos nilóticos bem organizados e admirados pelos exploradores europeus: o do Ruanda e o do Burundi. É certo, também, que no século XIX as povoações do vasto reino do Ruanda tinham relações culturais e políticas com certas povoações do Nordeste do Zaire e do Uganda.

No mundo académico europeu, estas referências históricas apenas tinham interesse para os etnólogos, que tentam decifrar os vestígios do passado situados no presente. Desde então, a história destas etnias tornou-se importante, assim como as formas de organização de sociedades multi-étnicas africanas. De facto, a democratização destas sociedades que a Europa quis que se realizasse a grande velocidade em África, a partir de 1989 (data do desmoronamento da União Soviética), exige o conhecimento da história destas populações. A reconstrução e a interpretação desta história pré-colonial, e, em particular, do regime agrícola e da repartição do poder entre chefes tutsi, chefes ou sub-chefes hutu e o Mwami (chefe dos exércitos) e as populações (hutu e tutsi) são uma questão complexa e controversa. Continuará ainda a sê-lo por muito tempo, uma vez que esta reconstrução se tornou uma arma política na repartição actual do poder entre as elites, tanto no Ruanda como no Burundi.

De toda a maneira, parece claro que havia dois sistemas paralelos de relações assimétricas de tipo feudal entre patrões-protectores e clientes-camponeses, o primeiro (o ubuhake) regulava as relações entre os chefes-pastores (tutsi) e os camponeses hutu, e o segundo (o ubukonde) regulava as relações entre os chefes-agricultores hutu (abakonde, umumyabutaka) e os camponeses hutu. Depois, é necessário sublinhar dois factos importantes: por um lado, havia pastores tutsi pobres; por outro lado, um hutu podia conseguir a sua ascendência social pelo casamento com uma mulher tutsi.

Em certas regiões um dos dois sistemas sociais era predominante (o ubuhake ou o ubukonde). Nas regiões onde a influência dos tutsi era menos forte, o Norte do país, por exemplo (as Terras de Lava), predominava o ubukonde e os chefes-agricultores de colina eram subordinados ao régulo que, por sua vez, estava subordinado ao Mwami. O presidente Habyarimana, que tomou o poder em 1973, era desta região. Os chefes-agricultores (abakonde) nesta região tinham, da mesma maneira que os chefes-pastores, o direito de cobrarem certas taxas e de imporem certos trabalhos penosos. É necessário, no entanto, sublinhar que os contratos ubukonde constituíam apenas um elemento de um sistema mais geral da repartição, que protegia os pobres contra os pequenos desaires, devidos às condições climatéricas, conjunturais, etc. Os grandes desaires e, em geral, todos os acontecimentos naturais de que a sociedade não podia evitar as consequências, eram atribuídos a forças sobrenaturais. Do mesmo modo, certas desgraças pessoais, como a doença e, até certo ponto, a pobreza não eram nem da responsabilidade da sociedade nem dos seus chefes, mas sim do indivíduo, da sua família e dos Chefes de linhagem. 1.3. Resenha histórica: as mudanças estruturais durante a época colonial

O império alemão muito raramente intervinha, e apenas indirectamente, na vida diária do país. Os alemães fizeram as primeiras estradas, ladeadas de eucaliptos, e ensaiaram, mas sem insistirem demasiado, novas culturas agrícolas. Após a guerra de 1914-18, a Bélgica exigiu a sua parte dos despojos de guerra e a África de Leste foi dividida entre o Império Britânico e a Bélgica. Consequentemente, a Bélgica obteve da Sociedade das Nações Unidas a tutela conjunta do Ruanda e

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do Burundi. Com esta imposição arbitrária de fronteiras políticas, esta região natural dos Grandes Lagos foi, de imediato, desmantelada. As migrações naturais de pessoas e de capital (gado) tornaram-se de repente uma questão de política internacional. O enclavamento dos reinos do Ruanda e do Burundi é uma consequência directa desta demarcação arbitrária das fronteiras entre poderes coloniais. As relações históricas quer das povoações tanto do Norte (nas regiões ao longo do Nilo) como do Leste (o Uganda), ou do Sul (a Tanzânia) e do Oeste (o Kivu e o Ituri, no Leste do Zaire foram parcialmente cortadas. As fronteiras políticas eram obstáculos ao movimento de mercadorias nas antigas rotas das caravanas que ligavam a Crista Zaire-Nilo aos portos de Mombaça e de Dar-es-Salam. As rotas das caravanas de Norte-Sul (os carros de bois partiam das minas de ouro do Ituri e passavam pelas minas de cobre do Shaba para a África do Sul) foram suprimidas. Mas, o que é mais importante: as migrações naturais e espontâneas das populações pararam.

Este vai e vem fácil era particularmente importante em caso de crise económica (escassez) e de conflitos políticos (querelas entre chefes, régulos e reis, por exemplo). A população conhecia uma saída em caso de crise. A população tinha consciência do território para além das fronteiras políticas.

No início, a Bélgica aplicou, tal como a Alemanha e a Grã-Bretanha, o princípio da “indirect rule”, o que significava que governava através dos chefes e dos sub-chefes locais. A administração destas zonas era baseada na hierarquia existente, estando o poder local nas mãos dos pastores. Gradualmente, a administração indirecta foi substituída por uma administração directa. O primeiro objectivo da administração belga era pôr fim às fomes e à erosão das regiões sobrepovoadas. Este programa previa em especial:

— a imposição de culturas agrícolas numa superfície mínima por agricultor; — a disseminação da cultura da mandioca, reserva natural para os períodos de escassez; — a introdução de novas culturas alimentares como a batata doce, a batata e o amendoim; — a recuperação de grandes extensões de áreas de pastorícia e de pântanos, anteriormente

reservados ao gado; — a abertura do país por meio de uma rede de vias e de estradas e a implantação de centros

comerciais, estimulando a troca de alimentos entre regiões e permitindo uma intervenção rápida no caso de escassez local;

— a plantação obrigatória de sebes e de fossas anti-erosão, o ordenamento de terraplanagens e a plantação obrigatória de arboredo nas regiões já sobrepovoadas. Para além das medidas supracitadas, visando o crescimento das culturas alimentares, uma das medidas que, a longo prazo, teve uma repercussão económica muito importante foi a introdução da cultura do café. Graças a esta cultura, o camponês entrou no circuito monetário. Mais tarde, desenvolveram-se, outras culturas: a quinquina, o píretro e o chá. Ao mesmo tempo, outras transacções começaram a serem monetarizadas.

Nessa época, não existia na mentalidade do camponês a escassez de terras, dado que havia terras reservadas aos pastos, à floresta e ao espaço sub-povoado do Leste do país. A luta anti-erosão e as arborizações foram medidas tomadas numa perspectiva de longo prazo e orientadas para o futuro e não correspondiam à concepção tradicional fundada na experiência do passado. O horizonte temporal é necessariamente limitado para um camponês que tem de lutar diariamente pela sua sobrevivência. Se as medidas relativas à introdução de novas culturas, como o café, a batata-doce e a batata foram um sucesso, as medidas que tentaram estabelecer um equilíbrio estável entre a população e a disponibilidade em terras falharam e, pelo contrário, levaram a um desequilíbrio crescente, na sequência da baixa da mortalidade da população e do próprio gado. O facto de começarem a utilizar campos de pasto e pântanos, a transferência de populações das zonas sobrepovoadas para zonas menos povoadas do Leste do país, as migrações externas para o Shaba (Katanga), o Kivu e o Uganda não podiam absorver os excedentes de população, resultantes da

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explosão demográfica. Do mesmo modo, um “destocking” do gado fosse ele forçado ou fosse natural, pela comercialização do gado, tornava-se difícil.

No que diz respeito às intervenções dos belgas no direito consuetudinário, notemos em primeiro lugar que aqui também há divergências de opinião, tanto sobre a natureza destas medidas como sobre as suas incidências sociais e políticas. Esta questão parece particularmente delicada e controversa, uma vez que se trata de saber em que medida as intervenções belgas alteraram as relações de força entre as elites (tutsi e hutu) e a população. Com efeito, as novas elites têm interesse em ancorarem as suas pretensões de chegada ao poder (e aos votos dos eleitores) na própria história. Na luta pelo poder, estas elites têm interesse em interpretar de modo próprio a história que sublinha as relações de descendência com os nobres de uma época pré-colonial, ainda não manchada pela presença europeia. Há, por conseguinte, acesas discussões entre diversos autores sobre a razão das intervenções da Bélgica na divisão do poder durante a época colonial. É curioso ver que nesta corrida ao poder, poucos líderes negam esta história como sendo ultrapassada e justificam as suas pretensões ao poder com as suas qualidades individuais e com o seu papel pessoal nas instituições modernas.

A administração colonial reforçou, no início, o poder dos chefes, que (excepto na região de Ruhengeri) eram em grande parte tutsi-pastores. Por outro lado, forçados a partilhar o poder com os belgas, estes chefes tutsi opunham-se frequentemente ao poder colonial e ao poder da Igreja católica, que tinha o monopólio dos serviços públicos do ensino e da saúde pública.

Os camponeses hutu foram cristianizados mais tarde, mas mais rapidamente. Esta cristianização acelerada dos camponeses pobres é talvez menos surpreendente do que parece à primeira vista. Em primeiro lugar, o ensino era para os pobres um meio de promoção social. É uma explicação económica, que é certamente válida, mas insuficiente. Há outras considerações que relevam da filosofia e da antropologia cultural. Primeiro, a teologia dos Padres Brancos e Jesuítas, nessa época neo-tomista, sacralizava a fertilidade, noção mítica e fundamental no pensamento africano pré-cristão. Em seguida, a narrativa bíblica da libertação assenta, por vezes, surpreendentemente nos pobres de África. Até que ponto os hutu tinham sido realmente explorados pelos tutsi não é uma questão muito relevante a este respeito. Relevante é o facto de se considerarem inferiorizados relativamente aos tutsi, que eram o seu único ponto de referência para julgarem a sua situação. Além disso, os tutsi não faziam nada para tranquilizar os hutu. Por exemplo, as metáforas por excelência dos tutsi nessa época continuam a ser a vara do pastor e a lança do guerreiro.

Em todo caso é entre os catequistas da Igreja que se encontram os intelectuais Hutue que vão reclamar, em 1959, a supremacia política em nome da democracia. O primeiro presidente, Kaybanda, originário da região do Centro (Gitarama), era um destes catequistas. Graças às intervenções dos belgas, alcançaram a democracia formal.

Uma parte dos tutsi foi massacrada, enquanto um número importante se refugiou no Burundi, no Kivu, no Uganda e na Tanzânia. Tornado independente em 1962, este país permaneceu a “menina dos olhos” caprichosa da cooperação belga até Outubro de 1990. Deve aqui acrescentar-se que certos meios seculares na Bélgica não eram favoráveis a esta relação privilegiada com um país que alguns qualificavam de bastião clerical. Tudo isto é necessário para compreender as reacções políticas “coloridas” de certos políticos menores na avaliação dos acontecimentos, que se desenrolaram desde Outubro de 1990. Nesta data, os descendentes ugandeses dos refugiados de 1959 irromperam no país dos seus antepassados.

Ficam alguns pontos importantes por sublinhar relativos às mudanças no regime fundiário, que podem ter tido repercussões importantes no desenrolar ulterior da situação política. Os belgas tinham abolido o ubuhake, cortando assim o poder dos chefes-pastores. Mas não tinham redistribuído os pastos. Esta redistribuição fez-se durante a revolução e foi apoiada pelo presidente Kaybanda. Depois, e de acordo com a lei, a propriedade fundiária familiar tornava-se inalienável,

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ou seja, as terras não podiam nem ser vendidas nem comprados. Mas o sistema do ubukonde nunca foi abolido e, de acordo com alguns, continuava a subsistir, embora mais particularmente a Norte. Com efeito, o ubukonde fazia parte de um sistema mais vasto de repartição considerado benéfico. O “comunalismo” com o seu poder excessivo dos representantes locais do poder, tão típico no Ruanda, era baseado em parte nas relações familiares, nas “linhagens” e em parte nos restos do sistema informal do ubukonde. O presidente Habyarimana reforçou o comunalismo. As novas elites comerciais são constituídas em parte pelos descendentes destes chefes-agricultores das épocas precedentes e/ou das pessoas que se reviam no papel de tal chefe. 2. Algumas observações preliminares relativas aos acontecimentos de Outubro de 1990 e aos movimentos de opinião pública belga.

Dada a pobreza do país, os conselheiros belgas e franceses, e, em primeiro lugar, os

economistas entre si, sempre disseram aos ruandeses que restringissem a um mínimo possível as despesas militares, o que o Ruanda fez. No caso da invasão tutsi a partir do Burundi, a Bélgica e a França viriam em seu socorro. Os ruandeses acreditaram. Até 1989, a percentagem de despesas militares do Ruanda era uma das mais baixas de África. Por conseguinte, aquando da invasão do Frente Patriótica do Ruanda (o FPR), em Outubro de 1990, o Ruanda dispunha apenas de um exército de quatro a cinco mil homens. Este exército podia ser qualificado mais como uma guarda nacional “alargada” do que como um exército.

Aquando da invasão tutsi proveniente do Uganda, a situação política pareceu confusa e deu lugar a controvérsias na Bélgica. Com efeito, a invasão tutsi não vinha do Burundi, mas sim dum grupo de refugiados ugandeses, vindos em socorro de uma minoria tutsi no Ruanda que se dizia gravemente discriminada e, certamente, era-o em parte. Além disso, o presidente Habyarimana, que estava rodeado de um grupo de pessoas desonestas, não tinha (ou já não tinha) a integridade e o carisma do seu antecessor Kaybanda. Mais grave ainda do que estes roubos, individuais e pontuais, que o presidente ele mesmo estigmatizou em Outubro de 1988 está o facto de toda a burguesia urbana (hutu e tutsi conjuntamente) se ter enriquecido rapidamente nos últimos anos, como se ilustra no gráfico seguinte:

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Extorquiam assim aos camponeses uma parte dos seus rendimentos, o chamado excedente económico. Ora, na sequência da diminuição estrutural dos rendimentos agrícolas desde 1982-83, tinha deixado de haver excedente económico. Além disso, este excedente que as elites urbanas extorquiam deveria ter sido parcialmente repartido com os pobres, de acordo com a linhagem de família, como tradicionalmente o faziam os chefes de famílias camponesas.

Estas formas tradicionais de repartição, típicas no mundo africano (quer nas sociedades bantous, quer nas nilóticas), existiam desde há séculos. Graças a este sistema agrário tradicional, do qual o ubakonde fazia parte, a distribuição dos rendimentos no Ruanda (e no Zaire rural) era (até 1986-87) uma das mais igualitárias do mundo. Deve-se, no entanto, acrescentar que estas formas tradicionais de repartição não eram muito propícias a uma abertura “liberalizante” da sociedade, que todos desejavam. Além disso, no passado, o igualitarismo aldeão pervertia-se frequentemente em igualitarismo destrutivo, chegando-se a cortar as cabeças aos que excediam a estatura média. Tanto os antropólogos africanistas como os historiadores da Europa medieval descreveram este fenómeno. Para os liberais, este comunitarismo campesino era, por conseguinte e sobretudo, percebido como um obstáculo ao desenvolvimento económico. Os liberais tinham, por isso, pouco entusiasmo na defesa dos interesses do campesinato. Além disso, a classe de camponeses, conservadora e católica, deixou de entusiasmar a esquerda como um todo, embora o tivesse feito temporariamente nos anos 60 e 70: os camponeses tinham demonstrado que só eram capazes de revoltas desesperadas sem amanhãs, e não capazes de uma revolução social construtiva.

Para compreender as reacções belgas à questão ruandesa é necessário ainda sublinhar dois pontos importantes: primeiro, a Bélgica sempre tentou abrir vias de comunicação para que no Ruanda se deixasse de ter a sensação de país-enclave. No âmbito desta política, tinha ensaiado o apoio a projectos que excediam o quadro nacional e contribuiriam para a integração do Ruanda em espaços inter-regionais. Estes projectos referiam-se às estradas (a ligação Kampala-Kigali), ao desenvolvimento agrícola e turístico, à implantação inter-regional do ensino universitário e da investigação, à coordenação da política energética (centrais hidro-électricas), etc. O Ruanda sempre se opôs à esta política. Queria a sua fábrica de cimento, a sua fábrica de chapas de metal, o seu fabrico de biscoitos e a sua montagem de rádios, etc. Queria, em geral, uma política virada para dentro, introvertida. De um certa forma, esta reacção proteccionista poder-se-ia justificar pois, até 1982-83, a situação económica e social do país era bem melhor que a dos vizinhos zairenses e ugandeses e o Ruanda não queria correr o risco de ficar à deriva. Mais cedo ou mais tarde, o país deveria integrar-se num mundo económico africano mais largo. Mas, não tinha urgência. Além disso, nem a França, nem a Grã-Bretanha estavam prontas para dar um passo que fosse para uma política europeia comum respeitante a África. Ora, a França era um aliado, com o qual o Ruanda tinha concluído um tratado de cooperação militar em 1975.

Depois, é também necessário sublinhar o facto de que na corrente progressista havia um grupo de jovens que queria uma nova política internacional na qual as normas morais jogariam um papel mais importante. Esta política faria frente à nova ordem económica dos Estados Unidos, à ordem económica evocada pelo presidente �ilo�f e pelo presidente Bush. Na lógica deste pensamento, estes jovens socialistas belgas deviam reexaminar à lupa as relações privilegiadas da Bélgica com as antigas colónias e com os países sob a sua tutela. Queriam que a Bélgica mostrasse mais disponibilidade pelo respeito dos direitos do homem e pela implantação da democracia nos três países que absorvem a maior parte da ajuda belga, nomeadamente o Zaire, o Ruanda e o Burundi.

Esta mudança política estrutural, foi promovida pelo FPR, do Ruanda. A promessa de democracia devia entusiasmar uma grande parte da opinião pública na Bélgica, incluindo as ONG, para quem a preparação da população para a democracia se tinha tornado uma tarefa primordial.

Para os observadores europeus mais prudentes, as dúvidas sobre o FPR dissiparam-se aquando dos massacres de Abril de 1994. A enxada e a faca do mato perderam, a justo título, toda a glória

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quando os camponeses exasperados se serviram destas para perpetrarem massacres hediondos. Os massacres de crianças inocentes pelas milícias hutu dissiparam as dúvidas que ainda poderiam subsistir a respeito do FPR. Após o genocídio, que se assemelhava assim dramaticamente à operação “Endlösung” dos Alemães em 1944 (solução final da questão judaica), o exército rebelde ficou investido de uma missão messiânica.

Esta fase dramática do conflito continua a ser obscura e complexa. Que uma revolta de camponeses possa degenerar em assassinatos selvagens e arbitrários, já se sabia. Que esta brutalidade se pudesse fixar, em tempos de crise, numa etnia determinada, quer judia, quer indiana, quer branca, também já se sabia. Mas os “pogroms” populistas, por mais cruéis que sejam, inflamam-se e apagam-se. No Ruanda, os “pogroms” pareciam um elemento fundamental da lógica de guerra. Pela primeira vez desde a guerra mundial de 1940-45, um exército derrotado num conflito local, tomou como refém uma população inteira: para o mundo externo, com a ameaça de uma execução em massa, expressaram-se tão bem como o adversário. Depois, executou-se esta ameaça na frente das câmaras do mundo inteiro. Tanto a ameaça como a execução da ameaça eram elementos constitutivos da táctica de guerra. Além disso, a mediatização destes massacres na Europa e nos Estados Unidos, por muito respeitosa que seja, transformou esta ameaça em arma de guerra “reproduzível”. O acto pode tornar-se “repetitivo”.

Os economistas não têm explicação para este dramático momento decisivo do conflito no Ruanda, em Abril de 1994. Serão os politólogos e os historiadores a esclarecerem esta questão. Competirá às pessoas neutras e imparciais julgarem a cumplicidade da administração ruandesa e do exército, assim como a sua culpabilidade eventual, por omissão, nas semanas de Abril de 1994. A sua tarefa não será fácil dado que as pessoas do décimo decil, contrariamente às pessoas do povo, em geral, deixam poucos vestígios nas actas das reuniões em que participam.

Alguns politólogos tomaram já posição. Com efeito, de acordo com alguns observadores políticos, este genocídio só se podia ter realizado graças à presença prévia de um fascismo larvar ao nível da chefia de Estado ruandês, neste caso, o Estado hutu. O genocídio, não sendo o resultado de uma revolta de camponeses, deve ter sido o fruto de um certo fascismo africano: de acordo com os politólogos, a sociedade ruandesa seria pelo menos fascizante, se não mesmo fascista. O autor J-P Chrétien chegou mesmo a apelidar os ruandeses como nacional-socialistas tropicais. De acordo com a lógica rígida de uma projecção diacrónica do presente no passado, este fim diabólico não podia ser senão o resultado de um longo processo e estaria imbuído na psicologia social do povo hutu. Esta psicologia social ter-se-ia em seguida reflectido nas estruturas do Estado.

Este é um raciocínio extremo que não é corroborado pela análise da política económica e social do Ruanda no período 1982-93. Não há nada na política económica do governo que dê indícios neste sentido. O Estado do Ruanda qualificava-se de planificador e era, sem dúvida, paternalista. Mas, não há aqui nenhuma semelhança com o regime nacional-socialista do Reich no período dos anos 30.

Será que uma outra atitude por parte da Europa relativamente ao Ruanda teria podido evitar a guerra civil e o massacre que aqui tiveram lugar? É difícil dizê-lo.

O que se pode fazer é tentar esclarecer os factos que contribuíram para o desenrolar da história, tal como ela se passou. A tarefa dos economistas consiste em descrever as tendências económicas no período que precedeu o desenlace, em analisar o que tinham previsto e escrito nos seus relatórios e procurar ver em que medida a leitura judiciosa dos seus relatórios poderia ter prevenido a catástrofe que se produziu.

O gráfico seguinte ilustra as desigualdades de rendimento no Ruanda nos anos críticos da década 1980-90 que precederam a guerra civil.

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Estes dados podem esclarecer certas questões, designadamente sobre o papel do Estado na

sociedade ruandesa, sobre a distribuição dos rendimentos entre classes sociais, sobre a situação alimentar das populações, etc. Fazemos uso das estatísticas oficiais do antigo regime. Há muitas estatísticas. O Ruanda era o país mais assistido da África Central; na Bélgica, pelo menos quatro equipas universitárias faziam regularmente a peregrinação da estação seca. Os zairenses, mais virados para o comércio e para a acção, têm horror às estatísticas e perdeu-se a esperança de os mudar sobre este assunto. Mas o Estado planificador do Ruanda abundava em estatísticas e comportava-se como um europeu de idade avançada condenado com uma qualquer doença mortal, querendo seguir o desenrolar do seu declínio nos monitores da sala dos cuidados intensivos. Contrariamente ao Zaire, no Ruanda os monitores não faltavam. Estes monitores tinham previsto o falecimento iminente do paciente (e/ou a catástrofe muitas vezes repetida) e, cada vez que este se anunciava, os ruandeses tinham escapado à morte por um milagre qualquer, não previsto pelos economistas, como por exemplo a disseminação da batata, a aposta na cultura dos pântanos, a jardinagem na cidade, etc. Acabava-se sempre por acreditar num regresso perpétuo dos milagres; esta ideia inscreve-se admiravelmente tão bem na teologia da esperança, é tão característica da mentalidade do Jovem-Mundo africano. Mas a partir de 1989, o milagre não se reproduziu mais.

Se as estatísticas forem falsas, serão falsas as nossas conclusões. Mas é pouco provável que assim seja, porque um governo africano teria que ser mais do que engenhoso para se manter constante nas suas mentiras perante a procissão de conselheiros estrangeiros que andavam pelos corredores para acompanharem as acções patrocinadas pelos seus respectivos governos. Ora, a burocracia ruandesa era demasiado burocrática para estar à altura de mentir tão sistematicamente sobre as estatísticas disponíveis.

Agora, é possível que o novo regime seja levado a criar novas estatísticas. Como será levado a escrever novas versões da história assim como lendas, quando se envolver na reeducação das massas camponesas.

Neste caso, ter-se-á a escolha entre duas versões estatísticas da realidade e duas versões da história. Ou talvez, como o pretendem certos filósofos gregos, haverá diferentes realidades, realidades que se ajustam às mudanças de ideias.

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3. Algumas conclusões provisórias relativas ao desenvolvimento dos acontecimentos entre 1990 e 1994

Por razões tanto económicas como ecológicas, a situação social dos camponeses no Ruanda tinha-se tornado alarmante desde 1986-87. Por outro lado, a distribuição dos rendimentos, que era uma das mais igualitárias do mundo até 1982-83, deteriorou-se de tal modo rápido que a situação se inverteu em 1990-92, para consternação, aliás, dos observadores belgas (de Antuérpia) e ruandeses quando o descobriram. No passado, o Ruanda tinha sobrevivido graças a uma repartição judiciosa do excedente agrícola e esta repartição fazia-se na base de antigos costumes já ultrapassados. Uma liberalização apressada, introduzida a grande velocidade, abalou definitivamente este sistema agrário de outrora. Deve aqui acrescentar-se que o décimo decil, isto é, os dez por cento dos mais ricos, aproveitou-se desta redistribuição “por cima”. Para a população camponesa do Ruanda esta distribuição dos rendimentos às avessas era o primeiro efeito palpável da aplicação da nova ordem económica de Carter-Bush que a Bélgica tinha agarrado e aplaudido como uma mudança estrutural necessária. Os camponeses saíram empobrecidos com esta operação e não tinham nenhuma perspectiva de melhoria da sua condição.

Há, aliás, séria controvérsia quanto ao ritmo do processo de liberalização. O Ruanda estava de acordo quanto ao princípio, mas não quanto ao escalonamento das medidas a tomar ao longo do tempo: pretendia mais moderação e medidas de protecção temporárias. Mas o FMI e os financiadores queriam uma liberalização rápida.

De qualquer forma, em poucos anos, a distribuição do rendimento tornou-se mais desigual que a do Zaire, que, contudo, tem a vantagem de se encontrar no meio de um espaço florestal imenso. Ficou tão desigual como a de certos países da América Latina que sofrem, por causas destas desigualdades, duma constante instabilidade política. A queda do preço do café em 1986-87 nada mais fez do que acelerar este processo. A liberalização dos preços favorecia conjuntamente os comerciantes, hutu e tutsi, mas prejudicava os camponeses que tinham que comprar os produtos importados a preços mais elevados.

Nestas circunstâncias tão precárias, as perturbações políticas tinham-se tornado um perigo real. Se os motins rebentassem, o seu desenrolar era imprevisível. Ninguém podia prever até onde é que levariam, mas os riscos de um revolta dos camponeses eram certamente maiores que a possibilidade de uma revolução social. Contrariamente às outras metrópoles africanas, uma cidade como Kigali nem sequer dispunha de uma mão-de-obra pré-proletária capaz de se pôr à “frente dos bois” para forçar mudanças fundamentais nas estruturas políticas.

Refugiados provenientes do Uganda invadiram o país e ocuparam uma parte do território em Outubro de 1990. A partir deste momento, a maior parte das despesas do Estado foi dedicada à compra de armas e ao pagamento das tropas. O número de soldados aumentou: ascendia a 4-5 mil em 1989 e passou para mais de 30 mil em 1994.

No âmbito do Programa de Ajustamento Estrutural, PAS, para aliviar um pouco a situação dos camponeses, o Governo propôs reequilibrar o preço pago aos produtores de café, preço este que, em termos reais, tinha sido fortemente devorado pela inflação. Mas o FMI opôs-se a esta medida contrária à sua política de liberalização. A desvalorização do franco ruandês relativamente ao dólar, medida imposta pelo FMI em 1991, foi a machadada final nos produtores de café. Entre 1986 e 1991, os preços do café caíram a pique de tal modo que, em 1991, o café, em termos reais, valia um terço do que valia em 1986.

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Para manter os mesmos rendimentos, o Ruanda deveria exportar três vezes mais café em 1991

do que em 1986. Duas razões explicam a descida do preço do café: a primeira, foi o fim da “coffee coalition”, em 1987, que arrastou consigo uma descida dos preços em 30% e a segunda foi a política de desvalorização imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI, que resultou no “paradoxo de composição”, ou, no que é equivalente, na descida dos preços pelas desvalorizações competitivas de vários pequenos países que em simultâneo desvalorizaram a suas moedas para procurarem exportar mais, mas dos mesmos produtos. Embora cada pequeno país não tenha influência na formação dos preços internacionais, vários, em conjunto e em simultâneo, podem tê-la e, sendo assim, a consequência foi a descida dos preços dos bens por si exportados. Como afirma um relatório da OUA “a dependência face aos mercados dos produtos de base controlados pelas grandes potências fizeram-se bem sentir no Ruanda quando os preços do café, do estanho e do chá caíram em flecha. Impotentes, os ruandeses viram, com estas descidas, os seus recursos serem transformados em dívidas avultosas. Os grandes negociantes americanos de café fizeram pressão para se abandonar o sistema de quotas estabelecido pelo Acordo Internacional do Café sem se preocuparem com as suas consequências nos países produtores de café mais pobres.” Com o colapso deste Acordo, os preços caíram em flecha conforme mostra o quadro seguinte:

Anos Preços Internacionais Nova Iorque/Uganda Coffee

1981 100 1982 107,9 1983 120,6 1984 134,5 1985 117,8 1986 144,1 1987 99,4 1988 92,3 1989 73,5 1990 53,4 1991 48,4 1992 38,5

Fontes: International Financial Yearbook; Coffee WB, Banco Mundial e FMI, 1992.

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Os preços atingiram no mercado de Nova Iorque, em 1992, apenas 38,5% dos de 1980! Em seguida, deu-se o “paradoxo de composição”, ou seja, os países produtores de café confrontados com desequilíbrios externos fizeram todos o mesmo, desvalorizaram as suas moedas e, com isso, estimularam as suas exportações crescendo a oferta e o resultado foi uma descida maior do preço mundial do café. No caso do Ruanda, a resposta a esta descida, a este efeito de ausência de “coffee coalition” foi o acréscimo considerável da quantidade produzida, sem que com isso tenham aumentado as suas receitas. No quadro das políticas impostas pelo FMI, o franco ruandês foi sujeito, por pressão do FMI, a duas desvalorizações. A primeira, em Novembro de 1990, em 40% e a segunda de 15 %, em Junho de 1992. Por exemplo, em 1992, o Ruanda aumentou as suas exportações em volume em 30% e não viu, com isso, aumentar as suas receitas em divisas, o chamado efeito de composição. Para se ter uma ideia da importância destes dois efeitos, retenhamos este facto: globalmente, as receitas do Governo ruandês provenientes das exportações de café caíram de 144 milhões de dólares em 1985 para 30 milhões em 1993!

Um dos efeitos pretendidos com a desvalorização consistia na alteração dos preços relativos internos, a favor dos produtores de bens exportáveis, mas, no caso do Ruanda, a desvalorização não provocou a subida interna dos preços do café. O seu efeito imediato foi a subida dos preços dos bens importados. O culminar destas duas evoluções traduziu-se numa degradação dos termos de troca campo/cidade, o que constituiu um outro travão à reorientação para produtos de exportação. Simultaneamente, a degradação dos termos de troca (a subida dos preços dos bens manufacturados contra o dos produtos agrícolas) implicou uma crise de liquidez, sobretudo nos camponeses mais pobres. Estes foram forçados a vender o seu café antes da colheita aos comerciantes e aos grandes proprietários, a 50% do preço oficial. As políticas preconizadas pelas instituições financeiras internacionais tiveram, neste caso preciso, efeitos perversos que levaram a uma degradação da distribuição do rendimento em prejuízo dos produtores de bens exportáveis. Já depois da forte descida do preço internacional do café, a desvalorização posterior do franco ruandês deveria levar a uma subida do preço interno do café na mesma proporção da subida do valor da moeda estrangeira em que o preço do café era estabelecido. Foi de facto o contrário do que se deu, pelas razões anteriormente apontadas, e, mais ainda, porque o FMI exigia — por razões de reequilíbrio das contas públicas — a eliminação de subsídios ao produtor. Como assinala a OUA “o governo, contra a sua vontade, foi obrigado a concluir um acordo com o Banco Mundial e o FMI, como contrapartida de um crédito condicionado à aplicação de políticas duras e restritas da ortodoxia económica ocidental da época. A premissa era que o Ruanda precisava de um tratamento de choque económico… Com a desvalorização, os preços dispararam… Os programas sociais do governo sofreram enormes cortes enquanto a população tinha que enfrentar a subida dos preços da Educação, dos cuidados de saúde e até do preço da água. Os salários dos funcionários foram congelados.… O Ruanda, na óptica do FMI, não se teria, afinal, comportado como um mau aluno1, pois, como sublinha esta instituição num Staff Report, “several important financial and strutural policies were, and the initiation of reform of the financial adopted in the context of the medium term strutural adjustment program, including a substantial exchange rate adjustment to restore external competiveness, liberalisation of imported and of pricing policies, tariff, taxes reform, and the initiation of the financial sector and of public enterprises”.

Durante muito tempo, na década de 80, o governo assegurou a aquisição do café a um preço de garantia de 125 RUF e isto significou que, até 1987, o preço pago aos produtores era inferior ao preço recebido pelo Estado na venda do café nos mercados mundiais. Desta forma, o Estado obtinha fortes receitas com a comercialização do café. Porém, o preço mundial do café começou a descer

1 Mas isto lamentavelmente faz-nos lembrar o que aconteceu na Argentina que passou, repentinamente, do elogio de um aluno modelo a país em incumprimento das suas responsabilidades externas.

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fortemente como se ilustrou no quadro anterior e a situação inverteu-se: o Estado agora começou a comprar o café a um preço de garantia superior ao do mercado mundial e consequentemente pagava ao produtor a diferença entre o preço de garantia, adicionado dos outros custos de campanha, e o preço recebido nos mercados mundiais, através dum “fundo de igualização”. Como assinala Marysse: “quando os preços caíam fortemente nos mercados mundiais eram os produtores de café os beneficiários do sistema de preços de garantia. Porém, a ortodoxia monetária [Banco Mundial e FMI] exigia que fossem eliminadas ‘estas distorções’. Era necessário responsabilizar os produtores, isto é, que adaptassem as suas produções às condições do mercado mundial. Esta insistência para eliminar ‘as distorções’ revelou-se nos anos 90-92 em contradição com os objectivos do programa de ajustamento estrutural. O efeito benéfico de uma desvalorização é, sabe-se, a alteração dos preços relativos internos a favor do sector produtivo. Os produtores de café deveriam, pois, receber mais francos ruandeses por quilo de café, depois da desvalorização. Na prática, aconteceu o contrário: os produtores ruandeses viram baixar os seus preços porque o governo foi obrigado — devido à baixa dos preços mundiais e à forte pressão do FMI e do Banco Mundial a quererem diminuir o desequilíbrio orçamental2 — a reduzir o seu apoio aos produtores de café. Na prática, a prioridade dada ao equilíbrio orçamental foi feita à custa do desequilíbrio externo e à custa também dos camponeses exportadores de café que aquelas instituições queriam estimular…”. A cegueira das instituições de Bretton Woods na aplicação dos princípios da ortodoxia em matéria de política económica, e dado que não se conseguiram alcançar os objectivos do Plano de Ajustamento Estrutural (PAS) fixados em 1990, levou a um corte destas instituições de Bretton Woods com o Ruanda, acompanhado da consequente suspensão do PAS. Vejamos a explicação do FMI para este facto: “current expenditures exceeded the program target by 13,6%, wich was mainly accounted for by the higher military outlays. Moreover, mainly as a result of un unprogrammed increase in the coffee producer price, the budgetary transfer to the coffee sector was not eliminated as entended”. Uma das razões da ruptura foi, então, o facto de o Governo do Ruanda ter pretendido continuar a apoiar os produtores de café. Se se queria ter um ajustamento estrutural com sucesso, continua Marysse, “não se deveria, parece-nos, penalizar milhares de pequenos camponeses com uma queda, particularmente grave, dos preços internacionais mas, pelo contrário, dever-se-iam apoiar, durante um certo período, os pequenos camponeses com a concessão de subsídios na produção que seriam disponibilizados pelos financiadores internacionais”, incluindo, porque não, as instituições de Bretton Woods.

A forte desvalorização levou à descida em termos reais, em moeda local, dos produtos exportáveis e os produtores de café puseram-se a arrancar os pés do cafezeiro. As exportações em vez de aumentarem desceram. Há aqui uma grande incoerência entre os instrumentos utilizados pelo FMI. O Governo ruandês nada pôde fazer contra as medidas ditadas pelo FMI. A incompetência dos “médicos”3 e o fraco contrapeso do Governo agravaram assim a situação. O acordo com o FMI e o Banco Mundial foi assinado em meados de Setembro de 1990 e o programa estrutural iniciou-se imediatamente a seguir. Entretanto, o país foi invadido e começou uma guerra civil, mas em nenhum momento alguém se questionou sobre as repercussões sociais e políticas do tratamento do choque

2 Na óptica do FMI e do Banco Mundial, a diminuição do défice orçamental, que se esperava poder reduzir para 2% em 1993, constituía a pedra angular da obtenção do equilíbrio interno. 3 A evolução dos rendimentos do café pode-nos dar uma ideia da política de compressão dos rendimentos dos pequenos produtores-camponeses imposta pelo FMI. Com efeito, já depois da forte descida do preço internacional do café, mas agora com as políticas impostas pelo FMI, o preço do café em moeda nacional, apesar da desvalorização, reduziu-se em 20% na campanha de 90-91, por razões orçamentais, o mesmo é dizer pela redução do apoio do Estado aos pequenos produtores, imposta pelo FMI. Dois anos depois, o preço do café sobe de 100 para 110 RUF, quando seria necessário uma subida para 150 RUF só para compensar o efeito da inflação! Compreende-se a destruição dos cafezeiros!

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económico4 para um país que tinha entrado em guerra civil. Em vez disso, a equipa do Banco Mundial decidiu excluir todas as variáveis não económicas dos seus cálculos e simulações. No quadro do programa de ajustamento estrutural e para aliviar um pouco a tensão sobre os camponeses, o governo propôs-se reequilibrar o preço pago aos produtores de café, uma vez que este, além do mais, também tinha sido “depreciado” pela inflação5. Mas o FMI opôs-se a esta medida, contrária à sua política de liberalização. Foi assim, diz-nos a OUA, numa época em que o Ruanda conhecia uma forte instabilidade política, que a comunidade internacional destabilizou ainda mais o país.

Desde 1994, as previsões de consumo de calorias com base nos recursos agrícolas próprios no restante território do país eram de 1485 calorias por dia. Se, anteriormente, o Ruanda era já um campo de refugiados, que pouco faziam, agora estava reduzido ao racionamento de um campo de concentração. Vários autores descreveram “os efeitos sociais de semelhantes condições na Etiópia, na China, no Camboja, na Bósnia Herzegovina, na Holanda (o inferno da fome de 1944-45), na Alemanha, na Rússia, etc...” Estes autores assinalaram particularmente a degradação, medonha do estado de moralidade nestas condições de carência alimentar e de fome.

Uma comunidade confrontada, de repente, com tal escassez e colocada perante escolhas impossíveis ou se obstina a manter as normas morais de sua vida anterior, continuando a partilhar igualitariamente as calorias disponíveis e, neste caso, ela morre na sua totalidade. Uma paróquia de protestantes holandeses conservadores, inteiramente deslocada num campo de concentração alemão durante a guerra, fez esta escolha: assumiu a morte por recusar transgredir as normas seculares de sua conduta moral ou, em alternativa, ter-se-iam comprometido numa luta sem quartel para sobreviver e descer irrevogavelmente os degraus de um inferno moral dantesco. De qualquer modo, como demonstrou Van Den Berghe, uma situação torna-se potencialmente criminosa quando o racionamento desce abaixo de 1500 calorias por dia e o frio se junta à escassez. Lembremos que em Kigali, não havia frio no início de 1994, mas se a média de calorias disponíveis era de 1485 Kcal por dia e a distribuição desigual, os pobres estavam certamente num estado de miséria extrema. A Bélgica sabia-o. Deveria ter sabido. Estavam lá 110 cooperantes-AGCD (pagos pelo orçamento estatal da cooperação), 142 cooperantes-ONG (que dispõem de um fundo de 173 milhões de francos belgas da cooperação) e 23 militares (pagos pelo orçamento da Defesa). A administração ruandesa, embora abalada pelas lutas políticas, continuava ainda a fazer relatórios sobre o estado da nutrição, tentava medir a incidência da guerra no abastecimento do país e continuava a emitir sinais de aflição. Os relatórios do ministério da Agricultura estavam na mesa para serem lidos. Aquando da explosão política, os exércitos europeus estavam presentes, assistindo aos massacres sem qualquer acção, sem nada fazerem, à espera de ordens do Conselho de Segurança, mas este não esteve em condições de utilizar forças militares antes do ano 2005. Até 2005, os soldados belgas não intervieram porque eram belgas, os franceses porque eram franceses, etc. Os Alemães, por último, perderam o gosto do combate. Os militares zairenses bem quereriam intervir, mas não controlavam as suas tropas, por falta de meios e de autoridade. E os soldados de Mandela não se queriam envolver nas histórias ruandesas.

Desde 1989 que os economistas passaram a depender dos pareceres dos politólogos para julgarem da oportunidade da ajuda aos países em desenvolvimento. É por conseguinte aos politólogos que cabe prever medidas transitórias para o período que vai desde 1989 até ao ano de 2005, no domínio das intervenções militares. Como devem prever uma certa flexibilidade na aplicação dos direitos do homem, mais particularmente em países muito pobres como o Ruanda, não há actualmente normas para julgar da oportunidade política de uma intervenção na África negra, 4 Parafraseando um jesuíta que afirmou que no "Ruanda, Cristo não estava lá", aqui podemos dizer que os Imperadores, esses, pelo menos, estavam lá. 5 Como sublinha Jef Maton "a dimensão social da estratégia de ajustamento estrutural [do governo do Ruanda] era mais consciente que a do FMI".

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excepto algumas regras muito fluidas, mal definidas e sujeitas as interpretações subjectivas. Como o caso do Ruanda demonstrou, isto pode conduzir a situações penosas. O mesmo equívoco reina no domínio dos direitos do homem: há direitos do homem de diferentes tipos e em domínios muito diversos (os direitos civis e jurídicos, os direitos no domínio do trabalho, da nutrição, da educação, da saúde, etc.; os direitos da criança, da mulher, do deficiente, dos povos indígenas, etc.). Todos estes direitos que alguns, por ignorância ou facilidade, classificam sob o denominador comum de “universais” devem ser especificados para 150 diferentes países, os quais se encontram em diferentes fases de desenvolvimento. Não será uma tarefa fácil estabelecer normas objectivas e mensuráveis para decidir qual país deve preencher tal e tal condição em tal momento do seu desenvolvimento. Por último, o caso do Ruanda demonstrou que a ajuda estrutural e a ajuda de emergência estão ligadas. Como o estão também a ajuda humanitária e a ajuda económica. Separaram-se todas as ajudas, sujeitando a sua concessão a condições muito variadas e confiando a concepção, a execução e o controlo a organismos muito diversos. Assim, a ajuda estrutural permaneceu no âmbito do Estado, enquanto a ajuda humanitária foi confiada à uma multidão de ONG. Esta diversidade pluralista é, sem dúvida, louvável, mas não facilita a coordenação no terreno no caso de crise. Além disso, as razões históricas que conduziram à repartição de funções entre o Estado e as ONG não deixam de ser talvez válidas. Esta repartição de tarefas era baseada, em primeiro lugar, na ideia que as ONG podiam operar em países onde o Estado, por razões políticas, não podia intervir; seguidamente, tinham-se especializado em certos domínios, de modo que a sua intervenção era mais eficaz que a dos Estados. No Ruanda, a partir de 1990, as ONG tinham pontos de vista tão politizados como os Estados: os seus pontos de vista eram talvez diferentes dos Estados, mas estavam presentes e inspiraram o seu comportamento. É uma atitude completamente legítima de quem dirige cada ONG, mas altera os termos da sua missão: se a Cruz Vermelha tomasse partido num conflito político, o que nunca fará, esta deixaria de ser aceitável como Cruz Vermelha.

E, depois, no Ruanda as ONG cometeram erros de avaliação nos domínios específicos das suas competências. A operação Goma foi feita com extrema urgência. A urgência não impede a preparação. A ajuda ao Kivu era sem dúvida urgente, mas era previsível. Neste caso, devia-se prever estruturas de acolhimento preliminares. A necessidade destas estruturas de acolhimento preliminares “no olho do furacão (o triângulo Zaire-Ruanda-Burundi) tinha, anteriormente, sido longamente discutida.” Seguidamente, as ONG teriam podido prever igualmente tanto a direcção como a dimensão do êxodo Kigali-Goma. A catástrofe no Kivu era previsível desde Abril de 1994 (aquando da evacuação da Bélgica do Ruanda-Leste) e inelutável desde o início de Julho. Se tudo isto é verdadeiro, a questão que se põe é de saber se as ONG francesas e certas ONG belgas agiram correctamente esperando a Leste do país a vitória incondicional e total do FPR, em vez de prepararem pontos de apoio logísticos para uma multidão que podia apenas fugir para o Leste, uma vez que as outras estradas estavam barradas. Se em Kigali certas ONG manifestaram uma enorme ignorância em geografia humana, em Goma demonstraram uma ignorância em geografia física. 4. Algumas conclusões políticas.

Será que o desenrolar da história económica e social entre 1965-1990 poderia ter sido diferente? Não é certo.

Só uma política adequada de controlo dos nascimentos a partir dos anos 60, em combinação com movimentos migratórios para outras regiões, teria podido evitar a catástrofe. Ora, o Ruanda, desde que ficou sob a tutela da Bélgica em 1918, ficou sem as suas vias migratórias na Região dos Grandes Lagos. Esta região faz, de resto, parte de um conjunto mais vasto, que se estende desde a nascente do Nilo ao Burundi e até ao desaguar do Nilo na região mediterrânica. Os antigos poderes de Estado da Europa, que disputaram este território aos árabes na época colonial, nada mais podiam

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fazer de útil neste espaço, excepto se fossem desenvolvidas novas formas de cooperação à escala europeia e se esta Europa se sentasse à mesa com os países árabes e com os países da África negra. Era a Europa que deveria tomar a iniciativa destas acções. Os acontecimentos do Ruanda demonstraram que os instrumentos de intervenção e de cooperação dos quais dispõe são inadequados e insuficientes. Tanto os países anglófonos como os países de língua francesa reagiram à maneira do século passado. Os outros países europeus estavam totalmente ausentes. Os povos africanos sabem tudo isto, tanto aqueles que os cientistas europeus classificaram como bantús, como aqueles que se encontram, por azar e sem mesmo o saberem, na classe dos hamitas, dos nilóticos ou dos �ilo-hamitas!

No que diz respeito à ONU, teria ainda necessidade de pelo menos mais 10 anos antes de poder intervir eficazmente em conflitos locais como o Ruanda e antes que o Secretário-Geral da ONU venha a encontrar no Conselho de Segurança a maioria requerida para agir no momento pretendido (ou seja, antes da situação se tornar insolúvel) e com meios militares e logísticos adequados. Muitos dramas, à moda do Ruanda, se passariam antes desta data.

Esperando a constituição de uma força de intervenção internacional, as Nações Unidas ocupar-se-iam dos criminosos de guerra. É uma acção igualmente justificada e necessária no Ruanda. No entanto, põe-se a questão de saber se a Bélgica como Estado devia envolver-se ou não neste problema. A esse respeito, há alguns detalhes embaraçantes. Em primeiro lugar, há a questão da eficácia e da oportunidade. Os Europeus podem garantir a imparcialidade deste tribunal? Como fazer a selecção dos 30.000 suspeitos da função pública? Como evitar julgamentos arbitrários? Qualquer tutsi que pretenda uma loja ou uma casa pode acusar o proprietário legal de ser Interamhamwe6. O suspeito não sobreviverá. Será que os Estados europeus se iriam deixar arrastar por este tipo de acções punitivas e arbitrárias entre cidadãos ruandeses? Depois, há uma questão moral. Os Europeus estavam presentes com duas divisões de homens armados nas barricadas de Kigali, quando jovens assassinos, ébrios, matavam mulheres e crianças de cor negra. Estes soldados europeus tudo deixaram fazer ante os seus olhos sem se mexerem, porque sabiam que tinham mudado de capacetes antes de embarcarem em Marselha e Zaventem. E porque as mulheres e as crianças em causa eram de cor negra. Agora, estes mesmos europeus retornariam com o papel de juízes. Viriam para punir a cobardia de um povo colaboracionista, composto por camponeses analfabetos e subdesenvolvidos. Os ruandeses teriam alguma dificuldade em compreender a lógica destes gestos sucessivos.

Certos problemas económicos seriam imediatos e viriam a ter incidências políticas directas e indirectas. Sublinhemos alguns deles. A situação do ponto de vista da produção alimentar não se alterou desde a mudança de regime. A população diminuiu, mas permanece um excedente de população, que o Ruanda só muito dificilmente pode comportar. A esse respeito, o novo regime do Ruanda será obrigado a escolher entre “a peste e a cólera”.

Se deixasse regressar todos os refugiados, teria graves dificuldades de abastecimento e de distribuição dos alimentos. A distribuição dos rendimentos tornou-se desigual no Ruanda, tal como foi sempre assim no Burundi. O governo encontrar-se-ia, por conseguinte, muito rapidamente emparedado entre a burguesia tutsi das cidades e os camponeses hutu. Se o governo limitasse as entradas, seriam os hutu mais duros que permaneceriam nos campos do Zaire e da Tanzânia. O governo de Kigali seria fortemente incomodado por estes “Palestinianos” da zona Goma-Bukavu, a partir do momento em que estes exercessem a sua pressão. Ora, com os problemas alimentares que iriam aparecer, esta pressão pareceria inevitável. Porque não haveria somente o problema dos alimentos, haveria também o problema do café.

Dada a escassez de produtos alimentares na região dos Grandes Lagos, o preço do café nunca mais alcançará o preço daqueles. Ora, é necessário sublinhar que a Bélgica introduziu (no período da

6 Os Interamhamwe consistiam nas milícias do regime hutu do ditador Habyarimana (N. do T.).

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tutela) o café contra a vontade da população e que o regime anterior teve que instaurar toda a espécie de medidas de persuasão para manter esta cultura como fonte de rendimentos. Além disso, o Governo precedente pagava um preço muito elevado aos produtores, subsídios estes que o FMI obrigou a retirar, em nome dos seus equilíbrios, como se sublinhou anteriormente. Aliás, o programa de ajustamento estrutural (PAS) previa a supressão do sistema de estabilização dos preços do produtor que o Ruanda tinha adoptado para garantir o rendimento dos pequenos agricultores e que lhes era favorável, em caso de queda dos preços do café abaixo do preço de garantia. Acrescente-se a este respeito que, se a produção de café não se reactiva, a ajuda externa será a única fonte de financiamento do novo governo.

Ora, estes financiadores europeus deram o seu apoio aos rebeldes na convicção de que estes eram mais democratas que os governantes anteriores. Perante a mesma opinião pública, teriam dificuldades em apoiar um governo que não respeitasse escrupulosamente os direitos do homem, considerados “universais”. Com efeito, a exigência de um melhor respeito dos direitos do homem e as regras democráticas estiveram na origem da inversão da política em relação a Habyarimana.

O problema das antigas FAR não está resolvido. Além disso, há agora o problema do novo exército FPR, que deve ser desmobilizado. Esta desmobilização será uma das primeiras condições que o FMI e o Banco Mundial porão para a concessão da ajuda externa. Foi o que fizeram junto de Museveni após a sua vitória em 1986. O presidente Museveni não terá ele, pura e simplesmente, exportado o problema da desmobilização das unidades militares tutsi do seu exército rebelde do Uganda para o Ruanda? Mesmo se não era isto que ele queria, foi este o resultado final da operação.

Tendo em conta estas considerações económicas, retornemos ao problema da repressão, cujo objectivo era restabelecer a ordem e a paz. Esta operação implicava a internalização de certas regras de ordem moral e podemo-nos interrogar se um regime militar era o sistema mais adequado para interiorizar estes constrangimentos morais. O campesinato pobre, católico, conservador e analfabeto, que se sentia dominado por um exército vitorioso, ouviria ele um governo que apregoaria a moral? Ouviria ele um governo que deve fixar uma política de preços e de rendimentos numa situação económica muito difícil, numa situação social muito tensa onde a distribuição dos rendimentos e dos activos é muito desigual, onde, além disso, esta desigualdade é co-determinada pela pertença étnica?

Era improvável que o governo tivesse êxito nesta tarefa de reeducação sem o concurso a outras forças vivas do país. Neste processo de internalização, a religião, por exemplo, desempenharia um papel mais determinante que o aparelho repressivo do Estado. De resto, a Igreja era provavelmente a única entidade que poderia barrar o caminho a um onirismo político-religioso. O sectarismo e o fundamentalismo estão em marcha, por toda a parte, na África Central na sequência da situação económica e social desesperada. Não é pois improvável que a Igreja católica romana fosse a única força que pudesse interiorizar os constrangimentos, reconciliar os partidos e, ao mesmo tempo, barrar a via aos sectarismos políticos religiosos.

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— Chossudovsky, Michel e Galan, Peter, L’usage de la dette extérieur du Rwanda, la responsabilité des bailleurs de fonds

— Galan, Peter, « Rwanda, L’economie du génocide », entrevista à RFI — Human Rights Watch, « Le genocide rwandais : comment a-t-il été preparé ». Nota da

Human Rights Watch, 2006. — Marysse, Stefaan, Analyse economique du Rwanda, Passé, Présent et Futur, Setembro

1994 — Marysse, S., De Herdt, T. e Ndayambaje, E. « Rwanda, Appauvrissement et ajustement

structurel », Cahiers Africains, n.º 12, 1994 — Maton, Jef, Developpement Economique et Social au Rwanda, entre 1980 e 1993. Le

dixième décile en face de l’apocalypse, Gent, 1994 — OUA, Rapport de l’Organisation de l’Unité Africaine (OUA) sur le génocide du Rwanda

2000, 2004 — Sellstrom, Tor e Wohlgemuth, Leonnart, “The International Response to Conflit and

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— Storey, Andy, Strutural Adjustment, State Power and Genocide: the World Bank and Rwanda, Sussex, 2001

— Toussaint, Eric, « Le Rwanda : les créanciers du génocide », CADTM, 2004.

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III. Das linhas de sombra e de silêncio da ONU: “O que o Mundo

teria podido fazer para evitar o genocídio”

10.1. Se há pior coisa que o genocídio enquanto tal, é saber-se que este poderia ter sido evitado. A verdade pura e simples é que o genocídio não era inevitável, e que teria sido relativamente fácil impedi-lo antes de 6 de Abril de 1994 e, mesmo depois, seria possível atenuar consideravelmente os seus efeitos destrutivos, uma vez que já tinha começado. Para citar um perito, “não se pode imaginar genocídio mais fácil de evitar”. 10.2. Localmente, o número de conspiradores poderia parecer, talvez, impressionante, mas eram pouco numerosos, modestamente armados e muito dependentes do apoio externo. Nalgumas ocasiões em que o mundo protestou contra as violações dos direitos do homem, os abusos, em geral, cessaram, ainda que fosse apenas temporariamente. Este facto foi amplamente documentado. Em contrapartida, sempre que o mundo fechava os olhos depois de um insulto, a impressão de impunidade dos extremistas hutu aparecia reforçada. Dado que nunca ninguém foi punido nem pelos massacres nem pelas violações dos direitos do homem e, como o Governo Habyarimana continuava a beneficiar da ajuda estrangeira e ninguém exigia que se pusesse cobro à animosidade crescente contra os tutsie, os radicais hutu tinham então razão em acreditar que quase tudo lhes poderia ser permitido. 10.3. Os líderes da conspiração queriam ficar com todos os privilégios do poder. Levavam, pois, muito a sério a mais pequena ameaça de suspensão da ajuda externa, dos empréstimos e da venda de armas. Estas ameaças foram evocadas com sucesso quando se tratou de forçar Habyarimana a assinar os Acordos de Arusha. Atitudes destas só raramente se faziam quando se tratava de infracções aos direitos do homem ou de perseguições étnicas e, mesmo quando foram feitas, as ameaças nunca foram seguidas de factos que reflectissem a realidade, segundo a qual os direitos do homem tinham um lugar prioritário nos programas de numerosos governos estrangeiros. 10.4. Além disso, alguns estrangeiros confiaram cegamente no multipartidarismo como remédio para todos os problemas do Ruanda. Confundiam-se as atrocidades contra os tutsi com o recrudescimento de violência que decorre da guerra civil. Segundo estes, bastaria acabar com a guerra civil e pôr em marcha os Acordos de Arusha para que a violência étnica terminasse por si mesma. Para se atingir o objectivo da paz, era necessário continuar-se a estar empenhado em defendê-la. A cessação da ajuda externa, por conseguinte, era vista como uma medida contraproducente. 10.5. Pouca gente se incomodou em retirar do malogro completo dos acordos de Arusha a lição de que nenhum acordo seria possível sem a prévia eliminação do Hutu Power. Tomando constantemente posição, de Abril a Julho, de que era mais urgente parar a guerra civil do que pôr cobro ao genocídio, o Conselho de Segurança e o Secretariado das Nações Unidas fizeram exactamente o mesmo erro de análise. Quando o embaixador nigeriano se queixou de que se dava muita importância às negociações do cessar-fogo e que não se procurava parar os massacres, a sua posição foi praticamente ignorada. O inquérito Carlsson nomeado pelo Secretário-Geral Kofi Annan, em 1999, para examinar o papel da ONU no genocídio critica toda a família das Nações Unidas por ter cometido este “custoso erro de julgamento”. Porém, este ponto de vista parece-nos uma interpretação muito generosa do falhanço da ONU.

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10.6. Trata-se de um exemplo flagrante da diplomacia de rotina por parte da comunidade internacional. De acordo com os próprios termos das conclusões do Departamento das Operações de Manutenção de Paz da ONU, “uma incompreensão fundamental da natureza do conflito... contribuiu para a formação de falsas suposições políticas e de avaliações militares igualmente falsas”. Os membros do Conselho de Segurança ignoravam alegremente e ao mesmo tempo quer as realidades discretas da situação quer os argumentos urgentes das ONG quando gritavam a verdade a quem os queria ouvir. O reflexo foi, por seu lado, procurar obter um cessar-fogo e iniciar as negociações, dois resultados susceptíveis de estarem em perfeita correspondência com os objectivos e a estratégia dos assassinos. A exterminação dos tutsi teria continuado enquanto os exércitos teriam feito as tréguas e os negociadores discutiam. Na realidade, tudo o que poderia retardar a marcha do FPR para a vitória militar dava vantagem às forças hutu e é, no fim de contas, a vitória do FPR que pôs termo ao genocídio e salvou os tutsi ainda vivos, em Julho. Pensamos que foi uma felicidade para o Ruanda que a trégua militar — a única iniciativa continuamente procurada pela comunidade internacional — nunca tenha sido concluída. 10.7. Teria sido suficiente ter em conta a informação disponível para formular uma resposta conveniente. Pode pensar-se em admitir que os meios de comunicação social de massa não tenham percebido inicialmente a amplitude do genocídio, mas não foi esta a situação das instâncias de decisão à escala internacional. Os testemunhos nunca faltaram, provenientes de gentes do Ruanda ou expatriados, da mediação do Comité Internacional da Cruz Vermelha, da Human Rights Watch, do Committee for Refugees dos Estados Unidos ou outros. Durante três meses, semana após semana, foram enviados relatórios directamente de Ruanda aos governos e aos organismos internacionais a darem conta da amplitude dos massacres e indicavam claramente que também não se tratava de efusões de sangue com carácter tribal, mas sim de uma obra de líderes políticos e militares partidários da linha dura. Ao mesmo tempo, estes relatórios indicavam que havia inúmeras pessoas que ainda podiam ser salvas e, às vezes, indicavam mesmo o lugar exacto onde se escondiam e os meios necessários a utilizar para os salvarem. Contudo, ninguém fez nada para os salvar. As grandes potências aceitaram e votaram mesmo a proposta no Conselho de Segurança das Nações Unidas de reduzir, em vez de aumentar, a sua presença militar. 10.8. Parece-nos evidente que teria sido lógico e indispensável reagir com uma importante força militar internacional para dissuadir os assassinos. Devemos assinalar que partilhamos a convicção de Roméo Dallaire, comandante das forças da MINUAR “os massacres teriam podido ser evitados se a comunidade internacional tivesse tido a vontade de aceitar os seus custos...” Vimo-lo, esta vontade era basicamente frouxa antes do 6 de Abril e desapareceu completamente no início do genocídio. Praticamente todas as autoridades que conhecemos acreditam que uma força mais numerosa, melhor equipada e munida de um mandato firme teria podido desempenhar um papel crítico, dissuadindo, provavelmente, toda a conspiração ou, pelo menos, obrigando os conspiradores a modificarem ou a interromperem os seus planos e, por essa via, a reduzirem consideravelmente o número de mortos. Parece certo que uma intervenção conveniente das Nações Unidas em qualquer momento depois de se ter iniciado o genocídio teria tido um grande efeito para acabar com os massacres. 10.9. Dallaire sempre insistiu no facto de que com um efectivo de 5.000 homens e com um mandato apropriado, a MINUAR teria possibilidades de impedir a maior parte dos assassinatos. Em 1998, várias instituições americanas decidiram testar a validade desta afirmação. 10.10. A Carnegie Commission on Preventing Deadly Conflict, l’Institute for the Study of Diplomacy, da Universidade Georgetown, em Washington D.C., e o exército americano

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concretizaram um projecto conjunto para analisarem o efeito que uma força internacional poderia ter tido. Treze altos graduados militares estudaram esta matéria e a partir das suas conclusões e de outros trabalhos foi redigido um relatório para a Carnegie Commission pelo coronel do exército americano Scott Feil. A sua conclusão foi categórica:”uma força moderna de 5.000 homens... enviados para o Ruanda em qualquer altura entre o dia 7 e o dia 21 Abril de 1994 teria modificado de forma importante o resultado do conflito; e que tropas convenientemente equipadas e comandadas e enviadas para o terreno na altura própria teriam sido um forte obstáculo à violência na capital e arredores, teriam impedido que esta atingisse os campos e teriam criado as condições que poderiam levar ao fim da guerra civil entre as FPR e as FGR.” 10.11. Sabemos, é certo, que se trata de um exercício puramente teórico e que é fácil mostrar sabedoria depois dos factos terem acontecido. Mas, pelo contrário, não temos nenhuma razão para pôr em dúvida a objectividade desta análise nem a dos participantes que não estariam sequer interessados em tirarem esta conclusão. Para além do mais, mesmo os analistas que recentemente insistiram sobre as complicações logísticas que poderiam impedir a mobilização rápida de um força bem equipada não negam que milhares de tutsi, “talvez até aos 125.000”, poderiam ter sido salvos em qualquer fase durante o mês do genocídio. De todos os pontos de vista, este relatório americano é uma crítica humilhante ao governo dos Estados Unidos que tanto usou a sua influência para que nunca fosse enviada nenhuma força em condições para a situação em causa. 10.12. Em vez de incentivar o envio de tropas em número suficiente, os assassinatos dos Capacetes Azuis belgas e a retirada, a seguir, do contingente belga tiveram o efeito contrário. Exactamente duas semanas depois do início do genocídio — na sequência de pressões feitas, pela Inglaterra e pela Bélgica, para uma retirada total, das declarações de Madeleine Albright, a favor de uma força mínima, e da recusa insistente dos Estados Unidos em admitir publicamente que se estava na presença de um genocídio de grande amplitude, de acordo com a definição da Convenção — o Conselho de Segurança tomou a decisão surpreendente de reduzir a força já insuficiente da MINUAR a um efectivo irrisório de 270 homens. 10.13. Hoje, tudo isto parece inacreditável. A comunidade internacional decidiu, de facto, abandonar os tutsi do Ruanda no exacto momento em que estes estavam a ser exterminados. Mas isto não é tudo. Os responsáveis do Secretariado das Nações Unidas deram ao general Dallaire a ordem de não conduzir as suas tropas a um papel activo na protecção dos cidadãos do Ruanda. Dallaire, o que só lhe ficou muito bem, procurou fazer com que tivesse quase o dobro das tropas autorizadas e a MINUAR pôde, apesar de tudo, salvar entre 20.000 a 25.000 vidas no decorrer do genocídio. 10.14. De uma certa forma, o facto de ter sido possível salvar milhares de vidas com 500 soldados torna as decisões dos belgas e das Nações Unidas ainda mais deploráveis. As provas de que dispomos revelam a autoridade considerável exercida após 6 de Abril por um número tão pequeno de Capacetes Azuis com uma bandeira das Nações Unidas. A regra geral era que “os ruandeses estava em segurança enquanto estivessem agrupados sob a protecção das Nações Unidas. Quando as forças das Nações Unidas abandonaram os locais, começaram os massacres. Esta regra foi demonstrada da maneira mais trágica na Escola Técnica Oficial (ETO) de Kigali, onde uma centena de soldados belgas se esforçava por manter à distância a horda de assassinos. As tropas das Nações Unidas saíram por uma porta, os genocidas entraram por outra. Em poucas horas, os 2.000 tutsi que se tinham refugiado na ETO para se porem a salvo, sob a protecção das Nações Unidas, foram massacrados.

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10.15. Com excepção da morte deliberada de dez Capacetes Azuis belgas, a experiência mostrou que algumas tropas das Nações Unidas podiam, sem estarem elas próprias a correr riscos importantes, assegurar a defesa dos que estavam sob a sua protecção. Esta “força de presença” não devia ser subestimada. No entanto, quando a França enviou 500 soldados para evacuar os cidadãos franceses e os membros do Akazu a 8 e 9 de Abril, as tropas das Nações Unidas do general Dallaire receberam imediatamente a ordem — do Secretariado em Nova Iorque e sob fortes pressões dos países ocidentais — de colaborar com os franceses para evacuar os cidadãos estrangeiros em vez proteger os ruandeses ameaçados. Isto significa uma utilização altamente perversa dos magros recursos das Nações Unidas. É certo que expatriados inocentes eram ameaçados por uma conflagração na qual não desempenharam nenhum papel. Mas a mesma coisa era também verdadeira para os tutsi do Ruanda, definitivamente abandonados pelos Capacetes Azuis. 10.16. Igualmente surpreendentes foram as directivas recebidas por Dallaire. Estas parecem ter chamado tão pouco a atenção que não foram sequer assinaladas pelo relatório do inquérito Carlsson. Parece-nos, no entanto, de uma importância capital. “Deve fazer tudo o que lhe for possível para não comprometer a sua imparcialidade e não agir para além do seu mandato”, dizia o telegrama enviado a 9 de Abril por Kofi Annan e Iqbal Riza, “mas podem exercer o vosso poder discricionário se tal for necessário para a evacuação de residentes estrangeiros. Isto não deve, e insistimos sobre este ponto, estender-se à participação em combates eventuais, salvo se forem em legítima defesa”. Esta posição selectiva parece-nos pura e simplesmente vergonhosa. Dallaire nunca recebeu instruções semelhantes para assegurar a protecção de civis ruandeses inocentes. Nunca recebeu indicação explícita a indicar que os Capacetes Azuis deviam proteger os civis ruandeses e fazendo-o, se fossem atacados, poderiam bater-se para se defenderem. Também nunca lhe foi dito para exercer o seu poder discricionário e agir para além do seu mandato, quando se tratasse de ruandeses. Antes pelo contrário, cada vez que se levantou a questão, recebeu a indicação expressa de que não devia, sob nenhum pretexto, ir para além do seu mandato estritamente delimitado e aprovado pelo Conselho de Segurança. Como é que não devemos concluir que foi dado maior valor às vidas dos cidadãos estrangeiros do que às vidas dos africanos. 10.17. O ensinamento a tirar da traição na ETO e de outros acontecimentos é que o potencial pleno do MINUAR continuou a não ser nem explorado nem usado, e que os ruandeses massacrados poderiam, por conseguinte, ser em muito menor número. Se foi esta a lição tirada por cada um de nós na comunidade internacional, isto não é evidente ao nível das Nações Unidas. Durante as seis semanas que se seguiram, enquanto a carnificina continuava, as Nações Unidas não sabiam mais onde pôr a cabeça para pensarem e organizarem uma qualquer intervenção na tragédia que se desenrolava. Os americanos, sob a direcção de Madeleine Albright, desempenharam um papel chave no bloqueio de medidas o mais eficazes possíveis das Nações Unidas. A 17 de Maio, o Conselho de Segurança autorizou finalmente aumentar para 5.500 o efectivo da MINUAR II. Mas a distância parece grande entre a sala do Conselho de Segurança e o mundo exterior. Uma vez a decisão tomada de alargar o mandato do MINUAR, foram necessárias mais sete semanas no Pentágono para, simplesmente, negociar um contrato de entrega de veículos de transporte de pessoal na frente do Ruanda; é claro que o atraso se devia, provavelmente, às dificuldades nas modalidades relativas “à manutenção e às peças de substituição”. Quando o genocídio terminou, a meados de Julho, com a vitória final do FPR, nem um só soldado adicional das Nações Unidas ainda tinha chegado a Kigali. Fonte : excertos de OUA, Rapport sur le génocide au Rwanda, Julho de 2000.

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2ª PARTE

Longe do Congo,

sobre o Congo

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I. Dois períodos determinantes na história do Congo

a. A “Primeira Guerra Mundial” de África

Quase três anos depois da queda do marechal Mobutu e da chegada ao poder em Kinshasa de

Laurent Désiré Kabila, a República Democrático do Congo (RDC, ex-Zaire), é devastada por um série de conflitos sem precedentes que já fez mais de 100.000 vítimas. As rivalidades étnicas, as mudanças de alianças, as confrontações entre potentados locais, e os apetites mineiros transformaram um dos países mais ricos do continente num sangrento tabuleiro de xadrez.

A República Democrática do Congo (RDC, ex-Zaire) e os nove países que a rodeiam cobrem um território que é talvez o mais rico do planeta: há diamantes, petróleo, urânio, ouro, muita água, terras férteis e uma maravilhosa vida selvagem. É também hoje o maior campo de batalha de toda a história africana, sujeita a um conflito ao qual já se deu o nome de “primeira guerra mundial” de África.

Seis países estrangeiros lutam por múltiplas razões sobre o solo da RDC — ou seja 35.000 soldado pelo menos, homens e crianças. Alguns destes exércitos estão aliados a facções rebeldes com a intenção de destituírem o presidente auto-proclamado Laurent-Désiré Kabila. Outros, pelo motivo contrário, protegem-no. Aliás, nove exércitos rebeldes lutam no Congo para destituírem os governos dos respectivos países vizinhos. Quase todos eles pilham as riquezas deste país, o Congo. Estes conflitos traduzem-se numa série de guerras que têm relações entre elas e que se alimentam das lutas étnicas, dos apetites de poder e das riquezas destas regiões, e, por último, sem se esquecer do papel dos chefes que muito pouco sentido têm das suas responsabilidades em relação às populações locais. Nascida do genocídio perpetrado em 1994, no Ruanda, pelos extremistas hutu contra a minoria tutsi, esta luta durou dezoito meses sem que uma conclusão se impusesse; os rebeldes e os exércitos de ocupação ocuparam metade do vasto território da Congo-Kinshasa, mas a guerra permanece em grande parte num impasse. Nem Kabila nem os rebeldes beneficiam de um sólido apoio da população. Os exércitos estrangeiros dos dois campos hesitaram em envolverem os seus homens numa guerra total que podia dar azo a hostilidades de maior amplitude, talvez até fora da RDC. Hoje, neste caos, as Nações Unidas encaram o seu envolvimento com um número curiosamente preciso de 5.537 homens a fim de controlarem um cessar-fogo assinado em Julho de 1999 em Lusaka (Zâmbia) mas que tem sido violado impunemente por todos. Em Janeiro, sete chefes de Estado africanos encontraram-se na sede da ONU, em Nova Iorque, para uma sessão especial do Conselho de Segurança convocada pelo representante americano, Richard Holbrooke, com a intenção de fazer respeitar este cessar-fogo. Limitaram-se a reafirmar os objectivos do acordo e de prosseguirem negociações ao nível mínimo e não ofereceram, assim, nada mais do que uma fraca esperança de progresso.

Se as preocupações são claras, as soluções são ambíguas. A acreditarmos nos peritos, a África nunca, até agora, tinha sido sujeita a tão grande desgaste pela guerra desde a época colonial. Dezenas de milhares de pessoas perderam a vida. Centenas de milhares de outras foram deslocadas dos seus lares. Os elefantes e os gorilas foram caçados pela sua carne. As economias, já tão doentes como as populações subalimentadas, agonizam.

Inúmeros especialistas afirmam que as forças que as Nações Unidas tencionam enviar são extremamente reduzidas, se se considerar a superfície e a geografia do Congo-Kinshasa, um país em decomposição, abrangendo em grande parte uma selva espessa, com comunicações difíceis, e cujas pistas fantasmas foram outrora estradas. Para alguns dos países que financiarão esta força de paz —

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os Estados Unidos em primeiro lugar —, o número de soldados continuará a ser demasiadamente ponderado, e por tanto mais tempo quanto as nações e as facções em guerra na RDC não mostrarem que seriamente querem a paz. As forças de paz, explicam, de facto, não estarão absolutamente em segurança.

É um conflito com proporções tais que estas não têm precedentes em África. Nas fronteiras orientais, dois países que ajudaram Laurent-Désiré Kabila a chegar ao poder apenas há três anos, o Ruanda e o Uganda, lutam actualmente, e de forma intensa, para o derrubarem. Estão aliados a três grupos rebeldes congoleses, que têm além disso dissensões entre si. No lado oposto, estão Angola, o Zimbabué e a Namíbia que salvaram Kabila de uma derrota quase certa quando a guerra estoirou em Agosto de 1998. Kabila também se aliou às milícias hutu, constituídas por dezenas de milhares de homens e responsáveis pelo genocídio de 1994 contra a minoria tutsi no Ruanda, bem como aos guerreiros indígenas, os Mayi-Mayi, que crêem que a água possui poderes mágicos que os protegem das balas.

As motivações dos adversários são tão confusas como o são os conflitos. Para os que combatem Kabila, a questão fundamental é a rivalidade devastadora entre hutu e tutsi que agita o Ruanda e o Burundi desde há anos. O governo — tutsi — do Ruanda interveio no Zaire para conter as milícias hutu, o Uganda para apoiar o Ruanda e controlar os seus próprios rebeldes no país. O Burundi, também enviou tropas para combater os seus próprios rebeldes hutu. No sul, Angola tem necessidade de Kabila para lutar contra os rebeldes da União Nacional para a Independência Total da Angola (UNITA), cujas bases militares se situam no Sul do RDC. A Namíbia está lá para ajudar Angola. O presidente do Zimbabué, Robert Mugabe, veio em ajuda de Laurent-Désiré Kabila por razões de ambição pessoal, a fim de se tornar uma potência com peso na região, e porque os seus generais enriquecem com a exploração da madeira, do ouro, dos diamantes e dos metais da Congo-Kinshasa. A participação destas nações no conflito propagou, por sua vez, ondas de choque, devido aos refugiados que afluem das rebeliões oportunistas que operam na Zâmbia, no Burundi, na Tanzânia e no Sudão. O que complica ainda a situação é a rivalidade no plano da autoridade regional, entre Mugabe e o presidente ugandês, Yoweri Museveni, bem como a atracção que exercem as riquezas do Congo para todos eles.

É praticamente impossível a alguém do exterior dar conta dos combates na África central, porque estes se desenrolam, frequentemente, no mais profundo duma selva tão densa que os especialistas em logística das Nações Unidas debateram a utilidade, para as forças de paz, de transportarem binóculos.

É uma guerra ao mesmo tempo moderna e primitiva, efectuada com helicópteros de combate e bombardeamentos aéreos, mas mais frequentemente ainda por grupos de homens armados de fuzis e de catanas que se deslocam numa floresta que se tem tornado também tão impenetrável como na época em que o rei Leopold II da Bélgica enviava, em 1878, Henry Morton Stanley para a explorar.

Ninguém conhece o número de vítimas ao certo: as estimativas avançam geralmente com o número de 100.000 mortos, combatentes, refugiados e civis, desde o início das hostilidades em Agosto de 1998. Mas imagina-se facilmente as devastações.

No entanto, alguns três anos depois da destituição do marechal Mobutu por Laurent Désiré Kabila — que levantou grandes esperanças na população local, entre os países vizinhos do Congo e entre as potências estrangeiras —, a vida continua a permanecer aqui tão difícil que se desespera. Certos peritos afirmam que a guerra na RDC é de facto tripla: a primeira opõe Kabila aos rebeldes congoleses que procuram derrubá-lo; a segunda, efectuada nas províncias do Leste, é étnica e essencialmente dirigida contra os tutsi congoleses; a terceira — que é realmente uma imbricação de conflitos — implica todos os países da região: de um lado, o Ruanda e o Uganda do lado dos rebeldes, e, por outro, o Zimbabué, a Angola e a Namíbia do lado de Kabila. Vejamos um resumo destes conflitos país a país.

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CONGO-KINSHASA: as alianças suspeitas de Kabila

Uma vez chegado ao poder, em Maio de 1997, Laurent-Désiré Kabila reuniu-se, em Kinshasa, com numerosos conselheiros vindos do Ruanda. A sua presença irritou os congoleses e Kabila rompeu com os homens do Ruanda. Estes decidiram então entrar, outra vez, em guerra em Agosto de 1998, mas agora contra Kabila. Os rebeldes ocupam actualmente cerca de metade do território da Congo-Kinshasa, ou seja, a zona Leste e Nordeste. Isto quer dizer que, no conjunto, têm de facto as cidades principais, as pistas de aterragem e as estradas; mas permanecem muito impopulares. Kabila, ao apropriar-se do poder, herdou um exército de 70.000 homens. A estes acrescentaram-se depois vários milhares de soldados provenientes da província meridional do Katanga (ex-Shaba). O governo, além disso, lançou uma grande campanha de recrutamento. Se o exército de Kabila faz alguns progressos desde o ano passado, as suas tropas continuam a ser mal treinadas e mal pagas. Muitos dos seus soldados são apenas crianças. Em numerosas regiões, oficialmente sob o seu controlo, são os exércitos de Angola e do Zimbabué, e não os do governo de Kinshasa que, na verdade, detêm o poder. Apesar dos diplomatas ocidentais reconhecerem, em geral, que o Ruanda e o Uganda invadiram a RDC, não há quase nenhum a apoiar publicamente o governo de Kabila.

Este chegou ao poder e com ele houve o que se poderia chamar a primeira invasão do Zaire pelo Ruanda e pelo Uganda em 1997 pois, após esta guerra, permitiu aos seus aliados tutsi do Ruanda procurarem — e às vezes massacrarem — no seu solo hutu responsáveis pelo genocídio de 1994 contra os tutsi no Ruanda. Em seguida, o Governo de Kabila, que tinha prometido reformas, uma abertura política e eleições, tornou-se um regime repressivo que tolerou muito pouco (ou mesmo nada) a oposição política, encarcerou jornalistas e não respeitou os mais elementares direitos do homem. Por último, para permanecer no poder, Kabila contraiu alianças suspeitas, em especial com as milícias hutu ruandesas refugiadas no Congo-Kinshasa. Em Julho de 1999, Kabila assinou os acordos de Lusaka apelando a um cessar-fogo e a negociações de paz, mas a sua boa fé foi posta em dúvida. Contudo, é forçado cada vez mais a negociar: entre os seus aliados, Angola reduziu a sua participação na guerra, e os esforços realizados pelo Zimbabué revelaram-se cada vez mais dispendiosos para o governo do presidente Mugabe.

Os rebeldes

Perto de metade do território congolês é ocupado por três facções rebeldes. Salvo algumas excepções, os rebeldes controlam todas as regiões do Norte e do Leste do país, a linha de fronteira com a República Centro Africana, com o Sudão, com o Uganda, com o Ruanda e o Burundi, bem como a maior parte do lago Tanganyika. Apesar do acordo de paz assinado no Verão passado, houve combates intensos em várias regiões — na ponta Noroeste do país em redor de Gemena, e no Sul, do outro lado do rio Congo, no Sudoeste de Kisangani, nas províncias do Nord-Kivu e no Sul-Kivu, no extremo Leste do país. Mbuji Mayi, a grande cidade mineira do diamante, é controlada pelo governo mas ameaçada a Norte e a Leste pelos rebeldes.

Desde o fim de 1999 que os bandos rebeldes tentaram agir de forma concertada, embora com um sucesso limitado. Estes consistem essencialmente: (a) no Movimento para a Libertação do Congo (MLC), dirigido por Jean-Pierre Bemba, um fabricante de telefones celulares, filho de um homem de negócios congolês influente. Bemba é apoiado pelo Uganda, cujos soldados ocupam todos os territórios controlados por ele. Este grupo contaria aproximadamente com cerca de 10.000 combatentes; (b) no Rassemblement congolais pour la démocratie (RCD)-Goma, ramo essencial duma facção rebelde que se cindiu em duas. Com base militar em Goma, é dirigido por um médico, Emile Ilunga, e representa uma força que se avalia entre 10.000 e 15.000 homens. Os seus chefes são, em grande número, oficiais congoleses rebeldes, frequentemente tutsi. Esta facção é apoiada

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pelo Ruanda que conta com vários milhares de homens armados na RDC; (c) no Rassemblement congolais pour la démocratie-Mouvement de libération (RCD-ML), dirigido por Ernest Wamba dia Wamba7, um professor da Universidade que foi encarcerado pelo marechal Mobutu e destituído da presidência do movimento principal, o RCD, no Verão passado. Os seus efectivos reúnem um pouco menos de 3.500 homens. As tropas ugandeses ocupam o essencial do território que este movimento reivindica. A presença de tropas às vezes qualificadas de “agentes não estatais” complica ainda mais a situação. São na sua maior parte aliadas das forças de Kabila. Estas são as seguintes : (a) as milícias hutu, que perpetraram em grande parte os massacres de tutsi em 1994 no Ruanda, antes de se refugiarem no Congo-Kinshasa. O Ruanda e o Uganda afirmam que Kabila e o Zimbabué asseguraram o seu treino, parte efectuado no próprio Zimbabué. Estes homens seriam vários milhares na frente, à volta das minas de diamantes de Mbuji Mayi. São igualmente activos nos dois Kivus, e atravessam quando querem a fronteira do Ruanda. Muitas milícias hutu passaram igualmente para o Burundi, estabelecendo relações com outros rebeldes hutu em luta contra o governo — tutsi — do país. O Ruanda declarou que permaneceria na RDC enquanto não se assegurar que as milícias hutu estão sob controlo. A estimativa do número destes milicianos é muito variável: o Ruanda dá números que vão de 5.000 a 25.000; (b) os guerreiros Mayi-Mayi que são grupos de guerreiros indígenas, de fidelidades variáveis, que operam no Leste do Congo e nos dois Kivus. A maior parte deles está ao lado de Kabila, ao lado das milícias hutu. Os guerreiros Mayi-Mayi acreditam que a água os protege das balas e alguns vão mesmo para o combate com rolhas de borracha utilizadas nas banheiras.

RUANDA: os rebeldes tutsi contra Kabila

Os problemas que o Ruanda enfrenta estão de muitos pontos de vista no centro da guerra na República Democrática do Congo. Se a segurança do Ruanda pudesse estar assegurada, consideram os diplomatas, haveria pelo menos uma possibilidade de resolver este conflito. O problema emergiu em 1994, quando centenas de milhares de hutu fugiram para o que era então o Zaire, fugindo às vinganças após o massacre, feito pelos extremistas hutu, de pelo menos 500.000 tutsi no Ruanda.

Estes extremistas, amigos do regime de Mobutu, por sua vez atacaram o Ruanda a partir do Zaire. Em 1996, o novo governo — tutsi — do Ruanda e o seu aliado e vizinho, o Uganda, decidiram pôr termo a estes ataques dos hutu e por isso apoiaram Kabila. Este, uma vez chegado ao poder, criou as suas distâncias em relação ao Ruanda, que o acusou de se ter aliado aos combatentes hutu, como antes dele o tinha já feito o marechal Mobutu. Assim, em Agosto de 1998, o Ruanda e o Uganda aliaram-se, de novo, por detrás de um exército rebelde, Le Rassemblement Congolais pour la Democratie (RCD) com o objectivo de fazerem outra rebelião. O Ruanda teria assim envolvido neste objectivo perto de dez mil homens.

UGANDA: as ambições de Museveni

O Uganda enviou, diz-se, entre 8.000 e 10.000 homens para a RDC, e alguns foram colocados a 1.200 quilómetros da fronteira ugandesa, em Basankusu. O Uganda apoia dois grupos rebeldes, o

7 Parecem-nos merecedoras de relevo as afirmações de Ernest Di Wamba, em Kampala: "aceitei participar na rebelião para lutar contra a ditadura de Kabila, mas a rebelião tornou-se uma ditadura, por sua vez, mais perigosa que aquela que queria derrubar". Numa outra passagem diz "a pilhagem é o destino deste país. Literalmente, nasceu para ser pilhado. "Relembrando Leopoldo II diz que este "só tinha como finalidade, ao criar este Estado em 1878, exportar a sua riqueza para a Bélgica. Mas em seguida e para nossa infelicidade tivemos direito a um ladrão interno que inventou o conceito de regime cleptómano. E agora isto generalizou-se: toda a gente se põe alegremente a roubar os congoleses que nunca tiraram proveito das riquezas da sua terra".

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Mouvement pour la libération du Congo (MLC), no Noroeste do país, e a facção dissidente do Rassemblement congolais pour la démocratie (RCD-ML), dirigido por Ernest Wamba dia Wamba. O ponto litigioso está, de acordo com os rumores, no facto de os soldados ugandeses aplicarem o máximo da sua energia a aproveitarem-se das riquezas do RDC, uma vez que eles pilham os seus diamantes, o seu ouro, a sua madeira e o seu marfim. Apesar desta presa, a guerra, que esgotou a economia ugandesa, é cada vez mais impopular no país. Como o Ruanda, o Uganda apoiou as duas rebeliões de 1996 e 1998, afirmando que devia proteger a sua fronteira face aos rebeldes do Leste congolês. O Uganda anunciou igualmente colocar-se ao lado do Ruanda, aliado antigo, a fim de impedir um novo genocídio. Outro factor explica o compromisso do Uganda na guerra: a ambição que tem Museveni em ser considerado como um grande líder no continente africano. O governo ugandês é confrontado com duas importantes facções rebeldes. A primeira, as Forces démocratiques alliées (FDA), combate a partir de bases situadas no leste da RDC. A segunda, o Armée de résistance du Seigneur (ARS), é apoiada pelo Sudão e ataca pelo Norte. O Uganda, por seu lado, apoiou o Armée populaire de libération du Soudan (APLS).

BURUNDI: o afluxo dos refugiados

O Burundi também assumiu ter soldados na RDC. Pretende não ser aliado de nenhum dos campos, mas sim só lutar contra os rebeldes hutu. Este país conhece as mesmas divisões étnicas que o Ruanda entre hutu e tutsi, e está numa situação de guerra civil desde 1983. As hostilidades foram marcadas por uma vertiginosa escalada nestes últimos meses, e o governo do Burundi deslocou 300.000 pessoas — pobres camponeses hutu na sua maior parte — para “campos de reagrupamento” situados nas colinas que cercam a capital, Bujumbura. O governo perdeu em parte o controlo do Sudeste do país, onde os combates empurram para a Tanzânia vizinha alguns 1.000 refugiados por dia.

SUDÃO: o aliado de Kabila

O Sudão teria, por várias vezes, no ano passado, ajudado Laurent-Désiré Kabila, fornecendo-lhe aviões para bombardear as cidades das zonas rebeldes do Norte do Congo. Cartum nega os factos, mas Kabila está manifestamente com boas relações com o Governo sudanês, de acordo com o princípio que nos diz que o inimigo do meu inimigo — neste caso o Uganda — meu amigo é. Se bem que o Uganda e o Sudão se tenham posto de acordo no fim do ano passado de modo a cessarem as hostilidades, o Governo ugandês apoia o exército popular de libertação do Sudão (APLS), que se opõe ao Governo islamista do Sudão desde há dezasseis anos. Os combates, a doença e a fome que o conflito provoca teriam já custado ao Sudão mais de dois milhões de vidas humanas desde 1983.

ANGOLA: as ofensivas da UNITA

Após a queda do marechal Mobutu em 1997, Angola, dirigida pelo presidente José Eduardo dos Santos, enviou tropas para o Congo-Kinshasa, em grande parte por razões de ordem estratégica que lhe são próprias: atacar neste país as bases da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), movimento insurrecto angolano dirigido por Jonas Savimbi e apoiado desde há dezenas de anos pelo regime Mobutu. A UNITA teria cerca de 35.000 combatentes, contra os 90.000 do governo angolano. Este último, desde há seis meses, lançou a sua mais bem sucedida ofensiva numa guerra civil que se iniciou com a independência face a Portugal, em 1975. O governo já gastou quase 900 milhões de dólares de rendimentos oriundos do petróleo em novos equipamentos de combate e desalojou os insurrectos de quase todos os grandes centros populacionais. As perdas estratégicas da UNITA estão estreitamente ligadas ao facto de deixarem de ter o Congo-Kinshasa

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como aliado. Peritos em financiarem a guerra com a venda dos diamantes angolanos, os rebeldes deixaram de dispor da fileira dos diamantes no mercado internacional e da fileira de aprovisionamentos militares. O acesso da UNITA ao combustível e a peças de substituição e de manutenção de equipamentos militares foi consideravelmente restringido.

NAMÍBIA: o apoio armado a Kinshasa

A Namíbia tomou parte nos combates na RDC há perto de um ano e meio e autorizou em Dezembro passado os angolanos a combaterem a partir do seu solo. A Namíbia, que frequentemente acusou a UNITA de ajudar a revolta dos rebeldes namibianos, considerou que o governo angolano estava finalmente em condições de esmagar a UNITA, teria cerca de 2.000 soldados no Congo, ou seja entre um terço e metade do seu exército. De acordo com os peritos militares, a Namíbia estava convencida que entraria no conflito devido ao Zimbabué. Os presidentes dos dois países, Sam Nujoma e Robert Mugabe, são muito amigos e apoiaram-se mutuamente desde a época em que o governo de apartheid na África do Sul se aplicava a jugular os seus movimentos de liberação. No ano passado, a Namíbia, o Zimbabué, Angola e a República Democrática do Congo assinaram oficialmente um pacto de defesa mútua.

ZIMBABWE: um envolvimento impopular

O governo de Robert Mugabe enviou, para apoiar Laurent-Désiré Kabila, entre 7.000 a 11.000 homens para a RDC, de acordo com fontes de informação que divergem nestes valores. A sua intervenção é devida, em parte, pelo desejo que Mugabe tem de representar uma força importante no Sul da África e também pela sua rivalidade com os líderes do Uganda e o Ruanda. O Zimbabué aproveitou-se do seu acesso às minas de diamante sob o controlo de Kabila. Mas o compromisso militar no Congo-Kinshasa é extremamente impopular no Zimbabué. O custo total do seu envolvimento foi dissimulado aos financiadores internacionais, a acreditar num banqueiro do Zimbabué, e este envolvimento é, do ponto de visa da população, responsável pela crise económica do país. De facto, o Fundo Monetário Internacional (FMI) suspendeu a sua ajuda ao Zimbabué no ano passado devido à suspeita de que Mugabe teria enganado o FMI quanto ao custo do seu apoio a Kabila. Esta suspensão da ajuda, designadamente, tornou difícil no Zimbabué o pagamento da sua factura em combustível, confrontando-o com uma inflação de 60%.

A ZÂMBIA: contra o exército angolano

Desde há muito tempo que a Zâmbia tem procurado ser uma ilha de estabilidade no meio dos remoinhos da África central. O seu presidente, Frederick Chiluba, no poder desde 1991, agiu como mediador nos conflitos que devastaram a região, desde as guerras de independência dos anos 70 até às conflagrações de hoje em Angola e na RDC. Tratados de paz foram, assim, assinados nestes dois países, ainda que esta paz tenha sido abalada pela recusa dos combatentes em deporem as armas.

Qualquer que tenha sido a dimensão política dos seus dois primeiros líderes, a Zâmbia tem permanentemente sofrido das guerras que se faziam à sua volta. O seu potencial — turístico, agrícola e mineiro — foi muito pouco desenvolvido. Nos anos 70, Kenneth Kaunda apoiava os movimentos de libertação de Moçambique, de Angola, da Namíbia e da antiga Rodésia. Como represálias, os governos de minoria branca de então da África do Sul fecharam as vias comerciais da Zâmbia e atacaram os combatentes nacionalistas com base militar no país. Ao longo dos anos, 200.000 refugiados — entre os 160.000 provenientes da Angola — afluíram a este país. Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), 20.000 passaram pela Zâmbia

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durante as últimas semanas, devido à amplitude da guerra em Angola. A Zâmbia enviou tropas para a fronteira a fim de impedir o exército angolano de entrar atrás dos rebeldes da UNITA em fuga. A facilidade em obterem-se armas em Angola incentivou o seu comércio bem como uma vaga de violências. Fonte: “Une ‘guerre mondiale’ africaine”, Le Monde, 6 Abril de 2000, a partir de uma edição dos jornais New York Times e L’International Herald Tribune.

b. Análise da recente situação política no Congo: o período de transição O pano de fundo histórico

Quando o movimento Alliance des Forces Democrátiques pour la Libération du Congo (AFDL) de Laurent Kabila tomou Kinshasa em Maio de 1997 preencheu o vazio político que três décadas de governo Mobutu tinham entretanto criado. O Estado depredador de Mobutu tinha começado a deteriorar-se paralelamente à recessão económica que atingiu o Congo nos anos 70 e que se foi agravando cada vez mais ao longo do tempo. O poder do ditador assentava no facto de a sua presidência ser o receptáculo da riqueza produzida pela nação, enquanto um sistema patrimonial de redistribuição permitia comprar a lealdade das elites políticas, militares e comerciais do regime. Finalmente, quando a recessão económica se agravou, provocando com ela o desmoronamento da economia formal, o cimento que mantinha o sistema seguro começou a esboroar-se. Com o orçamento do Estado sucessivamente a diminuir deixou de ser possível às instituições nacionais terem a capacidade de preencher as suas funções principais e, embora o governo e os seus serviços públicos formalmente tenham permanecido em funções, estas funções foram retomadas por actores privados como as igrejas, as ONG ou ainda pelos senhores de guerra e pelas elites politicas e comerciais.

O monopólio do poder inicialmente nas mãos de Kabila não durou muito tempo. O seu pedido formal feito ao Ruanda e ao Uganda de se retirarem do Congo desencadeou, em Agosto de 1998, um conflito que se ia tornar a "Primeira Guerra Mundial de África". Uma série de relatórios da ONU puseram em evidência o papel central que os recursos naturais abundantes da RDC desempenharam na perpetuação do conflito. Durante a guerra, o governo de Laurent Kabila, apoiado por Angola, pela Namíbia, pelo Zimbabué e pelo Chade, ocupou perto de metade do território nacional (ou seja, as províncias de Bandundu, o Baixo Congo, uma parte do Kasaï Ocidental e Oriental, o Equador e o Katanga). Entre os seus aliados estrangeiros, foi principalmente o Zimbabué que mais explorou os recursos naturais do Congo através de concessões mineiras no Katanga e no Kasaï.

O Mouvement de Libération do Congo (MLC) de Jean-Pierre Bemba, apoiado pelo Uganda, dominava uma parte do Equador e da Província Oriental, onde controlava a produção do ouro, dos diamantes e da madeira exótica. O movimento Le Rassemblement Congolais pour la Démocratie-GOMA (RCD-G) de Azarias Ruberwa, apoiado pelo Ruanda e pelo Burundi, controlava as províncias do Sul-Kivu, de Maniema e partes do Kasaï, do Nord-Kivu, da Província Oriental e do Katanga. O movimento (RCD-G) explorava e vendia diamantes, ouro, cobalto, madeira exótica e cassiterite. O movimento Le Rassemblement Congolais pour la Démocratie - Mouvemenmt de Libération Nationale (RCD-ML) de Mbusa Nyamwisi controlava uma parte do Norte Kivu e da Província Oriental e obtinha os seus fundos a partir da extracção de ouro e de coltan. O movimento

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Rassemblement Congolais pour la Démocratie-Nationale (RCD-N) de Lumbala, com o apoio do Uganda, comercializava diamantes e ouro a partir da sua base na Província Oriental8.

Sob a pressão da comunidade internacional todos os países e os grupos de beligerantes internos participantes no conflito assinaram os acordos de paz de Lusaka na Zâmbia, entre 10 de Julho de 1999 e 31 Agosto de 1999. Pelos acordos de Lusaka terminariam as hostilidades e criava-se uma força de manutenção da paz, da ONU (a MONUC), e pretendia-se o desarmamento das milícias estrangeiras sempre activas no território congolês e a abertura do "Diálogo Inter-Congolês" com o objectivo de se criar um governo transitório. Contudo, os termos dos acordos de Lusaka não foram respeitados e novos acordos de paz foram assinados com o Ruanda e com o Uganda, respectivamente em Julho e Setembro de 2002. Em 16 de Janeiro de 2001, Laurent Kabila foi assassinado e o seu filho Joseph Kabila assumiu a presidência da RDC. Joseph Kabila reabriu o Diálogo Inter-Congolês entretanto suspenso e, a partir de Fevereiro de 2002, desenrolaram-se negociações em Sun City, na África do Sul. Os negociadores chegaram a um acordo final assinado por todas as partes, em Abril de 2003. O governo transitório

O acordo de Abril de 2003 avalizou e rectificou o Acordo global relativo à transição na República Democrática do Congo (assinado em Pretória o 16 de Dezembro de 2002). Trata-se de um acordo de divisão do poder entre o governo da República Democrática do Congo (RDC), os principais movimentos rebeldes (RCD-G, MLC, RCD-ML, RCD-N, Mayi-Mayi), os principais partidos da oposição política e as organizações da sociedade civil. O acordo previa uma atribuição equitativa dos cargos nas instituições transitórias, nomeadamente a Presidência, o Governo, a Assembleia Nacional, o Senado e os tribunais. A fim de se satisfazer todas as partes que negociaram, tiveram que ser criados numerosos cargos. A partir destes acordos, criou-se uma administração pesada — e cara — que passou a ser a seguinte:

a) a Presidência: um presidente e 4 vice-presidentes (frequentemente designados pela fórmula "1+4", presidindo respectivamente a uma Comissão Política, a uma Comissão Económica e Financeira (ECOFIN), a uma Comissão para a Reconstrução e o Desenvolvimento e a uma Comissão Social e Cultural;

b) 2. 36 ministros e 25 vice-ministros; c) 3. 500 deputados na Assembleia nacional; d) 4. 120 senadores; e) 5. um aparelho jurídico independente; f) 6. várias instituições para defenderem a democracia, como a Comissão de Ética e de Luta

contra a Corrupção ou a Comissão Eleitoral Independente.

Os principais objectivos da transição são reunificar e reconstruir o país, instaurar a paz, criar um exército nacional integrado e organizar eleições democráticas. A 30 de Junho de 2003, o governo transitório entrou em funções. Em Agosto de 2003, os principais comandantes do Exército Nacional do Congo (FARDC) foram nomeados para os seus postos de acordo com os princípios previstos para o período de transição, ou seja, os princípios de uma repartição equitativa. Ao nível provincial, 11 governadores e 33 vice-governadores (3 por província) foram nomeados em Julho de 2004. O fim da transição deveria ser marcado por eleições legislativas e presidenciais democráticas, num período de 24 meses depois de o Governo entrar em funcionamento. Contudo, o artigo IV previa um 8 Veja-se, por exemplo, o Documento da ONU S/2005/436, de 26 de Julho de 2005, sobre o ouro do Uganda, pp. 22-23 (N. do T.).

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prolongamento por período máximo de seis meses, renovável somente por mais outros seis meses. Em 2005, tornou-se claro que o prazo inicial não seria respeitado. Actualmente, as eleições decorrerão antes de 30 de Junho de 2006, sendo a segunda volta das presidenciais a 29 de Outubro de 2006. A segurança e a situação humanitária

Apesar da presença do MONUC e de formalmente a guerra ter acabado, o conflito armado persistiu no leste do RDC durante toda a transição. Os principais centros da luta são as regiões do Ituri e o Alto Uélé no Nordeste, as províncias do Kivu e o Nord-Katanga. No Ituri, o controlo dos vastos jazigos de ouro está no centro das motivações da luta armada. Entre 2002 e 2004, o movimento Front pour l’Intégration Nationale (FNI), dominada pela etnia Lendu, combateu em cinco batalhas contra o movimento Union des Congolais Patriotes (UPC), dominado pela etnia Hema, por causa das concessões mineiras de Mongbwalu. Até agora, estes grupos armados e outros, como o Lord' s Resistance Army (LRA), têm representado uma grave ameaça para a segurança da região. A ONU considera que só o conflito em Ituri já custou a vida a 50.000 pessoas desde 1999.

Nos Kivus, um conflito entre as gentes de Joseph Kaliba e o RCD-G desencadeou uma série de confrontações que, em Maio e Junho de 2004, provocaram uma batalha devastadora para Bukavu, a capital do Sul-Kivu. As forças dissidentes, conduzidas pelo general Laurent Nkunda9, continuam a efectuar regularmente combates armados contra as tropas das FARDC. A presença permanente no Kivu de 10 000 combatentes da Forces Démocratiques para la Libération du Ruanda (FDLR: rebeldes hutu armados) deu aos partidários da tendência extremista RCD-G e ao Ruanda um pretexto para prosseguirem os seus objectivos a Leste do Congo. É assim que, em 2005, o Ruanda, de novo e por várias vezes, ameaçou invadir o Congo retomando o velho argumento segundo o qual os rebeldes hutu ameaçam a segurança nacional do Ruanda. Desde então, as FDLR, que dependem da pilhagem e da extorsão para viverem, continuam a maltratar frequentemente os civis nos dois Kivus. O conflito permanente nestas zonas deve-se em grande parte aos recursos naturais aí existentes, como vários relatórios das ONG e da ONU o demonstraram claramente. Por exemplo, um relatório do Polo Institute de Dezembro de 2005 conclui: "a pouca atenção dada à questão dos recursos naturais e às particularidades do conflito no Congo Oriental são importantes obstáculos para o sucesso do processo de paz na RDC". Em Junho de 2005, a Global Witness chegou a uma conclusão análoga na sua análise das relações entre o comércio da cassiterite e a violência nos Kivus.

Do mesmo modo, no Norte da província do Katanga, os rebeldes armados continuam a causar devastações. Estas milícias Mayi-Mayi foram criadas durante a guerra feita por Laurent Kabila, que as utilizou para lutar contra os rebeldes apoiados pelo Ruanda. Os Mayi-Mayi do Norte do Katanga não foram integrados no exército e foram deixados fora dos Acordos de Paz. De acordo com o Internacional Crisis Group, estas milícias, que contam entre 5.000 a 8.000 guerreiros comandados por 19 senhores da guerra, são actualmente a principal razão pela qual 310.000 habitantes do Katanga, de acordo com as suas estimativas, foram deslocados. Este triste número vem engrossar os 1,3 milhões de pessoas já anteriormente deslocadas, de acordo com as estimativas, em todo o Congo.

A guerra acelerou a dilapidação do Estado a uma velocidade nunca igualada. O Congo foi deixado em ruínas e até hoje permanece como uma presa sujeita a uma enorme catástrofe humanitária. Um estudo de 2004 do Internacional Rescue Committee (IRC) mostrou que o conflito no RDC já fez 3,9 milhões de vítimas, o que, com efeito, faz deste conflito o mais mortífero desde a Segunda Guerra mundial. O IRC, além disso, confirma que a taxa da mortalidade do Congo excede

9 Segundo a ONU, o Governo de transição deveria utilizar todas as medidas possíveis para o localizar e pôr cobro à sua impunidade actual. Ver ONU, ibidem.

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em 40% a do nível regional do Sub-Sahra, com 38.000 mortes por mês a mais do que o que é considerado como uma taxa "normal". Um relatório de Outubro de 2005 dos Médicos sem Fronteiras (MSF) apresenta estatísticas também muito preocupantes sobre a crise humanitária na RDC. Aqui, um recém-nascido em cada cinco nunca atinge a idade dos 5 anos. O Congo detém, assim, o recorde mundial de mortalidade materna e infantil. Mais de 80% da população congolesa, calculada em 55 milhões de pessoas, vive com 0,30 USD por dia e 75% da população é considerada como sub-alimentada e sem abastecimento regular de água potável. Vários indicadores sanitários expressam um quadro uniformemente aflitivo do destino da população: na sequência do desmoronamento do sistema de higiene pública, doenças já anteriormente erradicadas voltaram a aparecer enquanto perto de dois terços dos Congoleses não têm os meios financeiros para poder ter os cuidados de saúde convencionais. Em 2004, o índice do desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento classificou o Congo no 168.º lugar nos 177 países estudados. A governabilidade

Três décadas de governo Mobutu suscitaram comportamentos patrimonialistas e de corrupção profundamente enraizadas na RDC. Durante a transição, os líderes do país declaram o seu comprometimento, puramente formal, aos financiadores internacionais sobre a questão da má governança e da corrupção. Mas, na prática, os princípios chaves da boa governança — a participação, a responsabilização a transparência — têm sido constantemente ignorados. Mais ainda, numerosos sinais indicam que a antiga "governabilidade" não se alterou profundamente. A Transparency Internacional, no seu relatório de 2005 sobre a corrupção mundial, revela que a RDC permanece entre os 15 países mais corrompidos no mundo. Os autores sublinham de forma precisa que: "se o número de discursos fosse a medida da mudança, haveria uma esperança real de se combater a corrupção na República Democrática do Congo (RDC)". Os autores acrescentam que: "o medo de ver o precário equilíbrio político a desmoronar-se impede as iniciativas que poderiam ser tomadas para eliminar a corrupção e os crimes que lhe estão ligados".

Um primeiro "aviso" quanto ao gosto da actual elite política para a fortuna e para os privilégios pessoais foi notório aquando da assinatura das negociações de Pretória. As partes negociadoras tinham decidido criar uma comissão técnica para determinar as "necessidades logísticas" das instituições transitórias. Esta comissão tinha concluído que 107 "Excelências" tinham necessidade de um "tratamento especial" ou, por outras palavras, era necessário pôr à sua disposição 107 residências, se necessário por expropriação. As moradias dos quatro vice-presidentes e do presidente da Assembleia Nacional e do Senado deviam ter três quartos e três salas de banho, enquanto as de vários ministros e dos presidentes de comissões políticas deviam ter dois quartos. Além disso, a lista incluía 405 automóveis. A todos os ministros e vice-ministros deviam ser atribuídos um automóvel de luxo e a cada vice-presidente quatro automóveis: um Mercedes, um outro automóvel de luxo e mais dois automóveis para a sua escolta. O relatório da Comissão concluía que, dada a vulnerabilidade do orçamento nacional, devia ser pedida uma ajuda financeira à comunidade internacional. "A operação Condor" é outro exemplo da relação entre sinais externos de prestígio e a despesa pública. A 20 de Setembro de 2005, chegaram a Kinshasa 620 jeeps que Oliveira Kamitatu, presidente da Assembleia Nacional, tinha encomendado à sociedade belga Demimpex. Estas viaturas, destinadas aos deputados da RDC, suscitaram uma intensa agitação social. Com efeito, provocaram a cólera dos professores de Kinshasa que estavam em greve desde há meses para obterem um aumento dos salários. Sobre esta matéria, e dia após dia, a imprensa especulou sobre o preço dos veículos e sobre a maneira como teriam sido pagos, enquanto os altos funcionários se contradiziam ao explicarem o financiamento da “Operação Condor”.

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Os líderes da transição mostram igualmente um nível alarmante em matéria de indisciplina orçamental. Em 2004, a Presidência teria excedido o seu orçamento em cerca de cem por cento (7,9 mil milhões de francos congoleses); a Vice-presidência responsável pela Defesa e Segurança, dirigida por Azarias Ruberwa (RCD-G), excedeu o seu orçamento numa percentagem análoga (736 milhões de francos congoleses); a Vice-presidência de Jean-Pierre Bemba (MLC), responsável pela Comissão Económica e Financeira (ECOFIN), ultrapassou a sua dotação orçamental em mais de 600% (5 mil milhões de francos congoleses); a Comissão Social e Cultural do vice-presidente Zahidi Goma (oposição política) ultrapassou a sua dotação em 780 milhões de francos congoleses (100 %); e enfim, a Vice-Presidência de Yerodia (PPRD) ultrapassou o seu o seu orçamento em 263 milhões de francos congoleses. O orçamento adoptado para 2005 faz, de facto, aparecer graves aberrações. Os exemplos abundam. Assim, a afectação de recursos à Presidência da República equivaleria a 8 vezes o orçamento nacional da saúde, a 6 vezes o dos assuntos sociais e a 16 vezes o da agricultura! Além disso, durante toda a transição, os escândalos financeiros que implicam funcionários bem colocados foram numerosos. Em Novembro de 2005, por exemplo, um estratagema de fraude para desviar uma soma de 28 milhões de USD teria sido descoberto na Direcção-Geral dos Impostos (DGI), o órgão geral de colecta dos impostos.

Mesmo o esforço mais notável do regime actual para conter a má governança e as práticas de corrupção falhou, na sua maior parte, o seu objectivo. Com efeito, uma Comissão Parlamentar, conduzida pelo deputado Grégoire Bakandeja, foi criada para fazer uma auditoria às empresas de Estado. Em Janeiro de 2005, os inquéritos da Comissão provocaram a demissão de seis ministros e vários altos funcionários do sector público, mas o procurador não deu início a nenhum procedimento de acusação, após as demissões. Estes casos, tal como as práticas análogas de corrupção, nunca foram levados a um tribunal e, por isso, a opinião pública considera frequentemente as medidas contra a corrupção como operações estratégicas na luta para alcançar o poder político. Um outro facto que também não inspirou nenhuma confiança em relação à vontade política do regime em combater a corrupção foi o facto de Roger Lumbala, um dos ministros suspensos e chefe do RCD-N, ter sido substituído pela sua mulher. Jean-Pierre Bemba, por seu lado, ameaçou deixar o governo transitório porque o ministro José Endundo, que é ele também membro do mesmo partido e que seria co-proprietário da companhia aérea Hewa Bora, teve que abandonar o seu posto.

A reacção de Bemba revelou o mais potente instrumento político dos antigos beligerantes durante a transição: a ameaça de retomar o combate. Assim como o MLC, o RCD-G recorreu largamente a esta forma perigosa de meio de pressão. Como mostram vários relatórios, a corrupção na RDC atingiu proporções tão alarmantes que representa uma ameaça para a segurança do país. A melhor confirmação deste fenómeno é o desvio de fundos afectos ao pagamento dos salários do exército. De acordo com a Internacional Crisis Group (ICG), as hierarquias de comandos paralelos e a corrupção em grande escala tornam o exército nacional (FARDC) ineficaz e pouco operacional. Assim, chega-se a uma situação que conduz a pagamentos irregulares e inadequados aos soldados, que retomam frequentemente as armas como meio para ganharem vergonhosa e parcamente a sua vida. A Human Rights Watch (HRW) acrescenta que, no final de 2005, só um quinto das tropas beligerantes foi integrada no exército nacional (FARDC) e que os políticos e os chefes militares congoleses desviaram 30 milhões de USD só do orçamento da defesa dos Kivus.

A comunidade internacional está consciente deste problema, mas sobretudo agiu de acordo com o provérbio que era necessário instaurar "primeiro a estabilidade e só depois a boa governança". No relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas, de Maio de 2005, sobre as eleições na RDC lançou-se uma proposta para a criação de um mecanismo conjunto que reunisse funcionários congoleses e mutuantes de fundos internacionais para apoiarem a gestão transparente dos recursos estatais, "incluindo os rendimentos do sector mineiro". Como o financiamento estrangeiro corresponde a 57% do orçamento nacional da RDC, a comunidade internacional poderia, em teoria,

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obrigar a condições mais restritas e de controlo da utilização dada à ajuda financeira que fornece ao país. Mas vários membros do Conselho de Segurança, incluindo a China e a Rússia, opuseram-se a esta iniciativa. Por seu lado, Jospeh Kabila, actual presidente do RDC, rejeitou esta ideia e chamou-a de uma violação da soberania nacional da RDC. Teria igualmente argumentado que as questões de boa governança são mais bem tratadas aquando da reunião semanal interna do "espaço presidencial". Desde então, há sinais muito nítidos que nos mostram que durante a campanha eleitoral a situação se terá deteriorado ainda mais, porque os partidos políticos do governo transitório procuram fundos para a sua campanha eleitoral. Por exemplo, de acordo com um relatório de HRW de Dezembro de 2005, o número de licenças atribuídas para as actividades de exploração nas zonas mineiras quadruplicou no segundo semestre de 2005 e os observadores internacionais temem que estes acordos sejam o resultado de corrupção. A HRW assinala que os funcionários governamentais podem duplamente aproveitar a corrupção neste momento: podem encher os bolsos e igualmente gastar ainda mais para influenciar o resultado das eleições, quer seja por uma publicidade acrescida, quer seja pela compra pura e simples de votos ou ainda pela corrupção dos agentes eleitorais para favorecerem o seu respectivo partido. A HRW acrescenta que a corrupção está-se a tornar omnipresente e ao ponto de poder contribuir para aumentar a instabilidade, ameaçar a transição e ser capaz de falsear as eleições.

Aliás, numerosos observadores sustentam que o adiamento de um ano da data original das eleições se deve tanto a razões de segurança e logística como à reserva dos políticos existentes em abandonarem o seu poder e as suas regalias, e que muitos terão tentado roubar o mais possível antes de perderem eventualmente o seu cargo nas eleições. É provavelmente a esta luz que deveríamos considerar um decreto presidencial promulgado durante a primeira semana de Agosto de 2005. Este decreto ratificava a distribuição de postos altamente lucrativos de directores de trinta sociedades semi-públicas congolesas. Este rearranjo dos directores entre as sociedades para-estatais foi o resultado de um conflito político que durava há mais de um ano e que por conseguinte tinha excedido o termo inicial da transição. A Comissão Lutundula

O Acto Final das Negociações Políticas Inter-Congolesas aprovou duas resoluções que pedem "a criação, pelo Parlamento transitório, no mais curto prazo possível, de uma Comissão especial encarregada de avaliar a validade dos acordos de natureza económica e financeira concluídos durante as guerras de 1996-97 e de 1998". Assim, como em qualquer iniciativa que visa aumentar a transparência e a eficácia da economia do RDC, a aplicação destas resoluções defrontou-se com uma obstrução política considerável. No início, os deputados da oposição ("Componente Oposição Político") e da sociedade civil queriam excluir da Comissão os deputados que pertencem aos partidos das antigas partes beligerantes." Mas após longas negociações, foi aceite que os MLC, RCD-G, RCD-ML, RCD-N e PPRD podiam pertencer à Comissão, mas que não teriam o direito de participarem em missões nos territórios que tivessem tido sobre o seu controle durante a guerra. A Comissão deveria ter começado os seus inquéritos em Dezembro de 2003, mas a resolução parlamentar necessária à sua criação só foi votada a 24 de Abril de 2004 pelo plenário. O PPRD de Kabila teria votado contra a resolução, temendo divulgações que podiam comprometer o partido. Depois, esperou-se mais outro mês necessário para designar os membros da Comissão. Esta contava quatro membros da oposição, quatro da sociedade civil, dois do PPRD, MLC e de RCD-G e um dos RDC/ML, RCD/N e Mayi-Mayi. Christophe Lutundula, homem político experiente da oposição, foi designado presidente e os inquéritos começaram no fim de Maio de 2004. Ao longo de toda a missão de inquérito, os trabalhos da Comissão foram sendo obstruídos pelo lento desembolso dos fundos quer governamentais, 3.500.000 FC (cerca de 8.000 USD), quer do Banco Mundial através de dois

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serviços públicos que administraram os fundos afectos pelo Banco Mundial ao projecto, ou seja 443.000 USD. O período examinado pela Comissão ia de Setembro de 1996 a 30 de Junho de 2003, quando a transição pôs termo oficialmente à guerra. A Comissão tinha como principais objectivos inventariar e analisar todos os contratos deste período, avaliar o seu impacto financeiro e aprová-los ou rejeitá-los.

O relatório Lutundula contém uma secção sobre as dificuldades que a Comissão encontrou na sua elaboração. Para a Comissão, um dos grandes obstáculos foi a ausência de mandato para interrogar os funcionários ugandeses e ruandeses mencionados nos relatórios da ONU a respeito da exploração ilegal de recursos em RDC. Além disso, no Leste do RDC, as missões frequentemente eram obstruídas pela insegurança que aí reinava. Mas a principal dificuldade deve-se à falta de colaboração dos PPRD, MLC e RCD-N, fenómeno sobre o qual a Comissão no seu relatório refere: "...a recusa das componentes ‘Governo’ e MLC, bem como a da entidade RCD-N em colaborarem com a Comissão especial." Com efeito, nenhuma entre elas aceitou satisfazer os pedidos de informações e de audiência que lhes foram dirigidos pela Comissão a respeito das convenções e actos de gestão que teriam assinado durante as duas guerras de 1996-97 e 1998, bem como os compromissos tomados em relação aos seus aliados ou à população. Até ao momento da redacção deste relatório, estas componente e entidades apresentaram apenas uma indiferença desdenhosa em relação à Comissão especial.

"O RCD-ML, pelo contrário, cooperou satisfatoriamente com a Comissão." Por seu lado, o RCD-G forneceu algumas informações sobre os seus negócios durante as guerras, mas não respondeu a uma lista de perguntas que a Comissão enviou em Junho de 2005. A fase preliminar compreendeu igualmente uma visita de recolha de informações ao Senado Belga, a várias ONG estrangeiras e à sede da ONU, em Nova Iorque (para consultar os arquivos do Painel de Peritos). Aquando de uma segunda fase que levou perto de um ano, a Comissão efectuou quatro missões de inquérito no terreno, É necessário notar que a análise da Comissão que resulta destas missões inclui o impacto no terreno dos contratos examinados e, por conseguinte, o relatório da Comissão apresenta uma situação que vai bem para além do 30 de Junho de 2003. Certas conclusões gerais da Comissão são particularmente relevantes para se avaliar as práticas de governança do governo transitório: "Com efeito, das informações recolhidas pela Comissão especial durante os inquéritos, resulta que o Governo de transição não fez melhor do que aqueles que exerceram o poder de Estado durante o período das guerras de 1996-97 e de 1998. Antes pelo contrário, a hemorragia dos recursos naturais e das outras riquezas do país ampliou-se, a pretexto da imunidade garantida pela Constituição aos gestores governamentais... Esperando a aplicação das recomendações da Comissão especial e para preservar o património nacional e o das empresas públicas, bem como o das sociedades de economia mista, contra a tentação da predação e da venda a preços de saldos na véspera das eleições, a Comissão recomenda a suspensão pela Assembleia Nacional de qualquer alienação do património nacional (recursos naturais em especial) daquelas empresas e sociedades de acordos e de contratos ou actos de gestão até à instalação das instituições que resultem das novas eleições.

Depois da apresentação do relatório na Assembleia Nacional, em Junho de 2005, as recomendações da Comissão nunca foram aplicadas." Pelo contrário, depois de Junho de 2005, o Governo oficializou uma série de acordos de joint-venture relativos a gigantescos activos mineiros no Katanga e no Kasaï. A 4 de Agosto de 2005, durante a mesma semana em que se fez a distribuição dos lugares de directores em 30 empresas para-estatais como indicado acima, um decreto presidencial ratificou dois acordos de joint-venture de sociedades privadas com a para-estatal mineira Gecamines, implicando vastas concessões de Tenké Fungurumé e de Kamoto no Katanga. Com outro decreto presidencial, as autoridades de Kinshasa distribuíram finalmente os últimos activos importantes da Gecamines. Um mês depois, o Governo confirmou três protocolos de acordo

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do MIBA, empresa semi-pública do sector diamantífero, com três sociedades privadas (De Beers, DGI Mining et Nizhne-Lenskoye). Estes acordos referir-se-iam a licenças de exploração mineira numa superfície com mais de 35 000 quilómetros quadrados.

Em meados de Fevereiro de 2006, uma fonte desconhecida tornou este relatório acessível na Internet. Este acontecimento coincidiu com a distribuição do relatório aos deputados da Assembleia Nacional. Os analistas políticos consideram esta divulgação como um golpe estratégico pré-eleitoral de Olivier Kamitatu, presidente da Assembleia Nacional. Kamitatu, antigo braço direito de Bemba e que foi excluído do partido deste último em 23 de Janeiro. O relatório Lutundula desacredita os principais partidos políticos da transição. Naturalmente, a operação política de Kamitatu incitou Bemba a acusar publicamente o seu antigo companheiro de ter desviado uma soma de 300.000 dólares americanos aquando do seu mandato como presidente da Assembleia. Todo este imbróglio político enfraquecerá certamente o impacto da análise da Comissão Lutundula que, de tão detalhada e bem informada que possa ser, será qualificada provavelmente de documento politicamente tendencioso e rejeitada pelos partidos e pelos homens políticos incriminados.

Criança ainda viva

Fonte: Excertos de “L’État contre le Peuple”, Institut Neerlandais pour l’Afrique Austral (NIZA), 2006.

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II. Duas cidades do Congo

a. KISANGANI, Cidade "no interior do Mundo"

…Em 1921, foi estabelecida a primeira ligação aérea entre a actual Kinshasa e Stanleyville (actual Kisangani), cidade fundada, quarenta anos antes, pelo explorador anglo-americano, e que está para lá das cataratas — "Stanley Falls" — das quais é igualmente o herói epónimo. Kisangani situa-se à entrada da parte navegável do rio Congo, na confluência triangular com dois outros rios.

A 12 de Março de 1925, quando quatro pilotos do primeiro rallye Citröen Mar Mediterrâneo - Congo belga entraram em Stanleyville, o seu caderno de bordo descreveu uma "pequena capital com lindas casas coloniais, com varandas dispostas de um lado e do outro das largas avenidas com palmas plantadas, dotada com todas as lojas, com todas os serviços de uma grande cidade, onde homens penteados e com capacetes coloniais tomavam os aperitivos nas esplanadas dos cafés". Trinta e cinco anos mais tarde, na altura da independência, aí viviam e comerciavam mais de 6.000 europeus — entre os quais uma forte comunidade grega. Na época, fazia-se a viagem de 800 km até Bukavu, na fronteira do Ruanda, de dia. Havia também o caminho-de-ferro, de 150 km, para se contornarem os rápidos e ligar a cidade ao Katanga, a rica província mineira meridional do Congo. Contudo, as perturbações do pós independência beneficiaram destas vantagens, em nome de uma maior justiça social. "Mais vale matar durante alguns dias do que morrer de uma vez por todas"10, diziam os rebeldes "simba", os "leões" de Gaston Soumialot11. Com o seu reino de cem dias em

10 Na edição portuguesa do livro de Naipul, esta afirmação tem a seguinte tradução: “é melhor matar durante dias e dias do que morrer para sempre”. Ver V. S. Naipaul, A Curva do Rio, Lisboa, Edições D. Quixote, 2001, p. 334.

11 Os Simbas, rebeldes congoleses de Leste, fiéis a Lumumba, foram derrotados em 24 de Novembro de 1964 por uma força conjunta de pára-quedistas belgas, de mercenários e de forças do exército do Congo, utilizando aviões T-28, testados na Baía dos Porcos, em Cuba. E assim se tomou Kisangani. Neste dia, virou-se mais uma página da história do Congo pós-independência: a rebelião de Leste, fiel às ideias de Lumumba, foi definitivamente vencida.

O líder militar dos Simbas era Gaston Soumialot e o Conselho Nacional da Revolução incluía Gaston Soumialot, Laurent-Désiré Kabila, mais tarde presidente da República, depois de ter destituído Mobutu, e pai do actual candidato a presidente da República, e Christophe Gbenye, antigo ministro do Governo de Lumumba. Depois do assalto a Kisangani, onde foram derrotados, os Simbas fugiram para o Sudão, sob a direcção do general Olenga, e foram recolhidos em Juba pelo militar Omar El-Béchir, actual presidente da República do Sudão. O tesouro de guerra transportado na fuga e depositado no Banco Central do Sudão terá sido de 36 toneladas de ouro, quase todo ele das minas de Watsa e de Kilomoto, 37 quilos de diamantes, 66 dentes de elefante, diversos sacos de casseterites e de outros metais preciosos, além de divisas, com documentos comprovativos, assinados pelo governador do banco central, El-Sid El-Fid. O actual governador do Banco Central do Sudão, confrontado com o facto, mostrou-se espantado e disse que todos os dossiers do Banco Central do Sudão foram destruídos num incêndio. Por seu lado, o Banco de Inglaterra tem um duplo registo das operações feitas pelo Sudão na época. Face a isto, mais tarde, as autoridades sudanesas encontraram miraculosamente um envelope com a indicação “Top Secret-goldfromCongo”. O valor estimado deste tesouro é um milhar de milhões de dólares. Apesar deste tesouro de guerra, 20.000 combatentes vivem no Sudão e no Egipto como refugiados, parcimoniosamente ajudados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Actualmente, Soumialot pretende criar um a fundação de apoio aos Simbas refugiados, A Associação para o Desenvolvimento Sanitário e Social do Congo, ficando esta encarregada da recuperação do respectivo

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Kisangani, em 1964, houve milhares de vítimas. O signatário das ordens de morte, o seu "ministro do interior", era Laurent-Désiré Kabila. O massacre de Europeus — missionários, mulheres e crianças... — provocou a intervenção dos pára-quedistas belgas. O regresso à ordem foi concluído, de forma sangrenta, por mercenários belgas, franceses, rodesianos e sul-africanos, após o golpe de Estado do "suave coronel”, Joseph Désiré Mobutu, no final de 1965. Este fez rapidamente esquecer o seu apelido, a sua alcunha. Mas, em dois anos, todo o país, incluindo Kisangani, a "capital rebelde", foi pacificado. De 1967 a 1974, a taxa de crescimento anual foi de 7%. Era a bela época: um "parque industrial" foi inaugurado em Kisangani e uma universidade implantada no "domínio presidencial"; as plantações de café floresciam e grandes explorações florestais enviavam os seus troncos, as suas madeiras, pelo rio abaixo, no qual se multiplicaram os barcos a vapor e as novas barcas nkoy — "leopardo" —; havia três cinemas numa cidade que crescia e atingia já os 800.000 habitantes, um night-club, o Goya, e mesmo dois casinos onde os brancos queimavam o dinheiro tão facilmente como o ganhavam. Em 1974, a "zairezação" — a expropriação dos estrangeiros a favor dos "compradores" nacionais — pôs termo a este período de prosperidade. Deu-se uma forte queda das cotações. A sequência não foi mais do que uma constante degradação, a erva louca, e depois a floresta equatorial a abranger as ruas, as casas e, para terminar, os bairros inteiros. Em 1978, um visitante, que permaneceu apenas 48 horas em Kisangani, escreveu: "O sol e a chuva e o mato tinham dado ao local um aspecto antigo, como se ali tivesse vivido uma civilização definitivamente extinta. As ruínas, espalhando-se por tão grande extensão de terreno, pareciam falar de uma catástrofe sem remédio. Mas a civilização não morrera. Era a mesma civilização em que eu vivia e para a qual, de facto, me encaminhava ainda. E isso podia explicar um estranho sentimento: estar entre as ruínas era como perder o sentido do tempo. Sentia-me como um fantasma, um fantasma não do passado mas do futuro. Sentia que a minha vida e a minha ambição tinham já sido vividas por mim e que estava para ali a olhar para as relíquias dessa vida. Estava num sítio por onde o futuro tinha já passado, de onde o futuro havia já desaparecido"12.

Este visitante foi V.S. Naipaul, escritor oriundo de uma família brahmane, nascido em Trinidad, de expressão inglesa, Prémio Nobel de literatura em 2001. O seu romance A Curva do Rio descreve o retrato de uma cidade africana, nunca nomeada, hipnotizada pelo ícone do "grande homem" longínquo, também nunca identificado mas facilmente reconhecível sob os traços do marechal Mobutu. Duas vagas de pilhagens, em 1991 e 1993, reduziram Kisangani à mendicidade. Assim, quando, a 15 de Março de 1997, Laurent-Désiré Kabila retorna como vencedor, à frente de uma aliança militar regional, as ruas ressoam a "independência tcha-tcha", cujo segundo advento é esperado após esta "libertação". Rapidamente veio o desencanto. O caminho para o poder central está pavimentado de massacres e Kabila pai, ele mesmo, será vítima de uma morte violenta. Após o seu assassinato, a 16 de Janeiro de 2001, Kabila filho torna-se o mestre de Kinshasa. O país, invadido por todos os lados, é dividido. Em Kisangani, sede de um movimento rebelde que serve de máscara às forças de ocupação ruandesas, sabe-se depois, que uma toga de leopardo pode esconder tanto a silhueta budista de um Kabila pai como a imagem enganadora de Paul Kagamé, o esquelético general-presidente do Ruanda. "Kisangani é um buraco, de onde não se sai mais ", suspira Raymond Mokeni Ekopi, à frente do sindicato patronal da cidade. Esta cidade agora conta apenas 300.000 habitantes, dos quais onze religiosas europeias, seis Gregos e um guarda-florestal francês, Jean-Marie Bergesio, que trabalha em mecânica esperando poder de novo exportar madeira... Nada, ou quase nada, é produzido em Kisangani, nem mesmo a corrente; desde que a central fornece apenas 4,5 megawatts, em vez dos 18 de "antes da queda", há bairros inteiros que foram "desligados". Os tesouro e de o utilizar especialmente no regresso dos Simbas exilados e posteriormente para desenvolver projectos sociais e educativos. 12 Ver V. S. Naipaul, op. cit., p. 41.

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mangais à beira das ruas foram cortados, para fazer a comida; o combustível e o petróleo para as lâmpadas vendem-se a um preço equivalente a 1 euro o litro, enquanto os raros assalariados ganham o equivalente a 20 euros por mês. O uso da bicicleta generalizou-se, como táxi, chamado toleka ("vão lá"); os carris dos caminhos-de-ferro oxidam na selva, excepto um "comboio humanitário" das Nações Unidas nenhuma barca acosta desde há cinco anos.

Cair doente, ou entrar em divergência, equivale à sentença capital: a única farmácia com medicamentos chama-se No problem; é igualmente o que dizem os soldados ruandeses, em swahili, aos resistentes das suas ocupações que eles eliminam a seguir. "Hakuna shida", não há problema... Kisangani é uma cidade fantasma "no interior do mundo", o Hinterwelt que intrigava Nietzsche. Os homens em armas aí tudo açambarcam, a começar pelo negócio dos diamantes, negócio descoberto nos finais dos 1980. Aos outros, aos civis, oferece-se como perspectiva de futuro o regresso à idade das cavernas.

O efeito conjugado do avanço à deriva da piroga no rio cria uma ilusão de óptica que desorienta: fixando a copa da árvore mais elevada, a ilha parece girar sobre si própria. Da mesma maneira, Naipaul teve a impressão que, no Congo, tudo se passa como se, "devido a uma qualquer perturbação nos céus, a luz da aurora nunca chegasse a transformar-se em dia e os homens vivessem num perpétuo amanhecer"13.

Será por esta razão que, desde a sua descoberta, o rio carrega a suspeita de que corre para o coração das trevas? Fonte: Stephen Smith, "Kisangani, Citè de ‘l’arrière monde’", Le Monde, 16 de Agosto de 2002.

b. LUBUMBASHI: uma Cidade arrasada O presidente sonha. Por detrás das portas estofadas do seu escritório em Lubumbashi, a capital

da província do Katanga, no Sul da República Democrática do Congo (RDC), Jean Assumani sonha com uma ressurreição: a da Gecamines, o grupo mineiro que alimentou os bons tempos do Zaire do Presidente Mobutu e do qual é o novo proprietário. "Gecamines vai surpreender, diz." Enterraram-na demasiado rapidamente. Está de regresso.

As palavras não enganam ninguém. Gecamines não é mais do que o fantasma patético de uma história acabada. Símbolo nos anos 70 da África já passada, decidida a agitar a tutela económica do antigo colonizador, está hoje na agonia, vítima de um Estado depredador e de firmas estrangeiras que se comportam como as aves de rapina. "A pilhagem dos recursos mineiros do país é sistemática." "Nada se faz para lhe pôr termo ", denuncia ainda o chefe da Igreja católica, o cardeal Nicolas Etsou." A ONU, as ONG internacionais, o Parlamento congolês bem podem publicar relatórios alarmantes — o último há algumas semanas —, mas está-se na hora da divisão dos despojos.

E que despojos: empresa pública, a Gecamines está assente em 30% das reservas mundiais de cobalto, 10% das de cobre! Possui zinco até mais não saber o que fazer... A mesa está bem servida. Dotados de um sólido apetite, os convivas convidaram-se a si mesmos para o banquete.

O desperdício é espantoso. Estende-se até à saída de Lumumbashi, onde uma imensa fábrica de refinação vai morrendo lentamente. Os rolos de fumo já não se escapam de modo intermitente, uma vez que só um dos oito fornos está em funcionamento.

Um pouco mais longe, dispersos numa decoração de ruína industrial, os pais dos antigos trabalhadores da Gecamines esfalfam-se a partir da aurora a arrancar, à custa de grandes marteladas,

13 Ver V. S. Naipaul, op. cit., p. 25.

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os resíduos de cobre colados aos restos de antigos fornos. Ocasionalmente, os guardas fazem-nos dispersar. Mas, mal viram as costas, este estranho carrossel retoma até ao cair do dia.

O malogro vê-se bem sobrevoando outra grande cidade do Katanga, onde as minas a céu aberto — de cobre e de cobalto — por falta de manutenção se tornaram lagos naturais. Para repor as instalações em funcionamento, seriam necessários milhões de dólares. Para se ter uma noção do sinistro, recorde-se que a Gecamines empregava outrora quase 30.000 assalariados e que hoje dificilmente consegue remunerar 12.000. "Poder-se-ia fazer tudo com apenas 3.000 trabalhadores", diz-nos Jean Assumani. As suas finanças melhorariam, tanto mais que a empresa já não tem fundos próprios desde há anos. Desmorona-se sob uma dívida abissal e apresenta um prejuízo equivalente aos dois terços do seu volume de negócios.

A Gecamines já só vale pela sua carteira mineira. Quando chegou ao poder após ter derrubado o marechal Mobutu, Laurent-Désiré Kabila ofereceu os mais bonitos pedaços ao Zimbabué pelos serviços militares prestados na guerra contra o Ruanda.

Com o presidente assassinado, o seu filho, o actual chefe do Estado, mudou de parceiros mas não de política. Forçado pelo Banco Mundial, Joseph Kabila deixou morrer a Gecamines completamente exangue e confiou dezenas de minas do grupo público a parceiros, frequentemente estrangeiros. O resultado não se fez esperar. No Sul do Katanga, as máquinas escavadoras refizeram o seu aparecimento em carreiras abertas e fábricas completamente novas parecem sair da terra à sombra do que resta da Gecamines. Na hora em que as cotações dos metais quase que ardem, mesmo antigos terreiros encontram compradores porque contêm restos de cobre, de cobalto e de zinco recuperáveis depois de uma passagem por altos-fornos. Os números da produção não reflectem ainda a mudança. Daqui a quatro ou cinco anos, o Katanga — uma província da dimensão da França — terá reencontrado o nível recorde de produção do cobre ou do cobalto dos anos 80. O problema resulta do facto de a reactivação se efectuar num ambiente opaco. "Aqui, é a lei do Far West, um país de pioneiros", resume um industrial sob a condição de anonimato. "Empresários asiáticos, europeus, norte-americanos ou congoleses desembarcam e aqui se servem, com a cumplicidade das autoridades." "Já não há aqui nenhuma regra a cumprir". Tudo se compra, tudo se vende.

Um inquérito do Parlamento congolês realizado no final de 2005 com o apoio do Banco Mundial conta como está organizada a pilhagem das riquezas mineiras. De um grande rigor, o documento é edificante. Na parte consagrada ao Katanga, denuncia, apoiado em exemplos, as "empresas nebulosas" com accionistas obscuros, as "isenções fiscais, aduaneiras e parafiscais atribuídas de maneira exagerada durante longos anos que vão de quinze a trinta anos..., sem se estar a ter em conta a importância real do investimento"; os "líderes políticos do topo do Estado [que] intervêm na sombra pelo jogo do tráfico de influências e por ordens intempestivas dadas aos negociadores ou aos signatários dos contratos"; o poder público, que atribui licenças de exploração "sem que nenhuma disposição de controlo das instalações seja tomada previamente"14.

Ninguém contestou o teor deste documento, condenado a ficar esquecido no Parlamento se um anónimo não o tivesse publicado na Internet. Depois, outros relatórios vieram à luz do dia e que iluminam uma face nova desta corrida para o Katanga. Uma firma estrangeira, cujos accionistas são impossíveis de identificar, a Somika, vê-se acusada de ter instalado a "sua unidade de tratamento de minérios [grande consumidora de ácido acima da napa aquífera que alimenta Lubumbashi", a segunda cidade do Congo. É "impossível prever qual será a qualidade da água daqui a dois ou três anos", precisa o director de um centro médico, o doutor Charles de Baecker. Anvil Mining, companhia mineira australiana cotada na Bolsa, é acusada, em Outubro de 2004, de ter posto os seus meios de transporte (camiões e aviões) à disposição do exército congolês para ir recuperar uma pequena cidade presumidamente ocupada por um pequeno grupo armado. Este acto teria passado

14 Trata-se do relatório Lutundula, feito sob os auspícios do Banco Mundial (N. do T.).

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despercebido se as forças congolesas não se tivessem tornado culpadas do massacre da povoação. Uma equipa de televisão australiana que fez reportagem no lugar calcula em uma centena o número de civis friamente abatidos pelo exército. Está em estudo o levantamento de um processo contra a Anvil Mining por "cumplicidade" nesta situação.

O caso da sociedade indiana Chemaf ilustra outro aspecto da pilhagem. Beneficiário de uma concessão mineira na periferia de Lubumbashi, a firma tinha-se comprometido, de acordo com o relatório parlamentar, "a fazer investimentos numa exploração industrial". A verdade dos factos indica que esta empresa se dedica "ilegalmente à exploração artesanal". Uma visita ao local, à mina da Estrela, concedida à Chemaf por uma migalha de pão, confirma-o. Aqui, não há bacia correctamente desenhada em meia-lua, não há escavadora mecânica em acção, há exactamente uma colina enegrecida com milhares de buracos ao redor nos quais se agita um exército de artesãos mineiros. À força de picaretas escavam, enfiam-se sem um mínimo sequer de escoramento até 15 ou 20 metros de profundidade num solo abarrotado de cobre e cobalto. Os sacos surgem dos poços e serão vendidos à empresa concessionária, antes de partirem para a remota Ásia via África do Sul ou via Tanzânia.

O volume de exportações é um mistério que só beneficia as firmas sem escrúpulos e prejudica as finanças públicas. Comparando os números das exportações mineiras da RDC em direcção da China, uma associação congolesa, a Liga contra a corrupção e a fraude, descobriu que variavam de 1 para 10 conforme emanem de Kinshasa ou de Pequim. Por outras palavras, a China importa da RDC dez vezes mais cobre e cobalto do que aquilo que indicam as estatísticas oficiais fornecidas por Kinshasa. São "milhões de dólares de receitas... que são perdidos mensalmente", concluiu a associação.

Lubumbashi saiu miraculosamente ilesa deste naufrágio onde se afundou a Gecamines. A cidade duma beleza fora de moda soube adaptar-se aos novos tempos. Sob o regime de Mobutu, vivia à custa dos pequenos negócios da empresa, que financiava escolas e hospitais. Isto continua a ser assim, salvo que Lubumbashi mudou de padrinho. O novo padrinho chama-se Georges Forrest. Nascido no Congo mas de nacionalidade belga, este sexagenário tão discreto como influente está à cabeça do primeiro grupo privado da RDC.

Antes da falência da Gecamines, a casa Forrest era poderosa. O fracasso do grupo mineiro permitiu aumentar o império familiar. Lubumbashi aproveita-se sem qualquer constrangimento. Ensina-se nas escolas Georges Forrest. Cuida-se da saúde nos centros de saúde Forrest. A equipa local de futebol leva as suas cores. Subvenciona o museu local e um centro cultural. A Gecamines morreu. Mas a cultura da casa permanece.

Fonte: Jean-Pierre Tuquoi, "Razzia sur le trésor du Katanga", Le Monde, 2006.

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III. Produtos-chave na economia do Congo

a. Kinshasa, Mercado clandestino de substâncias radioactivas

O urânio é a única riqueza do subsolo que não é mencionada em nenhum lado no volumoso

relatório de inquérito das Nações Unidas sobre "a exploração ilegal dos recursos naturais do Congo", o qual trata em detalhe o tráfico de diamantes, de ouro, de cobre, de cobalto e mesmo de nióbio. Isto é tanto mais surpreendente quando sabemos que basta aproximarmo-nos das embaixadas estrangeiras, em Kinshasa, para se ser abordado com o propósito da compra de uma gema, de um pó precioso ou de um "capacete" de urânio.

Na capital congolesa, desde há uma dezena de anos abandonada à desordem e à miséria, tudo se vende. O urânio e, mais ainda, os desperdícios nucleares dos anos 60, altamente radioactivos porque mal neutralizados na época, são muito procurados. Estas substâncias perigosas são mercadorias correntes, existindo pontos de venda conhecidos na cidade ou em discretos escritórios de companhias mineiras.

As "amostras" provêm do Centro de investigações e experimentação nuclear de Kinshasa (Crenka), onde os Estados Unidos tinham instalado, sob o regime de Mobutu, a partir do fim dos anos 60, dois reactores experimentais. Um deles está parado e, de acordo com um engenheiro congolês, "tem fugas". Outro continua operacional. Contudo, já no tempo do presidente Mobutu, Washington tinha proposto desmontar à sua custa estas instalações. Mas o presidente Mobutu teria feito fazer-se pagar caro para aceitar a proposta, de acordo com um dos seus antigos conselheiros.

Os Estados Unidos teriam voltado à carga junto do seu sucessor, Laurent-Désiré Kabila, recém-chegado ao poder — com o apoio americano — em Maio de 1997. Ora, recusando a oferta, "o homem que derrubou Mobutu", também quis negociar o acordo. Segundo uma fonte muito próxima, ele teria mesmo pedido uma avaliação do valor comercial do "material" radioactivo de Crenka no mercado negro. Em contrapartida, a partir da sua primeira visita a Washington, quinze dias apenas após o assassinato de seu pai, a 16 de Janeiro, o seu filho e sucessor Joseph Kabila teria aceite o princípio de uma "limpeza" do local de acordo com as regras de segurança.

O tráfico de urânio e, sobretudo, dos desperdícios nucleares ocidentais "armazenados" no Zaire nos anos 60 e 70 constitui um perigo infinitamente mais grave. A partir da primeira vaga de pilhagens desencadeada pelas antigas Forças Armadas zairenses (FAZ), em 1991, a mina de urânio de Ntenke Fungerema, na província meridional do Katanga, teria sido objecto de roubos e de desvios. É de lembrar que foi desta jazida congolês que foi extraída a matéria radioactiva que permitiu a construção das bombas americanas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Fechada em seguida, a mina de Ntenke Fungerema foi durante muito tempo guardada como uma "zona de segurança absoluta", com acessos rigorosamente proibidos. Mas o comportamento do regime de Mobutu, a partir de 1990, justificou todas as precauções tomadas, de acordo com diplomatas ocidentais em funções em Kinshasa. Loucos Rumores

É necessário acreditar, a julgar pelas listas de matérias radioactivas propostas à venda em Kinshasa e no outro lado do rio Congo, em Brazzaville. Não se trata somente de minério de urânio no estado natural. Aparentemente, os desperdícios nucleares armazenados no passado no Zaire, frequentemente de origem americana, inundam igualmente um mercado clandestino que, para grande preocupação dos serviços secretos ocidentais, atrai compradores provenientes dos "Estados anti-

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ocidentais" interessados na proliferação de matérias enriquecidas ou próprias para serem tratadas novamente. Um cidadão francês, de origem corsa, teria sido localizado como intermediário. Uma fonte credível afirma mesmo que o presidente Laurent-Desiré Kabila teria enviado, a bordo do seu avião pessoal, "duas embalagens de desperdícios radioactivos à Djerba", na Tunísia, onde agentes do coronel Kadhafi as teriam vindo buscar. Em troca, o chefe do Estado líbio teria contribuído para o financiamento do esforço de guerra do regime de Kinshasa.

O carácter ilícito e clandestino deste "tráfico de desperdícios" não permite uma avaliação dos riscos de saúde que incorrem os que a ele se dedicam, do "sachador" ao vendedor, passando pelo transportador. Em Kinshasa, circulam rumores, os mais loucos, a respeito de "pessoas anteriormente com bom aspecto" que teriam perdido "de repente os seus cabelos" ou "teriam sido atingidas de impotência". Nenhuma investigação séria foi empreendida e, nos hospitais degradados da metrópole de 6 milhões de habitantes, os médicos levantam os ombros. "Com tudo, o que se vê aqui, da SIDA à desnutrição, isso não foi notado, isso passa desapercebido", explica um deles. Fonte: Stephen Smith, "Kinshasa, marché clandestin de substances radioactives", 5 de Maio de 2001.

b. No QUÉNIA, o urânio de Mobutu, verdadeiro ou falso, está em venda livre

A ameaça de proliferação nuclear, fraude colossal ou fraude de alto risco? No maior segredo, comerciantes originários da República Democrática do Congo (RDC) tentam vender no Quénia o urânio condicionado em pequenos "capacetes", contentores protectores em chumbo, contendo cada um deles um quilo de matéria.

Os vendedores afirmam dispor de "vinte quilos no total, escondidos na mata no Congo", de que algumas amostras foram encaminhadas clandestinamente para Nairobi. O preço de venda foi fixado a 25.000 dólares por grama. "Estamos sentados sobre uma fortuna de 500 milhões de dólares", diz-nos um dos traficantes.

Como prova das suas declarações, o homem — chamam-no Albert — exibe um destes "capacetes": paralelepípedo de chumbo pintado de vermelho envolvido em sacos de supermercado. A sigla em amarelo vivo que designa as matérias radioactivas está bem visível. Inscrições, em alemão, indicam o conteúdo teórico: urânio 238. Todo este conteúdo é fechado hermeticamente. Albert explica precipitadamente: "Devemos vendê-lo o mais rapidamente possível Talvez haja radiações. Quem esconde o capacete sob a sua cama tem medo de ficar queimado".

Simples amadores — entre os quais um pastor — terão a possibilidade de vender tal carga? Até agora, o comércio dos "capacetes" do Congo, quer seja verdadeiro ou falso, já fez mais vítimas do que milionários em dólares. Em Janeiro de 2001, um intermediário congolês que tentava escoar em França alguns lotes de urânio natural, ao preço do urânio enriquecido, foi assassinado em Lyon por "pessoas duvidosas".

A mercadoria, desta vez, tem ela mais valor? Na falta de laboratórios no local, é impossível estabelecer com segurança se os vendedores estão na posse de urânio enriquecido, de simples desperdícios radioactivos ou de minério sem valor. A proveniência dos capacetes, além disso, leva-nos ao mito: teriam sido armazenados, com boas intenções, por Mobutu Sese Seko, então marechal presidente do Zaire, seguidamente roubados pelos soldados rebeldes que o derrubaram do poder em 1997?

O primeiro cliente identificado foi, naturalmente, os Estados Unidos. "Nós preferimos antes vender" ao mundo livre "do que aos países árabes, ao Iraque ou Al-Qaida", resume um dos vendedores. Mas as negociações arrastam-se desde há meses: "Um especialista veio de Washington para examinar o capacete." Mas propõem apenas 3.000 dólares por grama, o que é irrisório, e as

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discussões não avançam. Em breve, não poderei responder por mais nada. O produto vai acabar por interessar a pessoas duvidosas. Diplomatas do Médio Oriente pediram igualmente "para examinarem uma amostra". Teriam oferecido já uma soma aceitável. O negócio, far-se-á? Uma equipa concorrente, composta de um antigo governador de província queniano e de um intermediário ugandês, estiveram em Nairobi, na segunda-feira 16 de Setembro. Tentavam, eles também, vender um pequeno capacete de 200 gramas "de urânio de Mobutu". Fonte: Jean-Philippe Remy, "Au Kénia l’uranium de Mobutu, vrai ou faux, est en vente libre", Le Monde, 19 de Setembro de 2002.

c. Como os ‘diamantes de sangue’ financiam as guerras africanas

Um chefe deve ser sempre um poeta. Deve falar em nome dos Deuses, dos génios e dos espíritos da morte, filosofava o sargento Learoyd, herói do Adeus ao Rei, de Pierre Schoendorfer, que, na mata, tinha construído um reino à sua medida. O presidente do Zimbabué, Robert Mugabe, não tem provavelmente tal ambição poética, ele que acaba de obter duas belas concessões de diamantes na República Democrática do Congo (RDC, ex-Zaire), em pagamento do seu apoio militar ao regime do presidente Laurent-Désirér Kabila, em guerra contra os seus oponentes internos e os Estados que os apoiam (Uganda, Ruanda), os quais controlam as zonas Leste e Noroeste do país.

A exploração da mina de Tshibua e dos depósitos aluviais do rio Senga-Senga, no Kasaï-Oriental, numa extensão de 500 km2, foi assim confiada ao consórcio Oryx Diamonds. Esta empresa agrupa a Osleg, pólo industrial do exército do Zimbabué, e a Cosleg, o seu alter-ego na RDC, controlada pelo regime Kabila e por interesses de Omã. É uma sucursal da Petra Diamonds, uma pequena sociedade mineira sul-africana, à qual está associada nomeadamente uma firma mineira estabelecida pelos mercenários que combatem na Serra Leoa. De acordo com o Mining Journal de Londres de 26 de Maio, Oryx receberá 40% dos lucros, os Zimbabuenses 40% e a sociedade de Kabila 20 %.

O projecto de cotação Oryx, a 13 de Junho, na Alternative Investment Market, equivalente londrino do segundo mercado parisiense, pôs em agitação a City. "Que se passará com um contrato no caso de haver uma mudança de governo [num ou noutro país interessado]? E comprar tais títulos sobre este mercado coloca um problema ético, dado que o investidor financia indirectamente uma guerra civil", afirma John Clemmow, especialista de África no corretor Investec. "Mas mais do que um negócio financeiro, a controversa Oryx transforma-se em Londres numa questão de Estado. Porque esta co-empresa foi criada abertamente para fazer pagar, por falta de liquidez, a factura do apoio militar de Harare ao governo do Kabila. Além disso, o partido do presidente Mugabe, a Union nationale africaine du Zimbabwe-Front patriotique (ZANU-PF), principal accionista da Osleg, com o exército do Zimbabué, é também o ponta de lança da ocupação de explorações agrícolas de brancos "veteranos" da guerra da independência. Por último, a acreditar na ONG britânica Global Witness, a concessão confiada à Oryx foi retirada autoritariamente por Kabila à sociedade de Estado Mineira de Bakwanga (Miba). Este negócio é feito quando a comunidade internacional se esforça por se contrapor ao comércio dos diamantes de "sangue", utilizados para financiar as guerras em África. A exemplo do petróleo e do ouro nos anos 70 e 80, as pedras de fogo doravante tornaram-se o nervo da guerra à escala do continente negro, favorecendo as derivas sangrentas. Os protagonistas servem-se das zonas diamantíferas que controlam para comprarem armas. Outrora a Libéria, a ex-Rodésia, a Namíbia ou o Zaire do marechal Mobutu foram vítimas de tais conflitos. Hoje em dia, é o caso da Angola, da Serra Leoa e da RDC.

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Código de Conduta

Hoje, a campanha em que se empenhou a Global Witness contra os "diamantes de conflitos" encontrou um eco junto dos governantes. Em nome da diplomacia "ética", a Grã-Bretanha trabalhista colocou a criação de um código de conduta nas compras de diamantes na ordem de trabalhos da próxima reunião dos ministros das Finanças do G-8, no Japão em Julho, na esperança de acabar com a fonte de pedras ilícitas. Em Washington, o mês passado foram organizadas audições pela Comissão das relações internacionais da Câmara dos representantes. A ONU inquiriu o tráfico que alimenta o esforço de guerra da UNITA, o movimento rebelde de Jonas Savimbi em Angola.

O conglomerado sul-africano De Beers, que é quem, até agora, controla o mercado mundial, não vai permanecer alheio a este processo. Congelou as suas compras provenientes de Angola e fechou o seu escritório de Freetown, capital da Serra Leoa. A firma, que controla 65% do diamante mundial, estuda a introdução de um certificado de "garantia de proveniência" para acalmar as apreensões dos seus clientes. Isto, mais do que uma reforma, é uma revolução para esta empresa imperial que, até agora, não se incomodava sequer com a ética comercial. Sob o regime do apartheid na África do Sul, a De Beers, tinha fechado os olhos ao tráfico que permitia aos aliados africanos de Pretória fornecerem-se em armas. Mas, com o advento do poder negro, das pressões dos investidores institucionais e do esforço de lobbying das ONG, o gigante sul-africano foi obrigado a sair do seu imobilismo. "A companhia teme, por parte de alguns dos seus clientes, qualquer reacção hostil dos consumidores contra os diamantes, particularmente nos Estados Unidos, primeiro mercado no mundo da vendas de jóias, como foi o que aconteceu com as peles", sublinha o especialista londrino Marco Cockle15. Uma mobilização geral por consequência, mas com que resultados? Os circuitos de branqueamento, via os países limítrofes, são bem organizados. Os libaneses na África Ocidental, belgas na região dos Grandes Lagos e israelitas na África Austral: o poder dos intermediários e a eficácia dos sistemas de contrabando são obstáculos temíveis à luta contra esta calamidade. Geralmente, os diamantes fazem sem problema uma viagem de ida e volta entre o país produtor e um paraíso fiscal, com a cumplicidade dos centros de corte dos diamantes (Antuérpia, Telavive, etc.) e dos bancos que lhes estão ligados. Assim, a Oryx domiciliou-se nas ilhas Caimão e Petra está registada nas Bermudas.

Os peritos interrogam-se sobre a natureza exacta de Oryx, cujo prospecto, entregue na Bolsa de Londres, evoca jazidas de qualidade superior. Ora a produção do Kasaï é de pobre qualidade, dita industrial, e destinada à pequena joalharia. Em Londres, murmura-se que a Oryx seria apenas uma casca vazia, destinada a branquear os diamantes angolanos, que se contam entre as mais bonitas e valiosas gemas brutas do mundo. Fonte: Marc Roche, "Comment les ‘diamants de sang’ financent les guerres africaines", Le Monde, 2 de Junho de 2000.

d. DiCaprio contra o Lobby do Diamante

Um vento de revolta assola os negociantes em diamantes. Estes homens, artistas em diamantes, estão furiosos, eles a quem as mais loucas excentricidades das suas clientes deixam indiferentes. Mas furiosos porquê? O cinema poderá prejudicar as vendas de jóias no período do natal nos Estados

15 Sobre este assunto, veja-se o artigo abaixo sobre o filme Blood Diamond.

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Unidos, ao associarem a sua profissão ao tráfico de diamantes de guerra africanos, causa de intermináveis conflitos armados e sangrentos. E a causa é o filme Blood Diamond (Diamantes de Sangue), cuja saída além-Atlântico está prevista para o início de Dezembro. Esta longa-metragem da Warner Bros., dotada de um orçamento colossal, conta a busca de um diamante cor-de-rosa de qualidade excepcional, por um mercenário sul-africano, durante a recente guerra civil da Serra Leoa.

A personagem principal desta saga tropical é o menino querido destas damas, Leonardo DiCaprio cujas aventuras se desenrolam num pano de fundo de combates bárbaros entre o Governo e os rebeldes, para proveito dos traficantes de todas as categorias. Alimentada pelo contrabando de diamantes, a guerra civil na Serra Leoa provocou 75 mil mortos, entre 1997 e 2000.

A saída do file coincide, com diferença de um mês, com a reunião do Kimberley Process, no Botswana. Esta organização internacional pouco conhecida tem como missão controlar o comércio dos diamantes a fim de proibir a circulação de pedras preciosas saídas dos países sujeitos a conflitos armados… e agrupa 69 países, produtores, transformadores, importadores e exportadores de diamantes em bruto, assim como ONG’s e a ONU.

"Diamonds are a girl’s best friend", cantava Marylin Monroe em Os Homens Preferem as Loiras. Os diamantes com que as mulheres se ornamentam, estas pedras magníficas compradas num dos prestigiosos joalheiros da Quinta Avenida ou na Place Vendôme, ter-se-ão tornado num negócio sangrento como se afirma no filme? Em todo o caso, o filme é considerado suficientemente inquietante para que os negociantes, os grossistas, os corretores e os joalheiros se mobilizem a fim de defenderem a sua imagem. "O tema dos diamantes do conflito deixou de ser actual, desde 2003. É necessário desmistificar os mitos veiculados por este filme que atinge e prejudica a natureza do nosso negócio", afirma, irritado, Eli Izhakoff, presidente de World Diamond Council, organização internacional que representa a profissão junto de Kimberley Process. Este hábil comunicador, diz-nos que a parte dos "diamantes de sangue" no mercado mundial caiu, em dez anos, de 4,7% para 0,7%. Este contrabando provém, actualmente, da Costa do Marfim e da Libéria. Apontada a dedo por Hollywood, exactamente, a Serra Leoa, viu a sua produção triplicar depois da guerra, e o sector dos diamantes abre-lhe um futuro radioso, assegura-nos Izhakoff.

A empresa De Beers, o gigante sul-africano das gemas, ofereceu 8 milhões de dólares ao lobby dos diamantes para fazer campanha publicitária contra o filme na imprensa americana: não deixemos Leonardo DiCaprio sujar todo um sector que emprega (ou de que vivem?) milhões de pessoas na África Austral e noutros sítios. Eli Izhakoff teme que aconteça o mesmo que aconteceu ao comércio de peles. A parada, em termos económicos, é enorme: o mercado americano absorve mais de metade das vendas a retalho dos diamantes polidos que se eleva globalmente a 14 milhares de milhões de dólares. Aliás, os efeitos do filme podem atingir a De Beers que voltou aos Estados Unidos depois de uma ausência de 60 anos por violação da legislação anti-trust sobre o diamante industrial.

"Tudo o que reforça a tomada de consciência do problema dos diamantes de guerra é positivo", declara, a propósito de Blood Diamond, o presidente da ONG Global Witness, que sucessivamente denuncia o tráfico de gemas que alimenta os conflitos armados. Segundo ele, as aventuras de DiCaprio sublinham a necessidade de se reforçar a vigilância da circulação dos diamantes nos nove países onde são cortados os brilhantes. A começar pela estreita 47.ª rua em Manhattan, onde são trabalhadas e polidas as maiores pedras. Num recente relatório, o General Accounting Office, o equivalente americano do nosso Tribunal de Contas, critica o laxismo das autoridades de Nova Iorque encarregadas de supervisionar os certificados de origem exigidos pelo Kimberley Process.

Primeiro mercado de negócio das pedras africanas, Antuérpia é igualmente criticado. A ONG Global Witness denuncia o tráfico clandestino de diamantes da Libéria e da Costa do Marfim transportados ilegalmente a partir dos países vizinhos e que são revendidos com toda a legalidade no porto flamengo.

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"Na África, apesar da acção internacional, fazer contrabando continua a ser um jogo de crianças. Superficial, e vítima da corrupção endémica dos Estados, o Kimberley Process é fácil de contornar graças a documentos falsificados via zonas de trânsito e de intermediários sem vergonha", diz-nos Tom Zoellner, autor da recente obra The Heartless Stone (A Pedra sem Coração) onde se mostram as lacunas dos processos de avaliação e de controle. Até hoje, somente o Congo foi excluído do Processo de importação fraudulenta de diamantes dos países vizinhos. A sua produção, essencialmente artesanal, não ultrapassa os 50.000 carats por ano enquanto as suas exportações anuais variam entre 3 a 5 milhões de carats.

O Kimberley Process, diz-se, ignora soberbamente as fugas provenientes da República Democrática do Congo, de Angola e da República Centro Africana, três dos mais importantes produtores da África Central. É que, inversamente a outras organizações internacionais, o Kimberley Process tem apenas uma base informal, sem secretariado e sem administração própria. Cada país é responsável pela aplicação das decisões tomadas em Assembleia. A presidência muda todos os anos, é encarregada da coordenação das acções: em 2007 será a vez da União Europeia, primeiro centro mundial do comércio de diamantes em bruto.

Neste contexto, a mais vasta mobilização de negociantes de diamantes que alguma vez tenha sido vista, será para enfrentar a Warner Bros. "Toda esta agitação é uma formidável publicidade gratuita para o filme", congratulou-se Leonardo DiCaprio. Face a esta tempestade, o estúdio mostra uma serenidade a toda a prova, não contestando os erros assinalados pelos negociantes em diamantes, protegendo-se de qualquer azar. Segura da sua verdade, a Warner Bros recusou aceitar o pedido da indústria de diamantes para colocar no genérico do filme que se trata de uma obra de ficção. Fonte: Marc Roche, "Leonardo contre le lobby du diamant", Le Monde, 5 de Novembro de 2006.

e. Das taxas aos senhores da guerra às receitas do governo americano: o coltan 1. O que é o coltan e para que serve

O termo "coltan" parece ser uma expressão popular oriunda desta região de África, o Congo. É o diminutivo, ou apelido, dado a um minério muito abundante nos subsolos deste território, a colombo-tantalite. O termo "coltan" faz por conseguinte referência a dois materiais distintos, a colombite (também chamada niobite, sobretudo na Europa) que vai dar o nióbio (ou nióbio) e a tantalite que vai dar o tântalo. É, contudo, habitual chamar simplesmente nióbio no primeiro caso e tântalo (tantalum) no segundo. A tantalite pura contém cerca de 80% de tântalo. Para determinar o valor de um minério de coltan é necessário conhecer o seu conteúdo em tantalite ou tântalo. Numa curta definição técnica e química do coltan, o tântalo (símbolo Ta) e o nióbio (símbolo Nb) são dois metais de transição do grupo Va da classificação periódica dos elementos e, consequentemente, têm um grande número de pontos comuns: estão quase sempre associados nos seus minérios; as suas propriedades químicas são muito vizinhas, o que torna particularmente complexa a sua separação na fase de extracção metalúrgica; pertencem ambos à classe dos metais chamados resistentes ao calor. Esta curta definição permite-nos sublinhar dois elementos centrais. Primeiro, a complexidade do processo de separação determina uma parte do processo de comercialização e, em segundo, o facto de pertencerem ambos à classe dos metais resistentes ao calor implica aplicações industriais específicas.

O tântalo é um condutor único de calor e de electricidade, facilmente maleável e muito resistente à corrosão. As suas propriedades industriais são muito procuradas e este metal revela-se

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extremamente importante para vários sectores industriais de alta tecnologia. Mais, este é o mais raro dos dois metais. Por conseguinte, é ele que é o mais procurado nesta combinação que é o "coltan".

O columbium revela-se menos lucrativo que o tântalo, em primeiro lugar devido às suas propriedades mais modestas e, em segundo, devido à existência de uma maior oferta. Permanece no entanto um material essencial para certos sectores industriais importantes como a energia, o espaço aéreo e o transporte.

Por todas as razões, daremos uma atenção mais específica ao mercado do tântalo, dado que é por causa dele que se deu a "corrida ao coltan". Sublinhemos também que o nióbio e o tântalo são considerados, cada um deles, pelo governo americano como um material "estrategicamente essencial" para certas actividades industriais e "críticas" em matéria de segurança. De resto, o exército americano detém grandes reservas de tântalo (quase 1.000 toneladas) e vários produtos feitos à base de tântalo (pó, lingotes, etc.) para apoiar, segundo parece, o esforço de guerra, ou mesmo um sector económico estruturante. De acordo com o governo americano, o coltan (por conseguinte o nióbio e o tântalo) "...is critical to the United States because of its defense-related aircraft, missiles, and radio communications... To ensure supplies of columbium and tantalum during an emergency, various materials have been purchased for the NDS". É por isso que, a pretexto dos programas de defesa, o governo vende ou compra regularmente quantidades importantes de tântalo e de nióbio. Por exemplo, Tim Raeymaekers e Jeroen Cuvelier referem que, a 8 de Dezembro de 2000, a Defense Logistic Agency (DLA) vendeu coltan por um valor de 91,3 M$ USD no London Stock Exchange, no período de alta de preços, contribuindo assim para conter a subida do preço deste minério e, ao mesmo tempo, permitindo obter algumas receitas e alguns lucros ao Governo americano. Estes autores notaram igualmente num relatório do governo americano que, em 2000, "sales of tantalum minerals from the NDS averaged about $118 per pound contained tantalum oxide". Neste mesmo relatório, refere-se que o governo americano vendeu (Government stockpile releases) 242 toneladas de tântalo.

Este tipo de programa, ou de intervenção, não é novo. Já, nos anos 50, se assistiu a este tipo de mecanismo por parte das instituições americanas. "The program, which was initiated to encourage increased production of columbium-tantalum ores and concentrates of domestic and foreign origin, largely governed the market price for tantalum ores and concentrates. It also resulted in the discovery of large low-grade domestic and foreign deposits of tantalum minerals". Este programa do governo americano, que durou uma boa parte dos anos 50, tinha justificado a compra de 6.800 toneladas de coltan, o que é considerável, sobretudo para a época. Assim, como se sublinha na nota acima, o programa primeiro tinha permitido ao governo americano "controlar" o preço deste material e, seguidamente, provocado a exploração ou a descoberta de novas fontes, estando a maior parte situada no estrangeiro. É nessa época que o governo americano tomou, sem dúvida, consciência da "sua dependência" em relação aos mercados estrangeiros na satisfação das suas necessidades de coltan. Assim, desde este tempo, que se pode imaginar o coltan a ser objecto de análises regulares e provavelmente meticulosas da sua parte. 2. A descrição do mercado do coltan 2.1. Valor comercial

Mencionemos em primeiro lugar que, ao que parece, não há cotações mundiais formais do coltan, embora o tântalo e o nióbio estejam inscritos no London Metal Board e que às vezes são transaccionados no spot market. Com efeito, a maior parte do abastecimento parece ser garantido por contratos a longo prazo (às vezes para além de 15 anos), a um preço fixo (entre 88 e 121 $ EUA o quilo), entre os extractores e os produtores. Uma segunda maneira de vender o coltan consiste em

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recorrer ao serviço de intermediários que são, com efeito, os corretores. Estes também podem concluir contratos a longo prazo com extractores e produtores. Por último, o comércio no spot market representa quase 25% da produção mundial e trata-se de uma outra opção. As duas últimas possibilidades de vendas parecem ser a norma para os fornecedores africanos. Nestas condições, o valor dos seus materiais nos mercados internos varia largamente em função do preço de venda antecipado no dia a dia pelo exportador.

Lembremos que o preço de venda na base parece ser objecto de uma grande discrição no continente africano. Contudo, de maneira global, as nossas investigações permitiram-nos elaborar um gráfico com a evolução do preço do tântalo e do nióbio de 1960 até a 2001:

Face a este gráfico, podemos compreender o frenesim provocado pelo tântalo entre 1999 e 2001. Podemos por conseguinte observar que o seu preço de venda começa a sua ascensão a partir de 1998 para disparar em 2000 e cair em 2001. Em média, para o ano 2000, a Administração americana sugere um preço de 485$ EUA o quilo (220$ EUA por libra).16

Lembremos que, na história recente, o sector mineiro representa 25% do produto nacional bruto (PNB) deste grande país de África, o que com efeito faz dele um dos sectores mais importantes, cujas receitas constituem três quartos dos rendimentos de exportação. A RDC é particularmente bem dotada em recursos minerais entre os quais se contam designadamente o diamante, o ouro, a cassiterite, o cobalto e, certamente, o coltan de grande qualidade. Apesar de uma estrutura industrial relativamente frágil no domínio mineiro, este país tornou-se um fornecedor muito importante de matérias minerais, sobretudo diamantes, cobalto e coltan. Sem a contribuição notável deste país, vários sectores industriais importantes dos países ocidentais encontrar-se-iam certamente enfraquecidos. 2.2. A rota do coltan Etapa 1: a prospecção e a extracção

O prospector sachador é um aldeão, frequentemente um antigo mineiro, e é normalmente o chefe de equipa de prospecção no processo de extracção do coltan. Verdadeiro homem de negócios, ocupa-se primeiro em pesquisar diversos locais a fim de encontrar os lugares mais vantajosos para 16 Segundo uma reportagem da Rádio-Canadá, no Natal do ano 2000, a Sony teve que enfrentar milhões de consumidores furiosos porque os seus filhos estavam eles furiosos pois uma penúria de tântalo não permitiu à Sony fabricar a sua play-station 2 em quantidade suficiente. Esta crise fez subir o preço do coltan até aos 800 dólares a libra!

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seguidamente ir negociar um acordo de "concessão" temporário com o proprietário do terreno. Este tipo de "concessão" pode cobrir uma superfície tão pequena como por exemplo 4x2 metros. Estas pequenas concessões negociam-se de acordo com as regiões e, de acordo com o valor estimado dos recursos do terreno em minério, os seus preços variariam entre 300 e 1.500$ EUA, e para um período que pode ser indeterminado. Uma vez este acordo concedido, o prospector irá recrutar a sua equipa de sachadores e tornar-se-á o chefe da equipa. O prospector sachador dispõe unicamente da sua força física e de alguns instrumentos para executar o seu trabalho (pás, barras de ferro, instrumentos artesanais, etc.). Sem meios financeiros suficientes para recrutar grandes equipas, este deve endividar-se consideravelmente para obter as concessões dos terrenos e encontrar os recursos humanos e materiais necessários a este tipo de actividades. Uma equipa de exploração é composta geralmente de alguns homens (uma meia dúzia) que oferecem os seus serviços numa base diária ou semanal. As equipas habitam em modestos abrigos temporariamente constituídos. Os métodos de prospecção do coltan, utilizados por antigos trabalhadores mineiros, são semelhantes aos utilizados para o ouro. A prospecção faz-se à pá ao longo dos riachos e dos rios, na floresta ou esburacando nas rochas. Estas actividades revelam-se relativamente arriscadas, dado que se exercem frequentemente em redor de antigos sítios mineiros extremamente mal conservados ou em redor de lugares de difícil acesso. Por isso, há frequentes acidentes. Além disso, vários elementos deixam crer que, em certas regiões, os sachadores são expostos às emanações radioactivas evidentemente muito nocivas. Etapa 2: a negociação nas aldeias

O pequeno negociante está estabelecido na aldeia. É o primeiro ponto de entrega do coltan e é ele quem paga aos chefes de equipa. Etapa 3: a negociação no centro mineiro

O negociante principal é o segundo ponto de entrega do coltan. Situado num centro mineiro ou perto de uma pista de avião, testa com mais rigor o teor de tântalo do coltan por densimetria. Este método é mais exacto que o utilizada pelo pequeno negociante e necessita do emprego de uma balança electrónica. Etapa 4: transporte regional

As agências de transporte aéreo operam ao mesmo tempo dentro da região e na cidade. Fazem a relação entre os negociantes e os balcões de compra, mas parecem sobretudo ligadas aos negociantes. Estas agências não dispõem da sua própria frota de aviões mas alugam, se necessário, aviões de carga disponibilizados por diferentes companhias estrangeiras que gravitam em redor dos aeroportos. Etapa 5: o balcão de compra

O responsável do balcão de compra é o terceiro e último ponto de entrega do coltan. Está situado nas cidades e é com ele que se assegura a exportação do coltan. Dispõe de bons contactos no estrangeiro a fim de estar bem informado da cotação do tântalo no mercado mundial (spot market), o que lhe é manifestamente útil para negociar o seu preço de compra.

Embora seja muito relativo, o exame destas primeiras etapas da produção permite-nos elaborar o quadro seguinte:

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Redistribuição do quilo do coltan na região do Kivu em USD

Actores Rendimento (USD) %

Chefe de equipa e prospector 12,00 10% - equipa de sachadores (6 indivíduos) 20,00 17% Pequeno negociante 8,25 7% - mulher (transporte) 1,5 1% - agente de investigação 1,00 1% - transporte até ao negociante principal 0,75 1% Negociante principal 15,00 13% - agências de transporte 0,75 1% Balcão de compra 12,00 10% Rendas públicas (RCD) 8,66 7% Militares 2,56 2% - taxas de passagem diversas 10,00 8% Outros (proprietários dos terrenos, outras "rendas públicas", etc.) 26,53 22% Valor aproximado do kg do coltan antes da expedição, 12/2000 119,00 100%

Como se mostra neste quadro, a RCD e as suas milícias (as taxas para os senhores da guerra)

obtêm 17% do valor do coltan (7%+2%+8%). Além disso, vários balcões de compra estavam sobre controlo e este exigia várias autorizações e outros papéis para deixar passar o coltan. De relembrar que no período da alta de preços, a ONU reconhecia que 70% do coltan ia para o Ruanda! Etapa 6: o transporte internacional certamente

A etapa seguinte consiste em fazer "sair" o coltan do país. Observam-se dois modos de transporte, ou seja, o transporte marítimo e o transporte aéreo. Contudo, a documentação parece atribuir maior importância ao transporte aéreo, porque é provavelmente o mais utilizado. É por conseguinte nesta etapa que grandes companhias aéreas ocidentais, como a extinta Sabena, são formalmente implicadas na rota do coltan. Partirão da RDC ou dos países vizinhos como o Uganda e o Ruanda para se dirigirem para a Europa (sobretudo a Bélgica), para a Ásia ou para os Estados Unidos. Etapa 7: as agências de corretagem internacionais

Os corretores internacionais são os agentes de ligação entre os exportadores e as indústrias metalúrgicas. Compram o coltan e vendem-no aos industriais. Os corretores não são levados a cobrir os seus riscos com técnicas de cobertura caras como os contratos "hedge". Muitos deles são também filiais das grandes holdings do sector mineiro. 3. Conclusão

Nesta parte final, procuremos elementos de respostas para as seguintes perguntas: quem se aproveita realmente da exploração do coltan? Quais são os actores predominantes deste mercado? Quem dispõem de bastante influência para orientar o mercado num sentido ou noutro?

Mais precisamente, tentemos identificar os actores que se aproveitam do coltan em geral, os que aproveitaram a grande subida de preço e os que têm um poder evidente no mercado. Quando lemos a nota anterior do EUA, Department of the Interior, pela primeira vez, uma pergunta extremamente simples nos veio à cabeça: como é que uma escassez de coltan podia ser problemática,

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ou mesmo crítica? De que tipo de emergência se falava? Apesar de tudo, não se trata de petróleo ou géneros alimentícios! Imaginem, por momentos, que há escassez de coltan aos Estados Unidos: o que pode acontecer? Duas hipóteses nos parecem possíveis: em primeiro lugar, uma contracção de dois sectores industriais importantes para a economia americana — as comunicações e a electrónica —, e um sério quebra-cabeças para certos industriais. Situação extremamente problemática para a economia americana, mas que dificilmente poderia ter o rótulo de "emergency". Obviamente, é necessário avaliar outra hipótese e é certamente do lado (ou em nome) da segurança nacional que esta interrogação pode encontrar os elementos de resposta. Com efeito, o Governo americano admite que "many of the applications for tantalum are either directly or indirectly defense related…"

Observemos no esquema seguinte as ligações entre o coltan e a Defesa Nacional dos Estados Unidos.

Este esquema permite perspectivar o que uma escassez de coltan poderia provocar num sistema de defesa caracterizado pela elevada tecnologia, pelas comunicações e pela inovação. Vistas sob este ângulo, as classificações de "emergency, strategical e critical" tomam então certo sentido e os esforços realizados pelo governo americano para assegurar um certo controlo deste recurso são pouco surpreendentes. Em contrapartida, parece que o que é considerado formalmente como da esfera da segurança nacional pode às vezes deixar transparecer interesses económicos diversos. No que é que a venda de 91,3M$ EUA de coltan no London Stock Exchange, em plena alta de preços, contribuiu para a segurança nacional dos Estados Unidos? Assim, além de deter de um poder

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regulador deste recurso, como ele mesmo o reconhece, parece que o governo americano beneficiou de rendimentos substanciais aquando da grande subida do preço do coltan — talvez mais que o governo congolês e as comunidades que vivem sobre o seu território. Além disso, é provável que a compra de coltan africano por parte da Administração americana e das suas firmas se tenha feito no período de tensões mais elevadas na zona dos Grandes Lagos. Para além de estas constatações, sublinhe-se que o teor em tântalo do coltan é extremamente variável, mas que o da região do Kivu (RDC) pode ser um dos mais elevados no mundo e que a RDC consiste numa das fontes de extracção de tântalo das mais importantes do mundo (sem nenhum consumo próprio) e, mais, que os grandes consumidores de coltan (Estados Unidos, Europa) não detêm nenhuma reserva. No entanto, a RDC não parece aproveitar realmente o coltan e detém muito pouco poder sobre este mercado, para além do facto de ser um grande fornecedor. Ao invés, os Estados Unidos e a Europa graças aos seus mercados internos e aos poderes das suas estruturas aproveitam-se largamente do coltan.

A análise da situação mostra que os principais circuitos ocidentais parecem relativamente restritos, que a economia financeira é muito lucrativa e que os actores da produção são pouco numerosos. Aqui é sempre útil relembrar Galbraith: "é imediato que o regulador impessoal da concorrência deixa de funcionar a partir do momento em que as grandes empresas anónimas põem a mão na actividade económica. Passamos então a encontrarmo-nos em face de um mercado oligopolista que se apropria do poder de fixar os seus preços e de o regular ele próprio para o máximo dos seus interesses". É claro que o poder no seio desta fileira está nas mãos de um pequeno número de actores privados e, por vezes, nas mãos de Estados, particularmente dos Estados Unidos, sem que, no entanto, se possa resumir a situação a uma interacção entre Estados e mercados. As instituições, a finança, a sociedade civil, as máfias, e muitas outras entidades, parecem possuir alguma autoridade no seio desta fileira. Elas interagem no seio de uma dinâmica particular, fruto de forças sociais que, de modo nenhum, fazem qualquer referência a uma ordem natural. Estes arranjos são o resultado de decisões humanas tomadas no quadro de instituições e de um conjunto de regras e de práticas por elas construídas. Esta fileira parece, pelo contrário, articular-se num processo incrivelmente contraditório. Ela permite aos humanos "ultrapassarem-se", fazer recuar os limites da inovação, conquistarem o espaço e de comunicar a um nível nunca antes conseguido. Apesar destas qualidades tão nobres, esta fileira gera numerosas calamidades, uma das quais consiste em estar no centro de uma das mais importantes cruzadas. Deste modo, a fileira é fonte de "segurança" para alguns e ela permanece fatal para outros e constitui, no fim de contas, um produto do nosso tempo.

Fonte: Grama, Groupe de Recherche sur les Activités Minières en Afrique, UQAM (com a colaboração especial de Patrick Martineau), La route commerciale du coltain congolais: une enquête, Facuklté de Science Politique et de Droit, Maio de 2003.

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IV. A política do Banco Mundial no Congo

O Congo transformado em estações de "auto-serviço" de minérios

Magros, com o rosto branqueado pela poeira, os mineiros cantam com uma voz forte: "Esta terra é a dos nossos antepassados, o seu cobre é nosso." Gritando, homens e crianças cercam as delegações situadas em Ruashi, perto de Lubumbashi, na República Democrática do Congo (RDC). "Os trabalhadores Mwambe Kataki, Remy Ilunga e Pedra Kalume, homens anteriormente empregados na potente Gecamines (1) e reconvertidos em artesões menores ("sachadores") asseguram, em nome dos seus camaradas, que não serão desalojados. Propõem-se mesmo barrar a estrada às grandes sociedades que, após os anos de guerra, retornam ao Katanga (ou Shaba) por causa das privatizações incentivadas pelo governo de Joseph Kabila. Do mesmo modo, no Kivu, antigos trabalhadores de Kamituga ameaçam a sociedade canadiana Banro de impedirem a retoma da produção, e de criarem distúrbios na mina de Quilo-Moto, no Ituri. Com efeito, as grandes sociedades contratarão apenas um pequeno número de trabalhadores qualificados, e as novas condições de investimentos libertam-nas de qualquer obrigação social. Quanto ao Estado congolês, não terá certamente os meios para reconverter os desempregados.

Esperando que Ruashi Mining, uma sociedade sul-americana, ocupe os seus bairros no sítio de Ruashi, guardado e cheia de arames farpados, está a mina a céu aberto que apresenta uma decoração lunar, crivada de buracos e crateras. Armados apenas com a sua picareta, homens rasgaram galerias, nas quais se metem as crianças; uns escavam, os outros separam o minério e escondem-no em sacos. Ligeiramente mais distantes, semi-reboques preparam-se para chegar à fronteira zambiana com os seus carregamentos de matéria bruta. Uma parte de heterogenite, minério misto onde se misturam o cobre e o cobalto, é tratada no local por pequenas sociedades que exploram fornos artesanais. Após um primeiro tratamento, o cobalto e o cobre irão, sempre em camiões, para a África do Sul ou para o porto de Dar-es-Salam (na Tanzânia), onde os esperam os cargueiros chineses...

O presidente da Câmara Municipal de Lubumbashi, Floribert Kaseba, sublinha que, pelo contrário, na capital, não se vêem nem mendigos nem crianças na rua. Todos trabalham... É certo, mas em que condições! A maior parte dos setenta mil "sachadores" do Katanga não chega a ganhar 1 dólar por dia... E se os mineiros criaram uma mútua, a Empresa Mineira Artesanal do Katanga (EMAK), é para poderem financiar as suas despesas de funerais, porque os desabamentos fazem numerosas vítimas. A exploração mineira representa 74% das exportações do RDC e ocupa, de maneira informal, 950 mil trabalhadores, contra apenas 35 mil no sector "formal".

Para compreender os temores actuais dos mineiros congoleses, é necessário recordar-se que o Zaire do marechal Joseph Mobutu tinha conservado as estruturas coloniais, onde as grandes sociedades de Estado, como o Gecamines ou a Mineira de Bakwanga (MIBA) no Kasaï, geravam o essencial das divisas do país. Mas, no Zaire pós-colonial, estas grandes firmas também tinham herdado uma tradição algo protectora: eram obrigadas a assegurarem aos seus trabalhadores e às suas famílias o alojamento e o acesso gratuito aos cuidados médicos, vantagens que reforçavam o sentimento de pertença à empresa. A privatização tudo transformou: as grandes empresas de Estado foram desmanteladas, e os seus sucessores pretendem fazer tábua rasa do passado e das suas obrigações.

O que se passou a chamar "carnaval mineiro" do Congo desenvolveu-se em várias etapas, e a última não será talvez a mais cruel. Nos anos 1990, no final do reinado de Mobutu, o primeiro-ministro Léon Kengo wa Dondo, já preocupado com as prescrições do Banco Mundial, tinha começado a privatizar, em particular, as empresas mineiras com o objectivo de encher os cofres do

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Estado para poder pagar a sua dívida externa. Em Maio de 1995, quando começou o desmantelamento do Gecamines e a privatização das outras sociedades de Estado, as grandes companhias mineiras puseram-se a caminho do Congo: a canadiana Lundin, Banro, Mindev, a belgo-canadiana Barrick Gold, a australiana Anvil Mining, as sul-africanas Genscor e a Iscor. Contudo, o país estava instável, “as majors” preferiram permanecer na rectaguarda: logo que a guerra se desencadeou em 1996 — provocando sete meses mais tarde a queda do regime Mobutu — enquanto “as juniors” ocuparam o terreno, tratando directamente com os movimentos rebeldes e reservando a possibilidade de revenderem os seus títulos ulteriormente. É assim que Laurent-Désiré Kabila encontrou junto da American Mineral Fields, da sociedade australiana Russel Recursos e da Ridgepointe Overseas, do Zimbabué, os meios para financiar a sua guerra e seguidamente relançar o aparelho político-administrativo, em troca de acordos em três zonas da Gecamines, nas jazidas mineiras de Mongbwalu, no distrito do Ituri, e nos entrepostos comerciais de diamantes em Kisangani.

A euforia não durou sempre: no dia seguinte ao da sua chegada ao poder, em Maio de 1997, Kabila não se satisfez em criar as distâncias relativamente aos seus aliados ugandeses e ruandeses — que se cobravam bem por estar no país; ele exprimiu a sua vontade de pôr em causa os contratos mineiros, desejando que, tal como antes, os recém-chegados pagassem as obrigações sociais em relação aos seus trabalhadores. Acrescentando-se a isto as condições de segurança, esta atitude julgada ingrata e radical estará na origem da "segunda guerra", iniciada em 1998. Com a aprovação dos Ocidentais, o Ruanda e o Uganda procuram então expulsar o seu antigo aliado e defrontam-se não somente com a resistência da população mas sobretudo com a intervenção de Angola e do Zimbabué, cujos exércitos defendem Kabila. O território congolês encontra-se dividido em quatro territórios autónomos, administrados pelo Governo central e por três grupos rebeldes, sendo os mais importantes os RCD-Goma (Rassemblement Congolais pour la Démocratie, apoiado pelo Ruanda) e o Mouvement de la Libération du Congo (MLC), criado com o apoio do exército ugandês. O Governo central e os rebeldes deviam financiar as suas operações militares e retribuir as intervenções dos países aliados. As quatro regiões, doravante separadas, passaram a funcionar então como se fossem estações de "auto-serviço", onde se cruzam as redes mafiosas de todas as origens que exploram o ouro, o cobre, a colombotantalite (o famoso coltan, que entra na composição dos telefones portáteis), a madeira, o diamante.

Estes predadores satisfazem-se em pagar taxas aos senhores da guerra que detêm, na realidade o poder e, se for necessário, fornecem-lhes as armas. Escândalo humanitário (três milhões e metade de vítimas civis) e político, este drama, que no início não interessa a muita gente, é também um enorme desperdício económico. Com efeito, desde o início de 2000, enquanto a procura de coltan começa a reduzir-se e a exigência de certificados de origem do diamante se impõe gradualmente, a procura mundial está em crescendo no que respeita ao cobre, ao cobalto, ou mesmo ao urânio, cujos preços estão em alta devido ao crescimento chinês e às necessidades da Índia. Ora, a exploração destes minérios exige investimentos pesados e de longo prazo, o que supõe um ambiente político relativamente estável. Resumidamente, o tempo das aldrabices não pode continuar e, por outro lado, a indústria mineira sul-africana (com muitos novos capitalistas negros) considera que a África Central, e mais particularmente a cintura de cobre do Katanga, representa a sua zona de expansão natural.

As pressões internacionais acentuam-se sobre os beligerantes congoleses e os seus aliados respectivos, que acabarão por se reunir na cidade sul-africana de Sun City e por assinarem, em 2003, os acordos que prevêem a retirada dos exércitos estrangeiros, a reunificação do país e um período de transição de dois anos que, finalmente, se alongará por mais três anos para terminar a 30 de Junho de 2006. Para a "comunidade internacional" (ou seja, para os grandes países ocidentais mais a África do Sul), sempre muito presente, trata-se sobretudo de legitimar e estabilizar o poder existente a fim de

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permitir a retoma da economia e a reconstrução do país. Para a população congolesa, que vê serem-lhe propostas as primeiras eleições realmente livres desde há quarenta e seis anos, trata-se, por último, de sair de um sistema de cooptação das elites...

Enquanto as eleições legislativas e a primeira volta da eleição presidencial é anunciada para meados do Verão de 2006, o balanço da transição começa a ser efectuado. Numerosos relatórios organizados por associações internacionais sublinham até que ponto a pilhagem dos recursos continuou após o fim das hostilidades em 2003. Esta constatação, sendo relevante, negligencia uma evidência: apesar das afirmações de princípio, os acordos de Sun City não tinham como primeiro objecto a democratização e a gestão dos recursos, mas sim de pôr fim à guerra, de incitar as tropas estrangeiras a deixarem o país e a permitirem a substituição dos circuitos mafiosos por operadores económicos mais estáveis mas não necessariamente menos ávidos.

Na lógica política que não se confunde com a moral, os acordos de Sun City acabaram por favorecer mais os senhores da guerra do que a "sociedade civil" e a antiga classe política. Detestada pela população, que nisso via um prémio à impunidade, a fórmula "um+quatro" foi adoptada: o presidente Joseph Kabila, que tinha sucedido ao seu pai após o assassinato deste último em Janeiro de 2001, aceitou partilhar o poder com quatro vice-presidentes, saídos das facções rebeldes, da oposição política e da "sociedade civil". É assim que se vê o vice-presidente Jean-Pierre Bemba, um antigo homem de negócios, acusado pelos peritos das Nações Unidas de ter pilhado os bancos e as colheitas de café da região do Equador, tornar-se presidente da comissão dita de "Economia e Finanças", enquanto outro ex-rebelde, Azarias Ruberwa, cujas tropas ligadas às do exército ruandês cometeram no Leste do país massacres em grande escala, obtém o sector da defesa e da segurança.

A reunificação rápida do país demonstra até que ponto a guerra foi impulsionada do exterior e até que ponto o sentimento de pertença nacional permanece uma realidade. Contudo, o sucesso poderá ser unicamente superficial. Com efeito, cada um guardou as suas melhores forças em reserva, e as tropas do novo exército nacional, poucas ou mal pagas porque os ordenados são desviados, vivem frequentemente às custas da população. A fim de conter eventuais abusos, as Nações Unidas pediram e depois autorizaram o reforço de uma força europeia de dois mil homens que deveria ajudar os dezassete mil e quinhentos capacetes azuis que já lá estavam.

Após a reunificação, já com alguma dinâmica, alguma capacidade, o Estado está, a partir de agora, encarregado de assegurar um mínimo de segurança física e jurídica aos investidores no sector mineiro. Mas este Estado, saindo de uma guerra e atravessado de contradições, está ainda muito enfraquecido; durante a transição, não foi capaz de recusar as cláusulas leoninas impostas pelas firmas privadas. O desbaratar dos recursos naturais não terminou, por conseguinte, com o fim da guerra, apenas se alterou a sua natureza. Os membros da Assembleia Nacional, não eleitos, foram encarregados de redigir um código mineiro bem como um código florestal, cujos termos muito liberais foram ditados pelo Banco Mundial e que abrem claramente a porta aos interesses privados, reduzindo, ao mesmo tempo, ao mínimo as obrigações destes. É assim, por exemplo, que o Banco Mundial orientou a reestruturação de Gecamines. Antes que a empresa "seja vendida por fracções", dez mil e quinhentos trabalhadores foram despedidos e recebem indemnizações que vão de 1.900 dólares à 30.000 dólares17. Mas estas somas foram consagradas a reembolsar dívidas ou absorvidas

17 De facto, estas somas podem parecer consideráveis, mas os contratos e as convenções existentes davam aos trabalhadores o direito a uma indemnização total de um montante de 125 milhões dólares em vez dos 43 milhões do Banco Mundial. Lembremos que muitos trabalhadores tinham, desde há muito tempo, salários em atraso e portanto muitas dívidas a pagar e que pós o seu pagamento ficaram praticamente sem nada. Assim se percebe a fragilidade da política do Banco Mundial. Adicionalmente, os trabalhadores perderam ainda os direitos aos raros serviços sociais que lhes eram prestados. Veja-se: "L’Etat contre le peuple. La gouvernance,

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por despesas a curto prazo. Estes trabalhadores, doravante privados de qualquer rede de segurança social, operam no sector informal onde as firmas procuram substituí-los por máquinas, contratando apenas um mínimo de trabalhadores qualificados.

O Congo atribuiu importantes exonerações fiscais a várias sociedades mistas, que se estendem por períodos de quinze a trinta anos. A maior parte delas pagou, em 2004, apenas 0,4 milhão de dólares de impostos... No sector do diamante, a situação não é melhor: a MIBA foi despojada de 45% dos seus activos em proveito do Sengamines, uma sociedade mista do Congo e do Zimbabué. Além disso, se a aprovação da nova Constituição em Dezembro de 2005 por 85% dos eleitores é uma proeza neste país privado de estradas e de outros meios de comunicação, ela representa também um sucesso para os que se propõem limitar as prerrogativas do Estado: esta divide o país em vinte e seis províncias e partilha os recursos à razão de 60% para as autoridades de Kinshasa e 40% para as autoridades provinciais. Visa descentralizar os recursos, mas a autonomia concedida aos governos provinciais corre o risco igualmente de aumentar a corrupção a nível local. O novo poder, doravante legitimado e confortado terá ele a coragem de se libertar dos elementos mais duvidosos que o rodeiam, dos conselhos pouco desinteressados da "comunidade internacional"? Terá a audácia de pôr em causa os actuais acordos mineiros?

Fonte: Colette Braeckman, "Le Congo transformé en libre-service minier", Le Monde Diplomatique (França), Le soir (Bélgica), Julho de 2006.

l’exploitation minière et le régime transitoire en République démocratique du Congo", Institut néerlandais pour l’Afrique australe (NIZA), Amesterdão, 2006 (N. do T.).

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3ª PARTE

Mensagem

de

Mandela

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Nelson Mandela

Luto pela justiça e pelos direitos humanos desde há muito tempo. Agora, retirei-me da vida

pública, mas enquanto a injustiça e a desigualdade durarem, nenhum de nós poderá estar descansado.

Devemos tornarmo-nos ainda mais fortes

O meu desejo é que esta distinção possa ajudar os militantes em toda a parte do mundo a

manterem uma luz de esperança para os prisioneiros esquecidos da pobreza. Como a escravatura ou

o Apartheid, a pobreza não é um dado natural. São os homens que criam a pobreza e a toleram, são

também os homens que a hão-de vencer. Vencer a pobreza não é um gesto de caridade. É um acto de

justiça. Trata-se de proteger os direitos humanos fundamentais. Qualquer pessoa, em qualquer a

parte no mundo, tem o direito de viver em dignidade, livre de qualquer medo e de toda e qualquer

opressão, liberta da fome e da sede, e livre de se exprimir e de se associar-se como o entender.

Contudo, no início deste novo século, milhões de pessoas continuam prisioneiras, escravas e

acorrentadas. A pobreza maciça e as desigualdades são as terríveis calamidades do nosso tempo - à

uma época onde o mundo se orgulha pelos progressos espantosos realizados nos domínios da

ciência, da tecnologia, da indústria e da acumulação de riquezas. Enquanto persistir a pobreza, não

haverá verdadeira liberdade.

As populações pobres são as que têm menos acesso ao poder de modo a poderem determinar

as políticas vir que vão determinar o seu futuro. Mas têm direito a ter voz. Não se deve querer que

estejam sentadas, em silêncio, enquanto o "desenvolvimento" se produz à sua volta, à sua custa. O

verdadeiro desenvolvimento é impossível sem a participação das pessoas em causa.

”O que eu gostaria de chegar a ver era um ambiente em que os jovens tenham uma

possibilidade real de desenvolver as suas próprias capacidades para criarem um vida melhor para si

mesmos. É disto que se trata quando se fala de desenvolvimento”.

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