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LIGIA CRISTINA CARVALHO O AMOR CORTÊS E OS LAIS DE MARIA DE FRANÇA: um olhar historiográfico ASSIS 2009

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LIGIA CRISTINA CARVALHO

O AMOR CORTÊS E OS LAIS DE MARIA DE

FRANÇA: um olhar historiográfico

ASSIS 2009

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LIGIA CRISTINA CARVALHO

O AMOR CORTÊS E OS LAIS DE MARIA DE FRANÇA: um olhar historiográfico

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História. (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Ruy de Oliveira Andrade Filho

ASSIS 2009

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Carvalho, Ligia Cristina C331a O amor cortês e os Lais de Maria de França: um olhar his- toriográfico / Ligia Cristina Carvalho. Assis, 2009 186 f. il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.

1. Amor Cortês. 2. Literatura medieval. 3. Poesia francesa- Séc. XII. 4. História social – Idade Média, 500 – 1500. I. Título.

CDD 809.02 940.1

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Aos meus pais Maria Helena e Teofredo

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AGRADECIMENTOS

É difícil listar e agradecer em poucas linhas todos aqueles que contribuíram para a

realização deste trabalho. Desde já, peço desculpas àqueles que não foram mencionados.

Primeiramente, agradeço o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico

e Tecnológio) pelo auxílio financeiro. Para me acompanhar nessa jornada, contei também

com a orientação, com a amizade e a atenção do professor Ruy que, com uma sutileza

inigualável, fez-me uma amante da Idade Média, propondo o estudo do amor cortês.

Agradeço igualmente a professora Maria Lúcia pelo carinho e pelos momentos agradáveis que

pude passar ao seu lado. À professora Ana Paula e ao professor Milton, agradeço pelas

contribuições feitas na ocasião da qualificação que ajudaram no enriquecimento deste

trabalho.

Agradeço as velhas amigas Daniele, Juliana, Mariane e Renata, que souberam

compreender minhas ausências e, embora não participando diretamente deste trabalho, sempre

tiveram os ouvidos atentos para as minhas inseguranças, meus entusiasmos; amizades antigas

e eternas. A Renata, em particular, agradeço as correções gramaticais que pedia a ela em

momentos inoportunos.

Aos companheiros do NEAM (Núcleo de Estudos de História Antiga e Medieval), em

especial, ao João, à Pámela e à Raquel agradeço por terem cruzado meu caminho, tornando-o

mais florido e gostoso de percorrer: com certeza, sem vocês, essa dissertação não seria a

mesma; amizades sinceras.

Agradeço ao Lucas e aos novos amigos da pós-graduação, que sempre me arrastaram

para um chopp, sempre diziam “vamos fazer um rock”, afirmando que isto faz parte do

mestrado e ajuda a assentar as idéias - ainda não entendi como, mas de fato ajudou.

Agradeço aos meus tios, primos e avós. Em especial, à minha avó Alice que, apesar do

pouco estudo, nunca questionou minha escolha, a pesquisa, e me tornou beneficiária de sua

sabedoria de vida. Ao meu irmão, estranhamente agradeço sua ausência e por se orgulhar

tanto de mim.

Ao meu amado companheiro e amigo Rodrigo, agradeço pela paciência e por estar

sempre ao meu lado, incentivando-me, segurando-me para não cair e me levantando quando o

tombo era inevitável. Agradeço pelo silêncio, por entender meus acessos de cólera, por

escutar as idéias surgidas de minuto à minuto. E, claro, por sua preocupação em me fazer

relacionar teoria e método com a fonte. Espero ter atingido suas expectativas.

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Por fim, não encontro palavras para expressar meus sinceros agradecimentos aos

meus pais, Maria Helena e Teofredo, que sempre acreditaram em mim, nos meus sonhos, nas

minhas decisões. Sem seus incentivos, carinho e compreensão, nada na minha vida teria sido

possível. A eles dedico este trabalho.

Ligia Cristina Carvalho

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Se não é amor, o que é isso que sinto Mas se é amor, por Deus, que coisa é tal qual Se é bom, por que é áspero e mortal Se é mau, por que é doce seu tormento Se ardo por gosto, por que me lamento Se a meu pesar que vale tal pranto Oh, viva a morte, ou o deleitoso mal Por que podes em mim se não o consinto E se consinto, é erro queixar-me Entre contrários ventos vai minha nave Que em alto-mar me encontro sem governo Tão leve de saber, tão grave de erro Que não sei o que quero aconselhar-me E se temo o verão ardo no inverno.

Petrarca

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RESUMO

Durante a Idade Média Central (XI-XIII), mais precisamente na segunda metade do

século XII, foram produzidos os Lais de Maria de França, escritos literários que abordam o

amor cortês. Apesar de fazerem parte das literaturas de divertimento da corte, os Lais são um

tipo específico de registro histórico acerca da sociedade aristocrática medieval. Propomo-nos

neste trabalho, por meio de uma análise centrada na temática do amor cortês presente nesta

fonte, refletir sobre a construção de uma nova representação mental de amor. Neste mesmo

sentido, respeitando a especificidade da fonte, buscaremos apreender as realidades sociais e o

imaginário medieval, tentando compreender de que maneira Maria de França retrata a

sociedade de seu tempo, com seus preceitos e interdições, ao mesmo tempo, reafirmando

certos valores e insurgindo contra outros.

Palavras-chave: Amor Cortês, Literatura Cavaleiresca, Idade Média Central.

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ABSTRACT

During Central Medium Age (XI-XIII), exactly at the second half of XII Century, Lais

de Marie de France were written, literary writings which discuss the Courtly Love. Although

they are considered funny literature of the court, Lais are a specific history record about

medieval aristocratic society. This work intends to reflect about the construction of a new love

mental representation, according to analyses about the Courtly Love found in this source. The

same way, respecting the source specificity, we will try to understand the socials realities and

the medieval imaginary, trying to comprehend how Marie de France presents the society of

that time, with the precepts and interdictions, reaffirming such values and, at the same time,

rebelling against others.

Key words: Courtly Love, Chivalrous Literature, Central Medium Age.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................ 10

Capítulo I: Seguindo o rastro dos Lais ................................................................. 17

1. Buscando Maria de França e os Lais ............................................................... 18

2. Contexto histórico e “Renascença do século XII” ........................................... 34

3. Roman e seu núcleo difusor ............................................................................. 41

Capítulo II: O amor cortês e os Lais de Maria de França .................................... 51

1. Entre o sagrado e o profano ............................................................................. 52

2. Entre o livre e o condicionado ......................................................................... 71

Capítulo III: O “cavaleiro” ................................................................................... 91

1. Nobreza Cavaleiresca........................................................................................ 92

2. Juvenis............................................................................................................. 112

Capítulo IV: A “Dama”.......................................................................................128

1. Misoginia medieval..........................................................................................129

2. Revalorização da mulher?................................................................................160

Conclusão.............................................................................................................182

Referências ......................................................................................................... 187

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Introdução

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Os Lais de Maria de França, escritos literários do século XII, são uma importante fonte

para estudo historiográfico, pois por meio da perspectiva aberta pela Nova História Cultural

que, herdeira de Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel dentre outros, ampliou o

campo de trabalho dos historiadores, propondo novos objetos, novas problemáticas e novas

abordagens, relatados em três livros organizados por Jacques Le Goff e Pierre Nora1 que, para

além de um balanço, apresentam-se como um manifesto desta nova história. Dentro desta

perspectiva, houve uma “revolução documental”, caracterizada pela multiplicidade:

[...] escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de primeira ordem.2

Lucien Febvre, em especial, e outros ainda antes dele, já havia manifestado sua

propensão à análise de fontes literárias como um tipo específico de registro histórico. Logo,

decidimos trabalhar com os Lais de Maria de França, primeiramente por considerá-los uma

importante fonte de estudos historiográficos acerca da sociedade aristocrática medieval e, em

segundo plano, por sua beleza literária caracterizada pela dramaticidade de seus personagens,

pela exuberância de seus versos e pela delicadeza e profundidade das declarações amorosas.

Como fonte primária básica, utilizamos a edição bilíngüe (francês arcaico-francês) de

Laurence Harf-Lancner3 e, servimo-nos também da edição bilíngüe (francês arcaico-espanhol)

de Luis Alberto de Cuenca4 e da tradução para o português de Antônio L. Furtado5.

Entretanto, todos os versos citados em língua portuguesa neste trabalho, foram traduções

nossas, visto que, optamos conservar, na medida do possível, a forma e o conteúdo - a versão

de Laurence Harf-Lancner ainda que conserve os versos, adapta o conteúdo, as outras duas

versões mesmo assemelhando-se, em boa parte, ao texto original, não mantiveram a forma,

transcrevendo em prosa.

Os principais obstáculos que encontramos durante a tradução dizem respeito ao

vocabulário, devido às mudanças de sentido de algumas palavras, tal como a palavra ami:

1 LE GOFF, J; NORA, P. (Dir). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. LE GOFF, J; NORA, P. (Dir). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. LE GOFF, J; NORA, P. (Dir). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 2 LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (Dir) A História Nova. Trad. Eduardo Brandão. 5o ed. São Paulo: Marins Fontes, 2005. p. 36-37. 3 MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. 4 MARIA DE FRANCIA. Lais. Edicion bilingüe francês-espanhol preparada por Luis Alberto de Cuenca. Madrid: Editora Nacional, 1975. 5 MARIA DE FRANÇA. Lais. Introdução e tradução de Antonio L. Furtado. Prefácio de Marina Colasanti. São Paulo: Editora Vozes, 2001.

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ainda que amistié sublinhasse o apoio esperado de próximos que possuem interesses

semelhantes, dos laços institucionais ou políticos, tendo uma dimensão social, ami carregava

conotações afetivas, sentimentais e sexuais, podendo significar tanto “amante” como

“namorado”. Neste caso, procuramos manter o termo; entretanto, quanto aos nomes próprios,

baseando-se na tradução de Antônio L. Furtado, substituímos aqueles para os quais existem

formas portuguesas.

Apesar de nos arriscarmos no campo lingüístico (mais especificamente o da tradução),

nosso objetivo consiste, evidentemente, em abordar os Lais como um “documento” portador

de informações de cunho histórico. Os escritos literários podem não ser um retrato fiel da

sociedade da qual eles partem e da qual eles se referem, entretanto, esses escritos, assim como

outras fontes medievais, têm o mérito de demonstrar a sociedade a seu modo, fornecendo,

muitas vezes, uma imagem realista da mesma. Ainda que enquadrado no campo da ficção6 - o

que gerou, e ainda gera, muita desconfiança acerca do seu valor como documento histórico - a

literatura está calcada na realidade, reflete os anseios da época na qual foi produzida e, ao

influir sobre a conduta de seus receptores, por ser um poderoso meio de formulação e difusão

de ideologia7, age sobre esta realidade histórica. Como afirma Georges Duby, a literatura do

século XII representa o que a sociedade quer e deve ser, portanto, para além de divertir,

propunha imagens exemplares8.

Assim sendo, respeitando a especificidade da fonte, buscamos apreender as realidades

sociais e o imaginário medieval, tentando compreender de que maneira Maria de França

retrata a sociedade do seu tempo, com seus preceitos e interdições, , reafirmando certos

valores e, ao mesmo tempo, insurgindo contra outros.

Como procuramos demonstrar no primeiro capítulo, as informações a respeito da

autora são escassas, não possuímos obras sistemáticas e específicas, principalmente no que se

refere à produção historiográfica brasileira. Recorremos, portanto, aos artigos presentes nos

periódicos franceses e ingleses que, não obstante, apresentam muitas controversas e lacunas

6 Vale destacar que a palavra ficção vem da palavra latina fingere, que significa remodelar. 7 Estamos utilizando o conceito de ideologia dado por Georges Duby, o qual a entende, tal como o faz Louis Althusser, como “um sistema (possuindo sua lógica e rigor próprios) de representação (imagens, mitos, idéias ou conceitos, segundo a ocasião) dotado de uma existência e de um papel histórico no seio de uma dada sociedade”. Duby também coloca que coexistem vários sistemas de representações concorrentes numa determinada sociedade. Apesar de vários traços comuns que aproximam essas ideologias, umas se apresentam como as imagens invertidas das outras. Para exemplificar este fato o autor utiliza-se do amor cortês, que aparece “como uma inversão quase maliciosa das relações afetivas vividas no seio das linhagens e das companhias vassálicas, e nas novas formas de devoção à Virgem”. DUBY, G. História social e ideologias das sociedades, p.132. In: LE GOFF, J; NORA, P. (Dir). História: novos problemas. Op. Cit. p.130-145. 8 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 11.

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que ainda não foram preenchidas devido às poucas informações sobre a autora, estas, por

sinal, retiradas de seus supostos escritos. Baseado nisto, procuramos decifrar quem poderia ter

sido Maria de França e qual o contexto social no qual o aspecto da sua cultura se modelou,

tentando entender sua visão de mundo presente nos Lais.

Naturalmente, não poderíamos deixar de incluir o que foram os lais - colocado aqui

com letra minúscula por se referir aos cantos presentes na tradição oral – que, segundo Maria

de França, foram transcritos na sua obra, tornando-se assim necessário a não menos pertinente

discussão acerca da oralidade, da cultura escrita, da memória e das expressões formulares.

Buscando ainda entender os Lais de Maria de França, descrevemos o contexto

histórico e a chamada “Renascença do século XII” que, dentre outras coisas, propiciaram o

desenvolvimento da literatura cavaleiresca da qual esta fonte faz parte. Durante a Idade

Média Central (XI-XIII) ocorre o emergir da literatura vernácula. Devido a isto, tornou-se

necessário discutir a dicotomia, tão marcante neste período, entre a “língua erudita” – o latim

– e a “língua vulgar” que ganhou na Idade Média o designativo “românica”. Ora, por romance

também ficou conhecida a narrativa de uma sucessão de aventuras, tal como era a literatura

cavaleiresca e, conseqüentemente, os Lais que, ainda que contando com elementos da

realidade, eram adornados com a presença do extraordinário e do sobrenatural.

Por fim, acabamos este primeiro capítulo discorrendo sobre a formação do “Império

Angevino” com Henrique II Plantageneta, e seu destaque na difusão da literatura cavaleiresca,

tendo em vista que Maria de França provavelmente escreveu em uma das cortes deste rei.

Percebe-se que a fonte escolhida dita certos limites temporais e espaciais, assim o

núcleo temporal da pesquisa é o século XII, tanto por ser o período de literalização dos Lais

quanto por ser o momento da formação da literatura ou ainda da cultura cavaleiresca. No que

diz respeito ao espaço, a análise foi limitada à região Norte e Sul da França e à Inglaterra.

Durante a Idade Média Central, a literatura e a cultura francesa serviram de modelo para o

restante da Europa. Entretanto, as cortes principescas inglesas destacam-se no incentivo ao

novo gênero e, as disputas literárias destas regiões eram reflexos de rivalidades políticas.

Não obstante, as delimitações temporais foram flexíveis quando procuramos investigar

permanências ou analogias além de diferenças e rupturas acerca de determinados pontos, para

tais verificações permitimo-nos retroceder até a Antigüidade, principalmente quando tratamos

da representação mental do amor.

Estamos, pois, diante de um objeto histórico – o amor cortês – que ao longo das

últimas décadas vem marcando o interesse dos estudos da História, o que é facilmente

percebido pelo número de escritos que historiadores, como Georges Duby, dedicaram ao

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assunto. Entretanto, existem ainda muitos pontos a serem discutidos. Obviamente não temos a

pretensão de tratar uma hipótese geral sobre o amor cortês. Tencionamos mostrar como o

amor cortês, apesar de destoar-se em muitos pontos dos códigos comportamentais ditados

pela sociedade medieval, foi produto desta.

Sendo assim, o capítulo II gira em torno da discussão sobre o amor, tal como era

proposto pelos eclesiásticos e tal como era colocado pela literatura. Logo, iniciamos

discorrendo sobre a corte, lugar no qual o sagrado e o profano coexistiam de maneira singular.

Tomando por base a obra Tratado do amor cortês de André Capelão9, muitos clérigos

escreviam com clareza obras mundanas, visto que, no medievo, o profano emerge no sagrado,

de uma forma ou de outra. Por codificar as regras do amor cortês, recorremos com freqüência

ao tratado de André Capelão.

Como demonstraremos, ao contrário do que já se propôs, o amor não foi uma invenção

do Ocidente no século XII. O que ocorreu foi a proposta de um novo tipo de relacionamento

entre homens e mulheres, consagrado pela historiografia como amor cortês. Por ter sido

elaborado dentro de uma sociedade religiosa cristã medieval, que tem a Bíblia como

paradigma e, de certa maneira, a Igreja como orientação espiritual, atuando como norteadora

comportamental, o amor cortês caracteriza-se pela tensão dos contrários que marca tão

singularmente o perfil histórico e cultural da Idade Média10.

E, se o amor cortês aparece “em tempos de amor divino”, parte de nossa pesquisa

direcionou-se no sentido de procurar entender o que era o amor para os clérigos,

demonstrando que a nova ideologia amorosa cortês, apesar de seu aspecto profano, não se

distanciava sobremaneira do sagrado.

Entretanto, o amor traduzido em versos por Maria de França nos Lais, possui

características próprias, particulares e únicas. Para demonstrar este fato, procuramos,

primeiramente, percorrer a trilha, por vezes tão sinuosa, do desenvolvimento da temática do

amor cortês que se baseava em modelos ritualizados. Neste ponto, vemos cintilar a dubiedade

do amor cortês que, dentre outras coisas, pregava liberdade dos sentimentos diante de

interesses sociais, políticos e econômicos, por meio de comportamentos condicionados.

Ao fazermos a exploração teórica do amor cortês, buscamos verificar em que ponto

esta corresponderia ou não à exploração romanesca do tema feito por Maria de França, quais

9 Utilizamos nesta dissertação a edição ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant, tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 10 Conforme colocado por Lênia Marcia Mongelli na conferência “Amor profano em tempos de amor divino: burlando interdições” apresentada no II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais e VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, em Assis, em 04 de maio de 2006.

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foram os pontos de tolerância e inovação a respeito da representação existente, tendo em vista

que os Lais oferecem múltiplas faces da relação amorosa.

Contudo, para melhor entendermos o surgimento da temática do amor cortês e, em

especial, da literatura cavaleiresca, procuramos reconstruir os fundamentos históricos

responsáveis por sua elaboração. De pronto concordamos, e tentamos demonstrar, que para

além de contar grandes aventuras, mexer com as emoções, refletir sobre os valores, esses

romances exercem uma função social de reafirmação da nobreza cavaleiresca que, por meio

da exaltação da sua imagem, afirma-se ante a ameaça do grupo mercantil, que ganhava cada

vez mais destaque no campo econômico, procurando, através da obtenção de terras,

consolidar a sua posição social e ter acesso a níveis mais elevados da sociedade11. Neste

sentido, logicamente, não nos furtaremos de falar sobre a própria formação da nobreza

cavaleiresca.

Lançando nosso olhar para o “cavaleiro”, algumas questões mereceram nossa atenção:

Será o amor cortês uma realização literária para os filhos não primogênitos forçados ao

celibato? Representa também o sonho de hipergamia masculina? Ou ainda, seria um meio

encontrado para disfarçar a homossexualidade? Em que consistiria a função pedagógica do

amor cortês? Analisar os sustentáculos destas questões é um dos propósitos da segunda parte

do terceiro capítulo.

Por fim, os poemas de amor, dos quais os Lais fazem parte, são uma das chaves que o

historiador possui para decifrar tanto os códigos de comportamento quanto as hierarquias que

regem o relacionamento entre homens e mulheres12 da Idade Média.

Como muito bem explica Georges Duby, a sociedade medieval tende a se apresentar

revestida de um caráter masculino devido, entre outros fatores, à sua latente misoginia. As

mulheres eram colocadas sob a autoridade masculina; convencidos da sua superioridade

natural, os homens as desprezavam, zombavam do seu sexo, ao mesmo tempo que as temiam,

afinal, eram filhas de Eva. Diante disto, dedicamos o capítulo IV à “dama”.

Da mesma maneira que fizemos no tocante ao cavaleiro, verificamos o quanto certas

interpretações valem para os Lais. Será que o amor cortês representa uma revalorização da

mulher? Ou, então, seria uma versão secularizada do culto mariano? Ou ainda, como afirma

Duby, o amor cortês seria um jogo de homens no qual a mulher ocupa apenas o papel

coadjuvante, tendo como função exaltar a coragem do cavaleiro? Diante de tantas linhas

11 Cf. HAUSER, A. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1, p.275. 12 Cf BARROS, J. D’A. O amor cortês. Rio de Janeiro: Cela, 2002. p.8.

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interpretativas, propusemos analisar a pertinência de cada uma na temática do amor cortês e

sua adequação ou não à nossa fonte.

Além disto, os Lais oferecem imagens femininas que não podem ser desprezadas,

posto que expressam a idéia que a autora fazia das mulheres. Entretanto, como procuramos

demonstrar, Maria de França reflete as representações presentes nesta sociedade aristocrática

cristã. Percebe-se aqui que não aspiramos alcançar o real vivido diante desta preponderância

de imagens, quase sempre forjadas pelos homens, dentre eles muitos clérigos, o que não nos

impossibilita de relacionar os elementos fornecidos pela fonte com a realidade histórica

medieval. Portanto, um dos pontos que propomos verificar, neste capítulo, é o significado

histórico dos tipos femininos presentes nos Lais.

Como acabamos de expor, a nossa análise dos Lais tem duas orientações básicas:

perscrutar todo e qualquer elemento ou indício que puder caracterizar e definir o amor

proposto pela autora e a sua imagem da sociedade; e relacionar estes elementos à realidade

histórica medieval.

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Capítulo I: Seguindo o rastro dos Lais.

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1. BUSCANDO MARIA DE FRANÇA E OS LAIS.

Devemos começar assinalando que pouco se sabe sobre a biografia de Maria de

França, que é considerada uma das primeiras escritoras da literatura medieval, representando,

desta maneira, o emergir literário das vozes femininas. As concisas considerações sobre sua

pessoa e sua obra foram concluídas a partir de minuciosos estudos filológicos do escasso

conjunto literário, apenas três títulos, em francês arcaico, a ela atribuídos. Assim, os primeiros

escritos de Maria de França teriam sido os Lais, compostos no período entre 1160 e 117813;

uma compilação de doze pequenos contos de dimensões variadas (de 118 versos do lai

“Madressilva” aos 1184 versos do lai de “Eliduc”). A palavra lai tem a sua origem na palavra

celta laid, que designa um canto semilírico e seminarrativo, em versos octossílabos, composto

a fim de perpetuar a recordação de um sucesso notável, de uma aventura, cantado pelos

jograis da Idade Média com acompanhamento de harpa, alaúde e flautas. Maria de França

afirma que rimou e converteu em obra poética os lais que havia ouvido na tradição oral:

“Pensei nos lais que havia ouvido. Não duvidei, bem o sabia, que para relembrar as aventuras que ouviram primeiro os compuseram e depois os propagaram. Muitos lais eu ouvira contar, e não queria deixá-los nem esquecê-los. Rimei-os e fiz contos, o que me exigiu noites de vigília” (Prólogo, vv.33-42).

Em um deles, no lai de “Guigemar” , parecendo estar consciente do valor de sua obra,

a autora reivindica um lugar entre os autores de seu tempo: “ Escutem, senhores, o que diz

Maria,/ que em seu tempo não passou despercebida” (Guigemar vv.3-4). O único manuscrito

que contém o prólogo e os doze lais é o de Harley 978 da British Livrary de Londres, da

segunda metade do século XIII14. Segundo Laurence Harf-Lancner, nada nos permite afirmar

que os contos reunidos nestes manuscritos são obra de um único autor, exceto a unidade de

tom, de intenção e de estilo que apresentam entre si15.

13 Consideramos a cronologia aceita por Antonio L. Furtado MARIA DE FRANÇA. Lais. Introdução e tradução de Antonio L. Furtado. Prefácio de Marina Colasanti. São Paulo: Editora Vozes, 2001. 14 Todas as edições dos Lais escolhem por texto de base este manuscrito H 978. A edição crítica utilizada na pesquisa é fundamentada na terceira versão feita por Karl Warnke, sendo, como as outras, deste único manuscrito. 15 MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. p.10.

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As outras duas obras, de inspiração muito diferente, assinadas por uma Maria, são

traduções. As Fables, escritas entre 1167 e 1189, são a primeira adaptação em francês de uma

versão em inglês de fábulas esópicas – gênero muito popular na época – que antes teriam sido

traduzidas do latim pelo rei Alfredo, o Grande, que reinou em Wessex de 871 a 89916. Nesta

obra, no epílogo, a autora nos diz que é originária da Île-de France:

“No final deste escrito que em romance traduzi e disse, me colocarei para recordação: Maria tenho por nome, e sou de França.”17

O que fez que o antiquário Claude Fauchet, em 1581, denomina-se-lhe Maria de França,

nome que passou a ser aludido por todos para referir-se a ela.

“Eu, Maria, coloquei em memória, o livro do Espurgatoire, em romance, para ser compreendido pela gente laica e colocado ao seu alcance” 18

Essa terceira Maria é encontrada no L'Espurgatoire saint Patrice, uma “tradução”19 do

latim para a língua românica do Tractatus de Purgatorio sancti Patricii, do monge

cisterciense Henri de Saltrey, realizada, provavelmente, após 1189, pois se refere a São

Malaquías, que só foi canonizado em 6 de julho de 1189.

16 Ver LOBATO, M. de N. Alfredo, O Grande: Um rei Saxão no Esope de Maria de França. Brathair 2 (1), 2002:14-28. Disponível em << http://www.brathair.com/revista/numeros/02.01.2002/Alfredo_O_Grande.pdf>>. Acesso em: 11 nov. 2007. Segundo Maria de Nazareth Lobato, Alfredo “é considerado como um rei na literatura inglesa, pois foi através dele que a prosa literária nesse idioma – no caso, o inglês arcaico – teve início”. Vale colocar que, conforme a mesma autora, “embora atualmente Marie de France seja conhecida pelos Lais, até o século XVIII eram às fábulas que seu nome estava ligado. Foi somente no século XIX que o lirismo dos lais atraiu a atenção dos românticos, em virtude de seu interesse pelos tempos medievais. O sucesso de suas fábulas junto ao público medieval tem sido comprovado pela quantidade de manuscritos – vinte e três – que foram produzidos entre os séculos XIII e XVI” 17 MARIE DE FRANCE. Fables, éd. A. Ewert et R.C. Johnston, Oxford, 1942, apud L. Harf-Lancner na introdução, p.8, MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. Estes dois últimos versos de Maria de França ecoa na confissão de Joana d’Arc: “O meu nome é Joana e sou de França, de Domrémy” Apud HEER, F. O mundo medieval. São Paulo: Ed Arcádia Limitada, 1968. p. 339. 18 Das Buch vom Espurgatoire S. Patrice der Marie de France, éd. K. Warnke, Halle, 1938, apud L. Harf-Lancner na introdução, p.8, MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. 19 Utilizamos o termo “tradução” para simplificação, já que “pôr em romance” não é apenas uma transferência lingüística, havia uma transformação devido tanto a impossibilidade de simplesmente traduzir uma língua como o latim em línguas como as vernáculas, no caso o francês antigo, quanto a introdução de “glosas” , que clarificavam o conteúdo. ZUMTHOR, P. A letra e a voz. A “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 267.

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Além do nome Maria presente nestas obras, existem outros vestígios que nos

permitem supor que estas três mulheres tenham sido uma única pessoa. Nas três obras a

autora demonstra uma preocupação em evitar o esquecimento de tais histórias, além disto as

obras foram transcritas para o francês no mesmo período, final do século XII.

O problema da autoria é típico da Alta Idade Média (séculos IV – X), na qual não

havia, na maioria das vezes, precisões do autor em citar seu nome e nem a data em que

escreveu a obra, já que o gosto da exatidão permanecia alheio a muitos espíritos. Segundo

Julius Schwietering, a omissão do nome do autor remonta ao surgimento do cristianismo que,

através dos preceitos de Salviano, Sulpício Severo e outros, admoesta os escritores contra o

pecado da “vanitas terrestris”20. Além disso, a falta de preocupação com a autoria explica-se

pelo fato dos ouvintes aplaudirem simplesmente a execução da obra, lida em voz alta, tendo

pouca relevância as distinções entre autor e intérprete; nesse sentido vale retomar Paul

Zumthor:

O “autor” é o avatar laicizado do elocutor divino, Ditactor da Escritura; avatar cujas primeiras manifestações, ainda esporádicas, aparecem durante a segunda metade do século XII, embora por longo tempo ainda o “autor” continue a ser o intérprete na performance de uma poesia que, presença total, não precisa declarar sua origem21.

Do mesmo modo um texto, cuja razão de ser está no ser lido, não precisa ser

compilado com todos os rigorismos da escrita, em especial sua dívida para com suas origens,

onde encontraríamos o autor nomeado. A nítida distinção entre o poeta e o recitador, só se

inicia com os noruegueses22 e, a partir da Idade Média Central (século XI-XII), a menção do

nome torna-se mais freqüente, levando o monge cluniacense Pierre de Poitiers, em 1140, a

censurar expressamente esta praxe23. No século XII, ressurge a preocupação do poeta em

chamar direitos de autoria e de propriedade do seu trabalho, essa preocupação do autor em

identificar-se como tal está ligada a um fator mais geral que foi a crescente valorização do

indivíduo, a emergência do eu; nas suas obras Maria de França menciona a si própria, e como

nos mostram os dois últimos trechos citados acima, em primeira pessoa24.

20SCHWIETERING, J. Die verhüllende Einkleidung des Autornamens. In: Die Demutsformel mittelhochdeutscher Dichter. apud CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p.629. 21 ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 103. 22 HAUSER, A. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1, p. 229. 23 Ver sua censura na carta-dedicatória ao abade Pedro, o Venerável, de Cluny apud CURTIUS, E. R. Op. Cit. p.631-632. 24 Ver NICHOLS, S. Medieval Women Writers: Aisthesis and the Power of Marginality. Yale French Studies. New Haven, n. 75, p. 77-94, 1988. Este autor procura demonstrar que um estilo literário inovador emerge com a força do eu feminino,

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A questão da autoria auxilia na explicação histórica da obra, principalmente quando

esta se mostra como uma exceção, isso porque, apesar de não ser um fato único, na Idade

Média, o número de homens – até o século XIII, a maioria dos nobres permaneciam iletrados:

“as formas de inteligência e o tipo de saber exigidos por sua função ou impostos por sua

situação social não tinham nada que ver com a prática de leitura”25 – e de mulheres que

sabiam ler e, principalmente, escrever era restrito, realidade que só mudará na época moderna,

principalmente na corte francesa, que era um lugar de cultura. E, na sociedade medieval,

revestida de um caráter masculino, o acesso da mulher à expressão era penoso, já que este era

um dos domínios que os homens reservavam para si26, sendo que dos 400 nomes de poetas

conhecidos, apenas 17 eram mulheres27. Entretanto, como nos alerta a iconografia, a

faculdade de leitura entre as mulheres estava possivelmente mais disseminada do que

usualmente se pressupõe, já que em diversas imagens vislumbramos a mulher exercendo sua

função de primeira mestra na alfabetização de seus filhos.

Por meio das suas obras, Maria de França nos mostra ser uma mulher letrada, que

conhecia o latim e era apta a fazer traduções. Vale destacar que a maioria dos poetas em

língua vulgar eram pessoas instruídas, que estudaram as artes e os autores nas escolas-

catedralícias do século XII. No entanto, durante muito tempo as mulheres medievais foram

excluídas de uma formação universitária, a sua formação ocorria nos conventos femininos,

onde algumas delas trabalhavam como bibliotecárias, copistas, tradutoras e professoras, além

de ser um espaço adequado de criação e difusão do saber.

Tal fato sustenta as teses de que Maria de França era abadessa de Shaftesbury, filha

natural de Geofredo Plantageneta e meia irmã ilegítima de Henrique II da Inglaterra28, ou uma

religiosa ou abadessa do mosteiro de Reading, ou ainda, seria a Maria de Boulogne, abadessa

de Romsey29. Mas se Maria de França fosse realmente uma dessas abadessas, um sopro de

espiritualidade seria sentido em suas obras o que, excetuando o lai de“Eliduc”, não é o caso;

Maria de França viveu no “século”, já que utilizando a temática do amor cortês, representa

com compreensibilidade nos Lais a sociedade aristocrática de seu tempo, com seus códigos de

25ZUMTHOR, P.Op. Cit. p. 107. 26 Sobre a palavra das mulheres na Idade Média Ocidental ver RÉGNIR-BOHLER, D. A palavra das mulheres. In: DUBY, G.; PERROT, M. (Org) História das mulheres no Ocidente. Vol 2: A Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1990. p. 517-591. 27 HAUSER, A. Op. Cit. v.1,p. 304. 28 FOX, J. Marie de France. English Historical Review, XXV, p.303-306, 1910; FOX, J. Mary, Abbess of Shaftesbury. English Historical Review, XXVI, p.317-326, 1911; BULLOCK-DAVIES, C. Marie Abess of Shaftesbury and her Brothers. English Historical Review, LXXX, p.314-322, 1965; LEVI, E. Maria di Francia e le abbazie d’Inghilterra. Archivum Romanicum, V, p.472-493, 1921. 29 KNAPTON, A. À la recherche de Marie de France. Romance Notes, XIX, p. 248-253, 1978/79.

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comportamentos, padrões morais e valores, que, muitas vezes, não se harmonizam com a

relação entre os amantes, como veremos nos capítulos subseqüentes, nos quais também

analisaremos como a autora vai de encontro a muitos preceitos religiosos, a título de exemplo,

a indissolubilidade do casamento. Vale colocar que na obra L’Espurgatoire saint Patrice, o

cavaleiro Owein recusa se juntar a uma ordem monástica e assegura que podemos alcançar a

salvação e servir a Deus como laico (Esp., vv. 1927-1932), o que para Yolande de Pontfarcy

provaria que Maria de França “vivia no mundo”30. Assim, muito mais sedutora é a hipótese

de Urban T. Holmes de que Maria de França seria a filha de Agnés de Montford e Galeran de

Beaumont, conde de Melun e de Worcester e viúva de Hugues de Talbot, barão de Cleuville31.

Destaca-se aqui a condição social da autora, uma nobre, letrada. Há assim dentro de uma certa

“emergência da mulher”, por meio de Maria de França, uma emersão possível: ocorreu dentro

das possibilidades que certamente lhe foram propiciadas por ser nobre, estatuto cujas

responsabilidades supõem uma certa erudição para além do domínio das funções tradicionais

adquiridas com o casamento. Portanto, caso não abraçassem a vida celibatária, mas fossem

nobres, as mulheres eram, na sua maioria, instruídas em casa, como Heloísa.

De qualquer maneira, a voz de Maria de França aparece à frente de uma obra

importante, os Lais, que apesar de já existirem na tradição oral, não desprezamos a

intervenção específica da autora aos registrarem por escrito visto que, tanto a transmissão oral

como as transcrições, implicam mudanças; sendo importante destacar que os textos poéticos

medievais – a título de exemplo o Brut, o Rou e o Saint Nicola de Wace - fazem freqüentes

referências à fonte oral que, por possuir nesta época uma autoridade particular, conferia a seus

discursos uma certa autoridade também, ligando-os a uma tradição32.

Cronologicamente, a oralidade tem uma história muito mais longa que a escrita; a

primeira iniciou-se com o homo sapiens, que como espécie, data de cerca de um milhão de

anos, já a escrita foi um desenvolvimento tardio e teve sua primeira aparição há cinco mil

anos atrás, sendo que no Ocidente só entrou por volta de 600 a.C.33, gerando diferentes

situações de cultura: uma seria a oralidade primária, que ocorre nas sociedades totalmente

30 PONTFARCY, Y. de. Si Marie de France était Marie de Meulan… Cahiers de Civilisation Médiévale Xe-XIIe siecles, XXVIII Année, n. 4, p. 353-361, oct./dec., 1995. 31 HOLMES, U. T. New Thoughts on Marie de France. Studies in Philology, XXIX, p. 1-10, 1932. Ver também o artigo de Yolande de Pontfarcy que procura confirmar a identificação proposta por Holmes e examinar a importância, o papel e as relações familiares dos Beaumont e Talbot na Normandia, na Inglaterra e na Irlanda da segunda metade do século XII. PONTFARCY, Y. de., Art. Cit. 32 ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 123. 33 ANDRADE, M. L. da C. V. de O. História e Lingüística. Oralidade e Escrita no Discurso Religioso Medieval, p. 49. In: ANDRADE FILHO, R. de O. (Org) Relações de Poder, Educação e Cultura na Antigüidade e Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005. p. 47-55.

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desprovidas de qualquer sistema de simbolização gráfica, sendo assim, o contato com a escrita

é nulo; a segunda situação seria a da oralidade mista, presente na “cultura escrita”, que,

apesar de “possuidora de uma escritura”, a sua influência conserva-se parcial, externa e

atrasada; por fim, existe a oralidade segunda, característica da “cultura letrada”, que ocorre

num meio onde a escrita marca quase toda expressão, extenuando a preeminência da voz no

uso e no imaginário34. Na Idade Média encontramos as três situações de oralidade, sendo que

a primária caracteriza amplos setores do mundo camponês, e as duas últimas alteram-se

segundo as épocas, as regiões, os grupos sociais e até mesmo conforme os indivíduos35. Desta

maneira, apesar da presença da escrita, a sociedade medieval em geral, conservou um alto

grau de oralidade residual.

No século XII, apesar da multiplicação de textos escritos, a transmissão e realização

social destes textos, ocorriam principalmente pela oralidade, já que, no Ocidente, a cultura

manuscrita medieval esteve sempre na fronteira com o oral e só se desvinculou desta de

maneira extremamente lenta, assim, convém fazer breves considerações a respeito de algumas

características da oralidade e seus efeitos e/ou resquícios sobre a escrita dos Lais36.

O fato do ritmo auxiliar na recordação, faz com que ele seja um apoio mnemônico à

repetição oral, assim, muitos gêneros poéticos tendem a ser altamente rítmicos, seja em prosa

ou em verso, termos aliás, tomados de empréstimos das palavras latinas prosa e versus que,

sem muita precisão, designavam diferentes fenômenos de ritmo. No entanto, existe uma

persistência da tradição dos relatos em verso que, segundo Paul Zumthor, tem como causa

principal o fato tanto do verso estabelecer uma relação privilegiada com a voz, como também

a estrofe ligada pela rima constituir uma unidade rítmica mais facilmente audível do que uma

frase de prosa, mesmo se fortemente escandida37. Vale destacar que a palavra rima, vinda do

grego latinizado rhythmus, conservava a idéia dominante de cadência, e, até o século XV, as

palavras vers e rime, no francês, alternavam-se – fato verificável durante a tradução dos lais.

Maria de França utilizou-se em sua obra de pares rímicos, de semelhança fônica, dispostos

34 Segundo Hilário Franco Jr, imaginário é “o conjunto de imagens, verbais e visuais, que uma sociedade ou um segmento social constrói com o material cultural disponível para expressar sua psicologia coletiva. Logo, todo imaginário é histórico, coletivo, plural, simbólico e catártico(...).”FRANCO JR, H. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. 2o ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. p.183. 35 ZUMTHOR, P. Op. Cit. pp. 18-19. 36 As considerações seguintes sobre a oralidade e a cultura escrita que iremos aplicar nos Lais foram baseadas em ANDRADE, M. L. da C. V. de O. Art. Cit. p.47-55; ONG, W. J. Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1998.; ZUMTHOR, P. Op. Cit. 37 ZUMTHOR, P. Op. Cit. p.207.

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aos pares (aabbcc...) no final38 dos versos de oito sílabas, que formam uma série, na maioria

das vezes longa, de estrofes desiguais:

Pur l’aventure des enfanz a nun li munz des Dous Amanz. Issi avint cum dit vus ai; Bretun en firent un lai. (grifo nosso) “Por causa da aventura dos jovens nomearam o Monte dos Dois Amantes. Tudo se passou como vos contei; os Bretões fizeram desta história um lai.” (Dois Amantes, vv. 251-254)

A importância mnemônica da rima não deve ofuscar, ainda, seu caráter artístico já que,

segundo Karl Langosch, seu emprego exige do poeta um grande esforço, para que não utilize

“tão freqüentemente a mesma palavra e a mesma rima, em não deixar o sentido sucumbir à

obrigação da rima, mas em jogar engenhosamente com rima e fortalecer a arte”39.

Além do ritmo, outros índices de oralidade estão presentes nos Lais: quando um texto

é transmitido oralmente, numa situação de performance, mesmo que só o interprete possua a

palavra, existe uma situação de diálogo por requerer a presença de um espectador – ouvinte,

que mesmo estando em silêncio, participa da obra como co-autor, pois tanto o falante quanto

o ouvinte fazem parte da situação comunicativa, que requer uma interação. Esta interação

falante/ouvinte, durante uma enunciação oral, tem paralelo no caso da escrita, que seria a

interação entre o escritor/leitor. Entretanto, nos Lais, Maria de França deixa explicita várias

marcas lingüísticas da situação de performance através de intervenções dialógicas:

direcionamentos a vós - a título de exemplo,“vos contarei brevemente” (Guigemar v.21), “Isto

aconteceu assim como vos disse” (Equitan v.317), “Eu vos direi o lai de Freixo” (Freixo, v.1)

– referindo-se a um auditório, interpelações do tipo “Escute agora o começo” (Prólogo, v. 56),

neste caso referindo-se ao rei, “Escutem, senhores, o que diz Maria” (Guigemar, v.3). Estas

intervenções estruturadas sobre o verbo que indica a audição – oëz – são abundantes nos lais,

na forma imperativa quando no início do lai e no passado quando no final. Vale destacar,

segundo a afirmação de Scholz, em seu estudo das intervenções dialógicas, que no

38Segundo Álvaro Bragança Júnior as rimas presentes no final de sílaba são denominadas caudati BRAGANÇA JR, Á. A. A fraseologia medieval latina como reflexo de uma sociedade. 1998. 207f. Tese (Doutorado em Letras – Letras Clássicas) - Universidade Federal do Rio de Janeiro/Faculdade de Letras, Rio de Janeiro, 1998. p. 47-48. 39 LANGOSCH, Karl apud SOUZA, D. G. G. e Descrição de fonte(s) literária(s) em um trabalho historiográfico: um exemplo em Parzival de Wolfram Von Eschenbach, p. 418. In: VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS DO PROGRAMA DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA UFRJ, 2005, Rio de Janeiro. Atas... Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2006. p. 415-421.

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funcionamento da arte literária medieval, o “ouvinte fictício” representa um agente

essencial40.

O verbo oëz nos Lais refere-se ao modo de recepção que Maria de França pretende ao

seu público, mas também à maneira que a autora teve acesso às histórias – “um lai que eu

ouvi falar” (O infeliz, v.2). A par com este verbo encontra-se os verbos referentes ao modo de

comunicação - “Escutem, senhores, o que diz Maria” (Guigemar, v.3, grifo nosso), “Vos direi

o lai de Freixo” (Freixo, v.1).

Este aspecto performancial dos Lais fica ainda mais sublinhado devido à presença de

algumas estratégias expressivas consideradas oriundas da oralidade primária, que tendem a

ser: mais aditivas do que subordinativas; mais agregativas do que analíticas; redundantes e

“copiosas”; conservadoras ou tradicionalistas; próximas ao cotidiano da vida humana;

agonísticas; mais empáticas e participativas do que operando por distanciamento;

homeostáticas; mais situacionais do que abstradas.

Nas culturas orais a originalidade de uma narrativa não está na elaboração de novas

histórias, mas na adaptação das velhas histórias ao público presente, às novas situações.

Assim, há uma introdução de novos elementos nas velhas histórias e, quanto mais estas foram

repetidas, mais variantes menores encontraremos. Arnold Hauser analisando as narrativas

heróicas que, segundo ele, presentes na idade das invasões, ressurgiram na época de

desenvolvimento da cavalaria (séculos XI – XIII) em razão de sua sobrevivência na tradição

oral, coloca: “Disse-se que a poesia épica popular ´crescia` ao transmitir-se a saga heróica de

uma geração para outra e que só cessava o crescimento, quando entrava na literatura

propriamente dita”41.

No entanto, se ponderarmos que paralelamente a escritura, circulava a transmissão

oral, compreenderemos o motivo do surgimento de versões diversas, mesmo quando a história

já havia sido transcrita, como ocorreu com a lenda de Tristão e Isolda, escrita a partir da

segunda metade do século XII, de quando nos chegaram seis narrativas distintas: Tristan de

Béroul; Tristan de Thomas – ambas fragmentadas; Folie Tristan de Berna; Folie Tristan de

Oxford e Chèvrefeuille (“Madressilva”) de Maria de França – sendo estas três últimas

episódios que se referem aos retornos de Tristão exilado na Bretanha Armoricana; e a versão

alemã de Eilhart von Oberg, Tristrant – que junto com a obra norueguesa The saga of Tristam

40 Apud ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 225. 41 HAUSER, A. Op. Cit. v.1, p. 232.

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and Isönd de Frère Robert, do século XIII, nos chegaram completas, suprimindo as lacunas

existentes da história42.

Mas, apesar das diferenças, percebemos que há uma conservação da temática, que

sofre apenas remodelações e não uma superação por novo material. Entender isto é

fundamental para analisarmos os Lais, que desenvolve suas histórias em volta da temática do

amor cortês, como veremos no capítulo seguinte.

Outro ponto importante está no tom das narrativas. O tom agonístico é uma

característica marcante das culturas orais e residualmente orais, fato ligado tanto ao estilo de

vida, quanto à própria estrutura da oralidade, quando “toda comunicação verbal deve ser feita

diretamente pela voz, envolvida na dinâmica da troca sonora, as relações interpessoais são

mantidas em tons extremos – tanto as atrações quanto, e sobretudo, os antagonismos”43. Nos

Lais, os tons extremos caracterizam mais as atrações que os antagonismos e, o foco da ação

não é tanto nas crises exteriores, mas nas interiores, característica cada vez mais presente nos

romances. Entretanto, Maria de França chega a extremos de vituperação em dois versos no lai

de “Eliduc”, utilizando de expressões ríspidas, que parecem contrastar com o estilo cortês que

predomina na obra: “‘Filho de puta’, disse ele, ‘malvado/ traidor infiel, não digas mais!’”

(Eliduc, vv.843-844). Outra das afrontas agonísticas que os Lais mantiveram, é a ênfase

excessiva de louvor que se encontra ligada à oralidade, e é característica da antiga tradição

retórica ocidental residualmente oral, que se inicia na Antiguidade Clássica e está presente em

toda a Idade Média, desta maneira encontramos:

“Em honra a vos, nobre rei, que tanto sois valente e cortês, a quem toda a alegria se inclina, e em cujo coração todo o bem nasce” (Prólogo vv.43-46)

Sendo importante colocar que existem numerosos epítetos nos Lais – que numa cultura

letrada, são considerados pesados e tediosamente redundantes – tais como “nobre rei”, “boa

mãe”, “dama de alta linhagem, nobre, cortês, bela e prudente”, “velho padre”, “bom cavaleiro,

valoroso e leal”, “bela amiga”, “o rei valoroso e cortês”. Esses epítetos são mais agregativos

42 Segundo Maria Nazareth A. de Barros: “Se ao lado de um hipotético Tristão primitivo corriam oralmente episódios da lenda, nada mais normal que os ‘trouvères’ utilizassem os episódios seguindo seu gosto pessoal, adaptando a seqüência conforme convinha a sua versão. Isso justificaria a eterna preocupação de proclamar que a versão que escreviam era a verdadeira e explicaria os episódios fechados que constituem as Folies e o Chèvrefeuille”. BARROS, M. N. A. de. Tristão & Isolda: o mito da paixão. São Paulo: Mercuryo, 1996, p. 142. Ver edições críticas de PAYEN, J. C. (Ed), Tristan et Yseut. Paris: Garnier, 1974 e POIRION, D. (Ed), Tristan et Yseut. Paris: Gallimard, 1995. Esta última contém as versões medievais de diferentes regiões européias. 43 ONG, W. J. Op. Cit. p.56.

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do que analíticos e representam elementos formulares remanescentes das culturas orais, que

preferem não o rei, mas o nobre rei, como comprovam as fórmulas homéricas epitéticas:

“sábio Nestor”, “esperto Ulisses”.

Essas qualificações ajudam na composição de personagens “fortes”, os heróis,

representados pelos cavaleiros nos Lais, cujos feitos são notáveis e memoráveis, assim, estes

personagens, além de estarem relacionados a um estilo de vida agonístico, adquirem um papel

noético na memória oral. Desta maneira, para assegurar memorabilidade, os cavaleiros

tendem a compor figuras-tipo, as quais estão presente em longa medida na literatura medieval,

desde as canções de gestas, os romances até as hagiografias. As figuras anômalas também se

apresentam como auxílio mnemônico, é o caso da corça que fala, do homem-lobo e da fada,

presentes nos Lais. O fato dessas figuras heróicas e anômalas terem uma função mnemônica,

não são a única razão de suas existências, outros fatores – sociais, econômicos, políticos e/ou

até psicológicos, alguns dos quais serão desenvolvidos ao longo deste trabalho - contribuem

sobremaneira para as suas produções.

Em suma, apesar das remanescências, o processo de literalização de histórias

procedentes da tradição oral, no caso os lais, implica certas mudanças e adaptações.

Primeiramente, a escrita, ao ser incapaz de reproduzir numerosas das ocorrências da fala - a

título de exemplo, os gestos, o olhar e a prosódia, ou seja, o conjunto de características que

acompanham os sons -, não pode ser entendida como uma representação exata do oral44,

somando-se a isto existe na maioria dos casos a interferência do próprio escritor que, mesmo

que indiretamente, participa da história, opina e forma opinião ao longo do texto. Assim, nos

Lais, Maria de França não assume apenas o papel de narradora, mas também de autora, ao

selecionar relatos orais e adaptá-los à escrita e a uma demanda social e cultural específica;

Maria de França torna-os aceitáveis ao fazer modificações segundo o gosto, a necessidade e as

inquietações do público dessa sociedade cortesã, cristã, feudal e monárquica, que se faz

presente ao longo de toda sua obra.

Acreditamos que a passagem para o escrito não concretiza a história necessariamente

- como demonstramos com Tristão e Isolda -, mas se não a história em si, em sua

originalidade, integralidade, concretiza seu espírito, o “encadeia” na letra e a imortaliza.

Maria de França demonstra uma concepção de poesia como “imortalização” - a associação

44 ANDRADE, M. L. da C. V. de O. Art. Cit. p.49.

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entre a escrita e a morte é antiga, presente, por exemplo, em 2 Coríntios 3:6: “a letra mata”45 -

, sendo um sinal de consciência literária, pois grande parte das histórias se perderam ao não

serem transcritas, visto que a memória é pouco resistente à usura do tempo46. Esta concepção

é atestada por clichês que, presentes desde o século XII em toda a Europa, alegam o uso da

escrita devido a perenidade da memória humana. Para exemplificar este fato vale citar o início

da carta conferida, em 1174, aos habitantes de Tonnerre por Guy, conde de Nevers :

O uso das letras foi descoberto e inventado para conservar a memória das coisas. Aquilo que queremos reter e aprender de cor fazemos redigir por escrito a fim de que o que se possa reter perpetuamente na sua memória frágil e falível seja conservado por escrito e por meio de letras que duram sempre47.

Nos Lais temos também um exemplo deste julgamento:

“Muitos lais eu ouvira contar, e não queria deixá-los nem esquecê-los. Rimei-os e fiz contos” (Prólogo vv. 39-41).

A questão da memória é uma constante nas culturas orais e residualmente orais. A

importância da memória é facilmente verificável na Antigüidade, onde, segundo o mito grego,

Mnemosine é a mãe das nove musas, inclusive de Clio, que surgiram de sua união com Zeus.

Entretanto, a escrita havia sido finalmente interiorizada pelos gregos por volta da época de

Platão (427?-347a.C.), que sai em defesa da memória no Fedro , dizendo através de Sócrates,

a lenda do deus egípcio Thot, inventor dos números, da astronomia, da geometria, do cálculo,

do jogo de dados e também do alfabeto, sendo assim patrono dos escribas e dos funcionários

letrados. E objeta que este deus corrompeu a memória por meio de suas criações, contribuindo

para seu enfraquecimento, já que o alfabeto “engendrará esquecimento nas almas de quem o

aprender: estas cessarão de exercitar a memória porque, confiando no que está escrito,

45 Ver CURTIUS, E. R.; A poesia como imortalização. In: IDEM, Op. Cit. p. 579-582. Segundo o autor, já os antigos heróis de Homero sabiam que a poesia imortaliza, idéia presente em muitos poetas da Antiguidade, consciência também manifesta nos poetas latinos de França desde 1100. 46 “A etnologia contemporânea pôde estimar que fosse de duas ou três gerações a duração de validade de lembranças pessoais, no seio da comunidade familiar; medida natural, sem dúvida irredutível. Mas, para além desse grupo social estreito, memórias longas se constituem por armazenamento de lembranças individuais; a continuidade é assegurada ao preço de uma multiplicidade de afastamentos parciais. Aí, ainda lançamos um limite que B. Guénée, fundamentando-se em testemunhos medievais, fixa em um século no máximo” ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 140. 47 Apud LE GOFF, J. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 3o ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. p. 450.

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chamarão as coisas à mente não já do seu próprio interior, mas do exterior, através de sinais

estranhos”48. Relevante é o fato de Platão ter colocado suas objeções por escrito.

A prática da memória essencialmente oral era uma necessidade na sociedade medieval,

na qual a escrita era reservada a uma minoria letrada e, apesar da intensificação no século XII,

do recurso ao escrito como suporte mnemônico, a função da memória e de seu

armazenamento pela linguagem falada, continuou a ser importante tanto no meio cultural

quanto no meio social, político e, principalmente, religioso – já que “o ensino cristão é

memória, o culto cristão é comemoração”49.

Esta relevância da memória pode ser atestada, a título de exemplo, pela memória

genealógica, que apesar de seletiva, de manipular as lembranças e as adaptá-las às exigências

do presente – sendo homeostáticas-, tinha papel de legitimar, por exemplo, as dinastias

principescas na França durante o processo de restauração monárquica no século XII, momento

no qual se começou a escreve-las50. Ocorrência interessante é que foram criadas para muitos

príncipes medievais fabulosas e arbitrárias árvores genealógicas, favorecendo a popularidade

do romance de Tróia, já que muitos deles acreditavam descender de heróis troianos51.

Além das lembranças das glórias ancestrais, a presença da memória também

conservou elementos da cultura folclórica52, de antigos mitos, de crenças e valores

tradicionais e, através da narrativa oral, ocorre a migração desses elementos, juntamente com

temas e estilos - não sem alterações, já que sem o auxílio de um texto, as reproduções estão

sujeitas às variações, que “são às vezes pouco perceptíveis, e seus efeitos sobre a estabilidade

do arquétipo, mal observáveis nas durações curtas”53-, de um lugar a outro, por meio dos

profissionais do canto, que contratados para entreter os membros da corte, difundiam-na ao

viajarem com seu séquito; um exemplo disso é a presença da Matéria da Bretanha em toda a

48 Apud LE GOFF, J. Op. Cit.. p.437. 49 IDEM, Ibidem. p. 445. 50 Ver capítulos Memórias sem historiador e Escrever os mortos respectivamente em DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989; DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 51 CARPEAUX, O. M. História da Literatura Ocidental I. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959. p. 297. 52 Estamos empregando o conceito de cultura folclórica dado por Le Goff, que a entende como a camada profunda da cultura tradicional subjacente em toda a sociedade histórica e, que parece aflorar ou prestes a aflorar na desorganização que reinou entre a Antigüidade e a Idade Média. Para este autor, o que torna a identificação e a análise desta camada cultural particularmente delicadas, é ela ser recheada de contribuições históricas discordantes tanto pela idade como pela natureza. LE GOFF, J. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia. p.212 In: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Trad. Maria Helena da Costa Dias. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. p. 207-220. 53 ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 143.

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Europa cristã, o que torna inteligível o “aparecimento de tradições independentes nas versões

dos romances, surgidas nas diversas partes do continente”54.

Em suma, ao colocar no prólogo que escreveu os lais para que não fossem esquecidos,

Maria de França também justifica sua obra e a torna aceitável aos ouvintes, sendo isto um dos

pontos introdutórios do discurso retórico. A retórica, na Antiguidade Clássica, significava

fundamentalmente a arte de falar em público ou “oratória” e seu estudo iniciou-se como o

núcleo da educação e da cultura grega antiga, uma vez que ela fornecia um fundamento

coerente para o que lhes era mais dileto, a apresentação oral convincente e muitas vezes

pomposa55.

Não obstante, a retórica, tornando-se o paradigma de quase todos os discursos, não

ficou restringida à prática oral. Seu uso estendeu-se a escrita que, transformou seus

constituintes em uma “arte” científica - um conjunto de preceitos em séries ordenadas -,

apresentada na Arte retórica de Aristóteles. Apesar desta transposição, a retórica reteve muito

das estratégias expressivas orais de tipo agonísticas e formulares. Atesta este fato o ensino

retórico que, devido seu legado agonístico, declarava que o propósito de quase todos os

discursos era apresentar ou contestar uma questão contra alguma objeção. Além disso, o tema

a ser desenvolvido deveria reaver no estoque de argumentos já explorados por outros os que

eram adequáveis ao caso. Vistos como “assentados” (termo de Quintiliano) nos “lugares”

(topoi em grego, loci em latim), estes argumentos eram muitas vezes chamados loci

communes em latim quando se julgava que fossem apropriados a quaisquer desenvolvimentos

ou variações56. Na literatura os topoi - as tópicas, transformam-se em temas ideológicos de

emprego universal.

Maria de França, ainda no prólogo, recorre a outros artifícios para conquistar a

benevolência do leitor/ouvinte. Para isto, a autora faz uso da tópica exordial, que “serve para

expor os motivos que determinaram a criação de uma obra”57:

“Quem recebeu de Deus ciência e o dom de falar com boa eloqüência, não se deve calar nem esconder, antes deve mostrar-se voluntariamente. Quando um grande bem se faz ouvir, Então primeiro ele começa a florir, e quando elogiado é por muitos, então desabrocham suas flores.” (Prólogo vv. 1-8).

54 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p. 20. 55 ONG, W. J. Op. Cit. p. 127. 56 ONG, W. J. Op. Cit. p. 127. Ver também o capítulo Retórica em CURTIUS, E. R. Op. Cit. 57CURTIUS, E. R. Op. Cit. p.129.

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Assim, nestes versos, a autora coloca a obrigação de partilhar o conhecimento, o saber.

Na Bíblia existem abundantes exemplos desse topos, um deles está no Eclesiástico “Sabedoria

escondida e tesouro oculto são coisas inúteis. É melhor um homem que esconde a sua loucura,

do que um homem que esconde a própria sabedoria” (Eclo., 20: 30,31).

Outra manifestação, dentro desse mesmo topos exordial, que a autora aplica é o da

preguiça que deve ser evitada, afirmando a virtude salutar do trabalho no combate ao vício:

“Quem do vício quer defender-se, deve estudar e tencionar uma obra trabalhosa começar; desta maneira pode-se mais o vício distanciar e de grande dor libertar-se.”(Prólogo vv. 23-27).

Neste ponto, será que mais do que um topos,há um testemunho escrito que Maria de

França estava imbuída de um espírito cristão e, de certa forma, erudito, pois conhece a

preguiça ou a apatéia do grego como um dos vícios, chamados posteriormente por um dos

pecados capitais que se contrapõe às virtudes cristãs? Ou ainda, poderíamos questionar se a

formação cultural da autora edificada em uma substancial presença cristã, como não poderia

deixar de ser, é de toda forma tão relevante que a fez não ignorar em sua escrita? Maria de

França era letrada e por meio de sua obra percebemos que tinha uma formação erudita, o que

a colocava em contato, mesmo que não direto, com as obras dos autores clássicos: em

Teógnis, Horácio e em Sêneca, podemos encontrar os primeiros vestígios da necessidade da

transmissão do saber; quanto à preguiça a ser evitada, encontra-se também em Horácio e em

Ovídio. Portanto, apesar de estarem presentes na Bíblia e na cultura cristã, as idéias presentes

nesses trechos de Maria de França fazem parte de fórmulas literárias presentes já na

Antiguidade. Entretanto temas bíblicos não estão ausentes nos Lais, como veremos nos

capítulos seguintes. Por fim, há o topos da dedicatória:

“Em honra a vos, nobre rei, que tanto sois valente e cortês, a quem toda a alegria se inclina, e em cujo coração todo o bem nasce, me dediquei a reunir os lais, e a recontá-los em versos. Em meu coração pensei e disse, senhor, que vos presentearia. Se vos agrada recebê-los, muito grande alegria me farás; para sempre isso me deixará feliz. Não me tenhas como presunçosa, se vos ouso fazer este presente.” (Prólogo vv. 43-55).

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É importante destacar que já na “Roma dos tempos imperiais, as fórmulas de

submissão iriam desenvolver-se à proporção que aumentava a glorificação cortesã da pessoa

imperial (...). Essa exaltação do imperador deveria corresponder ao rebaixamento da própria

pessoa”58. Maria de França faz uso do topos “falsa modéstia” ao glorificar o rei, por meio de

um discurso laudatório, oferecendo humildemente sua obra. Mas neste caso, já estamos diante

de uma humilitas cuja a razão de ser não está na idéia de civilis, ou ainda, respeito a uma

pessoa pública e que merece ser enaltecida por sua personificação do poder exercido e

representado pelo e para o Estado, como acontecia na Antiguidade, mas por uma humildade

cristã. Aqui o ser humilde é o ser diante de um bem transcendente, de uma necessidade

premente para a salvação e não uma ideologia social, da formação cívica do Estado. O rei na

Idade Média Central não goza da universalidade e do mesmo status de supremacia ideológico

do imperador na Antigüidade. Assim a humildade de Maria de França pode ser vista como

uma forma de “auto-edificação” mas do que a edificação da pessoa do rei por seu intento de

se fazer humilde. Além disso, a glorificação do rei era necessária para os autores que

contavam com a audiência e o patrocínio real. Já Danielle Régnier-Bohler questiona se essas

cláusulas de humildade presentes em obras femininas pertenceram a uma tópica ou

simplesmente a uma consciência de uma inferioridade de competência59. Tal questão

permanecerá insolúvel, ainda que tendamos a considerar a primeira alternativa para a nossa

fonte, tanto pelo que já foi dito acima sobre humildade, quanto pelo valor que Maria de

França conferia a sua obra.

No que diz respeito ao “nobre rei”, a hipótese de ser Henrique II Plantageneta, rei da

Inglaterra desde 1154 é a mais considerada, em razão dos Lais terem sido escritos antes da sua

morte , em 1189. Entretanto, se Maria de França era Maria de Meulan, a hipótese de ser

Henrique, filho de Henrique II, coroado em 1171 e morto em 1183, ganha credibilidade

devido ao contexto político no qual se encontrava a suposta família da autora. Em 1173, o

jovem rei Henrique lidera uma rebelião contra seu pai Henrique II, e entre os nomes de seus

partidários encontramos a maior parte dos membros da família de Beautmont e seus aliados60.

Após esta análise, convém reintegrar os Lais no grande movimento de criação que

animou o século XII, para que possamos entender tanto o seu processo de produção, quanto e

principalmente a sua serventia social e a historicidade de suas mensagens.

58CURTIUS, E. R. Op. Cit. p.127 59 RÉGNIR-BOHLER, D. Amor Cortesão. p. 539. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v.1, pp.47-56 60 Ver PONTFARCY, Y. de. Art. Cit., p. 360.

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2. CONTEXTO HISTÓRICO E “RENASCENÇA DO SÉCULO XII”.

A literatura cavaleiresca, da qual os Lais são exemplo, insere-se dentro de um

florescimento cultural laico, proporcionado por mudanças socioeconômicas e literárias,

ocorridas entre os séculos XI e XIII, que convencionou-se chamar Idade Média Central.

Neste período, com a ausência de entraves externos, em virtude do cessar das

invasões, e internos, devido à diminuição das epidemias - “com o recuo da peste e da malária,

continuando apenas a lepra a ter certa intensidade”61- e às guerras de menor impacto, houve

um crescimento demográfico, tendo como um dos indícios o acentuado movimento

migratório, tal como a ocupação de novas terras, devido o desbravamento de florestas e

terrenos baldios.

O aumento de terras cultiváveis e de mão-de-obra possibilitou a existência de um

excedente agrícola, este também favorecido pelo progresso das técnicas agrícolas: adubo

mineral, charrua, força motriz animal, azenha ou moinho de água, moinho de vento, sistema

trienal. Este excedente agrícola favoreceu o revigoramento das trocas, facilitado pelo termino

das invasões e pelo movimento da população, que acarretou uma “aproximação dos grupos

humanos uns dos outros” e, as distâncias ainda existentes tornaram-se mais fáceis de transpor,

devido a construção de inúmeras pontes e ao aperfeiçoamento da atrelagem dos animais, que

beneficiou o transporte em grandes proporções62.

Esse crescimento econômico-demográfico fomentou o desenvolvimento urbano,

cidades já existentes cresceram e outras 140 surgiram entre 1100 e 130063 - contudo, vale

destacar que, a sociedade medieval continuava a ser basicamente rural, com cerca de 80% da

população total no século XIII, deste modo, antes do século XV, salvo em algumas regiões

como Flandres e o norte da Itália, o surgimento e/ou o crescimento das cidades não alteram de

fato a paisagem social e mental.

Neste contexto, a moeda, antes objeto de entesouramento, volta a circular (apesar de

nunca ter estado totalmente ausente das transações) proporcionando a monetarização da

economia. A moeda torna-se uma nova espécie de riqueza, ao lado da propriedade da terra e,

devido sua mobilidade, emancipa gradualmente o indivíduo da situação social em que

nascera, abolindo, em principio, os limites rígidos dos grupos sociais64. Dentro desta

61 FRANCO JR, H. Op Cit. p.26. 62 BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1973. p.90. 63 FRANCO JR, H. Op. Cit. p. 41-42. 64 HAUSER, A. Op. Cit. v.1, p. 272-274.

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conjuntura, afirmaram-se cada vez mais duas categorias ativas: a dos artesãos e dos

mercadores, com destaque para os segundos.

As crescentes necessidades de uma população em expansão, com um aumento do

nível de vida, que apesar de não atingir a totalidade foi considerável, e seu gosto cada vez

mais voltado, principalmente, para artigos de mobiliário e de indumentário, ocasionou o

aperfeiçoamento e até a criação de métodos de produção, levando Jean Gimpel a assegurar

que “na Europa, em todos os domínios, a Idade Média desenvolveu mais do que qualquer

outra civilização o uso de máquinas”65.

Diante desta evolução econômica, os grandes beneficiários foram a camada superior

da nova sociedade urbana, ou seja, como disse Jacques Le Goff, “a que por conveniência de

simplificação daremos o nome de burguesia”66. O surgimento desse novo grupo acarretou

grandes transformações sociais e culturais na sociedade feudal, o que impeliu José Luis

Romero a considerar a ocorrência de uma revolução burguesa no mundo feudal67. Deste

modo, o esquema tripartido no qual a sociedade via-se refletida é abalado; este esquema foi

elaborado em cerca de 1027-1031 pelo bispo Adalberon de Laon no seu poema dedicado ao

rei capetíngio Roberto, o Piedoso: “Tripla é a casa de Deus que se crê una. Uns rezam, outros

combatem, outros ainda trabalham. São três conjuntos e não podem estar desunidos”68 –

oratores, bellatores e laboratores.

Esta tripartição funcional, segundo Jacques Le Goff, tinha por finalidade submeter

não apenas os trabalhadores aos sacerdotes, mas também os guerreiros, que deveriam tornar-

se guardiões da Igreja e da religião e, além disso, “vai a par da reforma gregoriana e da luta

entre o Sacerdócio e o Império”69. Na busca de maior autonomia, de fortalecimento do poder

papal e de maior controle sobre a sociedade laica, a Igreja procurou purificar-se e regressar as

origens. As primeiras mudanças ocorreram em 1059, com Nicolau II, que decretou que o

direito de escolher o papa estava reservado aos cardeais-bispos. Mas, as mudanças só foram

realmente concretizadas com Gregório VII (1073-1085) – devido a isso a reforma ficou ligada

ao seu nome – que, objetivando elevar o nível de vida moral do clero, combateu o nicolaísmo

65 GIMPEL, J. A Revolução Industrial da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1976, p.9. Em contradição com Jean Gimpel, para Jacques Le Goff a invenção de técnicas entre os séculos V e XIV foi muito fraca e rudimentar, seu progresso foi mais quantitativo que qualitativo, além disso havia na mentalidade medieval um horror pela “novidade”, principalmente neste domínio. LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. v.1, p. 243-247. Acreditamos que, ainda que houvesse um horror pela “novidade”, esta existiu, devido, e certo ponto, ás necessidades impostas pela época. 66LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.1, p. 304. 67 ROMERO, J. L. La revolución burguesa en el mundo feudal. México: Siglo XXI, 1979. 68 Apud DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Trad. Maria Helena Costa Dias. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. p. 66. 69 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.2, p. 13.

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e a simonia70. No que se refere a sobreposição de poderes, os conflitos entre papas e

imperadores foram freqüentes, resultando na “Querela das Investiduras”.

Além disso, a Reforma Gregoriana teve suas manifestações iniciais no movimento de

pax Dei (“paz de Deus”), promovido em fins do século X, e da tregua Dei (“trégua de Deus”),

em princípios do século XI, desencadeando em fins do século XI na idéia de Guerra Santa,

que representou um importante papel no disciplinamento da violência e na externalização da

guerra feudal. Conseqüentemente, as Cruzadas, para além de exportar a violência, foi “um

fenômeno aglutinador da Cristandade sob o comando da Igreja”71, que difundindo valores

cristãos dava-lhe coesão.

Mas, apesar do esforço da Igreja em assumir o controle da sociedade, devido as

acentuadas transformações socioeconômicas descritas acima, esse foi um tempo de laicização,

humanização e racionalização, principalmente no que se refere aos conteúdos culturais72, que

presencia a elaboração das formas mais aprimoradas da poesia em língua vulgar e a

valorização da figura humana na arte representativa, especialmente a escultura73.

Principia-se a “Renascença do século XII”, conceito introduzido por Charles Homer

Haskins em seu estudo pioneiro sobre a renascença iniciada no fim do século XI e cessada no

primeiro quartel do século XIII74.

Segundo Ernest Robert Curtius, essa expressão “se origina dos reflexos do

florescimento italiano sobre o pensamento histórico do século XIX”, portanto não poderia ter

sido usada no período medieval. Entretanto, havia entre os contemporâneos, uma consciência

de uma época de transição e, segundo o mesmo autor, “nenhum século sentiu tão fortemente o

contraste entre o presente ‘moderno’ e a Antiguidade pagã-cristã como o século XII”75, o que

justifica este conceito que, no entanto, como nos lembra Marc Bloch, deve ser utilizado com

algumas ressalvas. Em primeiro lugar, houve uma mudança e não apenas uma simples

ressurreição e, em segundo lugar, apesar do movimento ter alcançado toda sua grandeza no

70 Sobre a complexidade das mudanças na vida religiosa medieval no século XII, ver o livro de Giles Constable que, na introdução, discute o próprio conceito de reforma. CONSTABLE, G. The reformation of the twelfth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 71 FRANCO JR, H. Op. Cit. p. 75. 72CARVALHO, Y. de. Para ler um Roman Medieval: as chaves de leitura do Tristan de Béroul. 2003 Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 3. 73 ZUMTHOR, P. Op. Cit. p. 241. 74 HASKINS, C. H. The Renaissance of the 12th century. Harvard: Havard University Press, 1927. Segundo Giles Constable, “Renaissance of the 12th century” de Haskins era parte do que tem sido chamado a revolta dos medievalistas, que resentem a implícita calúnia lançada sobre a Idade Média pela aplicação do termo renascença exclusivamente para uma idade tardia, e que continua achar outras renascenças por toda a Europa medieval”. CONSTABLE, G. The reformation of the twelfth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p.1. 75CURTIUS, E. R. Op. Cit. p. 321-322.

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século XII, cujo nome lhe é concedido, suas primeiras manifestações remontam ao fim do

século anterior76.

A “Renascença do século XII”, foi antes de tudo, uma “revolução escolar”77. Nas

cidades, devido ao contexto favorável acima descrito, houve uma transformação da rede

escolar com o florescimento das escolas-catedralícias, que sobrepujam as velhas escolas

monásticas. A grande afluência às escolas urbanas, principalmente as parisienses, criou a

atmosfera necessária ao surgimento das universidades; sendo a mais antiga a de Bolonha, de

1154, que surgiu a partir da reunião de escolas já existentes no local, assim com a

Universidade de Paris, de 1200, que desenvolveu-se mais lentamente. Com as universidades,

inicia-se uma nova época da educação medieval, que deixa de ser instrumento decisivo da

Igreja.

Houve uma releitura do patrimônio cultural clássico78 que havia sido conservado e

“cujo caráter pagão, que havia limitado sua utilização nos séculos anteriores, era sobrepujado

agora pela consideração de seu caráter científico”79 . Esta releitura foi propiciada pelas

inúmeras traduções de obras gregas e sobretudo árabes – “sendo estas, na sua maioria, apenas

interpretações do pensamento helênico”80- surgidas principalmente na Espanha e na Sicília.

A importância que os autores clássicos gozavam na Idade Média é incontestável,

como ilustra a famosa frase do teólogo e filósofo escolástico francês Bernardo de Chartres (-

c.1124): “Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais

longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas

porque eles nos elevam até o nível de toda a sua gigantesca altura.”81. No prólogo dos Lais a

autora define a posição dos “modernos” com relação aos “antigos”:

“Costume entre os antigos, como testemunha Prisciano, nos livros que outrora escreviam exprimir-se com bastante obscuridade para aqueles que viriam depois e que deveriam aprender com eles, pudessem glosar o texto e seus excessos de conhecimento colocar. Os filósofos sabiam, eles mesmos entendiam, quanto mais tempo transcorresse,

76 BLOCH, M. Op. Cit. p. 127. 77 VERGER, J. Universidade, p.574. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.2, p. 573-588. 78 Sobre o conceito de “clássico”, “antigo” e “moderno” ver CURTIUS, E. R. Op. Cit. p. 313-322. 79 FRANCO JR, H. Op. Cit. p.119. 80 BLOCH, M. Op. Cit. p.127.

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mais sutil seriam os sentidos e mais saberiam guardar-se contra o que estivesse por vir.”(Prólogo vv. 9-22),

Assim, Maria de França confirma que os “modernos” avistam mais longe que seus

predecessores, mas graças a eles e, a partir do final do século XII, na França, há um esforço

dos poetas em língua vulgar em divulgar o conhecimento sobre a filosofia antiga e, a exemplo

disto, no prólogo de suas Fables a autora escreve:

“Os que conhecem a literatura82 Deveriam bem colocar seu interesse Nos bons livros e escritos Nos exemplos e ditos Que os filósofos acharam.”83

Como vemos no trecho citado anteriormente, Maria de França menciona uma das

“autoridades” da Idade Média, Prisciano (século VI, aproximadamente 500 d.C.), autor de um

dos compêndios de gramática latina mais divulgados, a Institutio grammatica, e os chamados

Praeexercitamina (exercícios retóricos preliminares), uma tradução da obra grega de

Hermógenes, composta no século II d.C., que passou a fazer parte do sistema escolar latino.

Nesta última obra, encontram-se os principais topoi panegíricos da Antiguidade grega.

Sem a pretensão de afirmar que Maria de França havia lido as obras de Prisciano,

acreditamos que a autora utiliza-se de seu nome para dar maior veracidade ao que havia dito,

tendo em vista o prestígio que o passado e seus autores tinham na Idade Média.

A autora também menciona Ovídio no lai de “Guigemar” , uma alusão que parece, em

um primeiro momento, extraordinariamente negativa e será analisada no capítulo ulterior.

Neste lai, a parede do quarto da dama ilustra Vênus lançando um dos livros do poeta latino ao

fogo. Pelas indicações presentes no próprio texto, o livro a que refere-se é Remédios de amor.

Como no caso de Prisciano, isto não significa que a autora possuía um conhecimento direto

do poeta. Sendo importante ressaltar que Ovídio desfrutava de uma tão grande popularidade

nos séculos XII e XIII, que L. Traude chegou a denominar esse período por idade ovidiana84.

Desta maneira, Maria de França, apesar de mostrar conhecimento de latim, poderia ter tido

82 No texto original encontra-se o termo letreüre, que no francês antigo é usado, concomitante com o termo littérature, para determinar tanto o conhecimento do escrito e dos livros que são autoridade quanto, em menor freqüência, a própria materialidade da escritura. Portanto, ao traduzirmos letreüre por literatura, devemos levar em conta o significado que esta palavra tinha no século XII. 83 Apud CURTIUS, E. R. Op. Cit. p. 268. 84 BURIDANT, Claude. Introdução.p. XXXI In: ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant. Trad. Ione Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. IX-LXXVII.

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acesso a Ovídio por meio da tradução feita por Chrétien de Troyes de Remédios de amor

mencionada no começo de Cligés, ou até mesmo através das Institutiones de Prisciano, que

reproduzia numerosos exemplos dos autores clássicos, tal como Ovídio.

Por fim, “copiar, ler, escrever, imitar, comentar Virgílio, Horácio, Ovídio ou Estácio é

uma parte importante da atividade literária medieval” e, as influências ovidiana nos lais são

claras. Existem vários paralelos entre o lai de “Guigemar” e a história de Narciso e Eco em

Metamorfoses85, minuciosamente descritos por SunHee Kim Gertz86. Ainda nesta obra, temos

Pícaro e Tisbe, que conta a história de dois jovens vizinhos apaixonados que se comunicam

através do muro divisório, sendo-lhes impossível o contato pessoal, tal como no lai do

“Rouxinol” e, com a morte do rapaz a jovem não resiste a dor de perde-lo e morre em seguida,

o que nos remete ao lai dos “Dois Amantes” 87.

No entanto, apesar da literatura medieval perpetuar e, muitas vezes imitar a letra

antiga, que sofreu grande revalorização no período da “renascença”, existe uma ruptura

ocasionada pelas influências do mundo germânico e do mundo celta, que são estranhas à

latinidade88, e por um novo contexto histórico, caracterizado principalmente por uma

mudança de mentalidade89, de cosmovisão, inaugurada pelo cristianismo, que dirige os

valores e as apreensões realizadas pela cultura antiga. Assim, mais do que uma nova

influência ideológico-etnica-geográfica dos germanos e celtas, a civilização do Ocidente

medieval encontrava-se imbuída de um mesmo esquema mental cristão.

85 OVID: The Metamorphoses. Tranlated, and with an introduction, by Horage Gregory. New York: The new american library, 1960. Ver também OVÍDIUS NASO, PUBLIUS: The Metamorphoseon. Seleção, anotações e crítica de Adelino José da Silva D’Azevedo. 3.ed. São Paulo: Livraria Lusitana, 1956 86 GERTZ, S. K. Echoes and Reflections of Enigmatic Beauty in Ovid and Marie de France. SPECULUM. A journal of medieval studies, Massachusetts, v.73, n.2, p.372-396, april. 1998. 87 Ver sobre a relação Ovídio e Maria de França BRIGHTENBACK, K. The Metamorphoses and Narrative Conjointure in ‘Deus Amanz’, ‘Yonec’, and ‘Le Laüstic’. Romanic Rewiew, 72, p.1-12, 1981. 88ZINK, M. Literatura(s), p 81-82 .In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.2, p. 79-93. 89 Estamos utilizando a definição de mentalidade proposta por Hilário Franco Jr : “plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação. FRANCO JR, H. Op Cit. p.184.

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3. ROMAN E SEU NÚCLEO DIFUSOR.

Os Lais inserem-se no grande movimento de florescimento, nos séculos XII e XIII,

das literaturas em língua vulgar, que fazem frente ao latim, considerado a língua erudita desde

a época carolíngia90. Toda a Idade Média ficou marcada por este signo do dualismo

lingüístico, peculiar à civilização ocidental, excetuando a Inglaterra anglo-saxônica, onde

ainda que se escrevesse em latim, o Old English “tinha-se se elevado à dignidade de língua

literária e jurídica”91, desenvolvimento interrompido pela invasão normanda de 1066.

Apesar de fazer concorrência com o latim, as línguas românicas, independentemente

uma das outras, derivam-se dele, mas, devido o afastamento destas línguas do seu

denominador comum, por meio de uma lenta seqüência de mudanças fonéticas, morfológicas,

sintáticas, semânticas, para dominá-lo era preciso passar por uma longa aprendizagem escolar.

Por conta disto o latim, outrora uma língua materna – aprendida na infância -, tornou-se uma

língua escolar. Desta maneira, o cisma lingüístico passou a ser considerado um cisma cultural

entre dois grupos humanos, os illitterati , que compreendia a maioria da população e os

litterati, liderados pelos clérigos92. Assim, nos concílios do século IX, mais especificamente

de 813, percebemos uma preocupação em fazer-se entender pelos fiéis, o que só poderia

ocorrer se as instruções religiosas fossem dadas ou traduzidas em língua vulgar e não em

latim, que tornara-se incompreensível ao vulgo. Para ilustrar este fato, vale citar um trecho da

prescrição do concílio de Tours que, dentre os outros, exprime mais categoricamente esta

idéia: “Et ut easdem omelias quisque aperte transferre studeat in rusticam romanam linguam

aut theotiscam, quo facilius cuncti possint intellegere quae dicuntur” (“E que cada um se

esforce por traduzir as referidas homilias na língua romana rústica ou tudesca do modo que

todos possam entender mais facilmente o que é dito”)93.

Entretanto, o latim não era uma “língua morta”, apesar das línguas romanas serem a

“viva voz” – expressão presente em um capitulário de Carlos Magno. Sua sobrevivência é

90 “A absorção do Mediterrâneo ocidental pelo Islão rebaixou a cultura carolíngia a um nível de vida rústica. Desapareceu, entre os leigos, a capacidade de ler e escrever. Os carolíngios só encontram gente instruída no clero; precisam, pois, da colaboração da Igreja. ‘Aparece um novo traço essencial da Idade Média: uma casta clerical, que submete o Estado a sua influência’. Então o latim se torna língua erudita e como tal permanece durante toda a Idade Média”. CURTIUS, E. R. Op. Cit. p. 58. 91 BLOCH, M. Op. Cit. p. 97. 92 Interessante notar que no século XII, segundo Giles Constable, “clericus passou a significar quem tinha estudado e era letrado, e laicus, como simplex, idiota, e rusticus, era usado para alguém que era iletrado.” (tradução nossa, grifo do autor). CONSTABLE, G. The reformation of the twelfth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 9-10. 93 Apud LOT, F. Em que época se deixou de falar latim? p. 202. Signum – Revista da Abrem. Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo, n.8, p.193- 260, 2006.

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atestada por numerosos documentos oficiais, obras teológicas e escritos literários latinos e, só

no século XIII perde o status de linguagem do mundo intelectual da Europa, posto que os

escolares, já em fins do século XII, passaram a não utilizá-lo por considerar uma língua

“imprecisa” e “aberta”, na qual uma única palavra adequava-se a vários significados

diferentes94. O que não significou a estagnação ou o recuo da literatura latina, como

demonstra as obras de Dante, Petrarca e Boccacio, escritas tanto em italiano como em latim.

A essas línguas vulgares neolatinas, que aparecem em contraposição à língua erudita -

latim, a Idade Média aplicou o nome “românico”. Desta maneira, antes de designar um gênero

literário, romance, inicialmente advérbio, derivado do latim romanice, referia-se primeiro ao

oral e significava “língua popular”, depois, obra escrita em língua românica e, em seguida,

ganhou a concepção que permanece até os dias atuais.

O romance - na sua segunda concepção - dito cavaleiresco, que já anunciava-se de

certa maneira como gênero literário, surgiu entre 1150 e 1180, sendo contemporâneo das

canções de gesta que, apesar de ainda agradarem, foram perdendo espaço no gosto do público

a medida que a “verdadeira história”, lentamente, assumia a posição das epopéias na memória

coletiva95, o que não impediu que feitos grandiosos (des gestae) permeassem o novo gênero.

Esta nova forma poética jogava com a realidade e com elementos da ficção, contando

com a presença de dragões, feiticeiras, gigantes, fadas, encantamentos misteriosos, que

animavam as grandes façanhas e aventuras dos cavaleiros, permeadas de angústia, ódio

incontrolável, dor, paixões desenfreadas e amor. A presença do sobrenatural e do

extraordinário sempre fascinou o homem medieval e, nos séculos XII e XIII, ocorre a irrupção

do maravilhoso96, oriundo de diversas culturas antigas, inclusive pré-cristãs. Este

reaparecimento foi possível devido a pressão oriunda de certa base laica, a cavalaria, que

durante os séculos centrais medievais, foi adquirindo lentamente o estatuto de ordo,

recorrendo às tradições folclóricas para forjar sua identidade coletiva; e a relativa tolerância

da Igreja que, voltada principalmente à luta contra os hereges, diminui a repressão e as

barreiras que levantara, na Alta Idade Média, contra o maravilhoso97, que passa a ser

discernido como um intermediário, terreno e natural, do miraculoso de natureza divina e do

mágico de procedência diabólico, como ilustra esta frase do inglês Gervásio de Tilbury na 94 HEER, F. O mundo medieval. São Paulo: Ed Arcádia Limitada, 1968. p. 102. 95 BLOCH, M. Op. Cit. p.129. 96 Por maravilhoso entendem-se na atualidade uma “categoria intelectual, estética, cientifica ou mental”. Contudo, a Idade Média latina, em vez de uma categoria, via o maravilhoso como “um conjunto, uma coleção de seres, fenômenos, objetos, possuindo todos a característica de serem surpreendentes (...)” LE GOFF, J. Maravilhoso. p.106. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.2, p.105-119. Com respeito às fontes, características e funções do maravilhoso nos apoiamos em sua abordagem. 97 LE GOFF, J. O imaginário medieval. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Editora Estampa, 1994. p. 48-49

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enciclopédia Otia imperialia composta, em torno de 1210, para o imperador Oto IV de

Brunswick: “Mirabilia vero dicimus quae vostrae cognitioni non subjacent etiam cum sint

naturalia” (“Chamamos de maravilhas os fenômenos que escapam à nossa compreensão,

embora sejam naturais”)98.

Nos Lais, a presença do maravilhoso é constante. Desta maneira não nos causa

espanto a corça que fala no lai de “Guigemar” , já que o maravilhoso está ricamente presente

no mundo animal, repleto de “animais extraordinários”.

As metamorfoses humanas em animais, que gera grande perturbação entre os cristãos

e a Igreja, já que “criou Deus, pois, o homem à sua imagem” (Gn, 1: 27) ocorrem no lai de

“Yonec” e no lai do “Homem-lobo”. No primeiro, um cavaleiro metamorfosea-se em pássaro

para visitar sua amada, diferente metamorfose ocorre no segundo, no qual um homem

desaparece três dias da semana para transformar-se involuntariamente em um lobisomem. Na

literatura medieval abundam a figura do homem-lobo, inventado na Idade Média através da

dupla influência da literatura antiga, com destaque ao Satiricon de Petronio, e do folclore.

Já no lai de “Lanval” temos a presença da fada, malgrado não receber este designativo

no lai. Esta figura feminina sobrenatural, que nasce propriamente no século XII, exerce seus

dons mágicos para intervir nos acontecimentos humanos, apresentando-se como herdeira das

Parcas – personagem da mitologia antiga -, que por meio de uma lenta evolução teve seus

traços sobrepostos aos da fatas da literatura latina clássica e aos das mulheres sobrenaturais da

floresta de origem céltica, para que fosse composta a imagem da fada medieval.

O tema folclórico das fadas aparece em várias narrativas medievais, tornando-se um

topos literário, tal como o lobisomem. No lai, a fada é do tipo melusiniano, que tem como

característica básica a união amorosa, no mundo dos mortais, entre um ser sobrenatural, a

fada, e um mortal, no caso Lanval - sendo importante constatar que o imaginário erótico da

Idade Média é dominado pela figura das fadas amantes. Tal como na lenda de Melusina, a

união é mantida por um pacto no qual o cavaleiro, cumulado de grandes riquezas, deve

respeitar um interdito que, entretanto, é quebrado.

Vale destacar que por meio dos esquemas de Vladimir Propp propostos nos seus

estudos sobre a morfologia do conto, uma análise estrutural das diferentes versões desta lenda

torna-se executável. Assim, através de alguns exemplos do esquema de Vladimir Propp

citados por Jacques Le Goff99, enquadraremos o lai de “Lanval” :

98 Apud LE GOFF, J. Maravilhoso. p.108. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.2, p. 105-120. 99 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Op. Cit. p.302. Ver o artigo “Melusina maternal e arroteadora” presente neste livro (p. 289-310), no qual Le Goff, por meio de

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I – o herói afasta-se de casa – Lanval monta a cavalo e sai a passeio, e num prado o

encontro com a fada acontece.

II- É imposta ao herói uma interdição – Para ficarem juntos, a donzela adverte Lanval

a não revelar nada a ninguém. ( J. Kohler ao analisar a lenda melusiana e os outros mitos que

dela se aproximam, notou que o acontecimento que provoca a separação e o desaparecimento,

consiste na maioria das vezes na revelação da natureza deste ser mágico)

III- A proibição é transgredida - “... Surge então no conto uma nova personagem, a

que podemos chamar a antagonista. O seu papel é perturbar a paz da família feliz, provocar

qualquer desgraça...” (Propp)100 - No lai este papel cabe à rainha, mulher de Artur.

IV- O antagonista tenta obter informações – Através das acusações da rainha, Artur

convoca a corte para saber a verdade de Lanval. Neste momento, Lanval infringe a proibição

da fada.

Neste ponto ocorre um distanciamento101 do conto melusiniano e uma aproximação

dos contos morganianos irlandeses, visto que, mesmo com a infração, a fada não cumpre a

promessa de desaparecer como Melusina, mas ressurge inesperadamente e conduz seu amado

ao reino encantado de Avalon, assemelhando-se a Morgana, que atrai o herói ao Outro

Mundo102.

No lai dos “Dois Amantes” , os dois jovens apaixonados recorrem a uma mulher sábia,

parenta da jovem, para que prepare uma bebida mágica que dê forças ao donzel para cumprir

a tarefa exigida pelo pai da donzela:

“até o cume do monte fora da cidade entre os braços a carregará, sem nenhum descanso” (Dois Amantes ,vv. 44-46).

A presença de uma mulher mais velha que, por conhecer ervas e raízes, é perita em

remédios, remete as lendas célticas e está presente nas histórias de Tristão e Isolda. pequenas comparações, apresenta certas ligações entre as histórias de Melusina, ou possíveis Melusina, presente em três textos dos anos próximos de 1200 e em dois romances de cerca de 1400, além de discorrer acerca da questão das origens, da difusão, das hipóteses e dos problemas de interpretação. 100 Apud IDEM, Ibidem. p.302. 101 Ver o exame crítico da “morfologia” proppiana feito por Algirdas Julien Greimas, que nos alerta quanto ao perigo “da aplicação mecânica dos modelos proppianos – ou dos seus derivados triviais - a textos literários de uma grande complexidade”. É nesse sentido que rompemos com o esquema narrativo de Propp, visto que “[...] o valor do modelo proppiano, vê-se bem, não reside na profundidade das análises que o suportam, nem da precisão das suas formulações, mas na virtude de provocação, no seu poder de suscitar hipóteses [...]”GREIMAS, A. J. Prefácio, p.8. In: Courtés, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Trad. Norma Backes Tasca. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. p.7-34. 102Ver sobre a fada no Lai de “Lanval” RÍMOLI, M. T. Capítulo 5: A fada. In:Os tipos femininos do imaginário medieval nos Lais de Marie de France. 1996. 128f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo /Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 1996. p.96-113.

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Em suma, os Lais, assim como os romances arturianos e as histórias de amor de

Tristão e Isolda, recorreram as maravilhas da Matéria da Bretanha, expressão das velhas

lendas celtas, onde o fictício e o real vivem em harmonia, tal como o sagrado e o profano e,

ao incorporar elementos da realidade à narrativa, esses escritos afirmavam uma pretensão à

veracidade, como nos mostra Maria de França: “ Os contos que sei verdadeiros/ dos quais os

Bretões fizeram os lais,/ vos contarei brevemente” (Guigemar, vv. 19-21).

Entretanto, segundo Marc Bloch, a sociedade medieval deste período já estava

requintada o bastante para distinguir da descrição real a mera evasão literária103.

Além do maravilhoso, havia nestas histórias um esforço por analisar os sentimentos

individuais, convidando os leitores a meditarem sobre o eu, isto porque, na Idade Média

Central, o homem tornou-se mais livre, houve um movimento cada vez maior de emancipação

do indivíduo, uma maior preocupação com suas emoções humanas. O homem começou a

despertar para uma nova apreciação de mundo e, nesse momento, a juventude se ergue

sedenta de saber, de conhecimento e ansiosa para "descobrir mais, amar mais e até sofrer

mais", neste contexto, a literatura reflete acerca dos valores sociais, promovendo um choque

de modelos comportamentais, como veremos nos capítulos seguintes.

Estas obras literárias representam também o veículo pelo qual a cavalaria pode

registrar e expressar seu ideal cavaleiresco, que destacou-se através do fenômeno cultural da

cortesia104. As maneiras corteses foram forjadas ao sul do Loire, na Aquitânia, “numa

aristocracia cujos impulsos a Igreja, fechada nos seus claustros e nas suas litanias redentoras,

travava menos do que ao norte do Loire”105.

Esta região foi anexada a França, em 1137, em decorrência do casamento de Luis VII

(1120-1180), rei da França e Eleonora (1122-1204), uma das mais ricas herdeiras do

cristianismo ocidental, contando com o ducado referido acima, que se estendia entre Poitiers e

Bordeaux, atingindo Toulouse ao Sul. Este casamento foi aconselhado por Suger, abade de S.

Dinis a Luís VI, pai do noivo, que considerava o abade seu chefe espiritual e conselheiro

político e precisava trazer à Coroa, restringida a um exíguo território, as terras do duque da

Aquitânia, seu vassalo. Apesar dos esforços, este arranjo político - após várias intempéries,

sendo a mais famosa o escândalo lendário em Antioquia, em 1148, onde Eleonora recusou-se

seguir o marido, preferindo ficar na cidade com Raymond, seu tio paterno e senhor da cidade 103 BLOCH, M. Op. Cit. p.130 104 “A ‘cortesia’ é o ideal do comportamento aristocrático, uma arte de viver que implica polidez, refinamento de costumes, elegância, e ainda, além dessas qualidades puramente sociais, o sentido de honra cavaleirosa” RÉGNIER-BOHLER, Amor Cortesão, p.48. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v.1, p. 47-56. 105 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Trad. José Saramago.Lisboa: Editora Estampa, 1979. p. 131.

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- foi dissolvido em 21 de março de 1152 e, neste mesmo ano, oito semanas depois, outro se

seguiu: o casamento de Eleonora e Henrique II Plantageneta (1133-1189), rei da Inglaterra.

Com o fim do primeiro casamento, Eleonora readquiriu o ducado, que passou a fazer

parte das possessões de Henrique II que já contava com o ducado da Normandia e o condado

de Anjou, a posse do condado da Bretanha ocorreu por meio do casamento do seu filho

Geoffrey com Constança, filha do conde da Bretanha; nas ilhas, Escócia e Irlanda foram

relativamente controladas. Desta maneira, Henrique II torna-se “senhor de um vasto

organismo político só ultrapassado em extensão pelo Império Romano-Germanico”106,

formando, desta maneira, o “Império Angevino”, com seus contornos políticos bem definidos

através do fortalecimento do poder real, que afirma-se cada vez mais como uma monarquia

moderna, o que o distingue do restante dos reinos cristãos.

Nesta segunda união Eleonora, residindo em Angers, a principal cidade de Anjou, teve

condições de organizar a corte, assim como instaurar as maneiras cortesãs de viver, a seu

gosto107 e, a partir de então, desenvolveu-se um novo clima social que criou e organizou a

cultura cortesã, favorecida pela presença de intelectuais e trovadores, desafiados a eclipsar os

Capetos.

Logo, com a junção da Matéria da Aquitânia, caracterizada pelas doutrinas de amor e

de erotismo, ao espírito cortês e ao gênio celta, nasce a Matéria da Bretanha, citada acima. A

nova literatura, ligada às aspirações políticas do “Império Angevino”, era uma investida à

velha idéia franco-germânica do Sagrado Império de Carlos Magno108, e para fazer frente à

sua figura, cujo culto ganhava força em S. Dinis devido ao incentivo de Suger, voltaram sua

atenção para a lembrança do rei Artur, “envolvido nos entrelaços da imaginação céltica”109.

Sendo interessante notar que era proveitoso para os Plantagenetas colocarem-se como

herdeiros deste rei, já que assim, legitimariam seu poder perante os rebeldes bretões, sendo

significativo o fato de Geoffrey, filho de Henrique, colocar o nome de Artur em um dos seus

filhos110.

106MELLO, J. R. Os alicerces medievais da Inglaterra Moderna (1066-1327), p.33. In: MONGELLI, L. M. (Coord). Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (séculos XI-XIII) . Cotia, SP: Íbis, 1997. p.17-51. 107 HEER, F. Op. Cit. p.170 108 HEER, F. Op. Cit . p. 172. 109 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 131. Sobre a utilização da Matéria da Bretanha pelos Plantagenetas para se protegerem da sombra que lhes faziam os Capetos com a figura de Carlos Magnos, ver também KÖHLER, E. L’Aventure chevaleresque. Ideal et realité dans le roman courtois: études sur la forme des plus anciens poèmes d'Arthur et du Graal. 2.ed . Paris: Editions Gallimard, 1974. 110 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. Op. Cit. p. 11-12.Vale lembrar que aos Plantagenetas também foi atribuido por Geraldo de Cambrai (Geraldo de Barri), no início do século XIII, uma ascendência “melusiana”. De acordo com Jacques Le Goff, trata-se da utilização do maravilhoso para fins políticos que se dá sobretudo a nível das origens míticas. Assim, Geraldo afirma que a dinastia dos Plantagenetas teria tido uma

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Neste sentido, destacam-se as obras do poeta francês Chrétien de Troyes, que tendo

como patrono literário Maria de Champagne, filha de Eleonora, e também sendo protegido

por vários senhores da corte de Henrique Plantageneta e pelos condes de Flandes, transformou

toda a lenda arturiana em série de romans corteses, ocupando-se dos personagens mais

romanescos da Távola Redonda, de Erec, Lancelot, Guinevere, criando também a principal

versão da história de Perceval e da demanda do Santo Graal.

No lai de “Lanval” , Maria de França também faz uso de um falar propriamente

arturiano, com a presença do rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda, neste, como nos

outros lais, a Matéria da Bretanha está presente não como centro da narrativa, mas como

referencial histórico e, muitas vezes, geográfico. Quanto ao referencial histórico, todos os lais

estão projetados no passado, mesmo quando justifica, exalta ou questiona os valores do

presente.

Outro grande poeta que, juntamente com Chrétien de Troyes e Maria de França,

aperfeiçoou a nova forma do roman, transformando esse material em literatura de grande

destaque, é Gautier d’Arras; interessante notar que alguns de seus romances são como que um

protesto do Norte da França contra Maria de França e a corte de Eleonora de Aquitânia.

Em suma, apesar dos esforços dos reis angevinos, a Inglaterra permaneceu, durante

vários séculos, uma extensão da cultura francesa, sendo Paris sua capital literária e, no

decurso dos cem anos de aproximação com o continente nasceu, a partir do normando, uma

nova língua, o franco-normando ou anglo-normando, utilizada na corte e na administração

inglesa, substituída pelo inglês no século XIV, durante a Guerra dos Cem Anos. A produção

naquela língua foi diversificada o bastante para englobar quase todos os gêneros literários

típicos do medievo111, como os Lais de Maria de França, nos quais a autora demonstra estar

atenta a diversidade lingüística:

“Laüstic tem por nome, ao que me parece, assim o chamam em seu país; isto é russignol em francês e nihtegale em bom inglês.” (Rouxinol, vv. 3-6)

“Bisclavret é seu nome em bretão

mulher-demônio como antepassada, no século XI. Por meio de outros testemunhos percebemos que esta lenda era bastante conhecida ao ponto de Ricardo Coração de Leão utilizá-la para justificar suas atitudes desconcertantes e extravagantes. Ricardo gostava de dizer: “Nós, filhos da mulher-demónio...”. Entretanto este mito das origens maravilhosas era uma moeda de duas faces, visto que, Filipe Augusto procurou utilizá-lo contra os Plantagenetas, em especial contra João Sem Terra. LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 28-29. 111 MELLO, J. R. Os alicerces medievais da Inglaterra Moderna (1066-1327), p.34. In: MONGELLI, L. M. (Coord). Op. Cit. p.17-51.

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Garulf os chamaram os normandos” (Homem-Lobo, vv.3-4)

Aqui vale retomar a questão das línguas vulgares dentro de uma outra abordagem.

Segundo Jacques Le Goff, o recuo do latim diante das línguas vulgares em ascensão, não

ocorreu sem acessos de nacionalismos lingüísticos - foi defendendo a sua língua que uma

nação em formação afirmou-se. Assim, Lênia Márcia Mongelli afirma que durante a formação

e a ascensão das nacionalidades na Idade Média Central, todos os governantes estavam

empenhados, dentre outras questões, “na fixação da nascente língua nacional e seus

numerosos dialetos”, que consolida a autonomia dos reinos112.

Neste sentido, o Juramento de Estrasburgo, de 842, apresenta-se como um marco

histórico e lingüístico uma vez que, escrito e assinado por Luís em alemão e por Carlos em

francês, representa tanto a dissolução do Império Carolingio em nacionalidades separadas

quanto o emergir de duas línguas.

Entretanto, buscando a unidade da Cristandade Ocidental, os clérigos lutavam contra

as diversidades lingüísticas, que antecede as separações nacionais, associando-a ao pecado

original e ao símbolo da torre de Babel, que pretendiam combater por meio do latim, fator

determinante, segundo Ernest Robert Curtius, da unidade da civilização medieval européia.

Diante deste quadro a frase de Rangerius de Lucca de início do século XII torna-se inteligível:

“Tal como outrora Babilônia, com a multiplicação das línguas, juntou novos e piores males

aos antigos, assim a multiplicação dos povos multiplicou a seara dos crimes”113. A imagem

das línguas vulgares como fruto da diáspora de Babel ainda no século XIV é relembrada por

Dante em sua obra De vulgari eloquentia, I, VII e, neste mesmo século, em 17 de Junho de

1369, Gregório XI e o imperador Carlos IV proclamaram seu firme propósito de acabar com a

heresia e de queimar todos os livros, textos e sermões escritos em vernáculo114.

Contudo, havia os que defendiam a diversidade lingüística e nacional, ancorando-se

em um texto de Santo Agostinho: “O africano, o sírio, o grego, o hebraico e todas as outras

diversas línguas fazem a variedade do vestuário desta rainha que é a doutrina cristã. Mas, tal

112 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.2, p.32; MONGELLI, L.M. Op. Cit. p. 9. Nação como organização política autônoma que ocupa território com limites definidos e cujos membros respeitam instituições compartidas (leis, constituição, governo) ainda não existia verdadeiramente na Idade Média, apesar dos primeiros passos em busca de sua formação ocorrerem neste período, como tentou demonstrar o livro coordenado por Mongelli. Deste modo, quando utilizamos o termo nacional, seguindo o mesmo viés de Le Goff e Mongelli, referimo-nos antes a sua ligação com um determinado território, do que com uma determinada nação propriamente dita. De fato, o emprego deste termo neste contexto não deixa de ser contestável, embora o mantemos por comodidade de simplificação, ao consideramos o mais adequado a nosso propósito. 113 Apud LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.2, p. 30. 114 HEER, F. Op. Cit. p.398.

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como a variedade do vestuário concorre num só vestido, também todas as línguas concorrem

numa só fé. Que haja variedade no vestuário, mas não rasgões”115.

Fato que não abala a utilização do latim pelos clérigos como instrumento de

comunicação universal e, principalmente, de domínio das massas, já que tornou-se uma língua

de ordem: “o próprio exemplo de uma língua sagrada, que isola o grupo social que tem o

privilégio, não de a compreender – que pouco importa – mas de a falar, melhor ou pior”116.

Devido a isto, tendenciou-se dividir em dois planos a cultura literária medieval, tendo como

critério o idioma utilizado, assim, a cultura clerical seria latina e a cultura popular seria

vernácula. Mas, como bem demonstrou Hilário Franco Jr, a questão é mais complexa, já que a

literatura latina englobava tanto as obras nitidamente clericais, tais como as crônicas, as

poesias de cunho clássico, como as produções clericais de caráter popular – as hagiografias- e

as levianas, satíricas e mesmo obscenas feitas pelos goliardos. Na literatura vernácula

também existe esta combinação, pois havia as canções de gesta e o ciclo do Graal, que

caracterizam-se pela forte coloração clerical, ao lado dos lais e dos fabliaux, que são

acentuadamente laicos117 e marcaram a produção de Maria de França, que provavelmente

viveu e escreveu em alguma corte dos domínios dos plantagenetas.

115 Apud LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.2, p. 34. 116IDEM, Ibidem. p. 32. 117 FRANCO JR, H. Op. Cit. p. 113.

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Capítulo II: O amor cortês e os Lais de Maria de França.

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1. ENTRE O SAGRADO E O PROFANO.

O objeto de nossa pesquisa será o novo conceito de amor que surgiu no século XII. Os

termos usados na época pelos trovadores e trouvères118 para designa-lo era “fin’amour” ou

“vrai amour”. Considera-se que, em 1883, surge pela primeira vez a expressão “amor

cortesão” com Gaston Paris, em um artigo que escrevera sobre Le chevalier de la charrette (O

Cavaleiro da charrete), de Chrétien de Troyes119. No presente trabalho usaremos o termo

“amor cortês”, já consagrado pela historiografia e justificado pelo fato desta nova concepção

amorosa ser enquadrada em maneiras corteses e ter surgido no ambiente da corte, que também

é um dos cenários recorrentes dos romances.

Vale destacar que esta corte não era, a princípio, real ou imperial, centro de cultura

em épocas anteriores e também posteriores, mas a dos príncipes e a dos senhores feudais. Isto

porque, na Idade Média Central, o feudalismo já deitava suas raízes, favorecido pela perda de

controle, no final do século IX, dos reis carolíngios sobre a nobreza nas regiões que formaram

a França, ocasionando a fragmentação do poder. Essas cortes de pequena escala rivalizavam

entre si e para aumentar o brilho de sua corte a ponto de ofuscar outras, os príncipes e

magnatas preocupavam-se em torná-las um lugar agradável, fato que justifica o mecenato

principesco que procurava manter os melhores poetas em sua casa, a exemplo da corte de

Henrique Plantageneta.

É considerável a dificuldade dos historiadores para definir, em poucas palavras, o que

era a corte na Idade Média devido a sua complexidade interna, assim como sua variedade

temporal e espacial, apesar dos traços permanentes; problema talvez presente no próprio

período se levarmos em conta a frase de Gautier Map do final do século XII: “In curia sum et

de curia loquor, et quid ipsa sit nom intelligo” (“Estou na corte e falo sobre ela e não sei o

que ela é”120). A ambigüidade maior reside no fato de corte designar tanto o conjunto de

pessoas que acompanha o rei, o imperador, o príncipe ou o senhor feudal, quanto o lugar que

118 A França encontrava-se dividida, em termos culturais, em Norte e Sul, separadas principalmente por uma linguagem distinta, respectivamente langue d’oil e langue d’oc. “Troubadour, ‘trovador’, é o poeta lírico que vivia nas cortes do Sul da França, trouvère seu correspondente do Norte, que não tem em português um vocábulo específico para designá-lo. (N.T.)” RÉGNIER-BOHLER, D. Amor Cortesão. Nota 2. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2v. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.1, p.47-56. 119 PARIS, G. Etudes sur les romans de la table ronde: Lancelot du Lac. Romania 12, p. 459-534, 1883. Entretanto, Raúl César Gouveia Fernandes refuta a idéia que Gaston Paris foi o criador do conceito ao afirmar que o trovador Peire d’Alvernh já empregava a expressão “cortez amors” em seus poemas. FERNANDES, R. Amor e Cortesia na Literatura Medieval. NOTANDUM 7. Disponível em <<http://www.hottopos.com/notand7/raul.htm>>. Acesso em: 16 ago. 2007. 120 Apud GUENÉE, B. Corte. p.269. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord). Op. Cit. v.1, p. 269 -280.

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estes vivem. Entretanto, existiam dois termos latinos que faziam esta distinção: curia e curtis

respectivamente.

A presença da corte como cenário dava aos contos tonalidades de realidade e

verossimilhança. Assim como nos seus modelos históricos, as cortes nos lais existiam de

modo permanente e esporádico ao mesmo tempo. De modo perene, na época que nos cabe, ela

funcionava como pólo administrativo, contando com oficiais leigos responsáveis pela vida

cotidiana da corte e com os clérigos da capela que por sua vez velavam pelo serviço divino.

Os dois segmentos ajudavam o senhor tanto a lidar com os negócios administrativos quanto a

tomar decisões políticas e, por serem de confiança do senhor, faziam parte de seu conselho121.

Este aspecto, por mais que algumas vezes apareça implícito, devido a ausência de

especificações quanto a vida cotidiana da corte e as funções dos personagens que

acompanham os senhores, não está de todo omisso nos lais, que faz freqüentes referências à

presença de conselheiros. Para exemplificar tal observação, no lai de “Freixo” , os cavaleiros

feudatários insistiram para que seu senhor casasse com alguma mulher nobre e no lai

“Homem-Lobo” o rei acata o conselho de um homem sábio de investigar a causa da fúria que

acometera a besta.

Já as cortes esporádicas aparecem de modo latente nos lais por meio da convocação de

cavaleiros e barões para torneios (lai de “Guigemar”, lai de “Milun”, lai “O infortunado” ) e

festividades (lai de “Freixo”, lai “Homem-Lobo”, lai de “Lanval”, lai de “Yonec”). Outra

faceta da corte era transformar-se em tribunal, no qual eram sentenciadas querelas relativas ao

rei e seus vassalos, fato apresentado com singular nitidez no lai de “Lanval” em que, o rei

Artur, convoca seus homens para julgar a acusação que a rainha fizera de Lanval, seu vassalo.

Apesar da pertinência de tais observações, não devemos desprezar o fato de que a

cultura cavaleiresca/cortesã teve como centro de formação, enriquecimento e, principalmente,

difusão a corte, na qual foi forjada, no decorrer do século XI e XII, a “cortesia” – courtoisie,

derivada da palavra courtois, em francês, que surgiu por volta de fins do século XI, a partir da

palavra cour, court, que designa corte. A cortesia ditava as maneiras de viver, de vestir, de

falar, ou seja, o próprio modo de ser do indivíduo que se queria cortesão. Para isto foram

criados manuais de comportamentos corteses.

Este ideal de comportamento, que durante séculos foi proposto à sociedade ocidental

em diferentes lugares, foi alimentado por uma atmosfera particular da corte, na qual havia

121 GUENÉE, B. Corte. p.272. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord). Op. Cit. v.1, p. 269 -280.

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cavaleiros, clérigos e damas, os três sustentáculos desta cultura cortesã e de sua forma de

expressão que aqui nos interessa: a literatura.

Os clérigos eram responsáveis pela edificação das damas e dos senhores, assim

escreviam predominantemente em latim hagiografias, obras históricas, Espelhos. Mas vivendo

neste ambiente, alguns clérigos, sobretudo os que coabitaram na corte de Henrique II

Plantageneta, amaldiçoavam tanto a corte como sua cultura, sendo João de Salisbury e Gautier

Map seus grandes exemplos. Para eles, a corte era um lugar de desordem, onde os clérigos

deixavam de ser clérigos, os cavaleiros não eram mais cavaleiros, os homens também

deixavam de serem homens, já que incitados pela corte a usarem cabelos longos e anelados,

vestes de seda e sapatos de bico levantado, tornavam-se milites effeminati em vez de milites

litterati que, para estes clérigos, era o ideal122. Além disto, a corte era um lugar marcado pela

inveja, pelo ódio, pela ambição e pela bajulação. Uma das explicações desta hostilidade está

no fato destes clérigos serem formados segundo os rigorosos preceitos introduzidos pela

reforma gregoriana123.

Entretanto, muitos clérigos não ficaram indiferentes a nova cultura124 e compuseram

obras referentes a ela e a sua invenção capital: o amor cortês; o principal exemplo disto é a

obra de André Capelão, De amore, “Do amor”, ou De honeste amandi, “Do amor honesto”,

terminada por volta do ano 1186, em Paris, em um ambiente de mecenato benévolo à

produção literária, o círculo de Maria de Champagne, filha de Eleonora de Aquitânia.

Segundo Moshe Lazar “não é impossível que Maria de Champagne tenha sido inspiradora

dessa obra”125, idéia expressamente refutada por Georges Duby126, o qual também rejeita o

título Tractatus de amore, “Tratado do amor cortês”, dado pelo editor e tradutor francês

122 Vale colocar que a propagação da moda foi estimulada tanto pela melhora da comunicação quanto pelas transformações económicas dos séculos XI e XII que tornaram os bens de luxo mais disponíveis. Assim a invenção e adoção de certas modas pelos homens foram alvo de críticas dos cronistas monásticos do século XII que “encontravam sinais de declínio moral não nas roupas alongadas e justas das mulheres, mas antes nos laços apertados e nas caudas exageradas dos homens, cujas cabeleiras caídas e andar afectado completavam uma ameaça travestida aos modelos de um passado marcial” e, só no século seguinte o olhar destes moralistas vira-se para as mulheres e para seu interesse pela moda, ainda que, prescrições de como se vestir permeiem a literatura didática e pastoral desde os finais do século XII. Interessante o fato da crítica aos homens por adotarem as moda feminas ter cedido espaço à critica das mulheres por usarem vestuário masculino. HUGHES, D. O. As modas femininas e o seu controlo, p.186 - 187. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) História das mulheres no Ocidente. A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990. v.2, p. 185 – 213. 123 GUENÉE, B. Corte. p.275-276. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord). Op. Cit. v.1, p. 269 -280. 124 Em sua investigação, na França de língua d’oil, Duby observa que os criadores da literatura cortês foram homens de Igreja que, além de responsáveis pelos serviços divinos, ajudaram na edificação da cultura de corte. O autor ainda acrescenta que foi através dos clérigos domésticos que as cortes principescas tiveram acesso às descobertas, no domínio da afetividade, que os doutores faziam em Clairvaux, em Chartes, em Paris, nos mosteiros, nas comunidades de cônegos regulares, no claustro das catedrais. DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.121-122. 125 LAZAR, M. Amour courtois et fin´amors dans la littérature du XIIe siècle. Paris: Klincksieck, 1954. p.268 126 DUBY, G. Op. Cit. p. 146.

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Claude Buridant, por não considerar esta obra um “tratado” – vale colocar que na filosofia

medieval tractare era um termo técnico que significa “tratar filosoficamente”.

De qualquer maneira, André Capelão escreve na língua das escolas, o latim, uma obra

que não é de ficção, mas normativa, moldada pela retórica e pela dialética amorosa

caracterizada pela “ars disputandi”, na qual, por meio de uma justa de palavras, um

argumento e seu contrário são defendidos com a mesma persistência, assemelhando-se assim

ao torneio.

Além disto, o autor que codifica a ideologia amorosa presente nas cortes e fornece

preceitos de uma moral sexual, organiza a obra de uma maneira contraditória, contrapondo a

louvação do amor apresentada no livro I à condenação deste no livro III, proferida por meio

de julgamentos que depreciam o amor dito cortês e enobrecem o único amor verdadeiro: o

amor a Deus. Mas, apesar disto, seu trabalho passou a ser considerado o primeiro e único

tratado sério sobre este tema, ganhando fama e respeito em toda a Europa127, até que em 7 de

março de 1277, suas polêmicas teorias foram condenadas pelo bispo de Paris, Estevão

Tempier128.

Neste capítulo, a obra de André Capelão será de grande valia ao ser comparada com a

nossa fonte com o intento de verificar quais as “regras” do amor cortês recolhidas e

codificadas de maneira metódica pelo autor, que apesar de parecer inspirado nas obras de

Ovídio, baseava-se sobretudo no modo de vida cortês, considerando-as como um arquétipo –

apesar de suas próprias inclinações, que levaremos em conta -, e a sua forma de utilização por

Maria de França.

127 HEER, F. O mundo medieval. São Paulo: Ed Arcádia Limitada, 1968. p. 179. 128 A suposta incongruência da obra de André Capelão foi objeto de várias interpretações distintas, mas foi a tese de Paul Zumthor que relacionou a organização do Tratado que, a primeira vista, surge como incoerente, com a questão da heresia. Este autor, tomando por base a situação pessoal de André Capelão, coloca que este teria percebido os excessos que conduziria sua teoria do amor a um estatuto de heresia: “Como sacerdote, André Capelão sentia o perigo que constituía tal doutrina. Mas, enleado em seus princípios – e também porque, segundo toda probabilidade, ele só estava codificando o que era uma situação de fato no meio em que vivia -, ele só podia escapar assumindo um papel duplo e contraditório: donde o ‘De Reprobatione Amoris’ após os dois primeiros livros da obra”. ZUMTHOR, P. Notes em marge du Traité de l’amour d’André le Chapelain. Zeitschrift für romanische Philologie, [S.I.], 63, p.176-91, 1943. apud BURIDANT, C. Introdução, p.LXIX- LXX. In: ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. IX-LXXVII Contudo, mesmo usando esta artimanha, André Capelão teve sua obra condenada como heresia por um decreto do bispo Estevão Tempier, que incrimina todas as obras que amparem a existência de duas verdades, uma segundo a filosofia e uma segundo a fé. No Tratado há, de fato, uma moral da natureza e uma moral cristã que o autor parece defender como verdadeiras ao mesmo tempo. apud BURIDANT, C. Introdução. Nota 178. In: ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. IX-LXXVII

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Mas antes, faremos algumas pontuações a respeito do ideal amoroso, pois, como

coloca Hilário Franco Jr, já se chegou a propor que o amor foi uma invenção do Ocidente129

mas, o que ocorreu, foi a proposta de que poderia haver “entre os dois sexos relações

diferentes das do instinto, da força, do interesse e do conformismo”130. Essa representação

mental do amor entre o homem e a mulher, que funde desejo, amizade, fidelidade,

cumplicidade, foi considerada uma novidade do século XII, proporcionado pelo surgimento

da cultura cavaleiresca, não que esta o tenha inventado, mas lhe outorgou um significado

diferente, com um sentido espiritual e ao mesmo tempo carnal.

Segundo o autor Arnold Hauser131, o amor sexual já havia sido tratado na idade

clássica ou pré-clássica pela lírica grega, mas não tinha um papel primordial como assumiu na

Idade Média Central. À exceção da época helenística, o amor não era uma temática até o

apogeu da cavalaria. Como coloca este autor, os motivos de amor, principalmente depois do

período clássico, passam a ter cada vez mais importância, entretanto nada comparado à

relevância que ganham na literatura cortês medieval. Na Ilíada, apesar do enredo girar à volta

de duas mulheres, Helena e Briseis, não existe uma história de amor, tanto é que se

colocarmos em vez destas mulheres outro objeto de disputa o essencial do poema não se

alterará. Também na Odisséia, existe um certo valor emocional no episódio de Nausica, mas

temos que levar em conta que este não passa de um simples episódio. E as relações do herói

com Penélope reforçam a idéia da mulher como objeto de posse. Mas com Eurípedes, o amor

ganha maior espaço e se transforma em motor basilar de uma série de situações, motivo que

acaba sendo utilizado pela velha e pela nova comédia, começando a ganhar certas

características românticas e sentimentais, não só mais sexuais, na literatura helenística,

especialmente na Argonáutica de Apólio. Entretanto, diferente da literatura cavaleiresca, o

amor é colocado como uma terna emoção ou ainda uma paixão violenta e não como um

agente educacional, fomentador das mais profundas experiências de vida.

Em suma, percebemos que a especial fascinação das histórias de amor foram

descobertas pelos helenistas e reutilizadas como centro da narrativa somente no período de

advento da cavalaria, já que na época clássica o interesse estava antes nos contos de heróis e

nos mitos e na Alta Idade Média nas histórias de heróis e de santos. Não desconsideramos a

presença de motivos amorosos, mas estes apareciam na maioria das vezes de forma pejorativa,

visto que os poetas que ocupavam-se do amor partilhavam das concepções de Ovídio

129FRANCO JR, H. Tratado de Amor Cortês, escrito por um religioso do século XII, define de modo rigoroso as regras para o amor nobre e elevado. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 de ago. 2000. Mais São Paulo, p. 26. 130 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. v.2, p.117. 131 HAUSER, A. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1, p.288-290.

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presentes na obra Os Remédios do Amor, na qual o amor aparece como uma doença que

enfraquece a inteligência dos homens, tornando-os desprezíveis e merecedores de lástima, já

que portando este sentimento, perdem a liberdade escravizando o coração.

Além disto, na época clássica e na Alta Idade Média, o amor era visto também como

um princípio filosófico, como o demonstra Platão, os neoplatônicos e Santo Agostinho132. No

diálogo entre Sócrates e Diotima, sacerdotisa de Mantinéia, Platão coloca que o amor, Eros133,

é filho da pobreza, Penia, e do recurso, Poros, fato que justifica a sua posição intermediária

entre a sabedoria e a ignorância, sendo filósofo, visto que, se Eros é amor ao belo, uma das

coisas mais belas que existe é a sabedoria. Desta maneira, para Platão o amor impulsiona o ser

humano, sensível a seus efeitos positivos, na busca do conhecimento, elevando-o para além

do mundo físico, em direção às alturas do mundo ideal, onde encontram-se a Beleza, a

Verdade e a Bondade.

Como um dos principais representantes do neoplatonismo, o filósofo egípcio Plotino

(205-270) teve como preocupação primordial o progresso espiritual do homem para o “Uno”,

o “Bem” de Platão. Assim sendo, este autor coloca que o amor, como aliado poderoso no

processo de autopurificação, abre o caminho, por meio da contemplação da Beleza, da

conversão e do retorno da alma ao Uno, uma realidade transcendente de onde tudo tem

origem. Vale destacar que Plotino, assim como Platão, reconhece a existência de um tipo de

amor que não eleva o indivíduo, pelo fato deste não só não reconhecer a Beleza superior do

outro, ficando ligado apenas à sua beleza terrena, o que não é por si só culpável, mas é culpa a

degradação no prazer sexual, que perverte o amor ao torná-lo apenas atração física.

Plotino ficou conhecido na Idade Média apenas de maneira indireta por meio daqueles

a quem tinha influenciado, dentre os quais se encontra Santo Agostinho (354-430), que

procurou fundir conceitos neoplatônicos e cristãos. Assim como Platão e Plotino, Santo

Agostinho acredita que o amor eleva o indivíduo à verdade mas, para o bispo de Hipona, esta

elevação ocorre no sentido do conhecimento unitivo de Deus, das verdades ocultas nas

Escrituras. Assim como em Coríntios 13, o amor para Santo Agostinho é tudo e deve estar

132 As considerações seguintes sobre o que seria o amor para Platão, Plotino e Santo Agostinho tem por base SCHOEPFLIN, M. O amor segundo os filósofos. Trad. Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2004. 133 A Teogonia de Hesíodo (séc VII a. C.) é o primeiro texto grego em que o deus aparece, já que Homero não o menciona enquanto divindade do amor. Vale destacar também que “Eros é uma das divindades mais literárias do panteão grego. Os pintores, sem dúvida, muito contribuíram para transmitir-nos sua representação, mas ela é elaborada sobretudo pelos poetas. Essa representação mostra uma singular duplicidade: na verdade, a imagem que nos é familiar do jovem deus do amor sucedeu a um aspecto mais antigo, que em conformidade com o sentido do substantivo eros representa a força abstrata do desejo: tal é o Eros primordial evocado em certos mitos da criação do mundo.” LÉVY, A-D. Eros. p. 319. In: BRUNE, P. (Org) Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind et al; prefácio à edição brasileira Nicolau Sevcenko. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p. 319-324.

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acima de todas as coisas, entretanto, este amor, chamado pelo autor de caridade134, é o amor a

Deus, que deve estar acima do amor ao pai, à mãe, à esposa e aos filhos (“Quem ama seu pai

ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama seu filho ou sua filha mais do

que a mim, não é digno de mim” – Mt 10: 37,38). Mas com a variedade de suas belezas o

mundo nos atrai para o amor ilícito, visto que a beleza do Criador só é visível àquele que crê.

Em suma, para ser habitante da Cidade de Deus, o indivíduo deve amar a Deus acima de tudo,

respeitando a ordem hierárquica correta, que não menospreza o amor ao próximo. Contudo, se

ligado aos prazeres do mundo, ao desejo desordenado das coisas, o indivíduo habitará sempre

a cidade terrena.

Em contraste com estas concepções, o amor cortês, se bem que espiritualizado, contém

um feitio sensual e erótico. E já não é o conhecimento de uma verdade transcendental que se

consegue com o amor, mas um enobrecimento do próprio ser em sua realidade terrena.

Assemelhando-se à idéia de Santo Agostinho, o amor cortês é também visto como fonte de

todo o bem, a raiz de todas as virtudes. Entretanto, este amor não se dirige a Deus, mas ao

próximo de sexo oposto, surgindo assim um culto do amor que, tal como na mitologia

clássica, acaba sendo personificado em um deus caprichoso, tornando-se também uma das

figuras favoritas da alegoria medieval135 - visto que, a Idade Média recorria à alegoria para

melhor realizar a sua humanização do divino.

Assim, André Capelão ilustra a onipotência do amor no quinto diálogo, no qual

coloca o nobre argumentando a uma mulher da nobreza que é o deus do Amor que comanda

todo o Universo, e sem ele ninguém pode realizar nada de bom na Terra e, quem não age

conforme a vontade do Amor, sofrerá os piores tormentos, caso contrário, será

recompensado136. Nos lais, o Amor aparece como aquele que convoca seus seguidores: “O

Amor fez dele um dos seus” (Equitan, v.58), “Amor lança sua mensagem,/ que a convocava

para o amar” (Eliduc, vv. 304-305), contudo, os amantes recorrem constantemente ao Deus

134 Agape era o termo utilizado pelos gregos para designar amor divino. Pela ausência de um termo latino que o substituisse, utilizou-se então caritas. 135 “A petição amorosa deve estar ligada ao valor pessoal. Aquele que deseja tornar-se amante de uma dama se mostrará leal e cortês, dedicará toda sua atenção a fazer o elogio da amada, e, particularmente na França do Norte, dentro da problemática romanesca do aperfeiçoamento pessoal, mostrar-se-á exemplar nos torneios e combates (...). A alegoria do deus do Amor serve para revelar a submissão ao sentimento que, doravante, é a única razão de viver do poeta”, apud RÉGNIER-BOHLER, D. Amor Cortesão, p.49. In: LE GOFF, J; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v1, p.47-56. 136 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. 91. Conforme a note 56 presente nesta página, já em Ovídio, Fedra diz a Hipólito: Quidquid Amor iussit, non est contemnere tutum (“Não é seguro desdenhar o que o amor ordena”). Vale também aduzir a autoridade de Virgílio: Omnia vincit amor; et nos cedamus amori (“Amor tudo vence; e nós devemor ceder a Amor” ) apud CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p.174

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cristão nos lais, Guigemar, por exemplo, “ Pede a Deus que o proteja,/ que seu poder o

conduza a um porto / e o defenda da morte” (Guigemar, vv. 200-203) e em outro momento,

“pedia a Deus onipotente que o fizesse morrer logo e que não o deixasse chegar a um porto, se ele não pudesse rever sua amiga, que ele desejava mais que sua vida” (Guigemar, vv. 624-628)

Outro trecho que devemos destacar encontra-se no lai de “Yonec”, no qual a Dama

coloca que só aceitará o cavaleiro como amante com a condição que este creia em Deus137:

“ respondeu ao cavaleiro e disse que fará dele seu amante, contanto que ele creia em Deus e se assim for seu amor será possível”. (Yonec, vv.141-144)

Assim sendo, o cavaleiro afirma:

“Eu creio firmemente no Criador, que nos libertou da tristeza em que nos colocou Adão, nosso pai, pela mordida da maçã amarga; Ele é, será e foi sempre vida e luz para os pecadores” (Yonec, vv. 153-158)

Em alguns trechos da versão alemã de Tristão e Isolda, de Gottfried von Strassburg,

escrita em meados do século XIII, também fica evidente a confiança que Isolda depositava em

Deus, que por sua vez a protegeria no momento do ordálio, costume que podia, ao mesmo

tempo, libertar ou acusar uma pessoa: “Estando nesta situação, Isolda havia projetado uma

argúcia confiando na mentalidade cortesã de Deus”138

“Isolda havia confiado sua honra e sua vida por inteiro à misericórdia de Deus. Seu coração e sua mão os ofereceu temerosa, como era próprio, à relíquia e ao juramento. A mão e o coração os encomendava à piedade divina para proteção e tutela”139

137 É importante colocar que a Igreja proibia expressamente o casamento de cristãos com infiéis e considerava o contato sexual entre ambos, principalmente se estes últimos forem judeus, um pecado mais grave que a fornicação ou o adultério entre cristãos, sendo igualado à bestialidade e passível de fogueria. L’HERMITE-LECLERCQ, P. A ordem feudal (século XI-XII), p.289. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 273-329. 138 STRASSBURG, G. V. Tristán e Isolda. Edicion preparda por Bernd Dietz. Madrid: Editora Nacional, 1982. p.298. 139 IDEM, ibidem. p.300. Vale destacar que, como coloca Miriam Lourdes Impellizieri Luna da Silva, “os julgamentos seguiam as normas ditadas pelo costume e, até 1215, quando condenado pelo IV Concílio de Latrão, era comum a imposição do julgamento de Deus ou o ordálio”. SILVA, M. L. I. L. da. Entre o amor e a cavalaria:

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Percebe-se que Deus comparece ao cenário e perante Ele a humildade dos amantes;

estes tornam Deus um personagem atuante, sendo aquele que julga e, ao mesmo tempo,

protege e intercede em favor deles. A justiça divina contrasta com a justiça humana,

apresentada como limitada diante das questões do amor140.

Assim, além do deus do Amor, os amantes depositavam confiança no Deus cristão,

existindo uma mistura do sagrado e do profano que engendra um “Deus cortesão” ou, até

mesmo, uma fusão de ambos: “Deus do Amor”. Isto explica-se tanto pela mudança de

percepção religiosa da época que passa a enaltecer o Deus Filho, humilhado, piedoso em

detrimento do Deus Pai, rígido, exigente, quanto pelo fato do amor cortês ser colocado como

um sentimento divinizado, enaltecido espiritualmente, e não simplesmente um amor carnal. É

composto, sobretudo de afeto e não só de desejo141: “Ele se deitou ao lado dela no leito;/ mas

ele não quis tocá-la/ nem abraçá-la nem beijá-la” (Yonec, vv.170-173).

Como Tristão e Isolda142, os amantes nos lais não se sentem culpados diante de Deus

que, acreditam, os entendem e os ajudam, já que ninguém é responsável pela força misteriosa

e devastadora que esse sentimento, avesso a qualquer controle, comporta e que, Maria de

França furta-se, muitas vezes, dizer que é alegre:

“Amor é uma chaga dentro do coração que nunca aparece por fora; é um mal que dura muito porque vem da natureza” (Guigemar, vv. 483-486)

“O amor fez dele um dos seus. Atirou contra ele uma flecha, que muito grande ferimento o fez: se fixando em seu coração” (Equitan, vv.58-61)

“Os outros há muito que estão mortos e com sua vida esgotaram a grande pena que sofriam pelo amor que vos tinham” (O infortunado, vv.211-214)

Lancelote, o cavaleiro da charrete, p.45. SÆCULUM. Revista de História, João Pessoa, ano 10, n.11, p. 42-53, ago./dez. 2004. 140CARVALHO, Y. de. Para ler um Roman Medieval: as chaves de leitura do Tristan de Béroul. 2003 Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. p.165? 141 CARVALHO, L. C. O emergir da idéia de amor. p.528. In: ANDRADE FILHO, R. de O. (Org) Relações de Poder, Educação e Cultura na Antigüidade e Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005. p. 525-528. 142 Cf. DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 95.

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A metáfora da flecha que, lançada ao coração, causa grande ferimento nos amantes e

os fazem queimar no fogo do amor, aparece de maneira latente nos lais, assim como em

grande parte dos escritos da literatura cortês – incluindo o Tratado do Amor Cortês. No

entanto, este tema nos remete à Antiguidade. No séc. V a.C. “Eurípides introduz o arco e a

flecha com que Eros fere os corações quando não os incendeia com tochas, como se pode ver

em outras representações”143 e, na sua obra A arte de amar, a titulo de exemplo, Ovídio

recorre à imagem da flecha atirada por Cupido (nome latino do Amor).

Encontramos neste ponto a primeira contradição do amor cortês que, apesar de ser

considerado fonte de todo bem, lança aquele que ama rumo ao sofrimento e até a morte.

Segundo José D’Assunção Barros144 a relação entre o amor e a morte é um dos paradoxos

mais intrigantes do amor cortês, que tem ocasionado interpretações que, em certos casos,

parecem afirmar reflexões feitas pela Psicanálise no sentido de entender a especial relação que

o erotismo e a morte parecem reter entre si. Além disto, segundo o mesmo autor, a morte

como solução final ao amor extremado,

[...] também aproxima o amor cortês de outros sistemas de entrega de si, como o Amor Místico que em última instância aspira a uma fusão com o Criador ou a um mergulho no reino indiferenciado onde os sofrimentos da vida mundana já não mais existem. A Morte, em todos estes casos, é o caminho possível para superar definitivamente os limites que aprisionam o homem, e que no caso do Amor Cortês impedem ao amante a interação definitiva com a amada.145

Desta maneira, tanto Maria de França quanto André Capelão colocam que aquele que

ama se expõe a morte que, em todo caso, é desejada quando a posse do outro é negada (a vida

ganha um valor condicional), posto que a ausência do outro é um castigo, uma espécie de

suicídio voluntário e, na linha que estamos percorrendo, da intercessão do sagrado e do

profano, entre o plano espiritual e o terreno, essa ausência do outro parece simular a perda do

paraíso, devido à tristeza na qual o amante emerge e a ausência total de prazer, alegria e

consolo:

“depois disse-lhe: ‘Belo, doce amigo, meu coração me diz que vos perco; vistos seremos e descobertos. Se você morre, eu quero morrer” (Guigemar, vv.546-549)

“ ‘Por Deus’, disse ele, ‘minha doce amiga,

143 LÉVY, A-D. Eros, p. 321. In: BRUNE, P. (Org) Op. Cit. p. 319-324. 144 BARROS, J. D'A. O amor cortês. Rio de Janeiro: Cela, 2002. p. 20. 145 IDEM, ibidem. p. 21.

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permita um pouco que eu vos diga: você é minha vida e minha morte, em vós está todo meu consolo” (Eliduc, vv.669-672)

“ ‘Com você’, disse ela, ‘levai-me, já que ficar não quereis! Se não, eu me matarei, Jamais nem alegria nem bem terei’” (Eliduc, vv. 679-682)

E, no Tratado, no sexto diálogo, por exemplo, um grande senhor diz a uma plebéia: “É

a esperança de ser amado por vós que me mantém vivo, e, se perder essa esperança, só me

restará a morte” 146. Nada de surpreendente, já que “morrer de amor” é um lugar-comum, um

clichê literário. Entretanto, o autor utiliza este tema como um dos motivos para a condenação

do amor:

[...]sentir amor por alguém é cometer grave ofensa contra Deus e, para muitos, é expor-se ao risco de morrer. Ademais, parece que o amor leva os que o sentem a sofrer inúmeros tormentos, reservando-lhes torturas diárias e incessantes. Que bem poderíamos encontrar na ofensa ao esposo celeste e ao próximo, sabendo-se que aqueles que assim agem expõem-se ao risco de morrer e são atormentados por torturas ininterruptas?147

Será então que o amor deve dirigir-se somente a Deus? Como coloca Georges Duby,

certas razões imperiosas deveriam levar-nos a falar do amor a Deus, visto que:

[...]se na evolução da cultura européia existe uma inflexão, eu diria mesmo uma curva, e decisiva, no que diz respeito à idéia que os homens fizeram do sentimento que chamamos amor, é nos textos dos pensadores da Igreja que nós, os historiadores, podemos discerni-la em primeiro lugar.148

Desta maneira, por meio dos escritos deste autor, retomaremos sumariamente algumas

reflexões feitas por importantes membros da Igreja, começando com o polêmico Pedro

Abelardo (1079-1142), condenado duas vezes por heresia, respectivamente em 1121, no

Concílio de Soissons, e em 1140, no Concílio de Sens, sendo proibido pelo papa tanto de

escrever como de ensinar.

Na sua introdução à Teologia, retomando Cícero, para quem a amizade (amicitia) é

vontade, a do bem do amigo, Abelardo define o amor como “uma vontade boa em relação ao

146 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p.102. 147 IDEM, Ibidem. p.142. Nesse sentido, Gottfried Von Strassburg questiona: “Por que não havia de estar disposto um homem a sofrer um mal em troca de um bem mil vezes maior, em troca de muita alegria uma aflição?”. STRASSBURG, G. V. Op. Cit. p. 43 148 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. p. 28.

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outro, e por ele, que nos faz desejar que se conduza bem, e isto só o desejamos antes por

causa dele do que por nossa causa” e, comentando a Epístola de Paulo aos Romanos, afirma:

“Não se pode falar de amor a Deus se se ama para si, não por ele, e se pomos em nós, não

nele, o fim de nossa intenção”149.

Dentre seus críticos estavam Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry e

Hugo de Saint-Victor150. Os clérigos da abadia de Saint-Victor, apresentavam aos alunos as

vias agostinianas da contemplação e, sem condenar expressamente o instrumento dialético,

afirmavam que se pela razão podemos aproximar-nos de Deus, somente pelo impulso do amor

chegaremos ao grau supremo de conhecimento, à plenitude da iluminação. Assim, Hugo de

Saint-Victor (1096-1141), como Santo Agostinho e como Suger – cujo pensamento devia

muito aos ensinos dos mestres de Chartres que, com suas concepções de inspiração platônica,

convidavam mais às efusões do coração do que às reflexões lógicas -, coloca que a alma

descobrirá que cada imagem sensível é “sacramento” das coisas invisíveis quando se tiver

libertado do seu invólucro corporal, por meio de uma progressiva ascensão espiritual. Cister

retoma sua doutrina e, juntamente com a Escola de Saint-Victor, durante o século XII, torna-

se o principal centro de misticismo151.

Também de ascensão espiritual fala Guilherme de Saint-Thierry ao celebrar o amor

mediador. Seu pensamento foi enriquecido e consolidado pela leitura do tratado Da Amizade,

de Cícero, e da obra Arte de amar, de Ovídio, isto é, afirma Georges Duby, “os mesmos

textos que usavam então os clérigos das escolas do Loire e os trovadores com quem se

cruzavam nas cortes principescas, para afinar a teoria duma outra eleição amorosa, esta

profana: o amor cortês.” 152

Assim, do mesmo modo que o cavaleiro é levado, por meio de façanhas e pela

sublimação do desejo, a conquistar pouco a pouco o amor da dama, Guilherme de Saint-

Thierry

[...]leva os seus discípulos místicos por uma procissão por graus que do corpo, sede da vida animal, se eleva à alma, sede da razão, depois ao espírito que os coroa, sede do êxtase amoroso. Pelo fogo do amor, verdadeira inteligência de Deus, “a alma

149 Apud DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p. 124-125. 150 Interessante a descrição que Hugo de Saint-Victor faz de Abelardo: “Filho de pai judeu e de mãe egípcia”. Nesta frase, Hugo parece sentir a “diferença racial” entre Abelardo e ele próprio, filho de um nobre alemão. Tal diferença ocorre também entre os dois grandes adversários, Abelardo e Bernardo de Claraval, filho de um nobre borgonhês. HEER, F. Op. Cit. p. 111. 151 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Trad. José Saramago. Lisboa: Editora Estampa, 1979. p.124; LOYN, H. R. (Org) Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral, revisão técnica Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 195. 152 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p.124

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passa do mundo das sombras e das figuras para a luz do pleno meio-dia, na luz da graça e da verdade153.

Bernardo de Claraval (1090-1154), abade cisterciense considerado o grande defensor

do pensamento ortodoxo no Ocidente, partidário desta concepção, descreve, em 1126, no seu

tratado teológico Do amor por Deus, a progressiva sublimação do desejo. Primeiramente, o

homem estima a si próprio, tendo o apetite originado-se do mais profundo do carnal. Subindo

um degrau, o homem passa a amar a Deus mas, a princípio, de modo egoísta, “para si

próprio”. Amar Deus por Deus é a etapa seguinte que mostra-se decisiva para que, o homem,

elevando-se mais, alcance a etapa final, na qual o homem esquece-se totalmente e une-se ao

objeto de seu desejo. Neste momento, o homem ascende ao amor “verdadeiro”, ao amor

“puro”, o qual, sem causa e distante de toda cobiça, não espera recompensa154.

Percebe-se que, para estes homens, inspirados no modelo ciceroniano de amizade, o

amor é “um impulso voluntário para fora de si, esquecido de si, desinteressado, e conduzindo,

por uma evolução, uma depuração gradativa, até a fusão no outro”155.

Bernardo de Claraval, inspirado por Santo Agostinho, leva esta concepção de amor

místico ao mais sublime desenvolvimento na sua seqüência de sermões construídos sobre o

Cântico dos Cânticos que, louva o amor conjugal, a febre amorosa e até mesmo o amor físico.

O cisterciense, sem atenuar em nada o ardor que inflama este canto, ao contrário,

intensificando sua carga erótica, procura exacerbar o desejo até que ele se esvaia no prazer

das bodas.

Interessante notar que durante o século XII, o Cântico dos Cânticos, foi mais

freqüentemente comentado, sendo o livro do Antigo Testamento que teve maior sucesso, uma

vez que, no século XI, tinha sido o Apocalipse. Este fato denota tanto o maior interesse pela

relação amorosa entre os intelectuais quanto, segundo Jacques Le Goff, “uma certa

transformação de estado de espírito, relacionado ao desenvolvimento do ideal cortês”156. Este

sucesso do Cântico evidentemente afligiu a Igreja, preocupada com as proposições perigosas

do texto, levando teólogos ortodoxos, a exemplo de Bernardo de Claraval, a se defenderem

criando uma interpretação alegórica, tomando dos escritos sua linguagem figurada.

Estas colocações apresentadas devem ser inseridas no contexto do “Renascimento do

século XII” que, como demonstrado no capítulo I, acarretou uma série de mudanças na 153 IDEM, Ibiem. p.124-125. 154 IDEM, Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.125. 155 IDEM, Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 28. 156 LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p.66. In: SIMONET, D. et al. A mais bela história do amor: do primeiro casamento na pré-história à revolução sexual do século XXI. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2003. p. 55-69.

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Europa Ocidental. Os comentários dos autores latinos ganhavam cada vez mais espaço e, a

admiração cada vez maior pelos modelos antigos comunicava uma concepção distinta do

homem, de suas relações com o sobrenatural e com a natureza. No interior do cristianismo

também houve mudanças. O Novo Testamento passou a ser lido mais atentamente, os

teólogos, os moralistas, formulando uma doutrina da penitência, ou seja, da responsabilidade,

inclinavam-se a admitir que “a carne conta tanto quanto o espírito no ser humano”. E, o

admirável impulso de crescimento estimulava a pensar que

[...] a marcha do tempo não leva inexoravelmente todas as coisas a se corromperem, que o homem é capaz de elevar-se de degrau em degrau para a melhor, e que no curso de sua ascensão a parte de carne que existe nele pode ser, também ela, engrandecida pela alegria.157

Assim, houve uma tentativa dos teólogos de conduzir esta idéia de ascensão do

homem em direção ao misticismo158, ao amor a Deus, o Criador. Entretanto, responsáveis pela

conduta dos leigos, estes homens não poderiam privar-se de falar do amor de uma criatura por

outra criatura.

Na via aberta por Bernardo de Claraval, os monges cisterciences, principalmente,

foram estimulados a pensar sobre a faculdade de amor no homem, formulando novas

interpretações e uma nova admissão do sentimento de amor ao próximo. Segundo Ana Paula

Lopes Pereira159, surge então, no cristianismo, o dilema de saber como amar o próximo mas,

particularmente, como amar um dos seus próximos, sem infringir o mandamento da Caridade

- caritas, compreendido como amor universal.

Os teólogos, adotando agora uma postura moralista, propunham, no que denominamos

amor, distinguir quatro categorias radicalmente diferentes160. Partindo das três categorias que,

segundo eles, estão relacionadas diretamente ao sentimento amoroso, situa-se no mais alto

grau o amor puro de Bernardo de Claraval, ou seja, o amor verdadeiro dirigido a Deus. Em

seguida, está a amizade amorosa, 157 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.123-124. 158 Referimo-nos aqui ao misticismo ortodoxo. Entretanto reconhecemos a existência de várias vertentes místicas na Idade Média, ver por exemplo a doutrina do anarquismo místico In: COHN, N. Na senda do Milênio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, [1980?]. p. 146- 153. 159 PEREIRA, A. P. L. Deus amicitia est: o conceito de caridade e de amizade espiritual em Aelred de Rievaulx (1110-1167), p. 271. In: VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS DO PROGRAMA DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA UFRJ, 2005, Rio de Janeiro. Atas... Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2006. p. 269-276. 160 Ver DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.132. É evidente, que entre os clérigos, haviam os mais radicais, a exemplo do cluniacense Bernardo de Morlas que, por volta de 1140, compôs seu expressivo poema De contemptu mundi (“Do desprezo do mundo”). Seu espírito monástico percebe com grande aflição a “depravação da época” e, nesse sentido, amaldiçoa o amor e a mulher. CURTIUS, E. R. Op. Cit. p. 170.

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[...]o amor entre os machos, fortalecido pelos valores de fidelidade e de serviço extraídos da moral de vassalagem, que a ordem e a paz supostamente repousam, e foi a ele que os moralistas naturalmente remeteram o fervor novo de que o pensamento dos teólogos impregnara a palavra amor.161

Na terceira categoria está a dilectio, a “afeição sensata, comedida, morna”, adequada

entre os esposos. À parte destas deveria ser colocada a fornicação, tida como um “simples

alívio físico”, contudo um grave pecado se realizado com uma religiosa ou dentro do quadro

conjugal.

Em contraste com o fervor utilizado na descrição do “amor puro” e da “amizade

amorosa”, está a reserva ao se falar do sentimento conjugal proposto. Diferente da amizade

amorosa, a união dos cônjuges não deve ocorrer num quadro de paridade. Por mais que a

Igreja permitisse à mulher exprimir publicamente sua vontade no momento da união,

possibilitando por um único instante a igualdade entre os esposais, em conformidade com as

relações de poder vigentes nesta sociedade marcadamente misógina, seus ensinamentos

morais estabeleciam que a relação entre esposos não deveria ser de amizade e pressupor a

igualdade de direitos. Num bom casamento, o homem comandava e a mulher obedecia

incondicionalmente, de acordo com a frase do Novo Testamento162:

Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo. Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabeça da Igreja. E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos. (Efésios, 5:21-24)

Também diferente do amor puro descrito por São Bernardo, a relação entre os casais

devia predispor obrigações e constrangimentos e não uma entrega total de si na gratuidade,

era a continência que devia prevalecer. Os esposos devem pagar sua dívida - debitum,

entretanto, de maneira fria, já que no gozo jaz a falta.

Apesar de proclamar o celibato – introduzido, sob Gregório VII (século XI), ao clero -,

a Igreja sabia da necessidade de relações sexuais para a procriação e, devido a isto, aceitava-

as dentro do quadro conjugal, exclusivamente para a reprodução. Logo, para disciplinar a 161 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.128. Sobre a questão da amizade, foi criado no século XII o conceito monástico de amizade espiritual, presente nos tratados de Aelred de Rievaulx (1110-1167): o Speculum Caritatis e o De Spirituali Amicitia. Vale destacar que, este autor, integra a amizade no plano do divino e no esquema da salvação e, ao refletir sobre a excelência da amizade no seio da vida comunitária cisterciense, abre o caminho para a difusão do conceito de amizade espiritual para além do quadro monástico. Apud PEREIRA, A. P. L. Art. Cit.. 162 OPITZ, C. O “lugar das mulheres”: casamento e família, p. 366. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir)Op. Cit. v.2, p. 361-377.

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sexualidade e comedir os arroubos sexuais dos homens e das mulheres, para uni-los de forma

a constituírem uma família segundo os mandamentos cristãos, esta instituição difunde a

prática do casamento que, no século XII, torna-se um dos sete sacramentos, tendo que ser

indissolúvel, exogâmico e monogâmico - numerosos trechos do Antigo Testamento proíbem

veementemente o adultério, a título de exemplo Êxodo 20:14, as mesmas proscrições são

renovadas no Novo Testamento, como por exemplo Mateus 19:18.

Ora, exigindo dos leigos a união exogâmica, a Igreja proibia o incesto que, por sua

vez, ganhou uma definição extremamente ampla, chegando ao sétimo grau nas relações de

consangüinidade – reduzido para quarto grau, em 1215, no quarto Concílio de Latrão, devido

às pressões desta sociedade baseada em um sistema cognático tradicional – e ao quarto grau

canônico nas relações de afinidade163. Logo, proclamando o casamento indissolúvel, a própria

Igreja concedia um subterfúgio para rompê-las, como o comprova o casamento de Eleonora

de Aquitânia com Luís VI que, por motivos de consangüinidade, foi dissolvido. Pouco tempo

depois Eleonora casava-se com Henrique Plantageneta, “que tinha para com ela o mesmo grau

de parentesco que o antigo marido”164. Dito isto, percebemos que não era a preocupação

religiosa a razão da separação.

Mas, preocupada com a indissolubilidade das uniões, já que por volta de 1100 começa

haver uma crise no casamento aristocrático, fato percebido pela freqüência das separações165,

a Igreja, em meados do século XII, procurou implantar na alta aristocracia a idéia que o

vínculo conjugal deveria ocorrer por consentimento mútuo – mas, como veremos a seguir,

havia questões sociais, políticas e econômicas que impossibilitavam a realização deste ideal.

Entretanto, mesmo afirmando o princípio do livre consentimento com o objetivo de

manter a estabilidade da célula conjugal, a Igreja não via o amor conjugal nem como causa do

casamento nem como justificativa para seu rompimento, já que concediam a este uma

importância extremamente reduzida: “filhos comuns e fidelidade conjugal constituíam o

essencial do sacramento do matrimônio”166, idéia presente em Santo Agostinho.

Mas convinha que existisse um acordo dos sentimentos entre os esposos, mas este

deveria permanecer no nível da afeição e não do amor apaixonado que a tudo perturba. A

ordem social apoia-se no casamento que, desta maneira, pressupõem seriedade e

163BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 140-141. In: ARIÉS, P. ; DUBY, G. (Dir) História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença.. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.2, p. 96-161. 164 HEER, F. Op. Cit. p. 170. 165 BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 143. In: ARIÉS, P. ; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, 96-161. 166 OPITZ, C. O “lugar das mulheres”: casamento e família, p. 375. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 361-377.

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comprometimento. Seria inadequado fixar suas raízes nos terrenos arenosos do amor-paixão,

como o define André Capelão no início do seu tratado.

Além disso, influenciados pelos Padres da Igreja, no caso São Jerônimo (341-420), os

moralistas, destacando-se Alain de Lille, advertiam os esposos que amar-se muito

ardentemente no casamento é adultério, idéia presente também no tratado de André

Capelão167. Como já colocamos, o casal tinha por obrigação quitar sua dívida, mas de uma

maneira que a procriação fosse almejada e não o prazer, pois como afirma São Paulo aos

Coríntios: o seu corpo é o templo do Espirito Santo, sendo assim, fujas da fornicação, pois

qualquer outro pecado que o homem venha a cometer é exterior ao seu corpo mas, o

luxurioso, peca contra seu próprio corpo (Coríntios I 6:18-19).

Entretanto, segundo Jacques Le Goff, na Idade Média Central, ocorre um mapeamento

geográfico do além com a invenção do purgatório, que situando-se entre o paraíso e o inferno,

torna-se um lugar da esperança168. Dentre os que o purgatório podia salvar estavam os

fornicadores. Assim, houve uma salvação da sexualidade, não incluindo aqui as práticas

ilícitas, como a homossexualidade169. Logo, apesar desta moral cristã de procedência

monástica reprimir sobremaneira a sexualidade, percebemos que o próprio cristianismo, de

certo modo, recuperou-a por meio deste lugar que possibilitava os pecadores fugirem do

inferno. Isso poderia nos levar a pensar que os amantes corteses não estavam de todo

condenados mas, como veremos, o amor cortês não era fornicação, como também não era

apenas uma afeição morna, é no espaço destas que iremos encontra-lo.

O amor colocado em cena por Maria de França parece reunir as quatro categorias

amorosas propostas pelos teólogos: mística, destacada no lai de “Eliduc”, amical, afetiva e

sexual. A amizade, a fidelidade e a afeição total entre os amantes não excluem as dimensões

sexuais, mesmo se não encontramos vestígios da sua realização. Como observa Jean Flori170,

no lai de “Eliduc”, ainda que a autora tenha a intenção de sublinhar a moderação de Eliduc ao

furta-se de prazeres sexuais com a filha do rei, o desejo de ambos não é menos efetivo e, a

167 Segundo F. Schlösser, está posição provém da ética neoplatônica e estóica. Assim, em suas diatribes contra Joviano, São Jerônimo coloca esta proposição como de autoria de certo Xystus, conhecido com o nome de Sextus Pythagoricus, sendo na verdade extraído de Sêneca. Mas, é precisamente por meio de Adversus Jovinianum que a Idade Média vai conhecer essa posição. Pedro Lombardo a retoma em suas Sentenças e, Alain de Lille, ao levar a sentença para o domínio dos sermões, lhe garante maior difusão. BURIDANT, C. Nota 76. In: ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p.131-133. 168 LE GOFF, J. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993. Em sua obra L’Espurgatoire saint Patrice, Maria de França fala desse espaço do além recém descoberto pela sociedade européia. 169 LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p.68. In: SIMONET, D. et al. Op. Cit. p. 55-69. 170 FLORI, J. Amour e sociéte aristocratique au XIIe siècle. L’exemple des lais de Marie de France. Le moyen age, 1, p.17-34, 1992. p.21.

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donzela, exprime suas intenções sobre este plano: “Se de bom amor me quiser amar/ e seu

corpo assegurar,/ eu farei tudo que lhe agradar” (Eliduc vv. 343-345).

Fundindo todas essas dimensões amorosas, a concepção de amor da autora apresenta

traços subversivos. Diferente dos moralistas eclesiásticos, Maria de França defende a

importância essencial do amor entre as criaturas de sexo oposto, em seus aspectos

sentimentais, sexuais e, também, espirituais. Para Maria de França, o amor iguala o homem e

a mulher, independente de seu lugar social, e propicia uma felicidade terrena, buscada por

meio de uma união que não visa a procriação. Esta união pode ocorrer tanto dentro como fora

do casamento, apresentado nos lais como uma convenção social sem significação moral. Dito

isto, percebemos que, de maneira ousada, os valores enaltecidos por Maria de França nos lais

opõem-se aos propostos, ou melhor, impostos pela ideologia eclesiástica.

A explanação destes traços será feita no subcapítulo seguinte, no qual procuraremos

demonstrar que a autora vai de encontro não só com a ideologia eclesiástica, mas também

com os códigos de comportamento da ideologia aristocrática e, também, cortês.

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2. ENTRE O LIVRE E O CONDICIONADO.

A busca pela origem deste amor dito cortês dividiu os pesquisadores em diferentes

caminhos interpretativos em razão da complexidade presente na própria formação deste ideal

amoroso, que se encontra na encruzilhada de diversos fenômenos sociais, políticos, culturais e

religiosos.

De qualquer maneira, admitimos com freqüência que esta nova concepção de amor

encontra seus primeiros traços – e até cerca de 1160 os únicos traços conservados - nas

canções de Guilherme, sétimo conde de Poitiers e nono duque da Aquitânia (1071-1127). À

Guilherme são atribuídas as mais antigas e mais belas canções de amor – perfazendo um total

de onze, que faz lembrar tanto Ovídio como a Espanha mourisca. Este trovador, considerado

um dos primeiros trovadores e poetas vernaculares, era um mestre do savoir vivre, propenso a

gracejos picantes presentes nos seus versos obscenos que, por sua vez, caíram no desagrado

do clero.

Assim, se considerarmos que o lirismo dos trovadores floresce nas cortes meridionais

da França, na Provença, liderados por Guilherme e, contando com a presença de Marcabru,

Jaufré Rudel, Bernardo de Ventadour, dentre outros, o Sul da França torna-se o berço do amor

cortês mas, se levarmos em consideração as observações de Georges Duby, algumas objeções

devem ser feitas. No Norte da França, o controle da Igreja sobre a alta cultura era mais

intenso, fato que teria impedido a transcrição em pergaminho das línguas românicas, assim, a

conservação de escritos em língua vulgar de uma nova representação de amor foi mais

precoce no Sul, mas terá sido também sua criação? Ora, Abelardo, contemporâneo de

Guilherme, se acreditarmos nos escritos atribuídos a ele, também cantava o amor a Heloisa e,

segundo Georges Duby, ele não era o único no ambiente de intelectuais que, simpatizantes de

Ovídio e cujas reflexões se alicerçavam na leitura do Cântico dos Cânticos, compunham

poemas eróticos em latim, dos quais alguns foram conservados171.

De qualquer maneira, as canções de amor, em língua d’oc, presentes no Sul da França

difundiram-se no Norte do Loire. Neste processo de irradiação, um papel central deve ser

atribuído a Eleonora de Aquitânia, após esposar Henrique Plantageneta, e as suas filhas,

casadas com senhores feudais de língua d’oil. Tal fato fez com que Bernardo de Claraval

171 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p. 116-117; DUBY, G. O modelo cortês, p. 333-334 In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir.) Op. Cit. v.2, p. 331-351.

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abominasse os da casa de Anjou, principalmente Eleonora – melhor exemplo do patrocínio

feminino da literatura amorosa -, por implantar no Norte a exaltação de um amor secular172.

Mas, havia um terreno favorável para esta simbólica amorosa se enraizar e

amadurecer. Como já havíamos dito, as modas amorosas tinham nascido para entretenimento

das cortes principescas, que almejavam escapar ao controle monárquico rivalizando com a

corte capetíngia e, também, entre si. Para distanciar-se da cultura da realeza, a qual, segundo

Georges Duby, “fiel às tradições carolíngias, permanecia bastante militar e litúrgica, protegida

contra as tentações de modernidade por uma espessa muralha de clérigos e de monges”173, os

grandes senhores feudais procuraram promover a cultura cortesã com o intuito de manifestar

sua independência e o brilho da sua corte. O conde da Champagne, o conde de Flandres

tornaram-se importantes mecenas, sendo o grande beneficiário Chrétien de Troyes.

Entretanto, as cortes de maior destaque foram as mantidas por Henrique Plantageneta e seus

filhos – não esquecendo que foi provavelmente em uma delas que Maria de França escreveu

os Lais. Recorrendo ainda a Georges Duby:

Desde 1160, todos os prestígios da literatura cavalheiresca (sic) irradiavam delas. Foi preciso uma geração a mais, que Filipe Augusto tivesse vencido o conde de Flandres e o rei da Inglaterra, anexado ao seu domínio a Normandia, o Anjou, o Poitou, e que Paris ultrapassasse todas as demais cidades do Ocidente para que o “amor delicado” fosse plenamente aceito na Ile-de-France.174

Entretanto, este ideal amoroso presentes nas canções produzidas no Sul (canso em

língua d’oc) e imitadas pelos poetas do Norte, foram espalhando-se também por meio de uma

outra forma literária, o romance, designando aqui a narrativa de uma sucessão de aventuras,

desenvolvido principalmente em língua d’oil. Além do tipo de composição, existem

diferenças consideráveis entre os escritos dos trouvéres/Norte e os trovadores/Sul; para os

primeiros, a cortesia aparece como “o conjunto de virtudes da sociabilidade da qual faz parte

172 Segundo Heer, no Norte, “a nova civilização cortesã foi olhada com desconfiança, com medo e até com aversão. A cortesia era filha do Sul livre, do antigo prazer grego de eros e da liberdade de espírito. Bernardo de Claraval abominava os da casa de Anjou convencido de que eram descendentes do Diabo e que haviam de voltar de novo para ele. O santo Nortenho tinha razão em descobrir um demônio neles, o “demônio do Sul”, mas errou um pouco nas suas profecias, visto que duas netas de Eleanor (sic) foram mães de santos: Branca de Castela, mãe de São Luís de França, e Berengaria, mãe de São Fernando de Espanha” HEER, F. Op. Cit. p.164. Vale colocar que, conforme Duby, nove obras históricas escritas entre 1180-1200 que chegaram até nós apresentam quase tudo o que sabemos sobre Eleanora. Todas essas obras foram compostas por homens da Igreja e apresentam Eleonora de maneira desfavorável devido a quatro razões. A primeira esta no fato dela ser mulher que, para esses homens, é uma criatura essencialmente má. Segundo, Eleanora era neta de Guilherme IX, que desagradava o clero. Terceiro, pediu e obteu o divórcio de seu primeiro casamento. Quarto, rejeitou a tutela do seu segundo marido e insurgiu seus filhos contra ele. DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no séculoXII: uma investigação. Op. Cit. p.16-17. 173 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.75 174 IDEM, Ibidem. p.75

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a arte de amar, a cortezia dos trovadores está mais intimamente associada à fine amour”175,

também, a palavra prouesse, em língua d’oil, comumente refere-se a virtudes guerreiras, ao

passo que em língua d’oc, proeza compreende a soma de qualidades do fine amour. Será

então que acima do Loire, os escritos ganharam um tom mais épico em detrimento de um

aspecto lírico do Sul?

Por meio dos seus casamentos, segundo Reto Bezzola176, a rainha Eleonora, neta de

Guilherme, ao conviver com o centro de estudos que era Paris, ao conhecer a poesia épica

francesa - canções de gesta, escritas para celebrar o espírito heróico e guerreiro da sociedade

aristocrática do Norte -, as historiografias anglo-normanda escritas tanto em latim como em

língua vulgar, os mitos e lendas célticos e antigos, percebeu a necessidade de uma poesia não

apenas lírica, mas dramática e portadora de aventuras, inspiradas pelo amor. Em vista disto,

os romances cavaleirescos emergem no Norte da França, assim como na Inglaterra e, é neste

contexto que se inserem os Lais de Maria de França. Já no Sul da França, retendo-se no

gênero lírico, a literatura occitânica não participa, no século XII, desta renovação literária

sendo que, Jaufre e Flamenca, os dois grandes romances corteses occitânicos, pertencem ao

século XIII.

Como poderíamos explicar que nos dois hemisférios franceses se produzissem duas

literaturas diferentes? Várias foram as interpretações, perpassando causas políticas, religiosas

e até geográficas, as quais não nos compete discorrer nesta dissertação. De qualquer maneira,

segundo Jacques Le Goff, no Sul havia “uma nobreza mais culta, de sensibilidade mais

afinada que a dos bárbaros feudais do Norte”177.

Em todo o caso, quer nas cantigas trovadorescas, quer nos romances de cavalaria, o

amor cortês não era de todo livre mas altamente ritualizado, condicionado por um modelo,

simples por sinal que, apesar das numerosas modulações, delimita as condutas e os dizeres

dos amantes. Sendo assim, esboçaremos o modelo inicial ou primitivo presente,

principalmente, nas cantigas mais antigas que chegaram até nós.

Comecemos com os personagens que, no geral, não formam um elenco muito variado

o que, de fato, não impede a formação de um conjunto social ordenado, no qual, como coloca

175 RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Amor Cortesão, p. 50 . In: LE GOFF, J; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v.1, p.47-56. 176 BEZZOLA, R. Les origines et la formation de la litterature courtoise em occident (500-1200). Paris: Ancienne Honore, 1944. p.? 177 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v. 2, p.117

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José Roberto Mello, cada um preenche determinadas características físicas e psicológicas de

acordo com o papel desempenhado178.

No centro da cena encontramos um homem, geralmente um jovem cavaleiro

celibatário179, que elege uma dama, termo este que, derivado da palavra latina domina, coloca

a mulher numa posição dominante e define sua situação social de mulher casada. Assim,

eventualmente, aparece um terceiro personagem, o marido da dama. Complementando o

elenco, vislumbramos os personagens coadjuvantes: em alguns casos temos o confidente e/ou

mensageiro dos amantes, os delatores, os intrigantes, os bajuladores, identificados como

lonsengiers em língua d’oil.

O amante, para ser notado e admirado pela dama, deve mostra-se leal e cortês e,

particularmente no romance, exemplar nos torneios e combates. Além disto, há uma

“feudalização” do amor: o jovem deve dedicar-se ao serviço amoroso da dama como o

vassalo a seu senhor, prometendo não prestar este serviço a mais ninguém, como na

homenagem lígia. Percebe-se assim que esta sujeição do poeta à dama, como coloca José

D’Assunção Barros,

[...] aproveita aqueles ritos políticos e o imaginário feudo-vassálico que orientavam as relações entre vários componentes da nobreza na Europa Ocidental do século XII. Assim, a relação de entrega do amador à Dama é traduzida em termos das instituições feudo-vassálicas, ocupando a Dama a posição da suserana a quem o poeta deve fidelidade.180 (grifo do autor)

Dito isto, o juramento do amante assentava-se sobre o modelo da dedicação vassálica,

tanto mais naturalmente, quando este encontrava-se numa situação social inferior à da dama

que, algumas vezes, devido a tal assimilação, era dotada de um cognome de gênero

masculino: Bel Senhor ou ainda Mi dona (“meu senhor” em língua d’oc). Colocando-se ao seu

serviço, o jovem sujeita-se a seus caprichos, realiza as provas que lhes forem propostas para

mostrar-se valente. Ao aceita-lo em sua corte do Amor, a dama, assim como o senhor com seu

vassalo, deve-lhe a “recompensa” (guerredon) – um olhar, um beijo, um abraço ou até a

“entrega total”.

178 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p. 80. 179 Como coloca Duby, na Idade Média o termo jovem, juvenes nos textos latinos ou bachelers na literatura francesa, designava precisamente os celibatários, já que a juventude era menos uma faixa etária que uma situação social, um estado civil. DUBY, G. O modelo cortês, p. 331 In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 331-351. Ver também DUBY, G. Au XIIe siècle: les “jeunes” dans la société aristocratique, Annales E. S. C., t.19, p. 835-846, 1964; FLORI, J. Qu’est-ce qu’um “bacheler”?, Romania, t. 96, p.290-314, 1975. 180 BARROS, J. D'A. Op. Cit. p. 16.

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A vassalagem respeitosa e um tanto quanto servil que o cavaleiro oferece à Dama já

estão presentes nas canções de Guilherme IX:

“Pelo contrário, entrego-me a ela a ponto de deixar que me inscreva no rol dos seus criados. E não me tenhais por ébrio se amo a minha boa senhora, pois sem ela não posso viver, tal o domínio que sobre mim exerce a esperança do seu amor.”181

Portanto, a maior prova do cavaleiro está na espera, na dominação do seu desejo182,

tal como nos apresenta Maria de França no lai de “Yonec”, no qual o cavaleiro é posto a prova

ao deitar-se ao lado da dama sem, no entanto, tocá-la. Diante disto, a postura cavaleiresca é de

grande paciência e de grande resignação do homem, que asfixia sua própria vontade em favor

da mulher que, em compensação, iria transformá-lo e enobrece-lo, torná-lo mais escrupuloso,

mais sensível. Logo, através desta relação amorosa, o homem aprimora seu espírito posto que,

diante do desejo extremo, deve exercitar a virtude da mesura. Neste ponto, encontramos uma

das dubiedades do amor cortês que “apresenta-se simultaneamente como um extravasamento

dos sentidos e como um sistema educativo para a contenção dos sentidos”183. Nota-se, por

conseguinte, que o amor exerce uma função pedagógica, de enobrecimento do homem. Este

fato parece estar ligado ao progresso culminante que a Europa apresentou em meados do

século XII. Começa haver uma preocupação, expressa pela literatura, de buscar um amor mais

refinado e menos selvagem, que ajudaria na formação do ideal de homem nobre medieval,

apto a seduzir e não mais raptar. Para Nobert Elias esse foi o momento em que ocorreu a

primeira etapa do processo de civilização184.

Em suma, mesmo que enaltecido, o amor cortês, pelo menos na intenção, não é em

nada desencarnado, platônico – termo vulgarizado, a partir das idéias presentes em O

Banquete, como representativo de uma concepção idealizada de amor. Todavia, a ênfase é

colocada na espera e na temperança e moderação imposta ao cavaleiro pela dama por meio

deste amor contrariado sem cessar, principalmente, devido ao fato desta mulher ser, na

181 Tradução de Segismundo SPINA em Apresentação da Lírica Trovadoresca. Apud BARROS, J. D'A. Op. Cit. p. 32. 182 No subcapítulo anterior vimos os esforços da Igreja em transferir a atenção do amor carnal ao amor místico, tal fato fez com que, no século XII, alguns poemas deslocassem para o misticismo o objetivo carnal presente na atitude amorosa. Esta modificação tanto quanto religiosa e abstrata, segundo Duby, culminou cerca de 1300 no dolce stil nuovo. DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p.253. Assim, a simbiose entre a literatura cortês e a mística cisterciense é um campo fecundo para análises, tal como demonstrou Gilson em sua interpretação da Demanda do Santo Graal. GILSON, E. La mystique de la grâce dans La Queste del Saint Graal, Romania, t.51, p.321-347, 1925. 183 BARROS, J. D'A. Op. Cit. p. 18. 184 ELIAS, N. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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maioria das vezes, socialmente inacessível, casada muitas vezes com o senhor do próprio

amante.

Ainda que na literatura teológica e pastoral seja apresentada como obrigação de ambos

os cônjugues, a fidelidade era uma postura muito mais cobrada da mulher. Para ilustrar este

fato vale citar Tiago de Varazze (1228/30-1298) que afirma que a fidelidade é um dever

recíproco dos esposos, entretanto admiti que quatro fatores, dentre os quais só o primeiro

vincula igualmente os homens, faz com que a esposa seja mais controlada e guarde melhor a

fidelidade: o temor de Deus, o controle do marido, a vergonha perante os outros e o medo das

leis185 . Como coloca Georges Duby, as “leis sociais ameaçavam com as piores sanções a

esposa adúltera e aquele que tentasse desviá-la186. Mas concediam toda a liberdade para os

homens”187, devido à “virilidade” e “vitalidade” de seu sexo. A sociedade medieval tinha uma

verdadeira obsessão pelo adultério feminino que colocava em perigo tanto a ordem da casa

quanto e principalmente a pureza da linhagem, o que não ocorria com os desregramentos da

sexualidade masculina:

O bem da descendência coloca-se, assim, no centro do discurso que regula as relações estre marido e mulher, e a procriação, como elemento de legitimação da relação conjugal, transforma-se na pedra angular que rege todo o sistema da ética familiar; colocado nestes termos todo o discurso moral acerca do casal é forçado a modelar-se sobre a natural diferença de papéis que o marido e esposa desempenham na reprodução188.

No lai de “Yonec”, Maria de França retrata esta questão, mostrando o quão fraca era a

certeza acerca das filiações: a Dama engravida do amante; seu marido, sem saber, assume o

filho do outro.

Assim, o medo da traição feminina, sustentado pela efetiva permeabilidade da casa

e/ou de seus repartimentos internos189, é expresso pela literatura. Os lais “Guigemar”,

“Equitan”, “ Homem-Lobo”, “ Yonec”, “ Rouxinol”, “ Milun” e “Madressilva”, ou seja, sete

dentre os doze lais, giram em torno da infidelidade ou mesmo adultério feminino, verificável

mesmo quando a esposa é mantida enclausurada sob a mais alta vigilância, tal como relata a

Dama a Guigemar, referindo-se ao seu marido:

185 Apud VECCHIO, S. A boa esposa, p.153. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 143-183. 186 Vale ressaltar que a morte como punição era respaldada pela própria Bíblia (Levítico 20:10): “O homem que cometer adultério com a mulher do próximo se tornará réu de morte, tanto ele como sua cúmplice” 187 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p.252. 188 Apud VECCHIO, S. A boa esposa, p.154. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 143-183. 189 BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 151. In: ARIÉS, P. ; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161.

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“Pela fé que vos devo, dentro deste cercado me encerrou. Não há mais que uma única entrada; um velho padre guarda a porta: queira Deus que mal fogo o queime! Aqui estou noite e dia encerrada; e nenhuma vez ousarei sair daqui, se ele não ordenar, se meu senhor não me chamar.” ( Guigemar vv.344-352)

Sendo assim, no centro do esquema estava o perigo deste amor ser descoberto e

delatado pelos losengiers. A regra do segredo servia tanto para manter este amor como para

proteger a reputação da dama, como bem coloca André Capelão: “ Quem desejar manter o

amor intacto por muito tempo deverá cuidar, antes de tudo para que ele não seja divulgado e

mantê-lo oculto dos olhos de todos”190 porque “divulgar o amor não aumenta a estima de que

goza o amante. Sua reputação, ao contrário, é desabonada por rumores malevolente”191. Desta

maneira, duas entre as doze regras essenciais do amor, apresentadas por André Capelão, são:

evitar contar a vários confidentes os segredos do seu amor e não trair os segredos dos

amantes192. Cuidar para que não fossem descobertos é o excitante das narrativas que, devido

às reformulações sofridas no curso do século XII, variaram os personagens, permitindo ao

homem que dispõe de uma esposa, escolher como sua “amiga” uma donzela e servi-la assim

como os jovens celibatários faziam à Dama. Dentro deste esquema encaixa-se perfeitamente o

lai de “Eliduc” que

“Tinha como esposa uma mulher, nobre e sábia de alta estirpe, de grande linhagem. Juntos estiveram longo tempo, amaram-se mutuamente com lealdade; mas depois durante uma guerra ele partiu a vender seus serviços: lá amou uma jovem, filha de rei e rainha.” (Eliduc vv. 9-16)

Vale colocar que no lai, Eliduc, ao atravessar o mar com sua “amiga”, é surpreendido

com uma grande tempestade, o naufrágio parecia inevitável, então um dos marinheiros gritou:

“‘Que fazemos nós? Senhor, tendes convosco aquela pela qual nós perecemos.

190 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p.211. 191 IDEM, ibidem. p. 16 192 ibidem. p.99

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Jamais a terra chegaremos! Mulher leal como esposa tendes e esta outra traz contra Deus e contra a fé. Deixai-nos jogá-la ao mar, assim podemos chegar’”. (Eliduc vv. 831-840)

Segundo Laurence Harf-Lancner193, “ a crença segundo a qual a presença à bordo de

um culpado provoca uma tempestade que só se abradanda com a morte deste é um motivo

folclorico bem atestado” (tradução nossa), nota-se então nos versos acima que a mulher é

considerada a culpada e não o cavaleiro que era casado.

Maria de França coloca em pauta o adultério masculino – presente em apenas um lai,

em contraste com a constante recorrência ao adultério feminino - e sua tolerância pela

sociedade medieval já que, ao descobrir a traição do marido, a esposa reaviva a “amiga” e

pede ao esposo que a livre de toda obrigação conjugal e conceda-lhe uma parte de sua terra

para que possa construir sua abadia. Um admirável exemplo de condescendência e abnegação

feminina.

Romper a união conjugal em favor de uma união mais pura – monástica - era uma

prática freqüente na nobreza do século XI, sendo pela Igreja, proclamadora da

indissolubilidade do casamento, a única ruptura autorizada desde que houvesse o

consentimento do cônjuge194. Entretanto, no século XII, entre as decisões do papa Alexandre

III (1159-1181) consta que a entrada na religião de um dos cônjugues não justifica a

dissolução do casamento, sendo assim, ao utilizar esta possibilidades no lai, Maria de França

vai de encontro às deliberações papais. Baseado nisto, Urban T. Holmes argumenta que Maria

de França não poderia ser uma abadessa de Shaftesbury195.

Contudo, vale destacar que neste lai a autora representa em um certo momento o amor

místico. Durante o período de desfalecimento da amiga, Eliduc coloca-a em uma capela, onde

ia todos os dias para, diante da amada, rezar pela sua alma. E, após a dissolução de seu

casamento, Eliduc uniu-se à sua amiga; viveram um perfeito amor até que se consagraram a

Deus, vestindo hábito religioso, relembrando a história de Abelardo e Helóisa. E se, de acordo

193 MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. Nota 4, p.311. 194 BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 151. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161. 195 HOLMES, U. T., Further on Marie de France, Symposium, 3, p. 335-339, 1949. Interessante notar que uma situação semelhante a esta do lai de Eliduc parece ter ocorrido com os sogros de Maria de Melun, Hugues de Talbot desposa Béatrice, depois tornou-se monge no monastério de Beaubec na Normandia, deixando sua esposa e seus filhos. Sendo esta semelhança, segundo Yolande de Pontfarcy, um argumento a mais em favor da hipótese de Urban T. Holmes de que Maria de França seria Maria de Melun. PONTFARCY, Y. de. Si Marie de France était Marie de Meulan…Nota 24. Cahiers de Civilisation Médiévale Xe-XIIe siecles, XXVIII Année, n. 4, p. 353-361, oct./dec., 1995.

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com Bernardo de Claraval, o homem é feito primeiro de carne, e é dela que é preciso partir,

este lai confirma a mística cisterciense.

Outra variante do modelo inicial está no lai de “Equitan”. Neste, não é o cavaleiro que

corteja a mulher do senhor mas, pelo contrário, o rei que busca o amor da esposa de seu

vassalo. Este lai assemelha-se ao tema bíblico do rei Davi que trama a morte de seu súdito

para apoderar-se de sua mulher (2 Samuel,11).

Se considerarmos que a literatura influencia nos comportamentos de seus receptores,

nada mais representativo que a história de Eduardo II (1284-1327), rei da Inglaterra196. Este

rei, assim como Eliduc, tinha um bom casamento com uma mulher que possuía todas as

virtudes da perfeita esposa mas, aspirando tornar-se o modelo da cavalaria do seu tempo,

elege uma “amiga”, a senhora de Salisbury, cujo marido era seu vassalo, refletindo o lai de

“Equitan”.

De qualquer maneira, como demonstrou José Roberto Mello acerca do romance

arturiano197, as narrativas não retratam a vida familiar que, quando existente, restringe-se em

elos isolados, principalmente a ligação oblíqua tio-sobrinho, este de procedência materna198, a

exemplo de Tristão e seu tio Marcos. Raramente vislumbramos famílias com seus elementos

integrais: pai, mãe e filhos. No lai de “Guigemar”, a autora nos apresenta o rei e, em seguida,

a família do jovem, começa, portanto, contextualizando em seus pais a história de Guigemar

que, logo foi enviado ao serviço do rei, rompendo assim a convivência familiar. Não obstante

a autora não nos priva de relatos de ternura de pais e filhos: “Maravilhoso o amor de sua mãe/

e muito lhe queria bem seu pai” (Guigemar vv. 39-40), “Sua mãe muito a observava,/ em seu

coração estimava-a e amava-a” (Freixo vv. 393-394). Interessante notar a preocupação da

autora ao relatar, em detalhes, no lai de “Freixo” e de “Milun”, os cuidados dispensados aos

recém-nascidos – zelos que dificilmente acometeriam um autor.

No lai de “Milun”, Maria de França relata a “apaixonada busca do pai” pelo filho e

vice-versa, ambos, ao ignorarem a principio a filiação, enfrentaram-se em um torneio – os

combates de filhos contra os pais estão presentes em muitas narrativas medievais que, “são

196 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p.252. 197 MELLO, J. R. Op. Cit. p. 118-122. 198 Esta ligação tio-sobrinho materno é muito conhecidas pelos estudiosos da composição familiar medieval, sendo provavelmente um resquício da importância de antigos sistemas matrilineares. MELLO, J. R. Op. Cit. p. 120. Ver também “Tios e sobrinhos” RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 336-338. In: ARIÉS, P. ; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

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obsedadas pelos problemas da ascendência, pela função dos filhos e pela importância quase

obsessiva das relações pais-filhos”199.

Outra referência familiar um tanto quanto complexa está no lai “Dois amantes”, no

qual a autora faz alusão a um provável desejo do pai pela filha:

“O rei tinha uma filha, bela uma donzela muito cortês. Filho nem filha tinha afora ela; muito a amava e a queria bem. Por homens ricos foi requerida, que de bom grado a teriam desposado; mas o rei não a queria dar, pois não podia passar sem ela. O rei não tinha outro refugio: perto dela permanecia noite e dia” (Dois Amantes vv. 21-30)

Feita estas considerações, percebemos que o vínculo familiar não é o forte desses

romances cavaleirescos, o mesmo sucedendo com o amor conjugal. Um das explicações para

este fato encontra-se no propósito da narrativa, como coloca José Roberto Mello,

[...] trata-se de um mundo aventuroso, onde a aventura tem preferência sobre as demais formas de vida e, obviamente, todos os elementos são ordenados em função dela. Isso explica, portanto, a rejeição das formas construtivas permanentes, como a família e determinados tipos de relação amorosa.200

Assim, o estilo de vida proposto aos heróis era incompatível com a ligação

sedentarizante que era o casamento que, além disto, colocava termo a juventude, vista como

um estado civil. Além disto, para este autor, o predomínio crescente do espírito clerical

difundia que o celibato e a continência sexual era o mais excelente dos estados do ser

humano, contrapondo-se diretamente ao matrimônio e, entre estes, encontra-se a viuvez.

Entretanto, se levarmos em conta que a literatura cavaleiresca erguia-se contra o moralismo

da Igreja e que, no século XII, como já colocamos, o modelo abriu-se para os maridos, esta

observação torna-se insustentável, exceto talvez aos romances arturianos.

De qualquer maneira o amor cortês apresenta, na lírica e no romance, uma faceta

antimatrimonial, fato que possui fundamentos históricos. Na sociedade medieval, existia uma

grande pressão familiar no que diz respeito ao casamento, considerado “uma instituição, um

sistema jurídico que liga, aliena, obriga enfim a que seja assegurada a reprodução da

199 Ver “ A apaixonada busca do pai” RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 336. In: ARIÉS, P. ; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391. 200 MELLO, J. R. Op. Cit. p. 121.

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sociedade nas suas estruturas, especialmente na estabilidade dos poderes e das fortunas”201 já

que, para além da união de duas pessoas, o matrimônio ocasionava a união de duas células

sociais, remodelando, assim, as parentelas. Dito isto, percebemos que o casamento era

socialmente condicionado pelos interesses políticos e econômicos da família ou da linhagem,

sendo assim, só ocorria depois de longas negociações, nas quais participavam os membros de

ambas as famílias, representados pelo pai ou pelo tutor masculino, algumas vezes o próprio

interessado exprimia-se, contudo a opinião das mulheres não era levada em conta por ser

considerado um assunto de homens, assim como as guerras. Ainda que no final da Idade

Média, vale citar um conselho elucidativo proferido por Alberti - o autor que faz esta

referência não especifica quem seria este moralista, acreditamos ser Leon Batista Alberti

(1404-1472): “Tomar mulher é procurar beleza, parentela, riqueza. Cercai-vos da opinião de

todos os vossos antepassados. Eles conhecem em detalhe as famílias, inclusive as avós, de

todas as candidatas”202. Assim, as mulheres teriam que oferecer alguma vantagem para o seu

futuro marido, ser fiel, de boa estirpe, rica e, de preferência, bonita. Após as discussões os

jovens pretendentes eram chamados apenas para assentir com a união firmada que os

promoveria à categoria de adultos.

A situação tornava-se ainda mais delicada devido ao hábito da época em consentir que

a menina fosse tirada em torno de uns doze anos, de um ambiente feminino e fechado, e fosse

entregue em casamento ou a um homem de idade mais avançada, que nunca a havia visto, ou

a um jovem, que até então vivia num universo violento, onde aprendia a arte da guerra para

tornar-se um bom cavaleiro203. Vale notar que o bispo Ive de Chartres (1040-115) tacitamente

admitia os esponsais de crianças desde que ambos tivessem mais de sete anos.

Todavia, muitas vezes, as moças para esquivar-se dos propósitos da linhagem faziam o

voto de consagrar a Deus sua virgindade ou fugiam, ambos lugares-comuns das Vidas de

santas e mesmo de santos, como confirma a história de Simon de Crépy204 (em torno de 1046-

1082), ou ainda, para escolherem seus companheiros, optavam pelo rapto por assentimento

mútuo. Como coloca Georges Duby, não faltam menções às jovens insubmissas que, ao

reivindicar o direito de escolha, são censuradas e ao afirmar amar um outro, não aquele que

lhe haviam escolhido, também o Céu a castiga, exceto se este outro for Deus, escolha

201 DUBY, G. Idade Média,Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.37. 202 Apud RONCIÈRE, C. de la. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença, p.292 In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p.163-309 203 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.31-32. 204 BARTHÉLEMY, D. Parentesco. p. 131. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161.

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louvável perante a Igreja, ainda que muitos dirigentes da parentela não se inclinem a respeitar

essas disposições de espírito205.

Percebe-se então que, durante a difusão da concepção de amor cortês, aflorava um

confronto entre duas opiniões diversas acerca do casamento, uma clerical e uma laica. A

primeira tornou o casamento um dos sacramentos, colocando-o portanto no terreno do

sagrado, e deveria ocorrer somente quando houvesse consentimento mútuo dos conjugues.

Entretanto a sociedade aristocrática considerava-o um negócio de extrema importância para

deixar a decisão nas mãos dos interessados. Logo, fica evidente que a pressão social era

demasiadamente grande para que os jovens, principalmente as mulheres, aceitassem aquele

que lhe havia sido escolhido. Sendo assim, não nos iludamos com o consentimento dos

conjugues presente nos textos, principalmente, os relatados na literatura genealógica.

Durante as conversações, portanto, não era levado em conta qualquer sentimento de

afinidade entre os pretendentes que, muitas vezes, nem se conheciam. O que podemos dizer

do amor? Assim como para os moralistas da Igreja ao afirmarem que o amor apaixonado tudo

perturba, para a sociedade aristocrática este sentimento concretizava o temor que a

instabilidade emocional causava à organização sócio-parental.

A união matrimonial como ato socialmente condicionado esta presente nos Lais. No

lai de “Freixo” a questão aparece com nitidez, Gurun tinha como “amiga” a bela Freixo,

“Por longo tempo ele ficou com ela, tanto que os cavaleiros enfeudados, de muito grande mal o censuraram. Muitas vezes lhe falaram, que desposasse uma nobre mulher e se livrasse da jovem. Contentes seriam, se ele tivesse um herdeiro que depois dele pudesse receber sua terra e sua grande herdade, seria para eles grande prejuízo, se ele deixasse por sua amante de ter filho de esposa legítima; jamais por senhor o manterão nem de boa vontade o servirão, se ele não lhes fizer a vontade.” (Freixo vv. 323-337)

Nestes versos, Maria de França retrata a pressão da parentela para realizar um bom

casamento. Gurun, diante disto, consente: casará com a mulher que eles encontrarem.

“ ‘Senhor’, o dizem, ‘aqui perto de nós há um gentil-homem, que é vosso par.

205 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.31

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Tem uma filha, que é sua herdeira: muita terra podereis obter com ela. Aveleira tem por nome a donzela; em todo este país não há tão bela.’”(Freixo vv. 341-346)

Aveleira preenchia todos os requisitos necessários a um vantajoso matrimonio: era de

boa estirpe, única herdeira de um domínio e, ainda por cima, bela. Ora, na aristocracia

medieval, todas essas qualidades sobrepujam o amor existente entre Gurun e Freixo. No lai de

“Milun” é a jovem que é coagida a casar, mesmo tendo como “amigo” Milun: “Seu pai a

promete a um barão,/ um homem muito rico do país,/ muito esforçado e de grande valor.”

(Milun vv. 124-126)

Outra questão exposta por Maria de França é a da entrega de uma jovem a um velho.

No lai de “Yonec” a autora coloca que, na Bretanha, vivia “um rico homem, velho e antigo”

(Yonec v. 12) que tomou mulher para ter filhos com o intuito de ter um herdeiro,

“De alta estirpe era a donzela, sábia e cortês e extremamente bela, que ao rico homem foi dada; por sua beleza ele a amou muito.” (Yonec vv. 21-24)

“Por ser ela bonita e gentil, em guardá-la pôs muito empenho. Dentro de sua torre ele a encerrou, Em um grande quarto lajeado.” (Yonec vv.29-32)

Para vigiá-la rigorosamente o marido colocou junto à Dama uma irmã, velha e viúva.

Assim foi mantida por mais de sete anos. Nunca lhe era permitido sair da torre e ter contato

com outras pessoas. Situação semelhante era vivida pela Dama do lai de “Guigemar”.

Guigemar chegará a uma antiga cidade, capital do reino:

“O senhor, que a governava, era um homem muito velho e por esposa tinha, uma dama de alta linhagem, nobre, cortês, bela e sábia. Ciumento era a desmesura; por ser da natureza que todos os velhos sejam ciumentos; todos temem muito que lhes ponham cornos: tais os percalços da idade.” (Guigemar vv. 209-217)

Este senhor também mantinha a dama confinada e nas paredes da alcova estava pintada

com destaque a figura de Vênus, deusa do amor, mostrando como uma dama deve amar seu

esposo e servi-lo com lealdade. Nesta pintura, Vênus lançava o livro de Ovídio, no qual

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ensinava como reprimir o amor – provavelmente Remédios de Amor - , ao fogo e

excomungava todos aqueles que o lessem e seguissem seus ensinamentos. Segundo SunHee

Kim Gertz206, considerando os numerosos ecos de Ovídio na literatura cortês, incluindo os

lais, isto parece mais uma refração que uma reflexão do poeta romano. O mural descrito por

Maria de França destoa com o restante do lai, sendo assim, alguns questionamentos tornam-se

necessários para uma possível solução do enigma.

Levando em conta que a pintura pertence ao marido, velho e ciumento, será que a autora

está condenando Ovídio ou a visão do marido sobre Ovídio? Conforme SunHee Kim Gertz,

junto com esta ambivalência, existe outra acerca da própria imagem de Vênus que,

certamente, não é a Vênus de amores licenciosos, tão bem conhecida na literatura medieval.

No mural, a deusa aparece como reguladora da castidade, sendo talvez uma imagem

proposital como reparadora para os retratos blasfêmicos da deusa.

Mas, se Maria de França, tanto no lai de “Yonec” quanto no lai de “Guigemar”, retrata a

velhice e conseqüentemente, segundo ela, o ciúme próprio da idade, como características

negativas, acreditamos então que ela relata aquele mural para ratificar a visão refratária do

marido, a qual, tendo em vista o restante da obra, ela discorda.

Como afirma José D’Assunção Barros, o marido ciumento, traído, tem um papel

simbólico dentro da narrativa, ao estar ligado à dama pelo casamento: “representa o mundo da

ordem contra o qual se insurge a primazia dos sentimentos proposta pelo Amor Cortês”207.

O amor cortês propunha a eleição, ou seja, a escolha amorosa que o procedimento dos

matrimônios impedia. Ganhando traços de um sentimento livre, não se deixa impor nenhum

contrato social, nenhuma moral religiosa que proclamava a função procriadora do casamento

e o inseria dentro de um quadro de obrigações. Sendo assim, a “corte do amor”, não sem

razão, rejeita o casamento como não estando ligado ao amor.

Vale destacar que, segundo a tradição, várias cortes provençais, em Signe, Romain,

Purrefeu e outros lugares no extremo Sul, mantiveram “tribunais do amor”. Entretanto, talvez

os grandes julgamentos só se realizassem, em público, na corte de Eleonora de Aquitânia, em

Poitiers. Os julgamentos da corte, tendo por base as regras do amor cortês, tratavam de

questões de amatória ou situações amorosas, propostas tanto pelos poetas quanto por pessoas

que encontravam-se em dilemas amorosos. Tais julgamentos eram pronunciados por certas

damas: a própria Eleonora, sua filha Maria de Champagne, sua sobrinha Isabella, condessa de

206 GERTZ, S. K. Echoes and Reflections of Enigmatic Beauty in Ovid and Marie de France, p. 381-383, SPECULUM. A journal of medieval studies, Massachusetts, v.73, n.2, p.372-396, april. 1998. 207 BARROS, J. D'A. Op. Cit. p. 16.

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Flandres, Hermengarda, condessa de Narbonne, Emma de Anjou e outras208. Paris também

não ficou fora, sendo fundada sua “corte do amor”, em 1400, com o intuito, ao que parece, de

estabelecer regulamentos sociais por meio da idéia do serviço amoroso209.

Em seu tratado, André Capelão vale-se da autoridade de Maria de Champagne para

discutir exemplos teóricos acerca de situações amorosas em que se apresentam dilemas

morais e fornecer decisões que estejam em harmonia com seus preceitos. Este autor exclui o

amor do contexto do casamento apoiando-se na sentença proferida pela condessa de

Champagne, respaldada no parecer de numerosas damas:

“[...] dizemos e afirmamos como plenamente estabelecido que o amor não pode estender seus domínios entre cônjuges. Porque os amantes concedem-se tudo mutuamente a título gratuito, sem serem impelidos por obrigação alguma. Os esposos, ao contrário, são obrigados por dever a obedecer às vontades recíprocas e não podem de modo algum recusar-se um ao outro.”210

Outros vinte e um “julgamentos de amor”, atribuídos a Maria de Champagne

(julgamentos: I, III, IV, V, XIV, XVI e XXI), a Eleonora da Aquitânia (II, VI, VII), a Rainha

(XVII, XIX, XX) que, parece ser Adélia de Champagne, mãe do rei Felipe Augusto da França

, a Hemengarda de Narbonne (VIII, IX, X, XI, XV), a condessa de Flandres (XII e XIII) e as

damas da corte de Gasconha (XVIII), são colocados por André Capelão. Difícil sabermos se

essas mulheres proferiram realmente estas sentenças que, para Georges Duby foram forjaram

pelo autor. De qualquer maneira André Capelão, ao citar esses julgamentos e atribui-los a

essas mulheres, parece reconhecer o prestígio que elas detinham na solução das questões

amorosas.

Retomando a discussão acerca da incompatibilidade entre o amor cortês e o

casamento, devido o seu caráter quase unicamente utilitário, verifica-se que, de inicio, com os

trovadores occitânios, o amor cortês não só aparece fora do quadro conjugal, mas também

contra ele. Entretanto, em razão do equilíbrio da França d’oil, a literatura romanesca inseriu o

amor cortês no quadro da vida conjugal211, como uma preliminar para as bodas. O modelo

inicial do amor cortês teve sua demonstração mais meticulosa no “Lancelote” de Chrétien de

Troyes, entretanto, em outras obras deste mesmo autor é que encontramos a realização do

208 HEER, F. Op. Cit. p. 180-181. 209 RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Amor Cortesão. p. 54. In: LE GOFF, J; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v1, p.47-56. 210 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p.137 211 BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 150-151. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161.

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casal no casamento. Em seu romance anti-Tristão, Cligés, a livre escolha na legitimidade

assume o lugar do adultério, assim, a rainha aconselha Alexandre e a jovem Dorée d’Amour:

“Bem vejo por vossa conduta que, dos dois corações, fizeste um só [...], não adicioneis loucura em vosso querer amoroso. Uni-vos com toda a honra e por casamento. Assim poderá, parece-me, vosso amor durar longamente.”212

Diferente do que André Capelão afirma, “se dois amantes se unem pelo casamento, o

amor entre eles desaparece repentinamente”213, Chrétien de Troyes além de enfatizar a

realização do casal – Érec e Énide, Perceval e Blanchefleur – dentro da instituição

matrimonial, exalta o valor desta que, não deve ser solapada. Neste sentido, no livro III,

adotando agora uma postura moralista, André Capelão parece estar de acordo com Chrétien,

ao colocar que “Deus persegue com ódio aqueles que se dão às obras de Vênus fora dos laços

do casamento”214, além disto, lembra a santa lei do matrimônio, presente em Mateus 19,6: “O

que Deus uniu o homem não separa”215.

Contemporânea de Chrétien de Troyes, Maria de França não fica surda às mudanças

literárias. Assim, nos lais de “Equitan”, “ Freixo”, “ Dois amantes”, por exemplo, os amantes

aspiram transformar em união matrimonial sua união amorosa. A autora, colocando o amor

como valor supremo, pensa diferentes formas de união que, por meio da livre escolha

recíproca, conduz à formação do verdadeiro casal que, pode inserir-se dentro das estruturas

tradicionais das uniões conjugais, tal como ocorreu no lai de “Freixo” e “Eliduc”. Portanto,

para os amantes dos Lais, o casamento não é justificativa para não amar e, nem o adultério é

causa para os amantes se sentirem culpados, já que a profundidade do seu sentimento justifica

sua recusa pelas convenções sociais e até eclesiásticas.

Maria de França parece também rejeitar os rodeios e as esperas que os trovadores

colocavam como corteses. Na lírica occitânia, só ao fim de um longo percurso que o fine

amor é conquistado, já que, a princípio, é um “amor distante”, tal como colocou o poeta

Jaufré Rudel. Já na cortesia do Norte essas longas etapas são menos conhecidas, assim como

“as promessas mais sensuais são menos explícitas”216.

212 Apud DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p. 136. 213 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p.219. 214 IDEM, Ibidem. p.268 215 Ibidem. p.282. 216 RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Amor Cortesão, p. 50 . In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C. (Coord) Op. Cit. v.1, p.47-56.

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Mas, em ambos, entre o nascimento do amor, conseqüentemente, do desejo e sua

satisfação existe um intervalo, uma espera, acentuada tanto pela lírica quanto, ainda que um

pouco menos, pelos romances.

Nos lais, os amantes são diretos, declaram o seu amor e, esta iniciativa, não é

exclusiva dos homens, como mostram claramente os lais de “Milun” e de “Eliduc”. Maria de

França coloca em evidência uma certa simplicidade amorosa, na qual todo o rodeio é visto

como desnecessário quiçá condenável. Tal posição encontra-se exposta com nitidez no lai de

“Guigemar”. Levado por uma nau mágica, Guigemar chega ao castelo da Dama que o acolhe.

Ambos são atingidos pelo fogo do amor. Por ser estrangeiro, Guigemar hesita num primeiro

momento confessar seu sentimento, mas logo, incentivado pela dama de companhia da sua

amada, decide o fazer, pedindo à dama que não o recuse. A Dama,

“Sorrindo lhe diz: ‘Amigo, seria uma decisão muito precipitada, ceder a vossa súplica: eu não estou acostumada a isto’” (Guigemar vv. 509-512)

A autora representa, então, por meio da Dama, a proposta de comportamento cortês,

baseado na mesura. Interessante notar que a Dama parece colocar em prática, com Guigemar,

os preceitos da imagem do seu quarto. Entretanto, Guigemar, na sua contra resposta, parece

exprimir o pensamento da autora, contrapondo-se aos rodeios que impuseram as maneiras do

tempo:

“‘Dama’, disse ele, ‘por Deus, piedade! Não vos aborreça, se eu vos digo! Mulher leviana de profissão Deve por longo tempo se fazer rogada Para ser cara, para que não pensem Que ela já provou desse deleite. Mas a dama de bons propósitos, Que tem em si valor e senso, Se encontra homem a seu gosto, Não se fará diante dele muito orgulhosa, Antes o amará, e terá alegria. Antes que alguém o saiba ou ouça, Terão aproveitado o mais que podem. Bela dama, terminemos este debate!’” (Guigemar vv. 513-526)

Após reconhecer que o que Guigemar dizia era verdade, a Dama concedeu seu amor

sem mais demora e ele a beijou. A sinceridade dos amantes é sobreposta às convenções

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corteses. Jean Flori, ao trabalhar a espontaneidade do amor nos lais diante das exigências do

amor cortês, denomina “amour vrai” a concepção de amor de Maria de França217.

Claro que, o amor que os trovadores cantam, nada tem de amor platônico ou

desiteressado ao almejarem o amor carnal, como observou E. Gilson: “Os sonhos de Jaufré

Rudel são tão eróticos quanto serão os de Thibaut de Champagne; ele espera que seu ‘amor de

terra distante’, se atingido, o seja ‘num vergel ou sob a cortina’, lugares pouco propícios à

meditação metafísica”218.

As etapas, ou melhor, as recompensas (olhar, beijar, abraçar, acariciar e, quem sabe, a

entrega total), codificadas mais tarde por André Capelão, não são tão longas nos Lais, assim

como na cortesia do Norte. Contudo, diferenciando desta, as mulheres nos Lais não são

inacessíveis e seus favores não são tão dificeis de serem obtidos. Portanto, a autora, devido

talvez ao seu sexo, não priva suas personagens dos beijos, dos carinhos e até dos prazeres

sexuais.

Os amantes de Maria de França aspiram tanto uma verdadeira união afetiva quanto

uma união carnal, em segredo, devido a situações sociais desfavoráveis que, apesar disso, não

ameaçam o amor que está acima dos valores sociais e institucionais. Tal amor não se

apresenta como um sentimento superficial e, principalmente, inconstante, devido a isto, apesar

das barreiras e obstáculos, os amantes permanecem fiéis um ao outro. No lai de “Milun”, por

exemplo, percebemos a constância e a fidelidade dos amantes que não são abaladas nem pela

longa separação nem pelo o casamento da jovem já que, quanto a este último, Maria de

França não atribui nenhum valor em si.

Por fim, outro ponto deve ser apresentado. Segundo André Capelão o amor é “uma

paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa

beleza”, este objeto da beleza e sua relação com o amor, além de estar presente em Ovídio,

também havia sido tratada por Platão e Plotino, no entanto, existe uma diferença salutar no

que se quer por beleza. Para estes dois autores a verdadeira beleza não está apenas localizada

no presente, sendo fisicamente efêmera, existe uma beleza superior mas, o que encontramos

no Tratado e nos Lais é uma beleza dirigida pelos sentidos, fisicamente visível. Contudo, nos

Lais, diferente do Tratado, o amor nasce, algumas vezes, não da visão da beleza do outro, mas

da audição já que, mesmo antes de ver a Dama, o cavaleiro enamora-se dela:

217 FLORI, J. Amour e sociéte aristocratique au XIIe siècle. L’exemple des lais de Marie de France. Le moyen age, 1, p.17-34, 1992 218 GILSON, E. apud BURIDANT, C. Introdução, p.XLIV-XLV. In: ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. IX-LXXVII.

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“O rei ouviu frequentemente a elogiarem. Frequentemente a saudou; E seus presentes enviava-lhe Sem tê-la visto cobiçava-a” (Equitan vv. 42-45)

“Da donzela ouviu falar; começou a amá-la” (Freixo vv. 257-258)

Interessante notar que também Jaufré Rudel, como consta em sua “vida”, “enamorou-

se da condessa de Trípoli, sem tê-la visto, só pelo que dela falavam os peregrinos vindos de

Antioquia”219. O contrário, a jovem enamorar-se pelo cavaleiro antes de vê-lo, também está

presente nos Lais: “Ela ouviu falar de Milun;/ muito o começa a amar” (Milun vv. 25-26).

A glorificação da beleza física é uma constante nos Lais. Logo, Maria de França

coloca que não havia no reino ninguém mais belo que seus protagonistas220, ou seja, os

amantes. Em contrapartida, privava de tal beleza muito daqueles que impediam a realização

desse amor.

Mas, como coloca José D’Assunção Barros, a descrição individual e personalizada

afirma-se somente com a Renascença, sendo uma deficiência medieval. Há uma ausência de

traços muito marcantes nos retratos visto que, as pessoas, usualmente, eram restringidas a

arquétipos, construídos a partir de categorias sociais estabelecidas conforme sua função221.

Assim, nos Lais, as damas e donzelas são belas, corteses, nobres, sábias, e os cavaleiros são

belos, nobres, valentes, corteses, valorosos, sensatos, generosos. Claro que estas

caracteristicas não aparecem com a mesma freqüência em todos os lais mas, uma ou outra,

estão presentes, exceto no lai “Madressilva”, pois, quem já não conhecia as qualidades de

Tristão e Isolda?

Portanto, após uma análise acurada dos Lais, percebemos o quão Maria de França,

estimulada talvez por sua condição feminina, foi inovadora ao trabalhar a temática do amor

cortês, pois, além de enaltecer valores que se contrapõe aos propostos pela ideologia

eclesiástica e aristocráticas, principalmente no que se refere ao casamento, critica a própria

ideologia cortês que levanta obstáculos à realização amorosa, transformando o sentimento em

um jogo: “Como em todos os jogos, o jogador estava animado pela esperança de ganhar.

219 Vida de Rudel. In: NELLI, R.; LAVAUD, R. Les troubadours. Tomo II. Paris: 1960, p.261. 220 Aqui, reconhecemos o topos panegírico do sobrepujamento comentado por Curtius. Maria de França afirma que a beleza do personagem a quem se refere supera tudo que lhe é semelhante, visto que, “no reino não havia outro mais belo” (Guigemar, v.38) CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p. 216. 221 BARROS, J. D'A. Op. Cit. p. 80.

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Neste caso, como na caça, ganhar era apanhar a presa”222. Entretanto, para nossa autora

“apanhar a presa” não era um fim, mas um complemento do romance.

222 DUBY, G. O modelo cortês, p. 332. In: DUBY, G.; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.331-351.

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Capítulo III: O “Cavaleiro”.

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1. NOBREZA CAVALEIRESCA

Para apreendermos o sentido pleno do romance cavaleiresco e compreendermos seu

valor como documento histórico de análise da sociedade aristocrática dos séculos centrais da

Idade Média, temos agora que nos reter na moldura social na qual essas obras, no caso os Lais

de Maria de França, se inserem.

Se considerarmos que a literatura cortês foi um meio de manifestação, expressão e

registro da cultura cavaleiresca, somos levados a recuar até as bases da formação e/ou

delimitação deste grupo social, que desempenhou um importante papel na cena histórica da

sociedade feudal. Por isso teremos que nos referir as mudanças que levaram ao

estabelecimento daquilo que denominamos de feudalismo.

Desde fins do século X, uma nova forma de organização social foi se implantando.

Um fato político que marca este acontecimento foi o progressivo enfraquecimento do poder

real e, em conseqüência, a decomposição da monarquia. Tal processo foi favorecido pelas

invasões normandas, sarracenas e húngaras. Neste contexto, o rei já não conseguia mais

exercer sua principal função, protetora, visto que suas investidas eram mais ofensivas do que

defensivas. Diante destes ataques imprevistos, a função protetora passou a ser exercida pelos

príncipes regionais. Com isso, as casas principescas foram ganhando autonomia como célula

política. Esta fragmentação política prosseguiu por meio dos condes, viscondes e castelãos,

formando uma série de pequenas células locais independentes.

Cada uma delas, sob o comando de um sire - senhor, passaram a gozar das

prerrogativas que antes eram monopólio régio. Passaram a concentrar todos os poderes em

suas mãos: o político, o judicial e o econômico. Para garantirem esses poderes e, para isso,

manterem a paz e a justiça em seus territórios, os senhores foram cercando-se de verdadeiros

exércitos particulares, diferentes dos exércitos régios, que caracterizavam-se como “um bando

de infantes de equipamento heteróclito”223.

Para conter o turbilhão de ameaças provocadas pelos invasores e, em nome de Deus,

defender o povo e bem dirigi-lo, eram necessários homens convenientemente equipados e

treinados, os cavaleiros. Devido a esta especialização militar, esses guerreiros permanentes

passaram a constituir um grupo profissional que gozava de certos privilégios junto ao senhor,

escapando das explorações e opressões senhoriais por constituírem o meio pelo qual se

procurava manter a ordem.

223 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Trad. José Saramago. Lisboa: Editora Estampa, 1979. p. 45.

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Entre aqueles que cercavam o senhor, um corte nítido passa a separar os cavaleiros dos

“pobres”, os “rústicos”, os “vilões”, os camponeses que, por não participarem das ações

militares, monopolizadas pelos guerreiros, eram explorados em troca de proteção. O senhor

tirava tudo quanto podia deste grupo para suprir as despesas dos seus homens de guerra, além

das recompensas a eles oferecidas.

Homens de guerra, mas também “homens do senhor”, visto que também eram

subjulgados, deviam obrigações e estavam sujeitos ao poder daquele que os mantinham, mas

esta ligação era honrosa ao se assentar no laço vassálico no qual, segundo Georges Duby,

os ritos de homenagem, mais especialmente o beijo na boca, ao qual os vilões não tinham direito, deixavam clara a igualdade substancial que havia entre o senhor e os seus companheiros de guerra. Para eles, nada de serviço, se não de armas e de conselho, prestações nobres estas últimas e merecendo recompensa. 224

Entretanto, a princípio, existia uma distinção entre os senhores e seus cavaleiros. Os

senhores constituíam o corpo dos nobres, ligado ao poder e à linhagem. Esse grupo era

herdeiro da alta aristocracia, a nobilitas, que circulava em torno da casa real e que, na época

carolíngia, foi ganhando mais força e se estabelecendo. Pouco a pouco, essa nobreza,

participante do poder público na Alta Idade Média, foi se desligando da casa real, ao tomarem

consciência de sua posição e da honra de sua ascendência225, posto que, a nobreza dos

antepassados e suas glórias são os pilares de afirmação daquele que se quer um nobre

autentico. No período feudal, esse corpo social, ao se separar da casa real, foi formando suas

próprias dinastias que adquiriram aspectos das dinastias reais, assim:

Os seus antepassados implantaram as raízes dela na região que tem em seu poder, na fortaleza onde reúne os seus vassalos, e os ramos dessa raça vão florir sobre a mesma terra de século em século – uma árvore de tronco único porque, tal como a coroa real, a autoridade do senhor privado transmite-se indivisível de pai para filho.226

No que diz respeito à cavalaria, temos que, primeiramente, nos reter na análise de um

termo, a palavra miles227. A Idade Média dera continuidade ao significado de servir que as

palavras miles (plural milites), militia, militare revestiram-se na Antiguidade. Por isso,

224 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. p.68. 225 IDEM, A sociedade cavaleiresca. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 13-14. 226 IDEM, O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 44. 227 Ver DUBY, G. As origens da cavalaria. In: A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 23-36. FLORI, J. Cavalaria. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.1. p.185-199.

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cingulum militiae designava o serviço público prestado pelos soldados romanos ao imperador.

Sendo assim, o sentido de serviço que carregavam tinha uma conotação de combate. Fato que

influenciou na interpretação de certos trechos da Vulgata, notadamente dois textos de São

Paulo, tal como demonstram essas frases: Arma militae nostrae non carnalia sunt – “As

armas do nosso combate não são carnais” (2 Cor 10,4) – e Labora sicut bonus miles Christi

Jesu – “Participe dos sofrimentos como bom soldado de Cristo” (2 Tim 2,3).

Diante disto, entendemos porque os monges da Idade Média, como os mártires cristãos

da Antiguidade, se dizem milites Dei (soldados de Deus), designação também utilizada pelos

biógrafos dos santos merovíngios para falarem de seus heróis. Explica ainda porque em

Gregório de Tours, assim como nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, o termo miles é

empregado para indicar os auxiliares subordinados do poder público incumbidos de vigiar os

prisioneiros e executar os criminosos.

Esse valor semântico utilizado para a palavra miles e seus derivados fez com que na

Idade Média, o termo referi-se a um serviço em nível elevado, honrado, sem perder seu

significado militar, tanto que, vemo-lo substituir progressivamente qualificativos que indicam

subordinação vassálica, tais como vassus ou fidelis, e que remetem a um serviço de armas,

sendo assim, “para todos os escritores do ano mil, a expressão militare alicui não podia

significar outra coisa senão servir em vassalagem”228.

Se miles, sobretudo no singular, passa a designar freqüentemente um vassalo, no

plural, milites referia-se aos combatentes, aos soldados, dentre os quais haviam os cavaleiros,

denominados de equites, e os infantes, denominados de pedites. Entretanto, entre o final do

século X e o início do século XI, o termo milites passa a substituir equites, ou seja, apenas um

categoria de combatentes, os cavaleiros. Desde então, milites deixa de englobar, ou melhor,

opõem-se à pedites. Mudança que pode ser melhor atestada pela aplicação do termo

chevaliers na literatura românica (caballarius nas cartas provenientes do sul da França) como

equivalente de milites, presente nos textos latinos.

Sendo assim, entre os combatentes, aqueles que utilizavam o cavalo, tornam-se os

verdadeiros guerreiros, os únicos a serem dignos de serem chamados milites. Mas não só o

uso de cavalo caracteriza os cavaleiros. Evidentemente, razões de ordem técnica explicam o

seu destaque, posto que, além do cavalo, utilizavam um armamento completo, defensivo

(elmo, cota metálica, escudo) e ofensivo (lança, espada e algumas vezes clava), contando

228 DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 30.

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também com vários cavalos treinados para o combate (destriers) e, pelo menos, um escudeiro.

Portanto, conforme coloca Marc Bloch:

O que caracterizava a classe mais elevada dos combatentes era a união do cavalo e do armamento completo. Os aperfeiçoamentos deste último, depois da época franca, ao tornarem-no a um tempo mais caro e mais difícil de manejar, tinham fechado cada vez mais rigorosamente o acesso a esta maneira de fazer guerra a quem não fosse rico, ou fiel dum rico, e homem de ofício.229

Deste modo, cavalaria passa a compor uma nova categoria social devido a fatores

militares e econômicos, visto que, com as mudanças nas técnicas de guerra, armar-se

cavaleiro tornou-se oneroso. Seus membros passam a ser os guerreiros economicamente

selecionados que, compartilhando do gênero de vida considerado nobre, tornam-se um grupo

social fechado. A esses fatores técnicos, econômicos e sociais, junta-se um fator institucional

que favorece a delimitação do grupo: a limitação do serviço de armas a essa elite restrita.

Neste sentido, somos levados a retificar a afirmação de Marc Bloch230, segundo a qual, as leis

de restrição ou, até mesmo, proibição do porte de armas pelos grupos inferiores só aparecem

depois da segunda metade do século XII; contudo, conforme Georges Duby, essas limitações

já podem ser discernidas “em textos do século IX, como o Adnuntiatio Karoli ou o Capitular

de Quierzy, que reservavam a obrigação de combate, afora em casos de invasão, aos vassalos

enfeudados dos príncipes”231.

Após o que foi exposto anteriormente, compreendemos como miles tornou-se

sinônimo de vassalo mas, ao trazer consigo um valor de subordinação, como poderia então

tornar-se também o equivalente de nobre?

A militarização da sociedade e, conseqüentemente, a valorização e a exaltação da

cavalaria foi um dos fatores desta assimilação. A guerra era uma realidade social para a qual

os senhores contavam com seus auxiliares armados, os milites, com os quais estavam ligados

pelos laços de vassalagem. Devido a constância de conflitos durante os séculos X e XI, os

senhores e aqueles que o servem de armas na mão, tendem a uma maior e mais estreita

convivência, o que favorece a adoção por esses últimos dos costumes e mentalidade dos

229 BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1973. p.323. Sobre os aperfeiçoamento do equipamentos do cavaleiro ver também FLORI, J. Cavalaria, p.187-189. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.1. p.185-199. 230BLOCH, M. Op. Cit. p.322. 231 DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 29.

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primeiros. A cavalaria tende a dissolver-se na nobreza, sem ainda confundir-se com ela, visto

que, esta permanece uma questão de sangue, de nascimento, de linhagem232.

Mas, a cavalaria logo começa a compor um grupo hereditário. Em torno do século XI,

necessitando de vassalos reais, de guerreiros profissionais, os príncipes assim como os

grandes senhores, passaram a conceder feudos em troca dos serviços militares prestados ou a

prestar. Aqui vislumbramos o primeiro passo dos cavaleiros a caminho da nobreza. A

principio, os cavaleiros não podiam dispor livremente desses territórios. Mas quando os

feudos se tornam hereditários, os cavaleiros passam a constituir-se também num grupo

hereditário, assim como a nobreza233.

Mas foi em torno de um ritual, o da investidura dos cavaleiros, que a hereditariedade

do grupo foi consolidada. Difundinda a partir de meados do século XI, era na cerimônia de

investidura, ou adubamento234, que um indivíduo era armado cavaleiro. Esse rito cavaleiresco

por excelência serviu para limitar o serviço de armas a uma elite restrita, os guerreiros

profissionais. Entretanto, o direito de ser investido passou a ser reservado cada vez mais aos

filhos dos cavaleiros:

só são armados cavaleiros os filhos de pai cavaleiro e de mãe nobre. Por essas disposições, a nobreza controla a entrada na cavalaria e reserva o acesso a ela a seus próprios membros, numa época em que a dignidade cavaleiresca acrescenta distinção àquele que a recebe. Cavalaria e nobreza acabam por se fundir ou se confundir.235

Esse aspecto honorífico da cavalaria está estritamente relacionado com as reflexões

dos membros da Igreja, que procuravam ordenar a sociedade e conferir a cada segmento

social uma função atribuída por Deus. Na época carolíngia, houve uma preocupação em

distinguir duas formas de servir, militare, a Deus e de cooperar para o bem comum: pelas

armas e pela prece. Muitas foram as reflexões a respeito da superioridade da segunda em

relação à primeira, mas o que convém destacarmos é que, essas duas “formas de servir”

representam uma divisão da sociedade cristã entre os clérigos e os laicos.

232 FLORI, J. Cavalaria, p.190. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.1. p.185-199. Em relação à cavalaria, ver a discussão mais ampla feita pelo mesmo autor em FLORI, J. Chevaliers et chevalerie au oyen Age. Paris: Hachette Littératures, 1998. 233 HAUSER, A. História social da literatura e da arte. 2v. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1. p. 280-281. 234 Inicialmente, o ritual de “armar um cavaleiro” tem várias faces, de caráter laico e utilitário. Em um primeiro momento ocorria a entrega de armas ao postulante. Em seguida, quase sempre, o rapaz recebe de seu padrinho, sem poder revidar, uma “rude bofetada”. “Gesto este concebido de início como tão essencial à cerimônia que esta, no seu todo, tomou o nome habitual de ‘adoubement’ (dum velho verbo germânico que significava: bater)”. Por fim, uma manifestação desportiva fecha a cerimônia. BLOCH, M. Op. Cit. p. 346. 235 FLORI, J. Cavalaria, p.190. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.1. p.185-199.

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Entretanto, outras bipartições existiam. Gregório, o Grande e depois Bonifácio,

dividiam os súditos do rei em dois grupos: os dirigentes e os dirigidos. Os primeiros eram

compostos de duas partes, conforme o esquema gelasino: os que detinham a “autoridade”

espiritual e os que detinham o “poder” temporal. Portanto, o corpo dos laicos não era

uniforme, existiam os que desempenhavam o papel de dirigentes, os “poderosos”, pelo qual os

monarcas exercem sua força e seu poder, e os dirigidos, os “pobres”, vítimas da exploração e

da opressão dos primeiros. Essa oposição, o latim da Vulgata exprime pelo antagonismo de

dois termos: potentes e pauperes. Desde já, é importante colocar que, os pobres no

vocabulário social não tem significado econômico, nem jurídico, visto que os escravos não

pertencem ao “povo”, sendo assim, os “pobres” são a parte do “povo” desarmada236.

Essas bipartições, que separam os clérigos dos laicos, os fortes dos fracos, prefigura

uma tripartição (homens da Igreja, poderosos e pobres) a qual, no fim do século IX, aparece

nos Miracles de Saint Bertin, que fornece uma divisão tripla da sociedade, separando

dos oratores e dos bellatores o imbelle vulgus e que conduz naturalmente ao esquema proposto, nos anos trinta do século XI, pelos bispos da França do Norte, por Gerard de Cambrai (oratores, agricultores, pugnatores) e por Adalbéron de Leon (orare, pugnare, laborare)237

Três categorias, mas ainda assim, duas dominantes: oratores e bellatores. Resistindo a

não nos aprofundarmos na interessante discussão acerca dos sistemas de ordenação da

sociedade empreendida por Georges Duby, nos reteremos em nosso foco, a cavalaria. Desde

já é importante destacar que os escritores dos séculos IX, X e XI que se propuseram a ordenar

a sociedade, não empregaram o termo miles para designar a atividade guerreira, posto que, a

conotação de serviço parecia se sobrepor à noção militar. Sendo assim, como podemos

observar, outros vocabulários com significados propriamente militares foram preferidos:

bellator e pugnator. Além disso, para Adalberon, aqueles que tinham por função combater,

236 DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Trad. Maria Helena Costa Dias. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. p.117-118. 237 IDEM. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 31. As duas frases latinas pronunciadas pelo bispo de Laon e pelo bispo de Cambrai podem ser assim traduzidas : “Tripla é pois a casa de Deus que se crê uma: em baixo, uns rezam (orant), outros combatem (pugnant), outros ainda trabalham (laborant); os três grupos estão juntos e não suportam ser separados; de forma que sobre a função (officium) de um repousam os trabalhos (opera) dos outros dois, todos por sua vez entreajudando-se” e “Demonstrou que, desde a origem, o gênero humano se dividiu em três: as gentes de oração (oratoribus), os agricultores (agricultoribus) e as gentes de guerra (pugnatoribus); fornecem evidente prova de que cada um é o objecto, por parte dos outros dois, de um recíproco cuidado” . Apud DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Op. Cit. p.16-17. Quanto a questão da tripla ordem, vale mencionar que, em seus escritos, o autor Giles Constable oferece uma alternativa ao sistema interpretativo de Georges Duby, oferecendo uma visão um pouco diferente da tripla ordem e ao mesmo tempo faz referência ao período. CONSTABLE, G. III The Orders of Society. In: Three Studies in edieval Religious and Social Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 250-360.

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proteger as Igrejas e defender o povo, não eram os milites, mas os nobiles, cujo lugar de

destaque ele reserva ao rei e ao imperador238. Fato também evidente em Gerardo, que não usa

a palavra milites quando expõe seu sistema ideológico, mas, em contrapartida ela aparece nos

acontecimentos que sua Gesta dos Bispos de Cambrai relatam. Usa-a para apresentar os

subordinados:

Mesmo quando o autor lhes chama ‘cavaleiros de primeira categoria’, fá-lo segundo os laços de vassalagem, dependentes de um senhor, castelão ou bispo. Sob a pena do secretário de Gerardo, o termo miles evoca a inferioridade. Tal como evoca a malícia. Os cavaleiros são gente ruim que se torna perigosa quando os seus amos, eles também ‘imbecis’, lhes soltam as rédeas. Só pensam em pilhar, devastar, devorar os domínios da Igreja, quando - e a coisa parece inteiramente normal – lhe sucede terem terras como feudos.239

Portanto, em Adalberon e Gerardo, a função militar só é exaltada nos rei e nos

príncipes – os bellatores, e é a eles que cabe o dever de conter a turbulência da cavalaria.

Mas, como já colocamos, com o enfraquecimento do poder real, as funções consideradas

reais, foram passando para as mãos dos senhores locais, que contavam com seus auxiliares

armados para assegurar a paz e a justiça. Sendo assim, a cavalaria vai ganhando cada vez mais

destaque nesta sociedade feudal.

Diante da desconfiança que os esquadrões da cavalaria gerava entre os dirigentes

eclesiásticos, que os considerava como fatores de desordem social devido à agressão

constante, movimentos visando a sua limitação e, principalmente, sua contenção foram

surgindo na virada do ano mil: Paz de Deus e, pouco depois, a Trégua de Deus.

Por meio dessas instituições a Igreja procurou assumir as funções próprias de um

soberano, tentando reestabelecer a paz e a justiça na sociedade cristã, que encontrava-se

privada da autoridade real. Buscando controlar esta força emergente que era a cavalaria, a

Igreja lança mão de código de condutas, indicando tanto os indivíduos contra os quais

poderiam lutar, mas também as circustâncias e a datas permitidas para tal ação.

Impunha-se aos cavaleiros que respeitassem certas datas e não se erguessem contra o

povo cristão, que protegesse os fracos e a Santa Igreja. Entretanto, a Igreja não negava a

legitimidade da atividade bélica, desde que fosse por uma boa causa, tal como as investidas

contra os infiéis – as cruzadas:

238 DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 31. A legislação carolíngia comprova o dever de proteção reservado à função real. A exemplo disto, em 857, “Carlos, o Calvo, determina a seus missi respeitar as imunidades da Santa Igreja, não oprimir de forma alguma as freiras, as viúvas, os órfãos e os pobres e zelar para que seus bens não fossem pilhados”, p.40. 239 DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Op. Cit. p.55

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O sermão de Urbano II em Clermont (1095) situa-se na linha direta das instituições de paz, e a primeira cruzada pode ser considerada como sua conseqüência lógica. O papa condena os guerreiros cristãos que se matam por algumas moedas, com risco para a alma; ao contrário, exalta os que, por Deus, deixam a família para libertar o sepulcro do Senhor. Os que viessem a morrer em tal expedição de peregrinação guerreira alcançavam infalivelmente as palmas do martírio. Os cavaleiros cruzados, como os mártires outrora e os monges recentemente, podem portanto ornar-se com o termo milites Christi240.

Em meados do século XII, S. Bernardo idealizou a militia Christi ao procurar

converter todos os cavaleiros. Tentará reunir o ideal laico, cavaleiresco, ao ideal religioso,

monacal, inspirando uma nova ordem religiosa, a dos cavaleiros “convertidos” ou ainda a dos

monges cavaleiros, o que acabou resultando “nas ordens militares com campo de ação na

Terra Santa, a dos Cavaleiros do Hospital de S. João de Jerusalém, ou hospitalários, e a dos

Cavaleiros do Templo, ou templários, sem falar em outras que continuaram surgindo na

Europa até o final da Idade Média”241.

Mas como nos alerta Jean Flori242, nem todos os cavaleiros eram cruzados e muitos

que dela participam, o fazem por uma espécie de penitência, na busca de remissão para os

pecados de sua cavalaria. Sendo assim, o que a Igreja conseguiu foi institucionalizar a

Cruzada, mas não integralmente a cavalaria. Para exercer maior domínio sobre este grupo, a

Igreja começa interferir no ritual de investidura do cavaleiro. Primeiro, pela benção das

armas. Segundo, pela liturgia que passa a impregnar toda a cerimônia. Assim, o adulbamento,

ganhando traços de um cerimonial litúrgico, foi tornando-se ao longo dos séculos XI e XII um

verdadeiro sacramento.

Após o que foi exposto, percebemos que o termo cavaleiro era utilizado para designar

determinados indivíduos, aqueles que combatiam à cavalo, com o equipamento completo.

Mas logo, para receber este título, passa ser necessário submeter-se à um rito de iniciação,

uma consagração. Conforme Marc Bloch:

A transformação estava completa cerca de meados do século XII. Uma expressão usada desde antes de 1100 ajudará a apercebermo-nos do seu alcance. Não se ‘arma’ apenas um cavaleiro. Procede-se à sua ‘ordenação’. Assim se exprime, por exemplo, 1098, o conde de Ponthieu, que se prepara para armar o futuro Luís VI. O conjunto de cavaleiros investidos constitui uma ‘ordem’: ordo.243

240 FLORI, J. Cavalaria, p.193. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.1. p.185-199. 241 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p.90-91. 242 FLORI, J. Cavalaria, p.193. In: LE GOFF, J.; SCHIMITT, J-C (Coord). Op. Cit. v.1. p.185-199. 243 BLOCH, M. Op. Cit. p. 348.

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Nesse sentido, um papel central coube a Igreja que, preocupada com a violência

inerente aos guerreiros e com a proteção dos fracos e oprimidos, principalmente a sua,

designa a este grupo uma função especial – defesa da sociedade cristã, legitimando a

“existência de uma ‘ordem’ de guerreiros que, concebida como uma das divisões da sociedade

bem policiada, se identificava cada vez mais com a coletividade dos cavaleiros investidos”244.

Ora, a Igreja, com todos os meios a seu dispor, forneceu aos cavaleiros uma espécie de

dignidade espiritual e, gozando também de privilégios que os distanciava cada vez mais dos

“pobres”, isto é, dos trabalhadores, dos camponeses, sujeitos as coerções e explorações dos

senhores feudais, os cavaleiros passaram a constituir um grupo social coerente, fechado.

Chegamos ao cerne desta análise: a formação da nobreza cavaleiresca, ou seja, o

prestígio que a cavalaria foi adquirindo, tanto no plano espiritual com no plano temporal,

favoreceu a fusão entre esta e a nobreza, que passou a adornar-se com o título cavaleiresco e

seus membros logo se armaram como milites. Este fato pode ser averiguado a partir do século

XI, quando verificamos a utilização do termo miles para substituir outros qualificativos que

exprimiam a superioridade social245.

No período correspondente a escrita dos Lais de Maria de França, segunda metade do

século XII, a cavalaria não só constituía um grupo nobre distintamente delimitado,

estabelecido no centro do edifício social, como também o elemento mais significativo da

nobreza, ao serem os principais agentes da formação de uma cultura própria da aristocracia, a

cultura cavaleiresca, cuja emergência pode ser verificada desde o final do século XI.

A corte, como já colocamos no capítulo II, foi o lugar de elaboração e difusão desta

cultura que deve ser analisada neste cenário no qual clérigos e cavaleiros rivalizavam. Cada

um buscava eclipsar o outro para brilhar mais na disputa que travavam pelos favores do

patrono e pelas vantagens de poder. Como afirma Georges Duby246: “Quando os eclesiásticos

vituperam os cavaleiros, quando os denunciam como instrumento do mal, é porque vêem

neles concorrentes, é porque lhes disputam o poder senhorial e os proveitos que a exploração

dos trabalhadores proporciona”.

Em vista disto, entendemos o esforço da Igreja em controlar e propor normas de

conduta para os cavaleiros, procurando edifica-los por meio de seus preceitos religiosos.

244 IDEM, ibidem. p. 353. 245 Sobre a evolução do emprego da palavra miles para designar a aristocracia laica ver DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p. 24-27. Depois do exposto, fica claro que a nobreza feudal não se originou do desenvolvimento da cavalaria como queria Marc Bloch, estudos, como os empreendidos por K. F. Werner, demonstraram a existência de nobreza regionais antes do advento da cavalaria. DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. Op. Cit. p.14 246 IDEM, O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 52.

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Devido à influência do monaquismo, propunha que todo o povo cristão renunciasse às

alegrias e aos prazeres do mundo, vivendo na pobreza, na castidade, na paz e na abstinência.

No que diz respeito à paz, a guerra é sua precondição. Se Cristo pregava o pacifismo,

para os homens da Igreja, este só poderia ocorrer se a unidade cristã fosse implantada. Por

isso era necessário lutar contra os infiéis, contra os adversários da Igreja e, sobretudo, buscar

a expansão da Cristandade: “Entende-se assim a concepção de Guerra Santa, tipicamente

medieval, inexistente no cristianismo primitivo e incompreensível para o contemporâneo

cristianismo bizantino”247. Ora, se a guerra, dentro das normas cristãs, é justificável e também

necessária, visto que, segundo Cristo “Toda árvore que não der bons frutos, será cortada e

jogada ao fogo” (Mt 7, 19), em contrapartida, a alegria do combate deve ser banida.

Outra frente de luta deveria ocorrer contra a matéria, especialmente contra o corpo, a

“abominável roupagem da alma” nas palavras de Gregório Magno, pronunciadas em fins do

século VI. Quanto a isto, as principais restrições caiam sobre às relações sexuais. Aos leigos

era proposto que o ato sexual se limitasse ao casamento e ocorresse com fins procriativos, ao

clero impunha o ascetismo, a castidade.

Mas se os próprios membros da Igreja, os homens de oração, seguiam de maneira

precária seus preceitos, visto que, muitos geriam domínios fundiários como verdadeiros

senhores, gostavam de caçar, de ter bons cavalos e belas armaduras, partindo para combates

com armas na mão, além de viverem com mulheres248; o que se esperar então do laicado?

A cavalaria não abdica aos prazeres de combater e de amar, ao seu gosto pelo luxo,

por isso ergue-se contra o moralismo da Igreja, procurando libertar-se das coerções da moral

religiosa. Logo, reunindo em uma cultura própria o seu ideal cavaleiresco, seus valores morais

e sociais, esse grupo afirma sua autonomia, precisamente no século XII, face a cultura das

gentes da Igreja.

Dois modelos culturais, cada qual propondo um tipo ideal de comportamento, um tipo

exemplar de realização humana: o do cavaleiro e o do clérigo249. Como coloca Arnold Hauser:

As diretrizes, especialmente na poesia, passaram agora do clero, com a sua atitude espiritual tendenciosa, para os cavaleiros; a literatura dos monges perde o papel condutor que primitivamente mantivera. O monge já não é o representante da

247 FRANCO JR, H. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. 2o ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. p.147-148. 248 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 53. Como afirma Bloch, isso se aplica especialmente ao clero secular, “onde mesmo a reforma gregoriana só expurgou o episcopado. Não se contava, com admiração, acerca de piedosas personagens, padres de paróquias, e até abades, que, ‘dizia-se’, tinham morrido virgens? O exemplo do clero prova a que ponto a continência repugnava ao comum dos homens; e não era, decerto, particularmente indicada para os fiéis”. BLOCH, M. Op. Cit. p. 340. 249 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 202

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época; a figura típica é o cavaleiro, tal como o encontramos retratado, por exemplo, no Cavaleiro de Bamberg, nobre, orgulhoso, inteligente, a fina flor da destreza física e espiritual.250

Ora, inserir os filhos no tecido social era uma das obrigações do chefe da família: as

filhas pelo casamento, mais exatamente pela maternidade legítima, os filhos pela sagração

como cavaleiro251. Mas a carreira cavaleiresca não era a única opção, existia também a

eclesiástica. Por isso, o tipo de educação que lhes eram proposto estava de acordo com a

ocupação optada. Os que ingressariam na segunda eram estabelecidos em colegiados ou

confiados a preceptores. Já os que se tornariam cavaleiros passavam por uma formação

guerreira. Entretanto, como coloca Georges Duby, “a separação entre os dois modos de

formação não era rígida, que os futuros cavaleiros tiravam proveito das lições dadas a seus

irmãos e que alguns sabiam ler e escrever”252.

O treinamento militar começava muito cedo253, com pouca idade, oito ou nove anos,

os jovens eram retirados da casa natal e enviados à um tio, ou outro parente mas, mais

freqüentemente, à corte, lugar natural dessa formação. Ali, o senhor os acolhia e alimentava,

visto que estava previsto no contrato vassálico tal obrigação para com os filhos dos seus

feudatários. A corte apresenta-se assim como uma escola da cavalaria. Mas tal formação era

demorada, ocorria através de certas etapas, visto que, a luta a cavalo exigia um longo

treinamento.

O jovem começava seu aprendizado como um simples pajem: “Familiarizava-se,

então, com o trato, a limpeza e a conservação das armas, aprendia a conhecer as peças do

arnês e os tipos de montaria. Com catorze ou quinze anos, já acompanhava um cavaleiro,

como seu escudeiro”254. Na posição de escudeiro, o aspirante a cavaleiro, serve pelas armas.

Ajudam os já cavaleiros a equipar-se, a montar e a desmontar, carregam suas armas,

conduzem os animais de reforço e, se aqueles são feridos, transportam-os, buscam auxílio.

Praticam exercícios de combate e vendo os cavaleiros em ação, instruem-se. No lai de

Guigemar encontra-se presente o escudeiro (vaslez). Guigemar decidiu ir caçar, “um valete

levou seu arco/ sua faca e seu cão” (vv.85-86), após ser ferido, disse a seu valete para trazer

seus companheiros de volta.

250 HAUSER, A. Op. Cit. 2v. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1. p. 286-287. 251 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p.42. 252 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 158 253 Ver IDEM, ibidem. p.71. MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p.92-94. 254 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p.93.

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Mas a função de escudeiro era transitória, pois completado este estágio e mostrando-se

aptos, os jovens eram armados cavaleiros no ritual de investidura, ou adulbamento. Nos Lais,

Maria de França faz referencia a este “ritual de iniciação”: “Quando atingiu a idade, /

cavaleiro lhe adubaram.” (Yonec, vv. 469-470), “Desde o dia que ele foi adubado” (Milun, v.

10),

“A dama que criou o seu filho (tanto ficou junto dele até que ele tivesse idade), cavaleiro o adubou.” (Milun, vv. 289-292)

“o enviaram para servir o rei. O valete era sensato e valoroso; muito se fazia amar por todos Quando chegou o termo em que ele tinha idade e entendimento, o rei o adubou ricamente; armas lhe deu a seu gosto.” (Guigemar, vv. 42-48)

Na literatura cavaleiresca, os heróis, como não poderia deixar de ser, são os cavaleiros.

Para exalta-los, Maria de França atribui para seus personagens masculinos uma série de

qualidades morais, ligadas aos valores vitais da nobreza, e estéticas: valoroso, valente,

sensato, honrado, leal, cortês, belo, bom cavaleiro, gentil, nobre, generoso, audaz, altivo,

ousado, sábio.

Assim, o cavaleiro devia ser generoso como os bons senhores, mas também leal e bom

cavaleiro como o melhor dos vassalos. Quanto à falta de lealdade, a felonia, vale colocar que

era considerado um dos maiores defeitos na sociedade medieval, visto que a lealdade “estava

vinculada ao código ético do feudalismo, à quebra da homenagem e do juramento de

fidelidade. Traidor (félon, traître) era o pior designativo que alguém poderia merecer” 255. Nos

Lais, a autora usa a palavra felonia em dois casos distintos. Em um para a defesa do acusado:

“nunca em ninguém tocou,/ nem felonia mostrou” (Homem-Lobo, vv. 245-246). Em outro

momento, vemos a palavra sendo usada para a acusação: “O rei fala contra seu vassalo,/ que

eu vos ouvi nomear Lanval;/ de felonia o acusa” (Lanval, vv.439-441).

Sendo assim, a lealdade, a honra, o valor, compõem os valores morais do cavaleiro,

que devido as regras de cortesia, também deveria comportar-se nobremente, ser cortês e

gentil. Interessante colocar que nos Lais a palavra nobre, antes usada como substantivo, passa

a ser um qualitativo para o cavaleiro. Georges Duby observou essa mudança de sentido nos

255 MELLO, J. R. Op. Cit. p. 89.

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estudos empreendidos na França, no último terço do século XI, quando, nas “cartas francesas

vê reaparecer a palavra nobilis e seus equivalentes, agora porém com epítetos honoríficos

anexados ao substantivo miles para sublinhar o brilho particular de um cavaleiro” 256.

Entretanto, para cumprir com os deveres que a sua função guerreira exigia, o cavaleiro

deveria ser valente, audaz e ousado. A coragem é um componente imprescindível para o bom

guerreiro. Assim a covardia, juntamente com a deslealdade, eram considerados grandes

defeitos e, é significativo que, “em geral a covardia andava associada à felonia: o traidor era

quase sempre um poltrão”257.

Percebe-se que Maria de França coloca em cena um tipo humano ideal, representado

pelo cavaleiro. Aqui, vemos a junção do tipo básico da antropologia homérica, no qual o herói

é apresentado como sábio e guerreiro, com o novo ideal heróico de Virgílio, baseado na

virtude moral258.

Também a beleza é uma constante no elogio dos protagonistas. Segundo Curtius259,

“nenhum gênero literário tem maior necessidade de heróis e heróinas belos que o romance.

[...] No romance cortesão, cultivado na França desde 1150, surge inúmeras vezes o lugar-

comum ‘a Natureza criou um ser formosíssimo’”. Neste sentido, no início do lai de

Guigemar, Maria de França, depois de descrever as qualidades de Guigemar, coloca que a

Natureza só falhou em um ponto: seu desinteresse pelo amor.

Interessante notar que, conforme Jacques Le Goff260, “o prestígio da beleza física é tal

que a beleza é atributo obrigatório da santidade”, em contrapartida, “o ideal guerreiro,

todavia, exalta tanto o corpo quanto o ideal cristão o rebaixa”. Neste sentido, servindo para a

exaltação física e contendo tanto valores de conquista como a marca do espírito guerreiro, as

principais distrações nobres, presentes nos Lais, eram a caça e os torneios.

Após o que foi exposto, percebemos que a cultura cavaleiresca, tendo como seu

principal meio de difusão a literatura, era uma forma de distinção de grupo e por meio dela

emerge um sistema ideológico próprio da nobreza que se estrutura em volta da noção de

cavalaria. Como bem colocou Georges Duby,

Isso é testemunhado, no Norte da França, após 1160, pelo enriquecimento do ritual de sagração e, mais nitidamente, pela ressurgência na literatura profana do velho esquema da sociedade trifuncional, mas transformado, dessacralizado e

256 DUBY, G. A sociedade cavaleiresca.Op. Cit. p. 35-36. 257 MELLO, J. R. Op. Cit. p. 90. 258 Sobre o ideal heróico de Homero e Virgílio ver CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p. 226-231. 259 IDEM, ibidem. p. 240. 260 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. v.2. p. 102 e 120.

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reconhecendo à ‘ordem’ dos cavaleiros a preeminência, não apenas sobre os ‘vilões’, mas também sobre a dos que se dedicam à oração.261

Deste modo, os Lais, pertencentes à literatura cavaleiresca, apresentam uma sociedade

idealmente tripartida, na qual cada ordem cumpre seus deveres e obrigações, simbolizando

uma harmonia social. Lembrando o que foi proposto por Adalberon e Gerardo, havia os

homens de guerra, os homens de oração e os trabalhadores. Devido à reciprocidade das

funções, os primeiros enfrentavam os perigos e até a morte nos combates em nome dos

demais, as orações dos segundos garantiam sua salvação, assim como a do terceiro grupo,

cujos membros trabalhavam para sustenta-los.

Indiretamente, é isto que os Lais representam, ao retratarem a nobreza cavaleiresca

cumprindo a sua função, e por isso, fica subentendido que as outras categorias sociais também

fazem o seu papel. Sendo assim, não vislumbramos os protagonistas masculinos exercendo

prosaicas ocupações, mas buscando sempre uma maneira de exercer suas virtudes guerreiras.

Somando-se a isso, conforme Marc Bloch262, “era natural que uma classe tão

claramente delimitada pelo gênero de vida e a supremacia social acabasse por obter um

código de conduta que lhe fosse próprio” e, para favorecer tal empreitada, a aristocracia

medieval deste período mais pacificado dispunha de tempo ocioso para se requintar. A

cortesia aflora neste ambiente, no qual sentimentos mais refinados, maneiras galantes e

sutilezas intelectuais passam a ser cultivados263. Com isso, o feminino e o amor ganham mais

atenção: pelas regras do amor cortês era necessário tratar convenientemente as mulheres, não

mais o rapto, mas a sedução entra em cena.

A prática do amor cortês era também uma forma de distinção na sociedade medieval,

pois era reservado à nobreza, tanto que, Guilherme de Poitiers designava-o como “amor de

cavaleiro”, deixando claro aqueles, entre os homens, que na corte eram chamados a servir as

damas. Aqui também uma separação entre as mulheres, visto que, as novas conveniências

deveriam ser praticadas em relação às damas e donzelas, e não com as vilãs, as quais os

cortesãos estavam autorizados a perseguirem sem comedimento para satisfazerem suas

vontades264.

261 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.146. 262 BLOCH, M. Op. Cit. p. 337. 263 POWER, E. Mujeres Medievales. Trad. Carlos Graves. Madrid: Ediciones Encuentro, 1986. p. 26. 264 DUBY, G. O modelo cortês, p. 337. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) História das mulheres no Ocidente. Vol 2: A Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1990. p. 331-351.

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Tal fato pode ser atestado no Tratado do Amor Cortês, no qual André Capelão afirma

que os homens e mulheres estão divididos de acordo com suas condições e supõe situações,

em forma de diálogos, para fornecer preceitos relativos aos diferentes grupos sociais,

conforme as possibilidades de relações amorosas, das quais os camponeses estão excluídos,

pois eles são naturalmente levados a realizar as obras de Vênus como o cavalo e o mulo, que são ensinados pelo instinto natural. É que os camponeses bastam os incessantes trabalhos da terra e os prazeres ininterruptos da lavoura e da charrua. Mas mesmo que, contrariando a sua natureza, lhes aconteça – raramente, é verdade – ser instigados pelo aguilhão do amor, não convém iniciá-los na arte de amar: seria temer que, desejando comportar-se em oposição às suas disposições inatas, eles abandonassem a cultura das ricas terras que frutificam habitualmente graças a seus esforços, e que estas se tornassem improdutivas para nós. Mas se por acaso o amor das camponesas te atrair, abstém-te de lisonjeá-las com muitos louvores, e, se encontrares ocasião propícia, não hesites em satisfazer teus desejos e possuí-las à força265.

Portanto, André Capelão demonstra uma visão aristocrática em seus escritos, porém,

afirma que a mais nobre das condições é a dos eclesiásticos que, devido sua posição social,

deve ser alheio a todas as práticas do amor e abster-se da profanação carnal, caso contrário deverá ser despojado dessa nobreza especial que Deus lhe outorgou. No entanto, não há, por assim dizer, ninguém que passe a vida sem cometer o pecado da carne, e os eclesiásticos estão mais sujeitos que os outros homens às tentações do corpo, pois têm sempre muito tempo disponível e mesa farta. Se, portanto, algum deles quiser entregar-se às justas amorosas, que faça sua corte e se esforce por realizar o serviço religioso [devido ao contexto, acreditamos que haja aqui um erro de tradução, que em vez de “religioso” seja “amoroso”] segundo a classe ou a situação social de seus pais266.

Nos Lais, Maria de França reserva as práticas do amor cortês somente à nobreza

cavaleiresca, excluindo os camponeses, os clérigos e os burgueses. Estes últimos chegam a ser

mencionados no lai de Equitan, no qual a dama diz ao rei que não convém ambos serem

“amigos”, visto que o rei está em uma condição social acima da sua, o que ocasionaria

insegurança da parte dela, porque o amor só tem valor quando é igual. Sendo assim, a dama

coloca que o rei esteja talvez exercendo seu direito de senhor solicitando seu amor por força

de seus privilégios. O rei Equitan lhe responde:

“Dama, piedade! Não digas mais! Esses não são verdadeiramente corteses, antes é barganha de burguês, que para ter riqueza ou grande feudo

265 ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant, tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 206-208. 266 IDEM, ibidem. p.195-196.

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empregam seus esforços em maus lugares” (Equitan, vv.154-158)

Nestes versos, Maria de França parece refletir a ameaça que a nobreza cavaleiresca

começa a sentir com a ascensão dos burgueses. Como colocamos no Capítulo I, durante a

Idade Média Central ocorrem importantes mudanças socioeconômicas, das quais, o grupo

senhorial foi o principal, ou talvez, o primeiro, beneficiado, posto que, “o sistema de taxas e

rendas transfere para as mãos dos senhores o essencial do aumento de recursos determinados

pelo alargamento da área agrícola, pela alta dos preços dos produtos e pela multiplicação do

número dos trabalhadores”267.

Essa prosperidade aristocrática ocasionou a expansão do consumo, estimulando o

artesanato especializado e o comércio. Com a revitalização da economia comercial e

monetária e o desenvolvimento urbano, dois grupos sociais já existentes começam a ganhar

destaque: a elite da burguesia mercantil e o corpo dos servidores dos grandes senhores. Essa

gente, conforme Georges Duby268, “enriqueceu. Alguns se tornaram mais abastados que

muitos nobres. Mas seu ideal continuou sendo integrar-se à nobreza rural, ser admitido no

seio dela, compartilhar de suas maneiras de viver e sua cultura”.

Sendo assim, os burgueses, logo que adquiriam riquezas, compravam terras,

procuravam desposar donzelas de bom nascimento, ainda que sem dote, tentando por meio de

seu poder econômico adquirir status social. Além disso, para escapar das tiranias locais e

garantir o livre exercício de sua atividade profissional, a burguesia buscou também ascender

ao poder político, recorrendo aos grandes governos monárquicos ou territoriais e formando

comunas. A comuna era uma associação de indivíduos, os burgueses, ligados por um

juramento mútuo. Eram laços juramentados assim com os laços vassálicos, entretanto,

ocorriam entre iguais. Ora, por esses motivos, a burguesia ganhou, por um lado, um caráter

antifeudal, caminhando no sentido contrário do desmembramento dos poderes ao apoiarem,

em especial na França, o processo de centralização política, e também ao introduzirem, por

meio de juramentos de iguais, um elemento alheio ao espírito feudal, hierarquizado269.

Ora, diante disto, a nobreza cavaleiresca entra na defensiva, buscando bloquear as

tentativas de intromissão desses novos ricos. Uma das formas utilizadas foi o desprezo e a

ridicularização dos burgueses. A exemplo disto, além dos versos de Maria de França

transcritos anteriormente, podemos também citar um trecho do diálogo, colocado no Tratado

267 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit, p. 145. 268 IDEM, ibidem. p. 145. 269 BLOCH, M. Op. Cit. p.393-394. FRANCO JR, H. Op. Cit. p. 95.

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do amor cortês por André Capelão, entre um plebeu e uma mulher da alta nobreza. A dama,

defendendo a distinção social, diz:

Pretendes um lugar entre os cavaleiros, mas percebo em ti muitas coisas contrárias e prejudiciais ao serviço da cavalaria. Os cavaleiros devem, naturalmente, ter pernas longas e finas e pé pequeno, mais longo que largo, como se modelado pela arte, e vejo que, ao contrário, tuas pernas são gordas e massudas como pilares e que terminam de repente, sem afinar; teus pés são enormes: têm comprimento desmesurado, igualado pela largura270.

André Capelão não nega aos burgueses o direito de participar dos jogos de amor cortês

como fizera com os camponeses, entretanto, deixa claro que estes devem ter uma riqueza de

virtudes e bom comportamento para solicitar o amor de uma dama. Conforme Georges

Duby271, se gentileza significava “bom nascimento”, convinha que aqueles que não tinham

nascimento nobre, mostrassem-se melhor do que ninguém no jogo cavaleiresco e cortês.

Antes de prosseguirmos, um fato importante deve ser evidenciado. Os cavaleiros,

exaltados pela sua função guerreira, vão perdendo o monopólio do porte de armas. Já no

século XII, a cidade organiza seus grupos armados para a expansão econômica, os burgueses

lutam por liberdades cívicas, e também pessoas modestas passam a serem contratadas como

soldados, mercenários, pelos príncipes que acreditam que estes se empenham mais na

função272. Por isso, outros critérios passam a ser utilizados para a distinção social:

Precisamente pela habilidade em praticar os jogos de amor. Aos vilões o porte de armas não é mais recusado mas sim a graça, a roupa, a compostura pelas quais se ganha o coração das belas. O Amor não os deve admitir em sua vassalagem. O que significa que a sociedade mundana permanece mais do que nunca na defensiva, fechada, esforçando-se por desmontar as tentativas de intromissão, por desmascarar o novo-rico através da incorreção de suas maneiras, apontando sua grosseria ingênua que transparece sempre sob o verniz muito recente. [...] Sobre o respeito aos bons costumes estabelece-se, de agora em diante, a verdadeira barreira social273.

Mudança que ficou mais evidente a partir do século XIII e principalmente nos séculos

seguintes, mas que já pode ser encontrada no momento da escrita dos Lais e do Tratado do

amor cortês. Uma observação de Arnold Hauser deve ser mencionada: “Vemos, muitas vezes,

que os novos membros de um grupo privilegiado são mais rigorosos na sua atitude, em

questões de etiqueta de classe, do que aqueles que nasceram representantes do grupo”274.

270 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. 56. 271 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 249. 272 BLOCH, M. Op. Cit. p.392. DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 80. 273 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 80-81. 274 HAUSER, A. Op. Cit. p. 282.

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Logo, a cavalaria preocupava-se em refinar suas maneiras, considerando-as como um dos

pontos que a distinguia de outros grupos, fato expressado pela literatura.

Somando-se a isso, com a pacificação interna da sociedade e a crescente centralização

do poder, monopolizando a tributação e a força física, a nobreza cavaleiresca, beliciosa, vai

ganhando mais o aspecto de uma nobreza de corte, domada, com emoções abrandadas. Fato

de extrema importância, visto que, a transformação de guerreiros em cortesãos é decisiva nos

grandes processos civilizadores. No Ocidente, essa transição iniciou-se de maneira lenta no

século XII ou XIII até chegar à sua conclusão nos séculos XVII e XVIII 275.

De qualquer maneira, o tipo de conduta da nobreza foi tomado como ideal, como

modelo a ser seguido pelos outros grupos sociais, principalmente por aqueles que queriam

inserir-se entre eles, os burgueses. Ora, se o “bom comportamento” adquire um valor de

prestígio e de diferenciação social, cada vez que seus códigos se disseminavam entre os outros

grupos, cada vez que suas maneiras eram imitadas e de certa forma um pouco alteradas pelos

burgueses, perde-se seu caráter de identificação aristocrática. Para Nobert Elias,

Este fato obriga os que estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é esse o mecanismo – o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção – que o movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe sua motivação276.

Na busca de um maior refinamento, o amor cortês teve um papel importante. A

literatura expressava que aqueles que queriam participar dos jogos do amor cortês deveriam se

portar de maneira adequada para serem apreciados pela dama. Ser cortês é uma das qualidades

mais usadas por Maria de França para exaltar seus personagens e no lai do Homem- Lobo, ao

descrever o protagonista, coloca: “e nobremente se comportava” (v.18).

O papel social e a função pedagógica do amor cortês serão tratados no subcapítulo

seguinte, visto que neste subcapítulo procuramos demonstrar que a literatura, cuja temática

era o amor cortês, foi um forma de expressão e afirmação da supremacia aristocrática. E como

buscamos comprovar, nos Lais, Maria de França reforça esse ideal. Mas, ainda que

275 ELIAS, N. O Processo Civilizador. Trad Ruy Jungmann; revisão, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v.2. p. 215-217. Nessa obra, Nobert Elias procura demonstrar como o processo civilizador, ou melhor, o refinamento do comportamento e das atitudes está ligado com a monopolização da violência pelo Estado e o estreitamento das relações interindividuais. Ainda que tal fato possa ser analisado neste trabalho, decidimos desviar de tal caminho para que o trabalho não se distancie de seu objetivo central. No decorrer desta dissertação continuaremos utilizando a designação “nobreza cavaleiresca”, visto que, a transformação deste grupo em “nobreza de corte”, ainda não estava concluída. 276 IDEM, ibidem. v.1. p. 110.

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permaneça como tema literário e ideológico, o esquema tripartido de divisão da sociedade vai

se tornando muito simplista com as transformações sociais da Idade Média Central.

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2. JUVENIS

No seio da cavalaria, havia o grupo numeroso dos juvenis, ou seja, de cavaleiros já

investidos, porém solteiros. Como já colocamos, a juventude na Idade Média era mais uma

questão de estado civil do que de faixa etária, prolongava-se por vários anos e, com

freqüência, não terminava. Segundo Georges Duby, esses indivíduos eram considerados a

“flor” da cavalaria e formavam o público preferido dos escritores da literatura cortês277.

Esses rapazes, que eram mandados para a corte pelos chefes das famílias para que

pudessem realizar sua formação guerreira, quando não encontravam meios de se

estabelecerem, continuam em volta do senhor, formando um grupo de celibatários, cuja a

turbulência devia ser contida. E, para arrematar este capítulo, lançaremos nosso olhar sobre

essa conjuntura.

A primeira questão a ser colocada diz respeito às estratégias matrimonias. A política

da linhagem nobre cuidava para que os filhos mais novos não casassem e assim não gerassem

herdeiros legítimos. Isto porque os chefes de família, buscando estabilidade econômica,

temiam que seu patrimônio fosse fragmentado entre os filhos. Logo, cuidar para que somente

o primogênito casa-se e tivesse uma descendência legítima era um meio de garantir e

fortificar a propriedade nobilitaria e os poderes dos chefes que, de tal modo, sem divisões,

passariam para a mão de um único filho, habitualmente, o mais velho. Em contrapartida, era

grande o interesse em casar todas as filhas pois, por meio do matrimônio feminino, adquiria-

se alianças; surge também a propensão de excluir as filhas casadas da partilha da herança,

entregando-lhe dotes.

Esse caráter agnático das novas estruturas familiares, ao privilegiar na sucessão a

masculinidade e a primogenitura, “acaba por produzir uma crise nobiliárquica que vê surgir

no seu seio uma cisão entre o grupo dos grandes senhores feudais e o de uma pequena

nobrezas mais empobrecida de dependente”278 (grifo do autor). Sendo assim, os filhos

segundos, excluídos da herança, buscavam outras alternativas: ou se estabeleciam na corte de

um senhor, ou partiam para as cruzadas ou ainda tomavam hábito religioso. A exemplo disso

podemos citar Luís VII, que foi educado no claustro e supostamente se faria monge, carreira

interrompida com a morte do irmão mais velho. Caberia então a Luis a tarefa de procriar para

garantir a descendência, assim, casou-se com Eleonora da Aquitânia.

277 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 71. 278 BARROS, J. D’A. O amor cortês. Rio de Janeiro: Cela, 2002. p.24.

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Essas reticências em casar os filhos mais novos, faz com que esse período histórico

torne-se o tempo dos jovens que sonham em se unir a uma companheira legítima, sendo

“elementos dinâmicos de permanente desassossego”279. Entre os primogênitos, também havia

o problema da sucessão, visto que, “enquanto o pai não morre e não podem retirar das suas

mãos o governo do senhorio, suportam mal a dependência a que a economia agrária desse

tempo os condena na casa familiar”280. As cruzadas e as viagens, estas fianciadas pelo pai de

família, foi um dos procedimentos adotados para conter a turbulência dos rapazes;

extravasariam na errância, pelo menos provisoriamente, o seu excesso de ardor281.

Se, de certa maneira, a tranqüilidade social assentava-se sobre o casamento, muitos

senhores, concediam aos cavaleiros celibatários, filhos segundos, um feudo e uma herdeira

para desposar. Os grandes senhores utilizavam-se desta estratégia como instrumento de

dominação, a exemplo disso, podemos citar Henrique Plantagenta que, consciente das

expectativas dos cavaleiros,

Tomava muito cuidado em manter sempre ao alcance, estreitamente vigiada, uma bela reserva de mulheres por casar, moças na maior parte ou viúvas de seus vassalos. Os jovens de sua corte as cobiçavam. Para obter uma delas, mostravam-se muito dóceis com o patrão. As futuras esposas eram moeda muito preciosa para comprar amizades, para comprar a calma. Distribuindo-as, o bom senhor punha alguns dos juvenis na vida doméstica, separava-os dos bandos de cavaleiros turbulentos, fazia deles seniores, homens ponderados, estabilizados. Assim, pelo casamento, pelo bom uso das mulheres, os germes da desordem eram com efeito reabsorvidos pouco a pouco na França do século XII.282

Tal fato é atestado por Maria de França no lai de Lanval:

“aos da Távola Redonda (não havia outros iguais em todo o mundo!) mulheres e terras distribuiu, exceto para um somente que o tinha servido. Este era Lanval; não se lembrou dele, nem nenhum de seus bens lhe deu.” (Lanval, vv. 15-20)

Nestes versos, a autora nos mostra que a entrega de mulheres e terras era uma das

recompensas que os cavaleiros esperavam pelos serviços prestados. Conforme Georges

Duby283, “aos jovens, essa dádiva parecia a mais invejável recompensa. Para ela tendia toda a

279 HEER, F. O mundo medieval. São Paulo: Ed Arcádia Limitada, 1968. p.31. 280 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit. p. 50 281 IDEM. Convívio, p.87. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença.. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.2, p. 49-95 282DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op. Cit. p.68. 283 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 73.

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emulação da qual a corte era o teatro. Mas ela era mesquinhamente distribuída”. Sendo assim,

a maioria dos cavaleiros permaneciam juvenis.

Ora, esta era apenas uma das formas utilizadas pelos grandes senhores para mostrar

sua generosidade e fazerem-se mais amados e melhor servidos. A generosidade era

considerada a maior virtude do sistema aristocrático e suas raízes são antigas, presentes já nos

costumes daqueles que imigraram para o Ocidente nos séculos V e VI, os chefes das tribos

germânicas284.

Por meio desta virtude, os senhores mantinham os jovens celibatários que povoavam a

corte, dependentes e domados, sendo uma maneira de afirmar sua autoridade e prestígio.

Diante disto, entendemos a razão da generosidade ter grande valor na ética cavaleiresca, que

condenava todas as atitudes das quais ela era a negação: a avareza e a cobiça. Segundo

Georges Duby,

É possível ver, nesse ponto preciso, a articulação das estruturas econômicas e da ideologia: os vilões, produzem a riqueza, o senhor, legitimamente, se apossa dela, mas ele não poderia guardá-lo para si; ele deve redistribuí-la por toda a cavalaria, e, de início, pela juventude. Dessa redistribuição a corte é o órgão – o que a corte do rei da França continuou sendo até 1789- e o motor, a generosidade. 285

Conforme os versos citados anteriormente, percebemos que Maria de França sabia da

importância desta atitude na sociedade feudal, além disso, a autora, quando pretende exaltar

um personagem, mostra o quão generoso ele era, a exemplo disso, podemos citar novamente o

lai de Lanval. A fada, ao prover Lanval de grande riqueza,

“Um dom lhe deu depois: já não haverá nada desejado que ele não terá a sua vontade; dê e gaste larguamente, ela lhe proverá o bastante” (Lanval, vv.135-139)

Sendo assim, Lanval exerceu toda a sua generosidade, oferecendo abrigo àqueles que

precisavam, dando ricos presentes, fazendo grandes celebrações. Ora, Maria de França, em

seus versos, atesta a atmosfera de esbanjamento na qual a prática do poder e o ofício das

armas aconteciam.

A poupança, a qual podemos considerar que nesta época era sinônimo de avareza, não

estava de acordo com o espírito feudal, que ditava que um bom senhor devia mostrar sua

magnificência, gastando suas riquezas para proporcionar divertimentos para aqueles que o

284 MELLO, J. R. Op. Cit. p.83 285 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 72.

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rodeavam. Neste contexto é que as grandes festas organizadas pelos senhores inserem-se.

Conforme Hilário Franco Jr.: “O lazer medieval por excelência estava nas muitas festas do

calendário, que reservava (contando os domingos, dia semanal de festa) cerca de um quarto

do ano a elas”286. Por meio delas, os senhores manifestavam sua liberalidade e tornava

público os grandes momentos familiares: bodas, enterros, batismos, reencontros, investidura

de um filho etc287. Eram cerimônias de ostentação e autopromoção.

Nos Lais, Maria de França menciona a festa de São João (Lanval, v. 222), de Santo

Aarão (Yonec, v.473), de Pentecostes (Madressilva, v. 41). No Lai de Freixo o senhor

convidou seus amigos para a realização do seu casamento: “As bodas se realizaram ricamente;

/ havia muita diversão” (vv.383-384).

Mas não só a festa era ocasião para reuniões e divertimentos, havia também os

torneios. Conforme José Roberto Mello288, esses torneios tinham um caráter internacional, por

isso eram anunciados com antecedência e atraiam cavaleiros de várias regiões. Neles, os

jovens cavaleiros distraíam-se e tinham a oportunidade de demonstrar toda sua bravura e sua

destreza militar. Neste sentido, temos ainda que colocar que, por meio desses altos feitos

desportivos, a juventude esperava ganhar a atenção das espectadoras femininas: “damas e

donzelas avaliavam de longe o vigor dos machos, e estes acreditavam possível ganhar os

favores de umas e a mão de outra fazendo bonito em meio aos perigos desses enfrentamentos

selvagens, dessas ‘feiras’, feiras de campeões, feiras de mulheres”289.

Maria de França retrata esses aspectos. No lai de Guigemar, Meriaduc anuncia um

torneio, sabendo que este traria o cavaleiro que procurava. No lai de Milun, a autora coloca

que:

“após a chegada da Páscoa, recomeçaram os torneios, as guerras e as disputas. No Monte Saint-Michel se reuniram; normando e bretões para lá seguiram e os flamengos e os franceses; mas não havia nenhum dos ingleses.” (Milun, vv. 382-388)

Quando o torneio teve início, Milun foi bem nos combates, mas aquele que mais se

destacou foi o valete, seu filho. Ponto de encontro, o torneio reaproximou pai e filho. Por fim,

no lai O infortunado, também depois de uma Páscoa, um torneio é proclamado diante da

286 FRANCO JR, H. Op. Cit. p.136. 287 RONCIÈRE, C. de la. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença, p. 298. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p.163-309. 288 MELLO, J. R. Op. Cit. p.73-74. 289 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op. Cit. p. 109

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cidade de Nantes, na Bretanha. Vieram cavaleiros de diversos países: franceses, normandos,

flamengos, brabantinos, bolonheses, angevinos e outros da vizinhança. Nos combates, os

quatro cavaleiros que cortejavam a Dama, procuravam se destacarem aos seus olhos,

entretanto, três deles foram mortos e um foi gravemente ferido. Neste lai, a imagem do

torneio que Maria de França fornece está de acordo com a observação de José Roberto Mello:

No romance os torneios não aparecem muito diferentes da realidade. Em lugar de combates singulares e ordenados esteticamente, que vemos nos filmes, as justas dos séculos XII e XIII eram encontros caóticos e brutais de grupos de adversários, formando a camada ‘melée’, uma verdadeira batalha, com o inevitável saldo de mortos e feridos. 290

Vale colocar que, a organização desses torneios ocasionava despesas consideráveis,

por isso, eram detestáveis pelo povo, pelos camponeses, que sofriam com a avidez dos

senhores em arrecadarem taxas, ao terem gastado mais do que as compensações lhes

rendiam291. Devido também ao alto grau de mortalidade, soberanos mais prudentes, a título de

exemplo Henrique II Plantageneta, não favoreciam esses combates. E, conforme Marc Bloch,

Pelo mesmo motivo – e também por via das suas relações com os divertimentos das festas populares, que afloravam o paganismo -, a Igreja proibiu-os rigorosamente, ao ponto de recusar a sepultura em terra consagrada ao cavaleiro, ainda que fosse penitente, que neles tivesse perdido a vida.292

O mesmo autor prossegue afirmando que, apesar das restrições políticas e religiosas, a

realização dos torneios persistiram, fato que demonstra de que maneira eles satisfaziam a um

gosto profundo, afinal, eram um “verdadeiro prazer de classe”.

Os escritos literários também relatam a liberdade dos cavaleiros de vaguearem por

todos os lugares em busca de aventura, de riquezas. Tal mobilidade estava reservada na

sociedade medieval, principalmente, aos jovens, ou seja, aos homens solteiros, desprendidos

de qualquer obrigação familiar e conjugal. Sendo assim, poderíamos considerar que a figura

do cavaleiro representaria o ideal da juventude eterna. Entretanto, nos Lais, Maria de França

reserva esta faculdade de ir e vir às figuras masculinas em geral. No lai de Eliduc, por

exemplo, o cavaleiro, ainda que casado, decide partir por algum tempo, deixando sua mulher.

De qualquer maneira, não só as festas e os torneios entretinham e divertiam a

cavalaria, a própria literatura cortês também era composta para este fim. Por isso, os senhores

procuravam manter em suas cortes os mais talentosos escritores. Entretanto, para além da

290 MELLO, J. R. Op. Cit. p.73-74. 291 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais.Op. Cit. p. 109- 110. 292 BLOCH, M. Op. Cit. p. 337.

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diversão, esses escritos serviam ainda como instrumento de dominação e controle da

juventude turbulenta que perambulava pela corte.

Quanto a isto, algumas interpretações acerca da temática do amor cortês devem ser

analisadas. Em primeiro lugar, a sua função pedagógica. Semelhante aos torneio, os jogos de

amor cortês canalizavam a agressividade masculina, atiçando entre os jovens uma disputa

pelos favores da mulher amada. Nesta emulação, somente aqueles que, por meio de uma

superação de si mesmo, controlassem seu desejo e se comportassem segundo as regras de

cortesia, se destacariam. Através dos códigos do ideário cortês, os jovens passam por uma

formação progressiva que conduz ao seu enobrecimento, à sua perfeição na virtude, assim

afirma André Capelão ao escrever sobre os efeitos do amor:

Graças ao amor, o verdadeiro amante não pode ser aviltado pela avareza; o amor faz um homem grosseiro e sem educação brilhar de elegância; até a um homem de baixíssimo nascimento ele pode conferir nobreza de caráter; enche o orgulho de humildade, e graças a ele o amante acostuma-se a prestar serviços aos outros. Que coisa extraordinária o amor: permitem que tantas virtudes brilhem no homem e confere tantas qualidades a todos os seres, quaisquer que sejam. Há também outra coisa no amor que merece mais que um rápido louvor: de algum modo ele ornamenta o homem com a virtude da castidade, pois aquele que é iluminado pelos raios do amor a custo pode pensar em estar nos braços de outra mulher que não seja sua bem-amada, por mais bela que seja essa mulher. Isto porque, quando o amante está pleno de amor, qualquer outra mulher lhe parece feia e desprovida de atrativos.293

Neste sentido, no lai de Equitan, Maria de França coloca em uma das falas do rei:

“Que seria de sua cortesia se ela não praticasse o fino amor? Debaixo do céu não há homem, se ela o amar, que seguramente não se torne melhor.” (Equitan, vv.85-88)

O amor como fonte de todo o bem, raiz de toda cortesia é um motivo poético e,

segundo Moshe Lazar, numerosos exemplos podem ser encontrados na lírica provençal. E, o

mesmo autor ressalta que a palavra “cortesia” tem um valor coletivo e engloba em si todas as

virtudes consideradas corteses294. Ora, como podemos verificar no Lais, os cavaleiros,

mesmo antes de conhecerem àquela que despertará seu amor, já possuem essas virtudes. O

que comprova a dialética do amor cortês que, na verdade, aprimora as qualidades já existentes

nos amantes, por isso, só aos cortesãos a sua prática está reservada.

293 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. 13. 294 LAZAR, M. Amour courtois et fin´amors dans la littérature du XIIe siècle. Paris: Klincksieck, 1954. p. 26 e 45.

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Das virtudes dos amantes, a mesura tem um papel central. Por ser a principio uma

relação clandestina, o amor cortês exige que os enamorados comportem-se com temperança,

que saibam esperar o momento oportuno de se declararem e, se possível, de se encontrarem.

Enquanto isto, o verdadeiro amante, dominando seu desejo, deve se manter casto à espera da

amada. O melhor exemplo de castidade pode ser encontrado no lai de Guigemar. Guigemar,

nunca demonstrou interesse por nenhuma mulher a não ser àquela a quem dedicaria todo o seu

amor e, mesmo quando foram separados, continuou fiel à Dama. Neste sentido, o amor cortês,

para além de enobrecer e educar, servia para reger a sexualidade.

É difícil sabermos a dimensão da influência literária no comportamento do homem

medieval. Georges Duby295 lança a hipótese de que a temática do amor cortês tinha uma

utilidade social e, mais precisamente política. Favorecidos pelo mecenato principesco e

procurando corresponder as suas expectativas, os escritos pelos quais apreendemos as regras

do amor cortês foram compostos nas cortes, em especial, na corte de Henrique Plantagenta

(1133-1189). Lugar de regulamentação, controle e formação cavaleiresca, a corte tinha uma

função pedagógica para a qual a literatura constituía um importante instrumento.

Além disso, durante o século XII, as monarquias estavam se reconstruindo,

desprendendo-se do novelo feudal. Logo, havia a necessidade de reforçar o domínio da

autoridade soberana principalmente sobre a cavalaria, categoria social que poderia ajudar na

reconstituição monárquica, mas que mostrava-se a menos dócil e a mais turbulenta. A solução

foi enquadra-la nos jogos do amor cortês, cujo código atendia aos propósitos principescos de

duas maneiras.

Em primeiro lugar, ao realçar os valores cavaleirescos, ele afirmava a preeminência da

cavalaria face à ascensão de outro grupo social, a burguesia. Reservado ao homem cortês, o

fino amor tornou-se um privilégio de grupo e um fator de distinção social. Entretanto, como

colocamos no subcapítulo anterior, os burgueses procuravam inserir-se no mundo cortês.

Logo, os príncipes cuidaram para que a distância entre os diferentes corpos que se

defrontavam em torno do senhor não se extinguisse, visto que, estando ou não inteiramente

conscientes disso, a tensão entre a nobreza e a burguesia ocasionava um equilíbrio estável,

propício para o emergir do poder central296. Neste sentido, o amor cortês aparece como um

dos meios de manipular esse mecanismo social, visto que, distinguia, entre as pessoas da

corte, o cavaleiro.

295 Ver DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 63-65. DUBY, G. O modelo cortês, p.344-345. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit.. p. 331-351. 296 ELIAS, N. Op. Cit. v.2. p. 22.

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Em segundo lugar, o ritual contribuía para a consolidação da ordem ao apregoar uma

moral fundada em duas virtudes: a moderação e a amizade. Propondo ao cavaleiro dominar-se

a si próprio, controlando suas pulsões carnais. Estabelecendo novas formas de relações entre

os sexos, nas quais a violência sexual e o rapto passam a serem substituídos pela sedução que

ocorre por meio de etapas medidas do cortejamento, o seu ritual demonstra como tratar

convenientemente as mulheres da boa sociedade. Colaborando assim para conter a agitação

ocasionada pelas mulheres que povoavam as cortes.

Ensinado a amizade, a amicitia segundo Cícero, vemos o modelo cortês exaltar o

companheirismo e a fidelidade, tão importantes na sociedade feudal. O cavaleiro, para ganhar

os favores da dama, deveria ser fiel e servi-la devotamente, desejar o seu bem, mais do que o

seu próprio. São essas mesmas atitudes que os senhores esperavam de seus vassalos.

Somando-se a isso, o cavaleiro não prestava serviço à um homem, seu igual, mas a uma

mulher, colocada em uma posição superior, ainda que, nesta sociedade, a mulher seja

considerada um ser naturalmente inferior. Portanto, esses exercícios de fidelidade, de

submisssão e, de certa maneira, humilhação, propostos pelo amor cortês, reforçam a ética

vassálica sobre a qual as bases políticas da organização social se assentavam. Por isso,

utilizando as palavras de Georges Duby, “tudo leva a pensar que foram conscientemente

integrados no sistema de educação cavaleiresca” 297.

O historiador francês298 vai mais longe ao sugerir que, utilizando-se dos ritos do amor

cortês para acalmar a juventude, o senhor aceitava colocar sua esposa como uma espécie de

engodo, como premio de um jogo no qual os participantes, cavaleiros celibatários, deveriam

dominar cada vez mais seus impulsos. Logo, ao mesmo tempo como objeto e juiz, a dama

ocupava o centro da competição, em posição ilusória de preeminência e de poder. Servindo

supostamente à dama, o jovem cavaleiro servia na verdade ao senhor, o condutor deste jogo,

era seu amor que esforçava-se para ganhar. Esta é a fração de resposta que Georges Duby deu

para uma das interpretações mais recentes acerca da temática do amor cortês, que interroga

sobre a verdadeira natureza das relações entre os sexos:

A mulher era algo além de uma ilusão, uma espécie de véu, de biombo, no sentido que Jean Genet deu a esse termo, ou antes um intermediário, a mediadora. Pode se perguntar se, nessa figura triangular, o “jovem”, a dama e o senhor, o vector maior que, abertamente, se dirige do amigo para a dama, não ricocheteia nesse personagem para voltar para o terceiro, seu alvo verdadeiro, e até mesmo se ele não se projeta na direção deste sem desvio. As observações formuladas por Christiane

297 DUBY, G. O modelo cortês, p. 344. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 331-351. 298 Ver DUBY, G. Convívio, p.87. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 49-95. DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 64 e 74.

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Marcello-Nizia num belo artigo nos obrigam a colocar a questão: nessa sociedade militar, o amor cortês não foi na verdade um amor de homens?299

Neste mesmo sentido, o autor Jean-Charles Huchet300 levanta a hipótese do amor

cortês como uma arte de afastar a mulher pelas palavras, diante do medo que este sexo

suscitava no homem medieval, o fino amor foi na verdade um artifício para não amar.

Diante disto, algumas observações devem ser feitas. Na Idade Média, na corte, uma

barreira erguia-se entre os sexos. Tal separação, tão marcada nesta sociedade, favorecia a

incompreensão e a desconfiança de ambas as partes. Induzia, por um lado, o preconceito em

relação às mulheres e, por outro lado, as tendências homossexuais masculinas. Os rapazes

eram tirados muito cedo do universo feminino para serem incorporados nos grupos de

homens, nos quais adquiriam formação religiosa ou militar301. Neste ambiente, as brincadeiras

realizadas com o corpo de seus companheiros, “brincadeiras de criança”, tornavam-se

comuns. Segundo Charles de La Roncière, “essas práticas constituiriam então menos uma

alternativa ao privado conjugal do que uma amostra dessas tentativas desordenadas inventadas

pelos ‘jovens’ – obrigados ao casamento tardio [ou ainda ao celibato] – de forjar para si

mesmos uma identidade e um privado pessoais”302.

Portanto, a homossexualidade fortuita parecia habitual numa faixa etária e tanto no

meio religioso quanto no meio militar. Entretanto, para alguns, a atração pelo mesmo sexo

persistia, foi o caso de dirigentes como Henrique I e de seu neto Luís VI na linhagem dos reis

da França, de Guilherme, o Ruivo, e de Ricardo, Coração de Leão na dos reis da Inglaterra.

Estes eram pressionados para adquirirem uma mulher legítima e, assim, terem herdeiros,

conforme o exigia a moral dinástica. Ora, alguns homens, para fugirem da união matrimonial

demonstravam uma vontade de castidade, uma vocação de santidade303.

Ao escrever sobre a sodomia na Idade Média, Jacques Le Goff coloca:

Vemos, nos séculos XI e XII, os poetas cantar à antiga elogios amorosos a rapazes; e os textos monásticos deixam, de vez em quando, perceber que o meio clerical masculino não deve ter sido insensível ao amor socrático. E, principalmente, vê-se – em herança dos tabus sexuais judaicos, em completa oposição à ética greco-romana – a sodomia ser incessantemente denunciada como o mais abominável dos crimes e por intermédio de um aristotelismo curiosamente chamado a intervir, o pecado contra-natura ser colocado no vértice da pirâmide de todos os vícios304

299 IDEM. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p. 65. 300 Ver HUCHET, J-Ch. L’Amour discourtois. La "Fin'Amors" chez les premiers troubadours Toulouse: Privat, 1987. 301 DUBY, G. O modelo cortês, p. 338. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 331-351. 302 RONCIÈRE, C. de la. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença, p. 297. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p.163-309. 303 Cf. DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op. Cit. p. 70. 304 LE GOFF, J. Op. Cit. v.2, p.81.

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No mundo romano, admitia-se que o homem, sendo casado ou não, tivesse relações

sexuais com suas jovens escravas e também com seus jovens escravos, estes últimos criavam

menos dificuldades, “servir-se” deles não ocasionava conseqüências305. Entretanto, sob a

influência do modelo monástico, várias práticas sexuais passam a sofrer repressões. Na Alta

Idade Média, proibições do Antigo Testamento, dentre as quais, a sodomia e o

homossexualismo, são retomadas. Mas, pelo menos até o século XII, a homossexualidade

havia se beneficiado de uma certa condescendência da Igreja, após esse período, tornou-se

praticamente uma heresia306. Afinal, o casamento, tornando-se um dos sacramentos, baseava-

se em relações heterossexuais, e era no seu seio que o sexo era permitido, desde que visando a

procriação e não o prazer.

Ainda assim, conforme Georges Duby, “na cavalaria do século XII – como no interior

da Igreja – o amor normal, o amor que leva a se esquecer, a superar-se na façanha pela glória

de um amigo, é homossexual. Não entendo que ele conduza necessariamente à relação

carnal”307. Conforme descrevemos no capítulo II, os teólogos, ao refletirem sobre as

categorias de relações amorosas, reservaram um lugar especial à amizade amorosa, ao amor

entre os homens.

No lai do Homem-Lobo acreditamos que existe um exemplo de amizade amorosa. O

barão foi vitimado por sua esposa, ou seja, pela pessoa que amava e acreditava ser amado.

Devido sua traição, o barão foi condenado a viver como lobo. Muito tempo se passou, um ano

inteiro, até que o rei decidiu ir caçar na floresta, na qual o homem-lobo estava.

“Quando os cães foram soltos, o homem-lobo encontraram. Lhe perseguiram o dia todo os cães e os caçadores, tanto que por pouco o teriam pegado, e dilacerado e maltratado. Logo que ele o rei avistou, em direção a ele correu implorando mercê. Ele o tinha pegado pelo seu estribo, a perna o beijou e o pé. O rei o viu, grande susto teve; seus companheiros todos chamou.

305 VEYNE, P. Cena 2. O mundo romano: A invenção do casal puritano... p.35. In: SIMONET, D. et al. A mais bela história do amor: do primeiro casamento na pré-história à revolução sexual do século XXI. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2003. p. 32-54. 306 LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p.64 e 68. In: SIMONET, D. et al. Op. Cit. p. 55-69. Uma das passagens bíblicas bastante citada pelo clero medieval é a qual Deus destrói com enxofre e fogo as cidades de Sodoma e Gomorra, lugares onde o homossexualismo estava difundido (Gênesis 18, 20-21; 19, 1-29) 307 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p. 128.

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‘Senhores’, disse ele, ‘venham e esta maravilha vejam, como esta besta se humilha! Ela tem o senso de um homem, mercê exclama. Façam-me todos os cães recuar, guardem para que nenhum a fira! Esta besta tem entendimento e senso. Despachem-vos! Vamos embora! À besta darei minha proteção: porque não caçarei mais hoje.’” (Homem-Lobo, vv. 139-160)

No começo deste lai, Maria de França havia colocado que o barão era muito íntimo de

seu senhor, o rei. Assim, quando o viu na floresta, o homem-lobo aproximou-se dele, mesmo

assustado e sem saber que aquela besta era seu vassalo, o rei cuidou para que ninguém o

machucasse. Quando o rei decidiu ir embora, o homem-lobo o seguiu, não queria afastar-se,

recusava abandoná-lo. Diante disto, o rei o levou a seu castelo. Pediu a todos que não o

ferissem e o tratassem bem. Todos os dias deitava-se entre os cavaleiros e perto do rei. Este

afeiçoou-se muito por ele.

Em duas ocasiões, entretanto, o gentil animal mostrou-se violento. Na primeira contra

o cavaleiro que ajudou sua esposa à trai-lo, na segunda vez contra a própria esposa. Seguindo

os conselhos de um homem sábio, o rei procurou saber a razão e, sob tortura, a mulher contou

toda a verdade. A roupa, necessária para desfazer a metamorfose, foi entregue ao animal, no

privado de um aposento. Passado um tempo, o rei e mais dois barões entraram no quarto, lá

encontraram o cavaleiro:

“O rei correu a abraçá-lo; mais de cem vezes o estreitou e beijou. Assim que teve oportunidade, toda a sua terra lhe devolveu; mais lhe deu que eu nem saberia dizer.” (Homem-Lobo, vv. 300-304)

Este versos, em razão da manifestação emocional verificada no acolhimento afetivo

demonstrado por beijos e abraços, nos permitem suspeitar que existe um possível caso de

homossexualidade. Entretanto, acreditamos que não é este o caso. O que encontramos na

verdade é o relato de um estreito laço de amizade, ou ainda, uma amizade amorosa sem

pretensões sexuais.

Numa sociedade guerreira e viril como a medieval, segundo José Roberto Mello308,

“os laços entre os homens eram naturalmente muito fortes, gerados pelo companheirismo nas

armas, oriundo de priscas eras, de instituições como o velho comitatus germânico, por

308 MELLO, J. R. Op. Cit. p. 111.

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exemplo”. Assim, não podemos menosprezar o valor e a função da amizade masculina na

Idade Média, a exemplo disso podemos lembrar que, se a mulher torna-se um personagem

necessário na literatura cortês dos séculos centrais medievais, já nas canções de gesta um

enredo inteiro podia ser reservado à amizade de dois homens, como na Canção de Ami e

Amile309.

Mas, o romance cavaleiresco não é alheio a essas relações, ainda que de maneira mais

discreta, elas estão presente nas tramas. Quanto a isto, podemos mencionar a história de

Tristão e Isolda, na qual um laço muito forte ligava Tristão e o rei Marcos. No lai do Homem-

Lobo, Maria de França exalta, não o amor que liga um homem e uma mulher, mas a

camaradagem masculina. Já a quebra desse sólido laço é descrito no lai de Eliduc:

“Eliduc tinha um senhor, rei da Bretanha Menor, que muito o amava e o queria bem, e ele lealmente o servia. Quando o rei tinha que viajar, era ele que a terra guardava; por ser valor o retinha. Por tanto de melhor muito o advinha. Pelas florestas podia caçar; não havia florestal tão atrevido que contrariá-lo ousava nem mesmo fazer qualquer reclamação. Por inveja do bem dele, que chegava freqüentemente dos outros, foi a seu senhor caluniado, e injuriado e acusado, que da corte o expulsou sem sequer o explicar. Eliduc não sabia por quê. Muitas vezes pediu ao rei que defender-se lhe permitisse e que nos aduladores não acreditasse, muito o tinha voluntariamente servido; mas o rei não lhe respondeu” (Eliduc, vv. 29-52)

Sendo assim, a Eliduc só restou partir. Passado um tempo, quando Eliduc já estava em

outra região, seu senhor enviou a sua procura três mensageiros. Sua situação era grave, estava

perdendo seus castelos e toda sua terra estava sendo devastada. Por várias vezes se arrependeu

de ter deixado Eliduc partir. Para seu mal, acreditou nos maus conselhos que recebera. Mas

agora, havia expulsado os traidores que o tinham acusado. Precisava que Eliduc viesse ajuda-

lo, por isso o chamava, convocava, pela aliança estabelecida quando Eliduc prestou-lhe

309 Cf. IDEM, ibidem. p. 112.

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homenagem – vale lembrar que o dever primordial do vassalo era auxiliar o seu senhor em

caso de guerra. Ao revê-lo, seu senhor ficou muito feliz e Eliduc muito o ajudou.

Nesses dois lais, percebemos que os laços de amizade que Maria de França retrata são

horinzontais, vassálicos; as ligações por eles estabelecidas constituem uma espécie de

fraternidade “artificial” de suma importância na Idade Média. Entretanto, sua desarticulação é

descrita pela autora no lai de Eliduc. O motivo é a inveja, mencionada também no lai de

Lanval:

“Por seu valor, por sua generosidade, por sua beleza, por sua valentia, o invejava a maioria; até aqueles que aparentavam amá-lo, se ao cavaleiro algum mal sobreviesse, não lamentariam.” (Lanval, vv.21-216)

Nesses escritos, a autora nos leva a pensar que a corte era um lugar no qual a busca

pela atenção e pelos favores do senhor ocasionava uma disputa impregnada de ciúmes e

acusações. A corte era palco de uma rivalidade permanente e, como já colocamos, entre as

recompensas mais cobiçadas e mediocremente oferecidas pelo senhor para os cavaleiros

encontra-se a entrega de mulheres casadoiras. Não obstante, os senhores cuidavam para que

suas cortes fossem povoadas de moças complacentes para satisfazerem as “necessidades”

sexuais dos rapazes. Logo, não podemos considerar que o desejo da juventude era apenas

sexual. Era a vontade de casar, e se estabilizar, que aflorava. Isso porque, nessa época, o

casamento na alta sociedade era sinal de estabilidade, de independência conquistada, o

momento que o jovem passa a ser o senhor de uma casa, castelo, corte310. Retomando Georges

Duby,

Senior, que se opõe a juvenis, designava também o homem casado. É aqui que se enraizavam as cobiças e esse ciúme do qual sentimos animados todos os homens, em relação por vezes ao pai, com freqüência ao irmão mais velho, e sempre ao “senhor”, seu benfeitor, o chefe da habitação que os mantinha reunidos. Este, toda noite, no meio deles [...], reencontrava-se, no leito, com sua esposa. 311

Para esses jovens coagidos ao celibato e invejosos daqueles que possuíam mulheres

legítimas, a literatura cavaleiresca apresentava-se como uma compensação onírica para as

suas frustrações. Ora, por serem a parte mais receptiva do auditório, os jovens eram seduzidos

pela literatura cortês, não pelo que ela retratava do que eles continham - ainda que, para ser

310 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.62. 311 IDEM, ibidem. p. 73

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cativante os escritos literários não podem desprender-se totalmente do real vivido -, mas por

colocar em cena justamente aquilo de que, na realidade, estavam privados312.

Para participar dos jogos do amor cortês, os jovens eram convidados a amar, a

escolher entre as mulheres, aquela que mais o fascina. No modelo primitivo, essa mulher era

uma dama, de posição social superior. O fato desta dama aceitar ser cortejada pelo cavaleiro,

desconsiderando sua situação sócio-econômica, nos leva a acreditar que representa o ideal de

hipergamia masculina, mais acentuado entre os jovens não primogênitos que, em razão da

política da linhagem, eram excluídos da posse dos bens e condenados a não terem esposas313.

A realização de casamentos hipergamicos era almejada pela aristocracia medieval. Os

chefes de família procuravam casar seus filhos com partidos vantajosos, ou seja, com

mulheres de posição superior ou, pelo menos, igual às deles. Por isso, optavam muitas vezes

por esperar algum tempo do que contrair casamento com mulheres de extração inferior.

Conforme Dominique Barthélemy:

Ao montar quadros genealógicos completos de “famílias” de senhores ou cavaleiros de castelos, fica-se impressionado com a constância dessa preocupação. As hipergamias masculinas, menos freqüentes sem dúvida que as simples isogamias, mas muito mais valorizadas que elas, permitem a irrigação das patrilinhagens pelo sangue dos reis, dos príncipes e dos condes, em um fluxo periódico que reaviva sua nobreza e assegura a coesão da classe dominante. Um belo casamento realça a posição do marido e a dos membros de sua linhagem: conserva-se preciosamente seu traço nas genealogias “casa”. 314

Neste sentido, Georges Duby315 demonstra que a presença feminina nas genealogias,

marcadamente masculinas, devia-se muitas vezes ao papel que desempenharam no destino da

linhagem ao serem de origem mais elevada. Tal união era favorecida devido à situação

desequilibrada do mercado matrimonial, visto que, havia uma preocupação por parte dos pais

de família, em casar todas as filhas e, em contrapartida, manter os rapazes no celibato, exceto

312 IDEM. A solidão nos séculos XI-XIII, p. 511. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 503-526. 313 Sobre esta interpretação ver KÖHLER, E. L’Aventure chevaleresque. Ideal et realité dans le roman courtois: études sur la forme des plus anciens poèmes d'Arthur et du Graal. 2.ed . Paris: Editions Gallimard, 1974. Vale colocar que, apesar de considerarmos que essas restrições marcaram a literatura cavaleiresca, em finais do século XII, as reticências em casar os filhos posteriores ao primogênito começam se abrandar na sociedade aristocrática. Uma das razões para desse afrouxamento, que em todo caso tinha se mostrado eficaz para a estabilidade econômica das famílias, encontra-se no crescimento econômico. Ao lado da propriedade fundiária, um novo tipo de riqueza vai ganhando espaço, o capital monetário. Com a maior circulação do dinheiro, as fortunas nobres tornam-se mais fluidas, mais flexíveis, e a importância da terra diminui. Isto torna possível comprar para o caçula o necessário para estabelece-lo, sem ocasionar a divisão do patrimônio herdado dos antepassados. Diante desta mudança, Duby coloca que, “os futuros cavaleiros sabem agora que têm toda a chance de ter uma mulher. Eis por que os divertimentos amorosos tendem a não mais se desenrolar apenas à margem da conjugalidade” DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 120-121 314BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p. 129. In: ARIÉS, P. ;DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161. 315 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op. Cit.. p. 40-43.

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os primogênitos. Diante disto, a oferta de mulheres era grande, aumentando as chances dos

rapazes de encontrar um bom partido.

O mesmo autor prossegue afirmando que acontecia também de um irmão mais novo

casar-se, tomando também como esposa uma mulher de extração superior a sua, uma vez que,

a recebia como recompensa do bom serviço prestado a seu senhor que, em certas ocasiões,

para fazer-se mais amado, concedia donzelas de sua parentela, portanto, de mais alta nobreza.

Em suma, um bom partido poderia elevar social e economicamente o homem. Logo,

na Idade Média, a posse de uma mulher tinha um significado concreto:

“Segundo a lei feudal, uma mulher podia estar dotada de terras e sabemos de mulheres que possuíam terras de acordo com todos os títulos reconhecidos pela lei, incluindo os mais importantes. Mas, na prática, o matrimonio feudal levava implícita uma certa humilhação da mulher como pessoa. Do mesmo modo que a Igreja subordinava a mulher a seu marido, o feudalismo a subordinava a seu feudo. Todos os matrimônios feudais de conveniência estavam ditados de acordo com os interesses da terra. De alguma maneira, uma herdeira – e, certamente, um herdeiro também – era um objeto unido à terra tanto como um vilão senhorial ou um criado.”316 (tradução nossa)

A associação entre a mulher e a terra encontra um exemplo real em Eleonora que,

herdeira do ducado de Aquitânia, tornou-se objeto de cobiça do rei Luis VII da França e

posteriormente de Henrique II da Inglaterra. Quanto a isto, os Lais também não ficam alheios.

Nos versos já citados do lai de Lanval, o rei Artur oferece como recompensa aos seus

cavaleiros mulheres e terra. Já no lai de Freixo, os cavaleiros feudatários de Gurun o

aconselham a casar com uma rica herdeira, que o proveria de muitas terras, expressando como

uma boa escolha está ligada às vantagens econômicas. Logo, percebemos a associação

existente entre mulher e terra na sociedade medieval do século XII, para ilustrar tal

consonância temos o vocábulo saisine que, empregado no período para se referir à posse de

um feudo, também era utilizado para fazer referência à posse do corpo de uma mulher317: “Il a

saisisti par le mantel” (Guigemar, v. 705).

316 POWER, E. Op. Cit. p. 23. 317 MONSON, D. A. L’idéologie du lai de Lanval, p.356. Le moyen age, 3-4, p.349-372, 1987. Interessante notar as maneiras pelas quais esse verso foi traduzido. Antonio L. Furtado traduz “Ele a segurou pelo manto”, contendo praticamente o mesmo sentido na tradução de Laurence Harf-Lancer: “Mériaduc a saisit par le manteau”. Isso porque no francês atual o verbo saisir designar tomar, agarrar, prender, etc. Entretanto, Laurence Harf- Lancer insere uma nota para colocar que o primeiro sentido de saisir era “tomar possessão de”, por isso encontramos na versão de P. Jonin: “Il prend possession en la saisissant par son manteau”. MARIA DE FRANÇA. Lais. Introdução e tradução de Antonio L. Furtado. Prefácio de Marina Colasanti. São Paulo: Editora Vozes, 2001. p.53. MARIE DE FRANCE. Lais. Traduits, présentés et annotés par Laurence Harf-Lancner. Texte édité par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. p.61.

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Quanto à interpretação da presença do jovem cavaleiro, da dama e do senhor na

temática do amor cortês como uma representação do sonho de hipergamia masculina,

acreditamos ser pertinente pelos motivos expostos acima. Porém, embora encontramos nos

Lais situações nas quais o pretendente masculino tem uma condição sócio-econômica inferior

a mulher cortejada (lai de Guigemar, lai de Dois Amantes, lai de Milun, lai de Madressilva,

lai de Eliduc e, de certa maneira, o lai de Lanval), conjunturas contrárias também estão

presentes, é o caso do lai de Equitan, no qual o rei quer ter como amiga a mulher do seu

vassalo. Ora, conforme procuramos demonstrar no capítulo II, Maria de França foge, em

certos pontos, das regras de composição corteses e coloca em cena uma concepção de amor

livre de qualquer tipo de interesse, a não ser a reciprocidade do sentimento.

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Capítulo IV: A “Dama”.

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1- MISOGINIA MEDIEVAL

Falar da dama no amor cortês é inevitavelmente cair na discussão acerca de uma certa

revalorização da mulher mas, para entrarmos nesta questão teremos que esboçar a situação da

mulher na Idade Média, mais precisamente no seu período central.

No título de sua obra “Idade Média, Idade dos Homens”, Georges Duby sugere um

fato evidente: a sociedade medieval era uma sociedade masculina, caracterizada pela

misoginia latente que determinou o destino das mulheres e, conseqüentemente, suas

representações iconográficas e literárias.

As idéias medievais acerca das mulheres foram alimentadas tanto pela Igreja quanto

pela aristocracia, ou seja, por uma minoria com voz e pouco familiarizada com o sexo

feminino, visto que os clérigos eram freqüentemente celibatários e os nobres, ainda com idade

recuada, eram tirados do convívio com sexo oposto para aprenderam a arte da guerra. Sendo

assim, nada mais compreensível que controlar o desconhecido afirmando sua inferioridade.

Como coloca Danielle Régnier-Bohler: “Cruel sociedade onde a palavra tem o poder de

fechar o outro numa imagem hedionda!”318

Além da palavra, a escrita era um domínio que os homens reservavam para si e quanto

a isto, vale citar a afirmação da burguesa de Bath, na obra de Geoffrey Chaucer (1343-1400),

que coloca com precisão que a imagem do Outro é feita por aquele que possui o poder da

escrita:

Por Deus, se as mulheres tivessem escrito histórias Como o fizeram os clérigos nos seus oratórios, Elas teriam narrado mais maldades sobre os homens Que todos os que têm a marca de Adão nunca poderia reparar319.

Ainda que alguns escritos das mulheres tenham chegado até nós, a exemplo dos Lais

de Maria de França, havia uma censura da escrita e da palavra feminina que nos faz recordar a

história de Eco e Narciso narrada por Ovídio. Eco tinha a habilidade de moldar a linguagem e

falar demais, devido a isto, é condenada a repetir as palavras dos outros (ecolalia) e, por

conseguinte, ao seu silêncio. Mas Eco, apaixonada por Narciso, desejava comunicar-se com

ele por meio de atrativas e carinhosas palavras, entretanto só poderia produzir eco. O belo

318 RÉGNIER-BOHLER, D. Vozes literárias, vozes místicas, p. 525. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) História das mulheres no Ocidente. A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990. v.2, p. 517- 591. 319 Apud IDEM, ibidem. p. 525.

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Narciso, por outro lado, não correspondendo ao amor de ninguém, inclusive de Eco,

apaixonou-se por seu próprio reflexo e não conseguiu ver nada além do que a si próprio.

Narciso e Eco são símbolos de dois estados, respectivamente, o isolamento em si

próprio e a ressonância do outro. Assim, Danielle Régnier-Bohler coloca:

A mulher medieval é reenviada à inanidade da sua palavra; objeto de uma censura narcísica, a que dita o homem perseguido pelo perigo de uma reprodução de si próprio, ou impelido pela febre diabólica que o conduz a não encontrar senão a si próprio, portanto a nunca reconhecer o Outro320.

O domínio da palavra e o não reconhecimento do Outro - a mulher - por parte dos

homens medievais influenciaram, de uma maneira ou de outra, na própria imagem que o

feminino tem de si mesmo. Sendo assim, ainda que nossa fonte seja de autoria feminina,

temos que levar em conta que a autora não goza de uma total liberdade intelectual, pois, além

de se ajustar às convenções poéticas do momento, ao estar inserida em um contexto histórico

específico, ecoa o sistema ideológico prevalecente. A predominante degradação da mulher só

será combatida no século XIV por Cristina de Pisano, escritora disposta e capaz de clamar

diretamente por seu sexo321.

Entretanto, não devemos esquecer que a literatura cortês, diferente da velha poesia

épica e das canções de gesta direcionadas predominantemente a auditórios masculinos,

pretende agradar as damas da corte, clientela que passa a ser levada em conta, ainda que, a

diversão dos homens, em especial, dos cavaleiros, continue sendo um dos objetivos da

composição. Tendo isto em vista, a reflexão acerca da representação da mulher nos Lais será

mais adequada.

Agora, voltemos a questão da misoginia medieval que só compreenderemos se

retomarmos o mito de origem de Adão e Eva relatado na Bíblia, na primeira parte do livro do

Gênesis, no qual está escrito que Deus modelou o homem a partir da argila e colocou-o no

Jardim do Éden, onde, dentre outras árvores, havia a árvore do conhecimento do bem e do

mal, da qual o homem foi proibido de comer dos seus frutos. Em busca de uma auxiliar que

fosse semelhante a Adão, Deus modelou uma mulher a partir de sua costela. Esta mulher, ao

ser convencida por uma astuta serpente, comeu do fruto proibido e deu-o a seu companheiro.

Após esta infração, o casal que até então vivia nu e não sentia vergonha, cobriu-se com folhas.

Descobrindo a desobediência,

320 RÉGNIER-BOHLER, D. Vozes literárias, vozes místicas, p. 522. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 517- 591. 321 POWER, E. Mujeres Medievales. Trad. Carlos Graves. Madrid: Ediciones Encuentro, 1986. p. 18.

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Javé Deus disse então para a mulher: “Vou fazê-la sofrer muito em sua gravidez: entre dores, você dará à luz seus filhos; a paixão vai arrastar você para o marido, e ele a dominará”. Javé Deus disse para o homem: “Já que você deu ouvidos à sua mulher e comeu da árvore cujo o fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará de fadiga. A terra produzirá para você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos campos. Você comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que volte para a terra, pois dela foi tirado. Você é pó, e ao pó voltará. O homem deu a sua mulher o nome de Eva, por ser ela a mãe de todos os que vivem. (Gn 3, 16-20)

A maldição estava lançada e, também, os principais elementos para justificar a

condição humana e por conseguinte a misoginia medieval, fundamentados, em particular,

pelos escritos dos primeiros Padres da Igreja.

Como coloca Georges Duby322, foi Santo Agostinho (354-430) que escreveu o mais

profundo comentário do Gênesis em resposta aos maniqueus. Em seus escritos, o bispo de

Hipona reflete sobre as relações entre os sexos baseando-se no versículo bíblico “macho e

fêmea ele os criou” (Gn 1,27) que, para ele significa que, em cada ser humano, coexistem o

masculino e o feminino. O homem é formado por duas partes: o corpo, parte carnal, e a alma,

parte espiritual, sendo que a primeira está subordinada a segunda. Também a alma está

dividida em duas: a pars animalis e a ratio, sendo que a alma comanda o corpo por meio

desta pars animalis que, por conseguinte, é submetida à ratio:

Homem

Alma (parte espiritual)

ratio

pars animalis

Corpo (parte carnal)

A ratio é dita virilis , razão viril, e é o princípio masculino, já o princípio feminino é

identificado ao appetitus, o desejo. Sendo assim, na reflexão agostiniana, a mulher não é

desprovida de razão, entretanto, o desejo, a parte animal, predomina; no homem, ao contrário,

a razão, a parte espiritual, prevalece. Por fim, esta hierarquia interior deve refletir a hierarquia

exterior, ou seja, a parte espiritual e racional deve dominar a parte animal e desejosa: o

homem deve dominar a mulher.

322 Sobre as considerações seguintes a respeito de Santo Agostinho ver capítulo “A Queda”. DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.43-68.

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Além disso, Santo Agostinho afirma que a mulher, ainda que semelhante ao homem,

foi criada para ser sua auxiliar, o que já supõe sua submissão. Mas porque foi criado uma

mulher em vez de outro homem que seria mais útil? Para o bispo de Hipona, a procriação

seria a única razão para a criação da mulher como auxiliar, procriação esta que não foi

possível no Paraíso devido à falta de tempo ocasionada pela rápida infração decorrente da

mulher que, para ele, desobedeceu de caso pensado, posto que, na resposta a serpente, a

mulher deixa claro que não esqueceu a proibição de Deus (Gn 3, 2-3). Sendo assim, retoma, a

falta foi determinada pela cobiça e pela “orgulhosa presunção em si”, mas também pelo

orgulho pecou o homem que, ao ser questionado por Deus, não demonstrou a “humildade” de

reconhecer sua falta – “A mulher que me deste por companheira deu-me o fruto, e eu comi”

(Gn 3, 12) -, por isso ambos foram punidos. Entretanto, Santo Agostinho coloca que Adão

comeu do fruto proibido para não contrariar sua companheira.

Portanto, o sofrimento, o trabalho e a morte entraram no mundo devido à falta de Eva,

que sofreu duas punições: daria à luz na dor e seria sujeita ao homem. Segundo o bispo de

Hipona, desde sua criação a mulher teria sido feita para ser dominada pelo homem, mas antes

do pecado a sujeição era por “afeição” e depois do pecado passou a ser por “condição”.

Mas não apenas Santo Agostinho via o papel ativo da mulher na Queda, seu

contemporâneo Ambrósio de Milão (c. 340-397) afirma: “a mulher é que foi a autora da falta

para o homem, não o homem para a mulher”323. Mais de um século antes, Tertuliano (c. 155-

223), em seus polêmicos escritos, foi mais além ao identificar a serpente com o Diabo e a

mulher com a tentadora: “Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda

hoje todo o vigor sobre este sexo, é preciso portanto que a sua culpa subsista também. Tu és a

porta do Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina”324. A

metáfora da porta também aparece em São Jerônimo (c. 341-420) - colocado pelo autor

Friedrich Heer como o santo patrono dos misóginos: “A mulher é a porta do mal, o caminho

da perversão, o veneno da serpente, numa palavra, um objeto perigoso”325.

Portanto, a imagem da mulher como porta do mal, ou ainda, instrumento do demônio,

ser humano ao mesmo tempo inferior e perigoso, concretizou-se no início da história da

Igreja, por meio dos escritos dos primeiros Padres da Igreja, que muniram seus sucessores de

argumentos para transferir a culpa do pecado à Eva e, conseqüentemente, às suas

descendentes.

323 Apud DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.35. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op.Cit. v.2, p.29-63. 324 Apud IDEM, ibidem. p.35. 325 Apud HEER, F. O mundo medieval. São Paulo: Ed Arcádia Limitada, 1968. p.341.

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Para exemplificar este fato, vale citar um contemporâneo de Maria de França, Étienne

de Fougères (†1178)326. Capelão de Henrique Plantageneta, Étienne de Fougères tornou-se,

devido seus bons serviços, bispo de Rennes em 1168. Este clérigo escreveu em latim a vida de

muitos santos, dentre os quais encontra-se Guillaume Firmat que, procurando terminar sua

vida na pobreza e na abstinência tornando-se eremita, acabou sendo alvo de uma grande

tentação: uma mulher tenta seduzi-lo. Contra o fogo do desejo, Guillaume Firmat usa o fogo

natural, queimando sua carne com um tição. Vendo isto, a mulher se arrepende. Portanto:

“Vitória sobre si, sobre a concupiscência, vitória sobre o poder feminino, sobre o perigo que

vem das mulheres. Para Étienne, a mulher é portadora do mal”327.

Já uma história contrária nos causa grande surpresa. O cronista inglês Raoul de

Coggeshall (†1227) diz que, por volta de 1180, o comensal do arcebispo de Reims, o cônego

Gervais de Tilbury, durante um passeio entre as vinhas na região de Champagne, encontrou

com uma moça atraente. Dirige-se a ela para falar “cortesmente de amor lascivo” para, em

seguida, ir mais longe. Para sua surpresa, a moça, tratando-o com rudeza, não sede à suas

investidas. Sem demora, o cônego a identifica como uma herética, “uma dessas cátaras que se

obstinam em considerar toda cópula diabólica. Ele tenta trazê-la à razão, não consegue.

Denuncia. Ela é presa. Julgada. A prova é incontestável. Ela é queimada.”328

Segundo Georges Duby, esta curiosa história serve para demonstrar como os clérigos

desse tempo acreditavam que a mulher era “um objeto entregue sem resistência aos apetites

masculinos”329. Como já havia colocado Gregório Magno (c. 540-604): “Que se deve

entender por ‘mulher’ se não a vontade da carne?”330. Portanto, o peso do carnal pesava

sobremaneira na imagem da mulher, tida como excessivamente luxuriosa e ardente. Ora, nada

mais natural então que servir da imagem feminina para representar a Luxúria que, diferente de

326 Os comentários seguintes acerca de Étienne de Fougères e suas obras baseiam-se no capítulo “Os pecados das mulheres”. DUBY, G. Op. Cit. p. 9-41. 327 DUBY, G. Op. Cit. p. 12. Importante constatar que, o disfarce do diabo numa rapariga, presente na biografia de muitos santos, é um topos e serve para exaltar a virtude do protagonista na luta contra o maligno. “Igualmente habitual na biografia de um santo é o acto de exorcismo. A presença numericamente muito mais abundante de possessas do que de possessos explica-se pela correlação mulher-diabo, tão habitual que conduzia o espectador a considerar como perfeitamente natural o facto de o habitáculo preferido do demônio ser o gênero feminino”. FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada, p.467. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 461-511. 328 DUBY, G. Op. Cit. p. 65. 329 IDEM, ibidem. p.64. 330 Apud FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada, p.465. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 461-511.

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outros vícios que necessitam de um atributo que os caracterize, utiliza somente o corpo da

mulher, que por si só já é uma alegoria331.

Nos Lais, as personagens femininas entregam-se sem muita demora e rodeio aos

prazeres da carne. Mas como esboçamos no Capítulo II, essa entrega tem a ver menos com

luxúria do que com espontaneidade e sinceridade dos sentimentos. Maria de França afirma,

por meio do personagem Guigemar , que deve-se fazer de rogada a mulher leviana por

profissão, pois de tal modo, dará a impressão de nunca ter provado desse deleite, tornando-se

assim mais cara. Mas, a mulher valorosa, ao encontrar um homem de seu agrado, não deve se

fazer de orgulhosa, antes o amará. Ora, a autora parece não ver na entrega total de si indício

de luxúria mas, o contrário, pode levar a outro pecado, o orgulho. Entretanto, essa entrega

deve ocorrer dentro de um contexto amoroso e não simplesmente sexual.

Na obra de André Capelão encontramos a afirmação de que “a mulher, sob efeito da

luxúria, se entrega sem hesitar a um homem que a corteje e se mostra pronta a conceder o

mesmo a outro pretendente, sem que nenhum vestígio de amor subsista nela depois de se

entregar, e sem que ela aceite de modo algum ser paga”332 (grifo nosso). Em discordância

nítida com a autora, para André Capelão, “o amor, com certeza, não existe em mulher que

ceda sem reticências a alguém que a corteje”333 e, após uma crítica a luxúria, o autor finaliza:

“Deve ficar perfeitamente claro que deves absolutamente rejeitar os excessos de luxúria e não

querer ser amado por uma mulher que conceda sem reservas o que lhe pedem”334.

Deste modo, no que diz respeito ao prazer sexual, André Capelão adota uma postura

mais judiciosa. Já Maria de França, ao não privar suas personagens do prazer sexual, parece

mais uma vez questionar a ordem vigente, propondo talvez, de maneira tímida, uma

emancipação feminina. Vale ratificar que não é de luxúria que a autora fala, mas de entrega

no amor. Dissociação esta ausente em uma afirmação de André Capelão que aconselha abster-

nos do amor, visto que, “a castidade e a continência são contadas como virtudes, donde seus

331 Ver “A mulher como símbolo” p.478-482. FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 461-511. Neste mesmo viés, Jacques Le Goff coloca que “o horror pelo corpo atinge o auge nos seus aspectos sexuais. O pecado original, pecado de orgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus, é transformado pelo cristianismo medieval em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e pelo sexo toca asssim o seu ponto máximo no corpo feminino. Desde Eva até à bruxa dos fins da Idade Média, o corpo da mulher é o lugar de eleição do diabo. LE GOFF, J. Observações sobre corpo e ideologia no Ocidente medieval, p.59. In: O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Porto: Edições 70, 1985. p.59-62. 332 ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 204-205. 333 IDEM, ibidem. p. 205. 334 IDEM, ibidem. p. 206.

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contrários, ou seja, a luxúria e a volúpia, serem necessariamente classificados entre os

vícios”335. Então, questiona o autor, por que procurar amar?

Inspirada na filosofia monacal, a reforma eclesiástica, com suas prescrições,

corroborou com a idéia de que o sexo é fonte do pecado. E, ao contrário do que se supõe, a

condenação da sexualidade não foi inaugurada pelo cristianismo, mas pelos romanos, que

preocupados com a virilidade, acreditavam que o prazer ocasionava o esgotamento do

corpo336. O que o cristianismo fez foi generalizar esta moral sexual e somar a ela outro

motivo: “a exigência de pureza, justificada pela aproximação do fim do mundo”337. Idéia esta

presente nos escritos de São Paulo: “Uma coisa eu digo a vocês, irmãos: o tempo se tornou

breve. De agora em diante, aqueles que têm esposa, comportem-se como se não a tivessem”

(1 Cor 7, 29).

Com a reforma eclesiástica, a sexualidade serviu de barreira divisória entre o clero e os

laicos: “de um lado aqueles a quem o uso das mulheres é proibido com rigor, de outro os que

devem possuir uma, mas uma só e legítima, e que, necessariamente maculados por isso,

situam-se na hierarquia dos méritos abaixo dos assexuados, e portanto submissos a seu

poder”338.

Entretanto, a classificação masculina que mais vigorava era a da tripartição baseada na

função que os homens desempenhavam na vida pública (oratores, bellatores e laboratores).

Já a classificação feminina que obteve mais sucesso foi a baseada no grau de pureza sexual:

Quando Alão de Lille, Tiago de Vitry, Vicente de Beauvais, Guilherme Peraldo, Gilberto de Tournai, João de Gales decidem falar às mulheres, tal como acontecera a muitos antes deles, as mulheres que se apresentam aos seus olhos são mulheres que usam de modo diverso a sua sexualidade: algumas, as virgens, renunciam a ela completamente e para sempre com base numa decisão voluntária e consciente; outras, as viúvas, podem renunciar após um evento fortuito que as privou da companhia do marido; outras ainda, as mulheres casadas, limitam-se a um uso parcimonioso do seu sexo no interior e em função da família339.

335 ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. 275. 336 André Capelão retoma essa idéia no livro III, afirmando que “o amor e os sacrifícios feitos no altar de Vênus enfraquecem o corpo humano, e com isso os homens perdem parte do seu vigor para os trabalhos guerreiros”. ANDRÉ CAPELÃO. Op. Cit. p. 286 337 LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p.63. In: SIMONET, D. et al. A mais bela história do amor: do primeiro casamento na pré-história à revolução sexual do século XXI. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2003. p. 55-69. 338 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 47-48. 339 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.110. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141. Ver sobre as diferentes classificações das mulheres em “Falar a que mulheres” p.101-116.

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Essas três categorias femininas são antigas e, presentes nos Padres da Igreja, foram

continuamente evocadas nos escritos de homens santos e doutos, tanto é que, “entre finais do

século XII e o início do século XIV, virgens, viúvas e esposas impõem-se portanto como as

principais interlocutoras de pregadores e moralistas”340. Percebe-se que esta ordenação

feminina relaciona-se com o elemento masculino, ou seja, as três categorias das mulheres são

definidas a partir da relação que elas mantém com os homens.

Como podemos notar, o topo dessa classificação hierárquica é ocupado pelas virgens.

Segundo Jacques Le Goff, o que os cristãos fizeram foi retomar e promover o prestígio das

virgens que o paganismo romano já exaltava341. O cristianismo, fornecendo bases nas

Escrituras, colocou a virgindade como estado de perfeição, principalmente durante o século

XI e XII. Fato que pode ser justificado devido à confluência de vários fatores: a propagação

do modelo monástico, a reforma eclesiástica, o temor do fim do mundo e a promoção do culto

mariano342.

De acordo com a citação acima, a viúva, embora já tivesse perdido seu selo virginal,

poderia conservar-se sem marido e, com isso, renunciar a prática sexual. Tal renuncia não

poderia ser feita pelas mulheres casadas, visto que, a união sexual é dever dos esposos. Mas,

segundo os clérigos, as três categorias femininas poderiam viver a castidade de formas

diferentes. As mulheres virtuosas “sabem de facto praticar aquela singular e providencial

forma de temperança, dita castidade ou continência, que põe ordem e medida no desordenado

e perigoso mundo dos prazeres sexuais”343, portanto, para as virgens e viúvas a recusa da

sexualidade, para as mulheres casadas o controle com fins procriativos. O ideal de virgindade

pode ser em parte preenchido pela castidade e fidelidade. Neste sentido, vale citarmos São

Paulo, que na sua reflexão sobre o matrimônio e o celibato afirma:

Passemos agora ao que vocês escreveram: “É bom que o homem se abstenha de mulher”. Todavia, para evitar a imoralidade, cada homem tenha a sua esposa, e cada mulher tenha o seu marido. O marido cumpra o dever conjugal para com a esposa, e a esposa faça o mesmo com o marido. A esposa não é dona do seu corpo, e sim o marido. Do mesmo modo, o marido não é dono do seu próprio corpo, e sim a esposa. Não se recusem um ao outro, a não ser que estejam de comum acordo e por algum tempo, para se entregarem a oração; depois disso, voltem a unir-se, a fim de que Satanás não os tente por não poderem dominar-se. Digo isso como

340 IDEM, ibidem. p.114. 341 LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p.62. In: SIMONET, D. et al. Op. Cit. p. 55-69. 342 L’HERMITE-LECLERCQ, P. A ordem feudal (séculos XI-XII), p.284. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 273-329. Espelho das virgens, é uma obra anónima, escrita por volta de 1100 na região de Colónia. Esta obra, da qual possímos cinquenta e quatro manuscritos, é um manual de direção que teve sucesso e apresenta-se aos olhos do historiador como testemunho do fascínio da época pela virgindade. p. 317. 343 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.110. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141.

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concessão, e não como ordem. Eu gostaria que todos os homens fossem como eu. [...]. Aos solteiros e às viúvas, digo que seria melhor que ficassem como eu. Mas se não são capazes de dominar seus desejos, então se casem, pois é melhor casar-se do que ficar fervendo. (1 Cor 7, 1-9; grifo nosso)

Nota-se que os escritos paulinos prescrevem a igualdade entre os esposos nas relações

carnais. Ora, ainda que a nova definição de casamento proposta pela Igreja coloque a

igualdade dos cônjuges na troca dos consentimentos, como vimos anteriormente, tal não

acontecia. Sendo assim, a troca recíproca e paritária entre os esposos ocorre somente no

contexto do dever conjugal, no qual cada um, tanto o marido quanto a esposa, tem o mesmo

direito de requerer o pagamento da dívida conjugal e também o direito de recusar, desde que

as condições de legitimidade não estejam asseguradas344.

Maria de França, no entanto, procura demonstrar a igualdade entre homem e mulher

no contexto sentimental, ou seja, no amor. Assim, nos Lais os homens solicitam o amor das

mulheres, mas o contrário também é verdadeiro, nos lais de “Milun” e de “Eliduc” , são as

mulheres que tomam a iniciativa de pedir o amor ao cavaleiro.

“Ela ouviu falar de Milun; muito o começa a amar. Por seu mensageiro lhe informa que, se lhe agradar, ela o amará.” (Milun, vv. 25-28)

“Ela respondeu ao cavaleiro que isso lhe agradava muito; por isso lhe enviou o anel e a cinta também, que de seu corpo o tinha assenhoreado; ela o amava de tal amor, que lhe queria fazer seu senhor” (Eliduc, vv.508-514)

Além disso, a autora não confina a sexualidade ao quadro conjugal. Em seus escritos,

percebemos que as condições de legitimidade estão garantidas pelo amor e não pelo laço

matrimonial. Em vista disto, nos Lais, ao contrário do que pretendia a Igreja, as mulheres que

ainda não contraíram matrimônio não permanecem necessariamente virgens, fato que está

evidente nos lais de “Freixo” e “Milun”.

Entretanto, uma situação diferente é encontrada no lai de “Eliduc” . Eliduc, embora

casado, ama outra mulher e é por ela amado e, na linha que estávamos percorrendo, tal amor

justificaria uma união carnal, porém, a autora coloca que nos seus encontros, o amor se

manifestava por galanteios, conversas e trocas de belos presentes, não havendo entre eles 344 VECCHIO, S. A boa esposa, p. 152. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 143-183.

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nenhuma extravagância, leviandade nem vilania (Eliduc, vv.575-580), somando-se a isto, o

personagem Eliduc afirma: “Se desposasse minha amiga,/ a lei cristã não o toleraria” (Eliduc,

vv. 601-602). Como esclarecer esta aparente contradição nos Lais? Uma única explicação nos

ocorre: Maria de França parece querer demonstrar que o sentimento amoroso não leva

necessariamente a prática sexual, esta pode ser uma conseqüência natural e não um fim

irrefutável.

Eis aí mais uma justificativa para não colocarmos inexoravelmente os Lais no terreno

do profano. Eliduc não pode conter o sentimento por outra mulher que não é a sua esposa,

porém não transgrediu a lei cristã. Mas que fique claro que a contenção partiu dele e não de

sua amiga, que já o havia tornado senhor do seu corpo.

Não obstante, se entendemos por luxúria um comportamento desregrado com relação

aos prazeres do sexo, o qualitativo “luxuriosas” torna-se inadequado, ou ainda, demasiado

para as personagens de Maria de França, que ainda que não sejam castas, entregam-se aos

deleites sexuais somente quando sentem-se seguras do amor do outro.

De qualquer maneira, não negamos que a autora esteja impregnada de idéias acerca

das mulheres presentes no pensamento medieval. A exemplo de Santo Agostinho, os teólogos

consideravam-a “como um corpo que escapa ao domínio de um espírito, como um ser

governado pelos seus órgãos, e em particular pelos seus órgãos sexuais”345. A definição da

natureza feminina está ligada ao princípio de finalidade que impera desde Isidoro de Sevilha

(c. 560-636). Sendo assim, as “palavras reservadas para definir a mulher servem unicamente

para evocar a sua função principal: até a sua fraqueza física, garantia de submissão ao homem,

favorece a procriação”346.

Procriar. Sim, esta era considerada a principal função da mulher na Idade Média. A

maternidade, além de conferia à mulher uma existência, ou ainda uma posição social, era um

elemento de legitimação do casal. Vale lembra que, “a partir do século XII aparecem cada vez

345 THOMASSET, C. Da natureza feminina, p.65. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.65-97. Neste capítulo, podemos perceber que o medo das mulheres é guarnecido por muitas afirmações presentes na literatura médica medieval. Quanto a questão do prazer, vale destacar que na mitologia grega, Tirésias foi sucessivamente homem e mulher. Sendo assim, pode afirmar que o prazer da mulher ultrapassa o prazer do homem, devido a esta revelação foi condenado por Hera. Segundo Thomasset, o “desejo de adquirir este saber persegue os espíritos medievais. Com precauções desajeitadas, os clérigos, em busca de público para as suas compilações, quando abordam a sexualidade falam em termos de saberes esotéricos, de ‘segredos de mulheres’”, p.86. No que diz respeito ao corpo, vale colocar que este era visto como um envoltório, uma casa que os moralistas convocam a proteger as “janelas” que são os olhos, a boca, as orelhas, as narinas. Neste sentido, o corpo feminino, por ser “menos fechado”, era considerado mais permeável à corrupção, sendo assim, requer uma vigilância maior, e é ao homem que cabe o papel de guarda. DUBY, G. A solidão nos séculos XI-XIII, p. 517-518. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença.. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.2, p. 503-526. 346 THOMASSET, C. Da natureza feminina, p.65. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.65-97.

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mais mulheres nas genealogias, sobretudo as que se distinguiam por uma maternidade

dedicada – o que no seio da nobreza significava numerosas maternidades. Um bom casamento

devia ser prolífico, uma boa esposa devia ser mãe”347. Sendo assim, o homem deve recear o

apetite sexual feminino, mas em contrapartida assegurar-se da sua fecundidade348, visto que,

aí jaz o sucesso dos matrimônios. Era comum na Idade Média as esposas serem repudiadas ao

não garantir filhos aos maridos, por isso recorriam a religião e a sortilégios:

Toda a sociedade tem os olhos voltados para o casal estéril. [...] Todas as práticas ligadas a crenças populares herdadas das civilizações anteriores e a multiplicação de santos com poderes fecundantes testemunham a importância do que está em jogo. A exigência da fecundidade culpabiliza a mulher, faz nascer a troca no seio do grupo das mulheres e reforça a sua solidariedade e coesão.349 (grifo nosso)

Como destacado acima, a mulher era sempre responsabilizada pela esterelidade.

Entretanto, nesta sociedade, antes de ser uma benção, a fecundidade era antes uma maldição

e, como afirma Jacques Le Goff, “daí a interpretação sexual e procriativa do pecado

original350. Como consta no texto do Gênesis, pelo pecado de Eva, as mulheres foram

condenadas a sofrer durante a gravidez e na hora do parto, e não erramos ao afirmar que

muitas também eram condendas a morte: “eram a gravidez e o parto – e isso está claramente

verificado – que constituíam um verdadeiro risco para a vida da mulher; a demografia

descreve-os como factores de ‘sobremortalidade’ das mulheres durante a fase fértil da sua

vida”351.

Entretanto, este mesmo meio de punição torna-se instrumento de salvação: “ela será

salva pela maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade”

(1Tm 2,15). Ora, se a mulher foi “gerada para gerar”, os métodos de contracepção, o aborto e

o infanticídio tornam-se práticas pecaminosas de responsabilidade feminina, já que Deus

disse: “Sejam fecundos, multipliquem-se” (Gn 1,28).

Neste sentido, Étienne de Fougères352 afirma, em seu Livre des manières (Livro das

maneiras), escrito em língua românica entre 1174-1178, que entre os vícios femininos existem

os de resistir aos desígnios divinos, desviando o curso da coisas. Assim, as mulheres cometem

347 OPITZ, C. O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500), p. 378. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 353-435. Ver sobre a presença feminina nas genealogias: DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 348 THOMASSET, C. Da natureza feminina, p.85. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.65-97. 349 IDEM, ibidem. p.91. 350 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. v.2, p. 42. 351 OPITZ, C. O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500), p. 360. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 353-435. 352 Apud DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p. 13.

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uma falta grave ao produzirem e distribuirem medicamentos caseiros para evitar engravidar

ou até mesmo abortar. Quanto a este assunto,

Nos últimos anos tem-se colocado cada vez mais a questão da anticoncepção, dos meios e hipóteses que uma mulher tinha de se desembaraçar de filhos indesejados. Não se pode, no entanto, definir ainda quem recorria à contracepção ou abortava, em que proporções e de que modo. Pelo menos, dos textos que tratam estes assuntos, geralmente redigidos por clérigos, confessores e teólogos, depreende-se claramente que entre os crentes da Idade Média – e sobretudo as mulheres – devem ter desejado controlar os nascimentos, sobretudo quando os encontros visavam o prazer, em bordéis ou em relações extra-matrimoniais. 353

Segundo Claudia Opitz, a tendência em concluir, baseado nestas poucas referências,

que um conhecimento sobre a prevenção circulava sobretudo entre as mulheres, parece

errônea. O que é certo, continua a autora, é que “a gravidez, o parto e todas as práticas e

conhecimentos a eles respeitantes permaneciam ainda, nos finais de Idade Média, do domínio

exclusivo das mulheres”354.

Mas, de qualquer maneira, o conhecimento sobre estes assuntos era limitado, como

comprova o alto número de mulheres que morriam no parto. Igualmente limitado era o

conhecimento relativo às práticas abortivas, dificultadas pela difícil verificação precoce de

uma gestação. Com a descoberta tardia da gravidez, sua interrupção tornava-se arriscada,

levando muitas vezes a morte da grávida e do feto. Por isto, menos perigoso que o aborto era

a morte ou o abandono do recém-nascido. Ainda assim, o infanticídio era arriscado,

vituperado tanto pelas normas eclesiásticas quanto civis, quando descoberto, resultava em

duras condenações, atenuadas somente por motivos referentes a pobreza355.

Dentre essas práticas, presentes também na Antiguidade, o abandono passa ser

considerado um mal menor. Durante a Idade Média, a preocupação com as crianças rejeitadas

ocasionou sua institucionalização, ou seja, os mosteiros, com o objetivo de combater o

infanticídio, aceitavam essas crianças que, em contrapartida, deveriam seguir a carreira

sacerdotal. Vale colocar que, preocupado com a rejeição de recém-nascidos, o Papa Inocêncio

353 OPITZ, C. O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500), p. 384. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 353-435. 354 IDEM, ibidem. p. 384. As experiências das mulheres na área da ginecologia e da obstetrícia eram incontestados. Os homens eram proibidos, tanto pela tradição quanto pela moral dominante, de realizarem exames médicos em mulheres, ficando restringidos sobretudo a um saber teórico. Já as parteiras, destacavam-se com um saber essencialmente prático. Vale colocar que, essas mulheres podiam assim concorrer com os homens com formação acadêmica e profissionalmente organizados. “Estes, desde a difusão das faculdades de medicina nas universidades medievais, guardavam cada vez mais ciosamente o seu conhecimento e fechavam a sua profissão a todos os tipos de concorrência, mas sobretudo à feminina”, p. 398. 355 OPITZ, C. O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500), p. 386-388. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 353-435.

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III - após um grupo de pescadores ter retirado, em suas redes, um grande número de bebês

mortos, provavelmente afogados, no Rio Tibre, em 1230 – deliberou a construção do Hospital

de Santo Espírito, próximo ao Vaticano, para recebe-los. Também na Idade Média, para

acolher essas crianças foi inventada a “roda dos expostos”, que eram de forma cilíndrica com

uma divisão no meio; fixada no muro ou na janela da instituição, o expositor colocava a

criança do lado externo, girava a roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar que a

roda havia sido ocupada356.

Após o exposto, como analisar a maternidade e também sua ausência nos Lais? A

princípio, acreditavamos que Maria de França, ao privar a maioria de suas personagens

femininas da maternidade, estaria privando-as da condenação do pecado de Eva, entretanto,

como afirma Georges Duby ao falar de Isolda, “a estrutura da intriga o proibia, assim como a

opinião comum, que desejava ardentemente que a mulher adúltera fosse estéril tanto para sua

punição como para evitar a bastardia, cujo temor obsessivo habitava então o espírito de todos

os chefes de família”357.

A exemplo disto temos o lai de Guigemar, de Equitan, de Rouxinol e de Madressilva,

nos quais a autora não faz referência a nenhuma gravidez da dama, que permanecia infértil em

suas relações tanto com o marido quanto com o “amigo”. É evidente que a autora não alude a

práticas anticonceptivas, mas entendemos que nem é este o caso, mas sim a idéia de que a

mulher não tem apenas e inevitavelmente o papel de procriar. Também esta claro na fonte que

a mulher adúltera não é necessariamente estéril, como comprova o lai de Yonec, no qual o

filho, resultado de uma relação extra-conjugal, por ter nascido no quadro do casamento é

assumido pelo marido da dama. Já no lai de Milun, a jovem, por ser solteira, não pode ser

acusada de adultério, e

“Junto ao seu quarto havia um vergel onde ela ia passear, lá arranjam seus encontros, Milun e ela, bem freqüentes. Tanto veio Milun, tanto a amou que a donzela engravidou. Quando percebeu que estava grávida, chama Milun, e se lamenta. Diz-lhe o que aconteceu, sua honra e seu bem perdeu, quando a tal ponto se comprometeu; dela farão grande justiça:

356 MARCÍLIO, M. L. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. Segundo a autora, havia uma promiscuidade na assistência prestada a essas crianças nos hospitais, fato comprovado pelo alto índice de mortalidade infantil. 357 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p. 93.

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a fio de espada será passada ou vendida em outro país” (Milun vv. 49-62)

Aqui fica claro como a sociedade medieval valorizava a virgindade antes do

casamento, o que estava em jogo não era somente os interditos religiosos, mas a honra da

mulher e também a honra da família. A gravidez da “amiga” de Milun era a prova irrefutável

da perda da virgindade, sendo assim, a donzela opta por camuflar seu delito, mas não cogita

nem o aborto nem o infanticídio. A solução proposta pela donzela é que Milun, logo após o

nascimento, leve a criança a sua irmã, o que, de certa maneira, podemos classificar como um

caso de abandono, que também está presente no lai de Freixo: a Dama engravida de seu

marido, nascem duas meninas, a mãe precisa se desfazer de uma das filhas, deixa então que

uma das crianças seja levada pela sua fiel serviçal a um mosteiro.

A serviçal pega a criança e sai do quarto. De noite saiu da cidade, percorreu um longo

caminho até entrar em uma rica cidade. Lá havia uma rica abadia gerida por uma abadessa. A

mulher coloca o bebê em um frondoso freixo358, que ficava na frente da abadia, e vai embora.

A criança foi achada pelo porteiro. A abadessa, ao ver a menina, decidiu cria-la e trata-la

como sobrinha, por ter sido encontrada sob o freixo, Freixo seria seu nome.

Mas qual a razão que levou a dama a abandonar uma de suas filhas, sendo que foram

concebidas dentro de uma relação conjugal? A razão está no fato da Dama ter se mostrado

maledicente:

A esposa de um cavaleiro deu à luz, simultaneamente, a duas crianças. Seu marido

ficou muito feliz e mandou dar a notícia para o seu amigo vizinho, convidando-o para batizar

com o seu nome uma delas. Quando o mensageiro passou o recado ao rico homem, sua

mulher, que estava sentada ao seu lado, pôs-se a rir,

“porque ela era falsa e orgulhosa e maledicente e invejosa. Ela falou muito loucamente e disse diante de toda sua gente: ‘Que Deus me ajude, eu me maravilho com a atitude deste gentil homem, que informou a meu senhor sua vergonha e sua grande desonra, que sua mulher teve dois filhos. E ele e ela estão desonrados. Nós sabemos bem o que isto significa: nunca ocorreu e nem jamais ocorrerá este acontecimento,

358 Antes haviamos falado da “roda dos expostos”, a qual não consta no lai, visto que a criança foi deixada pela serviçal em uma árvore em frente a abadia. Ao que parece, esta roda foi criada no final do século XII, sendo assim, somente nos séculos precedentes seu uso popularizou-se.

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que em um só parto, uma mulher ter duas crianças, sem que dois homens as tenham feito.’” (Freixo vv. 27-42)

Essas palavras da Dama foram muito repetidas e divulgadas, levando muitas mulheres

à odiarem. O mensageiro que estava presente contou tudo a seu senhor:

“Quando ele ouviu o relato, ficou lastimoso, não sabia o que fazer; de sua nobre mulher tomou aversão e teve severas suspeitas, e muito a tinha em vigia, sem que ela merecesse.” (Freixo vv.59-64)

As imoderadas e perversas palavras da Dama, ao se alastrarem, tornaram-se fonte de

conflitos conjugais. Sendo assim, a personagem de Maria de França é castigada:

“A Dama maldizente no mesmo ano engravida. De duas crianças ficou grávida: agora sua vizinha estava vingada! Até a hora do parto as carrega. Teve duas filhas: muito lhe pesa. Muito duramente estava dolente; sabia mesmo desmentida.” (Freixo vv. 65-72)

Aqui, vislumbramos um trecho do Eclesiastes:

“As palavras do sábio favorecem a ele mesmo, mas as palavras do insensato provocam sua própria ruína. Se o início das palavras do insensato já é insensatez, o fim do seu discurso será tolice perversa. O insensato multiplica as palavras, embora o homem não saiba o que vai suceder, porque ninguém lhe pode dizer o que vai acontecer no futuro” (Ecl 10, 12-14)

Portanto, a Dama, ao ser insensata caluniando a esposa do vizinho, sofre as

conseqüências de suas próprias palavras359. Sabendo que seu marido e toda sua família não

acreditariam em sua fidelidade, pois ela mesma se julgou ao difamar todas as mulheres, a

dama decide matar uma das crianças para proteger-se da desonra, afirmando que prefere

responder perante Deus do que desonrar-se. Aqui, parece que Maria de França afirma que na

aristocracia medieval pior que as punições divinas era a desonra perante o marido e sua

parentela, pois como já foi posto, a moral aristocrática, mas também a moral eclesiástica,

359 Também na Chanson du chevalier au cygne, a raina Beatrix difamou uma mãe da gêmeos e ela própria deu à luz a seis filhos. Cf. RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 340. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

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considerava o adultério feminino uma grave falta, ocasionando até a morte da traidora. Diante

disto, o infantícidio, se não descoberto – visto que também ocasionava severas punições - ,

mostra-se como a melhor saída. Mas,

“Aquelas que estavam no quarto a consolaram e disseram que elas não permitiriam isso; matar um filho não é brincadeira.” (Freixo vv. 95-98)

Foi então que sua serviçal propôs pegar a criança e leva-la a um mosteiro. No

desenrolar da história, Freixo, a filha abandonada, torna-se “amiga” de Gurun, um nobre

cavaleiro. Muito se amavam, mas devido a pressão de seus cavaleiros, Gurun aceitou casar-se

com Aveleira. Neste momento, o lai retoma o ponto de partida: Aveleira era a irmã gêmea de

Freixo. Durante o dia escolhido para as bodas, a mãe de Aveleira, por meio de alguns

indícios, reconheceu que Freixo era sua filha e exclamou para que todos ouvissem: “Tu és

minha filha, bela amiga!” (v. 460).

A Dama contou a verdade a seu marido, que ficou muito feliz com a notícia de que

tinha outra filha e, antes que o pecado fosse redobrado, o arcebispo ouviu o acontecido e

desfez as bodas ainda não consumada entre o cavaleiro e Aveleira, e o casará com a outra

irmã.

Vale colocar que é freqüente, do século XII ao XV, a presença de irmãos, geralmente

gêmeos, nas ficções literárias, nas quais se colocam problemas muitas vezes relacionado a

questão do poder. Mas o que temos que sublinhar é que:

Livramentos e reencontros são freqüentes nessas narrativas, em particular sob a forma de uma reabilitação da mãe. Os gêmeos são, assim, os grandes unificadores da célula pais-filhos, e como são sempre os únicos fatores dessa restauração paternal, sua história possui habilmente uma estrutura centrípeta: de uma célula familiar rompida a uma célula restaurada.360 (grifo nosso)

Contudo, não é só no lai de Freixo que a autora apresenta defeitos considerados

femininos. No lai de Lanval temos outro exemplo de maledicência feminina. Lanval tinha

uma “amiga” que o advertiu que, se ele revelasse para alguém o amor que viviam, a perderia

para sempre. Mas, a rainha ao ver Lanval, vassalo de seu marido Artur, ficou enamorada:

“‘Lanval, muito vos honrei e muito quero bem e muito amo.

360 RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 341. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

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Todo meu amor podeis ter: então diga-me vossa vontade! Meu amante vos torno; muito deveis estar feliz comigo!’ ‘Dama’, disse ele, ‘deixai-me estar! Eu não tenho intenção de vos amar. Longamente servi ao rei, não lhe quero mentir minha fé. Nem por vós nem por vosso amor, eu faria mal ao meu senhor” (Lanval vv. 265-276)

Nestes últimos versos, Lanval utiliza-se da desculpa da moral vassálica para não

contar seu segredo. Mas, ao ser surpreendida com a recusa de Lanval, a rainha ficou furiosa e

acusou-o de não ter desejos de mulher e de “se divertir” com seus valetes. Quando ouviu estas

palavras, Lanval defendeu-se e revelou que amava e era amado por aquela que ultrapassa, em

mérito, todas as mulheres que conhecia. Disse ainda que qualquer uma das que a servem,

excede a rainha em corpo, rosto e beleza, em educação e bondade.

O medo da palavra feminina atormentava os espíritos medievais e juntava-se ao medo

da sua carne e do seu desejo361. Na personagem da rainha, Maria de França corporifica esses

medos. A rainha ao desejar Lanval, solicita seu amor, mas este recusa. Ao ser rejeitada pelo

cavaleiro, a rainha o acusa de homossexualidade e, ao saber da existência de uma rival e

sentir-se humilhada, usa sua palavra mortífera e conta ao rei uma versão inversa do ocorrido:

“disse que Lanval a humilhou: como amante a requeriu; por ter ela recusado, muito a insultou e aviltou: vangloriou-se de ter amiga, que tanto era gentil e nobre e notável que mais valia sua camareira, a mais pobre que a servia, que a rainha. O rei se enfureceu fortemente; jurou solenemente: se ele [Lanval] não puder perante a corte se defender; ele [o rei] o fará queimar ou enforcar.” (Lanval, vv.318-330)

Este lai assemelha-se ao tema bíblico da mulher de Putifar, que ao ser recusada por

José, escravo de seu marido, acusa-o (Gn 39). Além deste paralelo, entrevemos no lai trechos

bíblicos de caráter misógino: “Nenhuma ferida é como a do coração, e maldade nenhuma é

como a da mulher!” (Eclo 25,12); “Meu coração teme três coisas, e uma quarta me assusta:

calúnia espalhada pela cidade, revolta do povo e acusação falsa. Tudo isso é pior que a morte.

361 IDEM, Vozes literárias, vozes místicas, p. 519. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2. p. 517- 591.

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Mas a mulher ciumenta de uma rival causa grande dor e aflição. E a praga da língua é o ponto

comum de todas essas coisas.” (Eclo 26,5-6).

Não queremos afirmar que os Lais foram baseados diretamente em conceitos da

Bíblia, visto que, tal opinião sobre a mulher fazia parte do senso comum e era reiterada pelos

escritos eclesiásticos. Como coloca Carla Casagrande, embora enquadradas,

as mulheres falam, e segundo os pregadores e moralistas falam demasiado e mal: mentem com habilidade, trocam maledicências, discutem continuamente, são insistentes e lamurientas, nunca param de tagarelar. Todos os lugares comuns de uma secular literatura misógina estão depositados nos sermões e nos tratados morais dirigidos às mulheres, dando delas a imagem fastidiosa de uma mulher faladora e petulante que usa de modo perverso aquela extraordinária faculdade humana que é a palavra.362

Como não citar Marbode de Rennes (c. 1035-1123)? Segundo Jacques Dalarun363, o

poema Da mulher má, presente na terceira parte do Livro dos dez capítulos escrito por este

bispo, é um dos textos literários, que chegaram até nós, mais misógino, superando a Sexta

Sátira de Juvenal (c. 60-140), a qual Marbode faz uso, e equiparando o Cântico sobre o

desprezo do mundo de Rogério de Caen († c.140). Neste poema, o bispo de Rennes parece

reunir as imagens misóginas presentes na sua cultura clássica e patrística. Sendo assim, o

autor afirma que a femina é “a pior das armadilhas preparadas pelo Inimigo”, “raiz do mal,

fruto de todos os vícios”. O termo femina converte-se para meretrix, e a lista dos defeitos

femininos prossegue: traidora, briguenta, avara, leviana, ciumenta, ventre voraz, por isso,

aconselha os clérigos-escolares a fugirem dessa fornalha.

A mulher era colocada como inimiga do “gênero masculino”, o que é afirmado de

maneira clara e direta por Hildeberto de Lavardin (1056-1133), que considera o dinheiro, as

honras e a mulher os três maiores inimigos do homem:

A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo que pode prejudicar. A mulher, vil forum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando pode ser culpada. Consumindo tudo no vício, é consumida por todos; predadora dos homens torna-se a própria presa.364

362 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.133. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141. Ver a compilação de 25 poemas misóginos traduzidos para o casteliano RODRÍGUEZ-ESCALONA, M. P. Poesía misógina en la edad media latina (ss.XI-XIII). Barcelona: Universitat de Barcelona, 1995. 363 DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.38. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.29-63. Ver também DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit.. p.17. 364 Apud DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.35. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.29-63.

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Neste mesmo viés, Godofredo de Vandoma († 1132) escreve:

Este sexo envenenou nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também, matou o Salvador, porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer. Desgraçado sexo em que não há temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de temer quando é amado do que quando é odiado.365

No Tratado de André Capelão encontramos eco destas diatribes contra o sexo

feminino:

As mulheres, aliás, não são apenas avaras por natureza, mas também curiosas e falam das outras mulheres; são vorazes, escravas do próprio ventre, volúveis, inconstantes no que falam, desobedientes, rebeldes às proibições; são maculadas pelo orgulho e cobiçam a vanglória; são mentirosas, dissolutas, tagarelas, não respeitam segredos; são luxuriosas ao extremo, dadas a todos os vícios e não têm afeição verdadeira pelos homens.366

Como podemos notar, são freqüentes as citações de vícios e defeitos femininos na

literatura parenética medieval que, constantemente, utiliza-se de exemplos de homens, como

Adão, Lot, Sansão, Salomão, o profeta Davi, dentre outros, que se perderam por conta das

mulheres. Na Correspondência, uma série de cartas que teriam sido escritas por Abelardo e

Heloísa por volta de 1132, na sua segunda carta (quarta do total do corpus) Heloísa concorda

com o ditado “que a esposa de um homem é o mais dócil instrumento de sua ruína”367.

Dito isto não é difícil entendermos o medo que os homens medievais tinham das

mulheres e, em particular, o medo que os maridos tinham de suas esposas, temiam ser

enganados, desvirilizados, enfeitiçados e até mesmo mortos por aquela que os tinha sido dada

em matrimônio. Nos lais de Equitan e do Homem-Lobo, Maria de França parece justificar este

medo ao revelar a perniciosidade das esposas.

No lai de Equitan, a Dama tornou-se “amiga” do rei Equitan, senhor de seu marido.

Muito se amaram, mas os súditos do rei passaram a incomodar-se com o fato de seu senhor

365 Apud IDEM, ibidem. p.34. 366 ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor cortês. Op. Cit. p. 290. 367 DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p. 66. Ver também o subcapítulo “O verdadeiro rosto de Eloísa”, no qual José Enrique Ruiz-Domènec ilustra a discussão sobre a autenticidade ou não da Correspondência, além de analisar o emergir da individualidade, ou seja, do “eu”. Embora este subcapítulo mereça atenção, temos algumas ressalvas a respeito do livro, visto que o autor propõe escrever sobre o olhar feminino na Idade Média, entretanto, utiliza-se de escritos de homens para falar de algumas mulheres, por exemplo Eleonora de Aquitânia que, segundo o autor, fracassou como esposa, como mãe e só como avó sua vida alcança sentido. Ora, reduzir a vida de Eleonora ao papel de avó não parece ser uma análise judiciosa. RUIZ-DOMÈNEC, J. E. O despertar de las mujeres. La mirada femenina en la Edad Media. Barcelona: Península Atalaya, 2000.

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não se casar. A Dama, ao saber disso, alarmou-se; temia que o rei tomasse uma esposa e se

separa-se dela. O rei respondeu que não se casaria e nem a deixaria por outra e que, se seu

marido estivesse morto, a faria rainha. Após ouvir essas palavras, a Dama revela seu poder

nocivo: planeja a morte de seu marido e solicita a ajuda do rei:

“‘Senhor’, diz ela, ‘se vos apraz, vireis caçar na floresta na região onde eu habito. Dentro do castelo de meu senhor habitareis; sereis sangrado, e no terceiro dia vos banhareis. Meu senhor se sangrará, e com vos se banhará. Diga-lhe bem, não deixeis, que ele vos tem que acompanhar! E eu farei os banhos temperar e as duas cubas trazer. Seu [do marido] banho farei quente e fervendo; sob o céu não há homem vivendo, que não seria escaldado e morto, antes que dentro se sente. Quando morto estiver e escaldado, vossos homens e os dele chamareis; e lhes mostrarei como morreu no banho subitamente.’ O rei lhe garantiu, que ele faria sua vontade.” (Equitan vv. 547- 658)

De artimanha feminina Maria de França também escreve no lai do Homem-Lobo. Na

Bretanha havia um barão muito honrado e estimado pelos vizinhos. Este barão tinha uma

esposa, ambos amavam-se. Entretanto um fato incomodava a sua esposa: três dias por semana

seu marido sumia, ninguém sabia o que ocorria e por onde ele andava. A Dama indagou ao

seu marido por onde andavas e que ao seu ver ele tinha outra mulher e, se assim for, cometia

grave falta. O cavaleiro disse que se contasse perderia o amor dela e causaria sua própria

perda. A Dama, não satisfeita, questionou-o insistentemente – curiosidade considerada

característica das mulheres - e tanto o agradou que o cavaleiro decidiu revelar seu segredo:

“‘Dama, eu me transformo homem-lobo. Naquela grande floresta me meto no mais espesso da mata, aí vivo de presas e rapinas.’ Quando ele lhe tinha contado tudo, ela lhe perguntou se ele se despia ou ia vestido. ‘Dama’, disse ele, ‘eu vou completamente nu’ ‘Digas por Deus, onde deixa vossas roupas?’ ‘Dama, isso eu não direi; porque se as tivesse perdido

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e disso fosse apercebido, homem-lobo seria para sempre. Jamais teria socorro, até que elas me fossem devolvidas. Por isso não quero que saiba.’ ‘Senhor’, a dama lhe responde, ‘eu vos amo mais que tudo no mundo. Não me deveis nada esconder nem de mim nada duvidar; não pareceria amável. O que eu fiz de mal, por qual pecado duvidas de mim? O diga-me! Então farás bem.’ Tanto o angustia, tanto o pressiona, Não pode fazer outra coisa, então o diz.” (Homem-Lobo vv. 63-88)

O barão contou a sua esposa onde deixava suas roupas. Percebe-se que a mulher com

sua palavra doce e insistente convence seu marido a revelar todo o segredo. A Dama ficou

surpresa e assustada com a metamorfose do marido, não queria mais deitar-se com ele e

armou uma estratagema para livra-se dele. Um cavaleiro da região muito a amava e a

solicitava e ela nunca correspondeu a tal sentimento. Mas, diante desta situação, a Dama

mandou chamá-lo e disse que concederia seu amor e que poderia fazer dela sua amante. O

cavaleiro ficou grato e jurou seu compromisso. Tudo estava arranjado: a Dama então contou-

lhe o que acontecia com seu marido. O homem-lobo foi traído e vitimado pela aquela em que

confiou.

Todos notaram o sumiço do barão, mas como desaparecia com freqüência, acharam

que tinha ido embora de vez. Buscaram e perguntaram por ele, mas como não o acharam,

deixaram as coisas assim como estavam. A Dama, após ter se livrado do marido, casou-se

com o cavaleiro.

Posto isto, questionamos: qual a razão de certas personagens nos Lais terem uma

faceta negativa? A narrativa, para alcançar sucesso, deve agradar os ouvintes, dentre os quais

estão os homens. Assim, para agradá-los era preciso corresponder ao sentimento de apreensão

diante da mulher que julgavam perigosa, fato que comprova a penetração na cultura

aristocrática da concepção clerical da mulher.

Para delinear a mulher “perigosa”, a autora utiliza-se de características tidas no

imaginário medieval como próprias das mulheres: sedutora, manipuladora, falsa, perversa,

invejosa, maledicente e traidora. Acreditava-se que esses defeitos femininos eram

responsáveis por uma certa desordem social, que atingia em primeiro lugar o universo

masculino, idéia refletida nos Lais, nos quais os homens aparecem como vítimas das

perversidades femininas.

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Entretanto, também as mulheres sofrem com a iniqüidade de outras mulheres. Ao ser

difamada pela vizinha, a Dama no lai de Freixo sofre a rejeição e a desconfiança do marido.

Já no lai de Yonec, a Dama foi traída pela velha, sua acompanhante, que delatou ao seu

senhor, no caso o marido, o amor adultero vivido entre a Dama e o cavaleiro-passáro.

Como vimos, os moralistas e pregadores denunciavam o valor negativo da palavra

feminina, por isso insistiam na necessidade de a custodiar, de a limitar a espaços, tempos e

modos. Convêm frisar que, o controle da palavra feminina é sem dúvida a proteção dos

poderes e dos privilégios da palavra masculina368.

Como não encontrar nos escritos paulinos a sugestão do silêncio feminino?369 Na

primeira carta aos Coríntios lemos: “Que as mulheres fiquem caladas nas assembléias, como

se faz em todas as igrejas dos cristãos, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar

submissas, como diz também a Lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos

maridos em casa; não é conveniente que as mulheres falem nas assembléias” (1Cor 14, 34-

35). No mesmo viés, Paulo coloca na carta a Timóteo: “Eu não permito que a mulher ensine

ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio” (1Tm 2,12). Tais proposições

foram comentadas em demasia por numerosos exegetas e serviram de base para a exclusão da

palavra feminina na dimensão pública. Mas, como afirma Carla Casagrande:

A dimensão pública negada à palavra feminina não é tanto um problema de espaços como um problema de funções: cada vez que a palavra abandona o plano da comunicação entre indivíduos singulares para assumir um papel político de fundação e de governo da comunidade, as mulheres devem calar-se porque naquele momento estão os homens a falar. As mulheres não entram em tribunais, não governam, não ensinam, não pregam. A palavra do juízo, do poder, da cultura e da salvação devem manter-se palavras masculinas.370

Embora o cristianismo medieval procurasse manter as mulheres longe do sagrado e

excluídas do mistério e, em especial, do mistério da palavra, é inegável o papel desempenhado

368 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.135. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141 369 Por volta dos anos 70, no quadro do movimento das mulheres e da luta pela igualdade, o papel da mulher cristã e, conseqüentemente, os escritos do começo da tradição cristã tornaram-se alvo de discussões e causaram impacto nos estudos neotestamentários. Neste contexto, os escritos paulinos ocupam muitas vezes o centro da discussão, ainda que as colocações sobre a mulher não sejam o alvo dos seus textos. A grande questão que se levanta é se Paulo era ou não misógino. Entretanto, no presente trabalho não discutiremos os escritos paulinos, mas seus efeitos misoginos na sociedade medieval. Ver a análise do material paulino que ocupa parte do amplo estudo acerca do papel da mulher na Igreja primitiva e que utiliza-se da hermenêutica feminista da supeita: FIORENZA, E. S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. Sobre este modelo crítico feminista de interpretação ver FELIX, I. A. A Função desmistificadora da Hermenêutica Feminista da Suspeita. Disponível em: <http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/I/Isabel_Aparecida_Felix_24_A.pdf>. Acesso em 13 mar. 2008. Por fim ver a defesa de Paulo baseada no contexto do Apóstolo: BYRNE, B. Paulo e a mulher cristã. Trad. Edson Gracinho. São Paulo: Edições Paulinas, 1993. 370 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.135. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141

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pela mulher na Igreja primitiva, sua influência e, principalmente, seu apoio à nova religião foi

de vital importância e, só gradualmente, a liderança feminina desloca-se para o domínio

masculino371. Mas, ainda assim, os clérigos recorriam a força persuasiva da palavra feminina

para uma pastoral privada, às mulheres é proposto a missão de auxílio à salvação do marido, e

conseqüentemente dos filhos, poder reconhecido também por São Paulo: “o marido não

cristão é santificado pela esposa cristã” (1Cor 7,14).

Além de evangelizadora assídua do marido e dos filhos, as mulheres deveriam usar sua

palavra para bem aconselhá-los e instruí-los, neste sentido, muitos abades, bispos, poetas,

recorriam à esposa para conseguir favores de seu marido372. Entretanto, baseado na Política

de Aristóteles (384a.C.-322a.C.), muitos comentadores, a exemplo de Gil de Roma (1244-

1316), “consideravam os conselhos das mulheres demasiado passionais e mutáveis, privados

de coerência e de racionalidade”373, sendo assim, seus conselhos deveriam ser apreciados com

cautela.

Se a palavra feminina deve ser contida, também as palavras dirigidas a elas devem ser

pontuadas, principalmente no que se refere a segredos que, ao chegarem aos ouvidos

femininos, tornam-se assuntos públicos pela sua boca. Assim como Sansão revela seus

segredos a Dalila, nos Lais o Homem-Lobo conta-os a sua esposa e, tanto um quanto o outro,

sofrem numerosos males ao confiar nas mulheres.

A separação nítida entre o sexo feminino e o masculino não se dá somente no campo

lingüístico mas também no espaço físico: para as mulheres era proposto o espaço interno,

privado, enquanto os homens poderiam circular em um espaço externo, público. A casa

representa o espaço feminino por excelência, no qual poderiam cumprir suas obrigações e de

certa maneira exercer seu poder, poder este limitado, visto que, ainda que lhe era proposto

governar a casa, as decisões acerca do patrimônio eram reservadas aos homens, que também

eram os responsáveis pelas pessoas, em particular as mulheres, que habitam sobre o seu

teto374.

371 Cf. FIORENZA, E. S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. WEMPLE,S. F. As mulheres do séuclo V ao século X, p.228. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 227-271. 372 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII.Op. Cit. p.88-89. 373 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p.136. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141. 374 Os cuidados com a casa eram obrigações femininas. A mulher casada era responsável pelo bom funcionamento da casa; os cuidados com a alimentação, com a limpeza e com as vestimentas faziam parte de suas tarefas cotidianas, assim como o controle do trabalho e da moral da criadagem, visto que a promiscuidade desta poderia afetar a conduta dos próprios donos da casa. E quanto aos filhos? Como já colocamos, a função primeira da mulher era gerá-los e, em seguida, garantir sua boa saúde, seu bem-estar e zelar pelo seu comportamento moral e religioso. Neste último ponto, uma especial atenção deveria ser dada as filhas: as mães devem controlar sua sexualidade adotando a mesma postura repressora de que são vítimas. Já no que se refere ao

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As mulheres deviam estar sob a tutela masculina e deveriam sobretudo consentir em

sua submissão, conforme coloca o apóstolo Paulo: “Mulheres, sejam submissas a seus

maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça de sua esposa” (Ef 5,22-23). Tal idéia

encontra nos escritos de Santo Agostinho um desenvolvimento maior, que serve de

justificativa teórica para o tipo de relação entre os sexos proposta no período medieval e,

acima de tudo, estabelece as causas da desigualdade, afirmando a superioridade natural do

sexo masculino. Deste modo, os homens deveriam proteger, controlar, vigiar, corrigir e se

preciso castigar, ou até mesmo matar, as mulheres que estivessem sob sua custódia.

Ainda que aparentemente contraditório, o tão ameaçador e temido sexo feminino era

visto como sexo frágil, como coloca Françoise Piponnier:

Fisicamente fracas, moralmente frágeis, as mulheres são consideradas na Idade Média como seres a proteger contra os outros, mas também contra si próprias. Pertençam elas por nascimento ao mundo dos guerreiros ou ao dos trabalhadores ou, por escolha, ao mundo dos que rezam, elas são submetidas à vigilância e à direção dos homens da sua “ordem”.375

Conforme o mesmo, embora a vigilância e a direção por parte dos homens e a

obediência por parte das mulheres sejam o ideal da sociedade masculina, obviamente, a

situação feminina varia de acordo com sua posição social. No grupo dos trabalhadores, a

condição das mulheres é diversificada e flexível, visto que, ao precisarem muitas vezes

contribuir com a economia familiar, dispõem de uma liberdade maior de ação e deslocamento.

Entre a aristocracia guerreira, as mulheres são mais vigiadas e controladas, contudo,

circulavam por espaços mais abertos se comparadas às religiosas que, consagradas a Deus,

deveriam restringir-se ao claustro, ou seja, ao encerramento completo.

De qualquer maneira, para preservar e controlar as mulheres, os homens procuravam

mantê-las encerradas em suas casas ou nos mosteiros, lugares que materializavam a custódia

masculina. Se observarmos os Lais de Maria de França por meio de uma perspectiva espacial,

notamos a diferenciação entre um espaço externo e aberto no qual os homens circulam e um

espaço interno, fechado e, principalmente, vigiado reservado as mulheres.

âmbito pedagógico com conteúdos propriamente educativos a iniciativa deve partir dos pais, responsáveis principalmente pela educação dos filhos homens. Entretanto, na iconografia vislumbramos a mãe exercendo a função de primeira mestra da prole.VECCHIO, S. A boa esposa, p. 161-171. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 143-183. 375 PIPONNIER, F. O universo feminino: espaços e objetos, p. 441. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 441-459.

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Pela tabela376 abaixo percebemos que as personagens femininas protagonistas estavam

restringidas a cenários pouco variáveis, em detrimento da variedade de lugares percorridos

pelos personagens masculinos. Vale ressaltar também que estes últimos deslocavam-se

livremente de uma região para outra, de um país para outro, sendo a guerra e o trabalho

mercenário os principais motivos. Já as mulheres quando faziam tal locomoção, faziam-na

escondidas, sendo a fuga o principal motivo.

Ainda que a casa/castelo seja um espaço privado, seus compartimentos internos

estavam divididos entre lugares de maior e menor sociabilidade377. A sala era o lugar tanto

das refeições como dos atos públicos e das reuniões, sendo onde as funções militares e

judiciárias eram exercidas. Por estes motivos a sala era um espaço de grande sociabilidade e,

sobretudo, um espaço masculino. Tal fato é atestado nos Lais, nos quais a presença feminina

neste recinto é breve e irrisória, não sendo o local de suas principais ações. A título de

exemplo, no lai de Freixo, a Dama pronuncia seu comentário maldoso durante a refeição,

376 Baseada em RÍMOLI, M. T. Os tipos femininos do imaginário medieval nos Lais de Marie de France. 1996. 128f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de São Paulo /Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 1996. p. 57. 377 As considerações que se seguem sobre a sala, o quarto, o pomar, a capela e a torre foram retiradas de DUBY, G. Convívio. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 49-95. RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

Lais Personagens femininas

Espaços femininos Personagens masculinos Espaços masculinos

Guigemar Dama Quarto, capela, pomar, torre

Guigemar, o marido e Meriadu

Floresta, bosque, charneca, castelo, sala

Equitan Dama Castelo Equitan e senescal Floresta, castelo. Freixo Dama e Freixo Castelo, quarto, abadia. Pai de Freixo e Gurun Castelo, espaço aberto

dos torneios Homem-Lobo

Dama Casa Homem-Lobo, o “amigo” da Dama e o rei

Floresta, casa e castelo

Lanval Fada e a rainha Tenda em um vale, sala, quarto e vergel

Lanval e o rei Artur Bosque, quarto, sala, vale.

Dois Amantes

Donzela casa Pai da Donzela e o donzel Casa.

Yonec Dama Torre e quarto Cavaleiro-pássaro, o marido e Yonec

Bosque e palácio

Rouxinol Dama Quarto Marido e o “amigo” Casa e espaço aberto dos torneios

Milun Dama Quarto, vergel, castelo. Milun e o filho Vergel, espaço aberto dos torneios

Infortunado Dama Quarto, torre Cavaleiros Espaço aberto dos torneios

Madressilva Isolda Floresta (escoltada pelos cavaleiros do rei)

Tristão Floresta

Eliduc Dama e a donzela

Casa, castelo e quarto Eliduc Floresta, casa, quarto

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sentada à mesa, ao lado do seu marido. Já no lai de Guigemar, a Dama aparece na sala após

ser convocada por Meriaduc.

O lugar da Dama é primordialmente o quarto, local mais privado da morada. Assim

como na sala, no quarto também se cumpre uma função, que é de reprodução, sendo portanto

um espaço conjugal reservado as núpcias. No lai de Freixo, após as bodas, a Dama leva sua

filha Aveleira para o quarto de seu recém-marido, e prepara-a para a união sexual.

Mas não devemos esquecer que o quarto na Idade Média não era um lugar tão

solitário. Em primeiro lugar, perto do leito conjugal outros dormiam: serviçais, sobretudo

mulheres e talvez, por um tempo, familiares. Em segundo lugar, ainda que com menor

intensidade, este local também era lugar de sociabilidade e de divertimento mais refinado:

música íntima, narrativas, jogos. Neste sentido também encontramos um exemplo no lai de

Eliduc, após a refeição, o rei levantou-se da mesa e entrou no quarto de sua filha e lá começou

a jogar xadrez com um cavaleiro que deveria ensinar a donzela.

Fora da casa, mas ainda dentro do espaço privado, existem a capela e o pomar. A

construção de capelas privadas tornou-se cada vez mais comum nas moradas aristocráticas e

era nela que se cumpria uma terceira função, que era a de oração. Interessante era a definição

espacial do pomar (vergel), embora um espaço aberto e propício ao convívio social, era um

lugar privado, estritamente cercado. Para guardar sua mulher, o senhor, no lai de Guigemar,

construiu sua habitação em um espaço emuralhado, no qual havia uma capela e um vergel,

freqüentados pela Dama.

Se estamos percorrendo os lugares ocupados pelas mulheres dos Lais, não poderíamos

deixar de falar da torre. A torre na Idade Média “era o símbolo de poder, do dominium (desse

termo deriva, como a palavra ‘danger’ [perigo], a palavra ‘donjon’ [torrão]), do poder de

proteger e de explorar”378, entretanto este espaço defensivo fortificado não era comumente

habitado, fato comprovado pelos poucos vestígios cotidianos ali desvendados pelos

arqueólogos.

No lai O infortunado, a Dama assistia seus pretendentes no torneio do alto de uma

torre, fato que nos remete a posição dominante da Dama. Entretanto, como coloca Danielle

Régnier-Bohler em sua análise sobre o espaço e o imaginário das ficções, a torre, lugar dos

cativeiros, “significa a autoridade exercida indevidamente”379 e, quanto a isto, podemos citar

o lai de Guigemar e de Yonec, no qual as Damas foram aprisionadas nas torres pelos seus

maridos.

378 DUBY, G. Convívio, p. 71. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 49-95 379 RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 320. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

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Portanto, as preocupações presentes na sociedade medieval advindas do perigo e

também da fragilidade feminina, fazem com que as mulheres sejam controladas pelos limites

do espaço privado. Para justificar e retificar tal confinamento, muitos sermões e tratados

dirigidos às mulheres usam o exemplo da personagem bíblica de Dina (Gênesis 24) para

alerta-las do perigo que correm e provocam ao saírem de suas casas ou dos mosteiros:

Nas praças e nas ruas, no percurso que conduz de casa à igreja, a mulher pode ser vista e, no dizer dos pregadores e dos moralistas, provocar nos homens, sobretudo se forem jovens, inesperados desejos de luxúria; daí resultam violências, enganos, adultérios que semeiam a desordem e a discórdia no núcleo familiar e na comunidade social.380

Preocupados com sua honra que dependia também do comportamento das mulheres

que estavam sob sua tutela, os homens esforçavam-se em mantê-las o máximo possível

enclausuradas, e se era preciso fazê-las sair, procuravam escoltá-las381, como ocorre com

Isolda no lai de Madressilva. Entretanto, esta obsessão masculina em proteger, vigiar e

controlar as mulheres por meio da restrição espacial choca-se com a permeabilidade das

fronteiras. O ingresso masculino, por exemplo, em lugares mais especificamente femininos

parecia não ser tão improvável, fato verificável nos Lais.

Por meio destas análises da situação da mulher na Idade Média e sua oportuna

comparação com a fonte utilizada que, acima de tudo, é uma obra de ficção, procuramos

demonstrar que Maria de França projeta a representação do espaço conforme o queria a

sociedade medieval, em especial, a aristocracia e o clero. A partir disto pontuaremos algumas

reflexões acerca dos Lais.

Ao serem retratadas em cenários pouco variáveis e fechados, reservados ao seu sexo,

as mulheres nos Lais parecem ter paradoxalmente uma certa liberdade de ação ao estarem

parcialmente protegidas dos olhares de outrem pelas paredes e portas. Será então que Maria

de França reitera com isto a insubordinação feminina, visto que, mesmo enclausuradas

continuam agindo? Ou será que a autora ridiculariza a vigilância masculina?

No lai de Guigemar, a Dama, embora vivendo em um ambiente cercado por muros e

pelo mar, tendo contato apenas com uma jovem acompanhante, sobrinha do marido, e um

velho padre castrado, abriga em seu quarto Guigemar, o cavaleiro ferido que chegou ao local

380 CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia, p. 116-117. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 99-141. 381 A peregrinação feita por Adèle de Flandres à Roma em meados do século XII serve para ilustrar este fato. Durante o longo percurso, Adèle “permaneceu encerrada em uma espécie de casa ambulante, uma liteira de cortinas constantemente fechada”. DUBY, G. Convívio, p. 93. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 49-95

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por via marítima382. Já no lai de Yonec, ainda que o marido tome cuidados extremos para

guardar sua esposa, encerrando-a dentro de sua torre em um grande quarto, o cavaleiro-

pássaro penetra no local através de uma janela estreita. E pela janela os amantes no lai de

Rouxinol avistavam-se, visto que, eram visinhos e o alto muro que separava as suas casas não

lhes serviam de impedimento para falarem-se e trocarem presentes, jogados de um lado para o

outro.Também no lai de Milun, a clausura não impede a comunicação – feita por meio do

cisne – e nem os encontros dos amantes. E o que diremos então de Isolda no lai de

Madressilva que, mesmo escoltada, ao perceber o recado deixado por Tristão em um bastão,

desembaraçou-se por alguns instantes de seus guardiões para gozar de grande alegria com

aquele que amava. Portanto, usando as palavras da própria autora: “Ninguém pode estar tão

confinado/ nem tão cuidado estritamente/ que não ache escapatória freqüentemente.”(Milun

vv.286-288)

Vale colocar que nos Lais, a extrema vigilância serve de caracterização para o mau

casamento, no qual o marido pretende ocultar e proteger sua esposa com o objetivo de

impedir a sociabilidade feminina que, dentre outras coisas, pode resultar no adultério. No lai

de Guigemar, de Yonec, de Rouxinol, de Milun e de Madressilva vemos a presença das

malcasadas, apresentadas como vítimas da crueldade e arbitrariedade do marido que, segundo

a autora, quando velhos, são naturalmente ciumentos, devido ao temor de serem traídos: a

idade os obriga a passar por isto (Guigemar vv.213-217).

Entretanto, como vimos, todo este controle não impede as personagens femininas de

agirem dentro dos espaços que lhes foram reservados. Sendo assim o adultério feminino é

recorrente e quanto a isto retomaremos uma observação central: ainda que na sociedade

382 Na cena que se segue, a Dama e sua acompanhante cuidam do corpo do cavaleiro e utilizam-se de práticas de cura e, quanto a isto, devemos fazer uma observação. Encerradas em suas casas e compelidas a cuidar da família, de sua saúde, às mulheres eram reservados os cuidados com os doentes e devido a isto, portavam um conhecimento, transmitido de mãe para filha, sobre as ervas e as suas propriedades, tornando-se aptas a produzirem remédios e poções caseiras. Sendo assim, eram muitas vezes acusadas de fabricarem ungüentos mágicos e malefícios. Este receio contra uma medicina popular e feminina alimentado pela medicina douta e masculina tem a ver com o medo de que a mulher desempenhe prerrogativas masculinas que, somando-se ao medo de seu corpo sedutor, tornaram-se elementos de uma obsessão que encontrou na caça as bruxas, na Baixa Idade Média, sua válvula de escape. FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada, p.486-488. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 461-511.

Os romances medievais contam com a presença de mulheres conhecedoras de poções mágicas, no lai dos Dois Amantes, como já relatamos no Capítulo I, a donzela aconselha seu “amigo” a procurar a ajuda de sua tia para cumprir a prova exigida pelo seu pai. Segundo a donzela, sua tia vive a mais de trinta anos em Salerno e “a arte da fisíca tanto usou/ que muito é conhecedora de medicinas./Tanto conhece ervas e raízes” (Dois Amantes vv.106-108). Vale colocar que, na Idade Média, a escola de medicina de Salerno era muito conhecida.

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medieval o adultério feminino seja considerado uma falta grave levando até à morte da

acusada, nos Lais, Maria de França coloca em discussão o valor contestável do casamento e,

em contrapartida, o valor indubitável do amor que, torna-se um agente atenuante do adultério

feminino, ainda que no lai de Guigemar a autora coloque a tentativa do marido, aconselhado

por um dos seus barões, de punir sua esposa com a reclusão total em uma torre.

Notamos uma certa sensibilidade da autora às infelicidades femininas advindas de um

mau casamento. Ao cometerem adultério, essas mulheres não agem de caso pensado contra

seus maridos, mas a favor de um sentimento involuntário e arbitrário. Sendo assim, não são

nas personagens femininas adulteras dos Lais que encontraremos necessariamente a imagem

da mulher má tal como a caracteriza os discursos misóginos medievais.

As figuras femininas que ecoam tais discursos são aquelas que agem por meio da

manipulação, da sedução, da falsidade e se utilizam do dom da palavra para proferir

maledicências e mentiras. E, seus comportamentos são baseados em intenções ruins que

visam o mal do outro.

Os lais que abordam tais atitudes negativas caracterizam-se por um tom moralizante

pois, como Maria de França afirma no lai de Equitan, “aquele que procura o mal de outro,/

então todo o mal reverte sobre ele.” (vv.315-316)383. Com esta frase a autora justifica o

desenrolar dos contos que contam com as personagens femininas cruéis que são punidas de

acordo com suas maldades, ou seja, o mal revertido tem o mesmo peso e medida do mal

desejado. Por isso, a Dama no lai de Freixo fica grávida de gêmeos após difamar a mulher do

vizinho que se encontrava nesta situação e, para não sofrer as conseqüências de suas próprias

palavras, desembaraça-se de uma das filhas. Conforme relatamos anteriormente, a Dama

reencontra sua filha e conta toda a verdade ao seu marido, este a perdoa, visto que o destino já

havia providenciado seu castigo.

No lai de Lanval, por sua vez, a verificação da existência e, principalmente, da beleza

da “amiga” de Lanval (a fada) e de suas servidoras desvenda a mentira contada pela rainha

que se vê desmoralizada perante a corte.

Punição mortal encontramos no lai de Equitan, no qual a Dama, ainda que bem

casada, planeja a morte de seu marido contando com a ajuda de seu “amigo”, o rei Equitan.

Tudo foi preparado conforme ela tinha arquitetado, mas antes que seu plano fosse consumado,

383 Quanto a isso, encontramos uma interessante constatação no artigo de Jeanne Wathelet-Willem que compara a segunda parte do lai de Equitan a um fabliau, devido a conclusão moral. WATHELET-WILLEM, J. Equitan dans l’oeuvre de Marie de France, p.343. Le Moyen Age, 69, p.325-345, 1963.

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seu marido a flagrou com o rei. O rei, ao vê-lo, para encobrir sua vilania, saltou dentro da

cuba com os pés juntos, estava nu e desprevenido: ali morreu escaldado.

“Sobre ele o mal reverteu, e o outro estava são e protegido. O senescal bem viu o que aconteceu ao rei. Sua mulher pega logo: no banho a coloca, a cabeça primeiro. Assim morreram ambos, o rei primeiro, ela depois dele.”(Equitan vv.305-312)

Por fim, também o lai do Homem-Lobo apresenta um desfecho edificante. A esposa,

também muito bem casada, ao ouvir o segredo de seu marido, manipulou o cavaleiro que a

cortejava para sumir com suas vestes e com isso não regressar da floresta. Mas, como era de

costume, o rei foi caçar e na floresta encontrou o homem-lobo, que o cortejou. O rei ficou

maravilhado e levou-o para o castelo. Muito afeiçoou-se a ele, assim como o restante da corte.

Um certo dia o rei convocou seus feudatários para uma reunião. O cavaleiro que casara

com a mulher do homem-lobo compareceu. Ao vê-lo, o homem-lobo o atacou, todos ficaram

surpresos, pois nunca tivera tal atitude, desconfiaram que ele não agira sem razão e um outro

acontecimento só veio comprovar essa desconfiança. O rei foi caçar novamente na floresta

onde encontrara o homem-lobo, que agora o acompanhava. Hospedaram-se na região. A

mulher do homem-lobo ao saber disso foi visitar o rei. Ao vê-la o homem-lobo correu para

cima dela enfurecido e arrancou-lhe o nariz. Uma grande punição, visto que, a sociedade deste

tempo concebia o corpo como prisão da alma, e acreditava que o primeiro era expressão e

materialização do segundo, sendo assim, a desfiguração corporal encontra-se associada ao

pecado, ao mal, a exemplo da lepra384.

O rei, ouvindo o conselho de um sábio homem, deteve o cavaleiro, e submeteu a Dama

a grande tortura. A traição foi confessada. Sendo assim, o rei explusou-a do país. Aquele com

quem traíra o marido foi junto com ela. Tiveram diversos filhos, e assim como a mãe, as

filhas nasceram sem nariz. Ora, Eva não marcou também o destino de todas as suas

descendentes?

384 Ver LE GOFF, J. Os marginalizados no Ocidente medieval, p.177. In: O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Porto: Edições 70, 1985. p.175-183.

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2- REVALORIZAÇÃO DA MULHER?

A Idade Média, em especial, foi um período histórico marcado pelos contrastes, a

exemplo disto, a própria concepção da mulher oscilava entre o céu e o inferno. Embora a

misoginia seja uma característica marcante do pensamento clerical medieval, temos

consciência de que a Igreja não formava um corpo coeso, visto que nem todos os dirigentes

eclesiásticos compartilhavam do mesmo ponto de vista.

No que diz respeito à mulher, não encontramos apenas ataques, mas também defesa do

sexo feminino. Ainda que a imagem negativa da mulher encontre expressão nos escritos dos

Padres da Igreja, dentre eles duas exceções aparecem: Cesário de Arles (c. 470-542) e

Gregório Magno (c. 540-604). Cesário de Arles, cujos escritos estão menos voltados para

especulações teológicas do que para a moral prática, saiu em defesa das mulheres e denunciou

a hipocrisia dos homens que se vangloriavam de proezas sexuais enquanto desejavam que os

membros de sua família permanecessem na pureza sexual. Já Gregório Magno, apesar de

entender por “mulher” a vontade da carne, defendeu os mosteiros femininos e criticou a

interdição imposta às mulheres que se encontravam menstruadas ou grávidas de

comungarem385.

Séculos mais tarde, o próprio Marbode (c. 1035-1123), que citamos no subcapítulo

anterior como autor de um dos textos mais misóginos que chegaram às nossas mãos, o poema

Da mulher má, compôs também Da mulher boa, presente na quarta parte do seu Livro dos dez

capítulos. Neste escrito, Marbode fala da boa mulher face à prostituta e a matrona, afirma

ainda a sua semelhança ao homem, “exceto no sexo”, e sua importância na reprodução e nas

tarefas cotidianas. Mas, conforme as palavras de Jacques Dalarun, “quando cita em apoio

exemplos de santas, Marbode não encontra senão figuras de virgens. No conjunto, uma defesa

bem tímida, que reabilita a mulher na sua função social sem no entanto falar da sua

salvação”386.

Contemporâneo de Marbode, Robert de Liège, ou Rupert de Deutz, (c.1075-1129),

afirma: “Salvo pelo sexo, a substantia da mulher não difere da do homem – ainda que pela

dignidade da condição ela prevaleça menos que o homem sobre os animais - , mas ela não é

menos racional e não aspira menos a assemelhar-se ao Criador”387. Mas é entre os membros

da escola de Saint-Victor, em especial, que encontramos reflexões que procuravam resgatar o

385 WEMPLE,S. F. As mulheres do século V ao século X, p.231. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 227-271. 386 DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.44. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.29-63 387 Apud DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.49.

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outro sexo mergulhado nas profundezas do pensamento misógino medieval. Hugo de Saint-

Victor (1096-1141), por exemplo, defende a idéia de que a mulher deve ser associada ao

homem, e não dominante ou subjulgada, visto que foi criada a partir de uma das suas costelas,

e não da cabeça ou dos pés388, no mesmo viés, seu confrade André de São Vitor, chega a falar

de igualdade entre os sexos.

Percebe-se, como coloca Georges Duby389, que o próprio relato de criação presente no

começo do Gênesis, fornecia, além dos fundamentos do aviltamento da mulher, também os

germes de sua promoção espiritual, pois se formada com uma das costelas do homem, não

existia diferença de “substância”.

Mas, dentre os homens da Igreja citados acima, Abelardo destaca-se na defesa do sexo

feminino, sendo acusado por Bernardo de Claraval (1090-1154) de “falar às mulheres” em

excesso390. Em suas cartas, presentes na Correspondência, Abelardo, como escreve Friedrich

Heer,

Apresentava aos seus contemporâneos monásticos masculinos, cujos espíritos estavam obcecados com o poder, com as honras (tanto no céu como na terra), com as guerras, com a violência, e com os ‘seus direitos’, a idéia de que o tipo do novo homem se devia encontrar na mulher: ela era uma forma mais elevada da natureza humana, refinada na alma e na inteligência, capaz de conversar com Deus, o Espírito do reino interior da alma, em termos de íntima amizade391.

Abelardo chegava ao ponto de afirmar que os discípulos femininos permaneciam mais

junto de Cristo do que homens e que suas orações equivaliam (ou superariam?) as deles, por

isso pedia às monjas do Paráclito para rezarem pela sua alma. Poucos, como Adam de

Persigne (c. 1145-1221) décadas depois, compartilhavam da idéia de Abelardo e, segundo o

autor Paulette L’Hermite-Leclercq:

As freiras não eram padres: as orações delas não valiam as deles. O enquadramento espiritual das religiosas revela-se muitas vezes instável e medíocre. Não existe naturalmente uma ordem especificamente feminina. A história das religiosas destes dois séculos [XI-XII] deixa a impressão de que elas são parentes pobres.392

388 Apud DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII.Op. Cit. p.51. Interessante ressaltar que, como já colocamos no capítulo II, a escola de Saint-Victor era um dos centros de misticismo do século XII, mas também seus membros, Hugo e seu confrade André, refletiam sobre a união conjugal. 389 IDEM, ibidem. p.68. 390 Cf. IDEM, Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p. 49. 391 HEER, F. Op. Cit. p.115. 392 L’HERMITE-LECLERCQ, P. A ordem feudal (séculos XI-XII), p.320. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 273-329.

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Entretanto, nesta época dominada por homens, as abadias destinadas às mulheres se

multiplicaram ao longo do século XII, e algumas delas exerceram importantes funções dentro

das instituições monásticas, apesar das suspeitas masculinas que limitavam sua esfera de ação.

O título de abadessa conferia à mulher um certo poder, controlando as religiosas que estavam

sob a sua autoridade, mas também os homens que as serviam. Tal situação é retratada no lai

de Freixo, Freixo foi deixada em uma abadia que acolhia freiras sob o comando de uma

abadessa, a presença de um porteiro também é mencionada, este conta que achou uma criança

e a abadessa lhe ordena (L’abeesse li comanda, v.216) trazer a menina.

Apesar de séculos antes Gregório Magno ter intercedido a favor dos mosteiros

femininos, tanto que destinou vários edifícios em Roma, doados para instituições masculinas,

às abadessas e, além disso, exortando o clero a proteger as instituições femininas393,

percebemos uma certa resistência dos homens tanto em encarregar-se das comunidades

femininas quanto de aceitaram o seu comando, Robert d’Arbrissel (c.1047-1117), por

exemplo,

quando as acolhia em seu grupo, arrastando-as em seu séquito como Jesus havia feito, quando as colocava no mosteiro misto de Fontevraud em posição dominante em relação aos monges, prescrevendo a estes rebaixarem-se a servi-las, imporem-se essa humilhação a fim de ganhar o amor de Cristo, esposo delas, assim como o cavaleiro que serve cortesmente a dama espera ganhar o amor do marido, seu senhor.394 (grifo nosso)

A iniciativa de Robert d’Arbrissel parecia transgredir a ordem universal mas, o que é

importante ressaltar é que as mulheres passaram a exigir maior espaço no terreno religioso e

encontraram-o, ao que parece, nos movimentos heréticos, precisamente no catarismo, e nos

movimentos “quase heréticos”, como os das beguinas, não aceitas como Ordem. Sendo assim,

a Igreja viu-se forçada a atender as necessidades femininas, abrindo para elas mosteiros395.

Entretanto, segundo Paulette L’Hermite-Leclerc396, se procuramos demonstrar uma

revalorização, ou ainda, uma promoção feminina na Idade Média Central, este não seria o

melhor caminho, visto que, parece haver uma degradação dos conventos femininos deste

período quando comparamos aos dos séculos VII-VIII. Abadessas, como Hildegarda (1098-

1179) ou Heloísa (1100-1164), admitem de início a inferioridade de seu sexo, idéia expressa

393 Ver as três diferentes fases da história do monaquismo feminino WEMPLE,S. F. As mulheres do séuclo V ao século X, p.249. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 227-271. 394 Cf. DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p. 49. 395 IDEM. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. p.98. 396 L’HERMITE-LECLERCQ, P. A ordem feudal (séculos XI-XII), p.320-321. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 273-329.

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claramente no século seguinte na frase da grande mística Gertrudes de Helfta (1256-1301): “A

fraqueza das suas virtudes é a do seu sexo”. As restrições às mulheres continuam e até se

reforçam, para ilustrar esta afirmação vale colocar que, os poucos privilégios de ordem

sacerdotal ou litúrgica que algumas abadessas gozavam, foram revogados por Inocêncio III (

papa entre 1198-1216).

De qualquer maneira, como mencionamos na página anterior, no papel de abadessa, as

mulheres desfrutavam na Igreja de um notável poder. Como afirma Régine Pernoud,

“algumas abadessas eram autênticos senhores feudais, cujo poder era respeitado de modo

igual ao dos outros senhores; algumas usavam báculo, como o bispo; administravam muitas

vezes vastos territórios com aldeias, paróquias”397, além disso, as religiosas, em sua maioria,

eram extremamente instruídas, podendo competir em conhecimento com os monges mais

letrados.

Mas não só como abadessas as mulheres encontravam-se em uma posição de destaque.

No campo literário, houve mulheres trovadoras (evidente que em número muito menor que os

homens), tal como a condessa Beatriz de Die, a filha de Beatriz, Tiberga, Castellox, Clara de

Anduse, Isabella de Malaspina, Marie de Ventadour e, claro, Maria de França398. Quanto ao

campo político e econômico, o poder feminino restringido ao interior da casa, alargava-se

com a ausência do marido:

obrigadas por vezes a gerir sozinhas uma derrota, a ir pedir nas redondezas as moedas de um resgate, e repreendidas, como foi a esposa de Sulpice II de Amboise, por não ter sabido negociar habilmente a libertação de um esposo cativo. E o poder verdadeiro da dama é mal avaliado se se esquece que o marido cavalgava alhures a maior parte do tempo, fora de alcance.399

A título de ilustração, Matilde, durante a ausência de seu marido - Guilherme, o

Conquistador (1025-1087) - na Inglaterra, governou firmemente a Normandia. Mas existiram

mulheres que assumiram o poder não somente em razão da falta, doença ou morte do

conjugue, como é o caso de Hermengarda (c. 1127/9-1196/7), condessa de Narbonne, que

com a morte de seu pai Aimery II,

397 PERNOUD, R. O mito da Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, 1978. p. 95. 398 Cf. HEER, F. Op. Cit. p. 339. Vale colocar que, na literatura, havia um gênero poético associado à mulher, o qual Pierre Le Gentil chamou “canção de mulher”, mas conhecido tradicionalmente por “canção da tela”, que era cantada no gineceu, no local onde se fiava. LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Op. Cit. v.2, p. 43. 399 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op.Cit. p.111. Quanto a este ponto, Jacques Le Goff faz algumas ressalvas afirmando que, embora muitas vezes se pretendeu que as cruzadas resultaram no aumento dos poderes e dos direitos das mulheres, deixadas sozinhas no Ocidente, “o estudo dos actos jurídicos prova que, no que pelo menos respeita à gestão dos bens do casal, a situação da mulher piorou do século XII para o século XIII”. LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval.Op. Cit. v.2, p. 44.

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dirigiu suas terras e as suas tropas durante cinquenta anos, sendo chefe do partido real francês no Sul de França em oposição aos ingleses – uma Joana d’Arc de sangue nobre. Hermengarda casou várias vezes, mas os seus maridos não partilhavam do governo. Ela dirigiu numerosas batalhas em defesa dos seus territórios, foi patrona dos trovadores, protetora da Igreja, e ficou célebre como árbitro e juiz em casos difíceis de lei feudal400.

Poderiamos citar outros nomes de grandes damas governantes, de grandes regências

maternas, mas para não nos estendermos demais, fiquemos com esses dois exemplos que,

apesar de marcantes, constituem exceções na sociedade medieval. Punir e comandar, na esfera

pública, eram consideradas prerrogativas masculinas, assim como erguer uma espada, símbolo

do poder. Outra proibição imposta às mulheres era fazer correr sangue: guerrear. Sendo assim,

uma herdeira, como Eleonora de Aquitânia, deveria casar-se para que o marido assumisse o

comando e manejasse a espada em seu nome401.

Isto não pode nos levar a supor que as mulheres destes séculos eram apenas

espectadoras das guerras, muitas exerceram o papel de mediadora e até de instigadora de

conflitos. Exageros a parte, a afirmação de Dominique Barthélemy mostra-se interessante:

“Porque tem ares ‘privados’ e porque esse domínio se encontra submetido a um poder

feminino inegável (senão completo), a guerra feudal é também um autêntico assunto de

mulheres”402.

Maria de França faz referência a constante ausência do marido nos lais de Guigemar,

de Equitan, do Homem-Lobo, de Lanval, de Yonec e de Eliduc. Nos Lais, esses afastamentos,

embora freqüentes, eram breves, sendo a caça a principal razão. Entretanto, no lai do Homem-

Lobo, a Dama, ao ocasionar o desaparecimento prolongado do marido, parece abster-se de

400 HEER, F. Op. Cit. p. 337. Vale lembrar, conforme colocamos no capítulo II, que os vinte e um “julgamentos de amor” colocados no Tratado do Amor Cortês por André Capelão, cinco são atribuídos a Hermengarda de Narbonne. 401 DUBY, G. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Op. Cit. p.144. Marc Bloch, em sua análise sobre “As transformações do feudo, vistas através do seu direito sucessório” coloca que, permitir às mulheres a sua herança, contradizia a natureza do feudo. O que estava em jogo não era a capacidade feminina de exercer os poderes do comando – visto que não causava espanto uma grande dama presidir à assembléia da baronia enquanto o marido estava ausente - , mas o fato das mulheres não pegarem em armas. Interessante o fato de Ricardo Coração de Leão, no final do século XII na Normandia, abolir o costume que permitia a vocação hereditária das mulheres. Segundo o autor, os “direitos que se esforçavam por conservar ciosamente à instituição o seu caráter original – a doutrina jurídica lombarda, os consuetudinários da Síria latina, a jurisdição da corte real alemã – nunca deixaram de recusar, em princípio, à herdeira aquilo que concediam ao herdeiro [...]. Na verdade, mesmo onde a exclusão subsistia em teoria, cedo sofreu, na prática, numerosas exceções [...]. Em França e na Inglaterra normanda, nesse tempo, há muito que se tinha resolvido, quando não existia filho varão, reconhecer às filhas e até mesmo a simples parentes femininos, se não existissem masculinos em grau igual, os mesmos direitos sobre os feudos que tinham sobre os outros bens. E isto, porque depressa tinham compreendido que, se a mulher fosse incapaz de servir, o marido o faria em seu lugar.” BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1973. p.228. 402 BARTHÉLEMY, D. Parentesco, p.145. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 96-161.

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assumir a gestão dos bens do casal ao casar-se com outro homem. Já no lai de Eliduc, o

marido decide partir de sua terra por algum tempo para oferecer seus serviços como

mercenário, e incumbe seus homens e seus amigos de guardarem sua esposa, aqui também

não encontramos menção do governo feminino.

No lai O infortunado, contudo, ignoramos qualquer alusão à tutela masculina, sendo

assim, a Dama parecia exercer o domínio de seus bens, fato que pode ser atestado pelo

episódio no qual a Dama assiste ao torneio do alto de uma torre, símbolo de poder. Entretanto,

a personagem deste lai pertence à sociedade cortês, que espelha a sociedade feudal, na qual a

existência feminina é, de uma maneira ou de outra, determinada pela ideologia clerical e

aristocrática.

Livre das imposições sociais determinadas pela sociedade masculina encontra-se a

fada do lai de Lanval, que pertence ao Outro Mundo, onde prevalece uma sociedade

matriarcal403. Neste lai a fada é uma mulher sem senhor – pai, irmão, ou marido -,detentora de

grandes riquezas, e possui um liberdade de ação e locomoção imcomparável às outras

personagens femininas. Mas ligada ao Outro Mundo, não exerceria poderes, tidos como

masculinos, dentro da sociedade arturiana, cenário do conto.

De qualquer maneira, não é nos aspectos políticos, jurídicos, administrativos e/ou

econômicos que encontraremos as personagens femininas dos romances, no caso os Lais de

Maria de França, em uma posição dominante e atuante, visto que as mesmas permanecem

distantes dessas esferas.

Se houve uma revalorização ou ainda uma promoção da mulher no século XII, é na

relação amorosa cortês, proposta pela literatura, no culto madeliano e no culto mariano que

iremos, em particular, encontrá-la.

Hilário Franco Júnior coloca que a valorização da mulher e inclusive da criança, como

também a mudança da família patriarcal para a família conjugal, tem a ver com o

desenvolvimento do individualismo ocasionado pela revalorização do próprio ser humano.

Segundo o autor, a melhor expressão desta revalorização do indivíduo está na crescente

humanização da imagem de Cristo. O Deus Pai passa a ceder lugar à figura do Deus Filho na

espiritualidade popular e, com isso, ocorre a redescoberta de Maria404.

O culto mariano, em expansão desde a época carolíngia, foi ganhando destaque na

cristandade no final do século XI, “desde que santo Anselmo viu na Mãe de Deus a nova Eva,

403 MARKALE, J. La femme celte. Paris: Éditions Payot, 1989. p.105. 404 FRANCO JR, H. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. 2o ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. p.97 e154.

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a anti-Eva. EVA, AVE: reviravolta”405, mas foi sobretudo a partir do século XII que seu culto

impôs-se. Os temas principais da arte urbana, ou seja, da arte das catedrais de Paris, nas suas

formas que denominamos góticas, celebram a soberania de Cristo e da Virgem e também

podemos dizer que, incentivado por São Bernardo, a arte cistercience tornou-se uma arte

marial como a das catedrais de França, todas dedicadas a Nossa Senhora406.

A Virgem Mãe tornou-se a grande intercessora diante de seu Filho, sua

individualidade superou a coletividade dos santos que, no decorrer da Idade Média, foram se

especializando407. Além disso, a figura de Maria, que antes de tudo é uma mulher, valorizou

ainda mais a virgindade, como forma de consagração a Deus, e a maternidade, e possibilitou

pouco a pouco a entrada de outras mulheres no campo da devoção: as santas, santas- virgens

e, menos numerosas, santas-mães408.

Não podemos considerar, no entanto, que a emergência do culto mariano elevou o

status das mulheres na sociedade medieval, visto que Maria, Mãe que conservou seu estado

405 DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.162-163. AVE/EVA era um trocadilho muito conhecido na Idade Média e simbolizam, respectivamente, a redenção e a vida por meio da Virgem Maria e a condenação e a morte por causa de Eva. 406 IDEM. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Trad. José Saramago. Lisboa: Editora Estampa, 1979. p. 100 e 127. 407 FRANCO JR, H. Op. Cit. p.154. LE GOFF, J. Cena 3. A Idade Média: E a carne se torna pecado... p. 62. In: SIMONET, D. et al. Op. Cit.. p. 55-69. 408 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.98. No século XI-XII, mais especificamente entre 1050-1100, o número de mulheres aceitas como santas foi muito reduzido, somente no século XIII ocorre de fato uma feminização da santidade e, ao longo da Idade Média, foram canonizadas 460 mulheres de nacionalidade distintas:

Tabela retirada de SOUSA, I. de. A mulher na Idade Média: a metamorfose de um status. Revista da FARN/Faculdade Natalense para o desenvolvimento do Rio Grande do Norte, Natal, v. 3, n. 1/2 (2003/2004), p.159-173, 2006. p.162.

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virginal, era considerada uma exceção entre todas as mulheres e representava um arquétipo

inigualável e inimitável. Sendo assim, a Virgem simbolizava mais a mulher ideal enquanto as

mulheres reais eram mais associadas à figura de Eva e, conforme Jacques Dalarun:

Por razões de estratégia eclesial, de disciplina clerical, de promoção de uma nova moral, Eva é nesta viragem dos séculos XI e XII mais sobrecarregada do que é habitual: ela é a mulher de que o clérigo se deve afastar, a mulher de pouca condição de que se devem purificar as uniões principescas, a filha do Diabo. A Virgem-Mãe, em época de contracção das linhagens, é projectada pelos homens para fora do alcance das mulheres terrestres.409

Mais próxima das mulheres reais, ou seja, entre a EVA e a AVE, estava Maria

Madalena, que foi elevada acima dos santos militantes da Idade Média feudal por Abelardo410,

defensor das mulheres. Seu culto foi impulsionado nos séculos XI e XII, e o centro religioso

de Vézelay o comprova; este lugar tornou-se um ponto muito forte de peregrinação e era onde

as “relíquias de Maria Madalena” se concentravam.

Vale ressaltar que, no relato evangélico, entre todas as mulheres citadas, Madalena é a

mais mencionada (dezoito vezes), outras duas personagens femininas são fundidas a ela na

cristandade latina – na grega, a distinção prevaleceu - , de acordo com a afirmação feita no

século VI pelo papa Gregório Magno: “a mulher designada por Lucas como pecadora,

chamada Maria por João, é a mesma que Marcos afirma ter sido libertada dos sete

demônios”411.

De qualquer maneira, Maria Madalena era colocada como uma pecadora pública

arrependida que teve a graça de ser a primeira pessoa a ver Cristo ressuscitado, que a incube

de anunciar a Ressurreição aos seus discípulos. Sendo assim, Madalena torna-se a santa

patrona das mulheres pecadoras arrependidas, um agente de salvação, o que torna viável sua

relação com o Purgatório, lugar destinado aos pecadores, mas que possibilita o

arrependimento e a esperança.

Mas assim como o culto mariano, o culto madeliano parecesse não ter ocasionado uma

promoção da condição feminina. Para justificar esta afirmação, Georges Duby nos lembra que

no interior da basílica construída por Maximino sobre o mausoléu de Madalena, o acesso das

mulheres era estritamente proibido412.

409 DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.53. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.29-63 410 HEER, F. Op. Cit. p.115. 411 Apud DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p.34. Ver também DALARUN, J. Olhares de clérigos, p.47. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. v.2, p.29-63 412 Existia uma querela envolvendo o lugar em que o corpo de Maria Madalena repousava. Em 1037, Geoffroi foi eleito abade de Vézelay e para restaurar o mosteiro, onde as práticas se degredaram, era preciso faze-lo

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Mas qual a relação destes cultos com a nossa fonte, ou melhor, de maneira mais geral,

com o amor cortês? A devoção do cavaleiro pela Dama mundana e mortal assemelha-se à

devoção dos devotos por Maria Madalena e, mais especificamente, pela Virgem, apesar de

suas implicações maternas e divinas. Tal semelhança levou alguns historiadores, conforme

coloca José D’Assunção Barros, a considerar o amor idealizado à Dama como uma versão

secularizada do culto mariano: a “Virgem Maria empurrada para o céu, e a Dama idealizada

empurrada para a abstração cortês”413.

No lai dos Dois Amantes, o jovem cavaleiro para conseguir ficar com a donzela

precisava cumprir a prova imposta pelo rei, pai de sua amada: carregar sua filha nos braços

até o topo do monte fora da cidade. O donzel sofria grande pena pelas restrições que

impediam a realização de seu amor. Embora muitos homens valentes tenham tentado realizar

a tarefa sem sucesso, o donzel pede autorização do rei para subir ao monte com sua filha nos

braços. O cavaleiro tinha uma poção que lhe daria forças, mas preferiu prosseguir com a

prova sem tomá-la. Concluído o percurso, tombou e não mais se ergueu.

Portanto, na tentativa de aliviar a aflição e o tormento causado pelo amor, o jovem

acaba morrendo. Paralelamente a este conto, quantos peregrinos não pagaram com a vida a

busca de salvação nos caminhos de Santiago de Compostela, cujo ponto de partida, no

Nordeste da França, era o mosteiro consagrado a Madalena, Vézelay, que no período da

escrita dos Lais era um importante centro de peregrinação?

Mas se queremos encontrar uma “versão secularizada” do culto mariano, temos que

recorrer ao lai de Eliduc. Eliduc devota-se à donzela e resiste a união carnal, que não está de

acordo com as leis cristãs. A donzela, ao saber que Eliduc tinha uma esposa, cai desfalecida,

parecendo morta. Grande dor sofre o cavaleiro, que preferia ter morrido com ela. Queria

enterra-la “com grande, com belo serviço/ em cemitério abençoado;/ filha era de um rei, disso

tinha direito” (vv.880-802). Eliduc decide levá-la a uma capela localizada em uma floresta e

habitada por um santo eremita:

“A ele, disse, a carregarei, em sua capela a enterrará:

prosperar. Ora, sabemos que a existência de relíquias ocasionava a promoção de um lugar, sendo assim, Geoffroi manda redigir uma coletânea de milagres com o objetivo de lançar a peregrinação. Nas palavras de Duby, Geoffroi foi o inventor das relíquias. Entretanto, uma outra vida de Maria Madalena circulava e situava o seu túmulo perto de Aix. Nela consta que Madalena, após a Pentecostes, tinha viajado na companhia de Maximino, um dos 72 discípulos, e desembarcado em Marselha. Ambos se propuseram a evangelizar a região de Aix e após sua morte, Maximino colocou seu corpo num sarcófago de mármore, no qual se encontra esculpido, em uma de suas faces, a cena da refeição na casa de Sião. DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p.42-45. 413 BARROS, J. D'A. O amor cortês. Rio de Janeiro: 2003, p. 49-50.

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de sua terra tanto doará, uma abadia fundará, fará um convento de monges ou de monjas ou de cônegos, que todos os dias rezarão por ela; Deus lhe tenha boa misericórdia!” (Eliduc vv. 895-902)

Chegando na capela, notaram que o santo eremita havia falecido. Os homens de Eliduc

propuseram cavar uma sepultura para colocar sua “amiga”. Eliduc não aceitou e disse que

primeiro pediria conselho aos mais sábios do país sobre como poderia enobrecer este lugar

construindo uma abadia ou um mosteiro. Enquanto isso, ela seria deixada diante do altar,

recomendada a Deus. Quando chegou a hora de partir, Eliduc julgou que iria morrer de

tristeza. Beijou-lhe os ollhos e a face:

“‘Bela’, disse ele, ‘que Deus não permita que eu possa mais armas portar nem o século viver nem durar! Bela amiga, mal me vieste! Doce amada, mal me seguiste! Bela, você serias rainha agora, se não fosse o amor leal e perfeito, com que me amastes lealmente. Muito tem por vós meu coração doido. O dia em que eu vos sepultar, ordem de monge tomarei; sobre vossa tumba cada dia farei recitar minha dor’” (Eliduc vv. 938-950)

Eliduc voltou para a casa onde sua esposa o esperava. Mas Eliduc não se alegrava e

nem dizia palavras afetuosas e todos os dias, após ouvir a missa, ia à capela, onde encontrava

sua donzela desfalecida. Maravilhava-se ao vê-la conservar a cor branca e vermelha, ainda

que um pouco pálida. “Com muito angústia pranteava/ e por sua alma rezava” (vv. 975-976).

A suposição de que a adoração da Dama tem origem na adoração de Nossa Senhora,

invenção típica dos românticos, não tem base histórica. Segundo Arnold Hauser,

A adoração da Virgem não inspira a nova concepção do amor; pelo contrário, chama gradualmente a si a concepção cavaleiresca do amor cortesão. Finalmente, a dívida da concepção do amor cavaleiresco aos místicos, e especialmente a Bernardo de Clairvaux e Hugo de São Vítor, não é de, forma alguma, tão clara como primitivamente se supôs.414

414 HAUSER, A. História social da literatura e da arte. 2v. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.1. p.302-304.

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Podemos encontrar um maior desenvolvimento desta idéia nos escritos de Georges

Duby415. Segundo o autor, o culto a Maria, que invadiu a cristandade latina desviando-a para

valores femininos, e o culto a Dama, exaltadas nas cortes cavaleirescas, iniciam-se no mesmo

momento mas provém de movimentos distintos, embora, correspondem-se. Era a descoberta

do amor, cortês e marial, na França de fins do século XI. Diante disto, a Igreja renuncia, ou

melhor, reprova o amor cortês, predominantemente adúltero e com uma faceta carnal, e busca

transferir o desejo e a exaltação da Dama terrena para as devoções de santas, em especial, da

Nossa Senhora. Georges Duby não esconde a ambigüidade desta ação e retifica que prelados,

em especial, os monges, foram incumbidos de captar as correntes de sensibilidade da corte e

desviá-las para as liturgias da Igreja, acentuando o erotismo carnal.

Bernardo de Claraval, por exemplo, com uma grande carga erótica, não desenvolveu a

idéia de amor místico em seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos? Como não encontrar

também em alguns clérigos a celebração das bodas com a Virgem e até a exaltação de seus

atrativos corporais? Ora, Adam de Perseigne (c. 1145–1221), em uma de suas cartas, exorta

um adolescente a tomar a Virgem por mãe, por ama, por esposa e também por amante e a

servi-la como o amante cortês serve a sua amiga. Gautier de Coincy (c.1177-1236), por muito

tempo considerado um dos maiores poetas da língua francesa, em seus versos presentes na

obra Miracles de Notre Dame, celebra Maria enquanto mulher, cujos seios são atraentes, as

maminhas doces, redondas e belas. Ciumenta, porém generosa, ela perdoa o apaixonado

arrependido que pretendeu uma boda terrena e se unirá a ele no Paraíso, em seu quarto.

Interessante que em onze dos doze lais de Maria de França não encontramos a carga

erótica presente em escritos que celebram a união mística. As qualidades das Damas são

descritas em todos os lais, exceto no lai de Madressilva, o que não é estranho, já que Isolda

dispensava comentários da autora, outros já haviam feito.

Os atributos femininos presentes na fonte podem ser divididos entre elementos morais

e definidores do caráter aristocrático e elementos físicos – beleza, como podemos observar

nos trechos seguintes: “uma dama de alta linhagem,/nobre, cortês, bela e prudente”(Guigemar

vv.211-212), “Tinha desposado mulher valorosa/ e que combinava muito belo semblante”

(Homem-Lobo vv.21-22), “De alta linhagem era a donzela,/ prudente e cortês e extremamente

bela” (Yonec vv.21-22), “prudente, cortês e distinguida;/ uma maravilha como se conduzia/

segundo os usos e as maneiras.” (Rouxinol vv.14-16), “Ele tinha uma filha, bela/ e muito

415 DUBY, G. O Tempo das Catedrais, a arte e a sociedade 980-1420. Op. Cit.. p. 127, 206, 253-254. DUBY, G. Eva e os padres – Damas do século XII. Op. Cit. p.162-165.

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cortês donzela” (Milun vv.23-24), “O rei tinha uma filha, bela/ e muito cortês donzela” (Dois

Amantes vv.21-22), “Guilliadun tinha por nome a donzela/ no reino não tinha mais bela”

(Eliduc vv.17-18),

“Na Bretanha em Nantes vivia uma dama que muito valia pela beleza e pela sabedoria e pelo bom comportamento. [...] A Dama, da qual eu quero contar, que tanto foi requisitada de amar por sua beleza, por seu valor, era cortejada noite e dia.” (O infortunado vv.9-12, vv.29-32)

“Quando ela chegou na idade que a Natureza forma a beleza, em Bretanha não havia tão bela nem tão cortês donzela. Nobre era e de boa escola na aparência e nas palavras. Ninguém a via que não a amasse e maravilha não a considerasse.” (Freixo vv.241-246)

Uma descrição física menos genérica e mais pormenorizada ocorre no lai de Equitan,

no qual a autora, após colocar que a Dama era muito bela e de boa educação, afirma que a

Natureza formou seu corpo harmonioso, seu rosto era belo e rosado, com olhos claros, uma

boca bonita e nariz bem feito, cabelos louros e reluzentes (Equitan vv.31-39). Essas

características são recorrentes nas representações literárias e por isso tornaram-se um topos

que “fixa para o corpo feminino os componentes de uma beleza canônica”416. Vale colocar

ainda que na “percepção do corpo, o cabelo é um elemento importante da consciência de si e

de representação da pessoa. Ser louro é um elemento canônico, como o demonstram as

inúmeras denominações dessa cor”417, privilegiada nas obras narrativas.

No lai de Lanval, o adjetivo louro intenso, também é utilizado na descrição dos

cabelos da personagem, cuja beleza é colocada como centro da narrativa, visto que, para se

inocentar das acusações da rainha, Lanval precisa comprovar a existência e também a beleza

sem par de sua “amiga”.

Diferente dos outros lais, nos quais os atributos femininos aparecem logo que a autora

introduz a protagonista, no lai de Lanval a autora se retem ao elogio meticuloso da

personagem em dois momentos, o primeiro quando ela encontra Lanval, o segundo quando

416 RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 357. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391. 417 IDEM, ibidem. p. 360.

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ela aparece na corte do rei Artur. Segundo o relato, no palácio e mesmo em todo século, não

havia mais bela. Ora, como já colocamos, está figura feminina era uma fada, e sua beleza

imcomparável sinaliza sua natureza sobrenatural, tanto que a associação entre a palavra fada e

beleza está presente no verso 704 do lai de Guigemar: “que de beleza parecia uma fada”.

No que se refere à caracterização da personagem feminina, o lai de Lanval apresenta-

se com uma exceção perante o restante da obra devido a carga de sensualidade presente na

descrição da fada, que aparece parcialmente despida para Lanval:

“Dentro desta tenda encontra-se a donzela. Flor-de-lis e rosa nova, quando se abrem no tempo do verão, ela ultrapassa em beleza. Ela está sobre um leito muito belo (os lençois valiam um castelo) em sua camisa somente. Tinha o corpo muito bem feito e gentil. Um caro manto de branco arminho, coberto de púrpura de Alexandria, tinha para lhe aquecer sobre ele [o corpo] lançado; deixava descobertos o flanco, a face, o colo e o peito: era mais branco que a flor do espinheiro.” (Lanval vv. 93-106)

Nestes versos entrevemos a abundância, a nudez, o ócio e também uma certa liberdade

sexual. Segundo Jacques Le Goff, o maravilhoso medieval tem funções compensatórias e

estabelecem um mundo às avessas, um Paraíso terrestre, no qual inexistem regras e limites418.

Neste sentido, a exposição do corpo da fada não encontra restrições como as descrições das

outras personagens dos Lais pertencentes a sociedade feudal que, como vimos no subcapítulo

precedente, associa o corpo feminino ao pecado da carne, a Luxuria, por isso propõe esconde-

lo. Ainda que de maneira subentendida, a condição das mulheres nos Lais, diferente da fada,

permanece oprimida pela misoginia medieval.

Porém, como demonstramos nos versos acima, a autora dispensa repetidamente

virtudes, como a cortesia e a beleza, às suas personagens femininas que, contendo esses

atrativos, conquistam o amor dos cavaleiros. Estes, como vassalos do amor, prestam

homenagem lígia à mulher, colocando-se na sua dependência, e proferem declarações

amorosas com as quais se comprometem a serem seu “homem”. No lai O infortunado

encontramos um notável exemplo da vassalagem amorosa. A Dama, assim como um senhor

que possui vários vassalos, é cortejada por quatro cavaleiros:

418 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval.Op. Cit. p. 36.

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“Esses quatros amavam a dama e muito se esforçavam; por ela e para seu amor ter nisso punha cada um o seu melhor. Cada um para si a requeria e todo seu empenho nisso punha; não havia aquele que não cuidasse que melhor do que os outros se sairia. A dama foi de muito grande senso. Em respeito deixou a questão pendente para saber e para questionar qual deles seria melhor amar. Tanto eram todos de grande valor, não conseguia eleger o melhor. Nem queria três perder por um: belo semblante fazia a cada um, prendas de amor lhes dava, mensagens lhes enviava; cada um dos outros sabia. Mas desistir nenhum podia; por bem servir e por rogar cada um cuidava sair-se melhor. Nas reuniões dos cavaleiros cada um queria ser o primeiro de bons feitos, se pudesse, para a dama agradar. Todos a tinham por amiga, todos ostentavam suas prendas, anel ou manga ou pendão, e cada um brandava seu nome.” (O infortunado vv. 41-70)

Uma oportunidade para se destacar aos olhos da Dama surgiu com a proclamação de

um torneio. Cavaleiros de várias regiões vieram para enfrentar os quatro enamorados. Estes

lutavam bravamente; a Dama admirava as façanhas de seus pretendentes, sem saber qual deles

devia apreciar mais. Mas, imprudentemente os cavaleiros afastaram-se de suas gentes e se

comprometeram: três foram mortos e um foi gravemente ferido. Portanto, para ganhar a

Dama, os cavaleiros brandindo seu nome nos combates, demonstraram um esquecimento de

si, uma abnegação no serviço. Comportamentos estes que o senhor esperava de seus vassalos.

Por fim, a Dama ficou inconsolada com o ocorrido e disse que faria um lai sobre o ocorrido, o

chamaria “As quatro mágoas”. O sobrevivente, porém, aconselha a Dama a denominar o lai

“O infortunado” , visto que, muito sofria ao vê-la assim.

Na perspectiva da nossa investigação, quer dizer do ponto de vista vassálico,

encontramos no lai de Guigemar pontos, a nosso ver interessantes, que nos permitem fazer

uma comparação com o ritual simbólico da vassalagem.

Conforme Jacques Le Goff, a palavra, o gesto e os objetos são por excelência três

categorias de elementos simbólicos que os ritos vassálicos colocam em jogo: “O senhor e o

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vassalo pronunciam palavras, fazem gestos, dão ou recebem objetos que, para utilizar a

definição augustiniana do signum-símbolo, ‘além da impressão que comunicam aos sentidos,

fazem-se conhecer algo mais’”419.

No lai de Guigemar, o contrato amoroso entre os amantes inicia-se quando Guigemar

exprime sua vontade de tornar-se “amigo” da Dama, assim como um vassalo se coloca como

o “homem” do senhor. A Dama, após uma breve resistência, lhe concede seu amor, e

Guigemar a beija. Nas palavras de Jacques Le Goff, “é sabido que no amor cortês o homem é

o vassalo da mulher e que o beijo é um fator essencial do sistema simbólico cortês”420.

Também o senhor e o vassalo trocam um beijo ritual, o osculum, conforme verificamos em

uma carta de foral de 1123, conservada no cartuário de S. Nicolau d’Angers: “e eles deram-

lhe um beijo para marcar essa doação pela fé”421.

Mas a Dama quer outra garantia de fidelidade:

“A boca lhe beija e o rosto; depois disse-lhe: ‘Belo, doce amigo, meu coração me diz que vos perco; vistos seremos e descobertos. Se você morre, eu quero morrer; e se vivo podeis partir, vós encontrareis outro amor e eu ficarei com minha dor.’ ‘Dama’, disse ele, ‘não diga isso! Jamais não tenha eu alegria nem paz, quando em direção à qualquer outra voltar! Não tenhais disso nenhum medo!’ ‘Amigo, disso me assegureis! Vossa camisa entregar-me! No pano debaixo farei um nó; dispensa vos dou, que assim seja, de amar aquela que desfazer e que desatar o saiba’” (Guigemar vv.545-562)

Guigemar aceitou a prosposta para lhe garantir o seu amor. Mas, se Maria de França

propõe a igualdade no amor, na Dama foi colocado um cinto e ela também só poderia amar

aquele que conseguisse abrir a fivela sem despedaçá-la nem rompê-la.

A presença do cinto e da camisa assemelha-se aos objetos simbólicos presentes na fase

final de entrada na vassalagem, ou seja, a investidura do feudo, momento no qual o senhor 419 LE GOFF, J. O ritual simbólico de vassalagem, p.355. In: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Trad. Maria Helena da Costa Dias. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. p. 325-387. 420 IDEM, ibidem, p.328. 421 Apud ibidem, p.332. No texto de Galbert de Bruges, no qual encontramos a descrição das homenagens prestadas, em 1127, a Guilherme, o novo conde da Flandres, Jacques Le Goff constata uma aparente anomalia, pois o beijo é colocado na primeira fase da entrada em vassalagem - a homenagem, em vez de estar presente na segunda fase - a fé. Textos, principalmente do século XIII, sublinham que o beijo é dado “em nome da fé”.

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entrega um objeto de valor simbólico ao seu vassalo. Muitas vezes estes objetos tem relação

com a coisa transmitida. Ora, o cinto e a camisa servem para selar o compromisso de ambos e

tem relação direta com o corpo.

Antes de prosseguirmos, abriremos um parêntese para colocarmos algumas

observações, a nosso ver, interessantes. Ao serem separados, a Dama e Guigemar

reencontram-se no castelo de Meriaduc, mas o reconhecimento um do outro se dá antes pela

presença dos sinais (camisa e cinto) do que pela aparência. Guigemar, ao ver a Dama,

questiona se é sua amiga, mas logo afirma que não poderia ser ela, visto que “mulheres se

parecem muito” (v.779). Depois que a Dama desfez o nó de sua camisa, Guigemar a

reconhece, mas ainda não tem plena certeza, pede para ver o cinto. É a leitura dos sinais que

possibilita a identificação.

Neste sentido, um fato estranho que Danielle Régnier-Bohler422 constata em suas

análises sobre as ficções é que os personagens geralmente não se reconhecem pelos traços.

Segundo a autora, nas narrativas em que a célula familiar é rompida para posteriormente ser

restaurada, freqüentemente os reencontros entre pais e filhos se dão antes por um tropismo

afetivo e, haveriamos de acrescentar, pela leitura de sinais, do que pela leitura dos traços. Não

se restringindo apenas a reencontros entre pais e filhos, no lai de Freixo, de Milun, do

Homem-Lobo e, como demonstramos, no lai de Guigemar, podemos constatar esta

observação.

Fechando parêntese, o que estavamos procurando demonstrar, utilizando como

exemplo o lai de Guigemar e, anteriormente, O Infortunado, é que na temática do amor

cortês, a mulher ocupa uma posição dominante em relação ao cavaleiro. Existe uma

transposição da relação vassálica verificável nos Lais de Maria de França. Conforme já

colocamos nos capítulo precedentes, a vassalidade incutiu a relação amorosa presente na

literatura cavaleiresca: a mulher passava a ocupar o lugar do senhor, era servida e devotada

pelo amor do cavaleiro.

Esta inversão das relações sociais normais proposta pelo amor cortês tornou-se um

ponto de conflito da historiografia. Um setor historiográfico defende que o realce da figura

feminina na literatura cortês é um sintoma de uma posição mais favoravél à mulher na

sociedade, outros historiadores, porém, sustentam que o jogo do amor cortês foi o responsável

pela melhoria da condição feminina. Confrontando-se com estas vertentes, Georges Duby

422 RÉGNIER-BOHLER, D. Ficções, p. 382. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (Dir) Op. Cit. v.2, p. 311-391.

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interpreta este fato de outra maneira; o autor parece não ver uma relação direta entre o amor

cortês e uma possível promoção feminina na época feudal.

Para Georges Duby423, o amor cortês é um jogo de homens, um equivalente do torneio,

o qual tinha grande popularidade na época da manifestação desta literatura. Neste jogo, assim

como no torneio, o homem é colocado a prova e arrisca a sua vida para aumentar seu valor

perante os olhos da Dama que deseja capturar.

A Dama era na verdade um engodo que devia resistir por certo tempo às investidas do

cavaleiro, e só se dar progressivamente, pois assim seu pretendente aprenderia a dominar-se, a

controlar e disciplinar seu desejo. Portanto, era um jogo educativo, não só para o homem, mas

também para a mulher, que deveria reprimir os impulsos próprios do seu sexo.

Em sua análise sobre o romance de Tristão e Isolda, Georges Duby afirma que na

literatura cavaleiresca, os heróis são homens, as figuras femininas desempenham apenas

papéis secundários, porém, importantes, visto que, são indispensáveis ao desdobramento da

intriga e servem para destacar e valorizar as virtudes viris masculinas. Assim, conclui que o

amor cortês, apesar de toda sua aparência de culto à mulher, nada mais é do que um modelo

de amizade viril.

A príncipio, temos que concordar com Georges Duby, posto que, nos Lais, os

cavaleiros, ao buscarem o amor de sua amada, enfrentam obstáculos e, muitas vezes, realizam

proezas grandiosas ao longo dos contos, exercendo assim o papel de protagonista.

Uma fato que, acreditamos, vem de encontro com esta constatação esta na ausência de

nomes próprios para a maioria das personagens femininas, dos doze lais, apenas três as

nomeiam: o lai de Freixo, Madressilva e Eliduc. Também não existem uma grande variedade

de termos para designá-las. Os mais recorrentes são dama, femme, dameisele e pucele, que

indicam a situação matrimonial das personagens. Outros termos presentes indicam o lugar da

mulher em relação ao homem no quadro familiar: mere, fille e sorur424. Somente dois

designativos fazem referência à funções femininas de natureza menos próximas das

classificações sexuais e familiares, são reїne, no lai de Lanval e Madressilva, e abeesse, no lai

423 Ver DUBY, G. A porpósito do amor chamado cortês. In: Idade Média, Idade dos Homens – Do amor e outros ensaios. Op. Cit. p.59-65. DUBY, G. Isolda. In: Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit.. p.83-97. DUBY, G. O modelo cortês. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 331-351. 424 Sobre os termos designativos ver o trabalho de Maria Thereza Rìmoli. Conforme o levantamento numério feito junto à fonte pela autora encontramos, em contexto em que adquirem significado de esposa: dame – 122 ocorrências, femme – 29; espuse – 6; moillier – 1 . Há para as solteiras: pucele – 30; dameisele – 28; meschine – 24; suignant – 1. Há duas menções para vedve. Os termos designativos que indicam papel da mulher na família: mere – 4 ocorrências; fille – 17; sour – 6; niece – 2; ante – 1. RÍMOLI, M. T. Op. Cit. p.35, nota 62 e 63.

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de Freixo. Ainda que estes títulos indiquem, respectivamente, funções sociais e religiosas, nos

lais essas posições de comando são pouco exploradas.

Verifica-se, exceto no lai do Homem-Lobo, Dois Amantes e de Rouxinol, ou seja, três

dos doze lais – porcentagem igual no que se refere à mulher, mas no sentido contrário - , que

nomes próprios são atribuídos aos protagonistas masculinos que também possuem uma

variedade maior de termos designativos. Caracterizações matrimoniais e familiares estão

presentes, numerosos epítetos indicam a condição de solteiro: dancel, vadlez, dameisels,

meschin, bachelers, outros tantos designam a posição no seio familiar: pere, nevu, fiz.

Entretanto, comparado às designações femininas, percebemos uma ampliação de termos que

fazem referencia às atividades e papéis sociais desempenhados pelos personagens: vassal,

barun, reis, prozdum, seneschal, tenant, esqüier, veneürs, berniers, chamberlenc, portier e,

principalmente, chevaliers.

Os termos seignur e sire, são utilizados nos Lais para indicarem a situação de casado,

entretanto, ambos os termos são casualmente utilizados para nomear quatro personagens

masculinos solteiros: Guigemar e Meriaduc, no lai de Guigemar, Gurun, no lai de Freixo, e o

cavaleiro pássaro, no lai de Yonec. Isto porque nos lais, ambos os termos são também

utilizados para se referirem à homens que são senhores de terras e de vassalos. Já o

designativo dame é utilizado somente uma vez, no lai O Infortunado, para fazer referência, a

nosso ver, à posse de bens em vez da situação matrimonial.

Entretanto, diferente das canções de gesta nas quais as mulheres aparecem

esporadicamente e diferente também das cantigas de amor trovadoresca que idealizam as

figuras femininas, notamos que Maria de França dispensa uma atenção especial às suas

personagens femininas ao longo dos Lais. Além de descrever seus atrativos, a autora retrata-as

com bastante autenticidade, dotadas de vontades e de motivações e comportamentos

determinados pela sua consciência que dita certas regras de conduta. No lai dos Dois

Amantes, por exemplo, a jovem recusa fugir com cavaleiro, dizendo:

“Se eu partir com vós, meu pai teria dor e ira, não viveria mais sem martírio. Certo, tanto o amo e o quero bem, eu não quero entristece-lo. Outro conselho vos deveis escolher, pois este eu não quero escutar.” (Dois Amantes vv. 96-102)

Na leitura da fonte percebemos que as mulheres, de maneira alguma, são passivas,

pelo contrário, algumas tomam a iniciativa solicitando o amor do cavaleiro, como no lai de

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Milun e de Eliduc, inspiram os feitos grandiosos dos seus pretendentes e, ainda por cima,

direcionam o caminho que as histórias tomam. No lai cujos versos citamos acima, a donzela

recusa-se fugir com o cavaleiro e sugere ao seu amado procurar sua tia que o proverá de uma

poção para que a prova exigida pelo seu pai fosse comprida com sucesso. Lembremos que

planos para o mal também partem delas, as damas dos lais de Equitan e do Homem-Lobo,

elaboram uma estratagema, contando com a ajuda de seus amantes, para livrarem-se de seus

maridos. Vale colocar ainda que, no lai de Lanval, o cavaleiro não aparece como um herói,

mas antes como um injustiçado, primeiro pelo rei depois pela rainha, sendo que esta assume o

papel de malfeitora, e o papel de herói, geralmente exercido por um homem, é assumido por

outra mulher, a “amiga” de Lanval, que para salvar seu amado das acusações, chega

cavalgando uma palafrém branco, personificando uma cavaleira.

Destacável também é uma constatação sobre o título que Maria de França apresenta no

início do lai de Eliduc. Para introduzir o conto, a autora fala de Eliduc que tinha como esposa

Guildeluëc e que, ao partir para oferecer seus serviços como mercenário, conheceu e amou

uma donzela chamada Guilliadun e, posto isto, prossegue afirmando que Eliduc foi o primeiro

nome dado ao lai, entretanto, o nome foi mudado para Guildeluëc e Guilliadun, “pois das

damas adveio/ a aventura da qual fizeram o lai” (vv. 25-26).

À vista do exposto, inegável é o papel de protagonista desempenhado não só pelos

cavaleiros, mas também pelas mulheres nos Lais, que não permanecem apenas como objeto

de desejo, de adoração e de conquista masculina.

Saber se esta sublimação literária da mulher está em consonância com a realidade

histórica é um desafio não recente, embora atual, para os pesquisadores interessados pelo

tema da mulher e das relações entre masculino e feminino na sociedade medieval.

Recorrendo novamente a Georges Duby, na trilogia dedicada às mulheres – Damas do

século XII – o autor reconhece que houve uma promoção feminina e mostra que de certa

maneira a Idade Média, em especial o século XII, foi também uma idade das mulheres.

Quanto a isto, não poderiamos privar nossos leitores de duas passagens capitais do autor:

Por muito tempo combati, e duramente, a hipótese de uma promoção da mulher na época feudal porque os argumentos propostos para sustentar essa hipótese não me pareciam convincentes, e me dediquei, a propósito de Heloísa, a propósito de Alienor sobretudo, a demonstrar a fragilidade deles. Diante da imagem da rainha, de Thessala, diante da de Dorée d’Amour e de Phénice, eu cedo.425

Prossegue,

425 DUBY, G. Isolda. In: Heloísa, Isolda e outras damas no século XII: uma investigação. Op. Cit. p.118.

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A verdadeira promoção da mulher não está no acréscimo de ornamentos com que os homens, à medida que seu nível de vida se elevava, revestiram as mulheres. Não está nas aparências de poder que cederam a elas a fim de melhorar dominá-las. Não está nos disfarces do jogo do amor cortês. Num tempo em que o cristianismo cessava aos poucos de ser principalmente uma questão de ritos e pompas exteriores, de gestos, de fórmulas, em que se tornava cada vez mais privado, a relação com o divino sendo concebida como impulso amoroso da alma, o que realçou a condição da mulher foi a tomada de consciência de que ela pode, como Madalena ou como Heloísa, servir de exemplo aos homens por se às vezes mais forte que eles.426

Além de adquirirem o status de modelo, assim como o queria Abelardo, as mulheres

do Ocidente medieval também foram favorecidas pela maior proximidade com o Oriente, com

a civilização mais refinada dos árabes427 e pelos códigos de comportamento corteses presentes

na literatura. Tais fatores propiciaram um refinamento dos rudes costumes sociais e,

acreditamos, ajudaram o sexo feminino a saírem do seu rebaixamento e a merecerem maior

atenção do sexo oposto.

Também haveriamos de acrescentar que os séculos centrais medievais assistiram a

uma crescente diversificação social; com o crescimento do comércio e das cidades, os grupos

urbanos ganharam maior visibilidade social e, segundo Eileen Power, “seus pontos de vista

com respeito à mulher denotam uma melhor compreensão da real posição da mulher na vida

medieval que a aristocracia ou a Igreja”428 (tradução nossa). Hilário Franco Júnior, em

consonância com este último ponto, coloca que novos valores sociais, contrários aos

coletivistas e machistas, principiaram nas cidades. Para o autor, essas mudanças estão ligadas

à própria revalorização do indivíduo429.

Por indivíduo entende-se ser pertencente a espécie humana, portanto homem e mulher.

A exemplo disto, a Virgem Maria e Madalena adquirem destaque na cristandade medieval

assim como Cristo e, por sua vez, a dama é valorizada na literatura cortês juntamente com a

exaltação do cavaleiro. Portanto, o movimento das estruturas ocasionaram uma promoção da

condição feminina mas, ao mesmo tempo, uma promoção da condição masculina, de forma

que, não houve uma redução sensível da distância e hierarquia que regiam as relações entre os

sexos430.

Não nos iludamos ao acreditarmos que os preconceitos em relação às mulheres cairam

por terra. As idéias misóginas acerca do sexo feminino perseveraram, revestindo a sua

426 IDEM, ibidem. p. 124. 427 MELLO, J. R. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992. p.95. 428 POWER, E. Mujeres Medievales. Trad. Carlos Graves. Madrid: Ediciones Encuentro, 1986. p. 15. 429 FRANCO JR, H. Op. Cit. p.97. 430 Cf. DUBY, G. O modelo cortês, p.350. In: DUBY, G; PERROT, M. (Dir) Op. Cit. p. 331-351.

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imagem de uma constante ambigüidade. Hora boas, frágeis e louvadas, hora más, perigosas e

desprezadas. Fato constatado ao longo deste capítulo e, como procuramos demonstrar,

testemunhado pelos Lais de Maria de França.

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Conclusão

É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta sentimentos (porque todos somos capazes de experimentá-los), mas como uma pessoa que os valorizou. Desde que o sentimento seja considerado como um valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho de nossos valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos. Essa transformação do sentimento em valor produziu-se na Europa em torno do século XII: quando cantavam sua imensa paixão por uma nobre dama, por uma bem-amada inacessível, os trovadores pareciam tão admiráveis e tão belos que todos, a exemplo deles, queriam se vangloriar de ser a presa de algum indomável movimento do coração.

Milan Kundera

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No século XII houve uma vasta produção literária, enquadrada no que chamamos de

“Renascimento cultural”. As obras em língua vulgar, a exemplo dos Lais, compostas pelo

setor laico da sociedade feudal, constituem documentos históricos relevantes para o

pesquisador da época medieval. Paralela às obras eclesiásticas, porém com uma vertente

diferente, apresentam-nos, muitas vezes, uma imagem mais clara da Idade Média. Sendo

assim, procuramos nesta dissertação, por um lado, explicar os Lais, inserindo-os no seu

contexto de produção e entender a gênese da concepção do amor cortês a partir da própria

estrutura da sociedade feudal; e, por outro lado, investigar alguns indícios que possibilitem o

entendimento da aristocracia deste período.

Vale colocar que, quando escolhemos trabalhar com os Lais de Maria de França, não

ignorávamos as dificuldades encontradas pelos medievalistas nos estudos de um período tão

longínquo. Assim, como já esperávamos, muitos desafios surgiram ao longo da pesquisa. Em

primeiro lugar, saber respeitar e analisar uma obra literária e ficcional que impõem um

cuidado em distinguir o que é informação histórica e o que é simples evasão literária, passível

também de explicação. Em segundo lugar, o problema da língua foi uma constante, escrito em

francês arcaico, os Lais nos desafiaram a, não diríamos aprende-lo, mas pelo menos,

compreende-lo. Por fim, não nos privamos de fazer uma pesquisa transdiciplinar, ao utilizar

de diversos instrumentos de análise, tal como a lingüística e a sociologia apresentada por

Nobert Elias.

Buscar quem seria Maria de França e seguir os rastros dos Lais enriqueceu, a nosso

ver, a pesquisa, fornecendo as cores que utilizamos para pintar as investigações seguintes.

Neste sentido, procuramos ratificar que tão instigante quanto a explicação histórica da obra

por meio do reconhecimento da autoria, é a aproximação de um hipotético autor por meio da

própria análise textual. Somando-se a isto, o contexto histórico no qual se forjou a

mentalidade da autora fornece a moldura necessária à análise.

Malgrado a obra de Maria de França faça parte da literatura cavaleiresca e se utilize da

temática do amor cortês como pano de fundo para as aventuras dos seus personagens, não

menosprezamos a especificidade de suas colocações e as características singulares dos Lais. O

estudo da temática do amor cortês e dos Lais vai de encontro com esta afirmação. Tantos

códigos, tantas regras, característicos do amor cortês, são por vezes desconsiderados na busca

de um amor mais verdadeiro, menos ritualizado.

O amor descoberto, inventado, ou se preferir, revelado pelos trovadores medievais

era, utilizando as palavras de Lênia Márcia Mongelli, “um amor profano em tempos de amor

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divino”. Profano no sentido de não ser dirigido a Deus, porém não sendo apenas carnal, como

bem o demonstrou Maria de França.

De qualquer maneira, se esse amor dito cortês nasceu no ambiente aristocrático feudal,

devemos tomá-lo como uma temática, ou ainda, um sistema ideológico próprio de um grupo

social. Este amor cortês, conforme Marc Bloch, “foi uma das criações seguramente mais

curiosas do código moral da cavalaria”431. Dito isto, entender o contexto que propiciou a

emergência do grupo cavaleiresco a ponto de se tornarem representantes da nobreza feudal foi

um dos caminhos percorridos. A cavalaria, por meio da literatura, procurou se afirmar diante

da cultura eclesiástica e se diferenciar de um novo grupo social oriundo do revigoramento

comercial. A exemplo disto, Guilherme de Poitiers denomina o amor que chamamos cortês

por “amor de cavaleiro”, designativo um tanto quanto excludente, posto que, designava

aqueles entre os homens que eram chamados a participarem da corte do amor, assim sendo,

verificamos que Maria de França, nos Lais, destina as práticas do amor cortês à nobreza

cavaleiresca.

Diante do poder econômico crescente do grupo burguês, o qual lhes proporcionava

cada vez mais prestígio e status, a barreira social passa a ser erguida pelo respeito aos bons

costumes, às maneiras corteses que, por serem imitadas pelos “novos-ricos”, eram

constantemente refinadas, sendo esta situação o motor do que Nobert Elias designa de

processo civilizador.

Ora, ainda que a nobreza cavaleiresca se coloque como um grupo fechado, defensivo

diante da intromissão de homens oriundos de outros setores sociais, não era um corpo social

uniforme. No seu interior é possível verificar contradições e diferenças, expressadas também

pela literatura e verificadas nos Lais de Maria de França. Neste sentido, a literatura apresenta-

se como um bálsamo imaginário para as incoerências deste grupo, tendo uma utilidade social

e contribuindo para a consolidação da ordem.

Além do cavaleiro - ou melhor dizendo, da nobreza cavaleiresca -, dirigimos também

nosso olhar para outro personagem, a dama. Conforme coloca Eileen Power, “é fácil exagerar

o alcance em que a cavalaria pode elevar a posição real da mulher na sociedade medieval em

geral” (tradução nossa)432. Apesar da maior presença da figura feminina na literatura

cavaleiresca e sua posição de destaque na relação amorosa, é visível a misoginia da sociedade

medieval. Por mais que as personagens femininas compareçam no cenário e, principalmente,

ajam dentro dele, seu âmbito de ação e de poder eram limitados, visto que os Lais não

431 BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1973. p. 341. 432 POWER, E. Mujeres Medievales. Trad. Carlos Graves. Madrid: Ediciones Encuentro, 1986. p. 29-30.

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deixam de revelar o enquadramento social e mental imposto por uma sociedade

marcadamente masculina, que considerava as mulheres como seres humanos naturalmente

inferiores. A desconfiança em relação a estas, fundada no que poderíamos chamar de não

reconhecimento do outro, carregava-as de uma imagem negativa; seriam, pois, perigosas e ao

mesmo tempo frágeis, ainda que isto nos pareça contraditório, mas como demonstramos,

passível de ser explicado.

Em suma, durante esta pesquisa, procuramos entender e explicar os Lais dentro de seu

contexto histórico, tendo em vista que, embora seja uma obra de ficção, esta fonte, sendo um

tipo específico de documento histórico, informa-nos acerca da sociedade medieval, mesmo

que não seja um espelho desta. Não podemos considerar os Lais como “pura ficção”, sem

relação com a experiência real que constitui o ponto de partida para a elaboração de uma obra

ficcional.

Isso nos leva a questionar se o amor cortês existia na realidade. Dar uma resposta

afirmativa seria precipitado, entretanto, acreditamos que a literatura tem um papel influente

no comportamento daqueles que dela utilizam.

Tendo isto em vista, defendemos que a literatura cavaleiresca, de uma maneira ou de

outra, melhorou a situação das mulheres na Idade Média ao propor um novo tipo de relação

entre os sexos. Neste mesmo sentido, o modelo cortês foi seguido pela sociedade do período,

os homens se propuseram, pouco a pouco, a adotarem as maneiras corteses de se

comportarem e de tratar as mulheres, como bem escreveu Georges Duby:

[...] as relações entre o masculino e o feminino tomaram na sociedade do Ocidente um rumo singular. Ainda hoje, apesar da revolução das relações entre os sexos, os traços que derivam das práticas do amor cortês são daqueles pelos quais a nossa civilização se distingue mais abruptamente das outras.

Se o novo tipo de representação mental do amor esboçado no século XII ainda hoje

persiste e goza de grande sucesso na indústria cinematográfica, a título de exemplo os filmes

que utilizam como temática a história de amor de Tristão e Isolda, é porque seu ideário

penetrou no gosto social. Produto de uma época, de um contexto histórico favorável, as

práticas de amor cortês possibilitaram a emergência da sociedade ocidental para fora da

barbárie, tornando-se mais requintada.

Esperamos com esta pesquisa ter levado o leitor a examinar os Lais de Maria de

França não apenas do ponto de vista literário, que por sinal, mostra-se de grande riqueza, mas

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também como fonte de conhecimento, de compreensão e informação sobre a Idade Média,

mais especificamente, o século XII.

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Referências

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