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    OANEL DA LEITURA:AMOR SIVE LEGENS

    Janaina de PaulaDoutoranda em Literatura Comparada do Programa de Ps-Graduao em Estudos

    Literrios / UFMG (bolsista CAPES)

    RESUMO

    Buscamos, neste artigo, definir a operao de leitura realizada e

    operada por Maria Gabriela Llansol, a partir do encontro entre a

    textualidade de Llansol e os cadernos e poemas de Thrse deLisieux. Uma leitura que promove um deslocamento do texto, uma

    mutao dos corpos a partir de um biografema preciso: amor.

    PALAVRAS-CHAVE

    Leitura, legncia, letra, amor, biografema

    PARTCULA I: A EXPERINCIA AMOROSA DO CORPO

    A primeira histriaconta que, desde sempre, Teresa Martin quis entrar no Carmelo de

    Lisieux. Que, aos quinze anos, de facto, entrou, e a morrer aos vinte equatro anos, de tuberculose.

    a primeira histria a smula biogrfica.A segunda histria

    chamou-lhe Teresinha do Menino Jesus, colocou-lhe um ramo de rosasnas mos, uma coroa de rosas na cabea, cononizou-a e, h meses, fez

    dela Doutora da Igreja a terceira, depois de Catarina de Sena e deTeresa de vila.

    Esta a histria institucional, a grande, e a smula herica.A terceira histria

    contou-a ela. Em vrios poemas, peas de teatro conventuais e textosautobiogrficos. Sobretudo no manuscrito C, como conhecido. (...)

    Este livro a quarta histria. Conhece a biografia, e passa adiante. Sabe da herona,

    e no lhe interessa. Admira a crente sem desposar o seu movimento.Confronta a arte de viver da amorosa com a exigncia da ressurreio doscorpos, ltima e definitiva aspirao do texto ardente. Subjecente aoDeus

    sive naturaque o move, o texto afirma que h umAmor sive legenspara

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    o entender. O percurso de um corpo como smula de sua potncia deagir.1

    Eis, aqui recortada, uma explicao possvel para o Ardente texto Joshua,

    encontrada na quarta-capa do livro de Maria Gabriela Llansol.Por esse livro a quartahistria entro de vis no universo teresiano. Por esse livro entro, sem o saber desde o

    incio, na experincia amorosa do corpo,2decantada do texto ardente de Thrse de

    Lisieux. Por esse livro, trao o caminho que me conduz ao texto de Teresa, de Llansol

    , que afirma que h um amor sive legens para o entender. Amor ou leitor. Amor que

    recolhe (legere), na leitura, os despojos do percurso de um corpo como smula de sua

    potncia de agir.

    sobre os cadernos de Teresa (e aqui preciso apontar para a mudana na grafiado nome tal como o escreve Llansol), principalmente o manuscrito C a terceira

    histria , que se funda o Ardente texto Joshua. No se trata de uma reescrita da

    autobiografia da santa. No. OArdente texto, fundado sobre os manuscritos, no edita o

    primeiro, nem ao menos opera uma espcie de bricolagem a partir dos elementos

    recolhidos. verdade que a quarta histria recolhe de um modo completamente

    singular, pois recolhe atravs da leitura que tece volta do texto, os elementos

    heterogneos que participam da cena dos manuscritos. Recolhe o andino, a ndoa, o

    desbelo, o des-lavado para que algures o fulgor inapreensvel pelo esttico possa

    surgir.

    E, de sbito, do caderno de Teresa foste escolhendo palavras, bagos,asas, nadas, gumes, gros de p, como quem forma um puzzle ou esta ter uma viso, e sobre as guas, onde corria o claustro,escreviasa sua deciso ser a nossaa sua deciso ser a nossaindefinidamente.3

    NESSE DIA, ESCREVESTE NO TEU CADERNO, ainda manchado por uns

    leves traos de sangue:

    minha me, quero que conhea todos os segredos da minhalma. Noano passado, Joshua4quis dar-me a esperana de me levar em breve

    1LLANSOL.Ardente texto Joshua, paratexto: quarta-capa.2A partir daqui as expresses e termos entre aspas referir-se-o, na maior parte das vezes, a

    excertos da obra de Maria Gabriela Llansol.3LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 31.

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    para o cu. Depois de ter ficado em viglia at meia-noite, era Sexta-Feira Santa, voltei para a nossa cela, mas ainda mal tinha tido tempode pousar a cabea sobre a almofada senti como uma vaga a subir, asubir-me turbulenta at os lbios. No sabendo o que era, pensei quetalvez fosse morrer, e a minhalma sentiu-se inundada de alegria. (...)e eu disse a mim mesma que devia esperar pela manh para mecertificar da minha felicidade, dado parecer-me que era sangue o quehavia vomitado. (...) Era como um doce e longnquo murmrio que meanunciava a vinda do esposo... minha me, estava, contudo,enganada. Joshua permitiu que, desde ento, a minhalma fosseinvadida pelas mais espessas trevas e que a ideia do Cu que me erato querida se transformasse apenas em motivo de combate e detormento. minha me, s quem viajou por esse tnel podercompreender a sua obscuridade.5

    Esse fragmento, retirado do manuscrito C, aparece, como citado, no Ardente

    texto Joshua. Nesse livro, editado em 1998 pela Relgio Dgua, possvel encontrar o

    trabalho que Maria Gabriela Llansol realiza a partir dos cadernos, poemas e cartas de

    Thrse Martin de Lisieux. Um trabalho que se configura como uma operao de leitura

    que des-noda o texto, confrontando a arte de viver da amorosa com a exigncia da

    ressurreio dos corpos, ltima e definitiva aspirao do texto ardente. em direo

    ressurreio dos corpos que a leitura avana. Se Teresa for texto quando morrer sair

    viva desta crislida.6E, de fato, Teresa texto. Texto que se escreveu ao longo dos dez

    anos que passou no Carmelo. Texto que se fez corpo aps a morte da carmelita. E ainda,

    texto que fez um corpo: corpascrever, como diria Llansol.

    Teresa escreve. Faz cpias de fragmentos do Cntico dos cnticos. Conhece a

    histria da luta pela reforma Carmelita, do sofrimento, do xtase, da dor. Da mstica.

    Conhece a histria do corpo santo, esse que aps a morte e depois de desenterrado,

    exala a fragrncia celestial. Esse que cortado aos pedaos torna-se relquia guardada em

    capelas suntuosas. Teresa escreve. Peas conventuais. Poemas. Cartas. Escritos que iro

    compor, aps a sua morte, a smula histrica e biogrfica. A Histria de uma alma.

    Escreve por obedincia. Obedincia ao nada, nos dir Vania Baeta, aos exerccios

    incansveis do nada.

    Sabemos7 que foi a partir de um pedido de uma das suas irms (tambm

    carmelita), admirada com a postura e meditao da pequena, Madre Ins (irm de

    4Joshua o nome hebraico de Jesus.5LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 15-16.6LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 65.7BAETA.Luz preferida: a pulso da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thrse de Lisieux, p.

    172-175.

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    sangue de Teresa e Priora do Carmelo) que essa solicita Teresa o relato de suas

    memrias, porque nele constaria o testemunho devocional da amorosa. Desse pedido

    nasce a primeira carta (Lettre) Manuscrito A escrita nos anos de 1895 e 1896 e

    endereada Madre Ins. Para a Priora, a narrativa era ainda incompleta, j que nesse

    primeiro manuscrito Teresa insistia, particularmente, em sua infncia e primeira

    juventude antes da entrada no Carmelo. Sua vida religiosa era apenas esboada. No

    entanto, Madre Ins sabia que Teresa deveria continuar nessa via escrita. Com a

    mudana no Priorado, Madre Ins convence a ento decana do Carmelo, Madre Maria

    de Gonzaga, que solicite a Teresa a continuao da tarefa. A pequena carmelita j se

    encontrava doente e num jato s e sem rasuras, a terceira carta Manuscrito C

    endereada Madre Maria de Gonzaga, escrita no ms de junho de 1897.

    Eu no sei o que escrevo, nada tem sequncia... ser preciso queretoqueis tudo isso.Para escrever minha curta vida, no dou tratos minha cabea: como se pescasse com o anzol. Escrevo o que fisgo.8

    O manuscrito B carta endereada a sua irm Maria que vivia no mesmo

    convento contm anlises das suas experincias espirituais e compe, junto com as

    outras duas cartas, osManuscritos autobiogrficos.

    Teresa escreve. Escreve a experincia amorosa do corpo. Mesmo sem f,mesmo sem ar, mesmo sem saber; Teresa e nada. Hemoptises sangram o texto que

    sangra de amor. A f resta.9Resta a mancha traada na sua bio-grafia; resta essa grafia

    mnima de amor; resta a pulsao da escrita, a sua exigncia.

    O que vais responder a todas as minhas loucuras? Jesus, meu amor, minha vocao, encontrei-a afinal: MINHAVOCAO O AMOR.10

    Um sculo depois, Maria Gabriela Llansol escreve: h o amor certo, mas apenas a

    expresso de um imenso incerto.11E abre oArdente texto:

    8LISIEUX. Teresa. Obras completas de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, p. 37-284.

    9BAETA.Luz preferida: a pulso da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thrse de Lisieux, p.172-175.

    10

    LISIEUX. Obras completas de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, p. 252-254.11LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 22.

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    Sim, houve um momento em que estivemos inquietas na mesmapergunta, Sei que estaremos sempre ou num tempo incomensurvel, nela inquietas.Ela ia morrer.E morreu, Teresa Martin, beguina, filha de Hadewijch de Anturpia,doutora da Igreja.12

    Antes disso temos o furor provocado pela publicao de Histria de uma alma.

    Logo aps a morte de Teresa, Irm Ins comeou a providenciar a publicao dos

    manuscritos contidos nos cadernos. A exigncia era de que os textos fossem ordenados

    de tal forma que parecessem todos dirigidos a ento Priora do Carmelo. Essa adaptao

    foi feita em uma cpia, mas aps a publicao do livro, foi transcrita, atravs de

    raspagens e sobreescrituras para o texto original. Teresa sabia, quando do incio da

    escrita do Manuscrito C, que Madre Ins tinha a inteno de dar a conhecer seus escritos

    aps a sua morte. E no seu leito, doente e fraca, dava uma grande importncia escrita

    desses pequenos e simples cadernos.

    Sobre a palavra de Teresa, que enderea irm a tarefa de editar os seus

    cadernos retirando-lhe e acrescentando-lhe tudo o que fosse necessrio , a primeira

    edio dos manuscritos autobiogrficos veiculada em 30 de setembro de 1898. E de

    fato, Madre Ins trabalhou no texto fazendo correes de estilo, introduzindo passagens,

    adequando-o as normas e convenes gramaticais e literrias e acrescentando-lhe um

    ttulo:Irm Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Religiosa Carmelita (1873-1897).

    Histria de uma alma escrita por ela mesma. Cartas. Poesias.

    Raspar e sobreescrever a letra de Teresa. Eis a tarefa apresentada na primeira

    edio dos manuscritos. Retirar os excessos que podiam chocar a mentalidade da

    piedade em voga; corrigir o seu estilo afinal o teor literrio dos seus escritos era de

    menor importncia ; corrigir as composies hesitantes; descartar tudo aquilo que

    pudesse afastar ou desgostar o leitor. Tornar limpa a histria da smula biogrfica que

    continha o teor do que viria a ser a smula herica. Traduo da escrita de uma vida:

    traio de uma bio-grafia. Talvez ela a madre no soubesse que o furor

    inapreensvel pelo esttico. O fato que os escritos de Teresa tiveram um destino

    veloz: os primeiros 2.000 exemplares esgotam-se em quatro meses; a segunda edio

    tem sua metade vendida ainda no prelo; em 1901 surge a traduo para o ingls; em

    1902 para o polons; em 1905 traduo para o holands; em 1906 para o italiano e

    portugus. Adianta-se a letra de Teresa. Avana em direo a outras lnguas; grafa, no

    12LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 7-8.

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    estrangeiro, a sua letra de amor. Em 1908 comeam os milagres; em 1910 o Carmelo

    recebe 9.741 cartas da Frana e do estrangeiro. Em 1911 aparecem as tradues para o

    espanhol e o japons. Em 1923 o Carmelo chega a receber de 800 a 1.000 cartas por dia.

    Em 1925, ano da canonizao, o livro de Teresa estava traduzido em 35 lnguas.13

    Lettre. Lettre. Lettre. Letra de amor. Carta de amor. Como diria Teresa: o amor atrai o

    amor.

    Em 1956 aparecem osManuscritos autobiogrficos, sob a forma de uma edio

    crtica de trs volumes em fac-smile. Resta, de todas as tradues, o amor ardente e

    vivo; os pequenos nadas; a alegria; o amado; o aberto escrito na palavra C(u), que ao

    deixar cair o eu, faz aparecer o corpo da letra (tambm escrito no Manuscrito C), essa

    que faz a borda do vazio atravessado por Teresa. Resta o jato e a rasura. Resta a dico

    da mstica14 contornada de cortes e volutas como a possibilidade de escrita do

    impossvel. Resta o abandono no amor. O ardente texto.

    Um sculo depois, Serra de Sintra, 6 de maro de 1998. Teresa beguina, filha de

    Hadewijch de Anturpia.15E ento Llansol, aquela que l, com as mos pousadas sobre

    os cadernos de Teresa, a criar uma nova geografia, uma outra topologia geografia de

    rebeldes, no gesto de recolher desse texto (traduzido-re-traduzido-recuperado) a letra

    13BAETA.Luz preferida: a pulso da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thrse de Lisieux,p.306-307.

    14 Segundo Jacyntho Lins Brando, a escrita do indizvel a marca que distingue a msticamoderna da antiga. Isso porque nos antigos mistrios a interdio do dizer no encontrou umcaminho possvel no escrever. Mstes, o iniciado nos mistrios antigos, literalmente o quese cala, que mantm a boca fechada com relao ao que contempla no Mystrion. NaAntiguidade, a mstica tinha o carter de revelao. Alm disso, dizer o indizvel encontrava-se numa esfera masculina, a dos sermonistas e telogos, que pregavam e ensinavam. Estando,portanto, mais prximo daquilo que da ordem do dizvel. Cabe mstica crist a experinciado transbordamento, assentada no amor, mais do que no conhecimento, que encontra seu

    lugar no num discurso dito, mas numa escrita. Assim, o que no se pode dizer textualiza-se(por consequncia, corporaliza-se), como se a escrita fosse o meio que permite a dico doque interdito. Ver BRANDO. O corpusardente, p. 168-169.

    15Uma beguina, no tempo de Hadewijch dAnvers (sc. XIII), era uma mulher devota, emborano enclausurada, que se dedicava pobreza, contemplao, orao, obras de caridade etrabalhos de renda. A vida interior dessas mulheres dava sinais de entusiasmo fervoroso, deliberdade pura. Talvez por isso o movimento beguinal tenha sido alvo de perseguies.Dessa beguina restam poemas, cartas, vises. Os seus escritos revelam uma experinciaalada atravs da poesia. Ela representa a grande tradio mstica que faz do xtase a unioperfeita com Deus. Para essas mulheres, que se reuniam em pequenas comunidades efrequentemente eram afetadas por fenmenos extticos, havia a necessidade do retorno a umaforma simples e sincera de vida religiosa. essa via que as aproxima dos msticos da

    renovao carmelita. Ver BAETA. Luz preferida: a pulso da escrita em Maria GabrielaLlansol e Thrse de Lisieux, p. 179-183.

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    libidinal que resta. Para alm da biografia, compilada nas infinitas edies deHistria

    de uma alma, Llansol parece compor com esses restos que se destacam na sua leitura, os

    biografemas desse corpus ardente.

    E ento o dom o amor ou a leitura que vem colocar-se ao lado do meu fazer

    para o proteger do nada.

    H uma carta estendida no tapete ali deixada h muito,dirigida a Teresa e a energia de amor que contmincute coragem. Se ela carta, um papel. Se um papel, desceu da rvore triturada.Teresa, balouando, flui para o movimento de qualquertexto j escritoignoro se a cartaignoro se alguma vez a leu. Mas dorme os seus manuscritos,

    sobretudo o seuC,misturado com o meuSpinoza. Sonha que ele a procura para lhe dizer,finalmente:

    Deus sive legens. Teresa, acorda, acorda, acorda. O trabalho da manh espera por ns. o leitor? o legente?, decerto, a figura intermdia, pelo ler apaixonada.Quem poder imaginar o poder de um corpo que ama?16

    Esse papel, rvore triturada, parece conter a sara ardente da lettre de Teresa.

    Texto escrito no tempo em que o corpo da amorosa buscava, na figura do amado, aponte que a conduziria travessia rumo ao C(u). E assim, aquele corpo se entregaria

    por puro amor ao desconhecido. Por puro amor. Por isso, o ardente texto, esse que se

    destaca na leitura de Llansol, essa que transps o nome de Jesus em Joshua; de Joshua

    em ardente texto, assiste ao confronte das naturezas. Toca a experincia decisiva, aquela

    dos limites da linguagem, a sua matria: ndoa, mancha, trao, lettre. E, seguindo a

    leitura de Giorgio Agamben,17na sua Ideia da matria, ficamos sabendo que onde

    acaba a linguagem, comea, no o indizvel, mas a matria da lngua. Sim, a matria

    que compe a dico da experincia de transbordamento da mstica.

    Alm dos manuscritos autobiogrficos, Llansol tambm toma nas mos os

    poemas da carmelita. Seguindo uma linhagem potica e, aps traduzir Dickinson,

    Verlaine, Rilke e Rimbaud, encontramos a traduo dos poemas de Teresa. Para que no

    fiquemos confusos quanto entrada de uma poeta ligada tradio mstica nessa

    linhagem, Llansol nos oferece, no prefcio que acompanha a traduo do O alto vo da

    16

    LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 142, 143, 146.17AGAMBEN. Idia da matria, p. 29.

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    cotovia, a seguinte explicao: ___________ de facto, Teresa Martin surgiu-me na

    casca de uma rvore h muito tempo , quando eu ainda no trabalhava o texto mas

    ele, atravs do que eu lia, j trabalhava por mim.18 cena de uma leitura e ao trabalho

    do texto no corpo daquele que l, possvel enlaar leitura e transposio como dois

    movimentos simultneos, que ditam o tom da operao realizada por Llansol, tanto na

    traduo dos poemas de Thrse, quanto na composio dos livros que se seguiram a

    essa traduo: Ardente texto Joshua e O jogo da liberdade da alma. Neles, Teresa

    torna-se figura da obra, trazendo, ao lado do nome agora transposto, elementos retirados

    dos seus manuscritos autobiogrficos.

    Ainda no prefcio traduo dos poemas, Maria Gabriela Llansol faz um

    arranjo, misturando fragmentos esparsos: lembranas cintilantes da sua infncia, ao lado

    da av Maria, devota de Teresinha do Menino Jesus, leitura do livro Histria de uma

    alma, de Thrse Martin, de Lisieux, e figuras retiradas da sua obra, como Tmia, a

    rapariga que temia a impostura da lngua. Esses fragmentos so reunidos, traando uma

    linha que os une, mas, ao mesmo tempo, os mantm distantes, seja em funo do espao

    e do tempo em que foram vividos, seja em funo da impossibilidade de coloc-los num

    lote comum e, assim, produzir uma semntica compartilhvel. Vemos, ento, a

    subtrao do tempo linear pelo instante potico, levando a uma certa disperso do tempo

    histrico. O que aproxima esses elementos dispersos a leitura nesse lugar de legncia,

    tal como definida por Llansol. Uma leitura que implica a presena de um corpo de

    afetos que tocado pelos textos: o do outro e o prprio. Os poemas e manuscritos de

    Thrse Martin encontraram, na legente Gabriela, o leitor real:

    O texto precisa de encontrar, no o leitor abstracto, mas o leitor real,aquele a que, mais tarde, acabei por chamar legente que no o tomenem por fico, nem por verdade, mas por caminho transitvel19.

    Os efeitos desse encontro figuram nos livros Ardente texto JosuhaeJogo daliberdade da alma escritos aps o trabalho de verter, para a lngua portuguesa, os

    poemas escritos em francs. Segundo Maria Etelvina Santos, forte o lao que une o

    texto ao legente, porque o legente um leitor que responde ao texto, no para lhe dizer

    o que ele poderia querer ouvir, como uma confirmao, mas indo com ele em busca do

    espao ednico, lugar de ampliao dos afetos. Llansol l na dobra do texto, extrai a

    18

    LLANSOL. O alto vo da cotovia, p. 7.19LLANSOL. Fragmento da carta a Eduardo Prado Coelho.

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    letra que guarda a pulsao do corpo de Teresa, o seu veio libidinal, transpe essa letra

    atravs da criao de cenas fulgor e, assim, lana o texto a um devir, espao potencial

    em que a durao no pode ser concebida por uma ideia de princpio e fim, ou pelo

    tempo encerrado nesse intervalo. Trata-se aqui de um espao sem tempo, como

    assinala a autora, em que o desejo de persistir encontra nessa leitura o seu mvel e a

    escrita que a acompanha garantia desse trao intensivo que engendra a forma e se

    preserva na letra.

    Retomemos ao prefcio traduo dos poemas, seguindo de perto o trabalho que

    Llansol realiza:

    Li seus poemas. Reparei que so, quase todos de circunstncias. (...)Correctos, respeitam as formas da mtrica e da rimaPerguntam-me se escritora.Respondo-lhes que, em escassos quatro anos, a poesia foi servidacomo mandam os manuais.Mas vou responder-lhe de outro modo. A Teresa entrou, de facto, noarmazm dos sinais da literatura. Noto que foi buscar imagens eritmos a Musset, a Chateaubriand e a Lamartine. Que entrou, se serviucomo entendeu, e fez poemas. Tambm foi buscar pensamentos epalavras aos Evangelhos, a So Joo da Cruz, mstica carmelita. Asfreiras, suas irms, apreciavam. Tudo rimava, apesar de quase nadarespirar.20

    O que Llansol l nos poemas e cadernos de Teresa algo que est para alm do

    que os manuais lhe ensinaram. Aquilo que ficou guardado nos manuscritos, resistindo

    ao movimento de acomodao atravs das inmeras edies do livro Histria de uma

    alma.A autora busca a linha que une Teresa a outras densidades poticas, aos sons e

    ritmos que fazem da poesia uma composio que chama o corpo para a cena de leitura.

    Busca a pulso da escrita,21 a fora dos afetos que lanaram a jovem carmelita ao

    armazm dos sinais da literatura; aquilo que no texto evoca uma imagem, uma cena

    fulgor, uma forma. Talvez por isso Llansol apresente a sua traduo ora dizendo que

    sempre fiel letra, entrei no teu lance; ora revelando que aqui, no fui fiel. Erasimplesmente impossvel. Essa no fidelidade a uma forma de poesia definida nos

    manuais parece indicar uma extrema fidelidade letra do poema que comea na

    aurora. A legncia produz um encontro inesperado entre a lngua fulgorde Llansol e o

    corpustextual de Thrse, e desse encontro, temos um trabalho que passa pela traduo

    desses poemas e avana para alm, transpondo para os textos criados os intentos da

    20LLANSOL.Alto vo da cotovia, p. 11.

    21Essa expresso amplamente desenvolvida por Vania Baeta na sua tese de doutorado. Ver:BAETA.Luz preferida: a pulso da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thrse de Lisieux.

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    letra. De fato, ao traduzir os poemas, Llansol no produz modificaes que sejam

    simples adulteraes do texto original. Como uma artes, ela opera com extrema

    delicadeza, deixando que o tecido textual revele os seus intervalos. Assim, nesse texto

    em que tudo rimava, algo passa a respirar.

    PARTCULA II:UM N A DESATAR-SE NO OLHAR: H UM LEITOR A ESCREVER,E UM LEITOR LENDO

    quem l sabe que flutua uma linguagem dentro da linguagem;quem l sabe que, a nosso lado, a leitura desenha, com uma latitudeselvagem inaudita, a grafia de uma outra histria que, por vezes,se confunde com a nossa; quem l sabe que um livro um no saberque,quando se desvenda, volta, por desejo, ao seu alvo imaginrio.22

    No verbete legensencontramos uma dupla morfologia: legenscomo substantivo

    maculino, leitor; e legens como particpio passivo do verbo lego,que tem as seguintes

    acepes: a)- reunir, juntar, colher; b)- recolher (legere spolia caesorum); c)- escolher,

    eleger; d)- examinar, percorrer, seguir as pegadas de; e)- ler. Para Vnia Baeta, o ler,

    nesse caso, no o recitare, essa leitura em voz alta encontrada na Idade Mdia. Ler

    aqui silencioso. Com Llansol j se trata de um outro tipo de leitura: amor sive legens.

    Thrse tem na autobiografia o seu mtodo de escrita ela escreve a sua

    infncia, o encontro com o amado, a vida no Carmelo, a direo da morte que conduz ao

    vivo. Escreve esses exerccios de nada nos deixando conhecer, aps a sua morte, a

    pequena via. Escreve a vida toda, ou por toda a sua curta vida. Os seus escritos

    entraram, anos depois, para o cnone da literatura eclesistica. E sabemos que os textos

    que obedecem a um cnone, esto presos num cnone. No entanto, do corpo vivo de

    Teresa, corpo canonizado, mas tambm corpus ardente, tal era a intensidade que se

    desprendia para alm dessa forma de composio, que era necessrio recolher desses

    focos o ponto mnimo que opera a passagem dos factos ao segredo de viver.23Recolher, reunir na leitura esses focos que restam de uma vida compondo com

    eles um mtodo vivo de leitura: biografema. Eis o mtodo llansoliano 24 ao lado da

    escrita de Thrse, para avanar em direo a outro texto. Sabemos com Barthes25que o

    22LLANSOL. O sonho de que temos a linguagem, p. 16.23LOPES. Teoria da des-possesso:ensaios sobre textos de Maria Gabriela Llansol, p. 34-35.24 Sobre isso, ver a tese de doutorado Biografia como mtodo: a escrita da fuga em Maria

    Gabriela Llansol, de Cinara Soares Iannini.25BARTHES. Sade, fourier, Loyola, p. 15-16.

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    biografema o disperso, os estilhaos de lembrana, a eroso que s deixa da vida

    passada alguns vincos; a passagem da grafiade uma vida, apoiada num sistema de

    escrita para a representao de uma lngua, para o grafema dessa bios. Esse que a

    escreve a partir do ponto mnimo de fulgor.

    Este texto diz que no havendo memria de ser humano mais valeguardar em memria o resto, todos os restos, a restante vida.Este texto diz que no nos ficou s uma idia de real, diz tambm queno resto nos resta uma sombra: a da vingana sobre os restos.26

    A leitura opera uma espcie de descolamento dos textos da sua moo de

    garantia, isola-o da esttica do cnone, articula-o a outras figuras; compe uma nova

    ordenao, que est para alm do tempo cronolgico ou histrico, a partir de um

    grafema preciso: amor; ardor. Des-noda o texto desses lugares acostumados paraanel-lo a outras densidades. Leitura que corta o texto irrespeitosa27, mas tambm

    retorna a ele e dele se nutre. Leitura que transita na insistncia de uma escrita que

    ultrapassa o que uma consistncia de estilo poderia suportar. Barthes nos diz que o

    estilo implica uma consistncia, enquanto a escritura, retomando uma terminologia

    lacaniana, s conhece insistncias.

    Apuremos um pouco mais essa ideia de leitura/legncia que segue os ritmos

    pulsantes de uma escrita, a sua vibrao. Nos dirios Um falco no punho, Finita eInqurito s quatro confidncias e no livro Amar um co, Llansol desenha um trajeto,

    um modo cartogrfico de leitura que se estende por esses espaos sem tempo. Alm

    desses livros citados, encontramos tambm no Ardente texto Joshua, O jogo da

    liberdade da alma e Um beijo dado mais tarde, cenas de leitura que nos permitem

    aproxim-los.

    A leitura ocupa, em vrios textos de Llansol, um lugar fundamental;

    leitura/legncia em que o corpo torna-se sede das afeces que as palavras lhe

    impingem.28Trata-se, sempre, do corpo a ler, que se lana ao encontro com o texto,

    mas tambm corpo sendo lido pelo texto, arrebatado pela letra que, ao contrrio de

    fechar os espaos semnticos, abre-se ao infinito. Nesse espao de leitura, o antes e o

    depois do corpo, afetado pelo encontro com a letra textual, parecem perder os seus

    contornos ntidos. O que importa esse corpo criado/estendido pela experincia de uma

    26LLANSOL.ARestante vida, p. 98-99.27

    BARTHES. Escrever a leitura, p. 26.28GUIMARES.Imagens da memria: entre o legvel e o visvel, p. 220.

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    leitura intensiva, que promove um efeito de durao. Pois a leitura, nesse estado,

    revela as nossas capacidades funambulescas de metamorfose.

    Segundo Blanchot, trata-se de um perder-se no texto, numa espcie de leitura

    que trabalha na des-ateno de uma intensidade,29seguindo um fio que leva ao seu

    ponto voraz. Afinal, a narrativa do que se est passando um entrando um simples

    olhar com o corpo vivo de Thrse, tecido do silncio do no ver.30Maria Gabriela

    Llansol consente com esse ponto de passividade que requer a legncia, para que o texto

    se prolongue, alargue o pensamento, mantendo, desse modo, o comeo prosseguindo.

    A potncia dessa leitura na passividade/intensidade est nos sensveis efeitos

    produzidos no corpo do leitor, no corpus textual. Como pensar a leitura na intensidade,

    capaz de provocar uma experincia em que os contornos do tempo parecem estendidos,

    em que a extenso no se reduz a um espao delimitado e a passividade? Que leitura

    essa que, na passividade, promove uma transformao, metamorfoseia os corpos e

    decompe imagens?

    O intenso est justamente ao lado do fio da letra letra libidinal. A passividade

    talvez esteja na deciso de aceitar o combate, na deciso de ler intensamente, sem se

    ocupar do texto a partir dos protocolos de leitura que as experincias anteriores

    incorporaram. Essa leitura intensa comea na decepao da memria como recordao,

    em favor da via do reconhecimento.31Estando fora da memria fixada no tempo, a

    leitura segue para alm dos domnios da histria. Por isso, necessrio consentir com as

    sonoridades, com os momentos em que os textos tornam-se silenciosos.

    Ao ler os manuscritos e poemas de Thrse, Llansol traa com eles uma

    cartografia de leitura e o itinerrio do seu [dela] corpo, fazendo vibrar a lngua da

    legente Gabriela e da beguina Thrse. E o encontro desses corpos textuantes revela a

    potncia, a extenso e a diversidade dos afetos. O que Llansol realiza um modo de ver

    que se exercita no cotidiano, encontrando no texto o sopro, a respirao, o pontomnimo da voz.

    a esse desconhecido poder da leitura, que parece agir sobre o corpus textual

    como uma clorofila que aucares faz e desfaz, sem que saibamos exatamente de que

    29BLANCHOT. Ler, p. 191.30

    LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 63.31SANTOS. Como uma pedra-pssaro que voa.Llansol e o improvvel da leitura, p. 127.

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    feito, que a autora no renuncia: eu, a legente acordada para escrever, no renuncio.32

    Ao contrrio, diante dos poemas de Thrse em que tudo rimava e nada respirava, a

    legente segue abrindo caminho na matria, separando campos semnticos e outros,

    novos, partilhando de um corpo que tem o luar libidinal, aquele que move essa leitura

    devir, alargando os seus domnios e ampliando os efeitos de afetos.

    Estamos na letra libidinal de Thrse, essa que visa a ressurreio dos corpos

    como ltima e definitiva aspirao do texto ardente. Letra pulsional que s conhece

    insistncias justamente por no encontrar o correspondente anlogo pelo qual se

    escreveria definitivamente. E, no entanto, escreve. Fim da escrita? No, diz o texto.

    Incio de uma leitura. Anela-se33 aqui, pela via da experincia amorosa do corpo,

    legente e texto para compor umcorpus que outro. Mantendo, dessa forma, a tenso

    existente entre a impossibilidade e a possibilidade de dizer. Resta a lngua de Teresa.

    ***

    Se me fosse permitido colocar, lado a lado, todos os biografemas recortados a

    partir da leitura dos manuscritos, cartas e poemas, transpostos agora para o ardente

    texto, talvez pudesse, como Barthes, desenhar os Fragmentos de um discurso amoroso.

    Para isso seria necessrio recuperar aqui os restos que foram sendo largados pelo texto.

    Destacados e abandonados. Recortados e deixados. A construo desse Fragmento

    seguiria aquilo que Mallarm, em seu ensaio Crise de verso, chama de transposio.

    Mas no nos adiantemos nisso ainda. Antes necessrio dizer esse resto.

    Leio O que resta de Auschwitz. Nele, Georgio Agamben apresenta uma noo

    peculiar de resto que talvez nos permita aproxim-la disso que Barthes define como

    biografema. Partindo da leitura do profeta Isaas, que se dirige a todo o povo de Israel

    para dizer-lhes que s o resto se salvar, esse autor nos revela a impossibilidade para

    o todo e a parte, de coincidir consigo mesmo e entre eles. O resto essa lacuna entre

    um e outro, essa separao irredutvel entre os termos, esse hiato aberto numa

    experincia que mesmo arquivada resiste a que tudo se arquive.34No se trata, portanto,

    32LLANSOL.Jogo da liberdade da alma, p. 8.33O anel poderia ser pensado aqui a partir da figura topologia da fita de Moebius. Exterior e

    interior no representam lados distintos de uma mesma banda, mas desenham com ela umacontiguidade. Alm disso, a fita de Moebius apresenta o recurso da dobra, essa que aps tersido feita abre-se para o exterior.

    34Arkhdesigna, ao mesmo tempo, comeo e comando. Para Derrida, esse nome coordena doisprincpios: o princpio da natureza ou da histria, ali onde as coisas comeam; e o princpio

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    de um resduo que poderia ser recuperado aps tudo j ter sido dito. Como se nos fosse

    possvel retom-lo para inclu-lo na ordem de um dizer arquivvel. Sobrou isso ainda,

    digamos agora. O que resta de uma experincia e Agamben tratava da marca dolorida

    de Auschwitz mesmo que essa tenha sido toda escrita em uma biografia, justamente

    o fato bruto de uma existncia, o fora da linguagem, aquilo que inviabiliza uma

    plenitude discursiva. Essa lacuna essencial, em oposio s classificaes exaustivas do

    arquivo, funda a lngua do testemunho.

    (...) dar testemunho significa pr-se na prpria lngua na posio dosque a perderam, situar-se em uma lngua viva como se fosse morta, ouem uma lngua morta como se fosse viva em todo caso, tanto fora doarquivo, quanto fora do corpusdo j dito.35

    Estando fora do arquivo e do corpus do j dito, o testemunho funda a lnguacomo aquilo que resta, aquilo que sobrevive em ato possibilidade, ou a

    impossibilidade de dizer, instituindo o Real36 do dizer. Essa tambm a posio da

    palavra potica. No arquivvel mesmo que possamos diz-la de cor(po) a palavra

    potica aquela que se situa, a cada vez, na posio de resto. Por estar fora de

    qualquer fundamento que possa realizar uma identidade, essa lngua fundada preserva

    a sua exterioridade em relao ao arquivo, ao mesmo tempo que inaugura um dizer que

    no elimina o resto. Vingana sobre (d)os restos.Vingar: castigar, punir; mas tambm sobreviver, transpor. Sem a inteno de

    definir uma identidade preservada num fundamento e dirigida para um fim, esse resto

    um mnimo, um sopro, uma disperso transposto para a lngua que funda o texto

    da lei, al onde os homens e os deuses comandam, onde se exerce a autoridade, a ordemsocial, a lei. O conceito de arquivo abriga esta memria do nome arkh, mas certamente nose reduz a ela. H outra palavra que guarda a memria do conceito: arkhion. Inicialmenteuma casa, um domiclio que tem nos arcontesos seus primeiros guardies. No cruzamentodesses termos temos o suporte e a lei, o topolgico e o nomolgico, o domicilio e a

    autoridade. O arquivo no define somente o lugar, o suporte, mas tambm o poder arcnticoque concentra as funes de unificao, identificao, classificao e consignao. VerDERRIDA. Mal de arquivo uma impresso Freudiana, p. 11-16.

    35AGAMBEN. O que resta de Auschwitz, p. 160.36 Trata-se aqui da noo lacaniana do Real. Lacan define o Real a partir de uma categoria

    modal como o que no pra de se escrever, tendo o contingente, outra categoria modal,como o seu opositor. a partir de um ponto onde algo cessa de no se escrever que o Realpode ser demonstrado. No se trata, portanto, de representar o Real, nem de arquiv-lo numagramtica definida, mas de demonstr-lo a partir de um ponto de escrita. Essa escrita seriaaquela em ponto de letra, com sua dimenso litoral entre real e simblico; entre saber egozo, como bem demonstrou Lcia Castello Branco. Sobre isso ver LACAN. O Seminrio

    livro 20: mais ainda (1972-1973), p. 81; e CASTELLO BRANCO. Sob o luar libidinal, p. 93-108.

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    ardente, ao mesmo tempo que sobrevive na lngua guardada/rasurada dos Manuscritos,

    naquilo que resta de uma vida, testemunho de uma escrita marcada pelo amor e pela

    morte.

    Da mstica, do transbordamento, da paixo, dopthos, da biografia, do cnone, o

    que resta biografema: ardente texto. E assim, um n desata-se na leitura e anela-se a

    uma outra forma de escrita.

    PARTCULA III:ESCREVER COM O TEXTO ARDENTE

    No Ardente texto Joshua e no O jogo da liberdade da alma, encontramos o

    trabalho da autora portuguesa vertendo os cadernos de Thrse em idioma Llansol. O

    nome Teresa porta o trao, os fragmentos mnimos de uma vida. H nesses textoscomeantes pois revelam um desejo de persistir passagens de vida. De uma vida

    levada ao seu ponto de pura potncia, entendido aqui como campo fora da dicotomia

    possvel/impossvel, como um terceiro termo que s acolhe a possibilidade atravessada

    pela impossibilidade.37No h passado no texto ardente que no esteja lanado a um

    futuro de pura potncia. Trata-se, ento, de um vivendo, de um acontecendo no texto,

    em que a estranheza do verbo nos indica que a vida est a acontecer corpascrever.

    Ao pinar dos cadernos de Thrse Martin, de Lisieux, o ponto mnimo, destitudo de

    toda pessoalidade, Maria Gabriela Llansol leva o poder perca de memria.

    Perder a memria, no ter memria, pensei, absorver o presente numa

    constante iniciao, encontrar-se num estado de nudez.38 Essa vida, sem apoio de

    memria, que se destaca no encontro com o legente, que abre caminho emigrao das

    imagens, dos afectos, e das zonas vibrantes da linguagem, condio da poesia.

    Encontramos nesses livros o transporte, no da metfora, nem do sentido

    semntico dos escritos de Teresa, mas o transporte do corpo sutil da letra, essa

    substncia lenhosa da lngua.39Esses corpos, grafemas precisos, restos testemunhais

    de uma vida, transpostos agora para o nada desconhecido, eram som, eram obedincia,

    37ANDRADE. O cinema sem imagens, p. 112.38LLANSOL. O jogo da liberdade da alma, p. 35.39

    Para Agamben quem nunca alcanou, com num sonho, esta substncia lenhosa da lngua,(...) ainda que se cale, est prisioneiro das representaes. Ver AGAMBEN. Idia damatria, p. 29.

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    eram certamente potencialidades do texto vivo, ultrapassada a lngua morta em que

    sonhavam.40

    Para Csar Guimares, j no se trata mais de representar os acontecimentos de

    uma vida sob a forma narrativa, mas de encontrar a letra que acumula, a partir da sua

    materialidade, o intensivo presente nesse corpo de foras e de afectos.Na composio

    das figuras, Llansol abre mo da historicidade, de uma subjetividade una e totalizadora.

    Interrompe uma linha de continuidade para buscar esse ponto mnimo, e, em vez das

    confisses do dirio ou do universo mais ou menos psicolgico da vida interior do

    personagem romanesco, o que encontramos nesses textos o nomadismo de um gesto

    que se desloca em direo ao mundo figural que mais tarde chamar de cenas fulgor.

    Nessas circunstncias, identifiquei progressivamente nsconstrutivos do texto a que chamo figuras e que, na realidade, noso necessariamente pessoas mas mdulos, contornos, delineamentos.Uma pessoa que historicamente existiu pode ser uma figura, aomesmo ttulo que uma frase (...), um animal ou uma quimera. O quemais tarde chamei cenas fulgor.41

    Na composio das cenas fulgor no existe hierarquizao do vivo. As figuras

    se compem numa mtua relao de no identidade. A criao dessas cenas fulgor, ao

    lado dos cadernos de Teresa,42provoca, por vezes, cises na personagem histrica (...)

    exploses energticas de grande alcance.43O que explode nesses livros , justamente, oque antes se acomodava nas tradues/edies. As figuras, que participam da cena

    fulgor, no so inertes, mas um princpio activo, cuja harmnica e trajectria se

    esvaem se o impedirem de agir segundo seu prprio princpio.44Llansol inicia a sua

    escrita ao lado dos poemas e cadernos da carmelita e passa, em seguida, a escrever

    sobre eles sem estabelecer um regime sucessivo e causal de pocas e acontecimentos.

    atrada pelo que se ouve de voz na palavra. L, soletrando, deixando cair as imagens

    sonoras, para compor um mundo figural que explode em cenas fulgor. A

    40LLANSOL. Um beijo dado mais tarde, p. 99.41LLANSOL. Um falco no punho, p. 130.42O nome de Thrse Martin transposto para a textualidade llansoliana e aparecer grafado

    nos livros da autora portuguesa dessa forma. Teresa figura da textualidade llansolina, trazconsigo os fragmentos da sua histria, mas sofre as metamorfoses do movimento da leiturae escrita operadas por Llansol. E, certamente, o nome prprio no escapa a isso.

    43JOAQUIM. Proposta de linhas directoras para a pea baseada em O livro das comunidades,p.

    7.44LLANSOL. Um falco no punho, p. 131.

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    sobreimpresso de incios, de cenas, de figuras Teresa, Gabriela, Tmia no nos

    permitem dizer de uma histria una, to pouco de um sujeito lrico uno. O seu texto

    no avana por enredo, segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor, nos diz a

    autora portuguesa. H assim unidade, mesmo se aparentemente no h lgica, porque

    eu no sei antecipadamente o que cada cena fulgor contm.45

    Figurar o Real atravs de uma lngua fulgor, figurar o Real, quer dizer, torn-lo

    figura lanada no espao das cenas fulgor.Tom-lo por figuras que abandonaram a via

    representativa para passarem via da demonstrao, ou via dos afetos. Esse parece ser o

    trabalho de leitura e transposio que Llansol realiza ao lado dos poemas e manuscritos

    de Teresa.

    A montagem dessas cenas fulgor passa pela decomposio/composio dos

    corpos que se afetam mutuamente. Para Llansol, h uma geografia dos corpos que

    impele o pensamento a seguir adiante. Uma geometria que apresenta o modo como os

    corpos se estendem ou adormecem no espao, e como podem ser tocados pelas

    propriedades do outro. Sim, ento, o corpo, mas o corpo que, sem causa, se lance e se

    projecte sem n pela encosta fora de mim.46

    A presena desses corpos afectuantes corpus textuais e corpo que escreve

    (corpascrever) nos livros que citamos encontra seu fundamento filosfico em

    Spinoza. Figura constante na obra de Llansol, esse autor nos diz que um corpo pode ser

    afetado de muitas maneiras, e cada um deles determinado ao movimento ou ao

    repouso por uma outra coisa singular, isto , um outro corpo. O que os distingue

    justamente o fato de estarem em movimento ou em repouso, em lentido ou em

    velocidade. Dessa forma, um corpo em movimento continuar se movimentando at que

    seja determinado ao repouso por outro corpo e, igualmente, um corpo em repouso

    continuar em repouso at que seja determinado ao movimento por um outro. O

    movimento ou o repouso, a extenso ou a reduo de um corpo, so determinados poruma causa exterior.

    o Corpo, escrevia ento,(a Leitura, escrevo agora) composto de um grande nmero de indivduos de naturezadiversa e, por conseqncia, pode ser afectado de maneirasmuito diversas por um s e mesmo corpo e,

    45

    LLANSOL. Um falco no punho, p. 130.46LLANSOL. Um falco no punho, p. 9-10.

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    inversamente (...).47

    Llansol atravessa os escritos de Teresa atenta aos movimentos da letra, no

    compasso de um corpo. O caminho da procura, nos diz a autora, o seu prprio

    corpo. No sem razo que encontra os cadernos da carmelita. Afinal, o textoalimenta-se de texto. Tem especial apetncia por formas de texto poderosas, como os

    textos msticos, erticos, profticos.48Nos livros que tomamos aqui, h um encontro

    entre o corpustextual de Teresa e o corpustextual de Llansol, corpos singulares que se

    compem e que, ao se encontrarem, avanam para as fontes da alegria. H uma

    expanso de corpus, seguindo um movimento de leitura que nos revela que o melhor

    des-nodar. Llansol des-noda em cenas fulgor, em cintilaes, a natureza libidinal

    desse corpo, ampliando a sua potncia de agir.

    Essa operao na matria da lngua, tranada a partir da legncia, busca os focos

    de intensidade de um corpo para desloc-los dos lugares acostumados, ampliando-os e

    despertando a sua natureza: Desperta a minha natureza, tal como eu despertei o

    Ardente texto de Teresa emArdente texto Joshua.49Transfigura a experincia de uma

    vida e a deixa reduzida ao seu ponto de letra biografemtica, faz, de Teresa, figura,

    traduzida/in-corporada, transposta para o texto ardente, num jogo de liberdade da

    alma.

    Passando pela leitura, deixando cair de uma vida focos de intensidade, num

    movimento de leitura que se arrisca a seguir um pouco mais alm, eis, ento, a

    experincia do tempo restante. Nem futuro, nem passado: apenas restante vida. A

    partir de um desejo de persistir, e da deciso de se manter fiel letra do texto, Llansol

    nos revela que a leitura dobra de escrita, e que escrever,nesse vinco, nesse leito de

    amor leitor , tecer em ponto de fio, na ponta do fio, alcanando, quem sabe em

    sonho, um n de fulgor.

    RSUM

    On cherche avec cet article dfinir lopration de lecture efectue et

    opre par Maria Gabriela Llansol, partir de la rencontre entre la

    47LLANSOL. O jogo da liberdade da alma, p. 84.48

    LLANSOL.Ardente texto Joshua, p. 101.49LLANSOL. O jogo da liberdade da alma, p. 17.

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    textualit de Llansol avec les cahiers et les pomes de Thrse de

    Lisieux. Une lecture qui promove un dplacement du texte, une

    mutation des corps partir dun biographme prcis/prcieux:

    amour.

    Mots-cls

    Lecture, legencia, lettre, amour, briographeme

    REFERNCIAS

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  • 7/23/2019 o anel da leitura

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    LLANSOL, Maria Gabriela. O jogo da liberdade da alma. Lisboa: Relgio dgua,2003.

    LLANSOL, Maria Gabriela.A restante vida. Lisboa: Relgio dgua, 2001.

    LLANSOL, Maria Gabriela. Fragmento da carta a Eduardo Prado Coelho. Disponvel

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