O Aprendiz - Taran Matharu

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O Aprendiz – Em O aprendiz, primeiro volume da série Conjurador, Fletcher é um órfão de 15 anos e, para sua surpresa, conseguiu invocar um demônio do quinto nível. O problema é que apenas os nobres deveriam ser capazes de conjurar criaturas e usá-las na guerra contra os orcs. Mas plebeus como Fletcher também podem ser conjuradores, e o garoto consegue uma vaga na Academia Vocans, uma escola de magos que prepara seus alunos para os campos de batalha. Lá, ele irá enfrentar o bullying dos nobres, mas também aprenderá feitiços e fará amigos incomuns, como anões e elfos. Além de se provar digno de uma boa patente na guerra, Fletcher e seu grupo de segregados precisam se unir e vencer o preconceito que sofrem na desigual sociedade de Hominum.

Transcript of O Aprendiz - Taran Matharu

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"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

TraduçãoEdmo Suassuna

1ª edição

Rio de Janeiro | 2015

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DE LIVROS, RJ

M378aMatharu, Taran

O aprendiz [recursoeletrônico] : o conjuradorvolume 1 / Taran Matharu ;tradução Edmo Suassuna. - 1.ed. - Rio de Janeiro : GaleraRecord, 2015.

recurso digital (O conjurador; 1)

Tradução de: The novice:summoner vol. 1

Formato: epubRequisitos do sistema: adobe

digital editionsModo de acesso: world wide

webISBN 978-85-01-10640-7

(recurso eletrônico)1. Ficção infantojuvenil

brasileira. 2. Livros eletrônicos.I. Suassuna, Edmo. II. Título.III. Série.

15-25262CDD: 028.5CDU: 087.5

Título original:The novice: Summoner vol. 1

Copyright © 2015 Taran Matharu

Copyright da tradução em português ©2015 Editora Record LTDA.

Publicado originalmente na Grã-Betanha em 2015 por Hodder

Children’s Books

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que se reserva a propriedade literáriadesta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-10640-7

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Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-

2002.

Para minha mãe, que sempre meapoiou.

Para Alice, a pedra fundamentaldesta história.

E para meus leitores do Wattpad,sem os quais nada disso seria

possível.

1

Era agora ou nunca. Se Fletchernão abatesse o animal, passariafome aquela noite. O crepúsculose aproximava rapidamente e elejá estava atrasado. Precisavavoltar logo à vila ou se deparariacom os portões fechados. Se isso

acontecesse, Fletcher teria quesubornar os guardas com umdinheiro que não tinha ou correro risco de passar a noite nafloresta.

O jovem alce tinha acabadode esfregar os chifres numpinheiro alto, raspando o veludomacio que os recobria pararevelar as pontas afiadas porbaixo. Pelo tamanho e pela alturadiminutos, Fletcher diria que setratava de um animal de pouca

idade exibindo a primeiragalhada. Era um belo espécime,com pelo brilhoso e olhosluminosos, inteligentes.

Fletcher quase sentiuvergonha de caçar uma criaturatão majestosa, porém já calculavamentalmente seu valor. Opelame espesso renderia um bomdinheiro quando os peleteiroschegassem, especialmente porquejá era inverno. Daria pelo menosuns cinco xelins. Os chifres

estavam em bom estado, aindaque fossem um tanto pequenos, erenderiam talvez quatro xelins,com sorte. Era a carne,entretanto, que o rapaz desejavaacima de tudo, de cor vermelha esabor intenso, pingando gordurano fogo.

Uma névoa densa seespalhava no ar, pesada,cobrindo Fletcher com uma finacamada de orvalho. A florestaestava anormalmente quieta.

Geralmente, o vento agitaria osgalhos, permitindo que o rapaz seesgueirasse pela mata sem serouvido. Naquele momento, noentanto, ele mal se permitiarespirar.

Fletcher pegou o arco epreparou uma flecha. Era o seumelhor projétil, com haste reta ecerteira, e aletas feitas de boaspenas de ganso, em vez dasplumas baratas de peru que elecomprava no mercado. Inspirou

de leve e puxou a corda. Estavaescorregadia em seus dedos; omenino a untara com gordura deganso para protegê-la daumidade do ar.

A ponta entrava e saía docampo de visão do caçadorenquanto ele mirava no alce.Fletcher estava agachado a unsbons dez metros de distância,escondido na grama alta. Era umtiro difícil, mas a falta de ventotambém tinha lá suas vantagens.

Nada de rajadas para desviar aflecha de seu caminho.

O rapaz expirou e disparouem um único movimento fluido,incorporando o momento deimobilidade de corpo e almaconforme tinha aprendido pelaexperiência amarga e faminta.Ouviu o vibrar seco da corda eentão o baque da flechaatingindo o alvo.

Fora um belo tiro, perfurandoo alce no peito, através de

pulmões e do coração. O animaldesabou e entrou em convulsão,debatendo-se no solo. Os cascosescavavam uma tatuagem naterra com seus espamos demorte.

Fletcher disparou em direçãoà presa e sacou uma faca deesfolamento da bainha fina emsua coxa, mas o alce estava mortoantes que o alcançasse. Um abatebom e limpo, isso que Berdon lhediria. Mas matar era sempre uma

sujeira. A espuma sangrenta queborbulhava da boca do animalatestava o fato.

Fletcher removeu a flechacom cuidado e ficou feliz ao verque a haste não tinha se partidonem a ponta de sílex se lascadonas costelas do alce. Mesmo queseu nome, Fletcher, significasse“aquele que faz flechas”, o rapazse frustrava com o longo tempoque levava amarrando setas. Elepreferia o serviço que Berdon

ocasionalmente lhe passava, demartelar e moldar ferro na forja.Talvez fosse pelo calor, ou pelaforma como seus músculosdoíam deliciosamente depois deum longo dia de trabalho árduo.Ou talvez fossem as moedas quepesavam em seus bolsos quandoele era pago após a entrega.

O jovem alce era pesado, masa vila não estava longe. Asgalhadas serviam bem comoalças, e a carcaça deslizava com

facilidade sobre a relva molhada.A única preocupação agoraseriam os lobos ou os gatosselvagens. Não era raro que elesroubassem a refeição ou atémesmo a vida de um caçador quelevava a presa para casa.

O rapaz estava caçando nacrista das montanhas Dentes deUrso, assim chamada por seusdistintos picos gêmeos, que seassemelhavam a dois caninos. Avila ficava na crista acidentada

entre os dois, e o único caminhoaté lá era uma trilha íngreme erochosa, bem à vista dos portões.Uma grossa paliçada de madeiracercava a vila, equipada compequenas torres de vigia aintervalos regulares. A vila nãoera atacada havia muito tempo;apenas uma vez nos quinze anosdesde o nascimento de Fletcher.Mesmo então, fora apenas umpequeno bando de ladrões, emvez de uma incursão dos orcs,

algo muito improvável tão longeao norte das selvas. Apesar disso,o conselho da vila levava asegurança muito a sério, e entrarapós o nono sino era sempre umpesadelo para os retardatários.

Fletcher manobrou a carcaçado animal até a relva grossa quecrescia ao lado da trilha rochosa.Não queria danificar o pelame, aparte mais valiosa do alce. Pelede animais era um dos poucosrecursos que a vila tinha a

oferecer, e daí ela tirou seunome: Pelego.

A subida era dura e ocaminho, traiçoeiro aos pés,ainda mais no escuro. O sol játinha desaparecido atrás dacrista, e Fletcher sabia que o sinosoaria a qualquer minuto. Orapaz trincou os dentes e seapressou, tropeçando epraguejando ao arranhar osjoelhos no cascalho.

O desânimo tomou seu

coração ao alcançar os portõesprincipais. Já estavam fechados,com os lampiões ao alto acesospara a vigília noturna. Osguardas preguiçosos tinhamfechado mais cedo, ansiosos pelabebedeira na taverna da vila.

— Seus palermas preguiçosos!O nono sino ainda nem tocou. —Fletcher praguejou e soltou agalhada do alce no chão. — Medeixem entrar! Eu não voudormir aqui fora só porque vocês

não podem esperar para encher acara. — Ele chutou o portão comforça.

— Ora, ora, Fletcher, dá parafalar mais baixo? Tem gente debem dormindo aqui dentro. —Era uma voz vinda do alto.Didric. O guarda se debruçousobre o parapeito acima deFletcher, com a grande cararedonda sorrindo maldosamente.

O rapaz fez uma careta. Detodos os guardas que poderiam

estar de serviço hoje, tinha queser Didric Cavell, o pior dobando. Ele tinha 15 anos, amesma idade de Fletcher, mas seachava adulto. Eles não segostavam. O guarda era umvalentão, sempre procurandouma desculpa para exercer suaautoridade.

— Eu dispensei mais cedo oturno do dia. Veja bem, levomeus deveres muito a sério. Nãopodemos vacilar, considerando

que os mercadores chegarãoamanhã. Nunca se sabe que tipode ralé fica se esgueirando aífora. — Ele riu da própriaprovocação.

— Me deixe entrar, Didric.Você sabe tão bem quanto euque os portões deveriam ficarabertos até o nono sino! —exclamou Fletcher. Enquantofalava, ouviu o sino começar seudobrar reverberante, ecoandofracamente nos vales abaixo.

— O que foi que você disse?Não consigo escutar — gritouDidric, levando uma das mãos àorelha de forma teatral.

— Eu falei para você medeixar entrar, seu paspalho. Istoé ilegal! Vou ser obrigado a tedenunciar se não abrir os portõesagora mesmo! — berrou o rapaz,furioso com o rosto pálido sobrea paliçada.

— Bem, você poderia muitobem fazer isso, e eu certamente

não negaria o seu direito de fazê-lo. Muito provavelmente, nósdois seríamos punidos, e isso nãofaria bem a ninguém. Então, porque não fazemos um acordo?Você me dá esse alce, e eu lhepoupo o aborrecimento dedormir na floresta esta noite.

— Pode enfiar no seu rabo,babaca — retrucou Fletcher, sempoder acreditar. Até para Didric,isso era uma chantagemdescarada demais.

— Vamos lá, Fletcher, sejarazoável. Os lobos e os gatosselvagens virão rondar, nem umafogueira muito forte os manteráafastados no inverno. Vocêpoderá dar no pé quando eleschegarem, ou ficar aqui e servirde aperitivo. De qualquermaneira, mesmo se você duraraté o amanhecer, vai entrar porestes portões de mãos abanando.Me deixe ajudar você. — A vozde Didric era quase amistosa,

como se estivesse fazendo umfavor.

O rosto de Fletcher ardia,vermelho. Isso ia muito além dequalquer coisa que ele já tivessepassado. A injustiça era comumem Pelego, e o rapaz aceitarahavia muito que, num mundo deprivilegiados e desfavorecidos,ele certamente fazia parte dasegunda categoria. Mas agoraesse moleque mimado, ainda porcima filho de um dos homens

mais ricos da vila, o estavaroubando.

— É assim, então? — indagouFletcher, num tom baixo efurioso. — Você se acha muitoesperto, não acha?

— É só a conclusão lógica deuma situação na qual calhei deser o beneficiário — argumentouDidric, afastando a franja loirados olhos.

Todos sabiam que o rapazrecebia aulas particulares, e

ostentava sua educação atravésda fala floreada. Seu pai tinhaesperanças de que Didric um diase tornasse juiz, possivelmenteem um tribunal de alguma dasmaiores cidades de Hominum.

— Você esqueceu uma coisa— grunhiu Fletcher. — Que euprefiro muito mais dormir nomato a deixar você roubar minhapresa.

— Hah! Acho que vou pagarpara ver seu blefe. Tenho uma

longa noite pela frente. Vai serdivertido assistir enquanto vocêtenta rechaçar os lobos. — Didricriu.

Fletcher sabia que Didric oestava provocando, mas isso nãofez seu sangue ferver menos. Orapaz suprimiu a raiva, mascontinuou furioso no fundo damente.

— Eu não vou te dar o alce.Só a pele já vale uns cinco xelins,e a carne vai render mais uns

três. Se me deixar entrar, euesqueço de denunciar você.Podemos deixar essa confusãotoda para trás — sugeriuFletcher, engolindo o orgulhocom dificuldade.

— Vamos fazer assim: nãoposso sair dessa de mãos vazias;isso não seria justo, seria? Mas,como estou me sentindogeneroso, se você me der esseschifres que por acaso deixou demencionar, eu encerro o assunto,

e nós dois conseguimos o quequeremos.

Fletcher estremeceu com odescaramento da sugestão.Resistiu por alguns momentos,então cedeu. Uma noite naprópria cama valia quatro xelins,e para Didric aquilo não passariade uns trocados. O rapaz grunhiue sacou a faca de esfolamento.Era afiadíssima, mas não tinhasido feita para cortar chifres. Eleodiava ser forçado a mutilar o

alce, mas teria que decapitá-lo.Um minuto mais tarde,

depois de serrar as vértebras,tinha a cabeça nas mãos,pingando sangue nos mocassins.Fletcher fez uma careta e aergueu para que o guarda a visse.

— Muito bem, Didric. Venhabuscar — chamou Fletcher,brandindo o troféu grotesco.

— Jogue aqui para cima —respondeu Didric. —Não confioque você vá me entregar depois.

— O quê? — retrucou orapaz, incrédulo.

— Jogue para mim, ou nadade acordo. Não estou compaciência de tomar isso de você eficar com o uniforme todoensanguentado — ameaçouDidric.

Fletcher grunhiu e a atiroupara o alto, lambuzando aprópria túnica com sangue. Acabeça voou por sobre Didric ecaiu no parapeito. O guarda não

fez menção de pegá-la.— Foi muito bom fazer

negócios com você, Fletcher.Vejo você amanhã. Espero que sedivirta acampando na mata —disse ele, animado.

— Espera! — berrou o garoto.— E quanto ao nosso acordo?

— Eu mantive minha parte notrato, Fletcher. Disse queencerraria o assunto, e que nósdois conseguiríamos o quequeríamos. E você disse há pouco

que preferiria dormir no mato ame dar o seu alce. Então, aí está,você recebe o que prefere, e eufico com o que quero. Vocêdeveria realmente prestar maisatenção aos termos e condiçõesde qualquer contrato, Fletcher. Éa primeira lição que um juizaprende. — O rosto do guardacomeçou a sumir atrás doparapeito.

— Esse não foi nosso acordo!Me deixa entrar, seu

vermezinho! — rugiu Fletcher,chutando o portão.

— Não, não, minha cama estáme esperando em casa. Nãoposso dizer o mesmo da sua,porém. — Didric ria enquanto sevirava.

— Você está de guarda estanoite, não pode ir para casa! —gritou de volta o rapaz. Se Didricabandonasse o serviço, Fletcherpoderia se vingar delatando afalta. Ele nunca tinha se

considerado um dedo-duro, maspor Didric abriria uma exceção.

— Ah, não estou de guardahoje. — O grito de Didric sooubaixo conforme ele descia osdegraus da paliçada. — Eu nuncadisse que estava. Falei a Jakovque ficaria de olho enquanto eleusava a latrina. Deve estar devolta a qualquer minuto.

Fletcher cerrou os punhos,quase incapaz de compreender areal dimensão do golpe de

Didric. Contemplou a carcaçadecapitada ao lado dos mocassinsarruinados. Enquanto a fúriasubia como bile à sua garganta, orapaz tinha só um pensamento:isso não acabaria ali. Nem emum milhão de anos.

2

— Saia dessa cama, Fletcher. Esteé o único dia do ano em que eurealmente preciso de vocêacordado na hora certa. Nãoposso cuidar da barraca na feira eferrar cavalos ao mesmo tempo.— O rosto avermelhado de

Berdon surgiu assim que Fletcherabriu os olhos.

O rapaz grunhiu e puxou oscobertores sobre a cabeça. Jakovo tinha feito esperar do lado defora por uma hora antes dedeixá-lo entrar, com a condiçãode que Fletcher lhe pagasse umdrinque da próxima vez que osdois estivessem na taverna.

Antes que pudesse se deitar,Fletcher teve de estripar e esfolaro alce, além de cortar a carne e

pendurá-la junto à lareira parasecar. O rapaz se permitiu apenasuma única fatia suculenta, assadapor alguns poucos minutos nofogo, antes que ele perdesse apaciência e devorasse tudo. Noinverno era sempre melhor salgare secar a carne para mais tarde;Fletcher geralmente não tinhacomo saber quando faria apróxima refeição.

— Agora, Fletcher! E vá selavar. Você está fedendo como

um porco. Não quero que afasteos clientes. Ninguém vai querercomprar de um vagabundo. —Berdon arrancou as cobertas esaiu do minúsculo quarto doaprendiz, nos fundos da forja.

O rapaz estremeceu com aperda dos cobertores e se sentou.O quarto estava mais quente doque ele esperava. Berdonprovavelmente passara a noitetoda na forja ardente, sepreparando para o dia de feira.

Fletcher já aprendera haviamuito tempo como se manteradormecido sob o retinir demetal, o rugido dos foles e ochiado das armas incandescentessendo temperadas.

Ele atravessou penosamente asala da forja até o pequeno poçodo lado de fora, do qual Berdoncostumava tirar a água detêmpera. Puxou o balde e, apósum único instante de hesitação,despejou a água gelada na

cabeça. A túnica e as calçastambém se encharcaram, mas,considerando que ainda estavamcobertas do sangue da noiteanterior, isso deveria lhes fazeralgum bem. Depois de váriosoutros baldes e uma esfregadaenérgica com pedra-pomes,Fletcher estava de volta à forja,tremendo de frio e com os braçoscruzados.

— Venha cá, deixe-me daruma olhada em você.

Berdon estava parado àentrada do próprio quarto, comos longos cabelos ruivosiluminados pela lareira. Era delonge o maior homem da vila, eas longas horas martelando ometal na forja lhe concederamombros largos e um peitoralsólido como um barril. Ele faziacom que Fletcher, um rapazpequeno e magro para a idade,parecesse ainda menor.

— Bem como eu pensava.

Você precisa se barbear. Minhatia Gerla tinha um bigode maisgrosso que esse. Livre-se dessapenugem rala até que você tenhaum de verdade, como o meu.

Os olhos de Berdonbrilhavam enquanto ele torcia aspontas do próprio bigode ruivoque se eriçava, espesso, acima dabarba grisalha. Fletcher sabia queo ferreiro tinha razão. Hoje osmercadores viriam à vila, e elesfrequentemente traziam as filhas,

meninas da cidade grande comlongas saias plissadas e madeixascacheadas. Mesmo que o rapaz jásoubesse, graças à amargaexperiência, que elas torceriam onariz quando o avistassem, nãofaria mal algum se estivesseapresentável.

— Vamos lá. Enquanto sebarbeia, vou separar a roupa quevocê vai vestir hoje. E nada dereclamar! Quanto maisprofissional você parecer, melhor

nossa mercadoria parecerá.Fletcher saiu novamente para

o frio congelante. A forja ficavabem ao lado dos portões da vila,cuja paliçada de madeiraterminava a menos de um metroda parede dos fundos do seuquarto. Havia um espelho e umapequena bacia largados ali perto.Fletcher sacou a faca deesfolamento e aparou apenugem, antes de inspecionar opróprio rosto no espelho.

Ele era pálido, o que não erasurpreendente, já que estava tãoao norte de Hominum. Os verõeseram curtos em Pelego, onde ogaroto passava algumas curtas,mas divertidas, semanas com osoutros meninos na floresta,pescando trutas nos córregos eassando avelãs na fogueira. Era aúnica época na qual Fletcher nãose sentia um forasteiro.

A expressão dele era séria,com maçãs do rosto definidas e

olhos castanho-escuros um tantoencovados. O cabelo era umdenso emaranhado negro, queBerdon era obrigado aliteralmente tosar quando ficavaselvagem demais. Fletcher sabiaque não era feio, mas tambémnão exatamente belo secomparado aos meninos maisricos, bem alimentados, decabelos loiros e bochechascoradas da vila. Cabelos escuroseram incomuns nos

assentamentos do norte, porém,tendo sido abandonado aosportões quando era só um bebê,Fletcher não ficava surpreso aonotar que não se parecia emnada com os outros. Era só maisuma coisa que o separava doresto.

Berdon tinha deixado umatúnica azul-clara e calças verde-limão na cama do rapaz. Fletcherempalideceu perante aquelascores, mas engoliu os

comentários quando percebeu aadvertência no olhar de Berdon.As roupas não pareceriamestranhas num dia de feira. Osmercadores eram conhecidospelos trajes extravagantes.

— Vou deixar você se vestir— comentou Berdon com umacurta risada, enquanto saía doquarto.

Fletcher sabia que asprovocações do ferreiro eram suamaneira de demonstrar carinho,

então elas não o incomodavam.O rapaz nunca fora do tipotagarela, preferindo a companhiade si mesmo e dos própriospensamentos. Berdon semprerespeitara sua privacidade, desdeque o menino começara a falar.Era um relacionamento estranho,o solteirão rústico e bondoso comseu aprendiz introvertido, porémeles conseguiam fazer dar certo.Fletcher sempre seria grato porBerdon tê-lo acolhido quando

ninguém mais o quis.O menino tinha sido

abandonado sem nada, nemmesmo uma cesta ou trouxa.Apenas um bebê nu na neve,berrando a plenos pulmõesdiante dos portões. Os ricosesnobes não acolheriam a criançaabandonada, e os pobres nãotinham condição de fazê-lo.Aquele era o inverno mais severoda história de Pelego, e a comidaera escassa. No fim, Berdon se

oferecera para ficar com omenino, já que tinha sido elequem o encontrara em primeirolugar. O ferreiro não era rico,mas não tinha outras bocas aalimentar nem dependia dasestações para trabalhar, então eraa pessoa ideal em vários aspectos.

Fletcher nutria um ódioprofundo pela mãe, mesmo quenão fizesse ideia de quem elafosse. Que tipo de pessoadeixaria seu bebê nu para morrer

na neve? O menino sempre seperguntava se não teria sido umagarota de Pelego, incapaz ouindisposta a criá-lo. Às vezesvasculhava os rostos dasmulheres ao seu redor,comparando suas feições àspróprias. Não sabia por que sedava a tal trabalho; nenhumadelas se parecia em nada comele.

A barraca de Fletcher,carregada de espadas e adagas

brilhantes, já estava montadajunto à estrada principal, que iado portão até os fundos da vila. Enão era a única. Pelo caminhohavia outras, lotadas de carnes epelos. Outras mercadoriastambém estavam à mostra:móveis construídos com os altospinheiros que cresciam no Dentede Urso e flores da montanha, depétalas prateadas, em jarros paraos jardins das ricas donas de casada cidade.

Couro era outro produtofamoso de Pelego, cujas jaquetase os gibões eram valorizadosacima de todas as outras pelaqualidade do corte e da costura.Fletcher estava de olho numajaqueta em particular. O rapaztinha vendido quase todas aspeles que conseguira naquele anoa caçadores, e fora capaz deeconomizar mais de trezentosxelins para essa compra. Ele a viupendurada mais adiante, mesmo

que Janet — a mercadora quetinha passado várias semanasfazendo o casaco — tivesse lhedito que ele só poderia comprarpelos trezentos xelins se ninguémfizesse uma oferta melhor até ofim do dia.

A jaqueta era perfeita.Forrada com pelo ultrafelpudode lebre da montanha, macio ecinzento, salpicado de castanho.O couro propriamente dito erade um mogno profundo, robusto

e imaculado. Era à prova d’águae não mancharia fácil, nem serasgaria quando Fletcherperseguisse uma presa por entreos espinheiros da floresta. Orapaz já se via vestindo o casaco;agachado na chuva, bemaquecido e camuflado com umaflecha preparada no arco.

Berdon estava sentado atrásdele, diante da forja, ao lado deuma bigorna e uma pilha deferraduras. Mesmo que suas

armas e armaduras fossem dealta qualidade, ele tinhaaprendido que havia muitodinheiro a se ganhar ferrando oscavalos de carga dos mercadoresexaustos, cuja longa jornadapelas vilas remotas ao longo doDente de Urso tinha apenascomeçado.

No último ano que osmercadores apareceram, Fletcherpassara o dia inteiro ocupado, atémesmo afiando as espadas depois

que a barraca ficara vazia. Tinhasido um ótimo ano para sevender armas. O Império deHominum havia declaradoguerra numa nova frente aonorte das montanhas do Dentede Urso. Os clãs élficos tinham serecusado a pagar o impostoanual, dinheiro que o Império deHominum exigia em troca daproteção contra as tribos órquicasdas selvas do sul, lá do ladooposto do país. O império

declarara guerra para cobrar asdívidas, e os mercadores temiamgrupos de elfos saqueadores. Nofim, acabou sendo uma guerra deprincípios com algumasescaramuças e nada mais, eacabou num acordo decavalheiros, acertando que oconflito não se agravaria. Haviauma coisa na qual tantoHominum quanto os clãs élficosconcordavam implicitamente: osorcs eram o verdadeiro inimigo.

— Será que eu vou ter tempode dar uma olhada na feira esteano? — perguntou Fletcher.

— Acho que sim. Não hámuita demanda por armas novasdesta vez. As novas tropas doDente de Urso podem sercompostas de velhos e aleijados,mas acho que os mercadoresacreditam que a presença dosmilitares vá desencorajar ossalteadores a vaguear por estasbandas e atacar seus comboios. O

pior é que provavelmente estãocertos; não acho que terão de sedefender muito este ano. Nãofaremos muitos negócios comeles. Mas, pelo menos, sabemosque ainda há necessidade dosmeus serviços da parte dosmilitares, depois da sua visita àlinha de frente no mês passado.

Fletcher estremeceu com alembrança da jornada sobre amontanha até o forte maispróximo. A linha de frente era

um lugar tenebroso, cheio dehomens com olhares vazios,esperando pelo fim de seuperíodo de serviço. A frenteélfica era o lixão onde eramdespejados os homens que oexército não queria mais, asbarrigas vazias incapazes de lutar.

Fricção. Era assim que algunssoldados explicavam. Alguns aconsideravam uma bênção, longedos horrores das trincheiras naselva. Os homens morriam aos

milhares na frente órquica, suascabeças eram tomadas comotroféus e abandonadas emestacas à beira da mata. Os orcseram uma raça selvagem e brutal,criaturas de trevas com intençõesimplacáveis e sádicas.

Porém, havia um tipodiferente de horror na fronteiracom os elfos: uma degradaçãoconstante. Inanição lenta ecrescente pela ração insuficiente.Exercícios sem fim aplicados por

sargentos cansados que nãosabiam mais o que fazer.Generais tacanhos quepermaneciam em seus gabinetesaquecidos enquanto seus homenstremiam em seus catres.

O intendente estiverarelutante em comprar qualquercoisa, mas ele precisava cumprir aquota, e as linhas de suprimentossobre o Dente de Urso tinham sereduzido a um fiapo havia muito,devido ao aumento da demanda

na frente órquica. O fardo deespadas que Fletcher estiveracarregando nas costas desdeaquela manhã fora vendido pormuito mais dinheiro do quevalia, deixando a bolsa do garotopesada com xelins de prata,ainda que consideravelmentemais leve que antes. Se tivessetrazido mosquetes, teria sidopago com soberanos de ouro.Berdon estava torcendo para queos mercadores trocassem armas

de fogo por espadas. Se fosse ocaso, ele poderia revender osmosquetes ao intendente napróxima estação.

Naquela noite, enquanto jaziadeitado no beliche que lheemprestaram no alojamento doquartel, esperando a manhã paraque pudesse voltar a Pelego,Fletcher decidiu que, se algumdia se alistasse no exército, jamaisse permitiria acabar num lugarcomo aquele.

— Você, garoto. Tire suabarraca da frente dos portões.Vai bloquear o caminho dosmercadores — ralhou uma vozimperiosa, interrompendo seuspensamentos.

Era o pai de Didric, Caspar;um homem alto e magro vestidocom roupas caras de veludo,costuradas a mão com tecidopúrpura bordado delicadamentecom ouro. Encarava Fletchercomo se sua mera existência o

ofendesse. Didric se escondiaatrás dele, com um sorriso norosto e o cabelo loiroemplastrado de cera, divididopara o lado. Fletcher olhou abarraca vizinha,consideravelmente mais próximada estrada que a dele.

— Não vou mandar de novo.Tire agora, ou chamarei osguardas — mandou Caspar, comrispidez. Fletcher olhou paraBerdon, que ergueu os ombros

largos e lhe deu um aceno decabeça. No fim das contas, nãofaria a menor diferença. Sealguém precisasse de armas,conseguiria encontrá-los.

Didric piscou um olho e fezum gesto de “xô”. Fletcher ficouvermelho, mas começou a semexer para cumprir a ordem. Ahora de Didric ainda chegaria,mas o pai do guarda era umhomem incrivelmente poderoso.Era agiota e tinha a vila quase

inteira no bolso. Quando umbebê precisava de remédio dacidade, Caspar estava lá. Quandouma temporada de caça ia mal,Caspar estava lá. Como poderiaum camponês que mal era capazde assinar o próprio nomecompreender o conceito de juroscompostos ou os númeroscomplexos escritos acima? Nofim, todos descobriam que opreço da própria salvação eramuito maior do que eles

poderiam pagar. Fletcher odiavaque Caspar fosse reverenciadopor tanta gente na vila, já quenão passava de um vigarista.

Enquanto Fletcher lutava parapuxar a barraca, derrubandovárias adagas cuidadosamentepolidas na terra, o sino da vilacomeçou a soar. Os mercadorestinham chegado!

3

A feira começou, como decostume, com o ranger de rodase o estalar de chicotes. A trilhaencosta acima era irregular eíngreme, porém ainda assim osmercadores forçavam seuscavalos ao limite no trecho final,

ansiosos para pegar os melhorespontos no fim da estradaprincipal da vila. Aqueles quechegavam por últimoinevitavelmente acabavam pertodo portão, longe do movimentodos pedestres que vagavam pelointerior.

Caspar estava parado naentrada, chamando-os comacenos, sorrindo e concordandocom a cabeça aos cocheiros doscarroções lotados conforme eles

entravam pelos portões. Fletcherpercebia como os cavalos tinhamse esforçado nessa jornada; seusflancos brilhavam com umacamada de suor e os olhosestavam selvagens de exaustão. Orapaz abriu um sorriso culpadocom o estado dos animais,sabendo que Berdon se manteriaocupado hoje. Fletcher esperavaque eles tivessem ferradurassuficientes para todos.

Após a passagem do último

carroção, dois homens compesados bigodes loiros e quepesentraram trotando na vila. Seuscavalos não eram as bestas decarga que puxavam os veículosdo comboio, mas corcéis pesadoscom flancos largos e cascos dotamanho de pratos. Elesbalançaram as rédeas ao passarda trilha de terra aosparalelepípedos irregulares.Fletcher ouviu Berdon praguejaratrás e fez uma careta de

solidariedade.Os uniformes negros lustrosos

com botões de latão osidentificavam como Pinkertons— homens da lei da cidadegrande. Os mosquetes quetraziam nas mãos não deixavamdúvida alguma. Fletcher olhoude relance para os porretes comtachas de metal embainhados nasselas. Poderiam quebrar braços epernas sem dificuldades, e ofariam sem escrúpulos, pois os

Pinkertons só respondiam aopróprio rei. Fletcher não faziaideia de por que estavamescoltando o comboio, mas apresença dos dois significava quehaveria pouca necessidade deproteção no caminho. As vendasem sua barraca seriam escassasnaquele dia.

Os dois homens poderiam serirmãos de tão parecidos, comcabelos loiros encaracolados eolhos cinzentos e frios. Eles

desmontaram, e o mais alto dadupla caminhou até Fletcher,levando o mosquete casualmentenas mãos.

— Garoto, leve nossos cavalosao estábulo da vila e lhes dê águae comida — comandou com vozsevera. Fletcher o encarouboquiaberto, espantado com aordem tão direta. O homemindicou os cavalos enquanto ogaroto continuava parado, nãoquerendo deixar a barraca

sozinha.— Não perca tempo com esse

moleque, ele é meio lerdo —interveio Caspar. — Nós nãotemos um estábulo da vila. Meufilho vai tomar conta dos seuscavalos. Didric, leve-os aosnossos estábulos particulares emande o cavalariço dedicar a elesuma atenção especial.

— Mas, pai, eu queria... —começou Didric, com vozlisonjeira.

— Vá agora, e não demore! —interrompeu o pai. Didric coroue lançou um olhar furioso aFletcher antes de pegar as rédeasdos dois cavalos e guiá-los pelarua.

— Então, o que os traz aPelego? Não vemos nenhumacara nova há semanas, seestiverem perseguindo foras-da-lei — contou Caspar, estendendoa mão.

O Pinkerton mais alto

apertou-lhe a mão comrelutância, forçado a ser educadoagora que seu cavalo estava sobos cuidados de Caspar.

— Nossos assuntos são com oexército na fronteira élfica. O reiexpressou o desejo de recrutarcriminosos às tropas e, ao fazê-lo,dar baixa em suas sentenças deprisão. Estamos investigando seos generais seriam receptivos aisso, em nome de Sua Majestade.

— Fascinante. É claro que

sabíamos que os alistamentos sereduziram recentemente, masisso muito me surpreende. Quesolução elegante ao problema —elogiou Caspar, com um sorrisoduro. — Quem sabe poderíamosconversar sobre o assuntodurante o jantar, com um poucode conhaque? Cá entre nós, aestalagem local é imunda, eficaríamos felizes em lhesoferecer camas confortáveisdepois da sua longa jornada.

— Ficaríamos agradecidos.Viemos de Corcillum e nãodormimos numa cama limpa háquase uma semana — admitiu oPinkerton, tirando o chapéu.

— Então vamos lhes prepararum banho e um desjejumquentinho. Meu nome é CasparCavell, e sou uma espécie deconselheiro da vila... —continuou o agiota, guiando osdois homens rua abaixo.

Fletcher considerou as

notícias enquanto as vozes seafastavam. Criminosos sendorecrutados nas forças armadasera algo que ele jamais tinhaconsiderado. Muitos rumoresafirmavam que o recrutamentoforçado de todos os jovens eraiminente, o que o empolgava epreocupava igualmente. Oalistamento obrigatório haviasido implementado na SegundaGuerra Órquica, séculos antes.Aquela guerra fora motivada por

bandos de orcs saqueadores queroubavam gado e massacravamos aldeões do nascente Impériode Hominum. Centenas de vilasacabaram exterminadas antesque os orcs fossem, enfim,rechaçados de volta às selvas.

Desta vez fora Hominum queiniciara as hostilidades, aodevastar as florestas dos orcs paraalimentar a revolução industrialque acabara de começar. Seteanos haviam se passado, e a

guerra não demonstrava sinais deque terminaria tão cedo.

— Se eu pudesse forjaraqueles mosquetes, nãoprecisaria sequer abrir a barraca— resmungou Berdon atrás domenino. Fletcher concordou comum aceno de cabeça. Mosquetes,produzidos pelos artífices anõesque viviam nas entranhas deCorcillum, estavam em altademanda na linha de frente. Astécnicas empregadas na criação

dos canos retos e mecanismoseram segredos muito bemprotegidos pelos zelosos anões.Era um negócio lucrativo, aindaque a tecnologia só tivesse sidoimplementada pelo exércitorecentemente. Antes os orcspodiam ser capazes de resistir auma saraivada de flechas embatalha, mas uma barragem defogo de mosquete tinha muitomais poder para travar seuavanço.

Foi então que Fletcherpercebeu um último viajanteentrando pelos portões. Era umsoldado veterano, com cabelosgrisalhos e barba por fazer. Vestiaum uniforme branco e vermelhode tecido esfarrapado e gasto,manchado com lama e poeira daviagem. Muitos dos botões delatão da túnica estavam ausentesou pendurados, soltos. O homemestava desarmado, algo incomuma um membro de um comboio de

mercadores, e ainda maisestranho para um soldado.

O veterano não tinha cavaloou carroça; em vez dissoconduzia uma mulasobrecarregada com alforjes. Asbotas que calçava estavam emestado lastimável, com solasgastas e furadas, balançandosoltas a cada passo cambaleanteque ele dava. Fletcher observouenquanto o sujeito se instalavano espaço diretamente oposto a

ele do outro lado da estrada,amarrando a mula na haste dabarraca vizinha e lançando umolhar severo ao vendedor antesque ele pudesse protestar.

O soldado descarregou osalforjes, abrindo uma lona depano e organizando váriosobjetos sobre ela. Provavelmenteestaria a caminho da frenteélfica, transferido do sul por servelho demais para o combate,porém demasiado incompetente

para ser promovido a oficial.Como se pudesse sentir o olhardo menino, o velho se endireitoue sorriu perante sua curiosidade,exibindo uma boca com muitosdentes ausentes.

Fletcher esticou o pescoçopara dar uma olhada melhor nosoldado, e arregalou os olhos aover o que estava à venda. Haviaenormes pontas de flecha de sílexdo tamanho da mão de umhomem, com bordas serrilhadas

para criar farpas que seprenderiam à carne. Colaresfeitos de fileiras de dentes eorelhas dissecadas foramdesembaraçados e expostos comoos mais delicados pingentes. Umchifre de rinoceronte com umaponteira de ferro foi destacado àfrente da coleção. A peçaprincipal era uma enorme caveirade orc, duas vezes maior que ade um homem. Tinha sido polidae branqueada pelo sol da selva,

com um cenho largo seprojetando de um jeito bizarrosobre as órbitas oculares. Oscaninos inferiores eram maioresdo que Fletcher imaginara,estendendo-se como presas deuns 8 centímetros decomprimento. Eram suvenires dafrente de batalha, vendidos comocuriosidades às cidades do norte,distantes de onde a verdadeiraguerra acontecia.

O menino se virou e lançou

um olhar pidão a Berdon, quetambém tinha visto asmercadorias do recém-chegado.O ferreiro balançou a cabeça eindicou a própria barraca comum aceno. Fletcher suspirou evoltou a atenção à arrumação dosprodutos. Seria um dia longo einfrutífero.

4

Uma pequena multidão sereuniu em volta do soldado. Eracomposta principalmente decrianças, mas também se viamalguns guardas que não tinhamnada para trocar nem dinheiropara gastar.

— Venham ver, todos vocês!Tudo que se encontra aqui sãoartigos genuínos, coisa séria.Cada item tem uma história decongelar o sangue, que fará vocêagradecer à sua estrela-guia porviver no norte — gritou ele comos floreios de um vendedor defrutas, jogando uma ponta delança ao ar e a pegandohabilidosamente entre os dedos.

— Talvez vocês se interessempela tanga de um gremlin ou um

arganel de nariz de orc? Você,meu senhor, o que me diz? —indagou ele a um menininhocom um dedo firmementecravado no nariz, que certamentenão se qualificava a ser chamadode “meu senhor”.

— Que que é um gremlin? —perguntou o menino,arregalando os olhos.

— Os gremlins são escravosdos orcs. Poderiam sercomparados ao escudeiro de um

dos cavaleiros dos velhos tempos,cuidando de todas asnecessidades do mestre. Não sãograndes guerreiros; foram criadospara serem servos. E tambémpelo fato de que mal chegam àaltura do joelho de um homem— explicou ele, demonstrandocom a mão.

Fletcher espiou o gesto cominteresse renovado. A maioriadas pessoas tinha alguma noçãodo que era um gremlin, mesmo

tão ao norte. Eles eram bípedes,como os orcs, mas não vestiamnada além de trapos e retalhos aoredor da cintura. As grandesorelhas de morcego e compridosnarizes tortos eram muitocaracterísticos, assim como osdedos longos e ágeis, ótimos paratirar lesmas das cascas e insetosde troncos podres. Gremlinstinham pele cinzenta, assimcomo os orcs, e seus olhos eramgrandes e esbugalhados, com

pupilas consideráveis.— Onde você arranjou essas

coisas todas? — questionou omenino, ajoelhando-se para vermelhor o que havia disponível.

— Eu as tirei dos mortos, meumenino. Eles não precisam maisdelas, não no lugar aonde estãoindo. É o meu jeito de trazer umgostinho da guerra aqui para onorte.

— Você está a caminho dafrente élfica? — perguntou um

guarda.Fletcher viu que era Jakov, e

se escondeu atrás da barraca. Seele o notasse, poderia cobrar opreço do drinque que Fletchertinha lhe prometido. O rapazprecisava de todo o dinheiro quetinha para comprar a jaqueta.

— Estou, realmente, mas nãopor ser um saco de ossos inúteis,não, senhor. Eu fui o únicosobrevivente do meu esquadrão.Fomos pegos num ataque

noturno durante uma missão dereconhecimento. Não tivemoschance. — Sua voz trazia umindício de tristeza, porémFletcher não conseguiu detectarse era genuíno.

— O que aconteceu? —insistiu Jakov, com um tomcarregado de descrença enquantomedia o velho de cima abaixo.

— Prefiro não dizer. Não éuma memória feliz — murmurouo soldado, evitando o olhar de

Jakov. Ele baixou a cabeça comtristeza aparente. A multidãovaiou e começou a se dispersar,tomando-o por mentiroso.

— Tudo bem, tudo bem! —gritou o soldado ao ver osclientes escapando. Aquelaprovavelmente seria sua últimaparada antes de alcançar a frenteélfica, e ele teria dificuldades emvender os produtos aos soldados;muitos deles já seriam muitofamiliares com os itens que teria

a oferecer. — Tínhamos ordensde fazer o reconhecimento dapróxima linha de frente —começou ele, conforme amultidão se virava de volta. — Aslinhas estavam avançando denovo. Vejam bem, a mata atrásde nós tinha sido toda esvaziada,e precisávamos mover astrincheiras adiante.

O soldado passou a falar commais confiança, e Fletcher pôdever que ele era um contador de

histórias nato.— Estava mais escuro que um

saco cheio de gatos pretosnaquela noite, mal tinha umalasca de lua para iluminar nossocaminho. Vou te falar, fizemosmais barulho que um rinocerontenervoso ao abrirmos caminhopela mata fechada. Foi ummilagre ter levado mais de dezminutos para sermos notados —continuou ele, com olhosnublados como se ele estivesse lá

de novo.— Vamos logo com isso! —

gritou um dos meninos nofundo, mas seu comentário foirecebido com olhares feios esussurros de “shhh” da multidãoque escutava, atenta.

— Nosso mago de batalha iana frente. O demônio dele tinhaboa visão noturna, o que ajudavaum pouco; mas, mesmo assim, agente tinha que dar duro paranão disparar os mosquetes sem

querer, e ainda mais para nãotropeçar e cair. Uma missãosuicida como nunca vi. Umdesperdício de bons homens,com toda certeza — prosseguiu osoldado, girando a ponta delança entre os dedos.

— Eles mandaram umconjurador com vocês? Isso sim éum desperdício. Achei que agente só tinha algumas centenasdeles? — indagou Jakov, cujoceticismo fora substituído por

fascinação.— A missão era importante,

mesmo que fosse equivocada. Eunão o conhecia muito bem, mascom certeza era um camaradabem agradável, mesmo quedefinitivamente não fosse umconjurador muito poderoso. Erafascinado pelos xamãs orcs,sempre perguntando aossoldados o que a gente sabiasobre eles e seus demônios.Estava constantemente

rabiscando e desenhando em seulivro, investigando os resquíciosdas aldeias órquicas pelas quais agente passava, copiando as runaspintadas nas paredes dascabanas.

O soldado deve ter percebidoas expressões que começavam ase dispersar conforme ele saía doassunto principal, então seapressou:

— De qualquer maneira, nãodemorou muito até que nos

perdêssemos, pois as poucasestrelas que tínhamos usado paranos orientar foram cobertas pelasnuvens de chuva. Nosso destinofoi selado quando a garoacomeçou. Você já tentou dispararum mosquete com pólvoramolhada? Era um desastre atrásdo outro.

O soldado largou a ponta delança no pano e cerrou ospunhos unidos com emoção.

— A arma favorita do orc é a

lança de arremesso. Quandouma delas te atinge, te joga longecomo uma bala de canhão, teprendendo no chão; isso se elanão te atravessar completamentee se cravar no homem detrás.Elas assoviaram por entre asárvores e nos arrancaram da terracomo se o mundo tivessetombado de lado. Nemchegamos a ver quem estavaatirando, mas metade doshomens tinha morrido depois da

primeira saraivada, e eu não quisficar por perto para ver asegunda. O conjurador saiucorrendo, e eu o segui. Se tinhaalguém capaz de escapar no meiodaquela confusão dos diabos, eraele. Disparamos em pânico,seguindo os chilreios do demôniodele.

— Que tipo de demônio era?— perguntou Jakov, com as mãosunidas em atenção total.

— Eu nunca tive uma boa

chance de olhar o bicho noescuro. Parecia um besourovoador e era feio como o diabo,mas eu lhe sou grato; sem ele, euseria um homem morto. No fim,o conjurador tropeçou e caiu, e vique uma lança o tinha atingidonum lado do corpo. O sujeitoestava sangrando como um porcoabatido. Não havia muito que eupudesse fazer por ele, mas omaldito demônio não fugiria semo mestre, então tive que pegá-lo

e carregá-lo comigo. O pobrecoitado deve ter morrido antesque a gente alcançasse astrincheiras, mas o demônio meguiou de volta mesmo assim. Overmezinho não saiu de perto domago quando eu trouxe o corpode volta. Fui julgado pordeserção, mas eu disse a eles queestava carregando o ferido e queo resto da tropa ficou para trás ese perdeu. Eles não sabiam o quefazer comigo, com meu

esquadrão morto e a minhaidade avançada, então, no fim,me mandaram pro norte. Meuúnico consolo foi a bolsa doconjurador, cheia de alguns dostesouros que vocês veem diantede si. Mas isso não foi o melhorde tudo... — Ele vasculhou osalforjes aos seus pés e, derepente, Fletcher percebeu queaquele era o clímax da cena toda.Talvez fosse isso que o soldadofizesse em todas as cidades,

fisgando-os com a história,depois exibindo o item mais caro.

Porém, o que o soldadoremoveu com um floreio não foia cabeça encolhida do demônioou o corpo empalhado que omenino esperava. Era um livro,encapado em couro castanhopesado e com páginas grossas depergaminho. Era o livro doconjurador!

5

Se o soldado tinha esperadoimpressionar a plateia,decepcionou-se. A maioria deuuma olhada ambivalente e houveaté alguns resmungos. Numapequena vila de caçadores comoPelego, a habilidade de ler ficava

bem no fim da lista deprioridades. Muitos dos aldeõesteriam dificuldades em passar daprimeira página, quanto maisdesbravar o livrão inteiro.Fletcher, por outro lado, foraencarregado das finanças deBerdon, o que exigia quesoubesse ler e dominasse aaritmética. As muitas longashoras que o rapaz passara suandocom todos os números e letraslhe custaram um precioso tempo

de brincadeiras com as outrascrianças, mas ele tinha orgulhoda própria educação e estavacerto de que era pelo menos tãoculto quanto Didric, se não mais.

O soldado sorria enquantobrandia o livro, erguendo-o sob aluz acinzentada do inverno efolheando as páginas, oferecendoa Fletcher uma espiada sedutorada letra manuscrita e dos esboçosintrincados.

— O que mais você tem? —

indagou Jakov, com a decepçãobem clara na voz.

— Muita coisa! Só que maisnada supera isso aqui, se vocêsme permitirem explicar. Deixem-me demonstrar, antes que agente passe ao próximo item —implorou o soldado.

A plateia, mesmo quedesprovida de interesse pelolivro, não desperdiçariaentretenimento gratuito. Houveacenos de concordância e

comentários de incentivo, e osoldado abriu um sorrisodesdentado. Saltou para cima deum caixote vazio da barracavizinha e chamou a multidãomais para perto, erguendo otomo sobre a cabeça, onde todospudessem ver.

— Esse mago de batalha erada patente mais baixa que umconjurador pode ter, umsegundo-tenente de umregimento que nem tinha

terminado o treinamento.Mesmo assim, ele se ofereceupara aquela missão fatídica, equando dei uma olhada nestelivro, entendi o porquê. O sujeitoestava procurando uma armasecreta, uma forma de conjurarcriaturas novas.

O soldado conquistara aatenção de todos, e sabia disso.Fletcher fitava do outro lado darua, boquiaberto, o que lherendeu um pigarrear de aviso da

parte de Berdon. O rapaz seendireitou e se ocupou daprópria barraca, mesmo que jáestivesse impecavelmentearrumada.

— Os xamãs orcs invocamtodo tipo de demônios, mas sãoquase todos criaturas baixas efracas, que não são páreo paraaquilo que os nossos própriosconjuradores são capazes detrazer. Porém, nossosconjuradores só conseguem

capturar algumas poucas espéciesdiferentes do outro mundo, comalgumas exceções ocasionais.Assim, ainda que os nossosmagos sejam muito maispoderosos que qualquer xamãorc, isso nos deixa com menoscordas em nosso arco, digamosassim. E o que esse mago debatalha tentava fazer eraencontrar um jeito, usandotécnicas órquicas, de conjurar osdemônios realmente poderosos.

Durante sua noite nosalojamentos da frente élfica,Fletcher tinha ouvido relatos decriaturas horrendas que seesgueiravam pela noite, cortandogargantas adormecidas eescapando ilesos. Feras quesaltavam da mata cheias degarras, como gatos selvagens, elutavam até que seus corposestivessem retalhados com balasde mosquete. Se essas eram ascriaturas fracas de que o soldado

falava, Fletcher não queriaencontrar o demônio de ummago de batalha veterano.

— Então é para acreditarmosque esse livro contém umsegredo que vai mudar o destinoda guerra? Ou que ele tragainstruções sobre como conjurarnossos próprios demônios?Talvez ele valha seu preço emouro — zombou uma vozfamiliar, carregada de sarcasmo.

Era Didric, recém-chegado

dos estábulos. O guarda tinhaficado parado atrás da barracaseguinte, fora da vista deFletcher.

— Palavras suas, e nãominhas, meu bom senhor —respondeu o soldado, tocando onariz com uma piscadela esperta.

— Seria mais válido investirfundos nas armas lamentáveis dooutro lado da rua do que no seulivro! — Didric sorriu enquantoFletcher corava com a alfinetada.

Em seguida, o garoto mimadocontornou o caixote até a frenteda plateia, descuidadamentechutando o chifre de rinoceronteao passar.

— Por que um conjurador seofereceria para tal missão, se játivesse descoberto tamanhosegredo? E por que você o estariavendendo aqui, se o livro fossetão valioso? Quanto àpossibilidade de ele conterinstruções de conjuro, todos nós

sabemos que apenas aqueles desangue nobre e alguns outrossortudos são abençoados com ashabilidades necessárias paraconjurar. — Didric fez umacareta de desprezo enquanto osoldado ficava boquiaberto desurpresa, mas este se recuperoucom agilidade surpreendente.

— Bem, meu senhor, eleprovavelmente estava ansiosopara ver um demônio orc bem deperto. Não sou letrado, portanto

não sei qual é o valor do livro, eele me seria confiscado se eutentasse vendê-lo a qualquermago de batalha, já que foiroubado de um deles. — Eleabriu os braços, e seu rosto era aimagem da inocência.

“Obviamente — continuou—, eu provavelmente vouentregá-lo quando chegar àfrente élfica. Mas, se puderfaturar alguns xelins adicionais,sabendo que o livro alcançará as

mãos de um mago de batalha dequalquer maneira, bem, quempoderia me condenar, depois deeu ter carregado aquele homempor metade da selva? — Osoldado baixou a cabeça em falsamodéstia, espiando por entre oscabelos gordurosos. A plateiaestava inquieta, sem saber comquem concordar. Didriccertamente era popular,especialmente quando estavasendo perdulário com o dinheiro

de Caspar na taverna. Porém, osoldado era empolgante, eFletcher notou que a multidãoqueria que a história dele fosseverdadeira, mesmo que no fundosoubessem que não poderia ser.

No momento que o povocomeçou a zombar e Fletcherabriu um sorriso para o valentãoque perdia a batalha deconhecimento contra um soldadocomum, Didric reagiu:

— Espere. Você não

mencionou mais cedo que tinhadeduzido o foco dos estudos deleao folhear o livro? Certamenteteria de ler para entender taiscoisas. Você é um mentiroso.Uma fraude, e eu deveria mesmoera mandar chamar osPinkertons. Eles poderiam atéincluir uma acusação de deserçãocontra você também. — Ele riuenquanto o soldado gaguejava.

— Você pegou ele de jeitoagora — comentou Jakov, com a

mão no cabo da espada.— Tem figuras no livro... —

balbuciou o soldado, que foiimediatamente calado pelosgritos da plateia, que começava azombar dele.

Didric ergueu a voz e elevou amão, pedindo silêncio.

— Vamos fazer o seguinte.Gostei do jeito desse livro. São acuriosidade e a vontade deaprender que me motivam, não odesejo de riquezas — declarou o

rapaz, com nobreza, conforme obordado dourado de suas roupasreluzia ao sol. — Voltarei maistarde para buscá-lo. Que tal,digamos... quatro xelins? Eu poracaso vendi uma bela galhadapelo mesmo preço ontem à noite— afirmou Didric, lançando umolhar triunfante a Fletcher. Ofilho de Caspar não esperou umaresposta; em vez disso, foiembora cheio de si, seguido porJakov e a maioria dos clientes do

soldado.O homem fuzilou o jovem

guarda com o olhar, mas logouma expressão de abatimentotomou conta do seu rosto.Sentou-se no caixote com umsuspiro audível, largando o livrono chão, derrotado. Aborrecidocom a vitória de Didric, Fletcherobservou as páginas que eramviradas pela brisa.

O menino não sabia como,mas Didric iria pagar caro

naquela noite. De um jeito ou deoutro.

6

O dia passou com uma lentidãoexcruciante. Berdon estava bemocupado, mas o fedor acre decascos ardentes estavacomeçando a ficar insuportável.Não se passavam mais do quealguns minutos antes que uma

nova pilha macia de esterco decavalo caísse no chão atrás domenino, piorando o odorexistente. Fletcher fez apenasuma venda naquele dia: umapequena adaga a um mercadorque decidiu encurtar a pechinchapara fugir do fedor, gerando umfaturamento feliz de doze xelinsde prata.

O soldado do outro lado daestrada tornou-se mais calado,mas mesmo assim foi muito bem,

vendendo quase todos os itensque espalhara no pano diante desi. Só restavam algumas poucasbugigangas, além do chifre derinoceronte com ponteira deferro e, é claro, o livro. Fletcheracreditava na maior parte dahistória do soldado, porémsuspeitava que o livro nãocontivesse nenhum segredo devalor. O rapaz não conseguiaentender por que o homemmentiria; independentemente do

que guardasse em suas páginas, olivro certamente ofereceria umvislumbre fascinante da vidasecreta dos magos de batalha. Sóisso já seria um prêmio valioso, eFletcher já estaria negociandoum preço pelo tomo se nãoquisesse tanto aquela jaqueta decouro.

Enquanto o rapaz encarava olivro, o soldado notou seu olhar elhe lançou um sorriso astucioso.Percebendo que não havia mais

compradores em potencial porperto, ele atravessou a estradacasualmente e apontou uma dasmelhores espadas na barraca deFletcher.

— Quanto custa? — indagouele, erguendo-a do suporte egirando-a de forma profissional.Ela zumbia no ar como umalibélula. A destreza e avelocidade do homem eramespantosas, considerando oscabelos grisalhos e o rosto

enrugado.— Trinta xelins, mas a bainha

que vem junto custa mais sete —respondeu Fletcher, ignorando oreluzir da lâmina que girava eprestando atenção na outra mãodo soldado. O menino conheciatodos os truques, e ocomportamento do soldado olembrava um dos clássicos.Redirecione o olhar fazendo umalvoroço com um produto maiscaro, então surrupie um item

menor, como uma adaga, paraum bolso profundo enquanto ovendedor está distraído. Osoldado bateu os nós dos dedosna mesa para trazer a atenção deFletcher de volta ao item emquestão.

— Vou ficar com ela. Tem umbom equilíbrio e um belo fio decorte. Nada dessas bobagens deesgrima que os oficiais gostamtanto. Você acha que estocar umorc vai detê-lo antes que ele lhe

arranque a cabeça? É que nemespetar um lobo com um palito.Eu aprendi rápido: você desfereum golpe nas pernas de um orc eele cai como qualquer homem.Não que eu precise de umaespada decente para a frente donorte, mas é difícil se livrar dosvelhos hábitos.

Ele pontuou a última frasecravando a espada na terra, emseguida puxando a bolsa dedinheiro e começando a contar.

Fletcher pegou a bainha atrás dabarraca, uma peça simples masde qualidade, feita com umamoldura de carvalho embrulhadaem couro cru.

— Eles não pechincham lá deonde você vem? — indagou omenino, depois de receber odinheiro.

— Claro que sim. Eu só nãogostei do jeito que aquelebastardinho falou da sua barraca.O inimigo do meu inimigo é meu

amigo, não é esse o ditado?Queria que os elfos pensassemassim. Com eles seria algo dotipo: o inimigo do meu inimigoestá vulnerável, então vamosesfaqueá-lo pelas costasenquanto ele não estiver olhando— resmungou o soldado.

Fletcher continuou calado,sem querer se meter numaconversa sobre política. Haviamuita gente solidária à causaélfica, e uma discussão acalorada

sobre o assunto poderia afastaralguns dos mercadores quetinham vindo ferrar os cavalos.

— Eu estava curtindo suahistória antes de ele chegar.Espero que não se ofenda com apergunta, mas tinha algumaparte que era verdade? —Fletcher olhou nos olhos dohomem, desafiando-o a mentir.O soldado o fitou por ummomento, em seguida relaxouvisivelmente e abriu um sorriso.

— Eu posso ter... enfeitadoum pouco. Li algumas partes dolivro, mas não sou muito bom deleitura, então só folheei. Pelo queconsegui entender, ele estavaestudando os orcs, tentandoaprender com eles. Tinhasímbolos órquicos por todos oslados, e divagaçõessemitraduzidas sobre os clãs eancestrais deles. Também haviauns rascunhos de demônios, emuito bons, por sinal. O cara era

um bom desenhista, mesmo quenão fosse o melhor dosconjuradores.

O soldado deu de ombros epegou uma adaga da barraca,usando-a para limpar a terra sobas unhas.

— Uma pena, de qualquerjeito. Achei que seria bomdesovar o livro aqui. Vou ter quevender barato na fronteira élfica.Tem uns soldados que são loucospelos magos de batalha, mas

nenhum deles tem um tostão.Talvez eu o venda para váriosdeles, página por página. — Elepareceu gostar da ideia e assentiupara si mesmo, como se oproblema estivesse resolvido.

— E quanto a Didric? O paidele é poderoso, e os Pinkertonsestão ficando na casa deles! Sefor a sua palavra contra a deDidric, não sei para que lado acorda vai arrebentar — acautelouFletcher.

— Bah! Já encarei coisa muitopior que um pirralho nascido emberço de bronze. Não, esses doispoliciais já me viram tentandovender o livro antes, e nuncafalaram bulhufas. Eles gostam desoldados, esses rapazesPinkertons, acham que a gente éfarinha do mesmo saco, mesmoque os policiais só façam baternos anões que olham feio paraeles. Bote um Pinkerton diantede um orc e você terá o que esses

cavalos andaram largando aí nochão atrás de você nestas últimashoras — afirmou o soldado,franzindo o nariz.

— Bem, só não me deixeperder o que vai acontecerquando Didric voltar para buscaro livro. Quero muito ver a caradele quando você mandá-lopastar. — Fletcher esfregou asmãos com alegria.

Aquilo seria divertido.

7

O sol estava começando a se pôr,e o humor do soldado ficavacada vez melhor conformefaturava uma pequena fortunana sua barraca improvisada. Nãorestava mais nada, exceto o livro,deixado com otimismo no centro

do pano aos seus pés. Ao longodo dia, o soldado exaltava asvirtudes dos produtos deFletcher sempre que um clienteinspecionava a barraca. Graças atodos os elogios, o rapaz acabouvendendo mais duas adagas euma das espadas mais baratas aum bom preço. O saldo do dianão tinha sido assim tão ruim,afinal, e Fletcher mal podiaesperar para botar as mãos najaqueta de couro.

— Talvez pudéssemos tomarum drinque na taverna depoisdisso para comemorar nossa boasorte — sugeriu o soldado,enquanto atravessava a estradanovamente.

— A taverna parece uma boaideia, se você me deixar fazeruma parada rápida antes. Tenhoque comprar uma coisa —respondeu Fletcher com umsorriso, erguendo uma bolsapesada e chacoalhando para o

outro ver.— Isso aí é para o livro? —

indagou o soldado meio quebrincando, mas com um toquede esperança na voz.

— Não, apesar de que,honestamente, se eu tivessedinheiro sobrando, eu lhe fariauma oferta justa por ele. Mastem uma jaqueta que eu queromuito, e tenho o dinheirocontado. Esta barraca é do meu...mestre, Berdon, então o que

ganhamos hoje vai para ele.Ao som do próprio nome,

Berdon ergueu o olhar do cascode cavalo que segurava nasenormes mãos e lançou umaceno respeitoso de cabeça aosoldado antes de voltar aotrabalho.

— Meu nome é Fletcher, e oseu? — perguntou Fletcher,estendendo a mão.

— Meu nome de família éRotherham, mas meus amigos

me chamam de Rotter —respondeu ele, segurando a mãode Fletcher com uma palma duracomo couro. O aperto de mãolhe pareceu firme e honesto.Berdon sempre falara que davapara dizer muita coisa sobre umapessoa pelo aperto de mão.

— Você está liberado,Fletcher. Trabalhou bem hoje —disse Berdon. — Eu guardo abarraca sozinho.

— Tem certeza? — indagou o

aprendiz, ansioso para se afastardos cavalos e escutar as históriasde guerra do soldado no calor dataverna.

— Caia fora daqui antes queeu mude de ideia — retrucou oferreiro, acima do chiado docasco.

A barraca de couros nãoficava muito longe, e Fletchersentiu uma profunda decepçãoao notar que a jaqueta quequeria não estava mais à mostra.

Ele correu à frente de Rotherhamrua abaixo, com a esperança deque a peça tivesse sido guardadapor engano. Janet olhou para orapaz enquanto contava o lucrodo dia; uma bela pilha de xelinsde prata e soberanos de ouro quecobriu com os braços.

— Eu sei o que você vai meperguntar, Fletcher, mas temoque você esteja sem sorte. Vendia jaqueta faz uma hora. Não sepreocupe, porém. Eu sei que a

venda será garantida, entãocomeçarei a fazer outraimediatamente. Vai ficar prontaem algumas semanas.

Fletcher cerrou os punhos defrustração, mas concordou com acabeça. Ele teria de ser paciente.

— Vamos lá, garoto. Eu tepago um drinque. Amanhã seráoutro dia. — Rotherham lhe deutapinhas nos ombros. Fletcherempurrou o desapontamentopara escanteio e forçou um

sorriso.— A temporada de caça está

quase no fim — comentou omenino, espantando a frustraçãocom argumentos. — Eu não teriamuitos dias para usar a jaquetaneste inverno, de qualquer jeito,porque estarei na forja quentepreparando minha próximaviagem à frente élfica. Elesprecisam desesperadamente denovas armas para cumprir ascotas.

— Não que a gente vá usá-las.— Rotherham riu.

A taverna estava barulhenta elotada de aldeões e mercadoresque celebravam o fim da feira.Apesar disso, Fletcher eRotherham abriram caminho atéum canto, cada um com umagrande caneca, conseguindo dealguma forma manter a maiorparte da cerveja dentro dorecipiente, longe do piso demadeira já grudento de drinques

derramados. Eles se sentaramnum nicho com dois bancos euma mesa bamba, onde estavamais silencioso e eles poderiamouvir um ao outro.

— Você se importa se euperguntar sobre a guerra, ou éum assunto que você prefereevitar? — indagou o rapaz,lembrando-se da emoção que ohomem tinha demonstrado aorecontar a noite em que perderaos camaradas na floresta.

— De maneira alguma,Fletcher. É tudo o que eu fiz nasúltimas décadas, provavelmentenão tenho mais sobre o que falar— respondeu Rotherham,fortificando-se com um longogole. A cerveja desceu peloqueixo grisalho, e o homemestalou os lábios e suspirou.

— Ouvimos rumores de que aguerra não vai bem para nós.Que os orcs estão se tornandomais ousados, mais organizados.

Por que isso acontece? —perguntou Fletcher, mantendo avoz baixa. O pessimismo emrelação à guerra era consideradopouco patriótico, talvez até umatraição. Isso era um dos muitosmotivos para que as notícias dafrente órquica viajassem tãolentamente até Pelego.

— Só posso responder commais rumores, masprovavelmente de fontesmelhores que as suas. — Ele se

inclinou para a frente, chegandotão perto que Fletcher sentiu obafo de cerveja. — Tem um orcunindo as tribos sob umabandeira, liderando-os comochefe de guerra. Não sabemosmuito sobre ele, além do fato deser albino e o maior orc já visto.As tribos acreditam que ele éalgum tipo de messias, enviadopara salvá-los da gente, então oseguem sem questionamento.Que a gente saiba, só houve um

outro orc desses, nos tempos daPrimeira Guerra Órquica, doismil anos atrás. É por causa dessealbino que os xamãs orcscompartilham seu conhecimentoe poder, para assim mandarondas e mais ondas de demônioscontra nós e lançar bolas de fogono céu para nos bombardear ànoite.

Os olhos de Fletcher searregalaram conformeRotherham falava, a cerveja já

esquecida. As coisas estavampiores do que ele tinha pensado.Não era de se espantar queperdões estivessem sendotrocados pelo alistamento decriminosos.

— Às vezes eles rompem aslinhas e grupos de saqueadoresavançam bastante em Hominum.Nossas patrulhas sempre ospegam no fim, mas nunca rápidoo bastante. Já vi muitas vilascompletamente incendiadas, sem

mais nada além de ossos e cinzas.— Rotherham agora estava atodo vapor, cuspindo cerveja acada gole. — Eles se livram deveteranos como eu, colocam ummosquete nas mãos de ummenino e dizem a ele que é umsoldado. Você deveria ver o queacontece quando os orcsinvestem com força total. Se osrapazes forem sortudos, disparamuma salva e então dão meia-voltae correm. É uma maldita

desgraça! — gritou ele, batendo acaneca na mesa. — Garotosdemais estão morrendo, e é tudoculpa do rei. Foi Hominum quetransformou a incursão ocasionalnuma guerra para valer. Quandorei Harold recebeu o trono dopai, ele começou a fazer pressãocontra as selvas, mandandohomens para cortar as árvores eescavar a terra.

Rotherham fez uma pausa efitou o fundo da caneca. Tomou

um longo gole e voltou a falar:— Vou te contar uma coisa.

Se não fossem os conjuradores, agente estaria com sériosproblemas. Eles são unscamaradas meio cheios de si, seacham os tais, mas a genteprecisa deles mais do que dequalquer outra coisa. Osdemônios deles ficam de olhonas fronteiras e nos avisamquando um ataque estáchegando, e um demônio dos

grandes é a única coisa capaz dedeter um rinoceronte de guerra,afora um canhão ou uma salvade cem mosquetes. Quandochovem as bolas de fogo, osmagos de batalha erguem umescudo sobre as linhas de frente.Ele ilumina o céu como umdomo de vidro brilhante. Oescudo leva uma surra e fica todorachado durante a noite, mas opior que acontece com a gente éuma noite de sono ruim. —

Rotherham tomou mais umpouco da caneca e a ergueu numbrinde. — Deus abençoe aquelespalhaços engomadinhos.

Ele deu um tapa no joelho evirou o restante do líquido.Assim que se levantou para ir atéo balcão comprar mais cerveja, amão pesada de alguém oempurrou de volta ao banco.

— Ora, ora. Mas que coisamais previsível, vocês dois setornarem amigos. Eles realmente

dizem que as cobras viajam empares — comentou Didric, comum sorriso sarcástico.

Jakov tirou a mão do ombrode Rotherham e fez gestosexagerados de limpar a mão nascalças, o que fez Didric dar umarisadinha. Ambos vestiam seusuniformes de guarda, cota demalha pesada sob um tabardoalaranjado da mesma cor dastochas na taverna.

— Acredito que tivéssemos

uma compra combinadapreviamente. Aqui estão osquatro xelins, conformeacordado. Mais do que vocêmerece, mas precisamos sempreser caridosos com aqueles menosafortunados que nós. Não émesmo, Jakov? — indagouDidric, jogando as moedas namesa.

Jakov riu e concordou com acabeça. Fletcher fungou; oguarda mal tinha mais dinheiro

do que ele, e era tão malnascidoquanto possível. Seu rosto estavavermelho de embriaguez, eFletcher suspeitou que Didrictivesse amaciado o colega comcerveja a noite inteira paraconquistá-lo à sua causa. Nãoque Jakov precisasse de muitapersuasão; o homem venderia aprópria mãe por alguns xelins.

Rotherham não fez mençãode recolher as moedas. Em vezdisso, encarou Didric até que o

garoto se ajeitou, desconfortável.— Vamos lá. Um acordo é um

acordo. Não é culpa minha quevocê seja uma fraude. Tem sortede não estar acorrentado, acaminho de uma corte marcialpor deserção — continuouDidric, protegendo-se atrás dooutro guarda.

A realidade da situaçãocomeçou a ficar clara paraFletcher, e o menino adquiriuuma nova percepção de Jakov.

Ele era um sujeito grande, pelomenos uns 30 centímetros maisalto que Rotherham, e quase tãomusculoso quanto Berdon. Nãotinha sido contratado comoguarda pela inteligência, semdúvida.

Mesmo Didric era meiacabeça mais alto que Fletcher, eseu corpo rechonchudo tinha odobro da largura do esguioajudante de ferreiro.

Rotherham continuou a

encarar, desconcertando Fletchercom seu olhar de aço aindacravado na cara gorducha deDidric. A tensão no recintoaumentou mais alguns grausquando Jakov levou a mão aocabo da espada.

— Olhe na bolsa dele.Provavelmente está lá —ordenou Didric, mas sua voztrazia um toque de incerteza.

Quando Jakov fez menção depegar a bolsa, Rotherham se

levantou subitamente,assustando o par de guardas, quedeu um passo atrás. Fletcher selevantou junto, com os punhoscerrados. Seu pulso estavaacelerado, e ele ouvia o própriocoração vibrando, conforme aadrenalina tomava conta de seucorpo. Sentiu uma pontada desatisfação quando assobrancelhas de Didric seergueram em alerta com aconfrontação.

— Se você vai desembainharessa espada, é melhor saber usá-la — rosnou Rotherham, com aprópria mão apoiada no cabo daespada que tinha comprado deFletcher.

Didric empalideceu ao vê-la.Ele tinha notado que o soldadonão portava armas no mercado, eclaramente não esperava queestivesse armado agora. Seusolhos dardejaram furtivamenteentre Jakov e o velho. Numa luta

de espadas, o soldado teria avantagem.

— Sem armas — declarouDidric, desatando a espada e adeixando cair no chão. Jakov oimitou.

— É, nada de armas —concordou Fletcher, erguendo ospunhos. — Eu lembro como vocêestava preocupado em não sujaro seu uniforme de sangue.

Rotherham grunhiu emconcordância e deixou a bainha

na mesa.— Faz um bom tempo desde

a última vez que me meti numaboa e velha briga de taverna —declarou ele, divertido, catando acaneca de Fletcher e levando-aaos lábios.

— Lute sujo e bata na cara.Regras de cavalheiros são paracavalheiros — murmurouRotherham pelo canto da boca, ecom isso ele girou e jogou cervejanos olhos de Jakov, cegando-o.

Rápido como um raio,mergulhou o joelho na virilha dobrutamontes e, no que o guardase curvou, Rotherham lhe deuuma cabeçada no nariz,provocando um estalo.

Então Fletcher estava no meioda confusão, socando a cararedonda de Didric. O alvo erafácil, e o primeiro golpe amassouo nariz, espirrando algo vermelhocomo um tomate madurodemais. O aprendiz de ferreiro

sentiu uma explosão de dor nopunho, mas a ignorou, usando oimpulso para dar uma ombradano peito de Didric e lançá-lo aochão. Isso foi um erro. Quando aluta passou para o chão, o jovemguarda conseguiu usar seu peso,que é maior, como vantagem.Passou um braço carnudo pelopescoço de Fletcher e aplicoupressão. A visão do meninoescureceu e sua consciênciacomeçou a se esvair. Num último

esforço, ele cravou os dentes napele nua do pulso de Didric, tãoforte que sentiu os ossosraspando. Um guincho de dorsoou em seu ouvido, e o braçorecuou. O alívio deixou Fletchertonto enquanto ele ofegava comoum peixe encalhado na praia.Acertou uma cotovelada nabarriga blindada de Didric eentão girou, ficando de cócoras.

Quase imediatamente, Didricestava em cima dele de novo,

tentando achatá-lo no chão.Desta vez, Fletcher estavapreparado, puxando na mesmadireção que o outro empurrou eusando o impulso do meninogordo para rolar para cima dele.Então seus dedos estavamapertando a garganta de Didric,sufocando-o com toda força queas mãos continham. O jovemguarda estapeou o pescoço, entãolevou a mão ao lado.

— Cuidado! — gritou

Rotherham, e Fletcher puloupara trás bem a tempo. Umaadaga curva cortou sua túnicaazul e um corte feito linha ardeuem sua barriga. Gotas de sanguebrotaram e mancharam o tecidode vermelho, mas o rapaz sentiuque era apenas um arranhão.Didric se levantou de qualquerjeito e golpeou de novo, masFletcher tinha recuado.

Então Rotherham estava lá,com a espada tocando a base do

pomo de adão de Didric.— O que aconteceu com “um

acordo é um acordo”? — grunhiuRotherham, avançando de modoque Didric teve que cambalearpara trás sobre o corpoinconsciente de Jakov.

Fletcher percebeu que ataverna inteira estava assistindo.O único som eram os engasgosestridentes de Didric enquantoeste tentava falar, sem quenenhuma palavra lhe saísse da

boca.— O que você me diz,

Fletcher? Vamos fazer com ele oque ele tentou fazer com você?Suas tripas estariam espalhadasno chão se eu não o tivesse vistopegando aquela adaga —proclamou Rotherham, para quetoda a plateia pudesse ouvir.Desta vez, os murmúrios estavamfirmemente do lado do soldado.

— Não, acho que não,Rotherham. Precisamos sempre

ser caridosos com aqueles menosafortunados que nós. — Aspalavras de Fletcher saíramencharcadas de desdémenquanto ele baixava a espada deRotherham. Antes mesmo que aspalavras tivessem terminado dedeixar a boca do menino, Didricjá tinha corrido à porta, largandotanto Jakov quanto sua espadaesquecidos no chão.

Os homens na tavernaergueram as vozes em desprezo

quando a porta bateu atrás doguarda, que fugiu apressado. Arisada logo brotou conforme odivertimento recomeçava.

— Vamos — disse Fletcher aRotherham, os pensamentostrôpegos de alívio. — Vou fazeruma cama para você na nossaforja. Você não estará seguro emnenhum outro lugar esta noite.

8

Fletcher abriu os olhos e searrependeu imediatamente. Aluz cinzenta que entrava pelajanela aberta era de umaluminosidade cegante. O rapaz sesentou, tremendo, e cambaleoupara fechá-la; a respiração saindo

em baforadas no ar gelado.Provavelmente tinha deixado ajanela aberta em seu estado deembriaguez.

O menino piscou para oquarto escuro, mas não viu osoldado. Apenas a pilha de pelesque tinha ajeitado para ele nocanto. Sentindo o medo crescer,Fletcher saiu e viu que a mula deRotherham tinha sumido; nãohavia sinal dele em lugar algum.

— Finalmente acordou, é? —

perguntou Berdon detrás dele,com a voz repleta dedesaprovação. Estava paradojunto à forja com os braçoscruzados e uma expressãoperplexa no rosto.

Fletcher assentiu, incapaz defalar ao sentir a primeira onda denáusea. Ele nunca mais ia beberna vida.

— O soldado me informoudos eventos da noite passadaantes de partir. Não posso dizer

que aprovo brigas, e muitomenos essa facada que você sónão levou por um triz, mas ficofeliz por você ter dado uma liçãonaquele seboso — disse Berdoncom um sorriso pesaroso. Elebagunçou o cabelo de seuaprendiz com afeto rude,fazendo a cabeça do meninobalançar, entontecida. Fletchersentiu a ânsia chegando e correupara o lado de fora, despejando oconteúdo do estômago nos

paralelepípedos.— Bem feito! Que lhe sirva de

lição — gritou o ferreiro do ladode dentro, rindo entre dentes doinfortúnio do menino. — Esperesó até você provar os destilados.Na manhã seguinte, você vailembrar do que está passandoagora e sentir saudades.

Fletcher grunhiu e tossiu, natentativa de tirar o gosto amargode ácido da garganta, entãocambaleou até a forja. Juntou as

peles que tinham servido decama improvisada a Rotherham edesabou no catre do seu quarto.

— Acho que já botei tudopara fora — comentou o menino,limpando a boca com as costas damão.

— É, você deixou uma belarefeição para os ratos — disseBerdon da forja. — Vou fritarumas salsichas de porco paravocê e buscar água gelada nopoço.

Fletcher se sentiu mal só depensar em comida, mas decidiuque lhe faria bem. Rolou nacama para voltar a dormir e ficoudeitado no calor reconfortantedas peles por um tempo. Ochiado das salsichas fritandocomeçou a soar, e o rapaz seajeitou, tentando ficarconfortável.

Havia algo embaixo dele,cutucando-lhe o flanco. Fletcherenfiou a mão nas peles e puxou o

objeto.Um saco tinha sido deixado

entre as peles de Rotherham,com um pedaço de pergaminhopreso do lado de fora. Fletchersoltou-o e espremeu os olhospara decifrar os garranchos quaseilegíveis.

O soldado não tinha mentidoquando disse que não era lámuito bom com as letras, masFletcher entendeu a notarazoavelmente bem. O velho

malandro tinha escapulido demanhã, mas deixara um presentede despedida. Fletcher não seincomodou. Tinha certeza depoderia ver Rotherham embreve, mesmo que não soubessebem o que poderia fazer comuma tanga de gremlin, se fosseesse o presente.

Fletcher abriu o cordão dabolsinha e sua mão sentiu algorígido e retangular. Não poderiaser... poderia? Ele despejou o

conteúdo do saco e exclamou deespanto, segurando o objeto comambas as mãos. Era o livro doconjurador!

O rapaz tocou o couromarrom macio, traçando com a

ponta dos dedos o pentagramaentalhado na capa. Símbolosestranhos estavam gravados nasextremidades da estrela, cada ummais bizarro que o anterior.Fletcher folheou as páginas,descobrindo cada centímetropreenchido com caligrafiaelegante, interrompidaintermitentemente comrascunhos de símbolos e criaturasestranhas que o menino nãoconseguia reconhecer. O livro era

grosso como um lingote de ferro,e pesava mais ou menos omesmo. Levaria meses para lertudo aquilo.

O som de Berdon colocandocomida no prato chegou aos seusouvidos, e ele se apressou emesconder o livro debaixo daspeles.

Berdon trouxe as salsichas eas colocou na cama com cuidadoexagerado. Fletcher percebeuque estavam perfeitamente

douradas em todos os lados, etemperadas com sal de rocha epimenta-do-reino moída.

— Mande isso para dentro.Você vai se sentir melhorrapidinho. — Berdon lhe deu umsorriso solidário e saiu do quarto,fechando a porta.

Apesar do cheiro deliciosoque preenchia o aposento,Fletcher ignorou as salsichas erecuperou o livro do esconderijo.

Uma única página caiu bem

do fim do livro, de um papelfeito de um tecido estranho esimilar a couro, diferente doresto. Fletcher abriu o tomo nolugar de onde o papel tinha caídoe leu as palavras ali escritas:

Completamos no dia dehoje exatamente um anodesde que lordeEtherington ordenou queminha pesquisacomeçasse, porém não

estou nem um pouco maisperto de descobrir um novocaminho até o éter. Ospentagramas usados pelosxamãs orcs têm chavesdiferentes das nossas, dissoeu agora tenho certeza.Porém, eles cobrem seusrastros com regularidadesurpreendente. Ainda nãoconsegui recriá-los comsucesso, mas estou certo deque, se eu me aventurar

em terreno ainda nãomaculado pelo toque deHominum, pistas de suanatureza poderão serdescobertas. Devoportanto empreender todosos esforços possíveis paraavançar além das linhasde frente, onde poderei verum orc executando umconjuro e, talvez, obter umvislumbre de seuspentagramas. É essencial

descobrir que chaves elesutilizam, e em qual ordem.

Hoje minha buscafinalmente rendeu frutos,mas não do tipo que euesperava. Nas minhasescavações dos resquíciosde um velho acampamentoórquico, descobri umencantamento entalhadonum pergaminho feito depele humana. Encontreiuma surpreendente

alegria em sua tradução; alinguagem órquica é muitobrutal em sua expressão,mas há nela uma belezaselvagem que não consigoexplicar.

Suspeito que opergaminho conceda umdemônio ao adepto que oler. Muito provavelmenteserá um diabrete de nívelbaixo, um presente de umxamã mais velho ao seu

aprendiz, para iniciá-lono aprendizado da artedas trevas. Será uma raraoportunidade de examinarum demônio de uma regiãodiferente do éter. Talvez,através de um escrutíniomais cuidadoso, essediabrete me indique adireção certa. Com cadafracasso minhadeterminação cresce,porém não consigo afastar

a sensação de que minhamissão seja percebidapelos meus colegas comoum esforço inútil. Mesmoque meu demônio sejafraco, eu provarei aosopositores que tenho tantodireito de ser um oficialquanto aqueles de sangueazul.

Agora preciso partir,pois meu comandante meconvocou à sua barraca.

Talvez essa seja minhaprimeira oportunidade depenetrar em territórioinimigo.

Estas últimas palavras estavamescritas num rabisco irregular,como se o autor estivesse compressa. Era claramente algumtipo de diário. Fletcher folheouaté o começo para ver se haviaum nome, e lá estava; inscrito emletras douradas viam-se as

palavras O Diário de James Baker.Fletcher reconheceu o

sobrenome comum. O homemdeveria ter sido um dos raroscamponeses com a habilidade deconjurar, uma ocorrênciadescoberta puramente por acasoquando um cavalariçointrometido lia alguma coisa quenão deveria e conjurava umdemônio por acidente. Com essarevelação, a maioria dos rapazese garotas da idade de Fletcher

nas cidades grandes passaram aser testados em busca deminúsculos traços dashabilidades necessárias para secontrolar um demônio. MasPelego era pequena e isoladademais para merecer uma visitada Inquisição.

Ele inspecionou a folha solta,fazendo uma careta ao perceberdo que o material era feito.Runas bárbaras a marcavam, coma caligrafia elegante do

conjurador abaixo ensinando apronúncia fonética.

Fletcher sorriu e começou acomer as salsichas, saboreandocada fatia. Era difícil evitar queseus olhos voltassem à páginahorrenda. Ele sabia o que iriatentar fazer naquela noite...

9

Fletcher não sabia bem por quetinha se dado ao trabalho de seesgueirar até o cemitério. Nãoera como se alguma coisa fosserealmente acontecer, afinal. Paracomeçar, ele sabia que a maioriados camponeses descobertos

como adeptos exibia pequenossinais de habilidades especiaismesmo antes de ser encontrado,como o poder de moverpequenos objetos ou mesmo decriar uma fagulha. O rapaz estavacerto de que a coisa maispróxima que ele tinha de umahabilidade especial era o talentode enrolar a língua.

Mesmo assim, era umaatividade empolgante, e talvez,depois de ter lido o

encantamento, Fletcher pudessevender o pergaminho na suapróxima viagem à frente élficasem o arrependimento de não tertentado. Ele encontrariaRotherham e dividiria os lucroscom ele, é claro. Afinal decontas, tinha sido um presentegeneroso e, no fundo, eraFletcher quem estava em dívidacom o soldado, e não o contrário.

O rapaz se sentou numalápide partida e pousou o livro

aberto num velho toco de árvorelogo adiante. Tinha ficado emdúvida quanto a trazer o livro oudeixá-lo em casa. Didric e seuscapangas poderiam invadir aferraria enquanto ele estivessefora, ou o assaltar se oencontrassem a caminho docemitério. No fim, o trouxerasimplesmente porque odiariaperdê-lo de vista.

O pergaminho tinha texturade couro, e Fletcher percebeu,

em um momento de horror, queos símbolos provavelmentehaviam sido entalhados na carneda vítima, para cicatrizar antesque ela fosse esfolada viva. Orapaz estremeceu com opensamento apavorante, eresolveu segurar o documentocom o mínimo de dedos possível.A superfície erasurpreendentemente seca epoeirenta.

As palavras no pergaminho

não passavam de uma lista desílabas, mais algum tipo de dó rémi musical que qualquer formade linguagem órquica. Dequalquer maneira, o menino nãofazia ideia de qual língua erausada em conjuros; talvez os orcstivessem traduzido o que eleestava prestes a ler para a escritade seu próprio povo a partir dealguma outra linguagemcompletamente diferente. Alémdisso, James Baker tinha escrito

que este demônio já tinha sidocapturado por um xamã e, dealguma forma, “presenteado”.Quem poderia saber o que issoacarretava? Ainda assim, ele leriaas palavras, então voltaria à camaquente, feliz ao saber que tinhatentado.

— Di rah go mai lo fa lo go rahlo... — começou ele, sentindo-seum tanto ridículo e feliz porqueninguém o assistia, exceto talvezos fantasmas de pessoas havia

muito mortas.As palavras fluíram da língua

de Fletcher como se ele asconhecesse de cor, e ele nãopoderia mais parar nem sequisesse, tão grande era oimpulso de pronunciá-las alto eclaro. Uma sensação impetuosa einebriante se espalhou por seucorpo como um cobertorquentinho, só que, em vez danévoa trazida pela cerveja, omenino sentia uma clareza

perfeita, como se estivessecontemplando as águas plácidasde um lago montanhês. Namente de Fletcher, as palavraseram mais como uma equaçãomística, cada uma se repetindoem ciclos variáveis que eramquase melodiosos em suapronúncia.

— Fai lo so nei di roh…As palavras seguiam

monótonas, quase um zumbidoimplacável, até que ele

finalmente chegou à últimalinha. Ao articular as palavrasfinais, Fletcher sentiu a mente sedeslocar de uma forma que elereconhecia. Aquela sensação deagudeza afiada como umanavalha que experimentavaquando soltava a flecha, só queduas vezes mais forte do quejamais sentira. As cores domundo se tornaram vívidas,quase iridescentes. As pequenasflores de inverno que cresciam

por entre os túmulos pareciamquase incandescer com luzetérea, de tão brilhantes queestavam em sua visão.

O coração do meninotrovejava no peito, e ele sentiuum puxão na mente, no começohesitante, depois insistente e tãopoderoso que Fletcher caiu dejoelhos.

Ao erguer a cabeça, elepercebeu que a capa do livrocintilava. Seus olhos se

arregalaram ao ver as linhas dopentagrama se acenderem, aestrela dentro do círculotremulante com um brilhoarroxeado. Então, como se tivesseestado ali desde o começo, umorbe de luz azul apareceu algunscentímetros acima do símbolo.Inicialmente não passava dopontinho de um vagalume,chegando ao tamanho de umpedregulho em poucos segundos.Pairou ali, tão brilhante que

Fletcher foi obrigado a desviar osolhos e cobri-los com as mãosconforme a claridade seintensificava até uma esferaardente, luminosa como o sol.Um rugir como das chamasatiçadas na forja de Berdonchegavam a seus ouvidos,lançando ondas de dor pelacabeça.

Depois do que pareceramhoras, tudo cessou. Na escuridãoe silêncio súbitos, Fletcher achou

que estava morto. Ele se ajoelhoucom a testa na terra macia,inspirando grandes golfadas docheiro de grama para seconvencer de que ainda estava lá,mesmo que o ar agora estivessemarcado por um odor sulfúricoque o rapaz não reconhecia. Foisó o soar de um trinado suaveque fez Fletcher erguer a cabeça.

Havia um demônio agachadonum morrete de grama a 60centímetros do livro, sentado

sobre as patas traseiras. A caudachicoteava atrás dele como orabo de um gato do mato, e asgarras seguravam os restos dealgo negro e brilhoso, algum tipode diabrete com forma de insetodo outro mundo. O ser roía obesouro-demônio como umesquilo a uma noz, esmigalhandoe escavando a carapaça.

A criatura tinha mais oumenos o tamanho de um furão,com um corpo similarmente ágil

e flexível e membros longos obastante para que fosse capaz deavançar como um lobo damontanha, em vez de correr aospoucos como um lagarto. Suapele lisa era de um vermelhoprofundo, a cor de um bomvinho tinto. Os olhos eramgrandes e redondos como os deuma coruja, ferozmenteinteligentes e da cor de âmbarbruto. Para a surpresa deFletcher, o demônio não tinha

dentes de verdade; seu focinhoterminava numa ponta afiada,quase como o bico de umatartaruga do rio. Ele o usou paraabocanhar o resto do besouroantes de voltar sua atenção aomenino.

Fletcher empalideceu e searrastou para trás, encostando-sena lápide partida. Por sua vez, acriatura guinchou e se escondeudetrás do toco, saltandosinuosamente enquanto a cauda

balançava de um lado ao outro.Fletcher notou um ferrão afiadona extremidade, como umaponta de flecha entalhada emosso de cervo. O cemitério estavaquieto, nem uma brisa ousavaromper o silêncio que seassentara sobre o mundo deFletcher como uma coberta.

A esfera amarela do olho dacriatura espiou desconfiada sobrea beira do toco. Quando osolhares de ambos se

encontraram, Fletcher sentiualgo estranho no limite daconsciência, uma identidadedistinta que parecia estarconectada a ele de alguma forma.O menino sentiu uma intensacuriosidade, irresistível em suainsistência, mesmo enquantoestava dominado pela vontade defugir. Ele inspirou mais uma vezde maneira funda e soluçante, ese preparou para correr.

Subitamente, o demônio

disparou por sobre o toco numsalto lânguido, pousando nopeito arfante de Fletcher. Elefitou o menino, inclinando acabeça para o lado como se lheexaminasse o rosto. Fletchersegurou a respiração quando acriatura chilreouincompreensivelmente e lhe deutapinhas com a pata da frente. Orapaz ficou ali sentado,paralisado.

Mais uma vez a criatura

trinou para ele. Então, para ohorror de Fletcher, ela continuoua escalada, cada garra perfurandoo tecido da camisa. O demôniose enrolou no pescoço do rapazcomo uma cobra, e a pelecoriácea de sua barriga era lisa equente. A cauda chicoteoudiante do rosto de Fletcher,continuando o movimento ecircundando-lhe a nuca. Oaprendiz de ferreiro sentia arespiração quente do ser na

orelha, ciente de que ele iriaesganá-lo naquele instante; umamorte dolorosa que Didric játentara lhe conceder. Pelo menoseles não teriam que transportarseu corpo por muito tempo parao enterro, pensou com morbidez.Quando a pressão começou,Fletcher fechou os olhos,rezando para que fosse rápido.

10

Os minutos se passaram navelocidade de uma lesma. Oterceiro sino da madrugada jádevia ter tocado, e só faltavamalgumas horas para a alvorada.Fletcher estava começando asentir frio, mas resistia à

compulsão de tremer por medode sobressaltar o diabrete.Rajadas gêmeas de vapor seerguiam a sua esquerda comcada expiração das narinas dodemônio. O peito avermelhadosubia e descia num ritmocontínuo, e Fletcher ouvia umsussurro suave quando arespiração quente lhe faziacócegas na orelha. Era quasecomo se... o demônio estivessedormindo! Como tal coisa

poderia acontecer, ele não sabia,mas estava feliz em ainda sercapaz de respirar.

Quando Fletcher tentou tirara criatura do pescoço, ela rosnouem seu sono e se apertou mais, asgarras segurando-lhe com forçaperto da jugular. Fletcherremoveu os dedos e ela relaxoude novo, chilreando contente. Ofazia lembrar de um dos gatos davila, que entrava escondido emseu quarto durante as nevascas e

se negava a deixar o calor do colode Fletcher, sibilando quando eletentava se levantar. O diabreteera uma coisinha muitopossessiva.

Fletcher se levantou e andouaté o livro, mantendo o pescoçorígido, como se equilibrasse umajarra d’água sobre a cabeça.Agachando-se com dificuldade,pegou o tomo, guardou opergaminho em meio às páginase o segurou contra o peito. Se

quisesse comandar aqueledemônio, então provavelmenteprecisaria daquelas páginas.

Foi então que ouviu: o som devozes altas e furiosas. Fletcher sevirou e detectou luzestremeluzentes no fim docemitério, aproximando-se cadavez mais. Como eles o haviamencontrado? Talvez um dosaldeões tivesse ouvido o barulhoou visto a luz do orbe mais cedo.Isso seria surpreendente, porém

o rapaz escolhera o cemitérioexatamente porque ficavalocalizado num pequenoafloramento ao norte da vilaprincipal, acessível apenas poruma trilha traiçoeira e a quase800 metros da residência maispróxima.

Fletcher vasculhou osarredores com o olhar, tomadopelo pânico, até achar ummausoléu em ruínas no canto docemitério. Era do tamanho de

uma cabana pequena, cercadopor colunas ornadas e enfeitadocom entalhes de flores, apesar dachuva ter erodido os detalhesmuito tempo antes. O menino seesgueirou até ele e se agachoupara passar pela abertura baixa,submergindo nas trevas e seescondendo atrás de um bloco depedra que cobria a cripta bem nofundo da câmara. Fletcher sabiaque um ossuário muito antigojazia a menos de 1 metro abaixo

dele, onde as ossadas de aldeõesde gerações passadas eramempilhadas como lenha defogueira.

Ele se escondeu bem a tempo,pois o brilho de uma tocha acesatingiu o chão diante do seuesconderijo alguns segundosdepois.

— Estou começando a acharque você nos trouxe em umabusca de tolos, vagueando poreste cemitério — acusou a voz de

Didric, carregada de frustração.— Estou lhe dizendo, eu vi o

moleque saindo pelo portão dosfundos da vila. — Fletcherreconheceu a voz como sendo deCalista, uma guarda mais nova euma das companheiras debebedeiras de Didric. Ela erauma garota séria, com umatendência ao sadismo quase tãograve quanto a do outro guarda.

— Certamente você podecompreender o absurdo desta

situação. Que ele estivessevagueando pelo cemitério, dentretantos outros lugares, no meio danoite. Ele nem tem família; quemafinal estaria visitando? —zombou Didric.

— Ele só pode estar aqui,Didric. Conferimos os pomares eos armazéns, e o moleque nãoestá em nenhum dos dois. Este éo único outro ponto ao norte davila — afirmou Calista.

— Bem, vasculhe tudo. Talvez

ele esteja por aí, se esgueirandopor trás de lápides. Vamos lá,você também, Jakov. Não estoute pagando para ficar aí parado— comandou Didric.

Jakov grunhiu, e Fletcher seagachou ao ver o homem passarpelo mausoléu, com uma longasombra sendo lançada adiantepela tocha de Didric.

A coisa estava feia. Fletcherpoderia enfrentar Didric eCalista, mas com Jakov... a única

opção seria tentar escapar.Mesmo assim, a nova guardatinha sido contratada pelo seufísico atlético, e Fletcher nãosabia se poderia correr mais queela, ainda mais com um demônioimprevisível enrolado nopescoço. Ainda bem que Didricparecia ser o único do triocarregando uma tocha. Fletcherpoderia despistá-los naescuridão.

Ele se deitou no chão frio de

mármore e esperou, torcendopara que eles fossem emboraantes de verificar o mausoléu.Parecia um lugar óbvio onde seprocurar, mas provavelmentetinha parecido vazio à primeiravista, considerando que Fletcherse escondera atrás da coberturade pedra. A luz da tocha do ladode fora enfraquecia conformeDidric se afastava, descendo asfileiras de túmulos, e uma chuvaforte começou a batucar no

telhado. Fletcher se permitiurelaxar; eles não procurariam pormuito tempo naquele temporal.

O teto rachado começou avazar, e um fio fino de água sederramou ao seu lado. Fletcherse afastou um pouco da poçacrescente e tentou se mantercalmo, uma tarefa difícil quandoele sabia quem estava lá foraprocurando por ele. Torceu paraque os animais que ele caçavanão se sentissem assim quando

ele os perseguia pela floresta.Bem quando achou que tinha

escapado, Fletcher percebeu astrevas ao seu redor recuando àmedida que a luz da tocha seaproximava. Didric estavavoltando! O rapaz ouviu umpraguejar quando o perseguidorentrou no mausoléu, e prendeu arespiração quando Didric torceuo manto. A tocha engasgou porconta da chuva e finalmentemorreu, lançando o aposento nas

trevas. Didric xingouviolentamente. Algunsmomentos depois, Jakov e Calistachegaram, ambos igualmentebocas-sujas e molhados.

— Eu falei que vocêspoderiam parar de procurar? —grunhiu Didric no escuro,soando resignado.

— Ele não está aqui. Deve terdado meia-volta quando fuibuscar vocês — disse Calista, coma voz repleta de infelicidade.

— Não achem que serãopagos por isto — cuspiu Didric.— Sem Fletcher, sem dinheiro.

— Mas a gente tá ensopado!— choramingou Jakov, batendoos dentes.

— Ah, cresça, por favor.Estamos todos molhados. Aqueleordinário pode ter escapado, masisso só significa que a coisa vaificar ainda pior para ele quandoo alcançarmos. Venham, vamossair daqui.

Fletcher soltou um suspirosilencioso de alívio quando ospassos do trio ecoaram para forada câmara. Então, quandoachava que a provação tinhaacabado, o demônio se mexeu.Ele bocejou com um miado alto ese desenrolou do pescoço. Depoisde uma lambida afetuosa norosto de Fletcher, o bicho sedeixou cair para o colo domenino e se espreguiçou,langoroso.

— O que foi isso? — sibilouDidric.

Droga.

11

Fletcher se levantou e endireitouos ombros, derrubando odiabrete no chão. Este ganiu emprotesto e disparou para umcanto dos fundos do mausoléu.

— É você, Fletcher? —indagou Didric, estreitando os

olhos para enxergar nas trevas. Aentrada era a única parte dacâmara visível sob o tênue luar,então Fletcher provavelmentenão passava de um vulto escuronas sombras. Didric começou aavançar em sua direção.

— O que você quer, Didric?Já não passou da sua hora dedormir? — perguntou Fletcher,com a voz carregada de umaconfiança que ele não sentia. Eramelhor se anunciar agora do que

permitir que Didric chegassemais perto para investigar. Elequeria manter a lápide entre osdois.

— O ordinário está aqui! —gritou Didric,desnecessariamente; Jakov eCalista já estavam ao seu lado. Assilhuetas negras do trio estavambem marcadas contra o cemitérioao luar, dando a Fletcher apequena vantagem de saberexatamente a posição dos três.

Mas o fato de que eles estavambloqueando a saídadefinitivamente não ajudava.

— Pego como um rato naratoeira! — exclamou Didric comalegria sádica. — Onde está suaesperteza toda agora, Fletchy?

— Vejo que você trouxe asduas babás junto — comentouFletcher, fazendo um esforçohercúleo para pensar em algumjeito de fugir. — Três contra um,é? Por que você não me enfrenta

como um homem? Ah, esperaaí... a gente já tentou isso.

— Cale a boca! — explodiuDidric. — Você me pegou desurpresa. Se tivesse sido uma lutajusta, eu teria feito picadinho devocê. — A voz dele estava tensa,com orgulho ferido e raiva.Fletcher sabia que sua únicaescapatória seria enfrentar Didricum contra um.

— Então lute comigo agora.Deixe Jakov e Calista verem o

que teria acontecido se não fossede surpresa — retrucou Fletcher,com o máximo de convicção queconseguia juntar. Cerrou ospunhos e deu um passo à frente.Houve silêncio por ummomento, seguido de umarisada.

— Ah, não, Fletcher, eu sei oque você está tentando fazer. —Didric riu. — Não vou lutar comvocê hoje. — O gargalhar ecooupela câmara, fazendo um arrepio

correr pela espinha do garoto.— Tudo bem, não lute

comigo. Vamos acabar logo comessa briga. Eu tenho mais o quefazer — desafiou Fletcher, acimada risada de Didric.

O rapaz passou a mão pelaborda da pedra que cobria aentrada da cripta abaixo,calculando freneticamente. Elesabia que havia outra entradapara as catacumbas subterrâneas,numa capela abandonada logo

na saída do cemitério. Se eleconseguisse de alguma formaabrir aquela passagem, talvezconseguisse escapar por ali.Sentiu a rachadura abaixo quelhe dizia que uma laje pesadaselava a entrada. Era umapossibilidade remota, mas eleteria que afastar a tampa muitolentamente para que os outrosnão percebessem. Ainda bemque Didric era apaixonado pelosom da própria voz.

Quando Jakov e Calista sejuntaram à risada, Fletcherempurrou a laje um pouquinhopara trás, estremecendo ao ouviro arranhar de pedra contrapedra. Aquilo demoraria mais doque ele esperava.

— Seu idiota, também nãoestamos aqui para lhe dar surranenhuma — afirmou Didricrindo, mal se contendo defelicidade. — Não, estamos aquipara matar você, Fletcher. Você

fez uma boa escolha vindo a umcemitério esta noite. Esconderseu corpo vai ser fácil.

O sangue de Fletchercongelou quando ouviu o som deespadas sendo desembainhadas.Trincou os dentes e fez força,empurrando a laje por maisoutro par de centímetros, masainda não era suficiente.Precisaria de mais tempo.

— Me matar? Com osPinkertons na cidade? Você é

mais idiota do que eu pensava.Berdon sabe onde estou, ele irádireto falar com eles se eu nãoestiver em casa em breve —blefou.

Didric o ignorou e deu meiopasso à frente.

Fletcher continuou tentando:— Metade da vila viu nossa

briga ontem à noite. Vocês vãopassar o resto das suas vidas naprisão por conta de umadiscussão que só começou há

dois dias? — indagou em vozalta, tentando abafar o rilhar daspedras ao empurrá-la por maisalguns centímetros. Didric fezuma pausa e riu.

— Ah, Fletcher. Meu queridopai tem os Pinkertons comendona palma da mão. Elesprefeririam prender um ao outroa prender o filho do novoparceiro de negócios deles —afirmou Didric, despreocupado.

Fletcher parou e tentou

pensar. Parceiro de negócios? Doque diabos ele estava falando?

— De fato, talvez eu lhe conteo que ocorreu no jantar algumashoras atrás, para que você fiquesabendo o que vai acontecer comsua querida vila depois que vocêestiver a sete palmos —continuou Didric, bloqueando apassagem de Jakov e Calista comos braços quando elescomeçaram a avançar. — E vocêsvão aprender por que ficar ao

meu lado fará bem às suascarreiras.

— Vamos lá, então. Meesclareça, por favor — zombouFletcher, empurrando a laje depedra o bastante para quehouvesse algum espaço aberto. Omenino captou uma baforada dear preso na cripta abaixo,envelhecido como umpergaminho antigo.

— Como eu sei muito bemque aquele soldado fraudulento

lhe contou, criminososcondenados serão alistadosobrigatoriamente no exército.Uma péssima ideia, na minhaopinião, mas onde outros veemburrice, meu pai vêoportunidades — gabou-seDidric, apoiando-se na espada.— Os prisioneiros serãotransportados de dia, dormindona prisão de cada cidade à noite,onde estarão sãos e salvos.Porém, quando alcançarem a

cidade de Boreas, a maissetentrional, ainda faltarão maisdois dias de viagem até as linhasde frente élficas. Isso significaque terão de pernoitar nafloresta, o que não é nada ideal.Ora, qualquer bando demalfeitores poderia atacar ocomboio no meio da noite, e nãohaveria celas de cadeia paraevitar que os prisioneirosfugissem. Mas você sabe o quefica entre Boreas e a fronteira?

Nossa bela vila de Pelego, é claro.Fletcher estava ficando farto

do tom pretensioso de Didric,mas também sabia que a própriavida dependia da jactância domenino.

— E daí? Eles não podem ficaraqui. É pequeno demais. O quevocês vão fazer, alugar alguns dosquartos vazios na sua casa? —indagou Fletcher.

Ele conseguiu enfiar as mãosno espaço vazio e agarrar a parte

de baixo da tampa de pedra,conseguindo dessa forma umaalavancagem. Poderia jogar atampa para longe em um únicomovimento e mergulhar noburaco, mas preferia esperar atéDidric estar com a falação a todae conseguir uma vantagemsilenciosa na corrida. Eleprovavelmente precisaria dela,pois a laje que cobria a outrasaída da cripta também teria deser removida.

— Você não entendeu oplano, como eu sabia que iriaacontecer! — exclamou Didriccom irritação exagerada. —Vamos cobrar nossosempréstimos, Fletcher. Confiscaras casas de todo mundo etransformar esta vila inteiranuma prisão. Imagine só, exigir omesmo preço que uma estalagemde luxo enquanto servimos grudee oferecemos camas de palha.Lotação esgotada todas as noites,

todos os pagamentos garantidospelo Tesouro do rei. Pense noslucros! Nossos guardasexcedentes se tornarão oscarcereiros e as paliçadasmanterão pessoas dentro, e nãofora! E, se um prisioneiroescapar, os lobos o comerão, issose ele não se perder na floresta.Os Pinkertons já assinaram oacordo. Mesmo que a lei não sigaadiante, nossa prisão será a maissegura e remota jamais

construída, distante do povo debem das cidades.

Levou alguns segundos paraentenderem. O belo lar deles,com centenas de gerações deidade, transformado numaprisão. A maioria dos aldeõesteria suas casas confiscadas,incapazes de quitar as dívidasque eram dez vezes maiores doque o valor originalmenteemprestado. Era horrível demaisaté para se contemplar, porém

Fletcher se ateve a uma últimaesperança, um problema gritanteque Caspar devia ter deixado denotar.

— Nunca vai dar certo,Didric. A frente élfica não precisade recrutas. Eles mandam orefugo lá em cima para queespere a aposentadoria. E nemessa ralé visita Pelego. Preferemviajar a noite toda ou acampar nafloresta para não ter que pagaruma estalagem — apontou

Fletcher, empurrando a laje obastante para que pudesse descerpela fresta. Mas o rapazesperou... precisava saber mais.Os aldeões tinham que seravisados.

— Você não é tão burro assimafinal, Fletchy. Mas estáenganado. Fatalmente enganado.— Didric riu com a piadinha ebrandiu a espada de formaameaçadora. — Veja bem, afrente élfica é o lugar perfeito

para um campo de treinamento.Preparar criminosos para aguerra num lugar relativamenteseguro, com guerreirosexperientes para lhes ensinar, edepois despachá-los para o sulquando estiverem prontos. Não,Fletchy, perfeito. Mas tem umacoisa que eu não lhe contei.Acho que você vai gostar. —Didric fez uma pausa, esperandoque o outro lhe perguntasse oque era.

Fletcher se desesperou. Éclaro, se os prisioneiros fossemdireto à frente órquica, seria ocaos. O exército do rei nãopoderia lutar uma guerra e tentarconter milhares de criminososrecém-libertados ao mesmotempo. Se houvesse uma revolta,os soldados acabariam lutandoem duas frentes. Melhor ensinardisciplina aos novos recrutas edoutriná-los ali no norte antes demandá-los reforçar as forças

assediadas de Hominum ao sul.— O que é, Didric? — rosnou

Fletcher. Ele poderia sentir araiva borbulhando, cáustica equente no seu peito. A família deDidric era como um bando decarrapatos, sugando a vida dePelego. E agora eles estavaminfectando a vila também.

— Bem antes que o acordofosse fechado, eu me lembrei devocê, Fletchy. De você e daqueleimenso imbecil, Berdon. Avisei

meu pai que os novos recrutasprecisariam de equipamento,então sugeri uma soluçãobastante elegante. Foi aí que osPinkertons fizeram um adendoao contrato, concedendo a nós osdireitos exclusivos de venda aosnovos alistados na frente élfica.Somente armas e armadurascomercializadas pela minhafamília poderão ser compradaspelos intendentes. Começaremosa trazer armas de Boreas na

semana que vem, e pode confiarem mim quando eu lhe digo que,nas quantidades que vamoscomprar, nossos preços serão ametade do que Berdon estácobrando. Então, veja bem,enquanto aquele idiota ruivoestiver de luto pela sua morte,também ficará sem um tostão.Quem sabe, talvez deixemos queele trabalhe como cavalariço. É sópara isso que ele serve, afinal.

Mesmo nas trevas, Fletcher

conseguia ver o sorriso satisfeitono rosto de Didric. A raiva ardiano peito do rapaz como afornalha de Berdon, acelerando-lhe o coração até que ele quaseouvisse o sangue correndo pelasorelhas. O ódio estremecia seucorpo, cada batida do coraçãopulsando nas têmporas. Elenunca quis matar ninguém antes,mas agora entendia a compulsão.Didric precisava morrer.

Ao pensar naquilo, Fletcher

sentiu a ligação entre si mesmo eo diabrete, como se o bicho fosseuma imensa aranha penduradanum fio de teia. A raiva fluiupela conexão com umaferocidade potente, e o meninosentiu a consciência do demônioser preenchida com a própriaintenção. Didric era um inimigo,uma ameaça.

— Nada a dizer? Isto não foitão satisfatório quanto achei queseria. — Didric suspirou e olhou

os demais, ao erguer a espadadeu um passo à frente. —Certo... vamos matá-lo.

12

No instante em que as palavrasdeixaram os lábios de Didric, odiabrete saltou das trevas. Eleguinchou ao cravar as garras norosto do menino rico,arranhando e rasgando. Didricdeu um berro e largou a espada,

que caiu com um estrépitoenquanto o garoto girava pelacâmara como um possuído.

— Tira isso, tira isso! — uivouele, o sangue escorrendo emabundância pelo rosto.

Jakov e Calista bateram nodiabrete com os punhos,tentando não ferir Didric. Comcada soco Fletcher sentia umclarão tênue de dor nos limitesda consciência, mas o demôniose manteve agarrado com

obstinação, urrando de raiva. Aira de Fletcher continuavaradiando dele como um fogocrepitante, enchendo o peito defúria justiceira. Ao ápice de talsentimento, o menino teveaquele momento de clareza maisuma vez, e o sangue negro deDidric se tornou vermelho-rubina visão.

O diabrete se calou, emseguida abriu a boca tãolargamente quanto uma cobra.

Fogo líquido irrompeu dabocarra da criatura, fluindo sobrea lateral do rosto de Didric eincendiando-lhe o cabelo. Umincandescer sobrenatural ealaranjado clareava a cavernaenquanto Didric desabava, seugrito engasgado interrompidoquando a cabeça se chocoucontra o piso de mármore. Jakove Calista se ajoelharam e bateramnas chamas tremeluzentes,tentando apagá-las e gritando o

nome de Didric. O diabretesaltou para os braços de Fletcher,que se deixou cair na criptaabaixo e correu em direção àsaída; o coração batia no peitocomo um pássaro engaiolado.

Estava negro como breu láembaixo, o ar morto e gelado. Omenino correu sem parar,mergulhando nas profundezas daterra. Prendendo com força olivro debaixo do braço, Fletchersentiu a mão tocar em pilhas de

ossos ao tatear pelas trevas embusca do caminho; pilhascontidas por arame enferrujado eséculos de poeira. Ele derrubouum crânio da alcova aoenganchar o dedo na órbitavazia. A caveira quicou corredorabaixo e se estilhaçou emfragmentos grotescos. Fletcheresmigalhou os cacos ao avançaraos trancos e barrancos,desesperado para sair dali. O arera abafado, e Fletcher sentia-se

sufocar com cada respiraçãocarregada de poeira. O demônionão estava ajudando em nada,cravando as garras no tecido dacamisa e fungando dedesconforto.

Depois do que pareceu umaeternidade, Fletcher bateu com acanela de forma dolorosa numaborda de pedra. Tateou adiante edescobriu outra. O alívio oinundou quando ele percebeuque tinha encontrado o que só

poderia ser a escada para acapela. Estendeu a mão para oalto e sentiu a superfície lisa deoutra laje de pedra. Com umesforço colossal, Fletcher aempurrou para cima e para olado, jogando-a no chão com umestrondo.

O brilho fraco da lua lhepareceu glorioso ao entrar pelasjanelas quebradas da capela,banhando Fletcher em prata. Omenino engoliu golfadas de ar

fresco, feliz em estar livredaquela armadilha mortal.Porém, mesmo enquantocomeçava a relaxar, lembrou-sedo que tinha acontecido.Precisava voltar a Berdon o maisrápido possível; o ferreiro saberiao que fazer.

Fletcher correu pelaescuridão, usando o luar para seorientar pela trilha de cabras.Tinha certeza de que os outrosestariam logo atrás,

provavelmente carregandoDidric. Ele teria no máximo dezminutos antes que a notícia seespalhasse. Se os guardasouvissem que um dos seus tinhasido atacado,independentemente dascircunstâncias, era improvávelque Fletcher vivesse o bastantepara ir a julgamento. E, mesmose o fizesse, com as conexões deCaspar ele jamais teria umachance justa; as únicas duas

testemunhas não seincomodariam em mentir.

A vila estava quieta comouma sombra; todos dormiam emsuas camas. Ao se aproximarcorrendo dos portões principais,Fletcher ficou imensamente felizao notar que a casa do portãoacima estava vazia. Um dosagressores devia ter abandonadoseu turno para caçá-lo.

A forja estava iluminada peloincandescer suave dos carvões,

que soltavam uma leve fumaçaenquanto queimavam. Berdonestava adormecido na cadeira devime, exatamente na mesmaposição em que Fletcher odeixara ao se esgueirar para fora.

Não havia tempo a perder; omenino precisava escapar. Aideia de abandonar Pelego o feriaaté a alma, seu coração seapertava só de pensar. Por ummomento, Fletcher entreviu avida de vagabundo que o

aguardava, vagando de vila emvila, mendigando por sobras.Balançou a cabeça para afastartais pensamentos. Uma coisa decada vez.

Com o coração pesado,Fletcher chacoalhou Berdon paraacordá-lo.

— O que foi? — indagou oferreiro com a voz arrastada,dando um tapa nas mãos deFletcher. — Estou dormindo. Meacorda amanhã. — Fletcher o

chacoalhou de novo, desta vezcom mais força.

— Acorda! Preciso de ajuda.Não temos muito tempo —insistiu o menino. — Vamos lá!

Berdon ergueu o olhar,levando um susto quando odiabrete curioso pulou do ombrode Fletcher para seu peito.

— O que diabos é isso? —gritou, inclinando-se para o maislonge possível. O demôniograsnou com o barulho e deu um

tapa pouco convincente na barbade Berdon.

— É uma longa história, maseu vou ter que abreviar. Vocêprecisa saber que eu sereiobrigado a sumir da vila por umtempo — começou Fletcher,pegando o diabrete e ocolocando no ombro. O bicho seenrodilhou no pescoço domenino e soltou um ronronarsuave.

Fletcher explicou tudo o mais

rápido possível, omitindo osdetalhes mas se assegurando deque Berdon compreendessetodos os fatos.

Ao relatar o acontecido,Fletcher percebeu como tinhasido idiota de ir ao cemitériopassando pelo centro da vila,onde qualquer um poderia vê-lo.Ao terminar, ficou ali parado,rígido, tentando recuperar ofôlego e baixando a cabeçaenvergonhado enquanto Berdon

corria de um lado para o outro,acendendo uma tocha earrumando coisas numa bolsa decouro. O ferreiro só fez umapergunta:

— Ele está morto? — indagou,olhando nos olhos de Fletcher.

— Eu... não sei. Ele bateu acabeça bem forte. Seja o que for,seu rosto vai ficar bemqueimado. Vão dizer que eu oataquei com uma tocha; que oatraí até o cemitério e depois

tentei matá-lo. Eu decepcioneivocê, Berdon, fui um idiota —chorou Fletcher. As lágrimas seacumularam nos olhos quandoBerdon lhe entregou uma bolsagrande, a mesma em que elelevara as espadas à frente élfica.Jogou o livro no fundo com umsoluço, desejando que nuncativesse chegado às suas mãos. Odesespero parecia esmagar seucoração como um torno. Ohomenzarrão pousou as mãos

nos ombros de Fletcher esegurou com força, lançando odemônio ao chão.

— Fletcher, sei que nunca lhedisse isso, mas você não é nemmeu aprendiz nem um fardo.Você é meu filho, Fletcher,mesmo que não tenhamos omesmo sangue. Estou orgulhosode você; mais orgulhoso do quenunca. Você foi determinado ese defendeu, e não tem nada doque se envergonhar. — Berdon o

envolveu num abraço de urso, eo menino enterrou o rosto noombro do ferreiro, soluçando. —Tenho alguns presentes paravocê — anunciou Berdon,enxugando lágrimas do rosto.

Ele desapareceu no próprioquarto e voltou com dois grandesembrulhos. Meteu os dois nabolsa de Fletcher e lhe deu umsorriso forçado.

— Eu ia lhe dar essas coisasno seu décimo sexto aniversário,

mas é melhor que as recebaagora. Abra quando estiver bemlonge daqui. Ah, e você vaiprecisar de proteção. Tome isto.

Havia um cavalete de armasna parede oposta. Berdonselecionou uma espada curva dosfundos, onde ficavam os itensmais raros. Ele a ergueu contra aluz.

Era uma peça estranha, queFletcher nunca vira antes. Oprimeiro terço da lâmina era

como o de qualquer espada, umaempunhadura de couro seguidade dez centímetros de aço afiado.Mas a parte seguinte da espadase curvava num crescente, comouma foice. No fim da curva aespada continuava com umaponta aguda novamente.

— Você não recebeutreinamento formal, então sevocê se meter em encrencas...bem.. nem vamos pensar nisso.Esta espada-foice é uma arma

imprevisível. Inimigos não vãosaber como aparar seus golpes.Você pode prender a lâminadeles na curva da foice, entãoavançar além da guarda e golpearcom o gume traseiro. A ponta élonga o bastante para estocadas,então não tenha medo de usá-laassim também.

Berdon demonstrou, cortandoo ar para baixo e para o lado, emseguida trazendo o gume de tráspara cima até a altura da cabeça e

estocando violentamente.— A borda exterior da foice é

curva como uma boa cabeça demachado. Você pode usá-la pararachar um escudo ou até paraderrubar uma árvore, se precisar,muito melhor do que qualqueroutro tipo de espada. Dá paraseparar a cabeça de um homemdos seus ombros com um bomgolpe.

Berdon entregou a arma aFletcher, que a prendeu às costas

da bolsa com um cinto de couro.— Mantenha a espada oleada

e fora da umidade. Por causa doformato, ela não encaixa embainhas convencionais. Você vaiter que mandar fazer uma,quando tiver a chance. Diga aoferreiro que é um khopesh detamanho padrão, e ele saberáfazer uma, se conhecer o ofício— explicou Berdon.

— Obrigado. Vou fazer isso —respondeu Fletcher agradecido,

acariciando o pomo de couro.— Quanto ao demônio,

mantenha-o escondido —instruiu Berdon, fitando os olhosde âmbar do diabrete. — Vocênunca passaria por nobre, nemdeveria tentar. Mesmo que apessoa não tenha ouvido falar emDidric, é melhor não chamaratenção.

Fletcher segurou o demônionos braços e o examinou,perguntando-se como

exatamente poderia manter acriatura indisciplinada fora devista.

Subitamente, os sinoscomeçaram a tocar, o sommetálico reverberando pelas ruas.Mesmo com o clamor dos sinos,Fletcher podia ouvir gritosdistantes rua acima.

— Vá! Mas não para a frenteélfica, é para lá que esperam quevocê fuja. Vá para o sul, paraCorcillum. Vou barrar a porta da

forja, fazer com que pensem quevocê ainda está aqui. Vou contê-los o máximo que puder —afirmou Berdon, empurrando omenino para fora da forja, para oar frio da noite. — Adeus, filho.

Fletcher olhou pela última vezo amigo, mentor e pai, umasilhueta à porta. Então ela sefechou e ele estava sozinho nomundo, apenas com a criaturaadormecida ao redor do pescoço.Um fugitivo.

13

Dois dias se passaram. Dois diasem fuga, fazendo e refazendo ocaminho para deixar trilhasfalsas. Sem comer, sem dormir;só bebendo água quandovadeava pelos córregos damontanha, tentando despistar o

cheiro e evitar pegadas. Sempreque parava para descansar, ouviaos latidos dos cães de caça aolonge.

À noite, Fletcher escalava atéo topo de uma árvore alta paraconferir a direção usando asconstelações do céu. Ao fazê-lo,via o cintilar das fogueiras dosacampamentos nos vales acima.A guarda inteira da vila eprovavelmente a maioria doscaçadores o perseguiam. O pai de

Didric, Caspar, devia teroferecido uma recompensaenorme pela sua cabeça.

Agora, na terceira noite, omenino via apenas pontinhosminúsculos a meio caminhomontanha acima. Eles tinhamdado meia-volta, perdido atrilha. Fletcher soltou um suspiroaliviado e começou a longadescida até o chão, tomandocuidado para não perder oequilíbrio. Qualquer ferimento,

mesmo um tornozelo torcido,poderia significar a morte.

O rapaz não se permitiu ficarmuito complacente. LordeFaversham, um nobre poderoso,era proprietário da maior partedas terras nos contrafortes doDente do Urso. Ele eraconhecido por mandar ospróprios homens patrulharem afloresta em busca de caçadoresclandestinos. Fletcher teriadificuldades em explicar a eles

por que estava viajando sozinho,tão distante das trilhas seguras damontanha.

O demônio sibilou comirritação ao ser incomodadoquando Fletcher pulou para ochão. O diabrete tinha ficado naposição costumeira ao redor dopescoço do menino desde quetinham deixado a vila. Fletcherestava feliz por isso. Tivera ocorpo frio e encharcado portempo demais, mas a fornalha na

barriga do demônio mantinhapelo menos seus ombros e nucaquentes.

Fletcher olhou em volta edecidiu que a base do carvalhoera um lugar tão bom quantoqualquer outro para montaracampamento. O solo era plano ecoberto em musgo macio. A copada árvore o protegeria do pior sealguma chuva caísse e, por maisque fosse tarde demais paraconstruir um abrigo, havia galhos

mortos mais que suficientes nosarredores para se fazer umapequena fogueira.

O rapaz montou uma pilha degravetinhos e aparas, então usouuma pederneira e o aço dalâmina para lançar fagulhas.

— Você não poderia meemprestar um pouco daquelefogo agora, né? — perguntouFletcher ao demônio, as folhasúmidas ignorando as fagulhas.

O diabrete se desenrolou ao

som da voz do menino, descendopelo braço dele até o chão. Acriatura bocejou e o encarou,curioso, inclinando a cabeça parao lado como um cachorrinhoconfuso.

— Vamos lá, deve ter algumjeito de a gente se comunicar —disse Fletcher, curvando osdedos sob o queixo do diabrete edando uma coçadinha. Odemônio chilreou e esfregou acabeça na mão do menino. Com

cada esfregada, Fletcher sentiauma pontada de satisfaçãoprofunda no limiar daconsciência, como uma comichãosendo coçada. — Fogo! —anunciou Fletcher, apontando apilha de madeira.

O demônio latiu e girou.— Shhh! — exclamou o

garoto, atravessado por umlampejo de medo. Os baixios dasmontanhas eram notórios peloslobos que os habitavam. Fletcher

já tinha ouvido os uivos ao longe.Os dois haviam sido sortudos emtê-los evitado até então.

O diabrete se calou e seencolheu, rastejando por entre aspernas do rapaz. Ele tinhaentendido? Fletcher se sentou depernas cruzadas no chão úmido,estremecendo ao molhar a calça.Fechou os olhos e fez um esforçode memória, tentando lembrar seRotherham tinha mencionadoalguma coisa em suas histórias

sobre como os conjuradorescontrolavam os demônios.

Ao fazê-lo, sentiu aconsciência do demônio, tãoconfusa, assustada e solitáriaquanto a própria. Ele mandouuma onda de conforto aobichinho e sentiu o diabreteenrijecer, então relaxar, com omedo e a solidão substituídos porsimples cansaço e fome. Foi aíque Fletcher percebeu: ele nãoentendia as palavras, mas sentia

suas emoções!Fletcher mandou ao demônio

uma sensação de frio, mas obicho simplesmente trilou emdesconforto e se enrolou naperna do rapaz. Considerandocomo o corpo do diabrete eraquente, Fletcher suspeitava queele não se sentiria muito àvontade com qualquertemperatura que não fosse calor.Talvez... uma imagem? Eleimaginou fogo, trazendo de volta

memórias da fornalha quente naforja de Berdon.

O diabrete trinou e piscou osolhos ambarinos e redondos parao rapaz. Talvez aquela imagemfizesse a criaturinha lembrar decasa. Fletcher esfregou as mãos,frustrado; aquilo seria mais difícildo que tinha imaginado. Ele securvou e puxou o casaco puído.

— Se eu tivesse conseguidocomprar aquela jaqueta nomercado, a gente nem precisaria

de fogo — grunhiu Fletcher.O menino encarou a pilha de

madeira, desejando que elaqueimasse. Sem aviso, umalabareda foi disparada do colodele, incendiando a madeiraúmida e transformando-a numafogueira crepitante.

— Sua coisinha esperta! —comemorou Fletcher, puxando odiabrete para perto e abraçando-o com força.

O rapaz já podia sentir o calor

voltando aos braços e pernasgelados. Ele sorriu conforme aluz agradável do fogo lhe trouxede volta memórias queridas daforja de Berdon.

— Isso me lembrou de umacoisa — comentou Fletcher,soltando o demônio no colo eremexendo a bolsa. Com aperseguição constante, ele quasetinha se esquecido dos presentesde Berdon. Pegou o maior dosdois embrulhos e o rasgou, com

mãos ainda desajeitadas porcausa do frio.

Era um arco, laqueado comverniz transparente e encordoadocom uma excelente trança decouro cru condicionado. Amadeira era entalhadaintrincadamente, as duasmetades se curvando para dentroe então para fora nas pontas,fornecendo mais força aodisparo. A madeira era teixo,uma lenha cara que Berdon

devia ter comprado de ummercador no ano anterior; elanão crescia nas montanhas. Oferreiro tinha tratado e tingido amadeira para que o arco pálidose tornasse cinzento, evitandoque chamasse a atenção quandoo caçador estivesse escondido nassombras. Era uma arma bela evaliosa, do tipo que um mestrecaçador pagaria uma fortunapara possuir. Fletcher sorriu eolhou para o topo do Dente de

Urso, agradecendosilenciosamente a Berdon. Deviater levado meses para produzir oarco, trabalhando em segredoquando Fletcher saía para caçar.Havia até uma aljava delgada deboas flechas de penas de ganso.O rapaz provavelmenteconseguiria caçar uma lebre damontanha na manhã seguinte.

Com esse pensamento, oestômago de Fletcher roncou.Pôs o segundo presente de lado e

remexeu no fundo da bolsa,puxando um pacote pesado,embrulhado em papel marrom.Abriu este com mais cuidado esorriu ao ver a carne ressecadado alce que Didric tentararoubar. Colocou algumas tiras nofogo para aquecê-las, depoispassou outra para o demônio.

A criatura farejou a carnecautelosamente, em seguida deuo bote e a abocanhou. Ergueu acabeça para trás e engoliu o

pedaço inteiro de uma só vezcomo um falcão.

— Quase arrancou meusdedos, hein? — comentouFletcher enquanto o aroma decervo assado flutuava sob suasnarinas.

O rapaz enfiou a mão na bolsapara ver que outros alimentosencontraria. Sentiu algo quetilintava e puxou uma pesadabolsa de moedas.

— Ah, Berdon, você não

deveria — murmurou Fletcher,espantado.

Não deveria, mas fez. Peloque Fletcher podia ver, erammais de mil xelins, quase doismeses do faturamento deBerdon. Mesmo sabendo que seuganha-pão logo estaria correndorisco, o homem lhe dera umabela porção de suas economias.Fletcher quase desejou podervoltar e devolver, então selembrou dos trezentos xelins que

tinha economizado para ajaqueta, ainda esquecidos no seuquarto. O menino tinhaesperanças de que o ferreiroencontrasse a quantia, e o restodas posses de Fletcherprovavelmente também lherenderiam algum dinheiro.

— O que mais você me deu...— sussurrou Fletcher. Pegou osegundo presente e chacoalhou,sentindo algo macio e leve. Haviaum bilhete alfinetado ao pacote,

que Fletcher arrancou e leu aotremeluzir da fogueira.

As lágrimas pingaram na cartaquando Fletcher a dobrou, com ocoração cheio de saudades de

casa. Ele abriu o embrulho esoluçou ao ver a jaqueta quequeria, enterrando as mãos noforro macio.

— Você foi um pai melhorpara mim do que meu paiverdadeiro jamais poderia tersido — sussurrou Fletcher,olhando para as montanhas. Dealguma forma, as palavras queele tinha deixado não ditas aolongo dos anos eram do que maisse arrependia.

O demônio começou a miarcom a angústia de Fletcher,lambendo-lhe os dedos emsolidariedade. O rapaz lhe deutapinhas carinhosos na cabeça ese aproximou do fogo,permitindo-se alguns minutos detristeza. Então enxugou aslágrimas, vestiu a jaqueta epuxou o capuz sobre a cabeça.Com o coração cheio dedeterminação, ele iria construiruma nova vida, uma da qual

Berdon se orgulharia. Ele iriachegar a Corcillum.

14

A taverna fedia a homens sembanho e cerveja choca, masFletcher supunha que ele mesmotambém não deveria estarexalando um perfume de rosas.Duas semanas viajando numacarroça cheia de ovelhas faria isso

com qualquer um. O único arfresco que respirara nesse tempotodo fora quando saíra paracomprar pão barato e fatiasgrossas de porco salgado dosnativos. O rapaz tivera sorte; ocarroceiro não fez nenhumapergunta, só cobrara cinco xelinse pedira que Fletcher limpasse oesterco toda vez que elesparassem.

Agora o menino estavasentado no canto de uma das

tavernas baratas de Corcillum,saboreando cordeiro quente ecaldo de batata. Mal tinhaolhado a cidade, preferindoentrar direto na primeira tavernaque vira. Esta noite ele pagariapor um quarto e pediria umbanho quente; a exploraçãopoderia esperar até o diaseguinte. Tinha a sensação deque o fedor de ovelhas tinha seentranhado permanentementena sua pele. Até mesmo o

diabrete estava relutante em seaventurar para fora do seuesconderijo de costume nasdobras do capuz do rapaz. Nofim, Fletcher teve que suborná-locom o último pedaço de porcosalgado, alimentando o bicho atéque ele adormecesse.

Ainda assim, a criaturinhatinha feito com que a longa eescura jornada fosse suportável,aconchegando-se no colo domenino para dormir no frio da

noite. Fletcher compartilhava dassuas sensações de calor econtentamento, mesmoenquanto tremia na palha suja dacarroça.

— Um xelim — anunciouuma voz de mulher acima dele.Uma garçonete estendeu a mãogordurosa, apontando a comidacom a outra. Fletcher procurouna bolsa e puxou o pesado sacode moedas, colocando um xelimnos dedos ansiosos da mulher. —

Sem gorjeta? Com essa pratatoda? — guinchou ela,afastando-se em seguida eatraindo olhares de outrosclientes da taverna. Três sujeitosdurões em particular prestaramatenção. Vestiam roupas sujas, eos cabelos caíam em mechasgordurosas sobre seus rostos.

Fletcher fez uma careta eguardou o dinheiro.

Eles nunca precisavam detostões lá nas montanhas. Tudo

tinha preços em xelins; tostõescomplicavam as coisas. Eram cemtostões de cobre para um xelimde prata, e cinco xelins para umsoberano de ouro nas grandescidades de Hominum, mas abolsa de Fletcher só continhaprata. Ele pediria troco ao pagarpelo quarto, para que isso nãoacontecesse de novo. Erafrustrante cometer um erro tãoóbvio, mas não poderia dar umagorjeta do mesmo valor da

refeição, né?Outro homem, sentado atrás

dos três vagabundos, aindaencarava Fletcher. Era bonito,mas assustador, os traços bemdefinidos marcados por umacicatriz que se estendia do centroda sobrancelha direta até o cantoda boca, deixando um olho cegoe leitoso no caminho. Tinha umbigode fino e cabelos negrosencaracolados, amarrados comum nó na nuca. Seu uniforme

lhe identificava como algum tipode oficial; uma longa casaca azulcom lapelas vermelhas e botõesdourados. Fletcher viu umchapéu tricorne preto sobre o barà frente do homem.

Fletcher se encolheu nassombras e puxou o capuz paracobrir mais o rosto. O demôniose ajeitou e resmungou em seuouvido, infeliz em ser mantidono escuro por tanto tempo. Ocapuz era um ótimo esconderijo,

especialmente quando o meninoerguia o colarinho da camisa,mas a forma como o oficial oencarava era desconcertante.

O rapaz engoliu o resto docaldo e enfiou no bolso o pãoque viera junto, para dar aodemônio mais tarde. Talvez fossemelhor ficar em outra taverna,longe de todos que tinham vistoo peso de sua bolsa.

Baixou a cabeça e saiu para arua de paralelepípedos,

afastando-se com pressa eolhando por sobre o ombro. Nãoparecia haver ninguém oseguindo. Depois de mais algunspassos, Fletcher passou de umacorrida a uma caminhada,mantendo em mente anecessidade de encontrar outraestalagem. Logo o crepúsculo oalcançaria, e ele não gostavanada da ideia de dormir na ruanaquela noite.

Fletcher já se maravilhava

com os prédios altos, alguns commais de quatro andares de altura.Quase todos tinham uma loja notérreo, vendendo uma miríadede produtos que faziam omenino se coçar para pegar abolsa de dinheiro outra vez.

Havia açougueiros de caravermelha em lojas decoradascom fieiras de linguiças,ensanguentando-se até oscotovelos conforme acutilavamenormes peças de carne. Um

carpinteiro dava os retoquesfinais a uma perna de cadeiracom entalhes magníficos, comouma árvore enlaçada em hera.Uma perfumaria exalava umaroma sedutor de água-de-colônia, suas prateleiras de vidrona vitrine lotadas de garrafinhasdelicadas e coloridas.

Fletcher tropicou para o cantoda estrada quando umacarruagem parou à frente,deixando sair duas meninas com

lindos cabelos cuidadosamentecacheados e lábios pintados comopétalas de rosas vermelhas. Asduas entraram na perfumariacom o farfalhar das saias eanáguas, deixando Fletcherboquiaberto. O menino sorriu ebalançou a cabeça.

— Não é para o seu bico,Fletcher — murmurou para si,continuando a caminhada.

Seus olhos foram atraídos pelobrilho do metal. Uma loja de

armas reluzia com piques,espadas e machados, mas nãoforam eles que chamaram suaatenção. Foram as armas de fogo,cintilantes nos estojos forradosem veludo expostos num estandeà frente da loja. As coronhaseram entalhadas e tingidas emvermelho, com cada um doscanos gravado com cavalos agalope.

— Quanto custam? —perguntou ao vendedor, olhos

fixos num belíssimo par depistolas de duelo.

— Caras demais para ti, guri;essas armas são para oficiais.Mesmo assim, são muito belas,não são? — respondeu uma vozgrave.

Fletcher ergueu o olhar episcou, surpreso. Era um anão,disso tinha certeza. Ele estava depé sobre um longo banco, demodo que seu olhar estava àmesma altura do de Fletcher,

mas sem isso, bateria na barrigado menino.

— É claro, eu já deveria saber.Nunca vi nada mais bonito. Vocêque as fez? — indagou Fletcher,tentando não encarar. Anões nãoeram comuns fora de Corcillum,e o menino jamais vira um deles.

— Não, eu só vendo. Aindasou iniciante. Talvez um dia,quem sabe — explicou o anão.

Fletcher se perguntou como oanão poderia ainda ser um mero

aprendiz. Ele parecia muito maisvelho que o rapaz, com barba ebigode espessos. A cor da barbalembrava Fletcher da de Berdon,mas os fios eram muito maisgrossos e longos, trançados eentremeados com miçangas. Oscachos do anão eram igualmentelongos, chegando à metade dascostas num rabo de cavalo presopor uma tira de couro.

— Estariam seus mestresprocurando por novos

aprendizes? Eu tenho muitaexperiência na forja, e preciso detrabalho — inquiriu Fletcher,com esperança na voz. Afinal decontas, o que mais ele poderiafazer para ganhar dinheironaquela cidade tão cara? O anãoolhou para Fletcher como se ogaroto fosse burro, mas depoissua expressão se suavizou.

— Você não é destas bandas,é? — questionou, com um sorrisotriste.

Fletcher balançou a cabeçanegativamente. — Não vamoscontratar humano nenhum, nãoenquanto não tivermos osmesmos direitos, e não enquantoos segredos das armas de fogoainda forem nossos. Nada contravocê, pessoalmente. Você pareceum guri de boa índole —afirmou o anão, solidário. —Melhor que vá a um dos ferreiroshumanos, mesmo que só hajaalguns poucos. Eles vão bem de

negócios; há muitos soldados quese negam a comprar dos anões.Mas ouvi que não andamcontratando estes dias; hácandidatos demais.

Fletcher sentiu o coraçãoapertar. Ferraria era a únicaprofissão que ele conhecia, e jáera velho demais para se tornaraprendiz em outro ofício.Também não havia florestaspróximas à cidade onde elepudesse caçar, a não ser que as

selvas na fronteira meridionalcontassem.

— Que direitos lhes sãonegados? Sei que o rei concedeuo direito de alistamento noexército no ano passado —perguntou Fletcher, suprimindoo desapontamento.

— Há, tem muitos. A leiditando o número de filhos quepodemos ter a cada ano é a maisirritante. Só podemos ter amesma quantidade de bebês que

o número de anões quemorreram no ano anterior.Considerando que podemosviver quase o dobro que vocêshumanos, o resultado é só umpunhado. Quanto ao direito deentrar para as forças armadas,sim, é um passo na direção certa.O rei é um bom sujeito, mas elesabe que seu povo não confia emnós, especialmente o exército,graças às revoltas enânicas de unsoitenta anos atrás. A ideia é que,

uma vez que provarmos nossalealdade ao derramar sangue aolado dos soldados, bem, aí o reivai rever as leis, nos concedendocidadania plena. Mas, até queesse momento chegue, é assimque tem que ser. — A voz doanão tinha um toque de raiva, eele deu as costas, como sedominado pela emoção,remexendo numa caixa atrás desi.

Fletcher se lembrou do

desprezo dos outros aldeões emPelego quando foi anunciadoque os anões lutariam no exércitode Hominum. Jakov brincara queeles mal esbarrariam nas bolasdele se passassem por debaixodas suas pernas. Os braços desteanão robusto eram mais grossosque as coxas da maioria doshomens, e seu peito largo e forterefletia a voz trovejante. Se Jakovenfrentasse este anão, Fletchersabia bem em quem apostaria. Os

anões dariam aliadosformidáveis, sem dúvida.

— Você sabe de algum lugarbarato e seguro para ficar poraqui? — indagou Fletcher,tentando mudar de assunto.

O anão se virou de volta e lheentregou algo, fechando a mãodo menino sobre o objeto antesque alguém visse.

— Tem um lugar não muitolonge daqui. É uma tavernaamistosa aos anões, chamada

Bigorna. Talvez alguém possaachar algum trabalho para vocêpor lá. Diga que Athol mandouvocê. Pegue a terceira à direitadescendo a rua; não tem comoerrar.

O anão lhe deu um sorrisoencorajador e se virou para outrocliente, deixando Fletchersegurando um quadrado depapel com uma bigorna impressano centro. Fletcher sorriu eseguiu na direção indicada pelo

anão, então lembrou que nãotinha agradecido.

Ao se virar, travou olharescom os homens maltrapilhos dataverna, cujos rostos seiluminaram ao reconhecê-lo. Otrio avançou na direção deFletcher, que começou a correr.As pessoas olharam conforme orapaz disparava pela rua lotada,ganhando um tapa na orelha aoesbarrar num homem bem-vestido, acompanhado de uma

jovem dama.Quando Fletcher estava

prestes a alcançar a esquina quelevava à taverna, a rua ficoubloqueada por duas carruagens,cujos cavalos giravam erelinchavam enquanto oscondutores gritavam um com ooutro. Amaldiçoando a própriasorte, Fletcher foi forçado a virarnum beco. Ele correu ruaadentro, feliz em pelo menosestar livre das multidões. A rua

estava vazia e as lojas, nos doislados, já fechadas para a noite.Então Fletcher parou de repente,com o coração acelerado. Era umbeco sem saída.

15

Fletcher usou o tempo que tinhaantes da chegada dos ladrõespara convencer o demônio asubir no seu ombro. O diabretecravou as garras no couro dajaqueta, sentindo a agitação domenino.

— Fique preparado, amigo;acho que a coisa vai ficar feia —murmurou Fletcher, preparandouma flecha no arco e seajoelhando para mirar melhor.Os três viraram a esquina epararam, encarando o menino.— Caiam fora ou meto estaflecha no seu olho. Não tenho omenor problema em acabar comum ladrão — gritou Fletcher,espiando o maior dos três porcima da flecha. Seu alvo sorriu,

mostrando uma boca cheia dedentes amarelados.

— É, não duvido não. Mas,veja só, a gente não é exatamenteladrão; estamos mais paracortadores de garganta, se é quecê me entende. — O homem fezuma careta de desprezo e ergueuuma lâmina curva. — Só passa abolsa de dinheiro que a gente caifora, sem crise.

Ele deu alguns passos à frente,ficando a três metros de Fletcher.

O demônio sibilou e soprourajadas gêmeas de chamas dasnarinas, que flamejaram acentímetros do rosto do homem,fazendo com que ele cambaleassede volta até os outros.

— Não estou de brincadeira.Caiam fora, ou vocês vão searrepender! — gritou Fletcher denovo, a voz tremendo. Ele olhouas casas vazias ao redor. Por queninguém tinha ouvido? Alguémprecisava chamar os Pinkertons.

Que desgraça seria chegar tãolonge só para morrer num becoimundo na primeira noite.

— Ah, um conjurador. Tu éum dos aprendizes da AcademiaVocans, né? Já não passou umpouco da sua hora de dormir? —zombou o ladrão, limpando asroupas com as mãos.

— Suma! — exclamouFletcher, percebendo que odemônio só poderia cuspir fogoaté uma determinada distância.

Ele não queria testar esses limitesnaquela noite.

— Muito bem, tu já mostrouo seu, agora me deixa mostrar omeu — retrucou o homem, emseguida sacando uma pistola eapontando para o peito deFletcher. O rapaz quase disparoua flecha ali mesmo, mas perdeu amira quando o assaltanteavançou novamente. — Agora,qual que tu acha que é maisrápido, a pistola ou esse teu arco?

— inquiriu o homem comconfiança genuína. Fletcheravaliou a arma de fogo. Era umacoisa feia, com metal enferrujadoe o cano rachado e gasto.

— Não me parece muitoprecisa — comentou o rapaz,recuando.

— É, tu tem razão. Mas,digamos que ela erre, e tu metaaquela flecha no meu olho?Meus dois amigos aqui vão partirpra cima de tu todos cheios de

faca e te cortar de orelha aorelha. A gente pode morreraqui, ou tu pode facilitar oserviço e dar pra gente o que agente quer. Não tem nada quefeitiço ou demônio possam fazercontra uma bala, conjurador —afirmou o homem, com vozconstante e confiante. Algumacoisa dizia a Fletcher que aquelesujeito já tinha feito aquele jogoantes.

— Prefiro correr meus riscos

— retrucou Fletcher, disparandoa flecha. A pistola cuspiu fumaçacom um estrondo, e o rapazouviu o baque de um impactopróximo ao peito. Um clarão deluz atravessar sua visão, porémFletcher não sentiu dor alguma;talvez esta parte viesse depois. Osguinchos do demônio lhe soaramnos ouvidos enquanto eledesabava ao chão, sorrindocruelmente ao ver o assaltantecair com uma flecha no crânio.

Os dois homens atrás do bandidoficaram paralisados; não tinhamesperado que Fletcher cumprissea ameaça.

— Errado, na verdade —afirmou uma voz elegante dassombras no fundo do beco. —Há muito que a feitiçaria podefazer. Como erguer um escudo,por exemplo.

O oficial de rosto marcadoque Fletcher vira na tavernaemergiu, caminhando por entre

os dois homens que aindarestavam. Um rosnado soou dastrevas detrás dele, tão alto queFletcher quase o sentiureverberando no peito.

— Eu correria, se fosse vocês— aconselhou o oficial. Semolhar de novo, os homens seviraram e saíram correndo pelaesquina. Pelo que Fletcherescutou, eles não foram muitolonge. Um segundo rosnado altoecoou fora de seu campo de

visão, seguido de gritos que logose tornaram um horrível somgorgolejante.

Fletcher cobriu o rosto com asmãos e respirou fundo, quasesoluçando, repetidas vezes.Aquela tinha sido por pouco.

— Aqui — disse o oficial,estendendo a mão. — Você nãoestá ferido; meu escudo cuidoudisso.

Fletcher aceitou a ajuda e foiposto de pé pela mão

surpreendentemente macia dohomem. Apalpou o peito, semencontrar ferimentos. Em vezdisso, uma rachadura luminosaparecia pairar no ar diante dele,como gelo partido num lagoopaco. Estava embebida numoval grande e translúcido, queflutuava à sua frente. Mal eraperceptível a olho nu. Mesmoquando o rapaz estendeu a mãopara tocá-lo, o escudodesapareceu. Fletcher notou que

a bala tinha caído no chão, aforma redonda achatada peloimpacto.

— Siga-me — chamou ooficial, seguindo sem olhar paratrás. Fletcher fez uma pausa porum momento, então deu deombros. O homem tinha lhesalvado a vida; o rapaz não iriaquestionar suas intenções.

O diabrete escalou as costasde Fletcher e se enfiou no capuzenquanto o menino seguia o

oficial, exausto com a adrenalinado combate. Fletcher ficou feliz,pois o oficial vinha fitando odemônio intensamente.

— Sacarissa! — gritou ooficial. Uma sombra se separoudas trevas e esfregou o focinhona mão do mestre. Este soltouum “tsc” de nojo quando o narizda criatura ensanguentou seusdedos. Em seguida, puxou umlenço do bolso e limpou a mãometiculosamente. Fletcher

arriscou uma olhadela nodemônio e viu uma criatura deaspecto canino com quatro olhos;um par normal e outro menor,uns três centímetros mais atrás.Entretanto, as patas eram maisfelinas que caninas, com garrasde mais de dois centímetros decomprimento, cobertas desangue. O pelo era negro comouma noite sem estrelas, com umajuba espessa que corria ao longoda espinha até uma cauda

felpuda que lembrou a Fletcheruma raposa. Era tão grandequanto um cavalo pequeno; seudorso batia na altura do peito dorapaz. Ele tinha imaginado queos outros demônios fossem domesmo tamanho que o dele,porém este era grande o bastantepara servir de montaria. Osflancos da enorme criaturaondulavam com músculosconforme ela espreitava ao seulado, fazendo Fletcher quase ter

pena dos homens que tinhammorrido em suas garras.

Ele e o oficial caminharam emsilêncio. Fletcher considerou ohomem alto ao seu lado. Era umsujeito de rosto severo, porémbonito, provavelmente nos seus30 anos. A cicatriz de guerra quelhe adornava a face preenchia aimaginação de Fletcher comimagens de batalhas acirradas,com flechas sobrevoando oscombatentes.

As ruas já estavamcomeçando a se esvaziar, e,mesmo que a criatura atraíssealguns olhares furtivos, eles logose viram sozinhos ao sair da viaprincipal e virar numa rua vazia.

— Que tipo de demônio éesse? — perguntou Fletcher, paraquebrar o silêncio.

— Um Canídeo. Se vocêprestasse atenção nas aulas,saberia disso. É provavelmente oprimeiro demônio que eles

apresentam, Deus sabe que é omais comum. Então... você é umgazeteiro e um aluno relapso! Euexpulsaria você sumariamente senão precisássemos de todos osadeptos que pudermosencontrar, não importando quãoineptos forem.

— Eu não sou da escola. Sócheguei na cidade esta manhã!— retrucou Fletcher, indignado.O oficial parou completamente ese virou para encará-lo. O olho

turvo e implacável do homem sefixou no rapaz por um momento,antes que continuasse:

— Nossos Inquisidoresdisseram que todos os plebeusidentificados como adeptos nostestes chegaram à escola semanapassada — afirmou o oficial. —Se você não é um deles, entãoquem é? Um nobre? E quem lhedeu esse demônio?

— Ninguém me deu odemônio. Eu o conjurei sozinho

— explicou Fletcher, confuso.— Ah, então você é um

mentiroso — disse o oficial, comose tivesse finalmente entendido,e continuou andando.

— Não sou, não! — grunhiuFletcher, segurando o homempela cauda da casaca.

Num instante o oficial tinha orapaz contra a parede,segurando-o pelo cangote. Odiabrete sibilou, mas um únicorosnado de advertência de

Sacarissa o calou.— Nunca mais ouse me tocar

de novo, seu moleque arrogante.Acabei de salvar sua vida e vocêentão decide me contar umamentira absurda. Todo mundosabe que os conjuradoresprecisam receber um demônio depresente de alguém para podercapturar o próprio. Ora, logovocê vai me dizer que entrou noéter pessoalmente e colheu umdemônio como uma fruta no pé.

Agora me diga, qual conjuradorlhe deu o demônio?

Fletcher chutou o ar,sufocando com a traqueiaesmagada. Um nome flutuouespontaneamente em sua cabeça.

— James Baker — conseguiudizer, arfando e batendo nasmãos do oficial. O homem osoltou e alisou amassosimaginários no próprio uniforme.

— Perdoe-me, deixei que araiva me dominasse —

desculpou-se, com umaexpressão cheia dearrependimento ao ver as marcasque os dedos deixaram nopescoço de Fletcher. — A guerracobra um preço caro demais denossas mentes. Deixe-me fazeralgo para compensar meus atos.Vou lhe reservar um quarto naminha taverna e mandá-lo àAcademia Vocans amanhã numadas carroças de suprimentos.Meu nome é Arcturo, e o seu?

— Ele estendeu a mão.Fletcher aceitou o

cumprimento, a violênciaesquecida instantaneamente coma menção à academia. Suareputação era lendária; o campode treinamento dos magos debatalha desde a fundação deHominum. O que acontecia ládentro era um segredo muitobem guardado, até mesmo dossoldados que lutavam ao ladodos magos. O convite de Arcturo

ia muito além de qualquer coisaque Fletcher tivesse sonhadopara si e seu demônio.

— Fletcher. Não se preocupe;eu teria algo bem pior que umpescoço roxo se não fosse porvocê. A forma como recebi meudemônio é um tanto complexa, efoi por isso que fiquei confusocom sua pergunta. Explicareitudo esta noite, se você medeixar — respondeu Fletcher,estremecendo ao esfregar a

garganta.— Sim, você pode me contar

durante um jantar e um drinque.Por minha conta, é claro. Se merecordo bem, James Baker nãofoi um conjurador muitopoderoso, então capturar umraro demônio Salamandra comoo seu certamente estaria além daspossibilidades dele. Eu desconfioque ele teria ficado com acriatura para si mesmo, se tivesseconseguido uma — raciocinou

Arcturo, seguindo rua abaixo.— É isso que ele é? —

perguntou, olhando o própriodemônio. O rapaz sorriu ao verArcturo entrar numa estalagemde aparência cara, sentindo ocheiro revelador de comidasendo preparada. Naquela noiteele iria se empanturrar decomida e afogar os problemasnum banho quente. Então, nodia seguinte, partiria à academia!

16

Fletcher não descobriu muitasoutras coisas com Arcturonaquela noite. O oficial fora fiel àpalavra, comprando-lhe um filé euma torta de rim e escutando ahistória do menino, que deixoude fora a parte de Didric, é claro.

Assim que Fletcher terminou defalar, Arcturo pediu licença edesapareceu nos própriosaposentos. O rapaz não seimportou; tomou um banhofumegante, de barriga cheia, edormiu em lençóis de seda. Até odiabrete se fartou com carnemoída fresca, devorando-a emsegundos para logo depoisempurrar o pote com o focinho,pedindo mais. Se Arcturo tinhacomo pagar por tanto luxo, então

certamente a vida de conjuradornão poderia ser assim tão ruim.

Pela manhã, Fletcher foiacordado por um sujeitoimpaciente, que afirmava ter sidoinstruído a levar o menino àacademia. Quando Fletcherchegou à rua, o homemgesticulou para que se apressassea subir ao banco do carona, ouele se atrasaria para a entregamatinal de frutas e legumes.

A jornada levou mais de duas

horas, mas o carroceiro evitou astentativas de Fletcher de começaruma conversa fiada, seu rostocontraído de preocupação com otrânsito na estrada. Em vez debater papo, então, Fletcherpassou o tempo permitindo que odiabrete ficasse encarapitadoorgulhosamente em seu ombro,sorrindo aos olhares curiosos quelhe lançavam ao passar. Apóspresenciar Arcturo permitindoque Sacarissa andasse

abertamente pelas ruas, o rapazdeixou de ver motivo para nãofazer o mesmo.

Tentou visualizar como seriaVocans, mas sabia tão poucosobre a academia que a menteimaginava lugares tão variadosquanto um palácio suntuoso ouum campo de treinamento pararecrutas novatos, desprovido deconfortos. De um jeito ou deoutro, sua empolgação cresciacom cada giro das rodas da

carroça.Finalmente, chegaram à

fronteira com a selva do sul, oestrondo de canhões ecoando adistância. Onde antes a estradade terra em que eles viajavam eracercada de campos verdes, ali apaisagem era recoberta de ervasdaninhas e marcada com craterasprofundas; indícios de que aguerra já passara pelo lugar.

— Lá está a Cidadela —anunciou o carroceiro,

quebrando o silêncio. Apontou asombra turva do que parecia seruma montanha adiante,obscurecida por uma neblinaespessa que pairava no ar. Acarroça entrou numa fila atrás deoutras, que iam entregar barrispesados de pólvora e caixotescheios de balas de chumbo.

— O que é a Cidadela? Éonde mora o rei? — perguntouFletcher.

— Não, garoto. É onde fica a

Academia Vocans. O rei vivecom o pai num palácio luxuosono centro de Corcillum —respondeu o condutor, lançandoum olhar curioso para o rapaz.Mas Fletcher não estavaouvindo. Em vez disso,contemplava boquiabertoconforme a névoa era dissipadapor uma forte rajada de vento.

O castelo era grande comoum dos picos do Dente de Urso.O prédio principal era um cubo

gigante, feito de blocos degranito marmorizado, comvarandas e sacadas em camadasnas laterais, como decoraçõesnum bolo de casamento. Haviaquatro torres redondas em cadaquina, cada uma com um topoplano e ameado, estendendo-sedezenas de metros no céu acimada estrutura principal. Um fossoprofundo de água negra e turvacercava o castelo, com seis metrosde largura e margens íngremes

de cada lado. A ponte levadiçatinha sido baixada, mas todos oscarroções passavam direto porela, seguindo em direção àcanhonada que ainda retumbavaao longe.

Conforme eles seaproximaram da Cidadela,Fletcher percebeu que asmuralhas estavamcompletamente recobertas dehera e tingidas com líquen emusgo. Deviam ter sido

construídas séculos atrás. Astábuas da ponte levadiça rangiamperigosamente enquanto ocarroceiro incentivava os cavalosassustados a seguir em frente,mas todos chegaram inteiros aooutro lado.

O pátio ficava à sombra dasquatro muralhas que o cercavam,com apenas um pequenoquadrado de céu oferecendo luz,vários andares acima. A área eradominada por um semicírculo de

degraus que levavam a um parde pesadas portas de madeira: aentrada do castelo.

Assim que os cascos doscavalos estalaram nosparalelepípedos, um sujeitogordo de avental, com um rostovermelho e inchado, emergiu dassombras. Era seguido por doisassistentes de aparência nervosaque começaram a descarregar acarroça apressadamente.

— Atrasado, como sempre.

Vou ter uma conversinha com ointendente sobre arranjar umnovo fornecedor, se isto voltar aacontecer. Agora só teremosmeia hora para preparar e serviro café da manhã — afirmou ohomem gordo, puxando oscordões do avental com dedosrechonchudos.

— Não foi culpa minha, Sr.Mayweather. Um oficial meobrigou a trazer este aprendiz, oque me tirou meia hora do meu

caminho. Aqui, menino, contepara ele — balbuciou ocarroceiro, cutucando Fletchernas costas. O rapaz fez que simcom a cabeça, atordoado,percebendo finalmente ondetinha chegado.

— Muito bem, então. Voudeixar passar desta vez, mas vocêestá na minha lista — retrucouMayweather enquanto lançavaum olhar de avaliação a Fletchere outro ainda mais longo ao

demônio.O rapaz desmontou enquanto

as últimas frutas e legumes eramretirados da carroça, e ficou aliparado sem saber direito o quefazer. O carroceiro partiu semolhar para trás, ansioso em seguircom a rota e pegar a próximacarga.

— Você sabe aonde vai,rapaz? — indagou Mayweatherasperamente, mas não semalguma gentileza. — Você não é

um nobre, isso é óbvio. Osplebeus já estão aqui há umasemana, e, a esta altura, eu jáconheço todos os alunos dosegundo ano. Você deve sernovo. Recusou a oferta de virpara cá e então mudou de ideia?

— Arcturo me mandou... —respondeu Fletcher, sem saberbem o que dizer.

— Ahh, entendi. Você deveser um caso especial, então. Játemos mais dois desses lá em

cima — afirmou Mayweather,com voz baixa e misteriosa. — Sebem que eles são um pouquinhomais estranhos que você, isso eugaranto.

Depois, continuou:— Não recebemos muitos

aprendizes trazidos pessoalmentepor magos de batalha. —Aproximou-se para espiar odiabrete de Fletcher. —Geralmente são os Inquisidoresque encontram os dotados e os

trazem para cá. Magos de batalhararamente alistam adeptospessoalmente, porque issosignifica que eles terão de dar umdos próprios demônios aonovato. Eles precisam de cadademônio que puderem encontrarna frente de batalha. Pareceestranho que Arcturo lheconceda um raro como esse,porém. Nunca vi um desse tipo!

— Tem alguém a quem euprecise me apresentar? —

perguntou Fletcher, ansioso parase afastar antes que Mayweathero esquadrinhasse ainda mais.Quanto mais gente soubessecomo Fletcher se tornara umconjurador, maior a chance danotícia de seu paradeiro alcançarPelego.

— Você está com sorte. Oprimeiro dia vai ser amanhã,então não perdeu muita coisa —explicou Mayweather. — Oscandidatos nobres ainda vão

chegar; eles costumam passar asemana prévia em Corcillum,onde lhes é mais confortável.Quanto aos professores, voltarãodas linhas de frente pela manhã,então é melhor que você vá falarcom o reitor. É o único mago debatalha que não passa metade doano na guerra. Siga direto emfrente pelas portas principais eum dos funcionários vai lheexplicar onde encontrá-lo.

Agora, se você me dá licença,

eu tenho um café da manhã apreparar. — Mayweather deumeia-volta e se afastou,bamboleante.

Apesar de ter o demônioaninhado ao redor de suagarganta, Fletcher não se sentiaparte daquele lugar. As pedrasantigas transmitiam opulência ehistória. Não era para o bicodele.

Fletcher subiu as largasescadas e empurrou as portas

duplas. Melhor encontrar o reitorantes que o café da manhã fosseservido; ele poderia se apresentaraos outros alunos durante arefeição matinal. Não pretendiaser um lobo solitário de novo.

Entrou num enorme átriocom escadarias gêmeasespiraladas à esquerda e à direita,com paradas em cada andar.Fletcher contou cinco andares nototal, cada um protegido por umcorrimão de metal. O teto era

suportado por pesadas vigas decarvalho; escoras imensas queseguravam as pedras acima nolugar. Um domo de vidro no tetopermitia que um pilar de luzdescesse ao centro do aposento,suplementado pelas tochascrepitantes nas paredes. Noextremo oposto do salão haviaoutro par de portas de madeira,mas foi o arco acima delas quechamou a atenção de Fletcher. Apedra estava entalhada com

centenas de demônios, cada ummais impressionante que o outro.A atenção ao detalhe eraextraordinária, e os olhos de cadacriatura eram feitos de gemascoloridas que faiscavam à luz.

Era um espaço imenso, quaseextravagante em sua arquitetura.O piso de mármore estava sendopolido por um jovem criado; elelançou um olhar cansado aFletcher, que andava com botassujas sobre o chão molhado.

— Será que você poderia meindicar o caminho até o reitor? —pediu Fletcher, tentando nãoolhar para trás, para as pegadasque deixara.

— Você vai se perder se eunão lhe mostrar o caminho —respondeu o criado, com umsuspiro. — Venha. Tenho muitotrabalho a fazer antes que osnobres cheguem, então nãoenrole.

— Obrigado. Meu nome é

Fletcher, e o seu? — indagou,estendendo a mão. O criado oencarou, surpreso, e aceitou ocumprimento com um sorrisocontente.

— Sendo muito sincero,nenhum estudante nunca tinhame perguntado isso — comentouo criado. — Jeffrey é o meunome, obrigado por perguntar.Se você vier rápido, eu lhemostro seus aposentos e depoisrecolho qualquer roupa que

queira que seja lavada. Com seuperdão, mas pelo cheiro dos seustrajes, acho que precisa. —Fletcher corou, mas agradeceudo mesmo jeito. Ainda quetivesse tomado banho na noitepassada, tinha se esquecido deque as roupas ainda cheiravam aovelha.

Jeffrey o levou até o primeiroandar no lado leste e por umcorredor em frente à escadaria.As paredes eram decoradas com

armaduras completas e cavaletesde piques e espadas, resquíciosda última guerra. A cada tantospassos eles passavam por umapintura ilustrando algumabatalha antiga, da qual Fletcherera obrigado a desgrudar osolhos toda vez, pois Jeffrey oapressava.

Passaram por uma vastacoleção de grandes estantes devidro abarrotadas de jarros comum líquido verde pálido. Cada

um deles continha um pequenodemônio, suspensos eternamenteem seu interior.

Finalmente, Jeffrey reduziu opasso. O criado apontou parauma enorme clava pendurada naparede. Era cravejada de rochasafiadas, cada uma delas dotamanho e formato de umaponta de flecha.

— Essa era a maça de guerrado orc chefe da tribo Amanye,tomada como troféu na batalha

da Ponte Watford. Foi o reitorquem o derrotou — anunciouJeffrey, com orgulho. — Umgrande homem, nosso reitor.Severo como um juiz, porém.Tome cuidado com ele: olhe nosolhos e não dê respostasmalcriadas. Ele odeia os fracos eos insolentes em igual medida.

Com essas palavras, Jeffreyparou diante de uma pesadaporta de madeira e bateu com opunho.

— Entre! — gritou uma vozretumbante do outro lado.

17

O gabinete era quente e abafadoem comparação aos corredores.Uma labareda crepitava no cantodo aposento escuro, cuspindofagulhas que eram sugadas pelotubo da chaminé.

— Feche a maldita porta! Está

congelando lá fora! — ribomboua voz novamente. Fletcher saltoupara obedecer enquanto percebiauma figura sentada a umagrande escrivaninha de madeirano centro da sala. — Vamos daruma olhada em você; vamos,aproxime-se. E tire esse capuz;não sabe que é rude cobrir acabeça dentro de lugaresfechados?

Fletcher se aproximou compressa e puxou o capuz,

revelando o demônio que alitinha se refugiado assim quechegaram à Cidadela.

A figura pigarreou e riscouum fósforo, acendendo umlampião na quina daescrivaninha. O brilho revelouum homem que mais pareciauma morsa, com um enormebigode branco e suíças cheias,que dominavam-lhe o rosto.

— Ora vejam, esse é umdemônio bem raro que você tem

aí! Só vi um desses, e não foi donosso lado. — O homem catouuns óculos na escrivaninha eespiou o diabrete. Assustada como olhar, a criatura se afastou,fazendo o reitor dar uma risada.— São coisinhas frágeis, maspoderosas. Quem lhe deu este?Eu deveria ser informado todavez que alguém conseguisseconjurar um demônio fora dasespécies de costume —estrondou o reitor.

— Arcturo me mandou —disse Fletcher, na esperança deque a resposta fosse suficiente.

— Você o impressionou, foi?Faz um bom tempo desde aúltima vez que um aprendiz foienviado por um mago debatalha; dois anos, se não meengano. Você é sortudo, sabe. Amaioria dos plebeus recebedemônios mais fracos paracomeçar. Um Caruncho,geralmente. Eles são mais fáceis

de capturar, e, quandoprecisamos de um novo, ummago de batalha é escolhidoaleatoriamente para provê-lo. Atarefa não os deixa num humormuito generoso, infelizmente.Não é o melhor sistema, mas é oúnico que temos. De qualquermaneira, eu vou ter umaconversinha com Arcturo sobreisso.

Fletcher fez que sim com acabeça, sem palavras, o que lhe

rendeu um olhar severo porparte do reitor.

— Aqui não tem essa coisa deassentir. Você diz “Sim, senhor,reitor Cipião!” — exclamou ohomem.

— Sim, senhor, reitor Cipião!— repetiu Fletcher,endireitando-se.

— Ótimo. Agora, o que vocêquer? — indagou Cipião, sereclinando na poltrona.

— Quero me alistar, senhor;

aprender a ser um mago debatalha — respondeu Fletcher.

— Bem, você já está aqui, nãoestá? Enfim, encerramos aconversa por aqui. A matrícula éamanhã, você pode oficializartudo então — concluiu Cipião,dispensando-o com um aceno.Fletcher saiu, pasmo. Tomou ocuidado de fechar a porta depoisde passar, desta vez. Tinha sidotudo tão fácil. De alguma forma,tudo estava se encaixando

perfeitamente; a sorte estivera aolado dele, para variar.

Jeffrey lhe aguardava dooutro lado, uma expressãoansiosa no rosto.

— Tudo bem? — perguntouele, levando Fletcher de volta àescadaria.

— Mais que bem. Ele medeixou ficar — respondeuFletcher com um sorriso.

— Não me surpreende.Precisamos de todos os

conjuradores que pudermosencontrar, e por isso começamosa fazer todas as mudanças.Garotas, plebeus, e até... bem...você verá. Não cabe a mimcomentar — murmurou Jeffrey.Fletcher decidiu não insistir,preferindo se concentrar em nãopisar em falso na escada escura.

— Não tem muitas lareirasacesas ou tochas por aqui —observou Fletcher enquanto elesescalavam os íngremes degraus.

— Não, e o orçamento já estáno limite mesmo sem elas.Quando os nobres chegarem, aíaqueceremos o prédio. Tudo temque estar perfeito para eles oureclamam com os pais. Metadedeles não passa de janotinhasmimados, mas não me entendamal, alguns são camaradas bemdecentes. — Jeffrey estavaofegante, e fez uma pausaquando chegaram ao quinto eúltimo andar. Fletcher notou que

o garoto era ainda mais magroque ele mesmo, com cabeloscastanho-escuros quecontrastavam fortemente com apele pálida, quase chegando aparecer doentia.

— Está tudo certo com você?Não me parece muito bem —perguntou Fletcher. O outrorapaz tossiu e depois respirou deforma profunda e ruidosa.

— Eu tenho uma asmaterrível, por isso eles não me

deixam me alistar. Mas queroajudar meu país, então trabalhoaqui. Vou ficar bem, só precisode um segundo — explicouJeffrey, ofegando.

Fletcher sentia um respeitocrescente pelo rapaz. Ele nuncase sentira particularmentepatriótico, sendo Pelego tãodistante de qualquer cidadeprincipal, mas admirava essacaracterística nos outros.

— Não vi o demônio de

Cipião. Que tipo ele tem? —perguntou Fletcher, reiniciandoo papo quando Jeffrey voltou arespirar normalmente.

— Ele não tem mais. Já teveum Felídeo, mas o demôniomorreu antes que o reitor seaposentasse. Dizem que a perdao deixou com o coração partido.Agora ele só dá aula e administraa Cidadela — contou Jeffrey.

Fletcher se perguntou comoseria um Felídeo. Algum tipo de

gato, talvez?Eles caminharam por

corredores sombrios até a quinado castelo, onde outra escadariaespiralava para o alto. Jeffrey aespiou com apreensão.

— Não se preocupe, eu meviro daqui em diante. É só vocême dizer para onde ir — sugeriuFletcher.

— Graças a Deus. Você nãotem como errar; os alojamentosdos plebeus ficam bem no topo

da torre sudeste. Vou mandaralguém buscar as roupas sujasmais tarde; por enquanto, temum uniforme de reserva em cadaquarto. Experimente um ou doise veja qual serve. Você não querficar conhecido como “ofedorento” no seu primeiro dia— aconselhou Jeffrey, já seafastando apressadamente.

Fletcher resistiu à tentação degritar a pergunta que tinhasurgido espontaneamente em sua

cabeça: Por que os plebeustinham alojamentos separados?O menino deu de ombros ecomeçou a longa jornada escadacima, sabendo que, pelo quetinha visto do lado de fora, seriauma bela distância.

Em intervalos regulares aescadaria se abria em câmaraslargas e redondas, cada umacheia de escrivaninhas, cadeiras ebancos velhos, dentre outrasquinquilharias. O vento entrava

assoviando pelas seteiras nasparedes, gelando Fletcher até oosso e fazendo-lhe puxar o capuzde volta para a cabeça. Eleesperava que estivesse maisquente no topo.

Ao subir o que lhe parecia sero milésimo degrau, o rapaz ouviuuma voz de menino acima.

— Esperem aí, é um doscriados. Acho que vão noschamar para o café da manhã! —A voz do menino o lembrava

Pelego; um sotaque parecido queindicava que ele crescera nocampo.

— Estou morta de fome!Espero que não nos obriguem acomer em silêncio que nem daúltima vez! — exclamou uma vozde menina.

— Nem, foi só porque o velhorabugento do Cipião estava láque eles queriam que ficássemosquietos, mas ele reclamou tantodo frio que eu duvido que faça o

desjejum na cantina de novo —respondeu o menino.

Fletcher contornou a curva daescada e chegou num grandeaposento, quase esbarrando emum garoto com cabelos loiro-claros e a pele corada dosnortistas.

— Opa, desculpe, colega.Acho que falei cedo demais.Aqui, me deixa ajudar com asmalas — disse o menino,pegando a bolsa de Fletcher.

Este tirou a alça e deixou queo outro levasse a bagagem a umamesa longa no meio do salão.

— Rory Cooper, ao seu dispor— disse o menino, apertando amão de Fletcher. — Bem-vindo ànossa humilde morada.

Era uma câmara redonda comteto alto e duas grandes portasdos dois lados da parede oposta.Pinturas de magos de batalha eseus demônios decoravam asparedes, com expressões severas

e desaprovadoras. Fletcher fezuma careta quando o ventoencanado das seteiras soproupelo salão.

Uma garota linda, comluminosos olhos verdes, sorriupara Fletcher em meio a ummonte de sardas e cabelos ruivosselvagens. Um demônio azul,parecido com um besouro, bateuas asas na mesa diante dela.Outro desses, com uma carapaçaverde iridescente, pairava ao lado

da cabeça de Rory, preenchendoo salão com um zumbido suave.

Os demônios eram maioresque qualquer inseto que Fletcherjá vira, tão grandes que malcaberiam na mão. Tinham pinçasde aparência feroz, com umacarapaça blindada que brilhavacomo metal escovado. Odemônio de Fletcher se mexeudentro do capuz à presençadeles, mas não se interessou osuficiente para sair do

esconderijo.— Meu nome é Genevieve

Leatherby. E o seu? — perguntoua menina, lançando um sorrisode boas-vindas.

— Fletcher. É um prazerconhecê-los. São só vocês dois?Eu achei que haveria mais denós... plebeus — indagouFletcher, hesitando ao usar apalavra.

— Tem mais de nós no andarde baixo, esperando no salão de

café da manhã, e os alunos dosegundo ano comem depois denós, então ainda estão dormindo.Decidimos esperar até que oscriados viessem nos chamar,porque o horário do café não foimuito consistente até agora —explicou Genevieve, pensativa. —Achei que haveria maisestudantes também, quandocheguei aqui. Mas só há cinco denós no primeiro ano, incluindovocê. Acho que eu não deveria

estar surpresa, pois foi a falta deconjuradores o motivo principalde eles terem deixado mulheresse alistarem no exército há tantosanos...

— Tem sete, se você contar osoutros dois — interveio Rory. —Ouvimos as vozes deles ontem ànoite, mas ainda não saíram dosquartos. Não sabem quantadiversão estão perdendo —comentou ele com um sorrisolargo. — Eles vão se render.

Todo mundo acaba me amando.— Deixa de ser metido, você é

muito besta e irritante, isso sim— provocou Genevieve,empurrando-o de formabrincalhona. Rory deu umapiscadela marota para Fletcher eapontou a porta mais distante. —Por que você não se apresenta?Talvez perguntar se eles queremvir tomar café conosco.

18

Fletcher empurrou a porta e sedeparou com um corredor curto,com uma fileira de portas decada lado. A porta de entradabateu atrás dele, empurrada poruma rajada de vento vindo deuma seteira no fim do corredor.

Fletcher franziu o cenho ao vê-la;aquele seria um inverno longo egélido se aquilo continuasseassim.

O rapaz ouviu movimento noquarto mais próximo e bateu, naesperança de que não estivesseacordando ninguém. A porta seabriu ao seu toque, talvezsoprada pelo vento.

— Olá? — chamou,empurrando-a.

Subitamente se viu caído de

costas no chão, com dentescheios de baba mordendo o arlogo acima de si enquanto umpeso enorme o prendia. Fletcherconseguiu segurar a criatura pelagarganta, mas precisou usar todaa sua força para evitar que aspresas dela se fechassem no seupescoço. Enquanto a saliva dobicho pingava no rosto do rapaz,seu diabrete guinchou e atacou ofocinho do monstro com asgarras, mas o único efeito foi

fazer a criatura ganir de dor comcada rilhar de dentes.

— Chega, Sariel! Eleaprendeu a lição — disse umavoz melodiosa vinda

de cima. Imediatamente, acriatura interrompeu o ataque ese sentou no peito de Fletcher.Ainda indefeso, o rapaz espiouseu algoz, e viu um Canídeoquase tão grande quantoSacarissa: do tamanho de umpônei pequeno. Porém, enquanto

a pelagem do Canídio de Arcturoera negra e crespa, este tinhapelos loiros e encaracoladoscomo as madeixas de uma damade Corcillum. O focinho tambémera mais longo e refinado, comum nariz preto e úmido que ofarejava.

— Tire esse bicho de mim! —conseguiu exclamar Fletcher porentre dentes cerrados. Era comose uma árvore tivesse caído emcima dele e lhe esmagasse o

peito.A criatura desceu de cima do

rapaz e se sentou ofegante atrásda porta, com os quatro olhosmalévolos ainda fixados em seurosto.

— Vou escrever uma carta aoschefes dos clãs sobre isto! Fuicolocada com os plebeus numquarto menor e menosconfortável que uma cela decadeia, que foi obviamenteinvadido por um jovem rufião

logo na primeira manhã. Quandome deram Sariel, comecei apensar que estivessem levandonossas negociações de paz a sério.Agora sei que estava enganada —ralhou a voz, carregada deamargor e raiva.

Fletcher se sentou econtemplou a dona da voz,estonteado pelo sangue que lhevoltava à cabeça. O meninoarregalou os olhos ao notar aslongas orelhas em forma de

diamante que despontavam porentre os cabelos prateados. Umrosto delicado o encarava comgrandes olhos da cor de um céuazul límpido. Estavam carregadosde desconfiança e pareciamquase à beira das lágrimas.Fletcher estava conversando comuma pálida menina elfa, vestidacom uma camisola rendada.

O rapaz desviou o olhar evirou o rosto, falando em defesaprópria:

— Calma lá, eu só queriadizer oi. Não quis assustar você.

— Me assustar? Não estouassustada, estou furiosa!Ninguém lhe avisou que este erao alojamento das meninas? Vocênão tem permissão de entrar aqui— gritou a elfa como umabanshee, batendo a porta na carade Fletcher. Ele xingou a própriaestupidez.

— Seu idiota — murmurou asi mesmo.

— Parece que não foi muitobem — comentou Rory atrásdele, uma expressão desolidariedade no rosto ao espiarpela porta que levava ao salãocomum. Fletcher se sentia umidiota.

— Por que você não meavisou que aqueles eram osalojamentos das meninas? —estourou Fletcher, ficandovermelho ao voltar ao salãoprincipal.

— Eu não sabia, juro! Achoque faz sentido, né, agora quepenso melhor, com Genevieveneste lado e um quarto sobrandodo outro... — disse Rory atrásdele.

— Tudo bem. Só não esqueçade ficar mais esperto antes dasaulas começarem, ou vai fazer agente passar vergonha diante dosnobres — afirmou o rapaz,arrependendo-se de suaspalavras imediatamente. A

expressão animada de Rorydesapareceu, e Fletcher respiroufundo. — Foi mal, não foi culpasua. Não é todo dia quesobrevivo a um ataque de

Canídeo. — Forçou umsorriso e deu tapinhas amistososnas costas de Rory. — Vocêestava dizendo alguma coisasobre um quarto sobrando?

— Sim! Já que você foi oúltimo a chegar, os melhoresquartos já foram ocupados. Dei

uma olhada quando cheguei, enão é grande coisa.

Eles entraram num corredorquase idêntico, exceto por umaporta adicional que tinha sidoconstruída bem ao final. Pareciauma decisão tardia, mais umarmário de limpeza reformadodo que um quarto de verdade.

Mas o lado de dentro era maisespaçoso do que Fletcher tinhaesperado, com uma cama deaparência confortável, um

guarda-roupa grande e umaescrivaninha pequena. O meninofez uma careta à seteira aberta naparede; teria de tampá-la depois.Havia um uniforme dobrado nopé da cama, um jaquetão azul-marinho com duas fileiras debotões e calças da mesma cor.Fletcher ergueu o traje e gemeu.Estava puído e rasgado, com osbotões de latão tão frouxos queum deles estava penduradoquase três centímetros abaixo do

lugar certo.— Não se preocupe, posso dar

uma olhada nessa jaqueta paravocê depois do café. Minha mãeera costureira — disse Genevieve,da porta.

— Obrigado — respondeuFletcher, mesmo sem saber seseria possível de fato salvar ouniforme.

— Então, como era a menina?— inquiriu Genevieve, com olhosfaiscantes de curiosidade. — Era

uma sulista, que nem eu?— Ela era... não sei dizer

exatamente — despistouFletcher, evitando a pergunta.Agora que já tinha arruinado amanhã da garota, não queriacomeçar a fofocar sobre elatambém. Melhor deixar que seapresentasse aos outros à suaprópria maneira. A mente dorapaz ainda estava processando apresença de uma elfa naCidadela. Eles não eram os

inimigos?Os pensamentos foram

interrompidos pelo surgimentodo diabrete, que pulou do capuzpara inspecionar a nova morada.O demoniozinho derrubou ouniforme no chão com umachicoteada do rabo, em seguidacantarolou feliz ao rolar de costase se esfregar no tecido áspero.Rory arregalou os olhos eFletcher sorriu consigo mesmo.

— O que é um Canídeo? —

ponderou Rory em voz altaenquanto os dois voltavam àcâmara principal. Logo foramseguidos pelo diabrete, queescalou até o ombro de Fletchere vasculhou o ambiente com umolhar protetor.

— Você logo vai descobrir.Não são fáceis de descobrir. Se osseus Carunchos são demônios-besouros, então eu diria que umCanídeo é um demônio-cachorro, se é que isso faz

sentido — explicou Fletcherorgulhoso, feliz em finalmentesaber mais sobre conjuração doque outra pessoa.

— Nossos demônios sãochamados de Carunchos? —indagou Genevieve, estendendoa palma e deixando o besouroazul pousar em sua mão.

— Não tenho certeza; ouvi oreitor usar essa palavra —respondeu Fletcher, sentando-seà mesa.

— Ah, bem, eu chamo o meude Malaqui. Como emmalaquita. Sabe, por causa da cor— decidiu Rory, deixando obesouro verde lhe subir pelobraço.

— A minha se chama Azura— declarou Genevieve, erguendoo demônio contra uma dastochas para que Fletcher pudessever o azul cerúleo da carapaça. Orapaz fez uma pausa, sentindo-seconstrangido enquanto os dois o

encaravam com expectativa.— Como o seu se chama? —

perguntou Rory, como seFletcher fosse lerdo.

— Eu... Eu não tive bem umachance de escolher um nome,ainda — murmurou em resposta,envergonhado. — Mas sei queele é um demônio Salamandra.Talvez vocês possam me ajudar aescolher um nome durante o caféda manhã.

— É claro! Ele tem uma cor

linda; sei que a gente conseguepensar em alguma coisa! —exclamou Rory.

— Será que a gente poderiaevitar as cores? — sugeriuFletcher, na esperança deescolher um nome mais original.— Ele é um demônio de fogo.Talvez possamos usar isso.

Antes que Rory pudesseresponder, uma governanta deaparência severa entrou noaposento com um cesto pesado

de lençóis e roupas de cama.— Fora daqui, todo mundo!

Preciso arrumar o alojamento.Vocês podem esperar lá embaixocom os outros em vez de semeterem em encrencas aqui emcima — ralhou ela, enxotando-ospara as escadas.

— Será que a gente deveriaavisar os outros dois? —perguntou Genevieve, olhandode volta para cima enquanto elesdesciam.

— Não — retrucou Fletcher,na esperança de evitar a elfa porpelo menos mais alguns minutos.— A governanta vai avisá-losquando chegar aos quartos deles.

Os outros deram de ombros eo guiaram pelo longo caminhocorredor abaixo, sugerindonomes. O diabrete de Fletchervoltou a dormir com um bocejo,alheio ao debate. O rapaz estavacomeçando a se perguntar seestaria permitindo que o

demônio ficasse preguiçosoenquanto observava Malaqui eAzura esvoaçando ao redor dascabeças dos donos.

Eles finalmente chegaram aotérreo, e Fletcher foi guiado peloátrio, balbuciando um pedido dedesculpas silencioso para Jeffrey,que ainda estava polindo o chãoem que o trio pisava. O meninorevirou os olhos com um sorrisotriste e voltou ao trabalho.

Eles atravessaram o par de

grandes portas que ficava do ladooposto da entrada principal noátrio. O teto tornou-sesubstancialmente mais baixo,porém ainda assim era umespaço enorme em que os passosdo trio ecoavam. Grandescandelabros apagados pendiamem intervalos regulares sobre trêsfileiras de longas mesas e bancosde pedra. O centro do aposentoera dominado pela estátua de umhomem barbudo vestindo

armadura elaborada, esculpidacom uma atenção espantosa aosdetalhes.

Fletcher ficou surpreso ao verapenas dois meninos sentadosali, engolindo com prazercolheradas de mingau de aveia.Um tinha cabelos negros e pelemorena; provavelmente vinha deuma das vilas nos limites dodeserto de Akhad, no leste deHominum. Era bonito, comqueixo bem definido e olhos

cheios de vida emoldurados porlongos cílios.

O outro rapaz era gorducho,com cabelos castanhos bemcurtos e um rosto amistoso ecorado. Os dois acenaram paraele enquanto um criado lheentregava uma bandeja demingau, geleia e pão quente.Assim que Fletcher se sentou, osdois se apresentaram; o meninogordinho se chamava Atlas e ooutro, Serafim.

— São só vocês dois? Cadê osalunos do segundo ano? —indagou Fletcher, confuso.

— Nós comemos antes deles,graças aos céus! — resmungouAtlas, abandonando a colherpara sorver o mingau pelabeirada da tigela.

— Eles precisam do sonoadicional, considerando odesgaste das lições mais...práticas — explicou Serafim,observando Atlas com uma

expressão perplexa. — Eles fazematé excursões semanais àfronteira. Mal posso esperar paraestar no lugar deles.

— Espere só até você ter vistocomo são as coisas por lá —murmurou Genevieve, com umtom de tristeza na voz. Fletcherpercebeu e decidiu mudar deassunto. Ele conhecia o suficientesobre as linhas de frente para sercapaz de deduzir que a meninaprovavelmente havia perdido

alguém próximo. Talvez fosseuma órfã, como ele.

— Cadê os seus demônios?Vocês receberam Carunchoscomo os outros?

— Fletcher estavadesesperado para ver maisdemônios.

— Não, nada ainda —respondeu Atlas, com um toquede inveja. — Ainda estamosesperando. Disseram que osprofessores vão nos dar os nossos

amanhã. Eles só tinham dois nodia que todos nós chegamos.

— Foi melhor assim —comentou Serafim, meio para simesmo. — Eles me perguntaramse eu queria ficar com um dosCarunchos ou esperar. Fiz o meudever de casa, falei com algunsdos criados. Os Carunchos são osmais fracos. É melhor esperarpela chance de conseguir umacriatura melhor.

Fletcher ficou intrigado com a

menção a demônios melhores.Tentou se lembrar do que tinhavisto de relance nas pinturas eesculturas pelo castelo. Se aomenos Jeffrey não estivesse comtanta pressa naquela hora... Dequalquer maneira, ele teriatempo o bastante para esse tipode coisa mais tarde.

— Pois eu não teria feito nadadiferente — retrucou Rory, nadefensiva.

— Não trocaria Malaqui por

nada.Serafim ergueu as mãos, como

se estivesse se rendendo.— Não quis ofender. Tenho

certeza de que vou ter os mesmossentimentos em relação ao meudemônio quando recebê-lo, sejaele um Caruncho ou qualqueroutro tipo.

Rory grunhiu e voltou àrefeição.

— Que outros tipos dedemônio você conhece? Só ouvi

falar de quatro — perguntouFletcher a Serafim, que pareciaser o mais bem informado dogrupo. Mas antes que o belorapaz pudesse responder, Atlasofegou de espanto. Um anãotinha entrado no refeitório... etrazia um demônio consigo.

19

O anão tinha uma aparênciamuito semelhante à de Athol,com barba ruiva e um corpoatarracado e troncudo. Encarouos outros estudantes por debaixodas grossas sobrancelhas, entãoaceitou uma bandeja das mãos

de um criado nervoso. Mesmoque Fletcher tivesse certeza deque o anão era a fonte dafascinação de todos os outros, eleestava mais interessado nodemônio que o seguia.

Com 1,20 metro de altura, acriatura teria a forma de umacriança pequena, não fosse pelasilhueta atarracada e os membrosrobustos. Porém, o maisfascinante era a sua coloração. Acriatura parecia ser feita de rocha

malformada, um efeito tornadoainda mais impressionante pelomusgo e líquen que cresciam emsua superfície. As mãos eramcomo luvas de cozinha, com umgrosso polegar opositor quepoderia ser usado para segurarcoisas. Com cada movimento dodemônio, Fletcher ouvia o raspartedioso de pedra contra pedra.

Enquanto os plebeus ofitavam, o demônio se virou e osencarou de volta com um par de

olhinhos negros profundos.— Um Golem! Estes são

difíceis de capturar. Os criadoscontaram que eles crescem com otempo, então você precisa pegá-los ainda jovens — sussurrouSerafim. — Espero que eu ganheum deles.

— Pouco provável — retrucouAtlas. — Eles devem ter dado oGolem a ele como um favor aoConselho Enânico, um gesto deboa vontade enquanto os anões

são incorporados ao exército.Não tinha me tocado de que elestinham sido aceitos em todos osníveis do serviço. Deus sabecomo eles iriam cavalgar seentrassem para a cavalaria;aquelas perninhas curtas malconseguiriam segurar os flancosde um cavalo.

Atlas riu com a imagem.Fletcher o ignorou, fitando oanão sentado encurvado esozinho. O rapaz se levantou.

— O que você está fazendo?— sibilou Rory, agarrando amanga de Fletcher.

— Vou me apresentar a ele —explicou o outro.

— Você não viu como ele nosolhou? Acho que prefere ficarsozinho — gaguejou Genevieve.

Fletcher se soltou do apertode Rory, ignorando os outros. Eletinha reconhecido a expressão deressentimento no rosto do anãoquando este entrara. O próprio

rapaz tinha sentido aquilo evárias vezes antes, quando eramarginalizado pelas outrascrianças de Pelego.

Quando o menino seaproximou da mesa, o Golemribombou ameaçadoramente, acara rochosa se abrindo pararevelar uma boca sem dentes.Apreensivo, o anão se virou aoouvir o ruído.

— Meu nome é Fletcher. —Ele estendeu a mão para o anão.

— Otelo. O que você quer? —perguntou, ignorando ocumprimento.

— Prazer em conhecê-lo. Porque não se senta conosco? Temmuito espaço sobrando —sugeriu Fletcher. O anão olhoupara os outros, que os encaravamda outra mesa com expressões dereceio.

— Estou bem aqui. Obrigadopelo esforço, mas sei que não soubem-vindo — resmungou o

anão, se voltando para suarefeição. Fletcher decidiu fazeruma última tentativa.

— É claro que é bem-vindo!Você vai lutar contra os orcsassim como todos nós.

— Você não entendeu. Nãosou nada além de um gestosimbólico. Os generais deHominum não pretendem deixarque entremos para as forçasarmadas para valer. Elesmandam a maior parte dos

nossos recrutas à frente élficapara apodrecer com o refugo. Orei teve boas intenções ao forçá-los a nos aceitar, mas ainda sãoos generais que decidem o quefazer conosco. Como vamosmudar a opinião deles se eles nãonos deixarem lutar? —murmurou Otelo, para que sóFletcher pudesse ouvir.

— Vocans recebeu meninas eplebeus também. De fato, todomundo que você vê aqui é

plebeu. Os nobres vão chegaramanhã — respondeu Fletcher,abrindo o coração ao anãoinfeliz. Ele pausou por ummomento, então se inclinou maispara perto do anão e sussurrou:— Eles precisam de adeptos, nãoimporta de onde eles venham.Tem até uma elfa! Não acho quea divisão de magos de batalhaseja muito seletiva, desde quevocê possa lutar.

Otelo sorriu com tristeza para

Fletcher. Em seguida, pegou amão que lhe fora oferecida e aapertou.

— Eu sei sobre a elfa. Nóstivemos uma... conversainteressante enquantoesperávamos para ganhar nossosdemônios. De qualquer maneira,espero que você esteja certo.Lamento pela minha grosseria;devo ter soado pretensiosamenteinsensível — disse Otelo,pegando a bandeja.

— Não se preocupe. Conhecioutro anão ontem, e ele tinhauma opinião muito parecida coma sua. Ele me deu uma coisa —contou Fletcher, puxando dobolso o cartão que tinhaganhado.

— Guarde isso agora! —sibilou o anão em voz baixa assimque viu o cartão. Fletcher ometeu de volta nas calças. Qualera o problema?

Eles se sentaram à mesa com

os outros, a conversa logo sendoabafada com a chegada do anão.Fletcher apresentou todos.

— Bom dia — saudou Otelo,desajeitado, acenando com acabeça para cada um. Elesacenaram de volta em silêncio.Depois de alguns instantes, Rorycomeçou a falar. Fletcher tinha aimpressão de que o meninoodiava silêncios constrangedores.

— Olha, vou te contar, euqueria poder deixar crescer um

bigode desses.Você sempre teve um? —

indagou Rory, passando a mãono rosto liso.

— Se quer saber se nascemosbarbudos, a resposta é não —explicou Otelo, abrindo umsorriso irônico. — Nósacreditamos que cortar nossospelos e cabelos é um pecadocontra o Criador. Fomos feitosexatamente como ele queria quefôssemos. Se ele nos deu pelos,

então temos que mantê-los.— Então por que vocês não

deixam as unhas cresceremtambém? Parece maluquice paramim — retrucou Atlasbruscamente, apontando para osdedos atarracados mas comunhas bem aparadas de Otelo.

— Atlas! — ralhou Genevieve.— Tudo bem, é uma pergunta

justa. Consideramos a partecinzenta da unha morta e,portanto, não mais parte de nós.

Claro que isso tudo é visto maiscomo tradição do que crençareligiosa hoje em dia: muitosanões aparam a barba e oscabelos; alguns dos mais jovensaté as pintam. Isso éconhecimento comum emCorcillum. De onde vocês vêm?— perguntou Otelo numa vozcontrolada.

— Sou de uma vila do oeste,perto do mar Vesaniano —respondeu Atlas.

— Você é nativo deCorcillum?

Otelo fez uma pausa,parecendo confuso. Serafimrespondeu por ele.

— Os anões já estavam aquiantes que o primeiro homempisasse nestas terras. Elesderrubaram as florestas,aplainaram os vales, desviaram osrios e até mesmo plantaram osgrandes marcos de pedra quemapeiam o território de

Hominum.Otelo sorriu, como se

impressionado peloconhecimento que o jovemplebeu tinha do seu povo.

— A humanidade chegouaqui dois mil anos atrás, depoisde completarem a longa jornadaatravés do deserto de Akhad —continuou Serafim, encorajadopela atenção total dos outros. —Corcillum era a capital enânica,então nós viemos morar com

eles, trabalhando e comerciando.Mas uma doença terrível varreua cidade, e tem um efeitoparticularmente forte contra osanões. Logo depois, nossoprimeiro rei assumiu o poder,com ajuda daqueles que hoje sãoas famílias nobres. Eram umpequeno grupo de conjuradoresque comandavam demôniospoderosos, muito mais fortes queas criaturas controladas pelosconjuradores modernos. É por

isso que toda a realeza e anobreza são capazes de conjurar;eles herdaram as habilidades deseus ancestrais.

— É por isso também que nósnos rebelamos com tantafrequência — acrescentou Oteloem voz baixa. — Um atoimensamente tolo, considerandoque somos tão poucos e nãotemos conjuradores. Nunca nosrecuperamos em números depoisda peste, graças à lei baixada

sobre nós pelos ancestrais do seurei. Temos que viver nos guetos esó podemos ter um númerolimitado de filhos por ano. Nãopodemos nem ter nossa própriaterra. A realeza diz que somos osresponsáveis pelo nosso próprioinfortúnio, depois de tantasrebeliões.

Um clima sombrio baixousobre os outros, mas Fletchersentia raiva, a mesma raiva quelhe fora provocada pelas

injustiças de Didric. Aquilo era...desumano! A hipocrisia dasituação o enojava. Então tinhasido disso que Athol falara. Altasabriu a boca novamente, comuma expressão de discordânciano rosto.

— Então, Serafim, você disseque fez o dever de casa —interveio Fletcher, antes queAtlas pudesse começar umadiscussão. — Conte-nos umpouco sobre o que devemos

esperar ao longo dos próximosmeses.

Serafim se inclinou para afrente e chamou todo mundomais para perto, sorrindo com aoportunidade de mostrar oquanto tinha aprendido.

— Eles são muito justos aqui.As patentes são conferidas deacordo com o mérito, entãoquanto melhor for o seudesempenho nas provas e nosdesafios, mais alta a sua patente

de oficial quando se formar. Oproblema é que nós, plebeus, jásaímos em desvantagem nessadisputa. Os demônios querecebemos não sãoparticularmente fortes, enquantoos nobres ganham as criaturasdos pais, que se esforçam maisem capturar seres poderosos paraos filhos. Alguns são atéafortunados o bastante dereceber um dos demôniosparticulares da família, mas isso é

raro. Não sei muito sobre odemônio de Fletcher, nunca vium desses antes. Mas, Otelo, oseu será muito poderoso quandoestiver completamente crescido,pelo que ouvi dos Golens.

— Então... nós sempreteremos só os nossos Carunchos?— perguntou Genevieve,confusa.

— Não necessariamente —respondeu Serafim. — É possívelcapturar outro demônio mais

poderoso no éter e acrescentá-loao seu rol. Não sei muito sobrecomo isso é feito, eaparentemente é mais difícil eperigoso de se fazer comdemônios mais fracos. Estoutorcendo para ganhar algomelhor que um Caruncho. Elessão ótimos batedores e têmferrões bem fortes, mas seusníveis de mana são bem baixos, efisicamente não são páreos nempara um filhote de Canídeo.

— Entendi — disseGenevieve, parecendo um poucomenos orgulhosa de Azuraenquanto a criatura decolava eesvoaçava pelo salão. Todosobservaram o bicho pousar naenorme estátua no centro dosalão, caminhando até o olho depedra do homem.

— Quem é esse cara, afinal?— perguntou Fletcher a todos àmesa.

— Essa eu sei — respondeu

Otelo, apontando a placa sob aestátua. — É Ignácio, o braçodireito do rei Corwin e fundadorda Academia Vocans, no tempoem que ela não passava de umabarraca num campo. Ele morreuna Primeira Guerra Órquica unsdois mil anos atrás, mas lheatribuem o mérito de ter lideradoa carga suicida que rompeu asfileiras dos orcs e acabou levandoà derrota deles.

— É isso! — exclamou

Fletcher em voz baixa, olhandopara o diabrete. A criatura tinhadescido pelo braço do dono eestava lambendo com alegria osrestos de mingau na tigela.

— O que foi? — indagouRory.

— Ignácio. Assim que voubatizar meu demônio.

20

Ao fim do café da manhã, osoutros decidiram voltar aosquartos para dormir mais umpouco, mas Fletcher odiava aideia de ficar sentado no frio. Aconversa que tinha sedesenrolado durante a refeição

fizera o rapaz perceber quãopouco ele sabia sobre aquelelugar. Fletcher precisava acharJeffrey. Se Serafim tinhaaprendido tanto sobre a Cidadelacom os criados, ele tambémextrairia o máximo deinformações que pudessedaquela fonte.

Fletcher estava com sorte;Jeffrey ainda estava polindo ochão do átrio.

— Seria muito abuso se eu

pedisse a você para me mostrar aCidadela de novo? Não faz muitosentido você limpar o piso agora,já que vai ficar sujo de novoquando os alunos do segundoano descerem para o café —argumentou Fletcher com ocriado, que já parecia cansado.

— Só estou polindo o chãopara que o Sr. Mayweather nãogrite comigo. Se eu puder dizerque estava guiando um aprendizpelo castelo, então estou

liberado! Vamos só pegar levenas escadas desta vez —respondeu Jeffrey, sorrindo. — Oque você gostaria de ver?

— Tudo! — retrucouFletcher. — Tenho o dia inteiro.

— Então eu também tenho.— Jeffrey estava animado. —Vamos começar pela sala deconjuração.

A sala ficava no mesmoandar, na ala oriental. Asgrandes portas de aço eram

difíceis de abrir, e o ranger dasdobradiças enferrujadas ecooupelo átrio. Jeffrey pegou umatocha num suporte do lado defora e levou o aprendiz paradentro, iluminando o caminhocom a chama alaranjada etremeluzente. As solas das botaspareciam grudar no piso que, sobexame mais próximo, mostrou-sefeito de pesadas tiras de couro.Havia um grande pentagramapintado no meio do aposento, o

epicentro de uma espiral deestrelas gradualmente menores.Cada uma era cercada pelosmesmos símbolos estranhos queFletcher tinha visto no livro doconjurador. Talvez fossemaquelas as chaves sobre as quaisJames Baker tinha escrito?

— Por que couro? —perguntou Fletcher.

— Os pentagramas e símbolosprecisam ser desenhados em algoorgânico, ou não funcionam. Nós

usávamos madeira, mas elasempre queimava e precisava sersubstituída. O reitor decidiu quecouro era uma ideia melhor.Vem funcionando bem até agora;ele fica fumegando eesbraseando um pouco, e ocheiro é horrível, mas mesmoassim é melhor do que correr orisco de um incêndio toda vezque um dos demônios entra noéter.

— Eu não fazia ideia! —

exclamou Fletcher, examinandouma fileira de aventais de couropendurados em ganchos ao ladoda porta.

— Não sei muito mais sobreeste aposento. Seria melhor vocêperguntar a um dos alunos dosegundo ano, mas eu nãoperderia tempo. A competiçãopor patentes é feroz, e eles nãogostam de ajudar os calouros.Assim evitam que você roubeuma promoção que poderia ter

sido deles. Odeio esse jeito depensar, mas o reitor disse que ascoisas são brutalmentecompetitivas nas linhas de frente,então por que não dar umgostinho disso aos aprendizesaqui?

Jeffrey ficou pela porta,recusando-se a explorar o salão.

— Vamos. Esse lugar me dáarrepios — murmurou.

O criado levou Fletcher aocorredor e os dois subiram ao

segundo andar da ala oriental.— Esta é a biblioteca. —

Jeffrey empurrou a primeiraporta. — Me perdoe por nãoentrar. A poeira é terrível para aminha asma.

O aposento parecia tãoprofundo e longo quanto o átrioera alto. Havia fileiras e maisfileiras de estantes de livrosalinhadas nas paredes, cheias detomos ainda mais grossos do queaquele escondido no fundo da

bolsa deixada por Fletcher noalojamento. Longas mesas seestendiam entre cada estante,com velas apagadas dispostas aintervalos regulares sobre seustampos.

— Há milhares de ensaios etextos teóricos escritos pelosconjuradores de outrora. Amaioria é de diários, com datasespalhadas ao longo dos últimosmil anos, mais ou menos. Estelugar não é muito usado,

considerando que já tem tantotrabalho a ser feito, mesmo semas leituras extras. Mas algunsalunos vêm aqui em busca dedicas e truques, geralmente osplebeus que não têm dinheiropara gastar em Corcillum nos finsde semana — explicou Jeffrey,encostado à porta. — Elesprecisam correr atrás de qualquermaneira; os nobres semprechegam sabendo mais que eles,tendo crescido com o dom e tal.

— Fascinante — comentouFletcher, espiando as pilhas delivros. — Estou surpreso que estabiblioteca seja usada tãoraramente. Deve haver umverdadeiro tesouro deconhecimento por aqui.

Jeffrey deu de ombros efechou a porta.

— Eu não saberia dizer, masacho que o ensino nesta escola setornou muito mais prático, pornecessidade. Simplesmente não

há mais tempo para pesquisas eexperimentos; eles só seimportam em despachar vocês àlinha de frente o mais rápidopossível.

Ao saírem dos aposentos,Fletcher viu um grupo demeninos e meninas passandopelo corredor.

— Esses são os alunos dosegundo ano — contou Jeffrey,indicando-os com um aceno dacabeça. — Tiveram um ano

muito difícil. A competição porpatentes está mais feroz do quenunca. Agora que os criminososprovavelmente serão alistados noexército, além dos anões, essesnovos batalhões vão precisar deoficiais. E os alunos que nãotiverem um bom desempenho,serão escolhidos para lideraressas tropas em combate... ou vãoapodrecer com eles na frenteélfica. — Fletcher não achavaque seria tão ruim liderar anões

em combate, mas não pretendiacomeçar um debate com Jeffrey;não enquanto ainda tinha tanto aaprender.

O rapaz fitou os alunosveteranos conforme eles desciamas escadas escuras, semdemônios. Pequenas esferas deluz flutuavam ao redor de suascabeças como vaga-lumes,emitindo um brilho azul etéreo.

— O que são aquelas luzes? Ecadê os demônios deles? —

perguntou Fletcher conforme elee Jeffrey os seguiam escadaabaixo. Os veteranos oignoraram, esfregando os olhos emurmurando entre si.

— Demônios não sãopermitidos fora dos alojamentose das aulas. Eles vão te explicaressas coisas assim que todos oscalouros tiverem chegado.Apesar de eu não fazer a menorideia de aonde os demônios vãoquando não estão com seus

conjuradores. Quanto às luzes,são chamadas de fogosfátuos. Éuma das primeiras habilidadesque ensinam aos aprendizes,acho. Em alguns dias vocês todosestarão fazendo essas coisaszanzarem para cima e para baixo.

— Mal posso esperar —comentou Fletcher, espiando asbolinhas azuis de luz enquantoelas flutuavam sem destino peloátrio. — Não me espanta que sóhaja uma vela nos nossos

aposentos.Jeffrey o arrastou do átrio,

descendo por uma escadaria aolado da entrada da sala deconjuração.

— O castelo é enorme, mas amaioria dos aposentos é usadacomo acomodação para osnobres, professores e criados. Oresto fica vazio ou serve comodepósito, exceto por algumassalas de aula — explicou Jeffreyenquanto os passos de ambos

ecoavam pelos degraus escuros.Quando chegaram ao final

das escadas, a primeira coisa queFletcher percebeu foi umasequência de grilhõesincorporados às paredes de umlongo e úmido corredor que seestendia pelas trevas. Aoatravessar o local, o rapaz viudúzias de celas de prisãoapertadas e sem janelas, com nomáximo 1 metro de largura.

— Que lugar é este? —

indagou Fletcher, horrorizado.As condições para as pessoasaprisionadas daquele jeito teriamsido insuportáveis.

— Esta parte da Cidadela foiconstruída no primeiro ano daguerra, oito anos atrás, para osdesertores. Não sabíamos o queesperar, então sempre que astropas eram enviadas para aslinhas de frente, nós nosassegurávamos de quedormissem aqui embaixo na

noite anterior. Assim, elessaberiam o que os aguardava sefugissem por covardia. Sórecebemos algumas poucasdúzias de prisioneiros nosprimeiros dois anos, ou pelomenos é o que me dizem. Hojeem dia, desertores sãosimplesmente açoitados quandosão pegos e mandados de volta àguerra. — Jeffrey passou a mãopelas barras de ferro enquantofalava. Fletcher estremeceu e o

seguiu pelo longo corredor.Ficou surpreso quando o

túnel claustrofóbico se abriu numaposento enorme. Tinha oformato do interior de umcoliseu, com anéis concêntricosde escadas que também serviamcomo assentos, circundando umaárea com piso de areia. Fletcherestimou que poderia facilmentereceber uma audiência dequinhentas pessoas.

— O que diabos isto está

fazendo aqui? — indagou.Certamente não poderia havernenhuma explicação para umaarena gladiatória como aquela noporão da Cidadela.

— O que você acha, menino?— veio uma voz roufenha atrásdele. — Execuções, para isso queela está aqui. Para dar alento aossoldados e aprendizes, sempreque capturássemos um orc, aoverem o monstro morrer comoqualquer outra criatura.

Fletcher e Jeffrey giraram,deparando-se com um homemgrisalho e quase banguela,apoiado num cajado. Ele nãotinha o pé nem a mão direitos,substituídos por uma perna depau grossa e um ganchoterrivelmente afiado. Ainda maisestranha era sua armadura decota de malha do exército antigo,resplandecente no verde-escuro eprateado de uma das velhas casasnobres.

— É claro que nunca foiusado — disse. — Quem é que jáouviu falar de um orc sendocapturado vivo!

Ele gargalhou consigo mesmoe estendeu a mão esquerda, queFletcher apertou.

— Capturamos algunsgremlins, mas vê-los se encolher,tremendo num canto e mijandonas tangas não era muitogratificante. Eles provavelmentetêm uma rixa mais séria com os

orcs do que a gente, já que sãoescravizados e tal — contou ohomem, mancando pela arena.— Bem, vamos lá, vamos ver oque você é capaz de fazer comesse khopesh. Faz muito tempoque não vejo um desses —chamou, brandindo o cajado eapontando para a espada deFletcher. — Posso ter perdidominha mão boa na guerra, masainda posso lhe ensinar uma ouduas coisinhas com a esquerda.

Diabos, eu tenho que poder; é omeu trabalho, não é?

— Quem diabos é esse cara?— sussurrou Fletcher,perguntando-se que tipo delouco escolheria passar seutempo livre nas masmorras.Jeffrey se inclinou e murmuroude volta:

— Esse é Sir Caulder. É omestre d’armas!

Sir Caulder riscou uma linhana areia com o cajado e chamou

Fletcher mais para perto.— Vamos lá. Posso ser um

aleijado, mas tenho mais o quefazer.

Fletcher pulou para a arena eavançou até o mestre, pedindomentalmente a Ignácio queficasse ao lado de Jeffrey. SirCaulder piscou para ele e ergueuo gancho numa saudação debrincadeira.

— Sei reconhecer um futurooficial quando o vejo, mas será

que você luta como um?— Não quero machucar o

senhor. Esta espada é afiada —avisou Fletcher, soltando a armado cinto e erguendo para que ovelho a visse. Era a primeira vezque ele realmente empunhavaaquela arma nas mãos. A espadaera muito mais pesada do que eleesperava.

— Sim, posso ser velho, mascom a idade vem a experiência.Este cajado aqui é duas vezes

mais perigoso na minha mãoúnica do que esse khopesh é nassuas duas.

Fletcher duvidou. O homemera magro como uma vassoura, etinha mais ou menos a mesmaaltura, também. O rapaz brandiua arma em sua direção sem muitaconvicção, mirando de forma anão acertar nada. Sir Cauldernão se moveu para se defender,deixando a espada cortar o arinofensivamente diante do seu

peito.— Muito bem, garoto, chega

de brincadeira! — exclamou omestre d’armas.

O cajado zuniu pelo ar,acertando a cabeça de Fletchernum golpe doloroso. O rapazgritou e levou a mão à orelha,sentindo o sangue escorrerquente pela nuca.

— Vamos lá, essa espada nãoconseguiria nem perfurar estacota de malha — provocou o

velho com alegria, saltitandodiante de Fletcher como umbode.

— Eu não estava pronto —rosnou Fletcher, em seguidaestocando contra o estômago deSir Caulder com as mãos. Ocajado desceu como um martelo,batendo tão forte na espada queesta se cravou na areia. Fletcherfoi recompensado com outrapancada no rosto, que deixouuma marca larga.

— Isso não vai ficar bonitoamanhã. — Sir Caulder riu,espetando a barriga de Fletcher efazendo o menino cambalear. —Veja, Jeffrey, eles carregam essasespadas por aí como se fossemenfeites. Escute bem o que voudizer: quando um orc investecontra você dentro da mata, nãoache que uma bala de mosquetevai detê-lo. Ele vai palitar osdentes com as suas costelas antesmesmo de perceber que levou

um tiro — reclamou, pontuandocada palavra com uma cutucadado cajado.

A paciência de Fletcheracabou. Ele girou o khopesh numarco largo, pegando o cajado nacurva e afastando-o para o lado.Em seguida investiu sob a guardade Sir Caulder, derrubando ohomem com um golpe do ombropara cair por cima dele.

Antes que um grito de triunfopudesse deixar os lábios do

rapaz, os joelhos de Sir Cauldertesouraram ao redor do pescoçodele, esganando as palavras. Aperna de pau bateu na nuca deFletcher, que largou a espada etentou separar as pernas do velhoguerreiro, mas estas eram comobarras gêmeas de aço. O homemapertou mais, até que a visão deFletcher se turvou. O mundo,então, desapareceu nas trevas.

21

Quando sua consciência voltou,Fletcher pôde escutar os sibilosde Ignácio. Abriu os olhos e viuJeffrey e Sir Caulder oobservando do outro lado daarena. Sir Caulder praguejavahorrivelmente e havia um odor

de queimado no ar.— Malditos demônios,

deveriam ser todos fuzilados. Éum combate bom e sólido quemata os orcs, não essasabominações — resmungou ovelho, cutucando um pedaço depano enegrecido no peito dasobreveste. Ignácio devia tercuspido fogo nele quandoFletcher desmaiou.

O rapaz esfregou a gargantamachucada, aborrecido, e se

sentou. Por que será que tantagente queria esganá-lo? AtéIgnácio gostava de se enrolar emseu pescoço.

— O senhor se esqueceu deuma coisa — grasnou Fletcher.— Os xamãs orcs têm o dobro donúmero dessas abominações,como o senhor chamou. Achamesmo que o bom e sólidocombate vai derrotá-las também?Por que dar aula aqui se o senhoros odeia tanto?

Sir Caulder e Jeffreyatravessaram a arena até ele,parando de vez em quando parao caso de Ignácio atacar de novo.Fletcher acalmou o diabrete compensamentos tranquilizantes epegou o khopesh, reatando-o aocinto.

— Me desculpe, guri. Euestava só desabafando. Estasobreveste era meu velhouniforme. É tudo que me restados velhos tempos — contou Sir

Caulder, chutando areia com aperna de pau.

— Bem, é culpa minhatambém. Eu deveria ter avisado aIgnácio que esta era uma luta debrincadeira, apesar de achar quefugimos um pouco à parte dabrincadeira. Lamento pelo seuuniforme. Posso lhe comprar umnovo? — perguntou Fletcher.

— Não. Eu lutava sob osRaleigh — respondeu SirCaulder, como se isso explicasse

tudo.— Os Raleigh? — indagou

Fletcher. — Eles são uma famílianobre?

— Sim, isso mesmo. Nãomais, porém — murmurou SirCaulder. O rapaz notou a dor noolhar do homem, mas nãoconseguiu conter a curiosidade.

— Por quê? Eles caíram emdesgraça com o rei? — perguntouFletcher. Ele nunca tinha ouvidofalar nesse tipo de coisa

acontecendo antes, se bem quePelego ficava tão longe dasmaquinações da classe superiorde Hominum que isso poderiaser uma ocorrência cotidiana, atéonde ele sabia.

— Não, nada do tipo, seuidiota! Eu servi ao lorde EdmundRaleigh, muito tempo antes daguerra. Ele era um dos nobrescom propriedades na fronteirasul, então nossas terras eramconstantemente atacadas por orcs

saqueadores. Naqueles tempos, oexército estava concentradodemais em manter os anões sobcontrole para nos mandar ajuda,então, como parte da guarda deRaleigh, tínhamos que lidar como problema sozinhos. LordeRaleigh era um bom homem eum amigo próximo do rei, entãonão vá pensar que ele não era! —ralhou Sir Caulder.

— Eu não quis ofender —atalhou Fletcher, tentando ser

educado. — Mas não entendocomo os Raleigh perderam opoder.

— Foram os orcs, moleque.Eles que são os culpados. Vieramna calada da noite, seesgueirando pelo gado e pelosgrãos e tudo mais que os meusrapazes estavam protegendo. Nósachávamos que era isso que elesqueriam, então por que protegerqualquer outra coisa? — explicouele amargamente, cerrando os

punhos com a memória. — Elesmassacraram todo mundo namansão da família Raleigh: asmulheres, as crianças. Quandoficamos sabendo, eles já tinhamido embora, levando os mortoscomo troféus e amarrando oscorpos nas árvores da fronteirado território órquico. LordeRaleigh resistiu terrivelmente. OCanídeo dele matou três orcsantes que eles abrissem a barrigado demônio e o deixassem

sangrando para morrer. Euacabei com o sofrimento dele,pobre criatura. Então não fiquepensando também que eu tenhoalguma coisa contraconjuradores!

Sir Caulder estremeceu com amemória, então foi até osdegraus da arena, para umaporta aberta na parede.

— Você não é um maulutador, mas vai precisaraprender a enfrentar um orc.

Aquela ombrada não terianenhum efeito, e você estariaenfrentando clavas e machadospesados, não armas de precisão.Venha me ver de novo, e eu lheensinarei como — disse osoldado da porta, entrando emseguida com um grunhidosatisfeito.

Jeffrey levou Fletcher até aentrada e ergueu a tocha até orosto do amigo para poder vê-lomelhor à luz fraca. Ignácio subiu

até o ombro do rapaz e ronronoucom a visão da chama.

— Ele realmente caprichou nasua cara. Esse machucado estáinchando ferozmente —comentou Jeffrey.

— Nem dói tanto assim. —Fletcher tocou a ferida no rosto eestremeceu.

Os dois voltaram calados aoátrio, ponderando a história deSir Caulder enquanto subiam alonga escadaria.

— O tour acabou — gemeuJeffrey ao emergirem no átrio. —Preciso voltar ao trabalho agora.

— Você já sabia de SirCaulder e os Raleigh? —perguntou Fletcher a Jeffreyquando o criado voltou a limparo piso.

— Eu ouvi falar dos Raleigh,mas não fazia ideia de que SirCaulder tinha servido à casadeles. O que sei é que foi oincidente Raleigh que deu início

à guerra. O rei e os nobrescomeçaram a expandir asfronteiras de Hominum emretaliação, cortando as árvores edevastando as aldeias órquicasano após ano. Mas foi só quandoo orc albino começou a unir astribos que o conflito virou umaguerra de verdade — respondeuJeffrey, esfregando o chão.

— Não consigo entendercomo nunca ouvi isso antes. —Fletcher coçou a cabeça.

Aparentemente, viver tão longeao norte de Corcillum tinhalimitado sua educação sobre apolítica do mundo em geral.

— Você não teria como. Foitudo acobertado e mantido emsegredo. O rei não gostaria queos plebeus descobrissem que umalinhagem nobre pode ser extintaassim, de uma hora para outra. Ésó porque os filhos dos nobresvêm para cá que eu escutei ahistória; Sir Caulder nunca

mencionou nada disso antes —explicou Jeffrey.

— Ele devia gostar muitodaquele uniforme — observouFletcher, afagando a cabeça deIgnácio.

— Falando nisso, não acreditoque suas roupas ainda não foramlavadas! Estava meio nauseantenaquele corredor apertado láembaixo, Fletcher. Volte aoalojamento, e eu mandareialguém buscar suas roupas e

levá-lo aos banhos. Sério.

22

A lua estava cheia eresplandecente no céu semnuvens. Fletcher tremeu e puxouo colarinho do uniforme; era aúnica roupa que não fora levadapara ser lavada. Ainda assim, eletinha que vestir algo; estava

gélido no quarto, e o cobertoresfarrapado na cama não ajudavaem nada a mantê-lo aquecido.Ele se inclinou para fora dajanela sem vidro para o ar frio danoite, pensando no dia que tinhase passado.

A elfa tinha ficado no próprioquarto, o que estava ótimo paraFletcher. O resto do grupo semanteve animado no almoço eno jantar, ansioso pelo diaseguinte e pelas maravilhas que

este traria. Fletcher notou quetinha gostado da companhia dosoutros, ainda que a tensão entreAtlas e Otelo tivesse conferidoum sutil tom de tensão a umanoite feliz. Fletcher tinhasimpatizado especialmente comSerafim, cujo carisma e dom paracontar histórias tinham deixadotodos atentos a cada palavra sua.A atitude despreocupada de Rorytambém conquistou sua afeição,e, mesmo que todos os esforços

dela para salvar o uniforme dorapaz tenham sido em vão,Fletcher descobriu queGenevieve era uma pessoagenerosa com um senso dehumor surpreendentementeseco.

Era estranho saber que todoseles estariam arriscando a vidanas selvas quentes do sul emalguns poucos anos. Por mais queFletcher tentasse evitar pensar noassunto, os outros estavam

ansiosos pelo combate.Genevieve era a única que nãoostentava abertamente suavontade de lutar, mesmo quefalasse dos orcs com uma fúriasombria que escondia sua trágicaexperiência.

Fletcher sabia que deveriadormir, mas se sentia eufóricodemais para isso. Até Ignácio,geralmente tão preguiçoso,parecia contagiado pela agitaçãodo dono, perseguindo a própria

cauda na escuridão do quarto.O rapaz estendeu a vela para

que Ignácio a acendesse, entãosaiu para a sala comum. Aochegar, viu uma luz de vela quesumia pela escadaria, com o somde passos apressados ecoandoabaixo.

— Venha, Ignácio; parece quenão somos os únicos comdificuldade para dormir —comentou Fletcher. Se fossepassar a noite em claro, seria

muito melhor fazê-loacompanhado.

Os corredores ficavamsinistros à noite, com correntesde ar gélidas sibilando pelasseteiras que salpicavam asparedes exteriores do castelo. Achama da vela de Fletchertremeluzia com cada rajada, atéque ele teve de protegê-la com amão para que não se apagasse.

— Eu bem gostaria de umadaquelas luzes voadoras numa

hora destas, né, Ignácio? —sussurrou o rapaz.

As sombras se moviam deforma bizarra conforme omenino descia o corredor, asfendas negras dos visores de cadaarmadura fitando-o à suapassagem.

Parecia estranho que a pessoaadiante, fosse quem fosse,estivesse se movendo tão rápido,mais como uma corrida do queum passeio noturno. Fletcher se

apressou em acompanhar,motivado por uma curiosidademais forte que seu bom senso.Mesmo ao alcançar o átrio, omenino só conseguiu ver uma luzfraca e o sibilar de tecidoconforme a silhueta escapavapela entrada principal.

O pátio estava silencioso comoum túmulo e duas vezes maisassustador quando Fletcher pôsos pés do lado de fora, mas nãohavia sinal da pessoa misteriosa.

Ele caminhou até a pontelevadiça e espiou a estrada,procurando pela luz da vela.Enquanto contemplava aescuridão turva, começou a ouvira batida rítmica de cascos naestrada, vindo na direção daCidadela.

Fletcher correu para umapequena saleta construída naguarita da ponte levadiça,apagando a própria vela com umsopro e se espremendo contra a

fria parede de pedra. Quem querque fosse, o rapaz não queria quea primeira impressão que apessoa tivesse dele fosse dealguém que gostava de seesgueirar por aí na calada danoite.

Ele conteve a empolgação deIgnácio, pressionando-o sobre anecessidade de silêncio com umpensamento severo. Lembrou-sedo que tinha acontecido daúltima vez em que estivera numa

sala fria de pedra, escondido nastrevas. Com essa memória, odemônio reagiu comconcordância e até um toque doque parecia ser arrependimento.Fletcher sorriu e deu umacoçadinha no queixo de Ignácio.O diabrete entendia mais do queele pensava!

O ruído de rodas emmovimento e o estalo de chicotesanunciou a chegada dascarruagens, que ribombaram ao

cruzar a velha ponte levadiça.Fletcher espiou por umarachadura na pedra do aposento,cruzando os braços com força porconta do frio. Seriam os nobres?Talvez um dos professores,chegando cedo?

Aproximaram-se duascarruagens, ambas floreadamentedecoradas com ornamentosdourados e iluminadas portochas crepitantes. Dois homensmontavam no topo de cada uma,

vestindo uniformes escuros combotões de latão e quepes quelembraram a Fletcher o traje dosPinkertons. Os quatro portavambacamartes pesados nas mãos,prontos para disparar emqualquer um que tentasseemboscar o comboio. Cargapreciosa, de fato.

As portinholas se abriram evários vultos desceram, vestindoversões perfeitamente talhadas eajustadas do uniforme de

Vocans. À luz fraca das tochas,era difícil identificar seus rostos,mas um dos mais próximos ficoubem à vista.

— Ah, céus! — exclamou eleaos outros, numa voz elegante earrastada. — Eu sabia que estelugar tinha caído em decadência,mas não achava que tinhachegado a nível tão baixo.

— Você viu o estado dascoisas, Tarquin? — indagou umamenina, das sombras. — Estou

espantada por termos conseguidoatravessar a ponte.

Tarquin era um rapaz bonitocom maçãs do rosto bemdefinidas e cabelos loirosangelicais, que caíam em cachosaté a nuca. Porém, seus olhosazuis acinzentados pareciam aFletcher tão duros e cruéisquanto tantos outros que viraantes.

— É isso que acontece quandovocê deixa a ralé entrar —

declarou ele com uma expressãode desdém. — Os padrões estãodecaindo. Tenho certeza de que,quando papai esteve aqui, estelugar era o dobro do que é agora.

— Ainda assim, ao menos osplebeus podem ficar com ospostos que não quisermos —sugeriu a menina, fora do campode visão de Fletcher.

— Sim, bem, esse é o ladobom — concordou Tarquin, numtom entediado. — Os plebeus

podem ficar com os criminosos ese, deus nos acuda, elespermitirem que os anões sirvamcomo oficiais, então podemcomandar os meios-homenstambém. Manter todos nos seusdevidos lugares, esse é o jeitocerto. Cada um onde deveriaestar.

Uma garota saiu da penumbrae parou ao lado do jovem nobre,estreitando os olhos para espiar aalta Cidadela diante deles. Ela

poderia ter sido gêmea deTarquin, com maçãs do rostoangulosas e madeixas dequerubim arrumadas emdelicados cachinhos loiros.

— Isto é uma desgraça. Comoé que pode, cada criança nobreem Hominum ser forçada a viveraqui por dois anos? — perguntouela em voz alta, ajeitando umcacho errante atrás da orelha.

— Cara irmã, é por isso queestamos aqui. Os Forsyth não

botam o pé em Vocans desdeque nosso pai se formou. Vamosmostrar a este lugar como nobresde verdade devem ser tratados —respondeu Tarquin. — Falandonisso, onde estão os criados? Quetal você ir lá buscá-los, hein,Isadora? — brincou ele,empurrando a irmã na direçãoda entrada.

— Ugh! Eu prefiro ter minhacabeça raspada a passar umsegundo nos alojamentos da

criadagem! — exclamou ela.Com essas palavras, a porta

lateral se abriu e Mayweather,Jeffrey e vários outros criadossaíram cambaleando, muitosainda esfregando os olhos desono.

— Mil desculpas pelo nossoatraso, milorde — disseMayweather, num tom humilde.— Tínhamos pensado que ossenhores chegariam pela manhã,já que não chegaram até o

décimo primeiro sino.— Sim, bem, decidimos que

os bares de Corcillum eramlugares muito mais interessantespara se estar à noite do queeste... estabelecimento —respondeu Tarquin gelidamente,apontando em seguida paraJeffrey. — Você, moleque, leve asmalas aos meus aposentos, mascom cuidado. O conteúdo nelasvale mais do que você ganharána sua vida inteira.

Jeffrey se apressou emobedecer, fazendo uma mesuradesajeitada aos dois nobres decabelos dourados ao passar.

— Permita-me levá-lo aosseus alojamentos, milorde.Sigam-me, os dois — disseMayweather ao grupo, subindoos degraus com dificuldadeenquanto os servosdescarregavam as carruagens.Fletcher teve um relance dos doisnobres que seguiam

Mayweather, e então a vista foibloqueada pelas duas carruagensgirando e saindo do pátio,trovejantes.

Logo Fletcher estava sozinhode novo, enojado com o quetinha acabado de ver. Ele tinhasempre imaginado os nobrescomo sendo generosos e justos,liderando os próprios soldadospara lutar na guerra e cedendoseus filhos adolescentes para queservissem como magos de

batalha. Ele sabia que muitosnobres em idade militararriscavam as vidas todos os diasnas linhas de frente, deixando asfamílias em casa. Mas o que viranaqueles dois moleques mimadosera o completo oposto do queesperava. Fletcher torceu paraque nem todos os aprendizes deberço nobre fossem como aquelesdois espécimes que acabara deencontrar.

Fletcher esperou alguns

minutos e saiu sorrateiramenteda guarita, voltando à entradaprincipal pelas sombras damuralha do pátio. Logo antes depassar por um feixe de luar,ouviu o ranger da ponte levadiçaatrás de si.

Girou bem a tempo de ver umvulto diante dela sumir de vista,correndo estrada abaixo. Umvulto com longos cabelos ruivos

23

Os nobres chegaram atrasadospara o café da manhã, sentando-se do lado oposto do refeitório eignorando completamente ogrupo de plebeus. Tarquin eIsadora lideravam o cortejo,tendo claramente se estabelecido

como líderes. Por outro lado, ostapinhas casuais nas costas egargalhadas fizeram Fletcherconcluir que a maioria dosnobres já se conhecia.

— Por que estão nosignorando? — perguntou Atlas,olhando por sobre o ombroquando os nobres começaram afazer comentários em voz altasobre a baixa qualidade dacomida.

— Isso é normal — afirmou

Serafim. — Os nobres sempreficam separados dos plebeus. Eubisbilhotei um dos quartos delesoutro dia. É do tamanho donosso alojamento inteiro e maisum pouco!

— Não acho que deveria serassim — comentou Rory. —Vamos viver juntos pelospróximos dois anos, não é? Sótem cinco deles. Certamente vãoficar entediados com acompanhia um do outro.

— Duvido — opinou Fletcher.— Um dos criados me contouque os nobres frequentementepassam seu tempo livre emCorcillum. Somos nós que vamosficar neste castelo sem ter nadapara fazer. Nossa melhor opçãovai ser fazer amizade com algunsdos plebeus mais velhos.

Enquanto dizia isso, umadúzia de veteranos começou aentrar no salão, conversando emvoz alta. Eles se separaram em

dois grupos e se sentaram emmesas diferentes, mas, aocontrário dos calouros, as duasturmas pareciam conversar entresi sem nenhuma hostilidadeperceptível. Mesmo assim,julgando pela qualidade dosuniformes, Fletcher suspeitavaque a divisão de mesas era entrenobres e plebeus também.

— Eles desceram cedo para ocafé da manhã — comentouSerafim enquanto de duas mesas

veteranos os olhavam de cima abaixo, com atenção especialdedicada a Otelo. Um delescutucou o outro e apontou paraIgnácio e o Golem, que Otelotinha batizado de Salomão. Oanão se ajeitou e baixou a cabeçasobre a refeição, constrangidopelos olhares.

— Eu queria que pudéssemostomar café da manhã no mesmohorário que eles todos os dias.Tem espaço suficiente aqui para

centenas de nós comermos —bocejou Genevieve, apoiando acabeça nas mãos. Fletcher fitouseus cabelos ruivos comdesconfiança. Seria ela o vultoque ele vira saindo da Cidadelana noite anterior?

Quando os criadosterminaram de servir o café aosrecém-chegados, todos norefeitório subitamente secalaram. Erguendo o olhar darefeição, Fletcher viu o reitor

entrando no salão, seguido pordois homens e uma mulher quevestiam uniformes de oficiais.Com um sobressalto, reconheceuum deles como Arcturo, com oolho branco fitando resolutoadiante. O homem não deusinais de tê-lo reconhecido. Amenina elfa entrou logo atrás,causando um rebuliço norefeitório. Ela caminhou com acabeça erguida até um assentoafastado da mesa dos plebeus.

Seu Canídeo se enrodilhou sob acadeira, a cauda peluda seesticando enquanto a criaturaolhava pela sala, protetora.

Os quatro oficiais ficaramparados com braços cruzados eencararam o salão até fazer-sesilêncio absoluto.

— Bem-vindos à Cidadela!Imagino que todos já tenham seinstalado — anunciou o reitorCipião asperamente por entre ascerdas de seu grosso bigode. —

Vocês têm o privilégio de serparte da menor e mais recentegeração de estudantes a agraciaros salões da Academia Vocans.— Fletcher olhou em volta,contando. Eram doze veteranos,o mesmo número dos calouros.— Nossas tradições datam desdeo primeiro rei de Hominum, hámais de dois mil anos —continuou Cipião. — E, mesmoque sejamos poucos, os magos debatalha graduados por esta

instituição seguem servindocomo os melhores oficiais dasforças armadas, seja sob ocomando do rei ou sob abandeira de uma de nossasgrandes casas nobres.

Fletcher viu Tarquin seinclinar e sussurrar com Isadora,cuja risada tilintante ecoou portodo refeitório. Ele não foi oúnico a perceber. O rosto deCipião ficou vermelho de raiva, eo reitor apontou para o jovem

nobre.— Você aí, levante-se! Não

vou tolerar grosseira de ninguém,seja nobre ou não! Levante-se,estou dizendo, e se apresente.

Tarquin se levantou, porémnão parecia abalado pela raiva doreitor.

Cravou os polegares nosbolsos das calças e falou numavoz clara:

— Meu nome é Tarquin,herdeiro do Ducado de Pollentia.

Meu pai, o duque ZachariasForsyth, é o general dos Furiososde Forsyth. — Ele sorriu quandoos veteranos começaram amurmurar ao reconhecer osobrenome. Claramente o pai deTarquin era um dos nobres maisantigos e poderosos deHominum. Fletcher reconheceuo nome Pollentia; uma extensãode terra grande e fértil que corriado mar de Vesan ao centro deHominum.

Cipião permaneceu calado,encarando Tarquin comexpectativa por sob assobrancelhas brancas e fartas. Ojovem nobre esperou algunsmomentos até o silêncio recobrirpesadamente o salão.Finalmente, falou:

— Peço desculpas por minhagrosseria. Estava só dizendo àminha irmã que estou...orgulhoso em fazer parte destagrande instituição.

— É só por respeito ao seu paique não mando você de volta aoseu quarto, como uma criança —resmungou Cipião. — Sente-se efique de boca calada até que eutenha terminado de falar.

Tarquin inclinou a cabeçacom um sorriso e se sentou,inabalado pelo diálogo. Fletchernão sabia bem se era confiançaou arrogância que concedia aorapaz aquela atitude destemida,mas desconfiava de que era a

segunda. Cipião encarou Tarquinpor mais algum tempo, emseguida se virou aos três oficiais.

— Estes são seus trêsprofessores; major Goodwin e oscapitães Arcturo e Lovett. Vocêsos tratarão com o devido respeitoe lembrarão que, enquanto elesestão aqui educando vocês, bonshomens nas linhas de frentesofrem sem sua liderança ouproteção.

Fletcher examinou os dois

professores que ainda não tinhaconhecido. A capitã Lovett erauma mulher de cabelos negroscomo um corvo, olhos frios eaparência severa. Porém, quandoela sorriu aos aprendizes nomomento em que seu nome foianunciado, seu rosto perdeu todaa aspereza. O major Goodwinparecia ser quase tão velhoquanto Cipião, com uma silhuetagrande e corpulenta e umespesso cavanhaque branco.

Usava óculos de armaçãodourada, apoiados num narizvermelho que indicava um gostopor bebidas destiladas.

— Agora, vocês veteranosdevem estar se perguntando porque foram chamados tão cedo —anunciou Cipião, fazendo comque os segundanistas entediadosse endireitassem nos assentos. —Tenho um anúncio que dizrespeito a todos vocês. Tomamosuma decisão que pode não ser

particularmente popular, mas foitomada por questão denecessidade. Nas provas finais enos torneios deste ano, tanto oscalouros quanto os veteranosparticiparão. Se quaisquercalouros demonstrarem altospadrões de qualidade, entãotambém receberão uma patente eserão enviados às linhas de frenteum ano mais cedo, onde fazemuma falta terrível.

Um tumulto imediato se

iniciou, mas foi encerrado comum berro de Cipião. Ele ergueuuma das mãos para o burburinhoque se seguiu.

— Entendo que isso aumentea competição pelas poucaspatentes de alto nível oferecidasa vocês do segundo ano. Venholembrar-lhes de que vocêscomeçaram a treinar com umano de vantagem. Se foremderrotados por um dos calouros,então não merecem patente

nenhuma.Fletcher franziu o cenho com

o anúncio. Lá se ia qualquerchance de fazer amizade com osplebeus mais velhos.

— Quanto aos primeiranistas,vocês devem estar preocupadosem receber patentes e postosruins este ano, quando poderiamconquistar coisa melhor seficassem para o próximo ano.Para contrabalançar essapossibilidade, vocês só receberão

postos de primeira-tenência oumelhor, com uma escolhaopcional de uma segunda-tenência menos prestigiosa, seassim preferirem. O vencedor dotorneio receberá uma capitania, apatente mais alta que um magode batalha novato podeconquistar.

Isso gerou mais burburinhoda mesa dos veteranos. Fletchersuspeitava que eles ficariamfelizes com a participação dos

calouros se estes preenchessemtodas as patentes de segundo-tenente, a mais comum e maisbaixa de todas.

— O rei ofereceu umincentivo adicional ao torneiodeste ano. O vencedor tambémreceberá um lugar no conselhoreal, e terá o direito de votar emquestões de Estado. SuaMajestade deseja ter umrepresentante da próximageração de magos de batalha. Se

uma patente de alto oficial nãomotivar vocês, sei que isso o fará— declarou Cipião, olhando deforma solene para todos.

Fletcher viu Otelo cerrar ospunhos enquanto Cipião falava.Se isso fora motivado peloassento no conselho, a patenteou ambos, Fletcher não saberiadizer. Tarquin e Isadora estavamespecialmente inflamados pelasrevelações de Cipião,sussurrando com empolgação

apesar de um olhar deadvertência de Arcturo.

— Em quais divisões serãoconcedidas as patentes? Oscalouros vão correr o mesmorisco de serem postos nosbatalhões de anões oucriminosos? — indagou umveterano plebeu alto,levantando-se.

Otelo se eriçou com ainsinuação, mas Cipião falouprimeiro.

— Vocês irão para qualquerdiabo de divisão em que foremlotados! E não fale fora de hora!— rugiu o reitor. O menino sesentou apressado, apesar dosmurmúrios insatisfeitos com aresposta. Cipião pareceu apiedar-se ao ver os rostos cabisbaixosque o encaravam por todorefeitório. — Eles terão asmesmas chances que vocês. Étudo que posso dizer sobre esseassunto — acrescentou.

Uma mão delicada se ergueuno ar, agitando os dedinhos parachamar atenção. Cipião revirouos olhos e assentiu irritado com acabeça. Isadora se levantou e fezuma mesura delicada.

— Peço licença por terinterrompido, senhor reitorCipião, mas o que ela estáfazendo aqui? — inquiriu ajovem, apontando um dedoacusador à elfa.

— Esse era o meu anúncio

seguinte — afirmou Cipião,caminhando até a menina decabelos prateados. — Asconferências de paz entre osenviados de Hominum e osvários chefes de clãs élficos foramum longo esforço, masrecentemente alcançamos umavanço importante. Em vez depagar o imposto, os elfosplanejam se juntar à lutapessoalmente, mandando seuspróprios guerreiros para serem

treinados como soldados, assimcomo fizeram os anões.

Com esta última menção,Cipião lançou um aceno decabeça respeitoso a Otelo, quedevolveu o gesto igualmente.

— Porém, ainda resta muitadesconfiança, como era deesperar — continuou Cipião,voltando à entrada para se reuniraos outros professores. — Então,num ato de boa-fé, a filha de umdos chefes foi enviada para ser

treinada como maga de batalha,a primeira de muitos elfos que,esperamos, serão incorporados àsnossas forças armadas ao longodos próximos anos.

Ele deu um sorriso forçado àelfa.

— Seu nome é Sylva Arkenia,e vocês devem acolhê-la damelhor forma possível. Nuncafomos realmente inimigos doselfos, mesmo que tenhamos nossentido assim. Vamos esperar

que este seja o primeiro passo deuma longa e frutífera aliança.

O rosto de Sylva permaneceuimpassível, mas Fletcher notou acauda de Sariel balançando sob amesa. Ele se espantou com acoragem da jovem menina, quedeixou o país e o lar para lutarnuma guerra que não era dela,dentre pessoas que nãoconfiavam no seu povo.Enquanto ele planejava seupedido de desculpas, a voz de

Cipião se ergueu novamente.— Enfim, todos dispensados.

As aulas começam em algunsminutos. Ah, e Fletcher — disseele, virando-se para o rapaz. —Venha me ver no meu gabinete.Imediatamente.

24

O gabinete de Cipião estava tãoquente quanto no dia anterior,mas dessa vez as persianas dasjanelas tinham sido abertas,deixando um facho de luz cortaro ar entre Fletcher e aescrivaninha do reitor. O homem

vinha encarando Fletcher porsobre os dedos unidos peloúltimo minuto, e este já estavacomeçando a se sentirconstrangido.

— Por que você mentiu paramim, menino? — perguntouCipião, com o olhar dardejandoentre Ignácio e o rosto deFletcher.

— Eu não tive a intenção —respondeu Fletcher e então,depois de um momento,

acrescentou: —, senhor reitorCipião.

— Perguntei onde você tinhaconseguido esse demônio, e vocême respondeu que Arcturo tinhamandado você. Achou que issoresponderia à minha pergunta?Achou mesmo que o que dissenão tinha certas implicações?Não achou que eu descobriria averdade depois que falasse comArcturo? — A voz de Cipião eracalma e composta, um contraste

profundo com o homem exaltadoque Fletcher vira no refeitóriopoucos minutos antes. Ele nãosabia bem qual versão preferia.

— Eu... não sei por que disseaquilo. Era verdade que Arcturotinha me mandado, mas entendio que o senhor quis dizer. Foierrado da minha parte mentir.Eu só queria muito ter permissãopara estudar aqui. Peçodesculpas, senhor.

Fletcher baixou a cabeça,

sentindo-se um idiota. Se elesimplesmente tivesse dito averdade, poderia estar numa aulacom Arcturo agora, aprendendoa fazer fogos-fátuos. Em vezdisso, corria o risco de serexpulso de Vocans no primeirodia, por ter mentido a um oficialsuperior. Cipião pigarreou com oque Fletcher torcia que fosseaprovação, e depois o chamouaté a escrivaninha.

— Tenho culpa nisto também.

Eu deveria ter investigadomelhor. Afinal de contas,pesquisar como capturar novasespécies de demônios é umatarefa conferida a todos os magosde batalha. Presumi que vocênão conheceria a magnitude dasimplicações representadas pelasua Salamandra... Andopresumindo demais,ultimamente — admitiu o reitor,com um suspiro. — Arcturo meexplicou como você se deparou

com seu demônio... umpergaminho de conjuração deum xamã orc, quem poderiaimaginar. Suspeito que a minhafrustração tenha derivado domeu desapontamento com o fatode não termos feito umadescoberta; apenas tivemos sorte.Entretanto, devo pedir a vocêque deixe o livro que Arcturomencionou com a bibliotecária,para que ela possa examiná-lo eextrair dele qualquer

conhecimento novo. James Bakerera obviamente um homem desegredos.

Fletcher aguardou numsilêncio esperançoso enquanto ovelho guerreiro o examinava.Finalmente, Cipião puxou umafolha de papel e a colocou naescrivaninha, diante dele.

— Este é o compromisso quetodos os oficiais cadetes têm deassinar antes de se alistar nasforças armadas de Hominum.

Uma vez que estiver assinado,você será oficialmente umsoldado estudante destaacademia, trabalhando sob aautoridade de Sua Majestade.Sua renda anual será de milxelins, descontados alojamento,refeições e custos de instrução.Está tudo aí escrito. Escreva seunome e saia já daqui. — Eleestendeu uma grande pena aFletcher, que rabiscou o nome nalinha pontilhada embaixo, com o

coração cheio de alegria.— Nada de sobrenome? —

indagou Cipião, espiando aassinatura.

— Eu nunca recebi um —murmurou Fletcher, um poucoenvergonhado.

— Bem, escreva alguma coisa.Oficiais são conhecidos pelossobrenomes, não pelo primeironome — afirmou Cipião,indicando o espaço vazio ao ladodo nome de Fletcher. O

sobrenome de Berdon era Wulf,então Fletcher o escreveu.

— Para o átrio, cadete Wulf.Seu padrinho de academia estádando a primeira aula, e você jáestá cinco minutos atrasado —disse Cipião, oferecendo-lhe umraro sorriso.

Quando Fletcher chegou aoátrio, o salão estava pontilhadocom fogosfátuos errantes, orbesque flutuavam pelo ar comovagalumes. Sob a brilhante luz

turquesa, ele viu os nobres rindoe criando uma bolinha atrás daoutra com os dedos, competindopara ver quem conseguia fazer amaior. Otelo, Genevieve e Roryeram os únicos plebeus ali,afastados dos nobres numsilêncio infeliz.

— Isso foi rápido. É tão fácilassim? — indagou Fletcher,observando enquanto Tarquincriava uma bola de luz dotamanho de um punho, para

grande espanto dos outrosnobres.

— Não, a gente nem viu comose faz ainda. Só que o fato deserem filhos de conjuradores fazcom que os nobres já saibamuma ou duas coisinhas —sussurrou Rory, com umaexpressão de desapontamento einveja.

Arcturo estava parado nomeio do aposento, observando osnobres com olhar impassível.

Estalou os dedos, e todos osorbes se apagaram, lançando osalão numa escuridão absoluta.O átrio se iluminou de novolentamente quando um pequenofogo-fátuo surgiu no dedo deArcturo. Delicados filamentosazuis brotavam das pontas dosdedos dele e pulsavam para a luz,se expandindo numa esfera dotamanho da cabeça de umhomem. Ele a soltou acima de si,onde ela flutuou, imóvel, como

se estivesse suspensa do teto. Osalão ficou imediatamentepreenchido por uma luz azulcalorosa.

— Não pedi que vocêsdemonstrassem; perguntei sealgum de vocês já era versado natécnica. Claramente, seus paisnobres já lhes ensinaram essetruque. Assim sendo, vocêspodem sair, se quiserem. Suastabelas de horários estarãoaguardando em suas camas.

Sugiro que as memorizem.Atrasos são inaceitáveis. —Arcturo lançou um olharsignificativo a Fletcher com essaspalavras.

— Eu sabia que esta aula iaser uma piada. Vamos, Penélope,deixe os amadores brincarem decorrer atrás — zombou Isadora.Outra menina nobre, comcabelos escuros e enormes olhoscastanho-claros, assentiu depoisde um momento de hesitação.

Isadora saiu altiva, seguida pelamenina, que lançou um olhar dedesculpas a Arcturo por sobre oombro.

Tarquin as seguiucalmamente, acompanhado pelosdois outros nobres: um meninogrande de cabeloscompletamente negros, com peletão escura quanto a de Serafim, eum rapaz mais magro comcabelos de um castanho mortiçoe rosto de anjinho. Quando

Tarquin passou, olhou para ouniforme esfarrapado e mal-ajustado de Fletcher e o rostocheio de hematomas. Franziu onariz de nojo e seguiu em frente.Fletcher estava bem-humoradodemais para se aborrecer comaquilo naquele momento.

— Deixem que partam —afirmou Arcturo, uma vez que osnobres estavam fora do alcancede sua voz. — Eles ainda nãoaprenderam a controlar os

movimentos de seus fogos-fátuos. Na próxima aula, eles queestarão brincando de correr atrás.Os princípios dos fogos seguemos mesmos princípios de todolançamento de magia.

Ele se virou para os plebeus elhes lançou um longo olhar deavaliação.

— A primeira lição é muitoimportante; vocês descobrirãoque todos têm capacidadesdiferentes de feitiçaria. Seus

demônios são a fonte de todo oseu mana, e espécie, experiênciae idade dele determinarãoquanto mana ele tem e quãorápido se recarrega.

Mana. Essa fora a palavra queSerafim tinha usado ontem.Fletcher deduziu que significavaalgum tipo de energia, usadapara alimentar feitiços. AgoraArcturo vinha na direção deles, ofogo-fátuo acima de sua cabeçase movendo no mesmo ritmo.

Sob o luzir etéreo, a cicatriz dooficial parecia mais aterrorizanteque nunca.

— Com licença, onde estãoSerafim e Atlas? — perguntouFletcher, entrando na frente deGenevieve e Rory para queArcturo finalmente o percebesse.

— Senhor — corrigiu oprofessor.

— Senhor — repetiu Fletcher,exasperado.

— Suspeito que tenham ido

recolher seus demônios. Já queeu decidi patrocinar você, masnão lhe dei um dos meusdemônios, o reitor decidiu queseria justo se eu fornecesse umdiabrete a um dos outrosplebeus. Eu o capturei ontem,numa operação de muito riscopara Sacarissa. Espero que vocêvalha o sacrifício — comentou elecom uma nota dearrependimento na voz, paradesencorajamento de Fletcher.

— Isso significa que era umdemônio poderoso, senhor? —sondou Rory enquanto Fletchersentia o desânimo crescer.

— Não necessariamente. Ele oserá com o tempo, mas era rarodemais para que eu o deixasseescapar. Um dos seus amigos terágrande sorte em recebê-lo.Nunca tinha visto um delesantes. Agora, chega deperguntas.

Sentem-se no chão e fechem

os olhos.Os alunos obedeceram, e os

passos de Arcturo ecoaramconforme ele andava às costas dogrupo.

— Deixem suas mentes seesvaziarem. Escutem apenas osom da minha voz.

Fletcher tentou acalmar obater empolgado de seu coração,prestando atenção nas palavrasde Arcturo. A voz do capitão eramelíflua, envolvendo-o como

uma brisa morna.— Estabeleça uma conexão

com seu demônio, sinta a ligaçãoentre vocês. Aja com delicadeza.Esta provavelmente será aprimeira vez que o alcançará.Não se preocupe se tiverdificuldade em achá-lo nocomeço; quanto mais praticar,mais fácil ficará.

Fletcher seguiu as instruções,buscando a outra consciência queparecia flutuar no limite da sua

mente. Sentiu a psique dodemônio e, ao tocá-la, Ignácio seremexeu, desconfortável, nopescoço dele. Aquele não era opulso de emoção que Fletchertinha lhe mandado antes, masalgo completamente diferente.

— Quando você o segurar,sentirá o mana do demônio fluir.Tome a energia e a focalize todapelo dedo indicador da sua mãodominante. Por enquanto, é sóisso que você precisa fazer.

Fletcher sentiu aquelasensação de clareza se espalharpelo seu corpo mais uma vez,ainda mais forte do que quandoele evocara o demônio nocemitério. Ela o trespassou,violenta como um furacão, e elepercebeu que seu corpo tremia.

— Pelo seu dedo, Fletcher!Você está tomando muito!Controle-se! — gritou Arcturo. Avoz dele soava muito distante.

Fletcher inspirou fundo e

exalou pelo nariz, erguendo odedo e canalizando a correntepara ele. Ao fazê-lo, o dedoformigou, passando-lhe umasensação tanto de calor ardentequanto de frio congelante, tudoao mesmo tempo. A escuridãodetrás das pálpebras se tornouum azul fraco.

— Abra os olhos, Fletcher —comandou Arcturo, colocando amão no ombro dele paraestabilizá-lo. O menino percebeu

que estava respirando forte e seacalmou, em seguida abriu osolhos com receio.

A ponta do dedo deleincandescia num azul tãobrilhante que quase chegava a serbranco. No momento em quemoveu o dedo, deixou um rastrode luz no ar, como a pós-imagemde uma brasa ardente brandidano escuro.

— Eu disse pelo seu dedo,Fletcher, não para ele —

exclamou Arcturo, mas havia umleve tom de orgulho em sua voz.

— Vou ficar bem? — indagouo garoto, horrorizado enquantotraçava um oito de luz no ar. Osoutros agora já tinham aberto osolhos, tendo obviamente levadomuito mais tempo que Fletcherpara canalizar o mana dos seusdemônios. Em vez de deixar queisso lhe subisse à cabeça, o rapazse relembrou de que passaraalguns dias a mais com seu

demônio do que eles.— Você conseguiu fazer algo

que só iriamos mencionar daquia várias aulas; a arte de entalhar.Observem com atenção.

Arcturo ergueu o própriodedo e a ponta brilhou, azul. Eledesenhou um estranho símbolotriangular, feito de linhasserrilhadas. Moveu o dedoaleatoriamente diante dosalunos, e o símbolo o seguiu,como se estivesse preso a uma

moldura invisível. Assim quecomeçou a sumir, Arcturodisparou filamentos de fogo-fátuo pelo espaço entre o dedo eo símbolo. Porém, quando os fiospassaram pelas marcas, umatorrente de filetesfantasmagóricos e opacosemergiram, formando um escudocircular diante dele, que Fletcherreconheceu como o mesmo quesalvara sua vida meros dois diasantes nas ruas de Corcillum.

— Quando usamos mana semum símbolo, ele se torna nadaalém de fogo-fátuo, tambémconhecido como mana cru. Masquando você entalha um símboloe canaliza seu mana por ele, osaspectos mais úteis da caixa deferramentas do mago de batalhase tornam disponíveis. Não éfácil; leva tempo e prática para secriar um escudo como o meu, emvez de uma massa disforme. Atémesmo o ato de formar uma bola

de fogo-fátuo exigirá algumtempo até que vocês o dominem.

O dedo de Fletcher se apagoude volta ao cor-de-rosa, e ele oabraçou contra o peito. Ignácioronronou e saltou para o chão. Odemônio lambeu o dedo dodono com uma língua triangularque era surpreendentementemacia, aliviando o formigamentoestranho na ponta do dedo.

— Então, o que nósperdemos? — A voz alegre de

Serafim soou atrás delesFletcher se virou e viu

Serafim, Atlas e a capitã Lovettsaindo do salão de conjuração.Acompanhados por seusdemônios.

Serafim sorria como umlouco, em total felicidade. Seudemônio caminhava ao seu lado,com um passo desajeitado e umtamanho que fizeram Fletcherpensar num texugosupercrescido. Porém, era ali que

as semelhanças terminavam. Acriatura era coberta de uma peleáspera que parecia casca deárvore, com uma camada debolor salpicada em cima. Umacrista espessa de espinhos corriapela coluna dorsal, cada um comuns três centímetros decomprimento e afiados comouma faca de cirurgião. LembravaFletcher de um arbusto de tojo,espetos verdes brutais queperfuravam a pele com

facilidade.— O que que é isso!? —

exclamou Rory maravilhadoenquanto o demônio corria àfrente dos outros e farejava asbotas de Arcturo, a quemreconhecia. O focinho curto depug se abriu para revelar umaboca estranha, cheia de placas.Fletcher notou os restosmastigados de folhas lá dentro,logo engolidos com a ajuda deuma língua marrom coriácea.

— É um Cascanho —respondeu Arcturo. — Sãomestres da camuflagem, por issoé tão raro encontrar um deles.Você terá dificuldades emalimentá-lo; eles precisam comerpelo menos meio quilo de folhastodos os dias. Mas tenho certezade que o major Goodwin vaiensinar tudo isso a você nas aulasde demonologia.

Arcturo olhou o demôniocom emoções ambivalentes,

então acariciou-lhe a cabeça comalguma relutância. Serafimalcançou os dois e deu umsorriso de gratidão ao professor.

— Eu teria realmente amadoficar com ele para mim e capturaroutro demônio para você,Serafim, mas o bicho ardilosodeixou Sacarissa cheia deespinhos quando ela seaproximou. Ela ficou feridademais para fazer uma segundajornada pelo éter. A pobre garota

quase não conseguiu segurá-lodepois que o arrastou pelo portal.Mal tive tempo para executar oritual de arreamento. É tardedemais para capturar outroagora. Desejo-lhe tudo de bomao seu lado.

— Muitíssimo obrigado,senhor! — exclamou Serafim,agarrando o demônio numabraço e fazendo uma careta como peso. — O senhor não faz ideiado quanto isso significa para

mim. Vou chamá-lo de Farpa.Atlas tinha ficado para trás,

com um sorriso estampado norosto. Seu demônio era dotamanho de um cachorro grande,com pelo grosso e eriçado, e doisincisivos afiados que sesalientavam à frente da boca.Parecia uma enorme lontradentuça, exceto por uma caudade rato com uma bola espinhentana ponta, no formato de umamaça-estrela. A criatura era

incrivelmente ágil, praticamentefluindo pelo chão enquantocirculava os pés de Atlas.

— O meu é um Lutra.Chamei ele de Barba, por causado pelo!

— Barba — repetiu Arcturo.— Talvez seja melhor pensar umpouco mais sobre isso. Não éum... nome tradicional parademônios. Por que não Bárbaro?Conheço pelo menos mais umque atende a esse nome.

— Perfeito! — concordouAtlas, agarrando o bicho nosbraços.

A capitã Lovett tinha voltadopara a sala de conjuração, masnão antes que Fletcher espiasseum relance de penas castanhasenquanto a porta se fechava. Eleimaginou o que poderia ser.Aparentemente, havia maisespécies de demônios disponíveisaos evocadores de Hominum doque ele tinha pensado.

Quando Arcturo pegou fôlegopara continuar a lição, Fletcherlevantou a mão. Havia uma coisaque ele precisava saber.

— Onde está Sacarissa agora,senhor? E onde estão osdemônios dos nobres? Estãotodos sentados nos quartos,esperando pelos donos? —perguntou Fletcher, suacuriosidade tendo finalmentealcançado o ponto de ebulição.

— Você sabe o que é infusão?

— inquiriu Arcturo, fitando-oatentamente. Fletcher fez quenão com a cabeça.

— Infusão é quando umconjurador absorve um demôniopara dentro de si, permitindoque a criatura descanse e se cure.O conjurador ainda pode secomunicar com o demônio, atémesmo usar mana, mas o sercontinua dentro dele, fora docaminho. Quando as lanças dosorcs chovem ao seu redor, a

infusão é a melhor defesa para oseu demônio. Você aprenderá oprocedimento na aula com acapitã Lovett amanhã. Eu meespecializo em feitiçaria, entãonão cabe a mim ensinar ainfusão. Esta resposta lhe basta?

— Sim, senhor. Muitoobrigado.

Enquanto Arcturo se virava ecomeçava a entalhar outrosímbolo no ar, Fletcher levou amão ao ombro e acariciou

Ignácio. Podia sentir a carne e osossos sob as pontas dos dedos.Infusão. Ele só ia acreditarquando visse.

25

O grupo estava animado aodeixar a aula, todos risonhos esorridentes enquanto subiam asescadas. Fletcher, Otelo eSerafim haviam sido os únicos aconseguir criar fogos-fátuos;pequenos mas funcionais, que

flutuavam junto aos seus ombros.Os outros tinham conseguidoprojetar um filamento de luzazul, mas foram incapazes deencontrar o foco para formar abola. Apesar disso, o primeirogostinho de feitiçaria tinha lhesdeixado eufóricos, e Rory eGenevieve não eram do tipo quesentia inveja dos amigos. Atémesmo Atlas esfregava a cabeçade Bárbaro com um imensosorriso estampado no rosto.

— Vou praticar controle defogo-fátuo no meu quarto —anunciou Serafim, quando eleschegaram ao alojamento. —Consegui empurrar a luz de umlado para o outro, mas jamaisvou conseguir fazer ela ficarparada como Arcturo fez!

Ele desapareceu no corredordos meninos, com Farpa logoatrás. Não havia sinal de Sylva,desaparecida mais uma vez.Fletcher não sabia bem por que

ela tinha recebido permissão parafaltar à primeira aula, mas estavaansioso para fazer as pazes.

— Será que a gente devia teresperado? — indagou Rory numtom melancólico, contemplandoMalaqui sob um novo ponto devista.

— Eu amo Azura do fundo domeu coração, mas não possodeixar de pensar que vamos ficarem desvantagem daqui para afrente. Se Arcturo acha difícil

capturar um novo demônio, queesperanças podemos ter? —resmungou Genevieve emconcordância. Fletcher nãoconseguiu pensar em nada quepudesse animar os amigos,porém foi o geralmente sombrioOtelo quem falou em seguida:

— Vocês podem nãoconseguir capturar um demôniotão poderoso quanto umCascanho ainda, mas talvezpossam capturar outro Caruncho.

Vivendo tão perto das linhas defrente, a gente escuta algumascoisas sobre os diferentes tipos demagos de batalha. Alguns têmum só demônio poderoso que édifícil de controlar, enquantooutros têm muitos diabretesmenores, como os xamãs orcsfazem. Vocês não prefeririammandar um enxame deCarunchos contra seus inimigos?Talvez até consiga enviar váriosdeles ao éter e aproveitar sua

força combinada para trazer umdemônio mais poderoso de volta— sugeriu Otelo, coçando oqueixo.

— Ei, é mesmo — concordouRory, com um enorme sorriso norosto. — Imaginem só milMalaquinhos. Isso seria omáximo!

Serafim voltou ao salão,brandindo uma folha de papelnuma das mãos e um pequenosaco de pano na outra.

— Olhem só isso! — disse ele,colocando o que descobriram seruma tabela de horários na frentedeles. — Só três dias por semanacom horário integral de aulas,com um treino opcional decombate no porão no quarto dia.O resto é estudo livre! Podemosfazer o que quisermos nessetempo.

Rory riu e deu um tapa namesa, fazendo Malaqui e Azurasaírem voando com zumbidos

repreensivos.— Ooops! — exclamou Rory,

estendendo a palma para que oinseto aborrecido pousasse, e lhedando um beijo de leve nacarapaça verde.

— E isso não é tudo! Eles nospagaram o que resta do nossoprimeiro mês de salário. Quemprecisa de universidade quandovocê pode se alistar no exército eser pago para estudar? —continuou Serafim, balançando a

bolsa, que tilintou. — Temsessenta xelins aqui.

— Acho que merecemos umavisita a Corcillum! — exclamouGenevieve, cujo rosto seiluminou com um sorrisobrilhante. — Isso é mais do que aminha mãe ganhava num mês, eela trabalhava o dia inteiro.Vamos depois do almoço.

— Eu certamente preciso deuma visita a um alfaiate —concordou Fletcher, mexendo na

gola esfarrapada da camisa.— Minha família deve estar

preocupada comigo. Eu adorariater uma chance de contar paraeles que tenho... alguns amigosaqui. — Otelo puxou a barbatimidamente.

— Está combinado, então.Quem foi que disse que nãoteríamos dinheiro para ir aCorcillum? Provavelmente vainos custar os olhos da carachegar lá, mas valerá a pena —

comentou Serafim, correndo devolta para seu quarto.

Passos ecoaram nas escadasatrás deles, seguidos do som devozes.

— Quem poderia ser? —perguntou-se Fletcher em vozalta.

— Então, veja só... eles melargaram aqui com os plebeus,quando o meu sangue é tão puroquanto o seu. É uma completadesgraça! Tenho certeza de que,

se você falar com o reitor emmeu nome, eu poderei memudar para a mesma ala quevocê. — Era Sylva, seguida porIsadora e a outra garota nobre.

— Ugh, este lugar é menorque o meu banheiro — fungou amenina loira, franzindo o narizperfeito como se sentisse algumfedor no aposento.

— Eu sei! Você deveria vermeu quarto. Deixe-me mostrá-lo— disse Sylva, tentando arrastar

a outra ao alojamento dasmeninas. Isadora parou e avaliouo grupo, estreitando os olhosquando passaram por Otelo.

— Espere um instante — disseela, batendo um pé delicado. —Chegou a hora de dizer a essesplebeus como serão as coisas esteano.

Isadora caminhou ao redor dogrupo como se fosse um leão damontanha espreitando a presa.Ela exalava uma confiança

natural que colocava Fletcher nadefensiva.

— Eis o que vai acontecer.Vocês plebeus vão manter ascabeças baixas e não vão criarnenhum problema para osnobres. Quando o torneio desteano começar, vão todos desistirna primeira rodada e deixar queseus superiores assumam seuslugares de direito. Afinal decontas, são os nossos impostosque sustentam o exército do rei,

e também pagamos pelos nossospróprios batalhões de nobres. Éapenas justo que lideremos ossoldados pagos por nossasfamílias. Vocês não têm direitonem chance de se tornaremoficiais seniores. Simplesmentenão receberam a criação correta.Então fiquem fora do nossocaminho e talvez nóspermitiremos que um de vocêssirva como nosso tenente. Quetal?

Ela sorriu docemente quandoterminou, como se tivesseacabado de elogiá-los. Fletcherfoi o primeiro a falar:

— Parece que vocês estão commedo da competição — afirmou,se espreguiçando comindiferença exagerada. Os outrospermaneceram calados,imaginando o que a menina fariaem seguida. Isadora fez umbiquinho, como uma criançamimada; um contraste estranho

com a diabinha confiante demeros instantes atrás.

— Ser raro não é equivalentea ser poderoso. Lembre-se disso,Fletcher — sussurrou no ouvidodele.

Quando ela se endireitou,Serafim voltou ao salão e sorriuao ver as meninas.

— Legal, ninguém me avisouque tínhamos visitas. Bem-vindasao nosso humilde lar! Ainda nãofomos apresentados. Eu sou

Serafim.Isadora lhe lançou um olhar

de puro desprezo, então saiu pelaescadaria, ignorando Sylva, queestava a meio caminho doquarto. A elfa olhou com raivapara Fletcher, como se fosseculpa dele, e saiu correndo atrásda nobre. A morena ficouindecisa na entrada, mordendo olábio para Serafim, cujo rosto erauma imagem de incredulidade.

— Lamento por isso — disse

ela numa voz quase inaudível.— Vamos, Penélope! — gritou

Isadora, de baixo. A menina sevirou e partiu, com a nucavermelha de vergonha.

— Prazer em conhecê-las! —exclamou Rory enquanto eladesaparecia.

— O que diabos foi isso? —perguntou Serafim, se largandonuma cadeira.

— Ela estava nos avaliando,querendo ver se éramos

molengas. Acho que se enganou— explicou Otelo, cerrando ospunhos de raiva.

— E o que Sylva está fazendo,se insinuando para os nobres? —indagou Genevieve, igualmenteaflita.

— Acho que, como filha deum chefe de clã, ela se consideranobre também — sugeriuFletcher, cujo pedido dedesculpas ainda sendo formuladotinha desaparecido

completamente dospensamentos.

Por mais que Isadora eTarquin parecessem ser a fontede toda arrogância dos nobres,pelo menos até onde Fletcherpodia ver, o fato de Sylva teramarrado o boi na carroça delesnão a colocou na sua lista deamigos.

— Vamos lá, juntem suascoisas; vamos pular o almoço e irpara Corcillum agora — chamou

Fletcher.— Ótima ideia. Acho que

perdi o apetite — concordouOtelo, balançando a cabeça eparecendo desapontado.

26

Uma carruagem até Corcillumteria custado extorsivos seisxelins por pessoa, mas Otelosabia de uma cidade um poucomais adiante na estrada principalonde o transporte poderia sairmais barato. Depois de meia hora

de caminhada e mais dezminutos de negociação, o grupoembarcou na caçamba de umacarroça puxada a cavalo por umxelim cada. Eles compraram umacesta de maçãs por mais umxelim e a devoraram, curtindo odoce azedume das frutas. Nem achuva que desabava sobre elesconseguiu desanimar os calouros,que riam e tentavam pegarpingos de água com a boca. OLutra de Atlas foi quem mais

curtiu a chuva, latindo e rolandonas tábuas molhadas da carroça.

Foram deixados na estradaprincipal da cidade, lotada decomerciantes e clientes, apesardo temporal. Conforme o grupose aglomerava numa esquina, aspessoas olhavam seus demônios euniformes, algumas sorrindo eacenando, outras passandoapressadas com medo no olhar.

— Quero ir à perfumaria —anunciou Genevieve, ao ver duas

meninas passando comsombrinhas cor-de-rosa. Elasexalavam uma fragrância exóticaque fez Fletcher lembrar dasmontanhas. Seu estômago serevirou quando ele percebeuquão pouco tinha pensado emBerdon nos últimos dias.Precisava entrar em contato como pai para lhe informar queestava tudo bem.

— Eu preciso resolver algumascoisas, mandar algumas

mensagens, coisas assim. Otelo,você sabe de alguém que possafazer uma bainha para a minhaespada? — perguntou Fletcher.

— Claro... desde que você nãose incomode em passar pela casada minha família no caminho —respondeu o anão, puxando abarba de empolgação.

— Por que não? Ainda nãovisitei o bairro dos anões. Temalfaiates lá também? —indagouFletcher.

— Os melhores de Hominum— respondeu o outro, comfirmeza.

— Bem, alguém tem que vircomigo à perfumaria. Não possoir sozinha — choramingouGenevieve quando mais jovensdamas passaram. Os olhos deSerafim se iluminaram ao vê-las,e ele se ofereceu sem hesitação.

— Eu vou. Talvez haja algumaágua-de-colônia que me ajude aderreter o coração frio de Isadora

— comentou ele com umapiscadela.

— Rory, você vem conosco ouvai com eles? — perguntouFletcher.

— Acho que vou comGenevieve. Seria interessante vero que eles fazem com todas asflores. Minha mãe colhe flores damontanha e as vende aosmercadores de perfumes —explicou Rory enquanto espiavade canto de olho as meninas

bonitas que passavam. Fletchertinha certeza de que a motivaçãode Rory era baseada em algomais que a arte da perfumaria,mas não o culpava. Fora apenasdois dias antes que ele tinha semaravilhado com a beleza dasjovens de Corcillum e seus rostospintados. Atlas já tinhacomeçado a perambular ruaabaixo, mas Fletcher presumiaque o colega não iria querervisitar o Bairro dos Anões com

eles, considerando suaanimosidade para com Otelo.

— Nós nos encontramos aquiem cerca de duas horas. Temcarroças de sobra a caminho dalinha de frente por aquelaestrada, então podem ir emborase o outro grupo se atrasar —explicou Otelo.

Eles se separaram eapressaram o passo conforme achuva torrencial se intensificava,abrigando-se sob os toldos das

lojas e se mantendo próximos dasparedes. Ignácio ronronava nocalor seco sob o capuz deFletcher enquanto Salomãoseguia alguns metros atrás,lutando para acompanhá-los comsuas pernas atarracadas. O anãotomara a precaução de trazeruma jaqueta com capuz, mas opobre Salomão parecia miserável,todo molhado.

— Então, o que mais vocêprecisa fazer além de visitar um

alfaiate e um ferreiro? Ouvialguma coisa sobre mandar umacarta? — perguntou Otelo,olhando por sobre o ombro parase assegurar de que Salomãoainda estava à vista. Enquanto oanão escolhia o caminho porentre os muitos becos estreitos,Fletcher se tocou de que ele seriao guia perfeito para ajudar omenino a aproveitar sua visita aCorcillum ao máximo.

— Sim, preciso mandar uma

carta à frente élfica — contouFletcher. Seria melhor nãomandar nada diretamente aBerdon para o caso de Caspar eDidric interceptarem acomunicação. Talvez, se ele aenviasse a Rotherham, então osoldado poderia passar amensagem em segredo.

— Bem, se é esse o caso,então é melhor mandar daCidadela. Os mensageirosmilitares passam por lá toda

hora. Quanto ao ferreiro,acredite em mim quando lhedigo que é o melhor. Ele criouisto para mim.

Otelo parou e abriu a bolsa decouro que levava no ombro,puxando uma machadinha dedentro. O cabo era feito demadeira negra, endurecida pelofogo e minunciosamenteesculpida para se encaixar nocontorno da mão do proprietário.A cabeça do machado era fina

mas devastadoramente afiada,com uma lâmina bem amoladana parte de trás, que resultarianum contragolpe fatal.

— Esta é uma machadinhaenânica. Todos os anões recebemuma no seu décimo quintoaniversário, para se proteger emsua vida adulta. Foi decretadopelo primeiro dos nossos anciãossantos que todos os anõesadultos teriam de portar umadestas o tempo todo, desde que

nossa perseguição começou, hádois mil anos. Até mesmo as anãspossuem uma mara, umapulseira cheia de pontas quelevam o tempo todo no pulso. Éconsiderado parte da nossatradição, cultura e religião. Agoravocê entende a estima que tenhopela habilidade do ferreiro.

Os olhos de Fletcher searregalaram quando ele viu abela arma.

— Posso segurar? —

perguntou, ansioso paraexperimentar a arma.

Talvez ele pudesse colocar omesmo cabo entalhado no seukhopesh.

Subitamente, soou um apitoagudo e o som de pés correndo.Dois Pinkertons vinham emdisparada até eles, com cassetetesem riste e pistolas apontadas parao rosto de Otelo.

— Solte isso! Agora!O primeiro Pinkerton segurou

o anão pela garganta, ergueu-odo chão e o empurrou contrauma parede de tijolos. O homemera um brutamontes, com umabarba negra eriçada que cobriaum rosto feio e esburacado. Amachadinha de Otelo caiu nochão enquanto ele lutava pararespirar contra os dedos enormesque apertavam sua traqueia.

— A gente já não falou quevocês anões não podem portararmas em público? Por que vocês

não conseguem enfiar isso nessassuas cabeças duras? Só humanosdispõem desse privilégio! —exclamou o segundo Pinkertonnuma vozinha aguda. Era umhomem alto e magro com umbigodinho fino e cabelos loirosensebados.

— Soltem ele! — gritouFletcher, recuperando a voz. Orapaz avançou ao mesmo tempoque Ignácio saltou para o chão,sibilando violentamente. O

demônio soprou uma rajada dechamas em advertência.

— Solte-o, Turner —comandou o Pinkerton magro,percebendo o perigo e arrastandoo cassetete pela parede.

— Tudo bem, sargentoMurphy. Vamos nos divertirmais com ele nas celas, mesmo —grunhiu o grandalhão, soltandoOtelo, que caiu, ofegante, nosparalelepípedos da rua. Ohomem acertou um pontapé

violento no flanco do anão,fazendo-o gritar de dor. Comisso, um rugido sobrenaturalsoou detrás de Fletcher.

— Não! — arfou Otelo,erguendo a mão quando seuGolem avançou e detendo-o apoucos metros de Turner. —Não, Salomão, está tudo certo.

O anão se levantou comdificuldade, apoiando-se nasparedes enquanto cambaleavaatrás de Fletcher.

— Está tudo bem? —perguntou o rapaz. O Golemcorreu até o mestre, ribombandode preocupação.

— Estou bem. Eles já mefizeram coisa pior antes —grasnou o anão, dando tapinhasamistosos na cabeça do Golem.

Fletcher girou e fez umacareta para os Pinkertons,levando a mão lentamente até okhopesh. Murphy avançou ecutucou-lhe no peito.

— Quanto a você, pode tiraressa cara de mau do rosto —grunhiu o sargento, erguendo oqueixo de Fletcher com ocassetete. — Por que você estádefendendo um anão, afinal? Émelhor tomar mais cuidado comessas suas amizades.

— Eu acho que você deveriaestar mais preocupado com o fatode ter tentado prender um oficialdo exército do rei por portar umaarma! Ou você espera que ele

enfrente os orcs de mãos vazias?— retrucou Fletcher com umaconfiança que não sentia. Turnerbrandia o cassetete de um lado aoutro.

— Quem é você para me dizero que eu posso ou não possofazer? — inquiriu Murphy,apontando a pistola para o rostode Fletcher. Não havia nada queIgnácio pudesse fazer contra umabala. Fletcher considerou suaschances de sucesso ao lançar um

feitiço de escudo pela primeiravez, e desistiu da ideia. Melhorlevar uma surra do que arriscar amorte. O menino praguejou emvoz baixa; aquela era a segundavez que se encontravaencurralado nas ruas deCorcillum com uma pistola norosto.

— O que você acabou dedizer? Acho que ele xingou osenhor, sargento Murphy —rosnou Turner, erguendo a

própria pistola.— Nada! Eu estava só

praguejando pela minha sorte —gaguejou Fletcher. Os dois canoseram como um par de olhos deserpente, pronta para atacar.

— Vocês não fazem ideia dequem estão provocando —grunhiu Otelo, endireitando-secom um estremecer. — Melhorvocês baixarem essas pistolas ecaírem fora daqui agora.

— Já chega, Otelo! — sibilou

Fletcher. O anão devia terenlouquecido! Era fácil para eleser arrogante quando não era elequem encarava os canos de duaspistolas!

— Esperem só até ele contarao pai sobre vocês. Lorde Forsythficará muito aborrecido ao saberque uns Pinkertons pés-rapadosapontaram as armas para seufilho Tarquin — continuouOtelo, desabotoando a jaquetapara mostrar o uniforme por

baixo. Fletcher tentou nãoparecer surpreso demais, mas pordentro estava horrorizado com oblefe arriscado do anão. Dequalquer maneira, era tardedemais. Então Fletcher percebeuum sinal de hesitação no rosto deMurphy.

— Obviamente, vocês estãocientes dos batalhões enânicossendo formados na frente élfica.Se os Forsyth tiverem queincorporar um deles em nossas

forças, queremos ter os melhoresoficiais anões disponíveis —declarou Fletcher com confiançana voz, afastando a pistola deTurner do seu rosto. — E agoraencontro vocês atacando nossomais novo oficial na rua porqueele está carregando uma armaque lhe foi dada pelo próprioZacarias Forsyth? Quais são seusnomes? Murphy? Turner?

A pistola de Murphy vacilou,em seguida sendo apontada ao

chão.— Você não fala como um

nobre — acusou Murphy,focalizando o olhar na bainhaesfarrapada das calças douniforme de Fletcher. — Nem seveste como um deles.

— Seu uniforme tambémficaria assim se você estivesselutando nas linhas de frente.Quanto à minha voz, se vocêtivesse crescido em meio aossoldados rasos, sua linguagem

também seria áspera como aminha. Não podemos todos serrapazes almofadinhas comovocês. — Fletcher estava pegandoo jeito da coisa agora, mas Oteloo cutucou nas costas. O rapaz secontrolou, preocupado em terido longe demais. — Agora, sevocês me dão licença, vou seguirmeu caminho. Ignácio, venha! —chamou, afastando-se a passoslargos rua abaixo. Ele não olhoupara trás, mas ouviu o clique da

pederneira sendo engatilhada.— Continue andando —

sussurrou Otelo atrás dele. —Eles estão nos testando.

Fletcher seguiu adiante, acada segundo imaginando umabala irrompendo do seu peito.Assim que eles viraram aesquina, saíram correndo pelarua, e desta vez Salomão malconseguiu acompanhá-los com asperninhas curtas.

— Você é um gênio — ofegou

Fletcher quando eles estavam auma distância segura.

— Não me agradeça ainda.Na próxima vez em que teencontrarem, provavelmente vãote dar uma surra. Não vãoconseguir me reconhecer, todosos anões são iguais para eles. Jáfui preso duas vezes por esse pare eles nem me reconheceram —resfolegou Otelo, agarrando oflanco ferido.

— Mas acho que eles podem

ter me quebrado uma costela.— Aqueles monstros sádicos!

Temos que levar você a ummédico. Não se preocupecomigo. Eu tinha o capuzlevantado, e estava escuro. Desdeque eles não vejam Ignácio eSalomão da próxima vez que nosencontrarmos, vai ficar tudobem. Precisamos aprender ainfundir nossos demônios o maisrápido possível. E feitiços deescudo também, por falar nisso

— afirmou Fletcher.— Tem toda razão. Bem,

vamos lá. O Bairro Anão não ficalonge daqui. Minha mãe deveconseguir fazer um curativo nomeu torso — disse Otelo.Salomão soltou um grunhidogutural quando eles partiramnovamente. Claramente, nãoestava acostumado com tantoexercício. — Vou ter que botarvocê em forma — ralhou Otelo,pausando para fazer cafuné na

cabeça rochosa do Golem.Eles continuaram andando,

por ruas que ficavam cada vezmais estreitas e mais sujas. Eraóbvio que os limpadores não sedavam mais ao trabalho depassar por ali, não com o BairroAnão tão perto. Os anões devemter recebido a pior parte dacidade para viver.

— Por que você foi presoantes? — indagou Fletcher,evitando pisar num mendigo que

dormia no meio da rua.— Meu pai se recusou a pagar

o dinheiro de proteção que osPinkertons lhe cobraram. Todosos negócios de anões sãoextorquidos pelos policiais, masesses dois são os piores. Eles mejogaram nas celas nas duas vezes,até o meu pai pagar.

— Isso é loucura! Como é queeles se safam com isso? —perguntou Fletcher. Otelocontinuou andando em silêncio e

o rapaz se arrependeu do quedisse. Que pergunta idiota. — Oque o seu pai faz? Ele é ferreiro?Meu pai era um ferreiro —contou, tentando romper osilêncio constrangedor que tinhacriado.

— Meu pai é um dos artíficesque desenvolveram o mosquete— afirmou

Otelo, orgulhoso. — Agoraque guardamos o segredo da suacriação, os Pinkertons pararam

de aborrecer os ferreiros anões.Não posso dizer o mesmo detodos os negócios enânicos,porém. A criação dos mosquetesfoi o primeiro passo na longajornada pela igualdade. Nossaentrada para o exército é osegundo. Vou terminar o que omeu pai começou.

— Você deve ser o primeirooficial anão em Hominum,mesmo que por enquanto seja sóum cadete. Isso é motivo de

muito orgulho — afirmouFletcher.

Ele acreditava em cadapalavra; quanto mais aprendiasobre os anões, mais osrespeitava. Ele se empenhariapara emular sua determinaçãoem melhorar a própria situação.

Otelo parou e apontouadiante.

— Bem-vindo ao BairroAnão.

27

Os prédios altos desaparecerampara revelar fileiras e mais fileirasde barracas brancas, lindamentebordadas com formascaleidoscópicas em vermelho eazul. Grama verde primaverilsubstituía os paralelepípedos, e

cada pavilhão era cercado dejardins carinhosamentemantidos. As flores de coresvívidas emanavam perfumesdoces no ar, lembrando Fletcherdos verões da sua juventude nasmontanhas. Liberado dos prédiosesquálidos, o sol de invernolançava uma luz pálida, masquente, no rosto do rapaz.

— É lindo — comentou ele,maravilhado pela súbitatransformação. Fletcher tinha

esperado que o Bairro Anão fosseum lugar paupérrimo emiserável, considerando o níveldas construções que o cercavam.Otelo sorriu com essas palavras eseguiu mancando, acenando paraos anões próximos sentados pelosjardins, conversando.

— Eis o meu lar — disseOtelo, apontando uma barracapróxima. — Minha família inteiramora ali.

— E quantos vocês são? —

indagou Fletcher, tentando nãose incomodar com os olhares querecebia dos outros anões aopassar.

— Ah, tem pelo menos unstrinta de nós em cada barraca,mas a nossa contém a oficina domeu pai, então somos só vinte.Ele precisa do espaço.

Fletcher tentou entendercomo um grande pavilhão depano poderia conter vintepessoas e uma oficina. Cada um

deles era do tamanho de umgrande celeiro mas, a menos queeles dormissem em beliches, nãohavia como isso ser verdade.

— Baixe o capuz e tire ossapatos antes de entrar. Na nossacultura, isso é educado —instruiu Otelo.

Fletcher ajudou o amigo atirar as botas; o pobre anão tinhacomeçado a empalidecer porconta da dor do ferimento, eabaixar-se era difícil para ele.

Enquanto o rapaz humano,ajoelhado, lutava com os nósgrossos dos cadarços do anão,uma silhueta baixa com robesesvoaçantes correu até eles,gritando em choque. Seu rostoera obscurecido por um véu cor-de-rosa preso por uma delicadacorrente de prata.

— Otelo, o que aconteceu? —uivou a silhueta numa vozaguda.

— Estou bem, Thaissa. Eu só

preciso entrar. É melhor nãodeixar que os outros me vejamferido, ou vão achar que estousendo maltratado em Vocans, oque não é o caso.

Thaissa abriu a aba da tenda eos colocou para dentro.Estranhamente, não era oaposento espremido que Fletchertinha esperado. Em vez disso, opiso era decorado com tapetes ealmofadas. No centro, um grossocano de metal se estendia até o

topo da barraca, como umachaminé. Fletcher finalmenteentendeu tudo ao ver a escadaem espiral que circundava ocano, descendo terra adentro.Eles viviam no subterrâneo!

Thaissa, que só poderia ser airmã de Otelo, continuou a fazerum rebuliço ao redor do anão,empilhando almofadas no chãopara que ele se reclinasse.

— Vocês têm um belo lar —comentou Fletcher enquanto

outra figura subia as escadas. Elecaptou um relance de um rostocom bochechas rosadas e olhosverdes brilhantes antes que a anãsoltasse um berro e puxasse umvéu sobre o rosto.

— Otelo! — gritou ela. —Como você pôde trazer visitassem nos avisar?

Ele viu meu rosto!— Está tudo bem, mãe; não

acho que humanos contam. Ele émeu amigo e eu peço que o

tratem como tal. — Otelodesabou para o chão e agarrou oflanco.

— Você está ferido! —exclamou ela, correndo até ofilho.

— Por favor, pegue asataduras. O policial Turner e osargento Murphy me atacaramde novo. Desta vez, acho quepodem ter me quebrado umacostela. Preciso que você passebandagens pelo meu tórax.

Ele falava entrecortadamente,como se respirar fosse doloroso,enquanto tirava a jaqueta e aparte de cima do uniforme. Seuslargos ombros e peitoral eramcobertos com uma grossapenugem ruiva encaracolada,que também descia até a metadedas costas. A pele dos ombrosestava coberta com uma malhade cicatrizes, mais umademonstração da brutalidade dosPinkertons. Fletcher estremeceu

ao vê-las.A mãe de Otelo desceu as

escadas correndo enquantoThaissa enxugava a testa doirmão com a manga da roupa.Ela logo voltou com um rolo delinho e começou a enrolá-lo comforça ao redor do peito do filho.Otelo se encolhia com cada volta,mas aguentou estoicamente.Fletcher já podia ver umhematoma negro crescendo notórax do amigo.

— Otelo, o que você estáfazendo aqui de volta tão cedo?Alguém me contou que tinha lhevisto na cidade — disse uma vozatrás deles.

— Estou só sendoremendado, Átila — respondeuOtelo. — Os Pinkertons bateramum papo comigo de novo. Sorteque Fletcher estava lá para meajudar.

Havia outro anão parado naentrada. Ele era extremamente

parecido com Otelo; quaseidêntico, na verdade. Lançou umolhar de puro ódio a Fletcher eajudou Otelo a se levantar.

— Os humanos nunca vãonos aceitar. Deveríamosabandonar esta cidade maldita ecriar nossos própriosassentamentos, longe daqui.Olhe só o que aconteceu comvocê depois que fraternizou comesse humano — ralhou Átila. —Vá embora daqui, humano, antes

que eu faça o mesmo a você.Como se Ignácio pudesse

entender as palavras, ele saltoupara o chão e sibilou, deixandouma fina coluna de fumaça sairdas narinas.

— Chega! Estou farto da suaretórica anti-humana! — gritouOtelo. — Não vou permitir queinsulte meu amigo no meupróprio lar. É você quem tem queir embora! — Ele tossiu de dorcom a explosão de raiva e se

apoiou em Fletcher.Átila lançou mais um olhar

furioso ao rapaz e então partiu dabarraca, resmungando em vozbaixa.

— Você vai ter que desculparmeu irmão gêmeo. Ele tambémpassou no teste, mas seu ódiopelo seu povo, Fletcher, significaque ele jamais lutará porHominum, nem mesmo comoum mago de batalha. Nós doisdesejamos a libertação dos anões,

mas é aí que termina nossaconcordância — explicou Otelo,infeliz. — Eu me preocupo comele, com o que é capaz de fazer.Mal posso lembrar quantas vezesme entreguei quando elesemitiam um mandado de prisãono seu nome, e sofri as puniçõesdele. Se tivessem tentadoprendê-lo, ele poderia terresistido e lutado de volta, eentão o matariam. O que mais eupoderia fazer além de ir em seu

lugar?— Está tudo bem. Como eu

poderia culpar seu irmão por sesentir assim depois do que vihoje? Espero que eu tenha umachance de mudar a opinião deleum dia. Não somos todos tãoruins.

— Sim, sim, você até que nãoé tão mau — admitiu Otelo comum sorriso. — Estamos tentandomanter Átila longe de encrencas,trabalhando com meu pai na

oficina. Acho que é melhor levarvocê lá logo. Meu pai vai daruma olhada em sua espada. É omelhor ferreiro em todaHominum.

— O inventor dos mosquetese pistolas? Não duvido —comentou Fletcher, em seguidase lembrando das boas maneiras.— Eu ficaria honrado se mepermitissem visitar seu lar —disse às duas anãs, curvando acabeça.

O véu da mãe de Oteloescondeu sua expressão, mas elaassentiu depois de algunsinstantes.

— Confio no julgamento domeu menino, e fico feliz que eletenha encontrado um amigo emVocans. Temíamos que elepudesse ser infeliz por lá. Meunome é Briss, é um prazerconhecê-lo.

— Ele tem muitos amigos, sousó um deles — explicou Fletcher,

dando tapinhas amistosos nascostas de Otelo. — Estouhonrado em conhecê-la, Briss, evocê também, Thaissa.

— Devemos parecer muitoestranhas para você, com nossosvéus — comentou Thaissa, comvoz tímida e hesitante. — Não écomum que anãs encontremhumanos. Ora, muitos aindapensam que as anãs têm barbas esão idênticas aos anões!

Ela riu, e até mesmo Briss

soltou uma risadinha leve emelódica.

— Tenho que admitir, estavame perguntando por que vocêsos vestem.

Seria rude da minha parteperguntar? — inquiriu Fletcher.

— De forma alguma. Nós osusamos para que os anões secasem por amor, e não porluxúria — explicou Briss. —Nossos maridos não podem nosver até a noite de núpcias, então

precisam nos amar por nossaspersonalidades, e não pelasaparências. São também um sinalde recato e privacidade, de modoque não exibimos nossa belezapara que todos vejam.

É um privilégio reservado aosnossos maridos...

— Falando em marido,preciso levar Fletcher paraconversar com meu pai agoramesmo — interrompeu Otelo,desconcertado com a franqueza

da mãe. — Vamos, Fletcher, eleestá no andar de baixo.

28

Os degraus se abriam numacâmara, tão larga e alta quanto opavilhão acima. O cano no centrocontinha uma chama quecrepitava sobre uma grelha, e ascorrentes de ar vindas de baixolançavam fagulhas velozmente

para o alto. As paredes eram deterra nua, escoradas por fortesvigas de carvalho quesustentavam o aposento.Pequenos candelabros com velasde cera pendiam do teto,conferindo ao salão umailuminação alaranjada e calorosa.Havia sete portas construídas nasparedes da sala redonda, todasfeitas de aço sólido.

Eles seguiram descendo atéchegar a outra câmara quase

idêntica, contendo uma mesa dejantar de pedra. Em vez dalareira, o cano estava conectadoao que parecia ser um grandeforno e fornalha. Vasos e panelasde todos os tamanhos estavamempilhados contra as paredes.Cada um era pintado comintrincados padrões florais.

— É aqui que a minha mãepassa a maior parte do tempo.Ela gosta de assar, tanto comidaquanto porcelana. Um homem

vem comprar os produtos delaem grande quantidade uma vezpor semana, para vender na lojadele. As donas de casa deHominum torcem os narizes paraporcelana enânica, então elefinge que são de fabricaçãoprópria. Faturamos um lucrobem decente — gabou-se Otelo.Fletcher estava impressionadocom a velocidade da recuperaçãodele. Os anões eram um povoforte, com certeza.

Os dois continuaramdescendo cada vez mais fundo naterra, conforme a escadaria setornava mais estreita e apertada.Fletcher estava feliz que Salomãotivesse se contentado emdescansar com Thaissa e Briss;suas pernas atarracadas jamaisdariam conta daqueles degraus.

Eles passaram por mais duascâmaras enquanto desciam, cadauma menor que a anterior. Aprimeira era revestida de pedra e

estava cheia de vapor residual,com tubulações de cobre quecirculavam ao redor da colunacentral; algum tipo de sauna.

O salão seguinte estava escurodemais para que se visse muitacoisa, mas Fletcher pôdediscernir silhuetas de piques eespadas. O rapaz deduziu que setratava de um depósito, lotadocom as armas do pai de Otelo. Aessa altura, a escada ficou tãoíngreme que Fletcher quase teve

de descer escalando, atrapalhadona penumbra.

— Peço desculpas pelasescadas. Foram desenhadas paradefesa, sabe. Elas descem nosentido horário, então qualquergrupo de homens que tentassemabrir caminho lutando teriamque batalhar com a mãoesquerda, e só poderiam descerum de cada vez. Um anãosozinho poderia defender estaescadaria contra mil inimigos, se

fosse um guerreiro bom obastante — explicou Otelo,batendo com os nós dos dedosno pilar central que impediriaum espadachim destro de usarsua espada.

Ele soou oco às bastidas doanão, e Fletcher reconheceu osom de ar quente em seuinterior.

— Os seus lares sempre foramassim? — perguntou, começandoa se sentir claustrofóbico

conforme o teto baixo começavaa raspar em sua cabeça. Paraalguém acostumado aos céusabertos do alto das montanhas,aquela não era uma experiênciaconfortável.

— Sim, até onde nossasmemórias alcançam. Achamosque antes era defesa contraanimais selvagens e orcs, mascom o tempo passamos a preferirdormir debaixo da terra. É tãosilencioso e pacífico. Tenho que

confessar, ando tendo problemasem dormir no alto daquela torre,com o vento soprando no meuquarto.

— É... eu também — admitiuFletcher, pensando no vulto naponte levadiça da noite passada.

— Aqui estamos — anunciouo anão ao alcançar o fim daescada. Havia uma grande portade aço cercada por rocha, comose tivesse sido incorporada a umacamada natural de rocha

subterrânea.— Mesmo que eles

escavassem ao redor do portão,teriam que desbravar a rochasólida para entrar. Meu paivaloriza muito sua privacidade.Há muitas outras oficinas comoesta, abrigando as fábricas ondese produzem os mosquetes. Masesta é especial. Foi aqui que oprimeiro mosquete foi criado.

Ele bateu o punho contra aporta com um ribombar rítmico,

algum tipo de código secreto.Alguns segundos mais tarde,houve uma série de estrondosque indicavam trancas sendoremovidas. Por fim, um rostofamiliar abriu a porta.

— Athol! — exclamouFletcher, sorrindo ao ver oconhecido. — O pai de Otelo éseu mestre? Eu deveria teradivinhado, por causa daquelasbelas armas.

— O que você está fazendo

aqui? — O rosto de Athol foitomado por uma expressão desurpresa e confusão. — E comOtelo, ainda por cima?

— Ele é meu amigo deVocans — explicou Otelo,empurrando para entrar noaposento. — Eu quero apresentá-lo ao meu pai.

— Uhtred está ocupadoagora, Otelo. É melhor vocêvoltar outra hora — avisouAthol. — Espere aqui fora,

Fletcher. Não acho que elegostaria da sua presença naoficina.

Os anões desapareceram dolado de dentro, deixandoFletcher espiando pela porta. Aoficina estava cheia deferramentas e pilhas de lingotesde metal. Diferentemente daforja de Berdon, tudo estavaorganizado a um grau quaseobsessivo. O interior do salãoradiava calor, como se Fletcher

estivesse com o rosto acentímetros de uma fogueira.Logo que ficaram fora de vista,uma conversa começou a sermurmurada, mas o rapaz nãoconseguia entender o que eradito graças ao rugido abafado daschamas da forja.

— O QUÊ? — trovejou umavoz. — AQUI?

O baque de passos pesadossoou pelo salão, e o pai de Oteloapareceu diante de Fletcher. O

peito nu do anão era muito largo,com braços musculosos cujaenvergadura ocupava toda aextensão da porta enquanto elebloqueava a vista para dentro doaposento. A barba vermelha quependia do queixo era divididanuma bifurcação que descia emduas tranças até a cintura, e olongo bigode escorrido quase lhealcançava o estômago. A densapelugem no peito cintilava com osuor no incandescer alaranjado

do fogo na forja.— Athol me conta que você

pediu trabalho como meuaprendiz há meros dois dias. —A voz retumbante de Uhtredecoou no espaço apertado daescadaria. — Agora descubro quevocê está todo amiguinho domeu menino, se enfiando nanossa forja. Não confio em você,nem de longe, tão longe quantoeu poderia te arremessar. Egaranto que eu poderia te

arremessar a uma boa distância.Ignácio se agitou no interior

do capuz de Fletcher, sentindo aameaça. O menino recuou algunspassos, horrorizado com aimplicação. Porém, ao mesmotempo, entendeu como asituação parecia suspeita.

— Eu juro, não tinha planonenhum ao vir aqui. Trabalheino norte como aprendiz deferreiro. Tinha acabado dechegar a Corcillum e estava

procurando emprego! Otelo e eusó nos encontramos quando mealistei em Vocans. Preciso deuma bainha para minha espada,e seu filho se ofereceu para melevar num ferreiro de confiança.Eu nem sabia que ele vinha deuma família de ferreiros atéalguns minutos atrás, nem queAthol trabalhava aqui. Vouesperar lá em cima. Minhassinceras desculpas por terperturbado vocês.

Fletcher fez uma mesura e sevirou para partir, mas só chegouao primeiro degrau antes queUhtred pigarreasse.

— Eu posso ter... sidoapressado. Meu filho é um bomjuiz de caráter, assim comoAthol. Mas preciso testar a suahistória primeiro e ver se vocêrealmente é um aprendiz. Athol,esconda as ferramentas deprodução de mosquetes e tragaum dos martelos menores para

Fletcher. Se ele for um espião,melhor descobrir logo, para quepossamos tomar as devidasprecauções. Enquanto isso,mostre-me essa espada. Faz umbom tempo que não vejo umkhopesh de qualidade

Fletcher sacou a arma eentregou a Uhtred. Ela pareciaminúscula nas mãos enormes doanão, mais como uma foice parapodar flores do que uma armamortal. O ferreiro tinha quase

um metro e meio de altura,praticamente um gigante dentreos anões.

— Você precisa cuidar melhordisto. Quando foi a última vezque você a oleou ou afiou? —indagou Uhtred, inspecionandoa espada por todos os ângulos àluz fraca. — Uma espada é umaferramenta como outra qualquer.Vou lhe deixar um oleado paraservir de embrulho enquanto abainha for preparada, caso a sua

história se comprove. Cuide dassuas armas, rapaz!

Você deixaria seu demôniopassar fome?

— Acho que realmente fuirelapso nos últimos tempos —admitiu Fletcher, envergonhado.Ele mal dedicara um únicopensamento ao khopesh desdeque o recebera, exceto durantesua luta contra Sir Caulder. Maisuma pontada de culpa oatravessou ao pensar em quanto

tempo e esforço Berdon deve terdedicado à criação da arma.

— Muito bem. Athol já deveter preparado tudo — afirmouUhtred, saindo do caminho. —Vamos ver do que você é capaz.

29

Fletcher fez uma careta quando ometal vermelho incandescente nabigorna lentamente ficoucinzento de novo. Toda vez queele removia a barra de aço daschamas estrondosas da forja, ometal esfriava depois de apenas

uma ou duas marteladas domenino. Ele a tinha moldadonuma grosseira estaca de metal,nada parecida com a adaga quequeria criar.

— Eis o aço enânico —comentou Otelo, com um tom depena. — É mais duro e afiadoque qualquer metal conhecidopelo homem, mas esfria rápido.Você precisa ter a força de umanão para causar algum impactonele antes que endureça de

novo.— Foi um truque injusto que

pregamos em você, Fletcher —admitiu Uhtred, não semgentileza. — Eu sabia que nãoconseguiria trabalhá-lo.

Athol, pegue um pedaço deferro-gusa lá nos fundos.

— Pelo menos ele não soubeidentificar o aço enânico pelaaparência, logo percebi pelaexpressão de espanto —comentou Athol. — Um espião

dos militares de Hominumcertamente saberia isso. Agoravamos descobrir se ele eramesmo um aprendiz.

— Esperem — disse Fletcher,com uma ideia se formando nacabeça. — Acho que consigo darum jeito nisso.

Ele tirou Ignácio do pescoço ecutucou o bicho para acordá-lo.O diabrete bocejou e coçou orosto com a pata traseira, comoum cachorro. Fletcher sorriu e

esperou que a consciência deIgnácio passasse de confusa àclara conforme acordava.

— Hora de pegar no batente,sua coisinha preguiçosa —provocou o rapaz. Então ele seconcentrou no aço, desejandoque ficasse incandescente denovo. Ignácio trinou deempolgação. Ele respirou fundo esoprou uma chama azulada nometal.

Lenta, mas implacavelmente,

o metal ficou vermelho, depoisrosado.

— Uau... um desses me seriamuito útil — sussurrou Uhtred,admirado, enquanto o demônioinspirava mais uma vez antes deintensificar a chama. O metaltornou-se quase branco,enchendo a oficina com umcheiro acre e sulfúrico.

Fletcher desatou a martelar,moldando a adaga com cadaimpacto.

Depois do que pareceu umaera, ele acalmou Ignácio com umpensamento. Exausto, o demôniorastejou de volta ao seu lugar sobo capuz. Fletcher também sesentia exausto, com o braçodoendo da chuvarada demarteladas que ele despejara nalâmina.

Uhtred usou uma tenaz paralevar a arma à luz. O cabo eraum punho de metal simples comum pomo redondo, pronto para

ser envolvido em couro a fim deque proporcionasse um apertomais firme à mão. A lâminapropriamente dita era um punhalclássico, longo e fino comopreferiam os assassinos.

— Onde você aprendeu afazer um desses? — indagouOtelo, testando a ponta com odedão. — Não é exatamente umequipamento padrão.

— Nós vendíamos quasetodos aos mercadores. Eles

gostavam de uma arma fácil deocultar, para pegar os salteadoresde surpresa — explicou Fletcher,admirando o produto do seutrabalho. Era uma de suasmelhores peças.

— Muito bem, rapaz, vocêestá livre. Não é como se tivessedescoberto nada de mais, dequalquer maneira. Paracompensar minha falta deeducação, vamos lhe fazer abainha de graça. Você vai ter que

deixar a lâmina conosco, mas areceberá de volta em alguns dias.Minha mulher vai lhe costurarum novo uniforme, também.Não vai ser feito sob medida,mas será melhor que essa coisacomida por traças que você vesteagora. Não queremos queninguém diga que oscompanheiros de nosso filho sãovagabundos. Sem ofensa —afirmou Uhtred com um sorriso.

— Quanto eu lhe devo? —

perguntou Fletcher, pegando abolsa de dinheiro.

— Só esse punhal e suapromessa de que vai tomar contado meu menino. Você parece serde um tipo raro, Fletcher. Égente como você que me dáesperanças de reconciliação entreanões e homens — explicouUhtred.

A chuva caía forte quandoeles alcançaram o ponto deencontro, mas não havia sinal

dos outros. Otelo chutou aparede enquanto eles tremiam defrio num vão de porta,planejando o que fazer emseguida. Não havia carroças àvista, e as ruas estavampraticamente desertas.

— Droga de chuva —resmungou Otelo. Ele estava depéssimo humor, e não só porcausa do tempo e da falta detransporte. Na pressa paraescapar dos Pinkertons, a

machadinha de Otelo tinhaficado no chão. Os rapazes não aencontraram ao voltar pelomesmo caminho. — Droga dePinkertons, também. Minhacostela está rígida como pedra, eperdi uma das melhores peças domeu pai — continuou Otelo,estreitando os olhos em meio aodilúvio.

— Lamento, Otelo. Tenhocerteza de que seu pai fará outrapara você — disse Fletcher,

fazendo uma careta desolidariedade.

— Como você se sentiria seperdesse seu khopesh? — Otelosoava amargurado, saindo para arua.

Fletcher não sabia comoresponder, então ficou de bocafechada. Ele seguiu o anãoabatido pela chuva. Os doisestavam gelados até os ossosapesar das jaquetas, e Fletchersabia que a jornada de volta para

casa seria fria e miserável.— Acho que nossa melhor

opção é a praça Valentius —gritou Otelo em meio aos trovõesque retumbavam no ar. — É láque fica a maioria dos estábulos.

— Tudo bem, vamos lá! Nãoaguento mais ficar parado —berrou Fletcher de volta, de olhono céu barulhento.

Eles correram pelas ruasvazias, pisando nas poças que seformavam no caminho. A cada

tantos segundos, a rua eracongelada num clarão derelâmpago, seguido do estrondodo trovão.

— Os raios estão perto, Otelo!Deve ter uma tempestade deverdade se formando — gritouFletcher, cuja voz quase foilevada pelo vento.

— Quase lá! — berrou Otelode volta.

Finalmente eles chegaram auma pequena praça com um

enorme toldo, que protegia olugar do pior da chuva. Estavatomada por uma multidão que seabrigava da tempestade eescutava um homem numaplataforma. Ele gritava, masFletcher estava cansado demaispara ouvir.

— Eles leiloam cavalosdaquele palco, se você sentirvontade de comprar um paramim algum dia — brincou Otelo,torcendo a barba.

— Hah, talvez um pôneibarrigudo; é o máximo que vocêconseguiria montar — zombouFletcher de volta, feliz que oanão tivesse recuperado o ânimo.

Enquanto eles vasculhavam olugar em busca de uma carroça,Fletcher captou as últimaspalavras do discurso do homemirado.

— ... E ainda assim os elfosfazem a guerra se arrastar,custando às duas nações um

preço muito maior do que o valordo imposto! Só que, ao invés delevar a guerra até eles, nosso reifala em paz, sem perceber asverdadeiras intenções dos elfos!Eles querem que o nosso reinoperca a guerra, vocês nãopercebem? Quando Hominumcair, os elfos ficarão livres paratomar nossas terras! Os orcs nãoas desejam; eles só querem nosver mortos. Quando o sanguecorrer pelas ruas de Corcillum, os

elfos se regozijarão com nossasmortes!

A multidão rugiu emaprovação, agitando os punhosno ar. Fletcher prestou atenção,distraído de sua tarefa imediata.Ele nunca tinha visto um homemfalar tão abertamente contra orei, nem com tanto ódio peloselfos.

Nem mesmo Rotherhamtinha sido tão veemente.

— Então o que podemos fazer

quanto a isso? Como forçar amão do rei? Eu digo a vocês!Vamos marchar até a embaixadadeles e matar cada um dosdesgraçados de orelhaspontudas! — uivou o homem,com uma paixão tão fervente quequase chegava a um berro.

Desta vez a plateia ficoumenos empolgada. Essa sugestãoera tão ousada que um silêncioconstrangedor recaiu sobre amultidão, acompanhado de

murmúrios perturbados. Ohomem ergueu a mão como sepedisse silêncio.

— Ah, eu sei, o primeiropasso é sempre o mais difícil.Mas vamos dá-los juntos. Vamosaproveitar este momento! —rugiu ele, acompanhado por umpunhado de vivas da multidão,que começava a se interessar pelasua retórica. — Mas, primeiro,deixem-me mostrar como se faz.Grindle, traga a prisioneira!

Um homem gordo e careca,com braços tão fortes quanto osde Otelo, emergiu de uma portaatrás do palco e arrastou umaelfa, que gritavadesesperadamente, até a frenteda plataforma. Mesmo de ondeestava, bem no final do grupo,Fletcher reconheceu a vítima.

— Sylva! — gritou ele.

30

A turba pulsava de excitação,tanto ultrajada quantoempolgada. O homem gordobrandiu uma clava no ar com umfloreio, suscitando mais gritos dopovo. Fletcher começou a abrircaminho até a frente, mas foi

contido por Otelo.— Vamos lá! — chamou

Fletcher, lutando contra o apertofirme do anão.

— Não temos nenhuma arma,Fletcher. Precisamos procurarajuda! — retrucou Otelo,enquanto a multidão ao redordeles se convulsionava.

— Quem vamos chamar, osPinkertons? Se não fizermosalguma coisa agora mesmo, Sylvavai morrer — retrucou Fletcher,

soltando o braço e se lançandoadiante.

O menino empurrou dandocotoveladas, mas a multidãoficava mais densa conforme elese aproximava do palco. Logoestava sendo esmagado pelamassa de corpos, mal capaz dever acima das cabeças daqueles àsua frente.

— Os elfos são tão ousadosque andam por nossas ruas,como se a guerra nada

significasse para eles! — gritou ohomem no palco. — Grindle,traga ela até aqui para quepossamos mostrar a todos o quefazemos com elfos que nãoconhecem seu lugar de direito.

A multidão rugiu, alguns afavor, outros contra. O humorcoletivo estava eletrizado como orelâmpago que iluminava o toldoacima deles, paralisando seusrostos gritantes a cada clarão. Osol mal acabara de se pôr, e o céu

exibia a cor azul-marinho docrepúsculo invernal.

— O que está acontecendo?— perguntou Otelo, gritando detrás do rapaz, pulando paratentar ver o que ocorria. Salomãoestava abaixado entre as pernasdo dono, grunhindo para os pésque pisoteavam a lama ao redor.

— Eu não sei. Precisamosencontrar um jeito de atravessaressa multidão! — gritou Fletcher.O ar estava carregado com o som

do trovão, gritos raivosos e achuva martelando a lona esticadaacima. O grito de Sylva cortoutudo isso, um longo berro demedo irracional que trespassou ocoração de Fletcher.

O menino trincou os dentesde frustração e tentou avançarnovamente, mas só conseguiu semover alguns centímetros.

— Otelo, mande Salomãofazer barulho! Se não dá parapassar, então precisamos

dispersá-los — pediu Fletcherpor sobre o ombro.

Um urro irrompeu de trásdele, um rugido profundamentegrave que lembrou a Fletcher umurso das montanhas. As pessoasao redor se viraram e seafastaram, abrindo um pouco deespaço.

— Ignácio! — gritou Fletcher,mandando o demônio para seuombro com um pensamento. Odiabrete disparou uma forte

rajada de chamas no ar,assustando o resto da multidãopara lhes abrir ainda mais espaço.Quando um caminho se fezdisponível, eles se lançaramescada acima até o palco.

Fletcher avaliou a cena derelance. A cabeça de Sylva estavasendo mantida sobre um tocopelo orador revoltado, que estavaajoelhado ao lado da elfaprostrada. Grindle tinha erguidoa clava, pronto para despedaçar a

cabeça da vítima. A pobremenina estava vendada; nemchegaria a ver a chegada damorte.

Ignácio reagiuinstintivamente, cuspindo umabola de fogo que atingiu ohomem gordo no alto do ombro,jogando-o para trás. Enquanto ocorpo obeso desabava no chão,Otelo saiu em disparada echutou o orador na cabeça,produzindo um estalo alto e

nocauteando-o.Mais três homens investiram

contra o anão, armados decassetetes muito parecidos comaqueles usados pelos Pinkertons.Otelo levou um golpe no rosto edesabou como uma marionetecom os cordões cortados. Antesque o homem pudesse golpear denovo, Salomão o socou na perna,dobrando-a de lado com umbarulho nauseante. O Golemsubiu no peito do homem e deu-

lhe um pisão. O estalo dascostelas sendo partidas revirou oestômago de Fletcher.

Os outros dois começaram aavançar, brandindo os cassetetescom prática. Fletcherempalideceu e dançou para tráspara ganhar mais tempo,desejando não ter deixado o arcono quarto. Aquilo seriacomplicado.

— Muito bem, Ignácio. Pegueeles — disse Fletcher. O diabrete

saltou do seu ombro como ummorcego infernal, umredemoinho de garras e chamas.Aterrissou no rosto do homemmais próximo e sibilou, com ofino espinho na ponta da caudaestocando a presa como umferrão de escorpião.

Antes que o outro homempudesse intervir, Fletcheravançou. Assim que o casseteteveio em sua direção, o rapazcriou um clarão de fogo-fátuo na

mão, cegando o adversário com aluz azul. Chutou o homem nomeio das pernas e depois lheacertou uma joelhada no narizquando ele se curvou.

Rotherham tinha razão; lutarcomo um cavalheiro era coisapara cavalheiros. Ignácio tinharasgado a cara inteira do outrohomem, que rolava no chãogemendo de dor enquanto odiabrete lambia seu focinhoensanguentado alegremente. A

inocência de cachorrinho dodemônio não estava mais lá.

Sylva estava completamenteamarrada como um embrulho depresente, mas lutava comselvageria no chão. Salomãoestava uivando, enfiando a cararochosa na barba de Otelo.

Fletcher arrancou a venda deSylva, em seguida mexendo nosnós com dedos endurecidos pelofrio. As cordas estavam inchadaspela umidade, mas se

afrouxaram conforme ele aspuxava. O tempo todo amultidão assistia, como se elefosse um ator num palco e eles,uma plateia pagante.

— Tire elas, tire elas! —gritava a elfa. Seus olhos estavamvirados para trás. Como diabosela tinha se metido nessasituação? Da última vez que orapaz a vira, Sylva estava comIsadora, lá em Vocans.

Então o lado da sua cabeça

explodiu em dor e Fletcher foipara o chão, com a brancura dalona acima preenchendo suavisão. A horrenda cabeça carecade Grindle surgiu e entrou emfoco, com a clava erguidanovamente. Era uma coisa feia,disforme, toda cheia de nós esulcos como um galho de árvoremal podado.

— Traidor da raça — sibilouGrindle. O ombro dele era umcaos de pano e carne queimados.

O sujeito segurava Ignáciopelo pescoço como se agarrasseuma galinha, com o esporão decauda do demônio cravado nooutro braço, flácido. O coraçãode Fletcher se encheu deesperança quando o peito deIgnácio se encheu, mas nada lhesaiu das narinas exceto um finofio de fumaça. O gordo pousou opé no pescoço de Fletcher paraimobilizá-lo, então centrou aclava em sua cabeça. Fletcher

fechou os olhos e rezou para quefosse uma morte rápida.

Ouviu um grito e então umbaque. Um peso caiu sobre seucorpo, pressionando o peito e odeixando sem fôlego. Abriu osolhos e viu Sylva, segurando umcassetete ensanguentado nasmãos. O homem gordogorgolejava no ouvido deFletcher.

Ele tentou erguer o corpo,mas era como se tentasse mover

uma árvore.— Não consigo respirar —

ofegou Fletcher com a últimalufada de ar em seus pulmões.Sylva se agachou e tentouempurrar com toda a sua força,mas o corpo mal se mexeu. Apulsação de Fletcher martelavaem seus ouvidos, errática efrenética. O limiar de sua visãocomeçou a escurecer enquantoele ofegava, capturandopequenas lufadas de ar.

Então Otelo estava lá,cambaleando até a cena comsangue escorrendo pelo lado dorosto. A elfa e o anãoempurraram até que Fletcherconseguiu respirar de novo,arfadas profundas e soluçadas,mais doces que mel.

— Seus monstros! — gritouSylva, cuspindo contra osespectadores mudos.

— Vamos dar no pé agora! —exclamou Otelo, olhando

enojado para a multidão.Os dois levantaram Fletcher e

desceram os degrauscambaleantes como três bêbados,quase incapazes de ficar de pé.Desta vez, a multidão se abriupara lhes ceder uma largapassagem.

O trio trepidante fugiu pelasruas desertas, todos castigadospela chuva que caía em ondasconforme o vento aumentava ediminuía. Otelo parecia conhecer

o caminho, guiando-os por becosestreitos e ruas secundárias atéchegarem à estrada principal quetrouxera o grupo a Corcillum.Eles não faziam ideia se estavamsendo seguidos. A escuridão osalcançaria a qualquer minuto,porém, com a presença de Sylva,eles não poderiam de formaalguma passar a noite numataverna. Os três andaram porduas horas sem ver uma únicacharrete ou carroça. Sylva não

trajava nada mais que um vestidode seda, e tinha de algumamaneira perdido os sapatos aoser capturada. Estava tremendotão violentamente que quase nãoconseguiu passar os braços pelasmangas da jaqueta de Fletcherquando ele a ofereceu.

— Precisamos parar edescansar! — gritou o rapaz porsobre o rugido do vento e dachuva. Otelo concordou com acabeça, cansado demais até para

erguer os olhos da estrada. Seurosto estava totalmente branco, efiletes de água tingida de sangueescorriam pelos lados do seurosto. O ferimento na cabeçaestava molhado demais paraestancar sozinho.

Milharais verdes se estendiamde ambos os lados ao seu redor,mas Fletcher viu um telhado demadeira por sobre as espigas,algumas centenas de metros àdireita.

— Por aqui! — gritou ele,puxando-os da estrada. O grupoabriu caminho por entre oslongos talos, rompendo os caulesfrágeis ao pisar.

Salomão ia na frente,desesperado para levar seumestre a um lugar seguro.

Não era nada além de umbarracão metido a besta,abandonado havia muito tempo.Fletcher quase se desesperou porum instante quando viu que

estava trancado com umacorrente enferrujada, masSalomão a arrebentou com umsoco.

O lado de dentro estavaúmido e mofado, cheio de velhosbarris de farinha já apodrecida.Mesmo assim, escapar do dilúvioque os castigava era pura alegria.

Sylva e Otelo desabaram nochão, juntando-se para aquecerum ao outro. Fletcher bateu aporta ao entrar e desmoronou

também. Não fora assim que eleimaginara sua viagem aCorcillum.

— Não se preocupem, pessoal,vou esquentar vocês. Ignácio,venha cá. — O diabrete desceupelo seu braço e olhou para ele,parecendo infeliz. O pescoço dacriaturinha estava com umhematoma vermelho-escuroonde Grindle o agarrara. Ignáciorespirou fundo e soltou umachama fina, que infelizmente, no

ar úmido, não fez nada além deiluminar o aposento imerso emtrevas. A única luz vinha dasrachaduras nas paredes, quetambém deixavam entrarcorrentes congelantes de ar.Tinha que haver outro jeito. SeFletcher não fizesse alguma coisa,eles provavelmente contrairiamalguma doença mortal.

Salomão grunhiu e começou adespedaçar alguns barris. Asmãos dos Golems eram como

luvas sem dedos de pedra, mas opolegar opositor lhe davadestreza o bastante para rachar astábuas podres e jogá-las nocentro do aposento.

— Pare, Salomão, economizesua energia — murmurou Otelo.O demônio pausou e deu aoanão um grunhido de desculpas.Então rosnou e indicou os barris,apontando com as mãosatarracadas. — Ah, tudo bem —resmungou Otelo, acenando,

derrotado. Salomão continuoutrabalhando, agora de formamais metódica. O que raios eleestava fazendo?

— Ele está fazendo umafogueira! Vamos lá, antes queSylva entre em choque! —exclamou Fletcher. A elfa aindaestremecia, abraçando os joelhos.O menino não conseguiaimaginar como teria sido o diadela. A provação a tinha deixadocom as pontas das orelhas

marcadas pelo vento,avermelhadas de frio.

Logo a pilha de madeiraestava alta, mas Fletcher separoua maior parte para mais tarde.Salomão esmigalhou algumas dastábuas em pilhas de farpas, paraservir de isca para o fogo, entãoIgnácio soprou chamasrepetidamente até o fogo pegar.Logo uma luz calorosa preenchiao barracão, e a fumaça subia esaía pelas rachaduras nos cantos

do teto. A madeira queimavabem lentamente, comocostumava acontecer com lenhapodre. Por mais que o fogodeixasse um cheiro de mofo noar, o frio abandonouvagarosamente os ossos dos trêscadetes, e as roupas começaram asecar em seus corpos. Mesmoassim, seria uma longa noite.

31

Fletcher acordou num susto eolhou em volta. Otelo cutucavaas chamas com um graveto,aborrecido. Ele estava de peitonu, com a camisa e jaquetasecando ao lado do fogo.

— Eu devo ter apagado.

Quanto tempo dormi? —indagou Fletcher, se sentando.Suas roupas ainda estavamúmidas, mas ele decidiu não sedespir. Supôs que Sylva nãoficaria feliz com tal quebra dedecoro. Porém, para suasurpresa, ela estava sentada dooutro lado do fogo, rasgando abarra do vestido numa longa tira.Ignácio estava enrodilhado aolado da elfa, com as costasaquecidas pelas chamas.

— Só por alguns minutos,Fletcher — respondeu ela,entregando o tecido a Otelo. —Aqui, use como bandagem parasua cabeça. Vai ajudar a curar.

— Obrigado — disse o anão,com uma expressão de felizespanto no rosto. — Fico muitoagradecido. Que pena que vocêteve que estragar seu vestido.

— Essa é a menor das minhaspreocupações. Que burrice aminha, achar que poderia andar

pelas ruas de Corcillum no meioda guerra e não sofrer asconsequências.

— E por que você foi? —perguntou Fletcher, franzindo atesta.

— Pensei que estaria seguracom os Forsyth. Eles andavamcom os demônios em plena vista,e todos passavam longe de nós.Em retrospectiva, não estousurpresa. — Ela torceu as mãosem frustração. — Tenho certeza

de que, se um homem fossepassear no território élfico,sofreria um destino semelhante.Há gente racista nos dois ladosda fronteira.

— Ainda bem que você sesente assim. Eu não a culpariapor pensar o pior de nós econvencer seu pai a encerrartodas as chances de uma aliançaentre os nossos povos —comentou Fletcher,aproximando-se do fogo e

aquecendo as mãos dormentes.— Não, isso só fortaleceu

minha determinação —respondeu Sylva, fitando aschamas. A menina arrogante queos olhara com o nariz empinadotinha desaparecido. Esta pessoaera muito mais íntegra.

— Como assim? — inquiriuFletcher.

— Se até mesmo esta guerrafalsa que fingimos lutar crioutanto ódio entre nossos povos, o

que uma guerra de verdade nãofaria? — salientou a elfa,empurrando mais lenha para afogueira.

— Qual é o sentimento entreos elfos? — perguntou Otelo,tirando as botas e deixando asmeias secarem junto ao fogocrepitante. Salomão prontamentepegou os calçados e os seguroujunto ao fogo.

— Alguns de nós entendem,dizendo que vale a pena se juntar

aos humanos para lutar no sul, seisso mantiver os orcs longe dosnossos lares. Outros afirmam queeles jamais atacariam tão aonorte, mesmo se o Império deHominum caísse — contou Sylva,torcendo o nariz para o chulé doanão. — Mas meu pai é umvelho chefe de clã. Ele se lembradas histórias que seu pai lhecontou, dos dias em que os orcsdevastavam nossas aldeias,massacrando nosso povo por

esporte e reunindo as cabeças denossos guerreiros como troféus.Os elfos mais jovens mal sabemque foram os saqueadores orcsque nos obrigaram a construirnossos lares nos grandescarvalhos do norte em primeirolugar, milhares de anos atrás. E,mesmo quando o fizemos, isso sóos atrapalhou um pouco. Foramos primeiros humanos que sealiaram a nós, rechaçando-os devolta às selvas e patrulhando as

fronteiras. Nossa aliança existedesde que os primeiros homenscruzaram o deserto de Akhad,porém, com o tempo e apassagem das incontáveisgerações, ela caiu em desuso.

— Nós éramos aliados doselfos? — indagou Fletcher, seusolhos arregalados deincredulidade.

— Estudei a história de nossosdois povos antes de vir para cá naminha missão diplomática. Nós,

elfos, podemos viver porduzentos anos, então asmemórias dos nossoshistoriadores são mais longas queas dos seus. Rei Corwin, oprimeiro rei de Hominum,liderou uma guerra contra osorcs em nosso nome. Foram oselfos que ensinaram a ele e a seupovo como invocar, em troca deproteção, criando assim asprimeiras casas nobres deHominum.

— Uau. Não fazia ideia deque vocês participaram da criaçãodo nosso império — maravilhou-se Fletcher. — Nem de que oselfos foram os primeirosconjuradores.

— Nem tanto — murmurouSylva. — Os orcs já conjuravammuito antes de nós. Mas a artedeles era mais bruta, imatura;pequenos diabretes e nada mais.Ah, se ainda fosse assim hoje...

— Tenho uma pergunta —

interrompeu Otelo. — Por quevocê não trouxe seu própriodemônio do território élfico?Certamente vocês têm demôniospor lá, se ensinaram os homens aconjurar em primeiro lugar?

— Essa é uma perguntacomplicada de se responder.Tivemos um longo período depaz depois que o Império deHominum foi fundando.Enquanto os anões se rebelavame os orcs saqueavam o reino dos

homens, os elfos continuavamem relativa segurança. Assim,nossa necessidade de usardemônios para defesa pessoaldeixou de existir. É claro quehouve outros fatores. Porexemplo, a invocação dedemônios foi banida por umcurto período quatrocentos anosatrás, quando os duelos ficaramna moda entre os herdeiros dosnossos chefes de clãs. No fim,não havia mais demônios a se

transmitir, pois foram todosmortos nesses duelos oudevolvidos ao éter.

O estômago de Otelo roncoue Sylva riu; o tom sério doaposento se desfez.

— Tive uma ideia —anunciou Fletcher, levantando-se. Depois de um momento dehesitação, ele saiu do abrigo.Trinta segundos depois, voltoucorrendo ao barracão, mais umavez ensopado até os ossos, mas

segurando uma braçada demilho.

Enquanto se sentava de novo,Fletcher percebeu algo novo. Ascostas de Otelo eram tatuadasem preto, uma ilustração de ummartelo cruzado com ummachado de batalha. O nível dedetalhamento era extraordinário.

— É uma bela tatuagem,Otelo. O que significa? —inquiriu ele.

— Ah, isso. É um signo

enânico. São as duas ferramentasusadas pelos anões. O machadorepresenta nossa proeza embatalha e o martelo, nossahabilidade como artífices. Nuncafui muito fã dessa ideia detatuagens, porém. Não preciso demarcas na minha pele para dizerao mundo que sou umverdadeiro anão — resmungouOtelo.

— Então por que a fez? —perguntou Sylva, espetando

algumas espigas de milho numforcado enferrujado esegurando-o sobre as chamas.

— Meu irmão se tatuou comisso, então tive que fazer omesmo. Às vezes tenho que levara culpa no lugar dele. Faz maissentido se tivermos a mesmaaparência. Os Pinkertons tiram asua camisa quando... castigamvocê.

Syvla continuou fitando oanão com uma mistura de

espanto e horror, então seusolhos se arregalaram ao pousarnas cicatrizes de Otelo.

— Nós somos gêmeos. Nãoque os Pinkertons saibamdiferenciar os anões,normalmente. Somos todosiguais para eles — explicouOtelo.

— Então... vocês são comoIsadora e Tarquin, afinal —deduziu ela. — Sempre meperguntei como seria ter um

irmão gêmeo.— Achei que eles fossem

gêmeos, mas não tinha certeza —comentou Fletcher, tentandolembrar dos dois nobres.

— É claro que são — afirmouOtelo. — São sempre osprimogênitos que herdam ahabilidade de evocar, gêmeosincluídos. Os outros filhos têmchances muito menores, mesmoque aconteça, às vezes. Ninguémsabe bem o porquê, mas

certamente ajudou a consolidar opoder nas casas nobres. Filhos efilhas primogênitos herdam apropriedade inteira, então asterras não são distribuídas paramúltiplos filhos na maioria doscasos. Os Forsyth têm terra maisque suficiente para dois, porém,isso é certo.

O anão tirou uma espiga demilho do forcado e mordeu comvoracidade, soprando os dedos.

— Então me conte, Sylva, o

que você estava fazendo emCorcillum? Encontrou Genevievee os outros na perfumaria? —perguntou Fletcher, tentandoevitar o fato de que quase tinhammorrido por causa dela.

— Os nobres me levaramnuma carruagem até a praça.Então Isadora e Tarquin metrouxeram ao bairro das flores,pois queriam rosas frescas paraseus quartos. Eu estava com umlenço na cabeça para cobrir meus

cabelos e orelhas, então nãopensei que teria problemas. Masmeus olhos devem ter medenunciado. Aquele homemgordo, Grindle, arrancou o xaleda minha cabeça e me arrastoupara um beco. Isadora e Tarquincorreram ao primeiro sinal deproblemas. Nem olharam paratrás. Eu não tinha meu couro deconjuração, então Sarielcontinuou infundida dentro demim.

Nunca mais cometerei esseerro.

— Couro de conjuração? —perguntou Otelo, terminandosua espiga e estendendo a mãopara pegar outra. Sylva afastou-lhe com um tapa brincalhão.

— Guloso! Fletcher, comatambém. Eu percebi que algunsde vocês não desceram para oalmoço na cantina mais cedo,você deveria comer alguma coisa.

— Obrigado. Eu só comi uma

maçã de almoço — contouFletcher, pegando uma espigapara si. Mordeu os grãos macios,cada um explodindo com doçurasurpreendente em sua boca.

— Um couro de conjuração—continuou Sylva, virando-se paraOtelo. — É só um pentagrama,impresso num pedaço quadradode couro, que me permiteconjurar Sariel se ela estiverinfundida em mim. Não sei bemse os seus conjuradores ainda os

chamam por esse nome hoje emdia. Os documentos queencontrei sobre práticas deconjuração eram bem antigos.

— Eu não acredito queTarquin e Isadora fugiram! —exclamou Fletcher, a boca cheiade milho.

— Essa nem é a pior parte. Osdois estavam com os demôniossoltos quando eu fui capturada.Suspeito que foram as criaturasque chamaram tanta atenção

para nós em primeiro lugar.— Aqueles covardes —

grunhiu Otelo.— E seus demônios veteranos

foram herdados da mãe e do pai— explicou Sylva. — Poderiamter derrotado dez vezes onúmero de homens que meatacaram. Se eu tivesse ficadomais perto dos dois, os sujeitosjamais teriam avançado, mas euestava um pouco farta daconversinha narcisista deles,

então me afastei por ummomento. — A elfa fez umapausa, mordendo delicadamentesua espiga.

— Por que você tentou fazeramizade com eles se não ossuporta? — indagou Fletcher.

— Estou aqui comodiplomata. Com quem você achaque seria melhor fazer amizadese eu quiser promover umaaliança entre os nossos doispovos? Agora eu obviamente sei

que a melhor maneira é metornar uma oficial assim quepossível e criar fama em batalha,e não bajular pirralhos mimadossem nenhum poder real. Isso vaifacilitar minha causa, se todossouberem que os elfos tambémestão dispostos a lutar.

— Ah — comentou Fletcher.Fazia sentido, porém a formacomo ela o tratara antes aindamagoava. Por outro lado, se eleestivesse sozinho em terras hostis

com um fardo deresponsabilidade tão grande, sersimpático talvez também fosse aúltima de suas preocupações. —Certo, melhor nos deitarmospara dormir. Provavelmentevamos levar bronca por termospassado a noite fora, mas nãotem como voltarmos andandocom esse tempo — sugeriuFletcher, se esticando ao lado dofogo.

— Ah, não sei — respondeu

Otelo, enrolando a jaqueta numtravesseiro improvisado e serecostando nele. — Não temguardas nem nada assim naentrada da academia. Se nóschegarmos antes das entregas,devemos ser capazes de entrarescondidos sem que alguém nosveja.

Enquanto Sylva seenrodilhava ao lado do fogo epuxava o capuz da jaqueta, umpensamento cruzou a mente de

Fletcher: como Otelo sabia disso?

32

— Onde diabos vocês estavam?— sibilou Serafim. Fletcher,Otelo e Sylva tinham acabado deentrar cambaleantes na sala deconjuração, juntando-se aosoutros o mais silenciosamentepossível quando os outros

estudantes passaram, vindos doátrio. O trio estava com umapéssima aparência, mas não havianada que pudessem fazer.Tinham chegado enquanto asentregas eram feitas, então sópuderam se esgueirar depois docafé da manhã, bem quando asaulas estavam prestes a começar.

— É uma longa história.Contamos mais tarde —sussurrou Fletcher. Isadora sevirou para ver qual era a

comoção, arregalando os olhosao ver Sylva. Ela cutucouTarquin, que também se virou elevou um enorme susto. A elfa osencarou, inexpressiva, então sevirou para a capitã Lovett, queesperava todos se assentarem. Amulher alta vestia um avental decouro sobre seu uniforme deoficial, além de usar grossas luvasdo mesmo material.

— Vamos trazer alguma luz aeste lugar — disse Lovett,

soltando várias bolas de fogo-fátuo no ar. Ao contrário deArcturo, ela permitia que as luzesflutuassem sem rumo pelo salão,criando uma iluminação claramais fantasmagoricamentemutável. — Então, pelo que eusoube, Arcturo deixou que quemjá tivesse praticado fogos-fátuosfosse embora mais cedo ontem.Isso não vai acontecer nasminhas aulas. Meu lema é “aprática leva à perfeição” e,

considerando o seu curto tempoaqui, vocês deveriam aproveitarcada segundo sob nossa tutela.

Ela andava de um lado para ooutro diante deles, com os olhosseveros esquadrinhando cada umdos rostos. Aquela não era umapessoa que

Fletcher gostaria de irritar.— A primeira tarefa de hoje

será ensinar-lhes a arte dainfusão. Vejo que alguns devocês não estão com seus

demônios, então presumo que játenham aprendido isso.Entretanto, o tempo que vocêleva para libertar seu demônio dedentro de si pode ser a diferençaentre a vida e a morte. Confiemem mim, eu sei. Aqueles devocês que foram treinados pelospais vão praticar nos círculos deconjuração do outro lado da sala.Eu vou conferir seu desempenhomais tarde.

Os nobres se afastaram com

expressões arrogantes, falando erindo entre si. Lovett separou osalão em dois com uma enormecortina, de modo que eles saíramde vista depois de atravessar apartição central. Depois dealguns momentos, Fletcher viuluzes brilhantes piscando porbaixo. Que tipo de demônios osnobres possuíam?

Sylva ergueu a mão e deu umpasso à frente.

— Aprendi sozinha. Será que

eu poderia ficar com os outros eaprender a técnica correta? —indagou a elfa.

Lovett espiou o vestidorasgado e os cabelos desfeitosdela e ergueu uma sobrancelha.Depois de uma longa e severaencarada, a professora cedeu.

— Muito bem. Mas, por favor,lembre-se de que, no futuro,espero que você esteja deuniforme — afirmou ela, antesde se voltar ao resto dos plebeus.

— Cada um deve pegar umcouro de conjuração, além de umavental de couro. Deve haverluvas e óculos de proteção nocompartimento abaixo, também.— Ela indicou o fundo do salão,e um dos fogos-fátuos disparouaté lá e pairou sobre uma fileirade armários embutidos naparede.

— O que aconteceu comvocês? — murmurou Genevievepelo canto da boca enquanto eles

rumavam ao equipamento. —Esperamos o máximo quepudemos, mas tivemos que irantes que a última carruagempartisse.

— Perdemos a últimacarruagem e tivemos que voltarandando para cá esta manhã —murmurou Fletcher de volta,revirando vários rolos de couroaté encontrar um com opentagrama não muito apagado.Ele não sabia se Sylva queria que

o incidente se tornasse deconhecimento geral.

— Vocês foram assaltados nocaminho ou coisa assim? —insistiu Genevieve, sem acreditarmuito.

— O que faz você achar isso?— retorquiu Fletcher enquantovestia um avental.

— Bem, mesmo ignorando asataduras na cabeça de Otelo,você está com um galo dotamanho de um ovo na lateral da

cabeça — argumentou Genevieveenquanto eles voltavam. O rapaztocou a têmpora e estremeceu aoperceber que ela tinha razão.Felizmente, a essa alturachegaram de volta a Lovett, queos silenciou com um olhar.

— Ouvi que alguns de vocêstêm seus demônios há pelomenos sete dias. Eles devem estarbem cansados agora, então seriamelhor vocês infundi-losimediatamente, para que possam

repousar. Levante a mão quemtiver recebido seu demônio nasemana anterior — anunciouLovett. Genevieve e Roryergueram as mãos. Depois dealguns instantes, Fletcherlevantou a dele também.

— Por que a hesitação?Fletcher, não é? — indagouLovett, indicando que o rapazdesse um passo à frente.

— Estou com meu demôniohá duas semanas e meia —

respondeu ele.— Isso é normal?— Não, ele deve estar

realmente exausto! Vamos daruma olhada nele — repreendeuela.

Fletcher acordou Ignácio comuma cutucada mental. Odiabrete miou de irritação esaltou para o chão. Olhou emvolta e lambeu os beiços. Odemônio devia estar bemfaminto agora, depois de torcer o

nariz para o milho assado danoite anterior.

— Ele anda meio sonolento,mas costuma ser sempre assim,de qualquer maneira — explicouFletcher, sentindo uma pontadade culpa enquanto odemoniozinho bocejava.

— Uma Salamandra! —exclamou Lovett. — Realmenterara! O major Goodwin ficarámuito interessado nela. Não ésempre que ele tem a chance de

examinar uma nova espécie dedemônio.

— Ignácio vai ficar bem? —inquiriu Fletcher, aindapreocupado com a supostaexaustão.

— Parece-me que sim —respondeu Lovett. — Quantomais poderoso um demônio,mais tempo ele pode sobreviversem descanso no nosso mundo,apesar de levar vários mesesantes que o cansaço se torne

realmente um risco de vida. Eutinha pensado que, como você éum plebeu, seu demônio seria deuma das espécies mais fracas. Poroutro lado, pelo que andeiouvindo, vocês parecem ser umgrupo bem sortudo. No anopassado, a maioria dos plebeusrecebeu Carunchos, mas vocêstêm uma Lutra, um Cascanho,uma Salamandra e um Golem.

— E um Canídeo também! —exclamou Sylva, desenrolando

seu couro no chão. Fletchersorriu, feliz por ela ter se incluídono grupo dos plebeus.

Rory arrastou os pés e cerrouos punhos.

— Estou cansado de ouvircomo sou azarado em terMalaqui — sussurrou, com óbviafrustração.

— Por que você não começa,Sylva? Vou confirmar se vocêestiver fazendo tudocorretamente. É um ato

relativamente simples, uma vezque se sabe o que fazer —sugeriu Lovett.

Sylva se ajoelhou sem hesitare pousou as mãos enluvadas notapetinho de couro. Os óculos seencaixavam de forma desajeitadasobre as orelhas pontudas, masela não parecia se importar.Fletcher tinha certeza de que elamal podia esperar para estar soba proteção de Sariel de novo,depois de tudo que acontecera

na noite anterior. Inspirandolonga e calmante, a elfa encarouo pentagrama até que eletremeluziu com uma suave luzvioleta.

— Observem como elaempurra o mana através dasmãos, para o couro e até opentagrama. Ela saberá que omomento de empurrar odemônio chegou quando opentagrama estiver com brilhoconstante.

A estrela de cinco pontasincandescia em luz azul, porémnada aconteceu por quase meiominuto. O único som era arespiração ofegante de Sylvaenquanto ela encarava o símbolo.Então, sem aviso, uma forma deCanídeo cresceu naquele espaçovinda do nada, expandindo-se deum pontinho de luz a umagrande silhueta brilhante emmeio segundo. O vulto brilhouem branco, então a cor

desvaneceu e Sariel apareceusobre o pentagrama.

Os olhos dela se focalizaramem Sylva, então o Canídeo saltoupara a mestra, derrubando-a. Odemônio lambeu o rosto da donae uivou. Fletcher se perguntou seSariel estava ciente de tudo quetinha acontecido à Sylva na noiteanterior. Talvez fosse apenassaudade.

— Obviamente seu demônioprecisa de um pouco de

disciplina e treinamento, masbom trabalho mesmo assim! Vouconjurar meu demônio,Lisandro, para demonstrar comoinfundir. Afastem-se, por favor!— anunciou Lovett. Sylva e Sarielse moveram para o lado, e o restodo grupo recuou vários passos. —Quanto maior for o seudemônio, mais difícil ainvocação. É claro que, no campode batalha, vocês não poderãousar equipamento de proteção,

mas é melhor tomar precauçõessempre que for possível...especialmente com aprendizessem treinamento como vocês —explicou Lovett, se ajoelhando nocanto do couro de conjuração. —O motivo principal para toda essaproteção é o uso de pentagramaschaveados, mas não vamos falardisso até mais tarde.

Ela pescou um par de óculosde proteção com lentes escuras eum boné de couro de um bolso

do avental e os vestiu comfirmeza.

O pentagrama se acendeu denovo, lançando fagulhas brancasque queimavam no couro aoredor. Um orbe branco apareceusobre a superfície e, para oespanto de Fletcher, umdemônio se formou em apenasalguns segundos. A criatura tinhao corpo, a cauda e as patastraseiras de um leão, só que acabeça, as asas e garras dianteiras

eram como as de uma águia.Tinha o tamanho de um cavalo,com penas castanhas amareladasque se mesclavam com o pelodourado da metade posterior dacriatura.

— Eu também fui abençoadacom um demônio raro, um Grifo.Mas não o recebi de presente. Eucomecei com um Caruncho,assim como alguns de vocês. Nãodeixem que seus começoshumildes os desencorajem.

Carunchos são criaturasferozmente fiéis, e vocês podemcomandar vários deles ao mesmotempo. Lisandro exige toda aminha concentração só paramantê-lo sob controle. O majorGoodwin vai lhes ensinar maissobre controle de demônios nasaulas de demonologia.

Genevieve sorriu e levouAzura até os lábios, beijando acarapaça azul-cobalto dobesouro.

— Isso significa que a senhoraera plebeia também? — indagouRory, incapaz de tirar os olhos damajestosa criatura.

— Não... mas eu estavapresente quando os primeirosplebeus chegaram em Vocans.Sou a terceira filha dos Lovett deCalgary, um pequeno feudo nonorte de Hominum. Por umaestranha coincidência, meu paifoi abençoado com vários filhosadeptos. Eu era a mais nova,

então recebi o demônio maisfraco. Fico feliz que ele tenhafeito isso, porém. Se não, eujamais teria me especializado emcaptura demoníaca. Todos vocêspodem possuir um demôniopoderoso como este, desde quetrabalhem bastante. — Elaabraçou Lisandro, que esfregou obico em seu peito com afeição.Os olhos do Grifo eram de umâmbar profundo, grandes einteligentes como os de uma

coruja. Eles saltaram de alunoem aluno com curiosidade,finalmente pousando em Ignáciocom atenção especial. — Agora,vou demonstrar como infundir. Épraticamente o procedimentoreverso. O pentagrama tem queestar apontando diretamentepara o demônio e não pode estarmuito longe. É por isso quefazemos com que eles fiquem noscouros de conjuração.Entretanto, se Lisandro pairasse

vários metros acima dopentagrama, eu ainda assimconseguiria infundi-lo.

Lovett se ajoelhou e pôs asmãos no couro mais uma vez,acendendo o pentagrama.

— Você primeiro precisaempurrar mana para opentagrama. Logo sentirá umobstáculo entre a consciência doseu demônio e a sua. Uma vezque alcançar essa sensação, puxeo demônio através dela... — A

capitã arfou com o esforço eLisandro brilhou, em seguida sedissipando em fios de luz brancaque fluíram para as suas mãos. —E isso é tudo — anunciou Lovett,com a testa molhada de suor.

Eles aplaudiram suahabilidade, mas Fletcher ficoucheio de apreensão quando aprofessora voltou os olhos de açopara ele.

— Fletcher, você tentaprimeiro, pois o seu demônio é o

que mais precisa de descanso.Arcturo me contou que você éparticularmente talentoso comfeitiçaria. Vamos ver se o mesmoé verdade para a infusão.

— Lovett apontou para o chãodiante dele.

Fletcher lentamentedesenrolou seu tapete deconjuração e mandou Ignáciosubir sobre ele. O demôniosentou e soltou um chilreionervoso ao sentir a ansiedade do

dono. O rapaz fez conformeinstruído, canalizando o manapara o couro através das mãos. Opentagrama se acendeu numvioleta ardente, constante eestável.

— Você está sentindo,Fletcher? — indagou Lovett,pousando a mão firme etranquilizante no ombro doaprendiz.

— Sim, estou — grunhiu elede volta, entre dentes. Naquele

estado carregado de mana, a luzera quase cegante, preenchendoseu campo de visão com a estrelareluzente.

— Puxe-o pela barreira. Vocêpode ter um pouco dedificuldade no começo, mas énormal na sua primeira infusão.— A voz de Lovett soava como seviesse de muito longe.

O mana pulsava pelas veias dorapaz com cada batida docoração, trovejando em seus

ouvidos. Sua ligação com Ignácioestava bloqueada. Fletcheralcançou e agarrou a mente dodemônio e, com um esforçocolossal, puxou-o para dentro.Por um momento, fez força,sibilando entre dentes cerrados.Era como se Ignácio estivessepreso a uma teia elástica. Depoisdo que pareceu uma eternidade,houve um estalo gentil e aconsciência do demônio sefundiu com a do garoto. Era

como se deixar submergir numbanho morno.

— Muito bem, Fletcher! Vocêpode descansar agora —sussurrou Lovett no ouvido dele.

Fletcher encostou a cabeça nocouro macio, inspirando fundorepetidas vezes. Ele ouvia osoutros batendo palmas ebradando sons incoerentes. Suamente estava cheia de felicidadee clareza extraordinárias, como seestivesse completamente

entorpecido.— O que Fletcher está

sentindo agora é a euforiatemporária causada pela fusão deduas consciências. Seu demônioestá dentro dele, porém ele malficará consciente da presença dacriatura após alguns minutos.Ignácio verá tudo que Fletchervê, mesmo que só entenda muitopouco. Isso pode serextremamente útil se vocêsprecisarem conjurar no meio de

uma batalha, pois os demôniosestarão preparados para asituação assim que reaparecerem— ensinou Lovett, andando deum lado ao outro diante dele. —Alguns invocadoresexperimentam clarões dememórias demoníacas nos mesesapós a primeira infusão de seusdemônios. Isso também vaipassar, mas é uma parteimportante de como aprendemossobre o éter. Se acontecer com

vocês, não deixem de registrarcada detalhe e transmitir tudo amim e ao major Goodwin.Precisamos de cada migalha deinformação que pudermos juntarsobre a vida dos demônios —continuou ela.

Fletcher se levantou comdificuldade e voltou para juntodos outros, com a cabeça aindagirando. Serafim lhe deu tapasamistosos nas costas, com umsorriso invejoso no rosto.

— Muito bem. Parece quevocê é meu maior concorrente —sussurrou ele.

— Ou não. Acho que aquiloquase me matou — respondeuFletcher, sentindo o caloragradável de Ignácio dentro desi. Era estranho; ele malconseguia distinguir aconsciência de Ignácio daprópria. O filamento não osconectava mais; os dois fluíamum para o outro como o

encontro de dois rios.Otelo lhe lançou um sorriso

encorajador e até mesmo Sylva otocou de leve no braço antes devoltar sua atenção para Sariel. Aelfa enterrou o rosto e as mãosno pelo dourado do demônio,agarrando-se ao Canídeo comose sua vida dependesse dela.Fletcher suspeitou que sepassaria um longo tempo antesque ela quisesse infundir Sarielde novo.

— Agora, Otelo e Fletcher,vamos dar uma olhada nessassuas cabeças — disse Lovett,chamando os dois à frente. Umavez que estavam diante dela, aprofessora sussurrou: — Temalguma coisa que vocês, rapazes,precisem me contar? Vocês eSylva parecem ter vindo daguerra, e eu sei bem como aguerra é.

— Não foi nada que nãopudéssemos resolver —

assegurou Fletcher, olhando paraOtelo em busca de apoio.

— Nós cuidamos de tudo —concordou o anão.

Lovett encarou os dois por ummomento antes de inclinar acabeça, cedendo.

— Bem, se vocês mudarem deideia, podem vir falar comigo —murmurou ela, encarando ostrês. — Vocês não precisam lutarsuas batalhas sozinhos.

Então deu um passo atrás e

ergueu a voz:— Venham cá, todos vocês.

Vou usar o feitiço de cura; é umaboa oportunidade para vocêsobservarem.

O resto dos plebeus seaproximou, tagarelandoempolgados com a chance de veroutro feitiço. Otelo tirou aatadura, revelando um corte feiona têmpora.

Fletcher estremeceu com avisão. Ele não tinha se tocado da

seriedade do ferimento.— Observem com muita

atenção — anunciou Lovett. Aprofessora entalhou um símbolono formato de um coração no arcom fogo-fátuo, depois oapontou para o machucado deOtelo. — O feitiço de cura éperfeito para cortes, hematomase até ferimentos internos, masnão tem efeito algum contravenenos e doenças — continuou,franzindo o cenho ao se

concentrar. — Requer muitomana e leva algum tempo para seexecutar, especialmente emferimentos mais profundos.

Ela exalou, e luz douradafluiu do símbolo à cabeça deOtelo. Nada aconteceu poralguns segundos. Enfim, para oespanto de Fletcher, o ferimentocomeçou a se fechar sozinho,selando a si mesmo até a peleficar completamente curada,deixando nada além de uma

crosta de sangue seco.O grupo bateu palmas,

comemorando o feito. Lovettvoltou o olhar à testa de Fletcher,mas balançou a cabeça.

— Você vai ter que deixaresse machucado sarar sozinho,Fletcher — explicou a professora,apontando o inchaço. — Podehaver uma fratura, e o feitiço decura pode fazer com que os ossosse fundam de maneira incorreta,deixando você permanentemente

desfigurado. Melhor não arriscar.Fletcher assentiu, tocando o

galo com um estremecimento.— Certo, vamos treinar o

resto de vocês. Uma vez quetiverem dominado a infusão,poderemos passar para a partedivertida! — exclamou Lovett,batendo palmas.

— O que acontece nessaparte? — indagou Roryenquanto, abaixado, desenrolavao couro de conjuração.

Lovett tirou os óculos e sorriumisteriosamente.

— Vamos entrar no éter.

33

A lição seguinte foi dada pelomajor Goodwin, um sujeitoidoso, falastrão mas severo, comum nariz vermelho e umcavanhaque branco eriçado. Elecaminhava pela sala de aula,desafiando seu físico corpulento.

— A demonologia é essencialno suporte de sua feitiçaria etrabalho em éter. Diz respeito aidentificação, compreensão ecriação de todos os demônios,além do estudo da geografia e dadiversidade do éter. Isso inclui oimpacto demoníaco nos níveis demana e na realização doconjurador. — Ele falava emexplosões curtas que cobriam aprimeira fila de nobres comcuspe. Fletcher ficava feliz em ver

que Tarquin estava diretamentena linha de fogo e que, julgandopela expressão de nojo em seurosto, o rapaz não gostava de serbanhado em saliva.

Infelizmente, o sorriso deFletcher atraiu a atenção deGoodwin.

— Você, garoto, o que é arealização de um conjurador? —inquiriu ele, apontando paraFletcher.

— Hum... a satisfação dele? —

sugeriu o rapaz. Não era óbvio?— Uma resposta risível. A

realização de um conjurador érelacionada a quantos demôniosele é capaz de controlar. Eu tinhaesperança de que alguémafortunado o bastante para serpresenteado com um demônioraro investisse algum tempopesquisando sobre o assuntoantes da sua primeira lição.Obviamente, eu estavaenganado. Uma pena —

lamentou Goodwin, balançandoa cabeça.

Fletcher sentiu o rosto arderde vergonha. Isadora se virou elhe lançou um sorrisinhozombeteiro da fileira de baixo.

— Será que alguém que sepreparou poderia explicar? Quetal você, Malik? — perguntouGoodwin.

— Senhor, todos osconjuradores nascem comcapacidades variadas de absorção

de energia demoníaca —respondeu um nobre alto, depele escura. — Por exemplo, acapitã Lovett só tem capacidadepara atrelar e controlar um Grifoe um Caruncho. Outroconjurador pode ser capaz deatrelar e controlar dois Grifos,caso tenha um nível de realizaçãomais alto do que ela.

— Correto. O velho rei Alfrictem nível de uma centena, omais alto jamais registrado desde

que começamos a classificardemônios. Usando mais uma vezo exemplo da capitã Lovett,sabemos que ela tem um nível derealização de onze, dado que seuGrifo é um demônio classe dez, eseu Caruncho, classe um. O quemais?

— Os níveis de realizaçãopodem melhorar — acrescentouMalik depois de uma pausa.

— Como?— Eu não sei, senhor.

Goodwin fungou longamente,com irritação.

— Insuficiente. A resposta éque os níveis crescemnaturalmente em velocidadesdiferentes para cada conjuradorcom a passagem do tempo. Esseprocesso pode ser acelerado pelotrabalho duro do conjurador.Lovett não nasceu com um nívelde realização suficiente paraatrelar e controlar um Grifo. Elateve que se esforçar muito para

alcançá-lo pelo uso constante defeitiçaria, visitas ao éter ecombate e atrelamento frequentede outros demônios. Algunsconjuradores passam suas vidasinteiras com um nível derealização de não mais que cinco,enquanto outros começam emcinco e se esforçam até chegar avinte ou mais. Bem, por quevocês não estão anotando tudoisso? — gritou Goodwin,lançando perdigotos sobre a

turma.Os outros pegaram

pergaminhos nas bolsas ecomeçaram a escreverfuriosamente. Fletcher fitou asmãos, infeliz, percebendo quenão tinha onde anotar. Todos osoutros ficaram sabendo queviriam a Vocans semanas antes etrouxeram os materiaisnecessários, mas Fletcher tinha seesquecido de comprar algumascoisas nos poucos dias em que

estivera lá.Goodwin se irritou ao notar a

inatividade de Fletcher.— Fletcher, não é? — rosnou

ele.— Sim, senhor — respondeu

o rapaz, baixando a cabeçaenvergonhado.

— Enquanto os outros estãoocupados aprendendo, talvezvocê possa me dizer o queacontece a um demônio depoisque seu conjurador morre?

Fletcher contemplou aquestão, ansioso para se redimir,mesmo que fosse por deduções.Ele sabia que demônios mortoseram frequentementepreservados em jarros e vendidoscomo curiosidades. Mascertamente alguma coisa tinhaque acontecer quando oconjurador morria e deixava odemônio desatrelado... a não serque a pergunta fosse umapegadinha? Fletcher se lembrou

da história de Rotherham sobreBaker e o demônio que não oabandonava, mesmo na morte.Talvez fosse um truque.

— Nada, senhor — respondeuFletcher, confiante. Porém, seucoração afundou ao ver Tarquinsorrir. Sabia que tinha erradoantes mesmo de Goodwin abrir aboca.

— Ridículo. Você não sabeabsolutamente nada sobredemônios? Quando um

conjurador morre, seu demôniopermanece em nosso mundo porapenas algumas horas, antes deser reabsorvido de volta peloéter. Para ficar vivo no nossomundo, ele precisa estaratrelado. É essa conexão que osmantém aqui. Caso contrário,eles simplesmente desvanecerão.Ou você achou que haviademônios selvagens correndo poraí? — Goodwin falou bem altopara que todos ouvissem, e a

reação geral foi um aumentogeneralizado na intensidade dasanotações. Desgostoso, oprofessor deu as costas aomenino e foi até a parede atrásde si. Havia vários rolos longosde pergaminho encostados ali,dos quais ele pegou um,desenrolou e fixou na parede.Era um diagrama detalhado deum Caruncho em preto e branco,com várias estatísticas e númerosabaixo. — Hoje vamos aprender

sobre Carunchos, o nível maisbaixo de demônio, afora seusvários outros primos na base dacadeia alimentar, os quais nãovale a pena capturar. Sei quetemos dois deles aqui hoje,especificamente Escaravelhos, osmais poderosos da famíliaCaruncho. Fracos em mana,tamanho e força, mas úteis comobatedores. Muito bons emdistrair o inimigo durante umaluta, especialmente se atacarem

os olhos. Genevieve e Rorypossuem Escaravelhos juvenis,mas em alguns meses vãodesenvolver ferrões, que podemcausar paralisia de baixo nível euma dor nada insignificante. Umenxame de dez ferrões podematar um orc touro, portantonão subestimem o poder doveneno.

— Fantástico! — exclamouRory em voz alta, em seguidacobriu a boca com as mãos.

Todos riram, exceto Goodwin,que fungou com irritação.

A lição continuou nesse estilopor várias horas, listandoinúmeros dados e discutindo oshábitos de alimentação e criaçãodo Escaravelho. Fletcherobservou deprimido enquantopáginas e mais páginas deanotações se empilhavam nascarteiras dos outros, até queOtelo o cutucou com o pé esussurrou:

— Não se preocupe, vocêpode copiar minhas anotaçõesmais tarde.

Durante o almoço, Fletcherconseguiu pegar uma penaemprestada de Rory e um maçode pergaminhos com Genevieve,agora estava mais bem preparadopara a segunda metade da aula.Entretanto, quando voltaram, orapaz se surpreendeu aoencontrar Cipião esperando poreles na sala de aula, com uma

expressão de impaciência norosto.

— Fletcher, vá se apresentarna biblioteca. Você ainda nãoentregou o livro de James Baker,apesar de ter recebido ordens delevá-lo à bibliotecária há váriosdias — ralhou ele, irritado. —Major Goodwin, você seincomoda?

— Não com esse cadete —resmungou Goodwin. — Ele foiuma decepção.

Cipião ergueu as sobrancelhaspara Fletcher mas não dissenada. O rapaz juntou seuspertences, corado dehumilhação. Ele tinha mesmocausado uma impressão tãoruim?

— Caramba, eles levam oslivros atrasados a sério mesmonessa biblioteca daqui, hein? —murmurou Rory no seu ouvido.

— Encontro você lá. Não seesqueça de levar o livro —

instruiu Cipião a Fletcher, saindosem olhar para trás.

O garoto correu escada acima,amaldiçoando seusesquecimentos. Ele tinhaesquecido de escrever paraBerdon, de entregar o livro e,acima de tudo, de examiná-lo.

Fletcher lembrou a si mesmoque na carroça de ovelhasestivera escuro demais paraconseguir ler, um fato que oaborrecera bastante. Tinha sido

uma jornada incrivelmentequente e fétida sem nada para sedistrair além dos própriospensamentos. Mesmo assim,Fletcher definitivamente tinhatido tempo de lê-lo na noiteanterior.

Depois de correr até o topo datorre, recolher o livro e descer devolta à biblioteca, Fletcher estavaofegante. Apoiou-se na parede etentou se recompor. Não queriapiorar ainda mais a opinião que

Cipião tinha dele, chegando aolocal todo suado e atrapalhado.

— O que você está esperando,Fletcher, já para dentro! —vociferou Cipião atrás dele,fazendo o menino pular. O reitorpôs a mão no ombro do aluno eo conduziu para o interior doaposento.

Os dois entraram nabiblioteca juntos, e o cheirobolorento de livros velhos trouxememórias da cripta de Pelego de

volta à mente de Fletcher.Aquilo tudo tinha mesmo

acontecido havia meras semanas?— Ah, aqui está você. Tenho

de admitir que estavaantecipando este momento.Obrigada por tê-lo trazido, reitorCipião — disse uma voz vinda detrás das prateleiras. Momentosdepois, uma mulher de meia-idade com cabelos loirosencaracolados e óculos dearmação dourada emergiu das

estantes de livros. Ela tinha umaaparência de matrona e um rostosincero.

— Esta é a dama RoseFairhaven, a bibliotecária eenfermeira de Vocans.

Ela já está conosco há muitotempo — murmurou Cipião.

— Ora ora, reitor, você me fazparecer uma velhinha. Não fazassim tanto tempo! Bem, deixe-me ver o tomo. Vamos dar umaolhada.

Ela chamou os dois até umamesa baixa iluminada por umainfinidade de velas bruxuleantes.

— Coloque-o aqui onde todospodemos ver. Arcturo meexplicou a origem do livro. Eume lembro de James Baker.Rapaz calado, sempredesenhando. Tinha o coração deum artista, não de um guerreiro.Não nasceu para ser soldado.Lamento saber o que aconteceucom ele. — Ela suspirou e se

sentou à mesa.Fletcher pousou o livro e os

dois se juntaram à bibliotecária,inclinando-se para mais pertoenquanto ela folheava o tomocom um ar experiente.

— Isto é incrível! — exclamoua dama Fairhaven.

As páginas estavam cheias deesboços intrincados de demônioscom uma caligrafia fina eelegante abaixo. O nível dedetalhamento era extraordinário,

com estatísticas e medidas muitosemelhantes ao pergaminho deCaruncho usado pelo majorGoodwin para dar aula.

— Ele estava estudandodemônios da parte órquica doéter, sua fisiologia ecaracterísticas. Provavelmentedissecava quaisquer demôniosórquicos preservados nos quaisconseguia colocar as mãos! Éexatamente disto que precisamospara nossos arquivos. A maioria

dos magos de batalha parece teresquecido um dos ditos maisimportantes de um soldado:conheça seu inimigo. Talvezagora, que está tudo registrado,eles comecem a levar isso mais asério.

Fletcher sorriu, feliz porfinalmente ter sido capaz decontribuir, mesmoindiretamente.

— São notícias excelentes,dama Fairhaven, mesmo que eu

tivesse esperanças de que o livronos desse mais informações sobrecomo Baker encontrou opergaminho de conjuração daSalamandra de Fletcher —comentou Cipião, com um toquede decepção na voz.

— Na verdade, damaFairhaven, se a senhora olhar nofinal, deve haver alguma coisasobre esse assunto. Acho queBaker esteve escrevendo umdiário perto do fim — sugeriu

Fletcher.Ela passou as páginas até

chegar às últimas, onde osdiagramas terminavam e asfolhas estavam cobertas de linhasde texto.

— Esperem, o que é isso? —indagou a dama Fairhaven,puxando o pergaminho deconjuração coriáceo e oexaminando à luz.

— Eu... não tocaria nisso sefosse a senhora — gaguejou

Fletcher.— Sei do que isto é feito,

Fletcher — retrucou abibliotecária, manuseando omaterial com fascinação. — Já vium destes, muitos anos atrás.Inscrever um pergaminho pormeio da escarificação da pele deum inimigo era o métodocostumeiro dos velhos xamãs orcspara presentear demônios aosaprendizes. Não é tão comumnos dias de hoje, porém. Vamos

ver o que Baker tinha a dizersobre o assunto.

Os olhos delaesquadrinharam as páginasenquanto Fletcher e Cipiãoesperavam pacientemente. Adama Fairhaven parecia estarlendo numa velocidade incrível,mas, bem, ela era umabibliotecária, afinal. Pouco tempodepois, fechou o livro e o pôs delado.

— Pobre James — comentou,

balançando a cabeça. — Eleestava bem deprimido perto dofim; ninguém levava a pesquisadele a sério. Os outros magos debatalha não o respeitavamporque ele era um conjuradorfraco. Fora amaldiçoado com umnível de realização três, pobrecoitado. Desconfio que suamalfadada missão florestaadentro foi uma tentativadesesperada de encontrar umxamã orc e, de alguma forma,

descobrir as chaves que elesusam.

— Insensatez da parte dele —escarneceu Cipião, lançando asmãos ao ar. — Os xamãs orcssabem que queremos descobrirquais chaves eles usam, entãonunca entram no éter perto daslinhas de frente. Agora me contesobre esse pergaminho. Ele é omotivo de todo esse rebuliço,afinal.

— Diz aqui que ele encontrou

o rolo enterrado num velhoacampamento órquico. Numtrecho mais anterior do diário,ele conta que encontrou muitosossos no mesmo sítio, tanto dehumanos quanto de orcs.Suspeito que o acampamento dosorcs tenha sido atacado no meioda cerimônia de concessão dedemônio, e o rolo de pergaminhofoi enterrado numa vala comum.Os homens que sepultaram oscorpos provavelmente não

sabiam de sua importância —explicou a dama Fairhaven,acariciando o documento comfascinação mórbida.

— Inútil! — resmungouCipião, com a voz cheia dedesapontamento. — Uma meracoincidência. Duvido queencontraremos quaisquer outrospergaminhos escavando essesossos velhos. Faça uma cópia dolivro sem o diário e o mande aosmagos de batalha.

— Sim, senhor, começarei estanoite. Se bem que devo precisarcontratar alguns escribas paracopiar as ilustrações direito —respondeu a dama Fairhaven,folheando o livro distraidamente.

— Pode contratar. Pelo menosalgum bem adveio de tudo isso— disse Cipião enquanto saía dabiblioteca. — Além da suapresença aqui, é claro, Fletcher— acrescentou, do corredor.

Fletcher fitou o livro com

cobiça. Não podia acreditar quetinha deixado para lê-lo tãotarde, por maior que fosse. Adama Fairhaven continuoupassando as páginas e, quandoFletcher se endireitou, ela ergueuo olhar para ele, como se tivessese esquecido de sua presença.

— Por favor, me desculpe,Fletcher, é que estou tãofascinada por este livro.Muitíssimo obrigada por tê-lotrazido. Temo que terei que ficar

com ele até que cópias suficientestenham sido feitas, o que develevar alguns meses. Você poderáficar com ele depois disso.

34

Fletcher tinha esperado poderver quais eram os demônios dosnobres quando Lovett finalmentedecidiu que todos os plebeustinham dominado a infusão.Infelizmente, ela sempremandava que eles os infundissem

antes de abrir a cortina.O menino ficara surpreso ao

ver que Rory e Genevievetiveram facilidade com a infusão,enquanto Serafim, Otelo e Atlasprecisaram de várias tentativaspara dominar a arte. Fazia muitosentido pois, quanto maispoderoso o demônio, mais difícilera infundi-lo.

Conforme as liçõesprogrediam, Fletcher começou aavaliar seus colegas. Os nobres

eram versados, mas preguiçosos,satisfeitos com os níveis atuais dehabilidade e complacentes noaprendizado.

Em contrapartida, os plebeusaprendiam num ritmo feroz,absorvendo cada migalha deinformação que encontravam.Infelizmente, a prática era omelhor professor tanto nafeitiçaria quanto na infusão, e,portanto, o progresso era lento.

Ainda assim, havia vários

alunos se destacando dentre osamigos de Fletcher. Sylva e Oteloeram naturalmente talentosos,recebendo comentários positivosdos professores em quase todasas lições. O mesmo acontecia nasaulas de demonologia, maisteóricas. O par praticamente viviana biblioteca, buscandoconhecimento oculto em tomosantigos.

Fletcher aprendia quase tantocom eles quanto com o major

Goodwin.Quanto aos plebeus humanos,

Fletcher e Serafim lideravam ogrupo, mais por puro esforço doque por um dom natural. Osoutros tinham criado o costumede tirar os fins de semana defolga em Corcillum, comprandopresentes e necessidades emandando-os às famílias. Afamília de Serafim parecia já serabastada e ele visitara a capitalno passado, então preferia passar

seu tempo estudando comFletcher.

Era um jovem de bom carátercom um senso de humordesavergonhado que lhe rendiamuitos olhares desaprovadoresde Sylva e Otelo enquanto estesliam no silêncio poeirento dabiblioteca.

— Todos juntos aqui no meio,pessoal — gritou Lovett, tirandoFletcher de seus devaneios.

Quatro criados tinham levado

uma mesa redonda de pedra aocentro do aposento. Estavacoberta com um lençol branco,mas Fletcher via uma grandeelevação convexa no meio. Todosconseguiram lugar em volta damesa, apesar de ter ficadoapertado. Isadora fez uma caretaquando Atlas, todo suado,espremeu-se ao seu lado. Amenina, com um gesto nítido,levou um lenço rendado aonariz.

— Desculpa — murmurouAtlas, envergonhado.

Lovett deixou seu lugar àmesa e se ajoelhou ao lado domaior pentagrama no centro dasala. Ao contrário dos couros deconjuração que eles vinhamusando, esta estrela de cincopontas estava cercada pelasestranhas chaves que tinham sidogravadas na capa do livro deJames Baker.

— Jamais usem um

pentagrama chaveado sem apresença de um professor,entenderam? — grunhiu ela,apontando para a estrela diantede si. — Quebrar essa regra émotivo para expulsão imediata.Vocês foram avisados!

Os estudantes assentiramcalados enquanto ela energizavao pentagrama, cujas linhascrepitavam com poder e cuspiamfagulhas para todos os lados.Desta vez, Lovett permaneceu de

cabeça baixa por vários minutos,seu rosto contorcido deconcentração. O pentagramapulsava com um zumbido volátil,tremeluzindo como o cantarolarincessante de um louco.

— Caramba, se Lovett demoratanto tempo, não acho que euconseguiria usar um pentagramachaveado nem se quisesse —sussurrou Serafim ao lado deFletcher. — Eu mal consigoinfundir Farpa sem quase

desmaiar.— Não se preocupe. Tenho

certeza de que, com a prática,nós vamos conseguir —murmurou Fletcher de volta.

Finalmente, uma esfera seexpandiu no centro da estrela ese manteve pairando no ar comoum fraco sol azul. Lovett ofegoue então passou de joelhos para opróximo pentagrama. Com umtoque suave, ela libertou umdemônio acima dele.

— Um Caruncho! —sussurrou Genevieve a Rory.Lovett ouviu e se virou com umsorriso cansado.

— Isso mesmo. Eles são osmelhores batedores, semprenecessários quando caçamos noéter. Valens é o primeirodemônio que eu tive. Sem ele,não teria conseguido capturarLisandro, nem qualquer um dosdemônios que eu tive antes dele,na verdade. — Ela voltou à mesa

e pousou a mão sobre o panobranco que a cobria. Na outramão, segurava uma longa tira decouro que se conectava à base dopentagrama chaveado. Fletchersuspeitava que servia paramanter o mana fluindo. — Estouprestes a lhes mostrar oequipamento mais caro daacademia inteira. Não toquem.Nem sequer respirem nele.Apenas observem — sibilouLovett, olhando nos olhos de

cada um até que todosestivessem assentindo. Com esseaviso final, ela arrancou o lençole revelou o que havia abaixo.

Uma enorme gema estavamontada numa superfície demármore branco.

O cristal era límpido comouma nascente e sua cor era doroxo profundo da urze selvagem.

— Esta gema é um tipo muitoraro de cristal chamadoCorundum — explicou Lovett. —

Ele se forma em quase todas ascores, mas uma peça tão grande etransparente assim éincrivelmente difícil de seencontrar. Nós as chamamos depedras de visão, porém esta gemaem particular é conhecida comoo Oculus. Vamos fornecer-lhesuma peça se vocês não tiveremmeios de comprar uma para si,apesar de que vocês poderãonotar que a qualidade e otamanho das gemas da academia

são bem... limitadas.Lovett chamou Valens com

um gesto, e a criaturinhaesvoaçou sobre as cabeças dosalunos, pousando na gema.Diferentemente de Malaqui eAzura, a carapaça desseCaruncho era de um marrom-escuro sem graça. Como se elapudesse ler a mente de Fletcher,Lovett sorriu astutamente eacariciou a carapaça do besourodemônio.

— Valens é muito apropriadopara suas funções. Ele não ficabonito no meu ombro, mas serámais difícil de se detectar seacabar topando com umdemônio faminto lá no éter.

Fletcher teve uma rápidalembrança de Ignácio comendoum besouro marrom quando eleo conjurou pela primeira vez,mas aquele era muito menor quequalquer um dos Carunchos queo rapaz vira. Talvez fosse de uma

espécie diferente.— Certo, vamos botar esse

circo na estrada. Vocês precisamempurrar mana através dodemônio para a pedra, assim —explicou ela, pousando a mãolivre sobre Valens.

A gema se tornou negra.Quando a capitã afastou a mão, acor mudou de novo.Inicialmente, Fletcher pensouque a gema tinha se tornado umespelho, pois se viu fitando a

imagem do próprio rosto. Porém,logo a imagem se transformou nade Serafim.

— Vocês agora estãoenxergando pelos olhos deValens. É uma técnica quechamamos de cristalomancia,muito útil para fazerreconhecimento e controlar seudemônio a distância. Nós jápodemos sentir os pensamentosde nossos demônios. Agorapodemos ver o que eles estão

vendo no cristal. É essencialverificar o que há do outro ladodo portal através do seu demôniomenos importante antes deentrar no éter. Se houver algoperigoso do lado de lá quandoele atravessar, será Valenscorrendo o risco em vez deLisandro. Como um Caruncho émenor e mais ágil, é tambémmenor a chance de ser notado epode escapar com maisfacilidade.

A imagem tremeu quandoValens zumbiu no ar e pairoulogo em frente ao orbe azul quegirava. Lovett estalou a língua e,com isso, o demônio disparou luzadentro como um tiro demosquete.

A primeira coisa que Fletcherviu na pedra foi o chão tingidode vermelho. Grãos finos depoeira ferruginosa rodopiavamacima, transformados empequenos torvelinhos por um

vento feroz. O céu era doalaranjado da aurora, só que nãocontinha nenhum calor, nemhavia nele uma fonte de luz.Árvores atrofiadas pontilhavam apaisagem, seus galhos esparsoscontorcidos em rigor mortis. Nãoexistia vida ali, apenas a carcaçaseca de uma terra morta haviamuito.

— Perfeito — comentouLovett. — Emergimos nas terrasmortas.

— Terras mortas? — indagouRory, numa voz de espanto.

— Entrar no éter não é umaciência exata. Existe uma largamargem de erro de ondepoderemos aparecer. As terrasmortas têm seus pontos positivose negativos, dependendo do seupropósito. Não haverá nada paralhe surpreender aqui, porém, sevocê estiver tentando capturarum demônio, terá que arrastá-lopor uma bela distância para

voltar ao local de origem. Se euestivesse caçando, fecharia esteportal e abriria um novo, porém,para os fins deste exercício, este éo lugar ideal. As terras mortas selocalizam entre o vazio e a orlaexterior do éter habitado —declarou Lovett numa vozfatigada. Fletcher notou umaveia pulsando na testa daprofessora. Entrar no éterprovavelmente exigia muitopoder e concentração.

Valens se virou e voou paralonge do portal, ganhandoaltitude constantemente. A salapermanecia em silêncio, excetopela respiração de Lovett,conforme os minutos sepassavam. A paisagem pareciaficar mais e mais desolada, comcada vez menos árvores, até quesó se via terra plana e crua.

— Como você sabe para ondeir? — perguntou Tarquin. —Parece tudo igual para mim.

Fletcher percebeu que erauma boa pergunta. O jovemnobre poderia ser muitas coisas,mas não era burro.

— O portal está semprevoltado para o centro do éterquando o seu demônio sai dele,então você é orientado assim quechega. Além disso, todos osdemônios são atraídosinstintivamente ao centro, e têmuma bússola interna que lhes dizpara que lado ele fica. Eu posso

me guiar usando esses sentidos,mas exige prática e não é muitopreciso. É por esse motivo que ésempre arriscado entrar no éter.Só consigo manter o portal abertopor um tempo limitado e, se eufechá-lo antes que Valens passede volta, nosso vínculo serárompido, e o perderei — explicouLovett. Tarquin abriu a boca parafazer outra pergunta, masFletcher falou primeiro.

— O que você quer dizer com

centro? Isso significa que o étertem uma forma? — perguntouele, tentando entender.

— Até onde sabemos, o étertem forma de disco. Osdemônios mais fracos tendem apermanecer nos anéis exteriores,enquanto as criaturas maispoderosas gravitam pelo centro.Parece haver uma cadeiaalimentar rudimentar, comCarunchos de nível baixo nabase, mais próximos às terras

mortas.Tarquin começou a falar de

novo, mas Lovett ergueu a mãopara silenciá-lo.

— Guardem suas perguntaspara mais tarde. Já é difícil osuficiente manter o portal abertoe guiar Valens sem ter quepensar em respostas para vocês.— Mesmo enquanto ela falava, opentagrama tremeluzia. Aprofessora grunhiu e o símbolobrilhou num violeta constante

novamente.Apesar da intensidade da

lição, Fletcher se sentiu relaxar,talvez pela primeira vez. Todosestavam aprendendo algumacoisa, até Tarquin. Tudo faziasentido para Fletcher, como seele estivesse se lembrando dealgo havia muito esquecido. Elenascera para aquilo.

O horizonte começou a cair,escurecendo dramaticamente. Obrilho do céu desapareceu numa

treva pura e sem estrelas, porémo pequeno Caruncho continuousubindo e subindo. Finalmente,ele parou e olhou para baixonovamente.

— Olhem de perto. Vocês osverão — instruiu Lovett, a voztensa com o esforço.

A terra terminava numa linharegular, criando um perfeitoprecipício que mergulhava nastrevas turvas abaixo. Fletcher viuque a linha do penhasco se

estendia bem ao longe,curvando-se quaseimperceptivelmente aodesaparecer de vista. Percebeuque o disco devia ser enorme,maior que mil Hominums.Aquele não era um bom lugarpara se perder, pensousombriamente.

Seu raciocínio se perdeuquando ele viu algo se mexer noabismo. Conforme os olhos dodemônio se ajustavam à

escuridão, uma massatempestuosa surgia. Ela se torciae se retorcia tortuosamente, umcaos emaranhado de tentáculos,olhos e dentes serrilhados.

— Ceteanos — sussurrouSylva, em terror.

— Isso, Ceteanos. Você fez odever de casa, Sylva —pronunciou Lovett, soturna,enxugando o suor da testa. —Alguns os chamam de Antigos.Eles passam fome lá embaixo,

canibalizando uns aos outrosenquanto esperam. Os Ceteanosagarram qualquer demônio quevaguear para longe o bastante,geralmente os doentes ouferidos, tentando encontraralgum lugar onde se recuperar.Por isso precisamos voar tão alto.Esta é a primeira e única vez emque me arriscarei a chegar pertodeles, então aprendam bem alição.

Fiquem longe daqui.

Valens girou e voou de voltaem direção ao lugar de ondetinham vindo. Desta vez nãohouve perguntas enquanto ogrupo refletia sobre as criaturashorripilantes que tinham visto.Os monstros gigantes eram seresgrotescos e torturados, dissoFletcher tinha certeza. Por maisque não pudesse ouvir nada, eracapaz de imaginar seus gritosatormentados.

O orbe azul do portal surgiu

novamente à vista, mas Valenspassou direto por cima dele. Comsua altitude atual, eles podiamvoar bem rápido, vendo o solopassando sob eles como folhascaídas num rio. Fletcher tentouimaginar como seria a sensaçãode Lovett, de montar um Grifosobre o campo de batalha, entãosentiu uma pontada de inveja aose tocar de que jamais seria capazde montar Ignácio.

— Eu lhes mostrarei

rapidamente onde começam oscampos de caça, então terei quevoltar — disse Lovett, os dentestrincados. — Normalmenteconsigo durar muito mais, masainda não me recuperei dacaptura da Lutra de Atlas, algunsdias atrás. Tive sorte do reitorCipião estar lá para atrelá-la.

— Atrelar? — indagou Rory.Lovett o ignorou, limitando-se aapontar a gema.

O mundo tinha ficado verde.

Valens contemplava umafloresta, mas a vegetação não erade nenhum tipo que Fletcherreconhecesse. Acima da mata,eles viram revoadas de demôniosvoando ao longe, mergulhando egirando como estorninhos. Umenxame de minúsculosCarunchos voava baixo sobre asárvores, até se dispersar quandoum grande Caruncho não muitodiferente de Valens agarrou umdeles no ar. Bem ao longe,

nuvens de cinzas manchavam océu. Abaixo delas, vulcões compontas de lava cuspiam pilares defumaça que se erguiam no ar,como colunas sustentando oscéus.

Algo atingiu Valens com forçabrutal, derrubando-o. Lovettgritou de dor conforme aimagem girava como umcaleidoscópio, as árvoreschegando cada vez mais perto.

A pedra se tornou negra como

tinta.

35

O grupo fitou a pedra negraaterrorizado, prendendo arespiração. Lovett agarrava a tirade couro, os nós dos dedosbrancos de tanta força, enquantoo pentagrama cuspia fagulhasvioleta, chamuscando e

fumegando no couro ao seuredor com o fedor de cabelosqueimados.

O Oculus piscou e se acendeunovamente. A imagem estavanebulosa e fora de foco, masgirou lentamente enquantoValens olhava para as copasiridescentes das árvores acima. Odemoninho estava vivo!

— Era isso que eu temia —murmurou Lovett. — É nestaépoca do ano que os Picanços

migram através dos nossoscampos de caça. Nos anosanteriores, eu teria esperado pelomenos mais um mês antes decomeçar as lições no éter, mastive de adiantar tudo graças aessa história de vocês, calouros,participarem do torneio. Malditoseja Cipião e sua pressa de botarvocês no campo de batalha! Notempo dele, eram cinco anos deestudo antes da formatura. Eledeveria saber o que está fazendo!

A professora praguejou longae intensamente, uma tirada maisprofana que uma conversa demarinheiros vesanianos. Asorelhas de Fletcher ficaramvermelhas com a explosão depalavrões, mas ele sorriu consigomesmo. Lovett sabia xingar comoninguém!

O menino tentou visualizarum Picanço com base no quetinha estudado, mas só conseguialembrar que se tratava de

criaturas perigosas, com aspectode aves, que visitavam a parte deHominum do éter.

— O Picanço vai voltar, masValens machucou uma das asas.Ele vai ter que disparar até oportal. Não existe a menorpossibilidade de ele enfrentar umPicanço; o bicho está três classesacima dele. Talvez cinco, se for amatriarca da revoada.

A última frase não dizia nadaa Fletcher, mas ele se perguntou

a que classe Ignácio pertencia.Quando o Caruncho voltou azumbir e se ergueu no ar,desajeitado, os pensamentos dorapaz voltaram ao presente.

O pobre demônio voavalentamente, atrasado pela asaferida. Ele fazia um rasante sobreo deserto vazio, fustigado pelosventos baixos que lançavampoeira em sua visão. Conformeos minutos se passavam comlentidão excruciante, Fletcher

percebeu algo à frente. Era umasombra, mas o rapaz não sabiabem do quê.

— Tem alguma coisa acima denós — afirmou ele, apontando aforma negra na pedra.

— Eu sei. Esteve conoscodesde a floresta. Picanços gostamde machucar a vítima com umataque surpresa, depois segui-lado alto até que ela desabe porconta dos ferimentos. É umatécnica eficaz, mas será uma

vantagem para nós hoje.Demônios selvagens têm ummedo quase instintivo de portais,então é raro que um delesatravesse, a não ser que oarrastemos. Se pudermos fazerValens vir pelo portal, então oPicanço o deixará em paz. Emseguida eu poderei infundi-lo, eaí ele vai sarar normalmente. Sóespero que consiga voltar —respondeu Lovett, empurrandouma mecha de cabelo suado para

longe dos olhos.Finalmente, o portal apareceu

no horizonte. Já não era semtempo, pois o voo de Valensestava cada vez mais instável, e aimagem no Oculus escurecia comfrequência preocupante.

— Só mais um pouco —sibilou Lovett, com a testafranzida de concentração.

Mas o Caruncho tinha vindoaté onde podia. Valens desabouao chão a poucos metros do

portal, aterrissando numabaforada de poeira. Ele ficoucaído, imóvel, e o único sinal deque ainda vivia era o brilho dapedra, exibindo as nuvens depoeira que giravam com o vento.

— Rápido, me tragam oequipamento etéreo, agora! Estáno último armário da paredeoposta. Não sei quanto tempotemos!

Serafim foi o primeiro a agir,disparando até o fundo da

câmara e puxando para fora doarmário um enorme volume.

— Eu preciso de ajuda, épesado! — gritou ele. Otelo seadiantou para assisti-lo e juntosos dois carregaram o aparato atéLovett. Fletcher continuoufitando a gema. A sombra tinhadado outro rasante.

— Não dá para eu mandarIgnácio buscá-lo? — perguntouFletcher.

— Não, nossos manas se

fundiriam se o seu demônioentrasse pelo meu portal. Amistura de manas é algo difícil dese dominar. Se você fracassar naprimeira tentativa, o portal sefechará e eu perderei Valens devez.

Lovett estava lutando paraentrar no que parecia ser umtraje inteiriço. Era feito de couropesado com botas de biqueira deaço na metade de baixo e umanel metálico em volta do

pescoço no topo. Depois deencaixar os pés, Lovett prendeu alonga tira de couro queenergizava o pentagrama a outraque se estendia nas costas dotraje, esta com vários metros decomprimento. Havia umamangueira longa e vaziaconectada a um capacete nochão, enrolada em várias voltas.

— Estenda meu tubo de ar,Serafim. Preciso de uma via aérealivre — comandou Lovett,

erguendo o capacete, que tinhaum anel de metal na base. Assimque Serafim terminou dedesenrolar a mangueira, a capitãencaixou o capacete sobre opescoço.

— Precisa estarhermeticamente fechado —gritou ela com voz abafada.

— O ar do éter é venenosopara nós. Se o meu traje forfurado, puxem-me de voltaimediatamente usando o cabo,

quer eu tenha recolhido Valensou não!

— É só um Caruncho. Porque arriscar sua vida por algo quevocê poderia substituir com outroigual amanhã? — indagouTarquin, com a voz carregada deceticismo.

Lovett se virou para ele, orosto semivisível. O capacete erafeito de cobre, com um painelredondo de vidro grosso nafrente. Havia uma grade na

viseira para impedir que seestilhaçasse.

— Um demônio não é umacoisa que se joga fora como umacamisa velha — vociferou ela. —Quando você tiver batalhadocom o seu, lado a lado, talvezvocê entenda.

Com essas palavras dedespedida, a capitã entrou noportal.

Eles viram Lovett emergir naimagem da gema, um vulto

marrom nebuloso surgindo navisão de Valens. Era tão estranhover a professora sair dapenumbra azulada do salão deevocação para o céu calcinado doéter em meros segundos. Porém,lá estava ela, pisoteando a poeirana direção do Caruncho compassos lentos e cuidadosos.

Logo a mão enluvadaalcançou e ergueu Valens,levando-o até diante do capacete.Os alunos viram os olhos

cinzentos de Lovett pelo vidro,carregados com iguaisquantidades de medo epreocupação, antes que ela sevirasse e se arrastasse de volta nadireção do portal.

— Por que ela se move tãodevagar? — sussurrouGenevieve.

— Ela está vestindo um trajepesado num deserto calcinanteenquanto mantém aberto umportal para outro mundo e

controla um demôniomoribundo. É um milagre queela consiga ficar de pé —respondeu Tarquin num tomsoberbo. — Se o portal se fechar,ela ficará presa até o veneno amatar depois que a suamangueira de ar for cortada aomeio. Mulher insensata.

— Ela vai conseguir —murmurou Fletcher, torcendointensamente enquanto ela davaum passo cambaleante depois do

outro.Foi Otelo quem viu primeiro,

um pequeno ponto negro no céu,crescendo a cada segundo. Eleapontou com curiosidade edepois com olhos arregalados deterror, enquanto o demônioemplumado crescia ao seaproximar. Lovett pareceu notá-lo também, pois apressou opasso; o pentagrama crepitouperigosamente conforme aconcentração dela se prejudicava.

O Picanço era uma avegigante com longas penas negras.A envergadura das asas era tãolarga quanto a altura de Fletcher,e as penas nas extremidadestinham pontas alvejadas debranco. Seu bico letal tinha umacurvatura cruel, com umabarbela em vermelho brilhantena garganta e uma cristavermelha no alto da cabeça,como um galo. Ele lembrava aFletcher um enorme e feio

abutre.O pássaro demônio

mergulhou contra Lovett com asgarras laranja brilhantesestendidas. A capitã se abaixou,mas tarde demais; as garrasriscaram o capacete com precisãobrutal. As unhas se prenderamna grade do aparato, arrastando-a para trás e derrubando-a decostas. O bico curvado atacourepetidamente, só conseguindofazer mossas no capacete de

cobre.— Puxem-na de volta! —

gritou Fletcher. — Ela está comValens nas mãos!

O menino agarrou o cabo e opuxou, esticando o couro grossoaté que rangesse sob a tensão. Osdemais logo seguiram seuexemplo; até mesmo Isadoradelicadamente segurou e fezforça com os outros. Elesprogrediram rápido, extraindovários metros de couro pelo

portal crepitante. Fletcher olhoupara trás, para a pedra devisualização, mas só conseguiucaptar flashes de penas contra océu de bronze enquanto odemônio continuava a bicarviolentamente.

A tensão no couro diminuiquando Lovett conseguiucambalear e ficar de pé, então elacaiu pelo portal numemaranhado de braços e pernas.No entanto, logo que o grupo

começou a comemorar, suasvozes ficaram entaladas aoperceberem: a capitã não voltarasozinha.

O Picanço emitiu um crocitaráspero, depois abriu bem as asase pisou no chão, ficando quasetão alto quanto um homem. Eleestreitou os ferozes olhosamarelos na luz fraca e entãoavançou num estranho saltitar,como se estivesse fazendo umabrincadeira macabra de

amarelinha. Lovett jazia imóvelno chão; alguma coisa estavaterrivelmente errada.

— Para trás! — gritouTarquin, colocando-se nocaminho do Picanço. Fletcherpodia até não gostar do rapaz,mas ficou impressionado. Ele eracorajoso.

O jovem nobre se ajoelhourapidamente e pôs as mãos nochão, energizando o pentagramamais próximo. Em instantes, um

demônio se formou acima dele einvestiu contra o Picanço semhesitação.

O demônio de Tarquin erauma Hidra, com três cabeçasreptilianas em pescoços longos eflexíveis, como um trio de cobrasconectado ao corpo de umlagarto monitor. As cabeçasoscilavam e tentavam abocanharo Picanço, dardejando para umlado e para o outro conforme odemônio invasor era conduzido

de volta ao portal. Eles estavambem equiparados, já que acriatura de Tarquin era grande obastante para ser montada,mesmo que boa parte de suaaltura fosse formada pelospescoços. As pernas da Hidraeram curtas, mas cada pataestava equipada com grossasgarras negras que se cravavam nocouro a cada passo.

— Nada consegue resistircontra Trébio! — bradou

Tarquin quando o Picançograsnou, confuso com o ataqueem três frentes.

Fletcher ignorou a luta econtornou os dois monstros atéLovett. Ela deveria estarconsciente, pois o portal aindaestava aberto, mas seu corpoestava imóvel como um cadáver.Valens se remexia na mão abertadela, zumbindo enquanto oPicanço combatia o demônio deTarquin. O pequeno Caruncho

queria ajudar, mas não era forteo bastante.

— Vou buscar um professor!— afirmou Genevieve, saindopela porta.

Fletcher se ajoelhou ao ladode Lovett e a arrastou para longedo perigo, depois tirou seucapacete com cuidado. Os olhosdele se arregalaram ao ver o quehavia dentro. A boca daprofessora espumava e os olhosestavam tão revirados que ele só

conseguia ver branco. A cabeçada pobre mulher quicavadolorosamente no couroconforme seu corpo era assoladopor convulsões. Fletcher nãofazia ideia de como ela aindamantinha o portal aberto.

— O veneno! — exclamouFletcher horrorizado, tentandoproteger a parte de trás da cabeçade Lovett com as mãos. Seusolhos pousaram no capacete eviram uma rachadura profunda

no vidro. As garras do Picançoprovavelmente o tinhamdanificado no primeiro ataque.

Fletcher se virou furioso paraa ave-demônio, notando que elatinha parado a um ou doismetros do portal. Ao ficar tãopróximo, o medo do portalpareceu sobrepujar o medo quesentia da Hidra. O Picanço deuum passo hesitante à frente eatacou a cabeça mais próxima doinimigo com uma bicada, tirando

sangue da Hidra e um grito deespanto de Tarquin. Mas o nobrenão precisava lutar sozinho.

— Ignácio! — gritou Fletcher,energizando o pentagrama maispróximo de si e conjurando seudemônio com uma explosãoraivosa de mana.

A Salamandra se formou nummero instante, jogando-se aocombate com um guincho.

Apesar do fato do Picanço sermuito maior que ele, Ignácio

mordeu a perna da ave-demônio,estocando-a repetidamente como esporão de cauda. O Picançocrocitou com dor e alarme,perdendo o equilíbrio e caindopara trás na direção dopentagrama. A Hidra aproveitoua oportunidade sem hesitação,avançando pesadamente ecravando todos os três conjuntosde presas no pescoço do Picanço.O impulso do ataque levou osdemônios, numa confusão de

garras e dentes agitados, à beirado portal, gritando e uivandocomo banshees.

— Agora, Ignácio! — berrouFletcher, preocupado que osdemônios caíssem pelo portalinstável e fossem todos perdidospara sempre. O diabrete roloupara longe do combate corpo acorpo e disparou uma rajada dechamas, calcinando o ar acima daHidra e do Picanço. Essa foi agota d’água. O Picanço fez um

último ataque contra a Hidracom os gadanhos, então saltoude volta para o portal com umgrasnido decepcionado, deixandoas serpentes sibilando contra oar. Momentos depois o portal sefechou, desparecendo no nada.Os fogos-fátuos logo fizeram omesmo, dissipando-se emfilamentos de luz azul, até que osalão caiu em absoluta escuridão.Lovett soltou um longo suspiro,então seu corpo relaxou. Fletcher

ficou feliz ao notar que suarespiração se mantinha, mesmoque irregular.

Os novatos rugiram emtriunfo, mas a alegria duroupouco, pois logo ouviram Lovettengasgar na escuridão. EnquantoFletcher a colocava sentada eesfregava suas costas, a voz deTarquin ecoou ao seu lado.

— Fletcher, seu idiota!Aquele Picanço ia ser meupróximo demônio!

Um fogo-fátuo trêmuloiluminou o aposento a partir damão de Tarquin, que lheapontou o dedo com raiva.

— Você está tão preocupadocom nossa professora idiota. Nãofique assim, eu vou lhe ensinaruma lição que você jamaisesquecerá!

36

A Hidra avançou contra Fletcher,sibilando com as línguasbifurcadas. As cabeçasondulavam hipnoticamente,balançando de um lado para ooutro como serpentes prestes adar o bote.

— Salomão! — gritou Otelo,materializando o Golem. Odemônio de pedra se plantoudiante da Hidra e a encarou.Ignácio logo o seguiu, rosnandofuriosamente. Juntos os dois sepostaram, desafiando a Hidra atentar passar.

— Eis que o anão decide botarsuas cartas na mesa. Não estousurpreso.

Os fracos frequentemente seunem — zombou Tarquin.

— Eu vou lhe mostrar quem éfraco aqui. Venha só para ver —grunhiu Otelo. Ele deu a voltapara ficar ao lado de Fletcher.

— Não temos tempo paraisso! Vocês não estão vendo quea capitã Lovett está morrendo? —berrou Fletcher, furioso com osdois. A respiração da professoraestava ficando cada vez maissofrida, sorvendo golesengasgados de ar como se cadasegundo fosse uma luta.

— Deixe o meio-homemlutar, se quiser — retrucouTarquin, causando espanto emtodos diante do termopreconceituoso. Até mesmoFletcher sabia que “meio-homem” era algo incrivelmenteofensivo para os anões.

Otelo cerrou os punhos, masnão mordeu a isca.

— Cale a sua boca! Não ousefalar assim com ele! — rugiuFletcher, com a raiva inundando

suas veias como fogo líquido.— O anão acha que só porque

um de seus superiores foi forçadoa lhe conceder um demôniovalioso, ele agora está no nossonível — continuou Tarquin,inabalado. — Vou mostrar a elecomo está errado. Então matareiesse seu diabretezinho ridículo,Fletcher. Seus truques com fogonão assustam Trébio. — Ao somdo próprio nome, a Hidra sibiloue raspou a pata no chão.

— Caríssimo irmão, não sejaegoísta. Também quero duelar!— Isadora entrou no círculo deluz. Ela fez uma mesura,raspando o pé na beira dopentagrama mais próximo com omovimento. Filamentosdelicados de luz branca voaramdo couro e criaram forma,retorcendo-se e enroscando-seaté que o demônio dela surgiuno meio do pentagrama.

Tinha uma aparência muito

próxima a de um grande felino,porém parecia ser quase bípede,andando num agachamentocurvado, como um chimpanzé daselva. Seu pelo espesso eralistrado de laranja e preto comoum tigre, com músculospoderosos que ondulavam sob apele. Os caninos enormes de umdentes-de-sabre estendiam-sedos dois lados da boca, amboscom mais de dez centímetros decomprimento e terminando

numa ponta afiada como agulha.Assim como um Canídeo, estedemônio tinha um par extra deolhos atrás do primeiro.

— Nunca viu um Felídeoantes? — perguntou Isadora,percebendo a expressão deassombro de Fletcher. — MeuTamil é um belíssimo espécime.Você não verá outro assim emtoda a sua vida. Minha caríssimamãe foi gentil o bastante para medar de presente. Foi o mínimo

que ela poderia ter feito, depoisque Tarquin recebeu o orgulho ea alegria de papai.

O Felídeo uivou deempolgação, com o rabobalançando de um lado para ooutro. Ele voltou os olhosincandescentes para Ignácio,estendendo um conjunto degarras mortais com experiência.

Fletcher engoliu em secoquando os dois demôniosavançaram, sua raiva se esvaindo

conforme ele percebia arealidade da situação. Ambas ascriaturas provavelmente haviamsido os demônios primários dospais, o que significava quedeviam ser extremamentepoderosos. Mesmo com o suportede Salomão, Fletcher tinhacerteza de que Ignácio estava emforte desvantagem. O menino fezo diabrete cuspir uma rajada defogo alaranjado no ar, mas osdemônios dos nobres mal

estremeceram quando as chamasirromperam acima deles.

— Agora, Trébio! — gritouTarquin, fazendo a Hidra investircontra eles com um sibilo,seguida por um Tamil saltitante.Salomão separou as pernas esoltou um rugido gutural,erguendo os punhos de pedra.Ignácio se ergueu sobre as patastraseiras e inspirou fundo, prontopara soltar mais uma bola defogo.

Subitamente, um clarão depelos dourados surgiu entre osquatro demônios; Sariel tinhachegado à cena. Sua juba áureaestava eriçada, e todos os quatroolhos ardiam de fúria. O focinhogeralmente elegante do Canídeoestava enrugado num rosnadoapavorante que era todo dentes esaliva. Ela arrastou a patadianteira no chão, deixandoquatro rasgos no couro. Destavez, a Hidra hesitou.

— Parem com isso! —exclamou Sylva. — Vocês jáesqueceram quem é o inimigo?Nós estamos todos do mesmolado!

— Não oficialmente; ou oselfos já se renderam? —respondeu Tarquin, com malícia.— Você é só uma refém de luxo,nada mais.

Sylva se indignou com essaspalavras e Sariel latiu, sentindosua raiva.

— Ora ora, Tarquin, nãoperca o controle — interveioIsadora, pousando a mão noombro do irmão num gestoapaziguador. — Os elfos podemmuito bem ser nossos aliados embreve. Os Forsyth e os chefes dosclãs élficos poderão se beneficiarmuito uns com os outros... não selembra?

Fletcher viu a menina apertaro braço do irmão, cravando asunhas em sua carne. Tarquin

pausou e então curvou a cabeça,fazendo Trébio recuar algunspassos.

— Peço desculpas, eu medeixei levar pelo momento. Febrede batalha, vocês entendem —murmurou Tarquin, mas o rostoainda estava vermelho de raiva.Ele lançou um olhar ameaçador aFletcher.

— Então, Sylva, como vai ser?O anão e o pé de chinelo... ounós? — indagou Isadora. Mas ela

jamais ouviria a resposta da elfa.A porta se abriu

violentamente e Arcturo entrounum rompante, seguido porGenevieve e dois criados comuma maca.

— O que está acontecendoaqui? — rugiu ele.

Sacarissa entrou correndo eparou ao lado de Sariel,postando-se uma cabeça maisalta que o demônio da elfa. Comum estalar de mandíbula, ela

mandou o outro Canídeo devolta à Sylva.

— Levem-na à enfermariaimediatamente — murmurouArcturo, pegando Lovett e adeitando gentilmente na maca.Ele afastou um cacho de cabelode sua testa e lhe fechou osolhos, que ainda fitavamcegamente o teto. Os criadospartiram de imediato,tropeçando devido à pressa. —Agora... alguém vai me contar o

que está acontecendo aqui? —inquiriu ele, com raiva malcontida.

— Estávamos espantando umPicanço que veio pelo portal —mentiu Tarquin sem hesitação.— Ele já se foi.

Arcturo voltou os olhos aFletcher, mas o menino nãogostava de dedurar os outros.Ficou de boca fechada, mas semexeu, culpado. Arcturoestreitou os olhos e avançou,

jogando fogos-fátuos azuis portoda câmara. Enquanto osnovatos estreitavam os olhos soba súbita a luz elétrica, o capitãofalou em voz alta:

— Espero que vocês nãoestivessem pensando em duelar.Os elfos gostavam de duelar. Elesperderam demônios e maisdemônios, até que não tinhammais nenhum. Vocês sabem oque acontece quando osdemônios acabam? Não há mais

mana para se abrir um portal.Nenhum meio de se conseguirmais criaturas. É isso, o éterperde-se para sempre. Você,Sylva, mais que todos os outros,seria uma completa tola seduelasse. Só de pensar nasconcessões que seu povo teve defazer para que você estivesseaqui... Foi escolhida para ser afundadora de uma nova geraçãode elfos adeptos, e será suamissão presenteá-los com seus

primeiros demônios. Você é aprimeira elfa conjuradora em milanos. Não leve isso de formaleviana. Se perder seu Canídeo,não lhe daremos outro.

Sylva baixou a cabeça,envergonhada, e Sarielchoramingou com o rabo entre aspernas. Fletcher ficou grato que aelfa corresse tal risco por ele, esilenciosamente agradeceu dooutro lado do aposento. Elespoderiam ter sido flagrados no

meio de um duelo e até sidoexpulsos, se não fosse pelaintervenção dela.

— Qualquer ocorrência deduelos será retribuída comexpulsão sumária. Plebeus terãode se juntar às fileiras desoldados rasos sem treinamentoposterior. Talvez, com sorte,poderão chegar a sargento.Quanto aos nobres, terão odireito de comprar uma comissãode oficial, obrigando sua casa

nobre a passar a vergonha deprecisar de suborno para colocá-los no exército. Mesmo assim,terão de estudar com tutoresparticulares.

Tarquin fungou em escárnioante as palavras de Arcturo, esussurrou alguma coisa para airmã.

— É isso que você quer,Tarquin? Que o grande ZacariasForsyth seja forçado a compraruma patente de oficial para o

filho? — A voz mordaz deArcturo estava carregada comvárias camadas de sarcasmo.Tarquin empalideceu com aideia, mas se recompôs ao sentiros olhos de todos em si.

— Seria um trocadinho. —Tarquin deu de ombros, emseguida retrucou, com tomsinistro: — E os meio-nobres? Oque acontece com eles? Querdizer, você é a pessoa certa aquem perguntar sobre esse

assunto... ou eu estou enganado,Arcturo?

Tarquin sorriu como se tivessevencido a discussão, e o capitãonão respondeu, abalado. Emseguida seu rosto se tornouvermelho de raiva, e Sacarissarosnou com ameaça profunda,tão alto que o som reverberou nopeito de Fletcher. Tarquin deuum passo para trás, percebendoque talvez tivesse ido longedemais. Felizmente para ele,

Cipião chegou correndo àcâmara, o rosto de morsavermelho pelo esforço.

— Eu vim assim que fiqueisabendo — ofegou ele,recuperando o fôlego.

— Está tudo bem com ela?Arcturo respirou fundo para

se acalmar e se virou para oreitor.

— Não senhor, não está. Échoque etéreo, estou certo disso.Vamos ter que esperar até que

ela se recupere, mas não há comosaber quando estará de pénovamente. Eu assumirei as aulasdela nesse ínterim.

Cipião fechou os olhos esuspirou de frustração. Emseguida se virou para osaprendizes e falou:

— Atentem bem, cadetes.Agora vocês entendem os perigosdo éter, os riscos que seus pais edoadores correram para lhes darseus demônios. Sejam gratos e

trabalhem arduamente para fazercom que seus presentes valham ocusto. — Ele deu alguns passosem direção à porta, então paroue falou de novo: — TarquinForsyth, você vem comigo. Nãofique pensando que escapouimpune depois de falar de formatão desrespeitosa a um oficialsuperior. Haverá consequênciaspara sua insolência.

A expressão de Tarquindesmoronou e o menino fitou o

chão, mas o bater de péimpaciente de Cipião o fezcaminhar até a porta. Fletchernão pôde deixar de sorrir. Ometidinho mimado bem quemerecia.

Sua felicidade durou pouco,porém. Alguns momentosdepois, a voz de Arcturointerrompeu seus pensamentos.

— Tire esse sorriso da cara,Fletcher. Como seu patrocinador,seu comportamento é refletido

em mim. Vá direto para o meugabinete e me espere lá. Vamoster uma conversinha.

37

O gabinete de Arcturo era tãofrio quanto o de Cipião eraquente. Não possuía lareira etinha uma daquelas seteiras semvidro na parede. O ambiente erasurpreendentemente despido deobjetos, porém, pensando bem,

tanto ele quanto Fletcher tinhamchegado apenas algumassemanas antes, por mais difícilque fosse de acreditar. O rapazsentia de que já estava emVocans havia anos.

Os minutos se passaram, elogo Fletcher ficou entediado.Ignácio dormia no pescoço dele,exausto depois de toda aquelaação mais cedo. Atento aqualquer barulho de passosvindo do corredor, o menino

contornou a grande escrivaninhade carvalho que parecia ser aúnica mobília no aposento, alémde duas cadeiras e uma grandealmofada para Sacarissa no canto.Papéis estavam espalhados pelamesa, porém um deles chamou-lhe a atenção.

Era uma lista de nomes, todoscomeçando com “Fletcher”.Confuso, o rapaz olhou abaixodela e, para seu horror,encontrou outra lista, desta vez

de nomes terminados em“Wulf”. Não era uma boa notícia.Se Arcturo investigasse maisprofundamente, poderiadescobrir o crime de Fletcher.

Pior, talvez deixasse umatrilha que permitisse a Casparrastreá-lo. O rapaz vasculhou amemória, tentando se lembrar setinha mencionado Pelego.

Passos soaram no corredor,fazendo Fletcher voltar correndoao outro lado da escrivaninha.

Momentos depois, Arcturoentrou a passos largos, seguidopor uma Sacarissa saltitante. Orapaz percebeu, com base na sualinguagem corporal, que oprofessor estava bem agitado, pormais que a expressão nãodemonstrasse nada. O capitão sesentou à escrivaninha eorganizou os papéis, sem darnenhum sinal de que eles tinhamalgo a ver com Fletcher. Enfimergueu o olhar e uniu as pontas

dos dedos.— Você sabe por que

patrocinei você, Fletcher? —perguntou, olhando o aluno nosolhos.

— Foi porque eu já tinha umdemônio, de modo que você nãoprecisaria capturar um para mim?— sugeriu Fletcher.

— Não, eu não meincomodaria com isso. Sacarissa émuito boa em caçar, apesardaquele Cascanho ter se feito de

difícil. Não foi, Sacha? —questionou Arcturo, afagando acabeça do Canídeo. — Tente denovo — ordenou o capitão,reclinando-se na cadeira.

— Hummm... minha raraSalamandra? — perguntouFletcher.

— Isso foi um bônus, mas nãofoi o motivo — respondeu oprofessor, com os olhosbrilhando, entretidos.

— Minha bravura perante a

morte certa? — brincou Fletcher,notando a expressão de Arcturoe tentando deixar o clima maisleve.

— Não, isso não! — retrucouArcturo com uma curta risada. —Algumas pessoas diriam que vocêtomou a decisão errada naquelemomento. Um oficial precisaaprender a sacrificar bonshomens para que o resto do seucomando possa sobreviver.Assim, você também poderia ter

desistido do seu dinheiro emtroca da própria vida. Mas tenhoque admitir que fiqueiimpressionado. Você ficou friosob pressão e correu um riscocalculado. Bons oficiais sãopragmáticos e se mantêm calmosem combate. Mas os homens emulheres que ascendem àgrandeza são os ousados, os quebuscam o risco. Aqueles que sóaceitam tudo ou nada. Talvezvocê também se elevará ao nível

deles, se jogar direito. — Fletchersorriu com as palavras deArcturo, mas elas tomaram umrumo mais sombrio em seguida:— Hoje você jogou mal, Fletcher.Muito mal. Um duelo comTarquin poderia ter resultado emexpulsão instantânea.

— Desculpe-me, senhor, euestava só me defendendo. Se eusoubesse como erguer umescudo, eu teria usado um deles— murmurou Fletcher, baixando

a cabeça.— Um escudo não seria muito

útil contra um demônio, masessa não é a questão. Vocêprecisa entender que os nobresfarão qualquer coisa a seualcance para se livrar de vocês.Melhor levar uma surra do quemorder a isca. Acredite em mim,eu sei. — Arcturo soavaamargurado. Pareceu prestes acontinuar, mas pensou melhor ebalançou a cabeça. Levantou-se

subitamente e chamou Fletcherpara mais perto da escrivaninha.Então prosseguiu: — Precisamosde conjuradores, Fletcher, maseles não precisam ser oficiaismagos de batalha. Umconjurador nas fileiras desoldados rasos é tão bom quantoum no refeitório dos oficiais, noâmbito geral. Treinar plebeus aolado dos nobres não é umaprática popular. Muitosacreditam que vocês deveriam ter

uma academia separada. Não dêa Cipião motivos para rebaixarvocê.

Fletcher assentiusombriamente. Ele nãoconseguiu deixar de olhar derelance para os papéis na mesa.Arcturo não fez nenhumamenção de escondê-los.

— Quer saber por que fui seupatrocinador, Fletcher? Foiporque você me lembra de mimmesmo. Mais importante, foi

porque eu sei quem você é.Ou o que você é, pelo menos.Ele girou os papéis para que

Fletcher pudesse lê-los e correu odedo por eles.

— Há alguns Fletchers da suaidade listados em Hominum, enenhum deles tem o sobrenomeWulf. Você não consta emnenhum censo oficial que eutenha encontrado. Estaria certoao afirmar que é um órfão nãoregistrado?

O rapaz assentiu, sementender.

Arcturo se reclinou,concordando com a cabeça parasi mesmo como se Fletchertivesse confirmado suas suspeitas.Apontou a cadeira do ladooposto da escrivaninha. Oaprendiz se sentou e observouenquanto o professor o fitava.

— Você se lembra de quandoTarquin insinuou que sou meionobre? — indagou o capitão,

ajeitando o cabelo para trás ereajustando a fita que omantinha no lugar à nuca.Fletcher fez que sim com acabeça e, depois de uma longapausa, Arcturo continuou: —Dez anos atrás, um jovem nobreestava a caminho da Cidadela,vindo de seu lar nos territóriossetentrionais que fazem fronteiracom as terras dos elfos. Ele estavapassando a primeira noite emBoreas, que, como você sabe, não

fica muito muito longe das suasmontanhas do Dente de Urso. —Fletcher não sabia se ficava felizou ansioso pelo fato de Arcturoter mencionado Dente de Ursoem vez de Pelego. Haviacentenas de vilas por lá, mas asnotícias viajavam rápido. Arcturosomaria dois mais dois sedescobrisse que um jovemfugitivo tinha escapado de lá. —Este rapaz nobre tinha sidopresenteado com um Canídeo

pelo pai, lorde Faversham —continuou Arcturo. — Mas elenão quis ler o pergaminho deinvocação antes de chegar naacademia, onde um professorpoderia supervisionar atransferência. Assim, deixou opergaminho nos alforjes da sela efoi dormir.

Arcturo parou por uminstante, coçando as orelhas deSacarissa. O demônio rumorejoucom prazer e se esfregou nas

mãos dele.— Naquela noite, um

cavalariço decidiu roubar tudoque o nobre estivesse carregando.Não tinha absolutamente nadano mundo; era um órfão quecrescera num asilo de pobres efora vendido para o mestre deestábulo por vinte xelins. Não eradono nem das roupas do corpo.O roubo era uma últimatentativa desesperada deconseguir dinheiro suficiente

para escapar e começar uma novavida. Mas o destino tinha umplano diferente para ele.

Fletcher franziu o cenho. Ahistória soava familiar, mas elenão conseguia lembrar onde atinha ouvido antes.

— O menino sabia ler umpouco. Ele tinha estudadosozinho para que pudesseaprender sobre o mundo,devorando cada livroabandonado pelos viajantes na

taverna à qual o estábulopertencia. Então, quando ocavalariço encontrou opergaminho e o couro deconjuração que o acompanhava,ele os abriu e os leu, mais porcuriosidade do que por qualqueroutra coisa. Felizmente para omenino, ele ainda tinhadificuldades com a leitura, entãopronunciava cada palavra em vozbaixa. Ninguém ficou maissurpreso do que ele quando uma

filhotinha de Canídeo foiconjurada, com pelo negro eolhos brilhantes. Era a coisa maislinda que ele jamais vira.

Fletcher olhou para Sacarissae depois para Arcturo, efinalmente a ficha caiu.

— Você foi o primeiro plebeua ter um demônio desde... bem,desde sempre! — exclamouFletcher. — Se não fosse porvocê, nenhum de nós estariaaqui! Sua descoberta triplicou o

número de magos de batalha!Arcturo assentiu com

seriedade.— Mas, peraí — continuou

Fletcher, confuso. — O que issotem a ver comigo? Ou com o fatode você ser meio nobre?

— Essa foi a história que vocêjá conhecia, com um pouco maisde detalhes. Mas há umasegunda metade, que só éconhecida pela nobreza e algunsraros outros. Veja bem, alguns

anos depois de eu ter sidodescoberto, houve uma grandeconferência entre as casas nobres,os generais de Hominum e o reiHarold. A guerra corria mal emseu primeiro ano: os xamãs orcsestavam se unindo sob oestandarte do orc albino, e seusnúmeros superavam várias vezesa nossa quantidade de magos debatalha. Os nobres odiavamcolocar seus filhos e filhasprimogênitos em risco,

considerando que, com a mortede cada herdeiro, suas linhagenscorriam o risco de se extinguir.Estavam sendo forçados a tervários filhos, de modo que, se oprimogênito morresse, poderiahaver outro herdeiro com ahabilidade de conjurar. Depoisdo primogênito, há apenas umachance em três de que um filhode nobre seja adepto. Muitascasas nobres têm três ou quatrofilhos no caso de uma morte,

para que o adepto seguinte possase tornar o herdeiro. Além disso,muitos jovens nobres eramforçados a se casar e ter filhosassim que se formavam naCidadela, de modo que, semorressem lutando, deixariamum filho primogênito em seulugar.

Fletcher nunca tinha passadomuito tempo pensando nasquestões de sucessão e linhagensnobres. Podia imaginar as

famílias nobres,desesperadamente cientes deque, com uma única morte, acasa inteira poderia desaparecerem uma geração. Por ummomento, ele sentiu pena deTarquin e Isadora, com toda apressão que o sangue nobre lhestrazia. Mas só por um momento.

— Acredite se quiser, foi oavô de Tarquin, ObediahForsyth, o nobre que liderou omovimento pela introdução dos

plebeus nas fileiras de magos debatalha, usando sua própriafortuna para financiar a grandeInquisição, trazendo crianças detodas as partes e buscando sinaisde mana nelas. Ele era o nobremais rico e poderoso naquelaépoca, e continua sendo. Seufilho, Zacarias, se casou com aprimogênita de outra grandecasa, Josephine Queensouth,unindo as terras vizinhas sob obrasão dos Forsyth. Isso

efetivamente dissolveu a casa dosQueensouth. Geralmenteherdeiros se casam com osegundo ou terceiro filho deoutra casa nobre, de modo amanter seu legado, mas a famíliaQueensouth estava à beira dafalência, quase chegando aoponto de vender a própria terra.O casamento foi a única soluçãoque eles encontraram na época.Eu lhe explico essas coisas,Fletcher, porque nobreza,

casamento e sucessão são aschaves para entender quem vocêé.

Fletcher concordou com acabeça prudentemente, tentandoacompanhar a história toda. Asmaquinações políticas da nobrezaeram interessantes, mas o rapazainda não compreendia o queelas tinham a ver com ele. Oucom Arcturo, para ser sincero.

— De qualquer maneira, abusca de Obediah rendeu frutos

e os plebeus foram recebidos emVocans, eu inclusive. OsInquisidores do velho reiassumiram a busca e perceberamuma tendência curiosa, algo queObediah não tinha notado.Havia estranhos agrupamentosde adeptos, mais notavelmentenos orfanatos de cidades donorte. Agora, por que você achaque isso acontecia, Fletcher? —perguntou Arcturo, o orbebranco de seu olho ruim fitando

cegamente a cabeça do aprendiz.Mas a mente de Fletcher

estava vazia. O que havia de tãoespecial nos órfãos?

— O que diferencia os órfãosdo resto das pessoas? — insistiuArcturo, ecoando ospensamentos de Fletcher.

— Ninguém os quer? —sugeriu o rapaz.

— Exatamente, Fletcher. Ediga-me: quem é que não quer ospróprios filhos? — perguntou

num murmúrio Arcturo, guiandoo aluno.

— Pessoas que não têmdinheiro para cuidar deles. — Amemória de Fletcher repassou aslongas e solitárias noites quepassara se perguntandoexatamente isso.

— De fato, Fletcher, há quemabandone os filhos por essemotivo. Também há aquelesórfãos cujos pais morreram. Mashá outro grupo que abandona os

filhos regularmente. A Inquisiçãodescobriu que esse era o pontoem comum entre quase todos osadeptos órfãos. — O capitãorespirou fundo. — Quase todasas mães deles eram cortesãs.Incluindo a minha.

Sacarissa ganiu, e Arcturo acalou gentilmente. Fletcherpercebeu que o capitão estavatocando num assunto que lhecausava grande sofrimento.

— Veja bem, lorde Faversham

era... digamos assim... umhomem insaciável. A mulherdele não conseguiu lhe gerarfilhos por um longo tempo. LadyFaversham acabou se tornandofria e distante, rejeitando apresença do marido em suacama. Então ele procurou outrasque não o rejeitariam.

Fletcher afundou na cadeira,finalmente compreendendo.

— Então os filhosprimogênitos das cortesãs com

quem ele dormiu se tornaramadeptos? É assim que funciona?— indagou Fletcher, tentandonão pensar no que aquilosignificaria quanto à sua própriaascendência.

— Sim, além do fato de queele tinha várias amantes também.Um homem pode ter filhosadeptos com várias mulheresdiferentes, desde que seja oprimeiro filho da mulhertambém. Assim como uma

mulher pode ter vários filhosprimogênitos com pais diferentes,se o homem nunca gerou filhosantes. Foi pura coincidência queum pequeno número de plebeustambém tivesse nascido com odom. Eu fui a causa para o inícioda busca, mas não nasci com opoder independentemente, comoos outros plebeus. Eu sou umadepto porque fui um dos filhosprimogênitos de lordeFaversham.

A mente de Fletcher se pôs atrabalhar, pensando nascircunstâncias de seu abandono.Nem mesmo um cobertor paraprotegê-lo do frio. Parecia umaexplicação adequada. Arcturointerrompeu seus pensamentossombrios:

— É claro que a descobertaprovocou um escândalo. A provade infidelidade lançou vergonhasobre várias casas nobres,especialmente os Faversham.

Mulheres nobres iniciaram umagreve e se recusaram a ir à guerraa não ser que fosse aprovadauma lei proibindo que os órfãosfossem testados pela Inquisição.Elas não aguentavam ahumilhação de ver os outrosrebentos de seus maridoslutando ao lado dos filhos efilhas legítimos — sussurrou oprofessor, com a voz carregadade emoções conflituosas. — Ouvidizer que lady Faversham ficou

ofendida ao saber que o demôniodestinado ao seu filho acabousendo passado para mim. Ela meodeia ainda mais que as outrasaristocratas. Só deu à luz umfilho, o que significa que, se oherdeiro morrer, eu serei opróximo na fila para me tornarlorde Faversham, de acordo coma lei de Hominum. Ela foiobrigada a requisitar permissãoespecial do velho rei para tirar ofilho das linhas de frente, para

evitar que eu tentasse matá-lo etomar seu lugar na linhagem.

Você não ficará surpreso aoouvir que foi ela quem organizoua greve.

Fletcher se impressionou aover como Arcturo se mantinhacalmo ao falar das suspeitas quesofria. Ele se perguntou se oprofessor seria capaz de tal crime.Lorde Faversham era dono damaioria das terras ao redor doDente de Urso, um homem rico

e poderoso.— Obviamente, a maioria dos

órfãos já tinha sido identificada etreinada quando isso tudo foidescoberto, portanto, foi feita aconcessão de permitir queaqueles que já tivessem sidodescobertos permanecessem —continuou Arcturo. — A únicacondição era que nós nãopoderíamos ser chamados pornossos sobrenomes aristocráticos,e é por isso que sou conhecido

como capitão Arcturo, meuprimeiro nome. Tenho mais trêsmeio-irmãos mais ou menos daminha idade, também lutandono exército. Provavelmente hámais deles por aí, completamenteignorantes de suas verdadeirasidentidades. Não tenhopermissão de testar crianças nosorfanatos, por mais que euqueira. Porém, de alguma forma,o destino trouxe você até mim.

Fletcher mal compreendeu

estas últimas palavras. Estavaimerso demais nos própriospensamentos. Será que o pai delepoderia ser o lorde Faversham?Poderia isso significar que a mãedele esteve viva em Boreasdurante toda a sua vida?

— Fletcher, eu posso estarerrado — disse a voz de Arcturo,flutuando ao seu redor. — Vocêpode ser só mais um órfão, pois émuitos anos mais novo que eu,afinal. Nem sequer sei se

Faversham continuou sendoinfiel depois de ter o primeirofilho com lady Faversham. Masquais são as chances de um órfãoadepto abandonado perto deBoreas ser um dos poucos quenão descendeu da nobreza?

— Então você está dizendoque sou filho bastardo de lordeFaversham e que minha mãe éuma amante, na melhor dashipóteses, e uma cortesã na pior?— retrucou Fletcher

amargurado, desperto dodevaneio.

— E meu meio-irmão... —completou Arcturo Faversham.

38

Fletcher saiu correndo dogabinete de Arcturo cheio deraiva; mas para quem eradirecionado o sentimento, elenão sabia dizer. Ignácio passouboa parte da noite sibilando,soltando pequenos anéis de

fumaça pelas narinas enquantoos outros riam e brincavamdurante o jantar.

— Posso não ter certeza dequem me aborreceu, mas vocêdefinitivamente não faz a menorideia, faz? — murmurouFletcher, coçando o queixo deIgnácio. Era muito engraçado vera agitação confusa do diabrete, eisso animou um pouco o rapaz.

Fletcher tinha conseguidodespistar os colegas quanto ao

teor da reunião com Arcturo comuma risada, afirmando que sótinha levado uma bronca por serum estudante malcriado. Dentretodos os seus novos amigos, sóOtelo tinha percebido seudesalento, batendo à porta deFletcher depois que todos foramdormir. O rapaz decidiu lhecontar tudo; afinal de contas,precisava retribuir o nível deconfiança que Otelo e sua famíliatinham depositado nele. Mas o

anão não ficou impressionadocom a história de Arcturo.

— A mim parece que Arcturoestá procurando chifre emcavalo, se quer saber —comentou Otelo, coçando abarba. — Deve estar desesperadopara encontrar mais parentes, eignorou várias coisas para fazersua história se encaixar na dele.Já ouvi falar de lady Faversham,por motivos completamentediferentes. Ela é prima do velho

rei e era famosa por sua belezanos tempos de outrora.Sinceramente duvido que, após ocomportamento de lordeFaversham ter se tornadopúblico, o velho rei Alfric teriapermitido que sua prima realcontinuasse sendo humilhadadessa forma. O filho dele, reiHarold, também não teriadeixado isso.

— Mas e se lorde Favershamcontinuou? E se ele teve um

momento de fraqueza, anosdepois que tudo veio à tona? —indagou Fletcher.

— Mesmo presumindo queele seria tão tolo, por que você foiabandonado logo diante dePelego? Certamente a mulherdesesperada em questão deixariavocê num orfanato ou à porta dealguma casa em Boreas, não numlugar tão obscuro e distante dacidade quanto Pelego.

Quer dizer, é quase na

fronteira élfica! — exclamouOtelo.

— Talvez ela não quisesse queeu acabasse num asilo de pobrescomo Arcturo — retrucouFletcher, igualmente teimoso,por mais que não soubesse porque estava defendendo o lado deArcturo na discussão.

— Se ela se importava tantocom você a ponto de fazer isso,então por que te largou paracongelar na neve, sem nem um

paninho, roupa ou cobertor?Não, Fletcher, a sua história vaimuito além. Não se deixedesanimar pela teoria deArcturo. Fique feliz por ele estarao seu lado, e pelo encontrofortuito entre vocês dois emCorcillum.

Com essas palavras, Otelo foidormir e deixou Fletcher sesentindo bem melhor, mastambém muito mais confuso.

— Quem diabos eu sou? —

sussurrou ele para as trevas.Ignácio miou em solidariedade eenterrou a cabeça no peito domenino.

Apesar dos eventos do dia, osono de Fletcher naquela noitefoi o sono tranquilo e sem sonhosdos exaustos.

Os novatos aguardavam nacâmara de conjuração a próximaaula de prática etérea. Fletcherestava torcendo para ver Lovett,mas sabia que era muito mais

provável que Arcturo ministrassea lição. Suas tentativas de visitara enfermaria foram em vão; adama Fairhaven tinha cuidadodisso. Ela informou Fletcher deque tinha certeza de que a capitãLovett não gostaria de serincomodada pelos alunosenquanto estivesse no seu estadode paralisia, e que as leituras queela mesma fazia para a professoraeram mais que suficientes paramanter a capitã entretida. A

descoberta de que Lovett estavacompletamente paralisada, masciente de tudo ao seu redor,apenas aumentou a vontade deFletcher de vê-la, mas a porta foifechada firmemente na sua cara.

— Belo traje — comentouGenevieve, mostrando o polegarerguido.

Fletcher sorriu e ajeitou ocolarinho da jaqueta nova.

Uhtred tinha cumprido apromessa, mandando a Fletcher

um belo uniforme azul-marinho,além da espada, com as entregasmatinais. Os botões dourados dajaqueta e da calça tinham atésido decorados com uma sinuosasilhueta de Salamandra em altorelevo, para o deleite de Fletcher.A bainha era da mais altaqualidade, feita de couro negrofirme e aço escovado. Fletchernotou que a espada tambémtinha sido afiada e estavaacompanhada de um pano

oleado, com um bilhete quemandava o rapaz cuidar bem daarma, pois era fruto de umtrabalho de altíssima habilidade.

Ele ficou feliz em recebê-la devolta, pois tinha sido forçado ausar um bastão de madeiraenquanto Sir Caulder ensinava aele e aos outros plebeus o básicosobre o combate armado. Osfilhos dos nobres haviam tidoaulas nesta área desde a maistenra idade e não os

acompanhavam, apesar de Malike Penélope terem assistidobrevemente do lado de fora antesde se entediarem e irem embora.Quando Fletcher perguntou porque eles estavam aprendendo aenfrentar uns aos outros depoisdo que Sir Caulder lhe disserasobre combater orcs, o velhoguerreiro ralhou:

— O torneio, garoto. Eles vãobotar vocês para esgrimir e Deussabe mais o quê. Não quero ver

todos vocês plebeus perdendo naprimeira rodada porque sóaprenderam a enfrentarselvagens de 2,15 metros em vezde um nobre com um florete.

A lembrança do torneioencheu Fletcher de temor e o fezcorrer para a biblioteca, onde seenterrou nos livros. Não estavasozinho; a maioria dos outrosplebeus também estava lá. Comoos calouros nobres tinhamcrescido com pais magos de

batalha inteiramentequalificados, eles tinham umagrande vantagem sobre seuscorrespondentes plebeus, dandorespostas corretas às perguntasdos professores sem dificuldadealguma.

Havia milhares de demônioscujos nomes precisavam sermemorizados, além de suasmedidas, qualidades e defeitos,mesmo que a maioria deles nãopudesse ser encontrada na parte

do éter a que os evocadores deHominum tinham acesso. Asdezoito raças de Canídeo por sisó tinham exigido de Fletcherquase um fim de semana paramemorizar.

O som da porta sendo batidaatrás dele interrompeu ospensamentos do menino. Umhomem alto e magro entrou nacâmara de invocação.Inicialmente, Fletcher pensouque se tratava de Arcturo, mas,

quando o sujeito entrou na áreailuminada por fogo-fátuo, orapaz notou que o uniforme eradiferente, negro com detalhesprateados. Seu rosto era pálido ebarbado, com olhinhos negrosque brilhavam enquanto eleavaliava os estudantes.

— Meu título completo éInquisidor Damian Rook, masvocês podem me chamar desenhor. Vou lhes instruir na arteda prática etérea até que a capitã

Lovett tenha se recuperado deseu... acidente. Felizmente paravocês, Cipião decidiu contratarum professor mais competentedesta vez.

Tais palavras conquistaramum sorrisinho de Tarquin e umarisadinha discreta de Isadora,para desgosto de Fletcher. Rookos ignorou e se virou para osplebeus, estudando-os com olhosencobertos.

— Ora, ora, parece que foi

apenas ontem que eu testei vocês— disse Rook com uma voz quecomandava obediência absoluta.— Genevieve, Rory, Serafim,Atlas, além do anão e da elfa,farão uma fila daquele lado.

Os amigos de Fletcher semoveram rapidamente,alinhando-se diante da parededistante. Rook os ignorou eescrutinizou Fletcher e os nobrescomo se fossem cavalos à venda.

— Uma bela turma, este ano.

Tarquin e Isadora, presumo queseu pai esteja bem? — inquiriuele.

— Sim, senhor, mesmo quefaça vários meses desde a últimavez que eu estive com ele —respondeu Tarquin, com polidezsurpreendente. Fletcher seperguntou que tipo de homeminspiraria tamanho respeito numnobre como Tarquin. Como elesse conheciam?

— Você é claramente um

Saladin, se não me engano —continuou Rook, parando diantedo menino de pele escura.

— Sou Malik Saladin, filho deBaybars Saladin, oriundo dasterras de Antióquia — respondeuMalik, projetando o queixoorgulhosamente.

— É claro. O Anubídeo deseu pai lutou bem ao lado domeu Minotauro na ponte deWatford. Você foi afortunado obastante para recebê-lo?

— Não, senhor. Meu paiprecisa mais dele do que eu. Masfui presenteado com umAnubídeo juvenil, capturadoantes que eu viesse para cá.

— Ótimo. Você logo precisarádele. — Rook passou à nobreseguinte, Penélope. — E você é?

— Penelope Colt... deColtshire. — Ela fez uma mesuranervosa. Isso lhe rendeu umgrunhido neutro de Rook, quepassou ao último nobre, o

menino pequeno de cabelocastanho que Fletcher tinha vistoseguindo Tarquin como umcachorrinho.

— Eu sou... Meu nome éRufus Cavendish, das colinas deCavendish — gaguejou o garoto.

— Colinas de Cavendish.Nunca ouvi falar. Quem são seuspais? — inquiriu Rook, os olhosnegros se cravando no rosto deRufus com a intensidade de umfalcão.

— Minha mãe morreuquando eu era novo. Ela era acapitã Cavendish.

Meu pai não é de sanguenobre.

— Entendo — comentouRook, desinteressado, virando-seem seguida. Claramente osCavendish não eram uma famílianobre importante ou de statussignificante.

O professor voltou seu olharsinistro a Fletcher, os olhinhos

dardejando da espada aos botõesdourados do uniforme.

— E você? De onde veio?Fletcher hesitou, em seguida

arriscando:— Sou do norte, senhor, de

perto de Boreas. Meu nome éFletcher.

— Um Faversham, então?Não sabia que eles tinham umfilho em idade escolar. Comovocê escapou da minha atenção?

A voz de Tarquin soou antes

que Fletcher pudesse responder.— Ele não é nobre, senhor, é

só um plebeu.— Ridículo. Eu sou um

Inquisidor. Conheço os nomesde cada adepto vulgar. Quem évocê, garoto?

— Eu... fui patrocinado,senhor. Li um pergaminho deconjuração que eu... encontrei...e invoquei um demônio. Arcturome descobriu e me trouxe paracá.

— E seus pais não pensaramem mandá-lo à Inquisição assimque descobriram que você eraadepto? Foi Arcturo quem odescobriu? Ele não tempermissão de ir ao norte deCorcillum, como foi queencontrou você?

— Eu sou órfão, senh...— Um ÓRFÃO! — sibilou

Rook, interrompendo-o.— Sim, mas não é como o

senhor está pensando! —

exclamou Fletcher, percebendo oque deveria estar passando pelacabeça do Inquisidor.

— Ele quebrou as regras! Oarrogante filho de uma meretrizacha que pode desrespeitar oacordo que fez com o velho rei,mandando pergaminhos deconjuração para órfãos de Boreasem segredo! Ah, desta vez eu opeguei! — vociferou Rook comalegria. — Ele não fez nada disso!— gritou Fletcher.

— Cale a boca, seubastardinho! Nós achávamos quetínhamos visto o último da sualaia há muito tempo. LadyFaversham vai saber de tudo isso— sibilou o Inquisidor,cutucando o peito de Fletchercom força.

— Você está errado! Pergunteao reitor! — bradou o menino.

— Ah, eu vou perguntar, nãose preocupe. Mas isso podeesperar. Temos que medir os

níveis de realização de vocêsantes. Sigam-me, todos!

Eles caminharam atrás deRook em fila indiana. Saíram dacâmara de conjuração e subiramas escadas da ala oeste até o topo,depois pegaram o corredor até atorre sudoeste. Somente Otelocompreendeu o que tinha sepassado, e pôs a mãoreconfortante no ombro deFletcher.

— Não se preocupe, vai ser

tudo esclarecido — sussurrou oanão para o amigo.

Os outros lhe olhavam derelance com uma mistura desuspeita e confusão, mas osilêncio que pesava sobre oscorredores impedia que lhefizessem perguntas. Tarquin eIsadora estavam, com certeza,saltitantes, mas não dava parasaber se era por causa dahumilhação pública de Fletcherou por conta da aula que estava

por vir.A torre não continha

nenhuma escada em espiral. Emseu lugar, havia um imenso tubode espaço vazio, com pisosvazados em cada andar. Umenorme pilar se erguia no centrodo aposento, composto de váriossegmentos cravejados de cristaismulticoloridos de Corundum.Estendia-se até o topo da torre,cintilando com os raios de luzque penetravam pelas seteiras

nas paredes da velha torre.— Este é um realizômetro, o

maior que existe. Cada segmentorepresenta um nível derealização. Ao tocar a base, umconjurador ou demôniodescobrirá em que nível seencontra. Agora, quem vaiprimeiro? — perguntou-se oprofessor, o olhar voltado apenaspara os nobres. — Malik, se tiverpuxado a seu pai, vai nosimpressionar. Pouse as mãos na

pedra base. Vamos ver quecalibre de conjuradores temosaqui hoje.

Malik avançou sem hesitação,ajoelhando-se diante do primeirosegmento e pressionando a mãona base. Por um momento, nadaaconteceu; em seguida,subitamente, os cristais noprimeiro segmento se acenderamcom intensidade furiosa,iluminando o aposento com raioscaleidoscópicos de luz. Um pulso

abafado de som ecoou nacâmara, seguido por outroconforme o próximo segmentoganhava vida como umalabareda. O fenômeno se repetiuaté que quatorze segmentosbrilhassem. Malik manteve amão ali por mais um minuto atéque Rook o ergueu do chão,extinguindo as luzes quando ocontato foi quebrado.

— Muito bem, rapaz. A médiainicial para um filho de nobres é

oito. Logo você será um nívelvinte, como seu pai. Próximo!

Isadora jogou a juba decachinhos e se adiantou,pressionando a mão norealizômetro. Novamente o somabafado ecoou, seguido pelasluzes dispersas. Doze, desta vez.

— O sangue Forsyth é forte.Zacarias ficará orgulhoso —afirmou Rook, ajudando Isadoraa se levantar.

Tarquin a seguiu; outro doze.

— Gêmeos geralmente têm omesmo nível de realização, mas ésempre bom conferir —murmurou, meio para si mesmo,enquanto apertava a mão deTarquin. O coração de Fletcherparecia uma pedra dentro dopeito quando o jovem nobre oempurrou ao passar. Eles eramtodos tão poderosos... Lovett erasó nível onze!

Penélope era nível sete, masparecia satisfeita, sorrindo e

assentindo ao se levantar. Rufusera nível nove, um resultado quelhe rendeu um tapinha nas costasda parte de Tarquin e umgrunhido de aprovação de Rook.

— Agora, os plebeus. Vocêprimeiro, anão. Um nível oito,pelo menos, de acordo com oque ouvi, considerando que vocêé capaz de evocar um Golem. Amédia dos plebeus é cinco, éclaro, mas você é um casoespecial.

— Por que os plebeus têmníveis de realização mais baixos,senhor? — indagou Rory,arrastando os pés.

— Eu digo que é criaçãodeficiente — começou Rook. —Porém, a resposta oficial é que osnobres crescem em meio ademônios e recebem suaspróprias criaturas muito antes deentrar para a academia,permitindo assim que aumentemseu nível de realização ao longo

dos anos através da prática defeitiçaria básica e infusão. Jávocês começam com o nível como qual nasceram, considerandoque não tiveram tempo paraexercitá-lo. É por esse motivotambém que vocês plebeusgeralmente começam comCarunchos Escaravelhos. Nãoadianta capturar um demônioque você talvez nem seja capazde controlar... não que vocêsmereçam coisa melhor, em todo

caso. Mas parece que alguns devocês foram particularmentesortudos este ano.

Otelo tinha tocado orealizômetro àquela altura,interrompendo a resposta deRory com o brilho do aparelho.Os segmentos se acenderam umde cada vez, vibrando com dezpalpitações abafadas.

— Dez! Parece que os anõespodem ter um dom para aconjuração! Devo informar o rei

imediatamente. Muitointeressante, de fato... —comentou Rook, indicando comgestos que Sylva deveria tomar olugar de Otelo.

Fletcher percebeu a expressãopreocupada do anão. Por quecontar ao rei? Será que oresultado de Otelo significariaque os anões eram aliados aindamelhores do que o rei tinhapensado... ou uma ameaça aindamaior? — Os elfos geralmente

começam no nível sete, ou aomenos assim costumava ser. Váem frente, de qualquer maneira.Você já está com seu Canídeo háalguns meses. — Sylva era de fatoum sete, porém o oitavosegmento piscou por um brevesegundo.

— Ótimo; você já está prestesa subir de nível. Com maisdedicação, logo poderá capturarum Caruncho para somar ao seuCanídeo.

Genevieve estava exatamenteno cinco. Serafim surpreendeu atodos com um sete, e Atlasconseguiu um quatro, para seudesgosto.

— Espero que você se saiamelhor que eu — resmungou elequando Rory, completamentepálido, passou apressado.

Desta vez, o realizômetroengasgou, então dois segmentosganharam vida. Depois de trintasegundos, um terceiro se

acendeu com hesitação.Rook agarrou o braço do

menino e começou a puxá-lo.— Não! — berrou Rory. —

Me dê mais um tempinho, temmais!

— Não há mais nada, garoto.Essa é toda a energia demoníacaque você é capaz de absorver.Você é um conjurador de níveltrês. Fique feliz por não sermenos. — Ele arrancou Rory dopilar e o empurrou de volta ao

grupo de plebeus. — Agora, obastardo. Vejamos o que temosaqui.

Rook colocou Fletcher dejoelhos com um empurrão. Orapaz fechou os olhos epressionou a mão contra orealizômetro. As gemas estavamfrias contra sua palma, como gelopolido. Ele sentiu a pressão domana que era sugado, pulsandoem suas veias e saindo pelos seusdedos. Em seguida, algo mais foi

empurrado de volta para dentrodele. Não era mana, pois eracomo um fogo que lhe fervia osangue e formigava na pele.

Fletcher não queria olhar paracima, mas a vibração abafada lheinformava exatamente quantossegmentos se acendiam. Cincoaté então. Depois seis. Nosétimo, ele sentiu o fluxoenfraquecer, mas ainda invadi-lo.Oito... o jorro se reduziu a umescorrer. Finalmente, quando o

menino pensava que não restavanada mais, um nono zumbidoecoou pelo aposento. Seu alíviofoi imenso, mas ele sentiu penade Rory ao mesmo tempo. JamesBaker tinha sido um conjuradorde nível três.

— Ora, ora, que surpresa.Quem poderia imaginar? Masnão importa. Fletcher só ficaráaqui pelo tempo que eu levarpara conseguir provas de queArcturo lhe enviou um

pergaminho de conjuração.Filhos bastardos não têmpermissão de frequentar aCidadela desde o decreto dovelho rei Alfric, a pedido de ladyFaversham. Assim como nenhumdos bastardos antigos tempermissão para buscar novos. Issoinclui Arcturo. — As palavras deRook provocaram espanto nosplebeus. O segredo do capitãofora revelado. — Sem dúvidavocês terão um segundo

professor novo, depois que eutiver me livrado dele —comentou Rook com um sorrisocruel.

— Pela última vez, ele não memandou nenhum pergaminho.Se quer saber, foi umpergaminho de xamã orc que euganhei de um mercadorambulante — retrucou Fletcherentre dentes cerrados.

O Inquisidor lhe encarou porum instante, em seguida soltou

um cilindro de couro do cinto.Tirou um rolo marrom de dentroe o abriu no chão de pedra. Eraum couro de conjuração.

— Mostre-me — comandou,apontando para o couro.

Ignácio se materializou assimque Fletcher o libertou, como seestivesse ansioso para sair. Odiabrete fez menção de morder amão de Rook, fazendo o homemrecuar com uma careta.

— Ora, vejam, se não é uma

descoberta — murmurou oInquisidor, esfregando o queixosombriamente com os dedoslongos e finos. — Muito bem,vamos descobrir qual é o nível derealização dele. O majorGoodwin vai querer saber.Nunca testamos uma Salamandraantes.

Fletcher ergueu Ignácio nosbraços e tocou a cauda dodiabrete no realizômetro. Oaparelho ganhou vida. Os

primeiros quatro segmentos seiluminaram em rápida sucessão.Mas então, para a surpresa deFletcher, o quinto estágioacendeu tremeluzente, quasehesitante. Tarquin irrompeu emgargalhadas.

— Hah! Salamandras malchegam ao nível cinco. E vocêpensou que poderia derrotaruma Hidra de nível oito e umFelídeo de nível sete só com aajuda de um Golem! É uma

diferença de dois níveis, seubastardo pobretão idiota.

— Pelo que me lembro, vocêtinha dito que nossos demôniossó estavam lá para espantar oPicanço — retrucou Fletcher,esforçando-se para manter araiva sob controle. Ninguém,nem mesmo Didric, jamais falaraassim com ele. — Você gostariade mudar sua versão da história?

Tarquin gaguejou, mas foiinterrompido por Rook.

— Silêncio! Vamos voltar àcâmara de conjuraçãoimediatamente. A aula ainda nãoacabou.

A jornada de volta à câmarafoi ainda mais tensa que a vinda.Otelo estava perdido empensamentos, enquanto o rostode Rory era um retrato dainfelicidade absoluta conformeele marchava penosamente nofim da fila. Genevieve se esforçoupara consolá-lo, mas o garoto

simplesmente encarava o vazio àsua frente, como se não pudesseouvir o que lhe era dito.

O menino falador ebrincalhão tinha desaparecido.

Quando eles chegaram, Rookjá tinha instruído alguns criadosa trazerem uma coluna pesada,que eles tiveram dificuldade emerguer ereta. Era parecida com orealizômetro, só que, em vez dasvárias gemas, cada segmento erafeito de uma única gema

vermelha do tamanho do punhode um homem. Rook a tocoucasualmente, acendendo umadas pedras com cada toque dodedo.

— Sua professora preferiafazer as coisas à moda antiga,energizando o portalpessoalmente. Mas eu avalio osriscos de se entrar no éter deforma diferente. Esta é umapedra de recarga. Ela pode serpreenchida com mana para ser

usada posteriormente. É uma dasferramentas que usamos paraalimentar os enormes escudossobre as linhas de frente,carregando-a durante o dia paraque não seja necessário energizá-los a noite toda. Mas nós vamosempregá-la para outro propósito.Juntos, vamos mantê-la numacarga total constante e atá-la aosportais que usaremos para entrarno éter. Assim, se alguém vacilare se desconcentrar, o portal não

se fechará prematuramente.Afinal, não podemos arcar com aperda de uma Hidra, podemos?Elas não existem mais na nossaregião do éter.

Tarquin deu um sorrisinho ecutucou Isadora. Serafimlevantou a mão.

— Por que elas estão extintasnesta parte do éter? Certamentenós não capturamos todas elas?

Rook suspiroudramaticamente e assentiu, como

se tivesse decididogenerosamente responder a umapergunta idiota.

— Está vendo estas chaves nabeira do pentagrama? Sãocoordenadas aproximadas para omesmo setor de terreno no éter.Todos os conjuradores nosúltimos dois mil anos caçaram namesma área, capturandoincontáveis demônios.Obviamente, nesse meio-tempo,entramos em guerra contra os

orcs. Depois aconteceram asrebeliões enânicas. Muitos dosnossos demônios morreram embatalha, e fomos precisando demais para substituí-los. Logo osdemônios selvagens aprenderama ficar longe da nossa parte doéter, ou talvez tenhamosesgotado todos os mais raros. Oque quer que tenha acontecido,só restam algumas poucasespécies. De vez em quando, umdemônio raro, como um Grifo,

perambula pela nossa área.Geralmente, está ferido oudoente. Outras vezes, criaturasmigram através da nossa região,como os Picanços.

— Então é por isso queprecisamos das chaves dos orcs— suspirou Genevieve, quando aficha caiu.

— Não precisamos de chavede orc nenhuma! — vociferouRook. — Os demônios fracos ecomuns são para os plebeus. Os

nobres herdam os demônios maisraros e antigos de seus pais.Assim, todos ficam em seu lugarde direito. Os orcs não mandamnada além demônios de nívelbaixo para nos enfrentar, dequalquer maneira, o que só provaque as coordenadas deles não sãonada melhores que as nossas. Éum desperdício de tempo erecursos tentar descobrir aschaves deles.

Genevieve mordeu o lábio e

deu um passo atrás, intimidadapela língua afiada. Fletcher nãoentendeu por que Rook seopunha tão fortemente à buscapelas chaves. Não era claro queelas poderiam beneficiarHominum? A única coisa queparecia interessar o Inquisidor,entretanto, era o desequilíbriomesquinho de poder e statusentre adeptos plebeus e nobres.

— Agora, a pedra de recargasó terá energia suficiente para

funcionar com cinco estudantespor semana. Assim sendo, atéque o torneio acabe, os nobresserão os únicos com permissãopara entrar no éter. Depois disso,vamos considerar a possibilidadede permitir que vocês plebeus ausem.

Enquanto Rory soltava umsoluço de desespero e os outroscomeçavam a protestar em vozalta, Fletcher só podia pensarnuma coisa.

Queria que a capitã Lovettestivesse aqui.

39

Fletcher sibilou de frustraçãoconforme o símbolo que ele tinhaentalhado tremeluzia no ar eentão sumia.

— De novo, Fletcher.Concentre-se! — rosnou Arcturo.— Lembre-se dos passos.

O aprendiz ergueu o dedoluminoso e desenhou o glifo dofeitiço de escudo novamente. Osímbolo flutuou no ar diante dasua mão, enquanto ele oalimentava com um fluxo lentode mana.

— Ótimo. Agora fixe! —comandou Arcturo.

Fletcher se focou no glifo,segurando o dedo no centroexato. Manteve-o ali até que aluz pulsou brevemente, e ele

sentiu que o símbolo estavatravado naquela configuração.Fletcher moveu a mão eobservou o glifo seguir seu dedo,como se estivesse afixado a umamoldura invisível. O suorescorria pelas costas do rapazcomo um inseto rastejante, masele o ignorou. Precisava dar tudode si para manter a concentração.

— Empurre o mana além comcuidado! Você precisa alimentaro glifo ao mesmo tempo.

Aquela era a parte mais difícil.Parecia que a sua mente estavaprestes a se dividir em duasenquanto ele tentava equilibrarfluxos simultâneos de manatanto através do glifo quantopara o próprio.

O símbolo estremeceu denovo, mas Fletcher cerrou osdentes e forçou um estreitofilamento de substância opacaatravés dele até o outro lado.

— Isso! Você conseguiu.

Agora, aproveitando o embalo,tente moldá-lo — incitouArcturo.

Não havia muita energia deescudo com a qual trabalhar, masFletcher não queria empurrarmais mana, para não correr orisco de desestabilizar a conexão.Então, assim como tinha feitocom o fogo-fátuo na primeiralição, ele o enrolou numa bola.

— Muito bem! Só que issonão é um fogo-fátuo. No caso

dos escudos, você precisa esticá-los. Vá em frente, vocêprovavelmente não terá outrachance de tentar na aula de hoje.

Mas Fletcher não conseguiamais manter o glifo estável. Elechamejou rapidamente e sedissolveu no nada. Momentosdepois, o escudo- bola fez omesmo.

— Certo. Tentaremos de novona aula que vem. Vá descansar,Fletcher — murmurou Arcturo, a

voz marcada pela decepção.Fletcher cerrou as mãos,

furioso consigo mesmo. Portodos os lados do átrio, os outrosestudantes exibiam um sucessosignificantemente maior. Osnobres eram os melhores, é claro,e praticavam variar a espessura eo formato de seus escudos, vistoque já haviam sido treinados emcasa. Malik era particularmentetalentoso, produzindo um escudocurvo tão espesso que era difícil

de ver através dele.A maioria dos amigos de

Fletcher já era capaz de criar umescudo em todas as tentativas,exceto por Rory e Atlas, que sóconseguiam metade das vezes. Jáele só obtivera um único sucessonas últimas três horas.

O rapaz se sentou num bancodo lado mais distante do átrio eassistiu, deprimido. Desde aprimeira aula com Rook tantassemanas antes, as coisas estavam

indo de mal a pior.Primeiro foram as pedras de

visão. Rook tinha passado pelafila de plebeus, permitindo queescolhessem pedras de uma caixade sobras. Fletcher fora deixadopor último de propósito, e só lherestou um fragmento arroxeadodo tamanho e formato de umxelim de prata. Para ver qualquercoisa, ele era forçado a levá-lo atéo olho e espiar como umbisbilhoteiro por um buraco de

fechadura. Além disso, osplebeus foram forçados a praticarcom os cristais na câmara deconjuração, enquanto os nobresmandavam seus demônios paraexplorar as partes seguras doéter.

Além disso, é claro, houve aaula seguinte com Arcturo. Ocapitão não estava bravo comFletcher, mas deu ao rapaz muitocom que se preocupar.

— Jamais gostei de

Inquisidores, e Rook é o piordeles. Três instituições foramcriadas pelo velho rei Alfric: aInquisição, os Pinkertons e osJuízes Magistrados; todas podresaté a raiz. Rei Harold as herdouquando seu pai abdicou dotrono, mas há rumores de queSua Majestade não gosta do jeitocomo elas fazem as coisas. SeRook tentar criar problemas, o reiHarold não dará atenção. Estoumais preocupado com a

possibilidade do velho Alfric seenvolver, mas ele raramentedeixa o palácio, então, com sorte,não ficará sabendo de nada. Nãose preocupe, Fletcher. Você nãofez nada de errado. Só esperoque Rook não mandeInquisidores a seu antigo lar pararevirar o lugar do avesso.

Essas palavras tinhamassombrado Fletcher por váriassemanas e ele mudou de ideiaquanto a mandar cartas a

Berdon, pois elas poderiam serrastreadas de volta até ele, ou atéo pai. Se Rook descobrisse o seucrime...

Fletcher não queria nempensar no que poderia acontecer.

É claro que essa não fora aúnica coisa a desanimar Fletcher.Goodwin os tinha carregado comtoneladas de deveres de casa,exigindo redações infinitas sobredemonologia e lhes devastandocom críticas caso errassem o

menor dos detalhes.Em compensação, Fletcher

conquistou elogios relutantes deGoodwin na segunda aula dedemonologia; seu estudo dasraças de Canídeos e seus primosfoi recompensado. Fletcher tinhaidentificado corretamente ediscursado com eloquência sobreos demônios de Penélope eMalik. Penélope tinha umVulpídeo, um demônio-raposade três caudas, um pouco menor

que um Canídeo comum, porémmuito mais ágil. Seu focinho eraelegante e pontudo, e a pelagemera de um vermelho suave quereluzia como cobre polido.

O Anubídeo de Malik era umdos primos mais raros dosCanídeos. Ele se acocorava sobreduas patas, semelhante a umFelídeo, com a cabeça de umchacal e pelagem lisa e negra. Eraum parente próximo do demônioescolhido do major Goodwin, o

Lupídeo, uma criaturasemelhante com denso pelocinzento e cabeça de lobo. OAnubídeo era um demôniopopular entre os magos debatalha, oriundos do deserto deAkhad, apesar da espécie ter sidocaçada até se tornar praticamenteextinta na parte de Hominum doéter.

O demônio de Rufus eraoutro Lutra, para a decepção deAtlas. Extraordinariamente, o

demônio do jovem nobre lhefora presenteado da mesmaforma que as criaturas dosplebeus, por meio da doaçãoforçada de um pergaminho deconjuração. Isso ocorrera porquea mãe dele tinha morridoquando ele era pequeno, e seupai não era um invocador.

A única coisa em que Fletcheracreditava ter talento natural erana esgrima. Sir Caulder oconvidara para aulas extras, com

técnicas específicas para okhopesh. Seu maior defeito era ocontrole da agressão. De acordocom Sir Caulder, a paciência erauma das virtudes maisimportantes do espadachim.

— Muito bem, pessoal, todosjuntos aqui, por favor — gritouArcturo, tirando Fletcher de seudevaneio.

O grupo se reuniu ao redordo professor, os rostos brilhandocom a euforia de finalmente

aprender uma das lições maispráticas da feitiçaria. As últimassemanas tinham sidobasicamente voltadas para aprática de fogo-fátuo,canalizando mana e controlandomovimento, tamanho, forma ebrilho. Arcturo argumentara queas técnicas aprendidas comfogos-fátuos os preparariam bempara o entalhe de glifos.

— Pois bem, muitos de vocêsestão enfrentando dificuldades

em completar um feitiço emtodas as tentativas. Um númeroainda maior tem problemas emfazê-lo com rapidez suficiente.Vou deixar uma coisa muitoclara. Tanto velocidade quantoconsistência são essenciais paraum mago de batalha bem-sucedido — afirmou Arcturonuma voz grave, olhando cadaum deles nos olhos. — Agora,quem pode me dizer quais são osquatro feitiços fundamentais de

um mago de batalha?Penelope levantou a mão.— Os feitiços de escudo, de

fogo e de relâmpago.— Muito bem, mas esses são

só três. Quem pode me dizer oquarto?

— Telecinese — sugeriuSerafim.

— Isso mesmo, a habilidadede mover objetos. Observembem. — Arcturo sorriu.

O professor ergueu a mão e

entalhou uma espiral no ar,como se estivesse agitando umaxícara de café. Subitamente, elechicoteou a mão para fora e ochapéu que ele usava saltou paraas vigas do teto, em seguidadescendo com lentidão epousando em sua cabeçanovamente. Fletcher percebeuuma perturbação no ar abaixo dochapéu, como uma onda de calornum dia ensolarado.

— A arte de mover objetos é

traiçoeira, pois, ao contrário dosfeitiços de escudo, fogo ourelâmpago, a telecinese épraticamente invisível ao olhonu. É muito mais difícil laçaralguma coisa e manipulá-laquando não se pode ver a cordaque você usa, por assim dizer. Amaioria dos magos de batalhasimplesmente lança um impactosúbito, jogando o oponente paralonge, mas gastando muitomana.

Arcturo, parecendo um tantoculpado, olhou de relance para apilha de rolos de pergaminhoque Penélope tinha trazidoconsigo. Estavam cheios deoutros símbolos que o capitão osinstruíra a aprender.

— Obviamente, existemmilhares de outros feitiços. Ofeitiço de cura, por exemplo;difícil, mas útil. Ele agelentamente, portanto não émuito prático no calor da

batalha. — Arcturo entalhou osímbolo do coração no ar parademonstrar. — Há algunssímbolos que lhes serãonecessários no próximo ano, masque vocês não conseguirãoexecutar agora, como o feitiço debarreira. Vocês verão este emação durante o torneio. Dequalquer maneira, concentrem-se nos quatro fundamentais enão se darão muito mal nodesafio. Mas precisarão dos

outros na prova escrita; portanto,aprendam todos! Turmadispensada!

Com essas palavras, Arcturodeu meia-volta e se dirigiu àporta. Os outros começaram umbate-papo animado, mas Fletchernão estava a fim de conversar.Em vez disso, foi atrás doprofessor e puxou de leve suamanga.

— Senhor, se importaria se euperguntasse se a capitã Lovett

está bem?Arcturo se virou e olhou nos

olhos de Fletcher, com o cenhofranzido de preocupação.

— Ela está em choque etéreo.Pode ser que jamais se recupere,ou que se recupere amanhã.Tento ler para ela sempre queposso — respondeu Arcturo,tocando o livro que levava sob obraço. — Felizmente para acapitã, um dos demônios dela,Valens, não estava infundido

quando o acidente aconteceu.Ela pode ser capaz de ver atravésdos olhos dele usando apenas aprópria mente. Só osconjuradores extremamentetalentosos conseguiram aprenderessa habilidade, mas Lovett éuma das mais talentosas que eujá tive a honra de conhecer. Seexiste alguém capaz de fazê-lo, éela.

O professor deu um apertoencorajador no ombro de

Fletcher e se obrigou a sorrir.— Agora vá descansar; você

trabalhou duro hoje.Fletcher assentiu e se afastou,

subindo lentamente as escadasda ala oeste. Desejava a solidãodo próprio quarto e a companhiade Ignácio, que só podia serconjurado durante algumas dasaulas.

Com a capitã Lovettinconsciente, Fletcher se sentiamais solitário do que nunca. Por

mais que seus amigos lheapoiassem e fossem boacompanhia, todos tinham seuspróprios problemas com quelidar. Até mesmo Arcturo andavareservado recentemente, mas, seera por conta da presença deRook, de um desapontamentocom a performance de Fletcher,ou por causa da condição deLovett, o rapaz não saberia dizer.A professora havia sido bela edestemida, completamente

indiferente às distinções de raçae classe social de seus estudantes.Fletcher sabia que poderiaprocurá-la se tivesse algumproblema. Agora... era como seela houvesse partido.

Com a mente prejudicadapelo cansaço, Fletcher se dirigiuao andar errado, onde os nobresmantinham seus aposentosprivados. Enquanto resmungavae se virava de volta às escadas,algo lhe chamou a atenção. Era

uma tapeçaria, ilustrada compessoas de armadura em meio auma batalha. Fletcher foi até lá eadmirou o trabalho intrincadoque a tinha trazido à vida.

Os orcs investiam sobre umaponte, cavalgando seusrinocerontes de guerra a todavelocidade contra um pequenogrupo de homens armados compiques. À frente deles se erguiauma figura dominadora, o braçoestendido com o símbolo em

espiral entalhado diante de si. Aoseu lado, um Felídeo leoninoexibia as presas e parecia rugircontra as hordas atacantes.

Fletcher se inclinou para afrente e leu a placa abaixo daobra: O Herói da Ponte Watford.

— Incrível. Cipião rechaçouuma investida de rinocerontesórquicos — murmurou ele.

De repente, ouviu o som depassos. Ao perceber que estavano andar dos nobres, Fletcher

disparou para dentro de umcômodo e se escondeu nassombras. Ele não queria toparcom Tarquin novamente, não emseu humor atual.

— Você viu a cara daquelepalhaço quando o feitiço delefalhou? Eu poderia ter rido atéchorar. O bastardo achava queera tão especial. Agora, olhe sópara ele — declarou Tarquin,com pachorra. A risadinharesultante revelou que ele estava

com Isadora.— Você é engraçado, Tarquin

querido. — Riu a irmã. — Masnós não tivemos tempo deconversar hoje, não com todasaquelas aulas inúteis.

Conte-me, o que papai disseem sua carta?

— Sabe que ele não pode nosdizer muito, não em algo tãocomprometedor quanto umacarta. Mas eu consigo ler nasentrelinhas. Vai acontecer esta

noite. Amanhã pela manhãseremos os maiores fabricantesde armas em Hominum. Então,tudo que teremos de fazer serános livrar do pai de Serafim eassumir o negócio de muniçõesdele. Depois disso, tudo seránosso!

— Ótimo. Nossa herançaestará assegurada novamente.Mas ele lhe disse se... — A vozde Isadora desvaneceu até sumirquando eles entraram em um

dos quartos e fecharam a porta.Fletcher percebeu que estavacontendo a respiração, e a soltounum longo suspiro. O que querque ele tivesse escutado naquelanoite, não eram boas notícias deforma alguma.

Fletcher estava prestes a sairdo esconderijo quando ouviumais passos. Alguém seaproximou devagar até parardiante do quarto em que Tarquine Isadora tinham entrado, em

seguida soltou um longo suspiro.— Vamos lá, Sylva, você

consegue — disse a voz musicalda elfa.

Fletcher ficou boquiaberto desurpresa. Por que Sylva teriavindo falar com os Forsyth tãotarde da noite?

— Consegue o quê? —indagou Fletcher, saindo dassombras.

Sylva se espantou e levou asmãos à boca.

— Fletcher! Achei que vocêestaria na cama.

— Consegue o quê? — repetiuo menino, franzindo o cenho.

— Eu estou aqui para... fazeras pazes com os Forsyth —murmurou ela, evitando os olhosde Fletcher.

— Por quê? Por que diabosvocê decidiria isso? Eles aabandonaram quando você maisprecisava de ajuda! — exclamouFletcher.

— Eu me esqueci do motivoda minha presença aqui,Fletcher. Sou uma elfa, aprimeira conjuradora do meupovo em centenas de anos. Nãosó isso, mas uma embaixadoratambém. Você e Otelo forambons para mim, e não lhes desejomal algum. Mas não possoalienar a nobreza, não quando asrelações entre nossos países estãoem jogo. Zacarias Forsyth é umdos conselheiros mais antigos e

mais próximos do rei Harold, eserá o rei quem negociará umaaliança entre nossos povos.Minha amizade com os filhos deZacarias poderá influenciá-lo emfavor da nossa causa. — Sylvafalava com firmeza, como se játivesse ensaiado o discurso antes.

— Mas, Sylva, eles nemgostam de você. Só querem suaamizade para vantagem própria!— insistiu Fletcher.

— Eu também só quero a

deles pelo mesmo motivo.Lamento, Fletcher, mas já tomeiminha decisão. Isso não mudanada entre nós, mas é assim queas coisas têm que ser — afirmouela.

— Ah, mas muda sim! Vocêacha que vou confiar em vocêenquanto for amiga daquelasduas víboras? — perguntouFletcher, sem pensar, passandopela elfa.

— Fletcher, por favor! —

implorou Sylva.Mas era tarde demais. O

rapaz foi embora pisando duro, aangústia substituída por umafúria que fervia em seu interior.

Maldita seja a elfa e suasmanobras políticas. Malditossejam os nobres também! Tudoestava desmoronando: suasamizades, seus estudos. Fletchernão podia nem entrar em contatocom Berdon enquanto estivessesob o olhar vigilante de Rook.

No alto da escadaria, Rory,Serafim e Genevieve batiampapo, animados com os própriossucessos. Fletcher afundou numapoltrona atrás deles, esperandonão ser notado. Não estava nemum pouco a fim de conversa.

— Acho que talvez meu nívelde realização esteja crescendo! —declarou

Rory, cheio de alegria. — Eufui muito bem! Talvez Malaquitambém esteja subindo de nível!

— Acho que você nãoentendeu como os níveis derealização funcionam, Rory —afirmou Serafim, gentilmente. —Sua habilidade de executarfeitiços não tem nada a ver com oseu nível. Realização só dizrespeito a quanta energiademoníaca você é capaz deabsorver. E Malaqui nunca vaisubir de nível. Cada demôniopermanece no mesmonivelamento pelo resto da vida.

Ainda que o seu demônio fiquemaior e mais forte, isso nuncamudará.

— Ah... — murmurou Rory.— Mas por que Tarquin estava segabando com Fletcher sobrecomo Ignácio era de um nívelmais baixo que Trébio, se issonão tem nada a ver com poder eforça?

— Porque é normalmenteuma boa estimativa. Umdemônio de nível sete

geralmente vai ser mais forte queum nível seis, numa regraempírica. Não é uma leiimutável. Por exemplo, umFelídeo vai derrotar um Canídeonuma luta nove em cada dezvezes, mesmo que ambos sejamnível sete. Ou, por exemplo,considere o Golem de Otelo.Quando ele estivercompletamente crescido, serávárias vezes mais poderoso queum Canídeo, mesmo que seja

nível oito enquanto o Canídeo ésete.

— Certo... deixa para lá,então. — Rory estava com umaexpressão chateada de novo.

— Não se preocupe, tenhocerteza de que você subirá denível — disse Serafim, notando amudança de humor em Rory. —O major Goodwin me disse que émuito raro que um conjuradorpermaneça no mesmo nível suavida inteira. Só aqueles que

nunca capturam outrosdemônios ou que são muitoazarados em seu crescimentonatural de realização ficamestagnados.

— E como esperam que eucapture outros demônios se Rooknão nos deixa caçar? — bradouRory, levantando-se num salto.

— Rory, calma, é só por umano! — tentou argumentarGenevieve, mas o garoto aignorou e foi para o quarto,

aborrecido. A menina lançou umolhar exasperado a Serafim eentão seguiu Rory até oalojamento dos meninos.

Serafim mordeu o lábio esuspirou.

— Falei bobagem de novo.Estava só tentando controlar asexpectativas dele, nada mais —murmurou ele.

A sala ficou em silêncio, eSerafim passou a escreveranotações para a próxima

redação de demonologia. No fim,ele se cansou e apagou ofogofátuo, lançando o aposentonas sombras. Levantou-se e fezmenção de ir para o quarto.

— Espere — disse Fletcher,segurando-o pela mão. — Precisolhe perguntar uma coisa.

— Claro, o que foi? —indagou Serafim com um bocejo.

— O que seu pai faz? Estouperguntando porque escuteiTarquin mencionar uma coisa...

sobre derrubar o seu pai. Temalguma coisa a ver com osnegócios dele — murmurouFletcher.

Serafim ficou paralisado.Fletcher percebeu que algum tipode conflito interno estavaocorrendo. No final das contas, orapaz relaxou e se sentou ao ladodele.

— Considerando que sei seussegredos, é apenas justo que lheconte os meus. Só me prometa

que não vai dizer uma únicapalavra do que for dito para maisninguém.

Fletcher concordou com umaceno de cabeça, e Serafimcontinuou:

— Sou nascido e criado naAntioquia, a mesma cidade deMalik e sua família, os Saladin. Afamília dele não possui vastaspropriedades rurais e florestascomo os outros nobres, porémsão donos de muitos negócios e

imóveis na cidade. Isso ocorreporque Antioquia é cercada pelodeserto, onde nada cresce e hápouca água.

— Então os Saladin estãoenvolvidos? — perguntouFletcher.

— Não exatamente. Meu paicorreu um risco. Ele comprouáreas enormes do deserto. Eratudo terra barata, masvirtualmente inútil. Eu melembro dos meus pais discutindo

a noite inteira quando ele gastoutodas as nossas economias nisso.Então certo dia, um anão veionos visitar. Ele nos disse que osanões não têm o direito depossuir terras que não sejamaquelas onde foram alocados emCorcillum, mas que ele e seupovo precisavam daquilo. Osnobres não queriam saber defazer negócios com os anões,mas, talvez, nós nosinteressássemos.

— Eu sabia que os anõestinham alguma coisa a ver comisso! — exclamou Fletcher,percebendo em seguida quefalava alto demais e levava umdedo aos lábios.

— Na verdade os anõesprecisavam de metais e deenxofre em grandes quantidades.Eles fizeram levantamentosgeológicos nas nossas terras eencontraram veios sob a areia,bem fundos. Sem o

conhecimento técnico deles, nósnão conseguiríamos extraí-los e,por outro lado, sem a nossa terra,eles também não. Entãofechamos um acordo: eles nosajudariam a instalar as minas enos emprestariam o dinheironecessário para contratar homense comprar o equipamento. Emtroca, seríamos sóciosexclusivamente dos anões e nãovenderíamos a mais ninguém.Eles fariam o processamento da

matéria-prima e dividiríamos oslucros de forma justa.

— Mas por que enxofre? —indagou Fletcher. Tudocomeçava a fazer sentido.

— Ele é usado na produçãode pólvora. A melhor parte éque, aparentemente, só o desertode Akhad possui depósitos depólvora em quantidadessignificativas, e nós somos donosde todas as terras que ficamsuficientemente próximas da

civilização para que a mineraçãoseja viável. Cada bala de chumbodisparada e cada barril depólvora usado são produzidosnuma mina ou fábrica Pasha.Esse é meu sobrenome, aliás:

Pasha.— E por que os Forsyth se

importariam com isso? —inquiriu Fletcher.

— Você não sabe nada sobreessas coisas? O maior negóciodeles é a produção de armas. São

o principal fornecedor deespadas, armaduras, elmos, atémesmo uniformes. Quando osanões desenvolveram osmosquetes... os negócios dosForsyth começaram a minguar. Oarmamento enânico está setornando gradualmente maispopular, e soldados que lutamcom mosquetes não precisammais vestir armadura, já quepodem combater a distância. Nãoacho que os Forsyth saibam

como nos derrubar ainda, masnão ficaria surpreso se estivessemplanejando isso.

— Eles mencionaram algosobre um evento importante hojeà noite, mas falaram em lidarcom seu pai em seguida — avisouFletcher, tentando se lembrar daspalavras exatas de Tarquin.

— É tarde demais para fazeralguma coisa a respeito, mas meupai está em segurança. Eu nãome preocuparia muito. Tinha

esperanças de que Tarquin eIsadora não soubessem da minhaidentidade, mas suspeito decomo eles descobriram. —Serafim sorria enquanto falava,como se estivesse esperandoalguma desculpa para revelar seusegredo. — Primeiro perdemosuma família nobre, os Raleigh,depois os Queensouth e osForsyth se uniram numa só casa.O rei Harold subitamente perdeuduas de suas famílias nobres mais

antigas. Ele queria criar novascasas aristocráticas, usando ospoucos segundos e terceirosfilhos nobres que tambémnasceram adeptos e lhes dandoseus próprios títulos. Mas osnobres odiaram a ideia; em geralcasam esses filhos com osprimogênitos de outras casas.Então o rei procurou outrasolução. Meu pai tem um bomrelacionamento com os anões, édono de muita terra e agora está

quase tão rico quanto umaristocrata por si só. Entretanto,isso não basta. Para se tornar umnobre, você precisa ser umadepto. Até que, certo dia, osInquisidores apareceram para metestar...

— E descobriram que você éum adepto — concluiu Fletcher,finalmente compreendendo asituação. — Você pode começaruma nova linhagem aristocrática,já que seus filhos primogênitos

serão adeptos também.— Exatamente. O rei fará o

anúncio publicamente nopróximo ano, mas os nobres jáficaram sabendo. Não acho queeu seja muito popular junto aosgêmeos agora, ou mesmo comMalik.

Fletcher ficou sentado emsilêncio, tentando processar tudoque tinha acabado de ouvir.

— Boa noite, Fletcher — disseSerafim, saindo da sala pé ante

pé. — Lembre-se... é o nossosegredinho.

40

Os tambores de guerra rufavamcom um fervor insano,martelando o ar noturno comintensidade pulsante. Fileiras emais fileiras de orcs batiampalmas e pisoteavam no ritmo,pontuando o fim de cada ciclo

com uma ululação gutural.A Salamandra se enrolou no

pescoço de um xamã orc,observando os procedimentos. Aplataforma elevada onde eles seencontravam era o epicentro aoredor do qual todos os orcs sereuniam, iluminada por enormesfogueiras vorazes em cada quina.Escravos gremlins corriam de umlado para o outro, arrastandomadeira da selva para manter aschamas bem altas.

Subitamente, os tamborescessaram. O diabrete se espantoucom o silêncio abrupto e bocejouruidosamente. O xamã oacalmou e lhe colocou uma iscade carne na boca, acariciando acabeça da Salamandraafetuosamente.

Um grunhido cortou osilêncio atrás deles. Um elfoestava atado a um travessão,mãos e pés cruelmenteamarrados à madeira. Seu rosto

estava inchado e coberto desangue seco, mas o piorferimento era o grande quadradoem carne viva nas costas, deonde um pedaço de pele foraremovido. Atrás dele, outro orcestava raspando a pele com umarocha serrilhada, removendoqualquer traço residual degordura, carne ou tendão.

O elfo grasnou desesperado,mas sua garganta estava secademais para formar quaisquer

palavras com sentido. O xamãorc lhe acertou um pontapé,chutando-o no estômago. O elfosufocou e ficou penduradocontra as amarras, ofegandocomo um peixe fora d’água.

Um burburinho se iniciou namassa de orcs abaixo. Asmultidões abriram caminho,revelando uma procissão queadentrava o acampamento. Haviadez orcs; espécimes grandes,musculosos, cuja pele cinzenta

estava pintada com ocresvermelhos e amarelos. Seuarmamento era tão primitivoquanto atemorizante; pesadasclavas de guerra cravejadas depedras pontudas.

Porém, eles não estavamsozinhos. Outro orc osacompanhava, e fazia com queparecessem minúsculos. Sua peleera de um branco pálido, e seusolhos rubros ardiam sob a luz daschamas. Ele caminhava com

confiança genuína, aceitando osolhares de reverência dos orcscomo um justo tributo.

Conforme o grupo seaproximava da plataforma, o elfocomeçou a gritar, lutando contraas amarras. Desta vez, o xamãnão fez nenhuma menção desilenciá-lo. Em vez disso,simplesmente se ajoelhou,curvando a cabeçaprofundamente enquanto o orcalbino subia na plataforma,

deixando os guarda-costas paratrás.

O orc branco ergueu o xamã,colocou-o de pé e o abraçou. Aofazê-lo, a multidão rugiu seuapoio, batendo os pés até aplataforma tremer. Mesmo comtodo aquele barulho, os gritosdesesperados do elfo aindapodiam ser ouvidos enquanto elepuxava as tiras de couro que oatavam no lugar.

As exclamações de apoio

morreram quando o orc albino seaproximou do elfo cativo. Ergueuo rosto do prisioneiro e oencarou, segurando a cabeça comtanta facilidade quanto se fosseuma laranja. Finalmente, osoltou com um grunhidodesinteressado.

O elfo estava quieto agora,como se resignado com seudestino. A multidão observavacom ansiedade enquanto o orcbranco recebia o pedaço de pele,

agora esticado numa pranchetade madeira. Ele ergueu o objetoà luz, exibindo assim opentagrama que trazia tatuadona mão, a tinta negracontrastando drasticamente coma pele pálida. Os dedos tambémeram tatuados, a ponta de cadaum marcada com um símbolodiferente.

O diabrete foi baixado aochão pelo mestre, que se afastoue se curvou novamente. O orc

albino estendeu a mão, virando apalma tatuada para o céu. Enfim,com uma voz grave eretumbante, o orc começou a lera pele.

— Di rah go mai lo fa lo gorah lo…

O pentagrama na palma doorc começou a brilhar num roxoincandescente e cegante.Filamentos de luz branca sematerializaram, um cordãoumbilical retorcido entre o xamã

e a Salamandra. O laço invisívelque unia os dois se desenrolou,então se rompeu com um estaloaudível.

— Fai lo so nei di roh…Porém, aquelas foram as

últimas palavras do orc branco.Uma flecha élfica silvou pelo

ar e se cravou em sua garganta,espirrando sangue quente pelaplataforma. Mais projéteischoveram nas fileiras; longashastes pesadas, ornadas com

penas de ganso. O orc xamãrugiu, mas, sem seu demônio,estava impotente. Em vez delutar, ele correu para o lado doorc branco caído, tentandoestancar o sangue que esguichavado pescoço de seu líder.

Outra saraivada de flechas foidisparada, lançando os orcs nocaos, correndo sem propósito,brandindo clavas de guerra efeixes de dardos. Então, com umtoar metálico, o som de

trompetes soou da floresta e umagrande multidão investiu vindadas árvores, urrando seus gritosde batalha.

Mas não foram os elfos quevieram marchando das trevas...eram homens.

Homens vestindo pesadasarmaduras de placas, armadoscom espadas largas e escudos,lançando-se destemidamente aocoração do acampamento. Elesnão ofereceram misericórdia,

cortando e estocando os orcsnum tornado de aço. Oacampamento foi transformadonum abatedouro, o solorecoberto por uma espessacamada de entranhas, corpos esangue. Atrás dos guerreiros,ondas e mais ondas de flechasvoavam acima, bombardeando osorcs com precisão letal.

Os orcs não eram covardes.Eles investiram contra osatacantes, esmagando elmos e

peitorais com golpes de clavacomo se fossem feitos dealumínio. Era um corpo a corpodesesperado e cruel. Não haviahabilidade ou tática ali; a morteera decidida pela sorte, força enúmeros.

Orcs rugiram em desafioconforme as lâminas dos homenssubiam e desciam. A cada golpede suas clavas, lançavam homenspelos ares, esmigalhando-lhes osossos e os deixando aleijados

onde caíam. Os orcs continuaramlutando sob a tempestade deflechas, arrancando as hastes dospróprios corpos e as atirando devolta nos rostos dos inimigos, odesafio em seus olhos.

A guarda pessoal do orcbranco talhou uma larga trilha dedestruição, lançando dezenas deoponentes às suas mortes. Suaforça era inigualável conformeeles se esquivavam e giravam àluz do fogo, usando as clavas

tachadas com efeito letal. Osoutros orcs se organizaram naretaguarda, gritando ordensenquanto levavam a luta de voltaao inimigo. De alguma forma, osorcs agora estavam em vantagem.

Algo se agitou na selva, umamassa escura que se mantiverafora de vista. O que antes pareciaser um monte de galhos deárvore se tornou chifres quesacudiam e empurravam aoinvestir contra a clareira. Eram os

elfos, montados em alcesimensos, feras de peito largo compernas fortes e galhadas afiadas.Eles não vestiam armadura, masbrandiam os arcos que tinhamenegrecido o céu com flechashavia pouco. O elfo que lideravaa carga erguia uma grandeflâmula que esvoaçava às suascostas, feita de pano verde comfios dourados. A flecha partidailustrada no estandarte ondulavaconforme os alces pisoteavam os

corpos despedaçados no solo.Eles atingiram os orcs como

um aríete, empalando asprimeiras fileiras com os chifres eos atirando para trás. Flechassilvaram, cravando-se em crâniose olhos, disparadas agilmentepelos elfos de suas montarias. Oshomens comemoraram e osseguiram, executando os orcs quetinham sido atropelados pelainvestida.

A situação começou a se

reverter de novo, mas a batalhaestava longe de terminar. Os orcscercaram a plataforma, umúltimo núcleo de resistência quenão se renderia. Eles lançaramseus dardos contra os inimigos,grandes hastes de madeira compontas afiadas que massacravamalce e elfo igualmente.

Os homens ergueram seusescudos, uma fileira ajoelhada ea outra de pé para criar umaparede entrelaçada com duas

linhas de altura. Os elfosmandaram seus alces de volta àsárvores e dispararam flechas detrás da linha da floresta,arqueando os disparos sobre aproteção para castigar habilmenteos inimigos. Era uma luta mortalde atrito conforme os projéteisdos dois lados cobravam seupreço. Mas só poderia haver umresultado.

Foram necessárias dúzias deflechas para extinguir cada orc,

mas eles não escaparam. Caíram,um por um, estrebuchando esangrando na terra. Por fim, aguarda do orc brancoempreendeu um ato finalirremediável, investindo contraos inimigos. Eles mal deram dezpassos.

Na plataforma, o orc xamãtocava a Salamandra perdida,desesperado pelo mana quepoderia lhe dar uma chance desobrevivência. Percebendo a

inutilidade do gesto, ele sacou afaca e se arrastou até o elfocativo, talvez na esperança deobter um refém.

Ao erguer a faca ao pescoçodo elfo, os arcos foram erguidosnovamente.

As flechas silvaram umaúltima vez.

Fletcher acordou num susto,com o corpo encharcado de suorfrio.

— O que diabos foi isso?

41

O que Fletcher tinha acabado dever... não fora um sonho, dissoele tinha certeza. Sentira o cheirode sangue, ouvira os gritos. Asimagens eram as memórias deIgnácio, um dos flashbacks deinfusão sobre os quais Lovett

tinha lhe avisado.— Estou com um pouco de

ciúmes — murmurou Fletcher aodiabrete. — Eu tinha quase meesquecido de que você um dia foide um orc.

O demoniozinho rosnousuavemente e se enterrou aindamais nos cobertores. O quartoestava gélido; Fletcher ainda nãotinha encontrado umpreenchimento adequado para aseteira da parede.

Com um clarão de repulsa,Fletcher percebeu que opergaminho de conjuração quedeixara com a dama Fairhaventinha sido feito do elfo damemória. De alguma forma, vera vítima tinha tornado a relíquiaduplamente perturbadora.

Ele repassou a cena queacabara de presenciar. O que oselfos estavam fazendo noterritório dos orcs? Seria o orcbranco que ele tinha visto o

mesmo que liderava as tribosagora? Não poderia ser. JamesBaker havia escrito que opergaminho fora encontrado emmeio a ossos de muito tempoatrás. A batalha deve teracontecido centenas de anosantes, talvez na Segunda GuerraÓrquica; não havia mosquetesnaquela época, afinal. Mas issonão explicava o que os elfosfaziam ali, nem a presença do orcbranco.

— Você provavelmente écentenas de anos mais velho queeu, é só o que sei — murmurouFletcher, esquentando as mãosna barriga de Ignácio.

O rapaz se deitou de volta nacama, mas o sono não chegava.Ele ficou analisando os fatosmentalmente, repetidas vezes.Haveria alguma pista? Não tinhanenhum outro demônio presentealém de Ignácio... será que issosignificava alguma coisa?

Certamente um exército humanoteria empregado magos debatalha, especialmente numataque tão crucial quanto aquele.

De repente ele teve a ideia. Oestandarte que os elfos tinhamusado: a flecha partida! Aquilocertamente revelaria a qual clãaqueles elfos tinham pertencido.Sylva saberia qual era; ninguémmais ali sabia tanto sobre ahistória dos povos élficos.

Fletcher se entristeceu ao

lembrar a discussão que elestiveram. Talvez ele tivesse sidomuito duro com a amiga. Erafácil esquecer a posição em queela estava e as responsabilidadesdela para com seu povo. Droga,se a amizade dela significasse umfim à guerra na frente élfica, oque importava se ela fosseamistosa com os Forsyth? Nomínimo, isso atrapalharia osplanos de Didric. Não haverianecessidade de enviar todos os

prisioneiros para serem treinadosno norte se a frente élfica nãoexistisse mais.

O rapaz se levantou e sevestiu. Enrolando a Salamandraainda adormecida no pescoçocomo um cachecol, Fletchercaminhou silenciosamente até oalojamento das meninas.

— Desta vez, eu certamentevou bater à porta — murmurouFletcher consigo mesmo, semquerer outro encontro com

Sariel.Sylva atendeu imediatamente.

O quarto dela era parecido com ode Fletcher, só que com o dobrodo tamanho e equipado com umbaú extra ao pé da cama. Sarielestava enrodilhada num tapetede pele de carneiro no centro doquarto, observando o rapazcautelosamente. Sylva exibia amesma expressão que seudemônio, e ele notou que elaainda vestia o uniforme.

Provavelmente tinha acabado devoltar de seu encontro com osForsyth. Ele engoliu oaborrecimento gerado com talpensamento e falou calmamente:

— Posso entrar?— É claro. Só que, se você

veio aqui para me fazer mudarde ideia, pode voltar para acama. Tarquin e Isadora estavamdispostos a pôr nossas desavençasde lado, e espero que você sejacapaz de fazer o mesmo comigo!

— Não vim aqui por causadisso — respondeu Fletcher,ignorando o próprio desejo decontradizê-la. — Tive umflashback, como Lovett tinhaavisado. Preciso lhe perguntarsobre a última vez em que elfos ehumanos lutaram juntos.

Sylva ouviu com atençãoabsoluta enquanto o rapazcontava sobre seu sonho. Eletentou relatá-lo nos menoresdetalhes possíveis, na esperança

de se lembrar de alguma outrapista.

— Fletcher... você tem certezade que não era um sonho? —indagou a elfa quando eleterminou. — É só que... o quevocê me disse é impossível.

— Mas por quê? — perguntouFletcher. — Estou lhe dizendo,era tudo real!

— Se o que você diz éverdade... Ignácio tem mais dedois mil anos de idade! —

exclamou Sylva. Ela se apressouaté o baú ao pé da cama eremexeu dentro dele. — Sei queestá aqui em algum lugar —murmurou ela, empilhandolivros empoeirados ao seu ladono chão de pedra. — Aqui!

— anunciou, erguendo umtomo pesado até a cama.

Fletcher se sentou ao ladodela e a elfa folheou o livro atéparar numa página ilustrada. Acena exibida deixou Fletcher

estonteado: elfos cavalgandoalces, investindo contra umahorda de orcs. A flâmula daflecha partida esvoaçava atrásdeles. Homens a pé atacavampelo outro lado, trajando amesma armadura da visão deFletcher. Até mesmo a guarda dehonra do orc branco estavapresente, com a inconfundívelpintura de guerra vermelha eamarela.

— Você se lembra daquilo

que lhe contei naquela noite nosmilharais? Sobre como os elfosensinaram o primeiro rei deHominum a conjurar em trocade uma aliança contra os orcs?Essa foi a batalha final que elesempreenderam, a Batalha deCorcillum, assim chamada pelaproximidade com a cidadeenânica. O homônimo do seudemônio, Ignácio, teria lideradoa investida naquela batalha.Aparentemente, não aconteceu

muito longe daqui, mas o localexato da peleja foi perdido notempo. O fato de que você pôdevê-la... é incrível! — Ela acaricioua página, traçando o contornodos chifres de um alce.

— Mas eu não entendo. Porque havia um orc branco... e porque Ignácio era o único demôniolá?

— Só os chefes dos clãs élficoseram conjuradores, e o motivoprincipal de eles terem feito o

acordo com o seu primeiro rei foipara que não tivessem de searriscar em batalha. Os elfos nãoprecisariam lutar de formaalguma depois do acordo, masparticiparam da Batalha deCorcillum porque o filho de umdos chefes de clã forasequestrado, então elesmandaram seus própriossoldados para ajudar. Tambémnão tinham ensinado a arte daconjuração ao rei Corwin a essa

altura, pois as condições doacordo determinavamclaramente que os orcsprecisavam ser completamentederrotados antes. Quanto ao orcbranco, eu não faço ideia. Só seique, depois da Batalha deCorcillum, os orcs recuaram paraas selvas. Foi a vitória decisivaque marcou o início de uma erade paz que durou até a SegundaGuerra Órquica, trezentos anosatrás.

Fletcher estava feliz por terido falar com Sylva. Ela pareciater aprendido tudo sobre relaçõeshumano-élficas na suapreparação para a vinda àCidadela.

— Acho que precisamos ir àbiblioteca pesquisar se já houverelatos de outro orc albino —comentou Fletcher. —Aparentemente, depois que esteúltimo foi morto, os orcs sedesorganizaram de forma total.

Talvez os orcs brancos não sejamapenas os líderes; pode haveralgo mais por trás disso!

— Tem razão. Ignácio estavaprestes a ser presenteado a ele, eparecia ser uma cerimôniaimportante. Temos de pesquisartudo sobre os orcs e seus líderesantigos, talvez a gente descubraalguma coisa. — Sylva selevantou e foi até a porta.

— Aonde você vai? —indagou Fletcher enquanto Sariel

saltava atrás da dona, quase oderrubando.

— À biblioteca, é claro. E digomais: o quanto antes!

Fletcher não teve escolhaalém de segui-la.

Vocans era fria e úmida ànoite, mas fogos-fátuosiluminavam o caminhosuficientemente bem. O uso defeitiços não dava mais a Fletchera alegria de outrora, pois ainda seaborrecia com seu desempenho

recente nas aulas de Arcturo.Ele tentou se manter positivo

e se concentrar na tarefa domomento. Pelo menos teria achance de se redimir, oferecendoinformações úteis sobre os orcs.

Se ao menos ele tivesse acessoao livro do conjurador... Fletcheradoraria ter a oportunidade deler mais sobre o local onde opergaminho de Ignácio foraencontrado.

Enquanto eles desciam a

escadaria em espiral, Fletchernotou o brilho de outro fogo-fátuo atrás deles.

— Esconda-se! Pode serRook! — sibilou ele.

Eles apagaram as própriasluzes e se ocultaram num doscorredores do andar superior.Contendo a respiração, os dois sepressionaram contra uma porta.Sariel ganiu com a escuridãosúbita, mas se calou com umtoque de Sylva em seu focinho.

Passos apressados logo seseguiram, acompanhados derespiração ofegante. Quem querque fosse, estava com pressa.Depois do que pareceu umaeternidade, os passos se foram, eos dois ficaram novamenteenvolvidos pelas trevas.

— Venha, vamos em frente —murmurou Fletcher quando tevecerteza de que não poderia serouvido.

— Quem estaria vagueando

pelos corredores a uma horadestas? — indagou Sylva.

— Acho que faço uma ideia— respondeu Fletcher, descendoas escadas à frente delanovamente, tomando cuidadopara não tropeçar no escuro.

— Como assim? — perguntouSylva.

— Na minha primeira noiteaqui, vi alguém saindo da nossasala comum e depois daCidadela. Parecia estar com

pressa, e não queria ser visto —explicou Fletcher, virando nocorredor da biblioteca.

— Isso é tão suspeito,Fletcher. Por que você nãocontou a ninguém? — inquiriuSylva, com desaprovação clara navoz.

— Porque não achei nada demais. Poderia ser só alguém atrásde um pouco de ar fresco. Foipor isso que eu saí naquela noite.Agora, aconteceu de novo,

porém... talvez eu devesse terdito alguma coisa.

Fletcher empurrou a porta dabiblioteca. Ela balançou nasdobradiças, mas permaneceufirmemente fechada.

— Bem, parece quedesperdiçamos uma viagem aosandares de baixo. A damaFairhaven deve ter trancado aporta depois que o últimoestudante foi embora dormir... Oque deveríamos fazer também —

concluiu o rapaz, chutando aporta de frustração. — Abiblioteca pode esperar atédepois da aula de Rook.

— Eu não vou dormir! Temalguém se esgueirando pelaescola à noite. Eu vou descobrirquem é. Se eu puder trazer umtraidor à justiça, então todomundo vai saber que os elfos sãoconfiáveis.

Com isso, ela saiu pelocorredor e desceu a escadaria aos

saltos.— Sylva, não é seguro para

você lá fora! Aqueles homensque lhe atacaram em Corcillumpodem estar vigiando o castelo!

Mas era tarde demais. A elfatinha partido.

Fletcher praguejou aotropeçar na escuridão.

— Sylva! — sibilou ele,tentando chamar atenção e sersilencioso ao mesmo tempo. Elejá seguia o rastro dela havia uma

hora, apesar da fina lasca de luano céu noturno mal lhe permitirque enxergasse a trilha da elfa.Havia um pouco de gramaamassada aqui, um gravetoquebrado ali. Num dado pontoele achou que a tinha perdido,mas o solo tinha sido amolecidopela chuva recente, permitindoque o rapaz detectasse as levesdepressões de pegadas, quelentamente se enchiam de água.Se não fosse um caçador

experiente, Fletcher a teriaperdido.

Ele poderia se arrepender denão tê-la seguido imediatamenteapós sua partida. Em vez disso,decidiu correr de volta escadaacima e buscar o khopesh, para ocaso de eles se meterem emencrencas. Quem poderia terimaginado que Sylva correria tãorápido?

Fletcher alcançou a beiradade um bosque, com árvores altas

se erguendo sobre colinasescarpadas a uns oitocentosmetros de Vocans.

— Sylva, eu vou matar você!— Pouco provável —

sussurrou uma voz de trás dele.Fletcher sentiu aço frio sendopressionado contra suas costas eficou paralisado. — Estouperfeitamente ciente dos perigosque corro por conta de quem eusou. Mas me recuso a viver commedo, ou mudar meu

comportamento em consideraçãoaos meus inimigos.

Sylva passou para diante deFletcher e exibiu um longo eestreito punhal, não muitodiferente daquele que ele tinhafeito na forja de Uhtred.

— Eu vim preparada, é claro— explicou ela, sorrindo. — MasSariel é equivalente a umaguarda pessoal de dez homens edois rastreadores de quebra.

Enquanto Fletcher sentia uma

pontada em seu orgulho própriopor ter sido pego de surpresa,Sariel saiu de detrás de umafloramento rochoso adiante,farejando o solo.

— Sylva, vamos embora. Istonão é problema nosso! Poderiaser Genevieve visitando a família,nós sabemos que ela vive aquiperto — argumentou Fletcher,ansioso para voltar à Cidadela.Estava congelando ali fora,mesmo com a jaqueta.

— Não quando estamos tãoperto — retrucou Sylva, teimosa.— Eles estão logo à frente,vamos!

Ela saiu correndo antes queFletcher pudesse detê-la.Resmungando de exasperação,ele a seguiu.

O fogo-fátuo surgiu à vistaquase imediatamente. A orbe deluz flutuava sobre um pequenopenhasco rochoso, que Sylvasubiu abaixada antes de espiar.

Seus olhos se arregalaram e elachamou Fletcher com um gesto.

O menino olhou para o chãolamacento. O que Sylvia poderiater visto lá embaixo para deixá-lanesse estado? A curiosidadeenfim falou mais alto e ele sedeitou na terra e se arrastou peloaclive até estar ao lado da elfa.As frentes do uniforme e dajaqueta logo ficaram ensopadascom lama fria, que não era nadacomparada ao arrepio que lhe

desceu pela espinha quandoFletcher viu quem estava láembaixo.

Otelo e Salomão estavamparados diante de uma caverna.Havia dois guardas vigiando aentrada sobre javalis, a montariatradicional do povo anão. Osanimais tinham pelos ásperos corde ferrugem, com presasenormes que se projetavamperigosamente dos focinhos. Nãoeram nada parecidos com os

porcos selvagens que Fletchertinha caçado em Pelego; aqueleseram atacantes musculosos, comolhos vermelhos e sinistros quepareciam cheios de raiva emalícia.

Os anões vestiam armadura,usavam elmos de chifres emachados de batalha de duasmãos nos punhos. Portavam umabandoleira de machados dearremesso pendurada na sela,projéteis mortais com uma

lâmina adicional no topo e umcabo afiado.

De repente ouviram uma vozclara e trovejante anunciar:

— Otelo Thorsager seapresentando para o conselho deguerra. Estou sendo esperado.

42

Os anões montados seguiramOtelo caverna adentro, o baquedos cascos dos javalis ecoandoaté desaparecer no subterrâneo.

— Eles estavam esperando porOtelo. Ainda acha que não éproblema nosso? — sussurrou

Sylva.— Bem, não exatamente. Esse

conselho de guerra poderia sersobre qualquer coisa. Afinal, elesacabaram de entrar para oexército. — A voz de Fletchersoava grave e aborrecida. Eleestava decepcionado com Otelo.O anão conhecia todos os seussegredos, até os mínimosdetalhes. Como pôde seu melhoramigo esconder isso dele?

— Os anões podem estar

tramando uma rebelião —retrucou Sylva. — Pense bem. Orei Alfric criou as leis maisseveras contra os anões em todaa história, mesmo que seu filho,Harold, tenha começado a aboli-las. Eles já se revoltaram contraHominum por muito menos nopassado, sem falar no fato de queagora têm o monopólio daprodução de mosquetes.

— Não posso acreditar nisso.Otelo está tão determinado a

promover a paz entre nossospovos, ele jamais arriscaria tudoisso! — sibilou Fletcher, furiosocom a insinuação da elfa.

— Você está disposto aarriscar uma guerra civil combase nisso? — perguntou Sylva.Fletcher fez uma pausa, emseguida socou a terra molhada.

— Tudo bem. Mas não temcomo segui-lo. Ele tem umaescolta armada. Avisar osPinkertons também não é uma

boa ideia; eles invadiriam acaverna e começariam a guerracivil esta noite — ponderouFletcher, explorando as opções.— O que você sugere?

— Nós somos conjuradores,Fletcher, vamos mandar Ignáciose esgueirar pelos guardas eespiar o que está acontecendo.Você terá que me contar o queestão dizendo. Eu não podereiescutar.

— Por que não enviar Sariel?

— discutiu Fletcher.— Porque ela mal cabe

naquela caverna e jamais passariadespercebida pelos guardas.Além disso, precisamos dealguém para nos proteger aqui.

— Sylva soava exasperada.— Você só está fazendo isto

para descobrir se há algumatramoia e usar essa informaçãopara conquistar a boa vontade dorei — acusou Fletcher.

— Não é a única razão,

Fletcher. Se uma guerra civilirromper no meio da guerra atualcontra os orcs, quem sabe o quepode acontecer? Nós doissabemos que precisamos ver oque está acontecendo nesseconselho de guerra. Agora parede perder tempo e use minhapedra de visão com Ignácio. Seusarmos sua lasca, não vamos vernada que preste.

Sylva removeu um fragmentode cristal do bolso do uniforme.

Era oval e cerca de quatro vezesmaior que a pedrinha dotamanho de uma moeda queFletcher recebera.

— Rápido, provavelmente jáperdemos o começo da reunião— urgiu ela.

Fletcher tocou a pedra devisão na cabeça de Ignácio,acordando o diabrete de seusono profundo.

— Vamos lá, parceiro. Horade colocar todo aquele treino em

prática. Pelo menos alguma coisaboa vai sair do fato de Rook nãodeixar que fizéssemos nada alémde treinar visualização.

Ignácio bocejou em protesto,mas acordou imediatamente aosentir o humor de Fletcher. Odemônio saltou-lhe do ombro ecorreu até a beirada dopenhasco. Cravando as garras narocha, Ignácio se arrastouverticalmente até a boca dacaverna. Então, como se fosse a

coisa mais fácil do mundo, odiabrete continuou correndo decabeça para baixo no teto dacaverna, aventurando-se nasprofundezas da terra.

— Uau, não sabia que elepodia fazer isso — sussurrouSylva, virando a pedra de visãode cabeça para baixo nas mãos deFletcher a fim de que a imageminvertida fizesse mais sentido.

— Nem eu. Ignácio aindaconsegue me surpreender —

respondeuFletcher, cheio de orgulho.Controlar Ignácio era fácil. A

conexão mental deles tinha sidoafiada pelas muitas horas detreino nas aulas de Rook, eprecisava pouco mais do queuma sugestão de pensamentopara ajustar a trajetória dodemônio explorador para umlado ou outro. A caverna eraescura, mas a visão noturna dodiabrete era muito melhor que a

de um humano. Dava paradiscernir a longa e sinuosapassagem com facilidade.

Passados apenas algunsminutos, o túnel se alargou e obrilho tremeluzente de tochassurgiu adiante. Fletcher incitouIgnácio a reduzir a velocidade,pois conseguia ouvir o clique dasgarras do demônio através daconexão. Seria melhor não daraos guardas um motivo paraolhar para cima.

Os dois anões montados queescoltaram Otelo esperavam naboca do túnel acompanhados demais de duas dúzias deles.Estavam enfileirados, vigiando otúnel adiante como falcões.Felizmente para Ignácio, a luzdas tochas não alcançava o tetoda caverna. Ele seguiu rastejandona penumbra, passandodespercebido pelos guardasatentos.

O teto do túnel subia cada vez

mais. Agora Ignácio estava aquase 25 metros de altura.Qualquer passo em falso poderialançá-lo à morte, mas o demôniocontinuou escalando, escolhendouma trilha por entre asestalactites de gelo. Finalmente,o túnel se abriu numa cavernacom forma de domo, iluminadapor centenas de tochas.

A caverna era o nexo centralde uma rede de túneis similares,como o eixo e os raios de uma

roda. O luzir de tochas no fim decada túnel indicava que elestambém estavam guardados poranões montados.

— Qualquer que seja oassunto desta reunião, eles nãoestão dando a menor chance aoazar, né? — sussurrou Sylva.

Fletcher indicou que a elfa secalasse, pois Ignácio estavaolhando para baixo. Dezenas deanões estavam reunidos ali,sentados em bancos feitos de

pedra lavrada grosseiramente.No meio, havia uma plataformarochosa elevada, ocupada por umanão. Fletcher mal podia ouvirsua voz trovejante.

— Precisamos chegar maisperto. Não consigo ouvir o queele está dizendo — murmurouFletcher, orientando Ignácio aolhar em volta pela caverna. Asparedes eram iluminadas pela luzirregular das tochas, e não haviacomo o demônio descer por elas

sem ser visto.— Mande Ignácio descer por

aquilo ali — sugeriu Sylva,apontando para a grandeestalactite que descia um terço dadistância até o piso da caverna.

Fletcher ordenou que odemônio usasse a rocha pontudapara descer, urgindo-o a sercauteloso. Em seguida, fechou osolhos e começou a sussurrar aspalavras que estava ouvindo.

— …Eu lhes digo novamente,

este é o momento perfeito pararebelião! Não houve umasituação melhor em dois milanos. O exército de Hominumestá atolado entre duas guerras,os elfos ao norte e os orcs ao sul.Eles não podem enfrentar umaterceira. De um ponto de vistatático, estamos bem posicionadospara invadir o palácio e manter orei e seu pai como reféns.

O orador era um anão grandee corpulento com uma atitude

autoritária. Ele encarou, porsobre o nariz, os ouvintessentados, e enfim desceu osdegraus da plataforma. Outroanão esperava abaixo, este maisvelho, com mechas grisalhas nabarba. Ele apertou a mão do maisjovem e assumiu seu lugar nopúlpito.

— Obrigado, Ulfr, pelaspalavras instigantes. Você fala averdade, mas temos ainda maisuma carta em nossas mangas.

Como todos vocês sabem, somosos únicos fabricantes de armas defogo. Neste momento, nove emcada dez soldados no exército deHominum foram treinadosapenas na arte de carregar edisparar um mosquete, semarmadura alguma, e nada alémde uma baioneta para combatecorpo a corpo. Se cortássemos ofornecimento de armas, eles setornariam nada além de umamilícia mal equipada e sem

treinamento. Outra vantagemque não pode ser ignorada…

As palavras dele provocarambrados de vivas dos anões, e logoeles começaram a entoar seunome.

— Hakon! Hakon!Porém, muitos permaneceram

calados, encarando-o com braçoscruzados. Claramente, amultidão estava dividida.

— Uma vantagem adicional,talvez a maior de todas, é a

munição. As minas de Pasha sãocontroladas pelos nossos aliadose empregam mineiros anões. Énosso povo que produz a pólvorae as balas de chumbo. Sem essesdois recursos, os mosquetes queHominum já tem se tornarãoinúteis. Uma vez que elesesgotarem seus estoques demunição… nós venceremos estaguerra!

Mais vivas se seguiram, masdesta vez houve vaias também.

Um anão saltou de seu assento ecorreu até o palco. Ele apertou amão de Hakon e sussurrou emseu ouvido.

— É Otelo! — exclamouSylva.

Fletcher balançou a cabeça.— Não é, não. Eu sei por

causa da forma como o cabelo foitrançado. Otelo tem um gêmeo.Seu nome é Átila e ele odeia ahumanidade com fervor.

— Traidores e covardes! —

urrou Átila quando Fletchersintonizou de novo. — Vocês sãoanões de verdade… ou meio-homens?

Vários deles, furiosos,levantaram-se num salto,gritando tão alto que Fletcherquase podia ouvir os ecos dacaverna abaixo de onde ele eSylva estavam sentados.

— Nenhum de vocês sentiu opeso dos cassetetes dosPinkertons? Quantos aqui não

tiveram seu dinheiro,conquistado com trabalho e suor,extorquido de suas mãos? Quemaqui não teve um filho ou irmãojogado na cadeia por um juizcom ódio dos anões? Vocêsgostam de terem de rastejardiante do rei para conseguir apermissão de ter mais de umfilho?

Os berros quase dobraram emvolume conforme os anões selevantavam e gritavam de raiva.

Subitamente, um rugidogutural trovejou pela caverna,silenciando o alvoroço.

— Basta! — gritou uma vozfamiliar. Otelo abriu caminho emmeio à multidão e subiu asescadas dois degraus de cada vez.Salomão, a origem do rugido, oseguiu.

— Sou Otelo Thorsager,primeiro oficial anão emHominum, e o primeiroconjurador do nosso povo.

Reivindico o direito de falar.— Vamos logo com isso,

então, adorador de humanos —bradou Átila.

— Não podemos guerrearcontra Hominum — afirmouOtelo numa voz alta e clara. —Rei Harold está nos oferecendouma chance de igualdade, vocêsnão percebem? Se iniciarmosuma guerra, perderemos, semsombra de dúvida. O exército deHominum sozinho já supera a

população enânica em dez paraum. A maioria dos anões emidade de lutar está a caminho dotreinamento na frente élfica,cercados por soldados veteranose tão longe de Corcillum quantoé possível. Vocês acham quepodem invadir o palácio com acentena de anões que sobrou?

— Se for necessário! — gritouHakon, gerando gritos deconcordância dos seuspartidários.

— E o que vai acontecer emseguida? As notícias do nossoataque chegarão aos generais nonorte em questão de dias,transportadas por demôniosvoadores. Esses generais vãomassacrar nossos jovensguerreiros sem hesitação. Mesmose planejássemos com eles, e daí?Como mil anões inexperientespoderiam tomar toda a frenteélfica? Mesmo sem mosquetes, osmagos de batalha poderão

despedaçar nossos guerreiros emminutos. O próprio rei é um dosevocadores mais poderosos apisar nesta terra, e vocês supõemque poderíamos fazer dele umrefém? Não teríamos a menorchance!

— E daí? Prefiro morrerlutando contra eles a fazê-lo aolado deles. Aposto que pensamque você é uma piada, passeandopor aí com esse seudemoniozinho — acusou Átila.

— Era isso que eu tambémpensava, quando cheguei aVocans. Mas estava enganado.Há boas pessoas por lá. Diabos,no primeiro dia em que pisei naacademia, um deles me mostrouum cartão dos Bigornas!

— Os Bigornas? Eles nãopassam de humanos que sentempena de nós, nada mais. Não énada além de um hobby paraeles. Os anciãos nem confiamnesse grupo o suficiente para

chamá-los para esta reunião —retrucou Átila.

— E eu também nãochamaria, já que o assuntodiscutido aqui é guerra francacontra o povo deles. Estamosconquistando aliadoslentamente; primeiro os Pashas, eagora os Bigornas, que estãoiniciando um movimento paranos apoiar. Até mesmo o reiafirmou que está disposto a reveras leis e refrear os Pinkertons,

uma vez que provarmos quesomos de confiança. Mas o quefazemos? Exatamente ocontrário; discutimos umarebelião. — Otelo, furioso, cuspiunas botas do gêmeo.

— Você não é um anão deverdade! Não merece o signoenânico estampado nas suascostas. Tenho vergonha dechamar você de irmão! — gritouÁtila.

Ele arrancou a camisa de

Otelo para revelar a tatuagemnas suas costas. Com um rugido,o irmão agarrou Átila pelopescoço e os dois giraram pelopalco, um tentando estrangular ooutro. Salomão avançou paraajudar, mas logo parou, como seo evocador tivesse mandado odemônio se deter.

Uhtred irrompeu naplataforma, separando os doisgêmeos à força. Atrás dele, umaprocissão de anões de cabelos

brancos subiu no palco. Eramidosos e veneráveis, com longasbarbas prateadas enfiadas noscintos.

— Eles devem ser o ConselhoEnânico — sussurrou Sylva paraFletcher. O menino concordoucom a cabeça e urgiu Ignáciopara escutar mais atentamente,pois aqueles anões não pareciamser do tipo que gritava e berrava.

O salão caiu num silêncioprofundo e respeitoso. Até Átila

se acalmou, baixando a cabeçaem reverência. O mais velho dosanciãos deu um passo à frente eabriu bem os braços.

— Todos aqui desejamliberdade para nossos filhos, nãoé? Se não formos capazes deenfrentar as adversidades unidos,então já estamos derrotados.

Os anões começaram a sesentar, muitos olhando para ospés, envergonhados.

— Já ouvimos tudo que

precisávamos ouvir. Há muitascabeças quentes aqui esta noite,mas a decisão que estamosprestes a tomar será levada muitoa sério. Eu lhes pergunto oseguinte: que bem nos farámorrer corajosamente na buscapela liberdade? Quatorze vezesos anões se rebelaram, e quatorzevezes fomos levados à beira daextinção. Vocês, jovens anões,não se lembram do massacre quesofremos na última revolta.

Todas as vezes em queperdemos, mais liberdades nossão tomadas, mais sangueenânico é derramado.

Vários anões acenaram com acabeça, indicando concordância.

— Vejo dois caminhos à nossafrente. Um já foi bem trilhado,porém, toda vez que o seguimos,acabamos de volta ondecomeçamos, derrotados eensanguentados. Só que há umsegundo caminho. Não sei aonde

leva, ou quais são os perigos quenos aguardam nessa trilha, massei no fundo do meu coração queé melhor seguir o destino incertodo que aquele da gloriosa porémgarantida derrota. Não haveráguerra, meus amigos. Vamoshonrar nosso acordo com o rei.

Fletcher foi tomado peloalívio. Otelo tinha se esgueiradopara argumentar contra arebelião, não para apoiá-la. Alémdisso, ele tinha conseguido

conquistar a opinião dos anciãos.Não queria pensar no que seuamigo teria feito se a decisãotivesse seguido na outra direção,mas não valia a pena pensarnisso. Tudo ia ficar bem.

— Fletcher, o que foi aquilo?— indagou Sylva, puxando obraço do rapaz.

Havia tochas adiante,movendo-se velozmente porentre as árvores. Os dois seabaixaram atrás do penhasco e

observaram, com o coração naboca.

Viram dez homens, cada umarmado com um mosquete euma espada. O líder resfolegavacom o esforço; mesmo nas trevas,Fletcher percebeu que se tratavade um homemextraordinariamente gordo.

— Você tem certeza de que éesta caverna? — indagou umdeles, erguendo uma tocha parailuminar a área. Fletcher gelou

quando a luz revelou os rostosdos recém-chegados.

— Certeza absoluta —afirmou Grindle.

43

— Aqueles são os homens queme sequestraram — sibilou Sylva,apontando para os soldados dearmadura.

— Eu sei; reconheceria ogordo careca em qualquer lugar— respondeu Fletcher,

agarrando o cabo do khopesh. —Ele se chama Grindle, e era elequem iria te executar. Achei quevocê o tivesse matado. Ele deveter um crânio bem duro.

— Há muitos deles —murmurou Sylva, mas Fletcherpercebeu que ela se enrijecia,como se estivesse se preparandopara saltar à batalha. Atrás deles,o rapaz ouviu um rosnado grave;Sariel tinha sentido a agitação daelfa.

— Tente ficar calma.Precisamos descobrir por que elesestão aqui. — Fletcher sufocou araiva e se inclinou sobre oparapeito sombreado para ouvir.

— Não entendo por que agente simplesmente não esperaaqui para emboscar os anõesquando eles saírem — reclamavaum dos homens.

— Porque esta é só uma decinco saídas — respondeuGrindle, sentando-se numa

rocha. — Sem falar que três delaslevam de volta aos túneis sob oBairro Anão.

Quando os outros homens sereuniram em volta do líder, a luzde suas tochas iluminou o ombroenfaixado de Grindle, aindaferido pela bola de fogo deIgnácio.

— Eu deveria ter garantidoque ele estava morto —sussurrou Sylva por entre dentescerrados. Fletcher pousou a mão

no ombro dela para tranquilizá-la. Se aquilo acabasse em luta, elenão se sentia confiante quanto àschances de ambos.

Havia dez homens, cada umtrajando armadura de courorígido. As vestes lhes permitiriammovimentos rápidos sem deixarde oferecer proteção contragolpes leves de espada.

Fletcher espiou seusmosquetes. Seu frágil feitiço deescudo não o ajudaria naquela

noite.— O que a gente tá

esperando, então? — inquiriuoutro homem, fitando asprofundezas sombrias dacaverna.

— Vocês não prestaramatenção nenhuma nasinstruções? — resmungouGrindle, erguendo a mão eagarrando a couraça do sujeitoque perguntou. Ele puxou o caraaté o próprio nível. — Há

centenas de soldados do lordeForsyth se reunindo nas outrassaídas acessíveis — disse numcuspe, cobrindo o outro sujeitocom saliva. — Nós entramosquando eles entrarem, quando atrombeta soar, mais ou menosdaqui uns cinco minutos. Ouvocê achou que dez homenscontra cem anões era o planodesde o começo?

O coração de Fletcher gelou.Era disso que ele tinha ouvido

Tarquin e Isadora falar. Não eraa família de Serafim que corriaperigo; eram os anões!

— Cinco minutos —sussurrou Sylva. — Temos quefazer alguma coisa.

Fletcher avaliou as opções,seus olhos dardejando doshomens à entrada da caverna.Não havia tempo suficiente.Lutar contra Grindle e seushomens levaria tempo demais. Seeles tentassem passar por eles,

mal pisariam na caverna antes delevar uma bala de mosquete nascostas. Mesmo que, por algummilagre, eles conseguissemescapar, ainda teriam queconvencer os guardas anões doque estava acontecendo.

— Se ao menos Ignáciosoubesse falar — murmurouSylva, observando os anões nocristal de visão. Eles aindaestavam lá, andando de um ladoao outro e conversando sobre a

decisão.— Ele não precisa falar —

afirmou Fletcher, numa súbitaepifania. Eles precisavam avisaraos anões que estavam sendoatacados. Então, por que nãoatacá-los?

Ele enviou as ordens paraIgnácio e sentiu um clarão deconfusão e medo vindos dodemônio. Quando suas intençõesficaram claras para o diabrete, omedo foi substituído por

determinação férrea.— Observe — sussurrou ele a

Sylva.Ignácio desceu pela

estalactite, enrolando a cauda aoredor da ponta e cravando osespinhos na pedra macia. Eleficou ali pendurado como ummorcego, esticando o pescoçopara chegar tão perto quantopossível dos anões.

— Agora, Ignácio —murmurou Fletcher, sentindo

sua visão se intensificar conformeo mana se incendiava dentrodele.

Ignácio lançou uma labaredaespessa, uma onda turbulenta dechamas que se deteve logo acimados anciãos abaixo. O fogochamuscou suas cabeças,preenchendo o salão com o odoracre de cabelos queimados.Então, com um estrídulo deempolgação, Ignácio estava devolta ao teto, rastejando de volta

a Fletcher.— Estamos sendo atacados! —

rugiu Hakon, enquanto o pânicodominava o aposento. — Recuempara as cavernas! Protejam osanciãos!

Os cavaleiros de javalisvoltaram de seus postos nassaídas, guiando a multidãoerrática de anões a um túnel quelevava para mais fundo na terra.

— Funcionou — sussurrouSylva. — Fletcher, você é um

gênio!Subitamente, um machado de

arremesso veio voando damultidão, cravando-se acentímetros de Ignácio.

— Um demônio de Vocans!Traição! — Era Átila, ainda nopódio com Otelo. — A quemvocê contou sobre esta reunião?

— A ninguém, eu juro —gritou de volta o irmão, com aexpressão tomada pela confusãoao reconhecer Ignácio. —

Conheço esse demônio.Seu dono é amigo dos anões!— Então ele não vai se

importar se eu lhe fizer o favorde matar esse bicho! — uivouÁtila, pegando outro machadode arremesso do cinto.

Ele saltou do pódio ecomeçou a correr na direção daSalamandra, que ficou paralisadade medo.

— Não, Átila, fique com osoutros! — gritou Otelo, indo

atrás do gêmeo.Ignácio guinchou e saiu em

disparada túnel acima,escapando por pouco dolançamento seguinte de Átila.

— Detenha-o Fletcher! Vocêvai levar os dois até Grindle —sussurrou Sylva, puxando omenino pela veste.

Mas era tarde demais. Os doisanões corriam diretamenteabaixo de Ignácio agora.

— Prepare-se — respondeu

Fletcher. — Vamos ter que lutar.Sylva assentiu, sacando o

punhal de uma bainha na coxa.Sariel sentiu seu humor e seagachou, pronta para saltarcontra os homens abaixo. Elesesperaram, prendendo arespiração, enquanto os segundosse passavam.

— Passos! — exclamouGrindle roucamente, apontandopara a entrada do túnel. Fletcherouviu também, ecoando pela

caverna conforme Átila e Otelocorriam. — Duas fileiras; aprimeira de joelhos, a segundade pé. Disparar ao meucomando! — ordenou o homem,sacando a espada e erguendo-asobre a cabeça.

Os passos estavam cada vezmais próximos. Fletcher ouviu abarulheira de outro machado,batendo na rocha ao errar o alvomais uma vez.

— Eu vou criar um escudo na

entrada. Você lança um fogo-fátuo para atrapalhar a miradeles; não sei se o meu escudovai ser forte o bastante — disseSylva. Ela já estava desenhando osímbolo do escudo no ar.Momentos depois, ela estavafluindo luz opaca para o chãodiante de si, empoçando-a nochão como âmbar líquido.

— Preparar — grunhiuGrindle.

Os homens ergueram os

mosquetes, apontando-os paradentro da caverna. Fletcherpuxou mana de Ignácio. Era maisdifícil com a distância entre eles,mas logo seu corpo vibrava comenergia. Em sua visão carregadade mana, a luz das tochas reluzianum alaranjado profundo.

— Apontar — comandouGrindle, baixando a espada 30centímetros.

Os passos não ecoavam mais,de tão perto que já estavam. A

qualquer segundo, os anõesapareceriam. Grindle baixou aespada totalmente.

— Fo...— Agora! — gritou Sylva,

lançando abaixo um reluzenteescudo, branco e quadrado.

Fletcher disparou um clarãode luz azul nos olhos dosatiradores, cegando-os bemquando os mosquetes estalaram,arrotando fumaça negra que lhesencobriu a visão.

Então Sariel irrompeu porentre as fileiras, espalhando-oscomo pinos de boliche. Ela saltouno peito do homem maispróximo e começou a destroçarsua garganta.

Fletcher saltou do barrancocom um grito, golpeando parabaixo com o khopesh. A arma secravou no estômago de umhomem caído, e logo o garotoestava a caminho do próximooponente atordoado, cortando-

lhe o pescoço. Ele ouviu Sylvaatrás de si, em seguida ogorgolejar de um homem com agarganta cortada.

Ignácio se deixou cair noombro de Fletcher e soprouchamas num homem queinvestia de espada erguida contraseu dono.

— Meus olhos! — berrou ooponente, caindo de joelhos.Sylva passou correndo por ele ecravou o punhal no seu crânio.

Sariel veio correndo de volta,com o pelo do focinho imundode sangue e pedaços de carne.Sylva a agarrou pelo cangote e aarrastou de volta à entrada dacaverna, posicionando-a ao ladode Fletcher. Ainda havia cincohomens, incluindo Grindle. Elestinham se reagrupado,espalhando-se num leque paramanter os inimigos presos nacaverna.

Otelo e Átila chegaram,

ofegando enquanto tentavam serecuperar. O escudo devia terfuncionado.

— É uma emboscada, Átila;Fletcher e Sylva estão do nossolado — murmurou Otelo.Salomão trovejou emconcordância.

— Prefiro matar cincohomens a um garoto. — Átilapegou a espada de um doscombatentes mortos. — Voulutar ao seu lado... por enquanto.

Ele entregou a Otelo umamachadinha que trazia no cinto.

— Você sempre foi melhorcom isso do que eu. Mostre aesses humanos do que um anãode verdade é capaz.

Então Grindle jogou umatocha na caverna, iluminando-lhes os rostos.

Depois cuspiu de nojo.— Lixo élfico. Eu deveria ter

matado você quando tive achance. Se lorde Forsyth não

tivesse nos obrigado a fazer tudopublicamente, você estariaapodrecendo debaixo da terraagora.

Fletcher congelou à mençãodo nome Forsyth, percebendoquem tinha estado por trás dorapto de Sylva. Não foracoincidência alguma o fato deque os gêmeos Forsyth aacompanhavam quando ela foraraptada. O menino balançou acabeça para afastar tais

pensamentos, concentrando-sena tarefa imediata.

— Vou estripar você —rosnou Grindle, estocando com aespada na direção da barrigadela. — Sempre me perguntei seos elfos têm as mesmas entranhasque a gente.

— Esse ombro parecedolorido — zombou Fletcher. —Como vai ser hoje? Ao ponto oubem-passado?

Grindle ignorou o comentário

e sorriu.— Recarreguem seus

mosquetes, rapazes. Vai ser comomassacrar ratos num barril.

— Alto lá! — exclamou Átila.— O primeiro que estender amão para pegar o mosquete levaum machado na cara.

O anão pegou o últimomachado de arremesso no cinto eo girou entre os dedos. Oshomens restantes olharam deGrindle para seus mosquetes no

chão. Não se moveram.— Somos sete de nós contra

cinco de vocês; e três dos nossossão demônios. Façam um favor asi mesmos e voltem para oburaco de onde vocês searrastaram.

Grindle deu um sorrisinhozombeteiro e apontou a espadapara a caverna atrás deles. Aolonge, Fletcher escutou o soar deum chifre, o sinal para o ataquedos homens de Forsyth.

— Se eu mantiver vocês aquipor tempo suficiente, os reforçosvão chegar. Eles vão destroçá-loscomo cães.

— Isso se... — comentouFletcher, dando um passo àfrente. Mas ele percebeu que ogordo tinha razão. Os gritosdistantes dos soldados de Forsythecoavam no túnel atrás dele.Quando notarem que Grindlenão atacou junto com eles, virãoinvestigar. Fletcher precisava dar

o fora dali imediatamente. Umaluta poderia demorar demais.

Fletcher fez surgir uma bolade fogo-fátuo, alimentando-acom mana até ficar do tamanhoda cabeça de um homem. Elavibrava com um pulsarmonótono, reluzindo napenumbra da boca da caverna. Orapaz a propeliu na direção deGrindle, que saiu da frente.

— Você já viu como fica umaqueimadura de mana, Grindle?

Se você achou que o fogo real eraruim... Espere só até sentir suacarne ser arrancada dos ossosquando o mana puro tocar suapele. Ouvi dizer que a dor éinimaginável — blefou Fletcher.Ele sabia muito bem que fogo-fátuo se dissiparia assim quetocasse qualquer coisa sólida,sem efeito algum. Só que Grindlenão sabia disso.

Sylva e Otelo seguiram oexemplo, lançando bolas

menores de fogo-fátuo paracircundar a cabeça de Grindle.Ele se abaixou, batendo nelascom a espada.

— Corra para casa, Grindle —falou Fletcher, com escárnio. —Você não é capaz de enfrentar agente. Considere-se sortudo pordeixarmos você viver.

Grindle uivou de frustração,gritando para o céu. Finalmente,afastou-se para o lado, indicandopara seus homens que imitassem

o gesto.Fletcher fez uma mesura

teatral e exagerada, e passou comos outros pelos homens. Elemanteve o fogo-fátuo flutuandosobre a cabeça de Grindle. Eraimportante manter a aparênciade que estava no controle econfiante.

— Muito bem, Fletcher —sussurrou Otelo. — Foi umaótima atuação.

— Aprendi com o melhor —

murmurou de volta o rapaz,lembrando-se do encontro comos Pinkertons.

Eles caminharam o maisrápido possível, cientes do olharmalévolo de Grindle perfurandosuas costas.

— O que foi esse estardalhaçotodo, Grindle? Os homensdisseram que ouviram tiros! —gritou uma voz retumbante dacaverna. A entrada luminava-secom tochas conforme incontáveis

vultos de armadura saíam de lá.— Corram! — gritou Fletcher.Uma bala de mosquete lhe

rasgou a manga e se estilhaçounum rochedo adiante. Mais tirosse seguiram, zumbindo acimacomo vespas furiosas.

Era impossível ver mais doque poucos metros à frente.Tudo que Fletcher ouvia era arespiração ofegante do grupoenquanto eles cambaleavam nastrevas. Fogos-fátuos estavam fora

de questão. A escuridão da noiteera a única coisa que os protegiadas salvas de tiros queestrondavam na distância atrásdeles.

Uma bala zuniu perto e entãohouve um baque quando umcorpo caiu diante deles. Fletchertropeçou num amontoado debraços e pernas, esparramando-se na lama com mais alguém.

— Foi a minha perna —grunhiu Átila. — Fui atingido!

Eles estavam sozinhos. Sylva eOtelo deviam ter se separado nacorreria louca da fuga.

— Deixe-me aqui. Vou cobrirsua retirada — afirmou Átila,engasgando, empurrandoFletcher para longe.

— Sem chance. Vou tirar vocêdaqui, mesmo que precisecarregá-lo — retrucou Fletchercom teimosia, tentando puxarÁtila para que se levantasse.

— Eu falei para me deixar

aqui! Vou morrer lutando, comoum anão de verdade — rosnouÁtila, afastando o rapaz.

— É assim que um anão deverdade morre? Alvejado nalama como um vira-lata? Acheique vocês, anões, fossem maisdurões que isso — respondeuFletcher, carregando a voz comdesprezo. Este anão parecia sermovido a raiva, e ele iria seaproveitar do fato.

— Seu almofadinha, me deixe

morrer em paz! — rugiu Átila,empurrando-o de volta à lama.

— Se você quer morrer,ótimo! Mas não esta noite. Seeles te capturarem, poderão usá-lo como prova de uma reuniãosecreta aqui. Não faça isso ao seupovo. Não dê essa satisfação aosForsyth.

Átila rosnou de frustração,mas depois respirou fundo.

— Vamos fazer do seu jeito.Porém, se eles nos alcançarem,

não vai haver rendição.Lutaremos até morrer.

— Não aceitaria nadadiferente — concordou Fletcher,erguendo o anão.

Era uma caminhada difícil,pois a diferença de altura dosdois não permitia que Fletcherpassasse o braço do anão pelosseus ombros. Para piorar asituação, os gritos dosperseguidores estavam ficandocada vez mais altos. Ao contrário

de Fletcher e Átila, eles tinhamtochas para iluminar o caminho.

Os dois continuaramcaminhando pelo que pareceuhoras, até Átila finalmentetropeçar e cair.

— Olha, você vai ter que mecarregar. Vai ser mais rápidoassim — ofegou Átila. Oferimento estava cobrando seupreço, e Fletcher notou que ascalças do anão estavamensopadas de sangue. O menino

sabia que o outro tivera deengolir muito orgulho para fazerum pedido desses.

— Vamos lá, pule nas minhascostas — murmurou Fletcher. Orapaz grunhiu enquanto Átila seajeitava, então seguiu em frente,respirando por entre dentescerrados. Ignácio chilreouencorajamento para o novocompanheiro de carona,lambendo o rosto do anão.

Sem aviso, a área foi

iluminada pelo brilho de uma luzazul fraca. Um globo de fogo-fátuo surgiu no céu, dezenas demetros acima. Ele se mantinhano ar como uma segunda lua,girando acima das nuvens.

— Isso é coisa sua? —indagou Átila.

— Não. E não deve ser deOtelo, nem de Sylva. Os soldadosde Forsyth devem ter um magode batalha consigo. Eu não mesurpreenderia se fosse o próprio

Zacarias; aquele fogo-fátuo éenorme! — respondeu Fletcher.

Ele olhou ao redor e sedesesperou. O terreno em voltaparecia idêntico, e o meninopercebeu que estavacompletamente perdido. Mas, seele não chegasse logo a um lugarseguro, Átila não sobreviveriaàquela noite.

Os gritos estavam distantesagora, mas os dois não estavamseguros de forma alguma. Se o

mago de batalha inimigo tivesseum demônio voador, elespoderiam ser encontrados.

— Parem aí mesmo! — gritouuma voz. Um homem saiu dassombras, apontando ummosquete contra eles. Mais umavez, Fletcher amaldiçoou suainabilidade de executar umfeitiço de escudo.

— Sem rendição… —murmurou Átila em seu ouvido.Mas sua voz soava pastosa e

fraca. Fletcher duvidava que oanão pudesse dar mais quealguns passos antes de desabar.

Ignácio saltou do pescoço deFletcher e sibilou. O homemsimplesmente o ignorou econtinuou apontando omosquete direto para a cara dorapaz. — Mantenha esse bicholonge de mim ou eu atiro —afirmou ele, movendo o cano deforma ameaçadora.

Fletcher ergueu a mão e

acendeu uma bola de fogo-fátuo.— Posso meter isso no seu

crânio mais rápido que qualquerbala. Solte a arma, e não teremosproblemas.

— Eu sou um soldado, seuidiota. Sei o que é fogo-fátuo.Largue o anão no chão e... argh!— O homem gritou e bateu nopescoço com a mão livre.

Um Caruncho castanho foscozumbiu acima do soldado edepois voou num círculo ao

redor da cabeça de Fletcher.— Valens — suspirou

Fletcher. De alguma forma, odemônio os tinha encontrado. Ohomem caiu de lado, com omosquete ainda erguido. Eracomo se tivesse sido congelado.— O major Goodwin não estavabrincando quanto ao ferrão deum Escaravelho! — exclamou orapaz, espantado.

Valens soltou um zumbidoforte e então esvoaçou para a

frente e para trás.Fletcher o observou por um

momento, e por fim percebeuque o Caruncho queria que eleso seguissem.

— Só mais um pouco, Átila —murmurou Fletcher. — Vamosconseguir.

44

Átila estava inconsciente quandoeles finalmente chegaram àCidadela, mas ainda respirava. Aperna do anão estava enrijecidacom sangue coagulado, mas, naescuridão, Fletcher nãoconseguia ver o tamanho do

estrago. Ele enfaixou o ferimentoo mais apertado possível comuma tira de pano da camisa deÁtila, então seguiu Valens pelaponte levadiça.

— Aonde vamos agora? —perguntou Fletcher num sussurropara o demônio que pairavaacima dele.

O Caruncho zumbiu de formaencorajadora e parou na metadeda subida da escadaria leste.Fletcher encarou os degraus

íngremes com apreensão.— Eu não sei se consigo! —

resmungou ele, erguendo ocorpo de Átila.

Sentindo o humor deFletcher, Ignácio saltou para ochão.

— Obrigado, amigo, agoraestá muito mais leve —murmurou Fletcher sem muitaempolgação, afagando o queixodo diabrete.

Valens o guiou escada acima,

o vibrar de suas asas orientandoFletcher nas trevas. Ele nãoarriscou acender um fogo-fátuo.Se Rook o pegasse com Átila,relataria tudo ao rei.

Eles chegaram ao últimoandar, depois continuaram asubida pela torre nordeste. Aessa altura, os joelhos de Fletcherestavam quase desabando, masele continuou teimosamente. Dealguma forma, Valens tinha umplano.

Finalmente, eles alcançaramum par de pesadas portas demadeira no ponto mais alto datorre, e Fletcher percebeu quetinham chegado à enfermaria.Antes que tivesse uma chance debater, as portas se abriram e eletopou com uma Sylva frenética.

— Vocês estão bem!Achávamos que tinham morrido!— soluçou Sylva, enterrando orosto no peito de Fletcher. Oteloo encarava, com o rosto pálido e

marcado por lágrimas. O anãocorreu até o rapaz e tomou Átilanos braços.

Fletcher deu tapinhasamistosos e desajeitados nacabeça de Sylva e olhou em volta.Havia várias fileiras de camas,com armações enferrujadas ecobertas de poeira. Três camasmais novas ficavam perto daporta, e Sariel descansavaembaixo delas. Quando Otelodeitou Átila numa delas, Fletcher

percebeu que não estavam todasvazias.

Lovett jazia na cama maispróxima. Ela estava tão imóvelque poderia ser um cadáver, nãofosse pelo subir e descer quaseimperceptível do tórax. Ela vestiauma camisola, com os longoscabelos negros espalhados à suavolta como um halo. Os outrostinham acendido as tochas evelas dos dois lados da cama, oque lançava o salão numa luz

tênue, alaranjada.— Valens trouxe vocês até

aqui também? — indagouFletcher, enquanto o Carunchopousava no peito da mestra.

— Ele nos encontrou há maisou menos uma hora, e saiuvoando pela janela assim quechegamos aqui — contou Sylva,enxugando uma lágrima do olho.— Ele deve ter sentido que vocêestava com problemas.

— Não acho que seja apenas a

Valens que devemos agradecer— comentou Fletcher,acariciando a carapaça dobesouro demônio.

— O que você quer dizer? —indagou Sylva.

— Arcturo me contou quealguns conjuradores conseguemaprender como ver e ouvir pelodemônio, efetivamente usandosua própria mente como umapedra de visão. Duvido que umCaruncho pudesse ter feito tudo

que Valens fez esta noite semalguém o guiando. Você estava lácom ele, capitã Lovett? —Fletcher fitou o rosto imóvel daprofessora.

O demônio zumbiu e girou.— Não é possível! —

exclamou Sylva.— Como ela sabia? —

indagou Fletcher, arregalando osolhos de espanto.

— Ela deve ter ficado de olhona gente. Provavelmente desde

que Rook apareceu — disseSylva, ajeitando o cabelo deLovett no travesseiro. — Tivemossorte. Estaríamos mortos se nãofosse por ela.

— Se vocês já terminaram dese maravilhar, eu preciso deajuda aqui — resmungou Otelocom a voz entrecortada. Os olhosde Fletcher se arregalaram ao vera perna de Átila.

Otelo tinha cortado o panoem volta e revelado um buraco

irregular que ainda derramavasangue. Fletcher nunca tinhavisto um ferimento de bala antes,e o estrago parecia muito piorque o furinho que ele imaginara.

— Tivemos sorte; a bala nãoacertou nenhuma artériaprincipal. O osso certamente estáquebrado, porém, então nãopodemos tentar um feitiço decura. Na última vez em que vium ferimento assim foi quandoum Pinkerton atirou num jovem

anão que não tinha pago porproteção — contou Otelo,cortando uma longa tira dolençol com a machadinha. — Omelhor que podemos fazer é umaatadura para estancar osangramento. Levantem a pernadele para mim.

Eles ajudaram Otelo aenfaixar o ferimento, até que aperna de Átila estavaembrulhada numa faixa grossade ataduras brancas.

Cuidadosamente, Otelolimpou o sangue coagulado.

— Sei que Átila parece ser tãoracista com humanos quantomuitos homens são com osanões, mas ele tem um bomcoração. O problema é que temuma cabeça quente à altura —murmurou ele, colocando umtravesseiro sob a cabeça do irmãoadormecido.

Os dois ficaram em silêncioenquanto Otelo enxugava a testa

do outro.Então Sylva falou:— Acho que precisamos

conversar sobre as coisas queaconteceram esta noite.

— De acordo — disseFletcher. — Mas temos quebuscar Serafim primeiro. Elemerece saber o perigo que suafamília pode estar correndo.

— Eu vou — decidiu Otelo.— Preciso buscar um uniformeextra no meu quarto, de

qualquer maneira. Vamosprecisar de um, se quisermostirar Átila daqui escondidoamanhã.

O anão foi embora, seguidopor Salomão, que pareciadeprimido. Fletcher sabia queOtelo provavelmente estava como peso do mundo nas costas.

O rapaz se sentou na lateralda cama de Lovett, gemendo desatisfação perante o alívio emseus pés doloridos. Acariciou a

cabeça de Sariel distraidamente,e ela respondeu com um barulhode satisfação. Sorrindo, ele coçouo queixo dela do mesmo jeitoque fazia com Ignácio. Ela seesfregou de volta e latiu comprazer.

— Hum, Fletcher — gaguejouSylva.

Fletcher ergueu o olhar e viuque a elfa estava ruborizada, orosto e pescoço completamentevermelhos.

— Desculpa... eu não pensei!— exclamou ele, tirando a mão.

Sylva ficou parada no lugarpor um instante, então suspirou esentou na cama ao lado dele.

— Eu nunca te agradeci —murmurou ela, torcendo asmãos.

— Pelo quê? — indagouFletcher, confuso.

— Por ter me seguido. Se vocênão tivesse… Grindle poderia terme capturado de novo.

— Não sei não; acho que elepoderia ter tido uma surpresa etanto. Você disse que Sariel valiadez homens, e isso resultarianuma luta justa. Se não fosse porvocê, poderíamos estar no meiode uma guerra civil agora. Vocêtomou a decisão correta.

Valens zumbiu animado eempurrou a mão de Fletcher.

— Acho que a capitã Lovettquer saber o que estáacontecendo. Conte a ela o que

houve na praça Valentius, e euexplicarei o que aconteceu hoje ànoite.

Contar a história toda levoualgum tempo; Otelo e Serafimchegaram bem quando elesterminaram. O recém-chegadoainda estava de pijama, eestreitava os olhos para a luz.

— Otelo me explicou tudo nocaminho — declarou ele, fitandoos corpos inconscientes de Átila eLovett. — Eu só tenho uma

pergunta. Por que os Forsythcontrataram Grindle para matá-la naquela noite em Corcillum,mas também fizeram amizadecom você?

Sylva se levantou e mordeu olábio.

— Sempre pensei que elesbuscavam minha amizade parapoderem suprir os elfos no casode uma aliança se materializar —respondeu ela, andando pelosalão. — Mas o que faz de mim

uma inimiga deles? Por que elesme querem morta?

— Acho que a verdadeirapergunta é: por que eles queriamque você fosse executadapublicamente? — afirmou Otelo,sem rodeios. — Eles poderiam termatado você a qualquermomento. Por que fazer ummanifesto disso?

— Para incitar uma guerraentre os elfos e Hominum —sugeriu Serafim. — Uma guerra

de verdade. Isso aumentaria ademanda por armas, e manteriaos negócios deles vivos, mesmocom a concorrência dos anões.

Fletcher sentiu uma onda derepugnância. Começar umaguerra por lucro?

— Então eles querem omelhor dos dois mundos... —murmurou ele. — Se os elfos sealiassem a Hominum, os Forsythplanejavam assegurar umcontrato de armamentos por

meio da amizade falsa com Sylva.Só que eles preferem uma guerra,porque gera mais lucro. Eles nãoa abandonaram no mercado,Sylva, e sim a levaram direto aosbraços de Grindle!

— Não diga “eu te avisei”…— Sylva encarava os próprios pés.

A enfermaria ficou emsilêncio, interrompido apenaspelo zumbido furioso de Valens,esvoaçavando de um lado para ooutro.

— Aqueles almofadinhasmalévolos! — resmungouSerafim. — Eu sabia que elesestavam armando alguma, masisso... isso é traição!

— Não podemos provar nada!— praguejou Fletcher, cerrandoos punhos. — Na verdade, secontarmos a história toda ao rei,é mais capaz de ele pensar que osanões estavam cometendotraição, com o conselho deguerra e tudo aquilo.

— Não faz diferença —anunciou Sylva. — O plano delesestá arruinado. Vou escreverpara meu pai agora e contar queos Forsyth não são de confiança.A tramoia para iniciar umaguerra civil com os anões foidetida, e estou em relativasegurança na Cidadela. Não hánada que eles possam fazer paranos prejudicar agora.

— Há, sim — acautelouSerafim. — O torneio. Se um dos

Forsyth vencer, ele se tornará umoficial de alta patente e ganharáum assento no conselho do rei. Éum voto extra para Zacarias emais uma voz falando contraminha família, sem falar dos elfose anões.

Otelo concordou com acabeça, em seguida coçou abarba, pensativo.

— Não vamos esquecer que aspessoas mais importantes deHominum estarão assistindo; os

nobres e os generais — afirmou oanão, andando de um lado parao outro. — Serão eles quemdecidirão se os elfos e anões sãoaliados valorosos, e depois sereportarão ao rei. Podemos tercerteza de que os Forsyth farãotudo ao seu alcance para nosdesacreditar e envergonhar notorneio, também.

— Então nós temos quederrotá-los! — Fletcher selevantou num salto. — Quem

disse que não podemos vencer otorneio? Temos um Golem, umCascanho, um Canídeo e umaSalamandra!

Serafim balançou a cabeça.— Não somos tão poderosos

quanto eles. Até os plebeus dosegundo ano levam vantagemsobre nós. Como poderemosvencer?

Fletcher respirou fundo e ofitou, olho no olho.

— Treinando.

45

Uma névoa pesada pairava aoredor da Cidadela, fazendo ohorizonte se desvanecer numabrancura sombreada. Issoofereceu a Fletcher e Átila acobertura de que precisavamenquanto mancavam pela

estrada.— Espero que Uhtred chegue

na hora — comentou Fletcher. —Rook ficará desconfiado se eunão aparecer na aula dele.

— Ele estará lá. Você disseque Valens entregou asinstruções de onde me buscarsem problemas — respondeuÁtila. Ele estava pálido, mastinha se recuperado o bastantepara andar, mesmo quemancasse nitidamente.

Os dois conseguiram seesgueirar para fora do castelosem problema praticamentealgum. Tarquin fizera umcomentário sarcástico quandopassou por eles na escada,perguntando se o anão estavamancando porque alguém tinhapisado nele naquela manhã.Felizmente, com o uniformeextra de Otelo e um rápidotrançar da barba de Átila, osanões gêmeos eram

indistinguíveis.O coração de Fletcher se

acelerou quando uma sombraescureceu a névoa adiante.

— Tudo bem, é meu pai —resmungou Átila.

Um javali emergiu donevoeiro, puxando uma carroça.O condutor usava capuz, mas ovulto corpulento de Uhtred erainconfundível.

— Suba, rápido. Não é seguropor aqui! — exclamou o anão

mais velho, parando a carroça aolado deles. Fletcher ajudou Átilaa se esparramar aos pés do pai.

— Os anões estão em dívidacom você. Se precisar de algumacoisa, o que for, é só pedir —ribombou Uhtred, estalando asrédeas do javali e virando acarroça.

— Espere, tenho algo a dizer— anunciou Átila.

Fletcher deu meia-volta,preocupado em se atrasar para a

aula que começaria a qualquerminuto.

— Muito obrigado. Eu lhedevo minha vida. Diga a Oteloque... eu estava errado.

Com essas palavras dedespedida eles desapareceram nanévoa, se afastando até queFletcher ouvisse apenas o somdos cascos do javali contra aterra.

Fletcher chegou atrasado àaula. Porém, quando ele chegou

à câmara de evocação, tantoRook quanto Arcturo estavamesperando por ele, com orestante dos estudantes paradosem silêncio diante dosprofessores. Fletcher percebeuque Arcturo usava um tapa-olho,e não conseguiu segurar umsorriso. Com o chapéu tricorne, oprofessor parecia um capitãopirata.

— Tire esse sorrisinho dorosto, moleque. Você acha que o

seu tempo é mais valioso que onosso? — ralhou Rook,indicando com um aceno que eledeveria se juntar aos outros.

— Desculpe, senhor — disseFletcher, indo até os colegas.

— Eu cuido dele mais tarde,Rook — afirmou Arcturo. — Mastalvez devêssemos continuar coma lição.

— Sim, talvez devêssemos —retrucou Rook secamente, dandoum passo à frente. — Com a

aproximação do torneio,achamos que chegou a hora dedemonstrar como funciona umduelo. Pois bem, Arcturoacredita que aprender a duelarcom outro mago de batalha éuma prática inútil...

— Os xamãs orcs raramenteduelam. — O capitão interrompeRook. — É pouco provável quevocês enfrentem um deles corpoa corpo. Eles preferem seesconder nas sombras e mandar

os demônios lutar por eles.— Uma estratégia que lhes

serviu bem no passado. Suspeitoque nossa taxa de perda demagos seja várias vezes maiorque a deles, mas é o fato delutarmos nas linhas de frente nospondo em risco que nos estáfazendo ganhar esta guerra —retrucou Rook.

— Só que isso não é duelar,Inquisidor. Isso é usar nossashabilidades para proteger e

apoiar os soldados — retorquiuArcturo.

— Porém, usamos as mesmastécnicas, não usamos? — refletiuRook, esfregando o queixo,fingindo estar pensativo.

Fletcher ficou surpreso que osdois professores discutissemassim na frente dos alunos. Seem algum momento houvedúvida, aquilo acabava deconfirmar: aqueles homens sedetestavam.

Arcturo suspirou e se viroupara os alunos.

— Independentemente deminhas opiniões quanto aotorneio, ele é uma tradição quedata desde a fundação da escolade magos de batalha, há dois milanos. Geralmente vocêspassariam por quatro anos detreinamento antes de poderemcompetir no torneio. No anoanterior, esse período foireduzido a dois anos. Agora,

basta um. Tivemos sorte, poistodos vocês nesta turmaaprendem bem rápido. Para amaioria dos calouros, leva doisanos para se aprender a executarum feitiço básico de escudo. Atévocê, Fletcher, está à frente damédia. Há muitos veteranos dosegundo ano que nãoconseguirão fazer um escudodecente.

Fletcher corou ao serdestacado, mas se sentiu melhor.

Pelo menos não ficaria em últimono torneio.

— Agora, prestem bematenção — continuou Arcturo,entalhando o símbolo de escudono ar e o fixando acima do dedoindicador. Ele disparou manaatravés do glifo e formou umescudo oval grosso e opacodiante de si. — Um escudo ésempre mais forte quando vocêse prepara para o impacto de sejalá o que for que estiver vindo na

sua direção — explicou ele,agachando-se um pouco ecruzando os antebraços em X. —Na defesa contra um feitiçoofensivo, o baque tem um...efeito violento.

— Você está pronto? —indagou Rook preguiçosamente,erguendo um dedo brilhante.

— Est...Um clarão iluminou a câmara

quando Rook chicoteou umfeitiço de relâmpago contra

Arcturo, crepitando o ar comforquilhas de raios elétricos. Eleatacou tão rápido que Fletchermal viu o dedo se mexer.

O escudo rachou como gelonum lago, emitindo estalos altose agudos com cada fratura. Orosto de Arcturo se contorceucom esforço conformealimentava o escudo com maismana, filamentos opacos fluindocomo seda para cobrir o dano. Aforça do impacto de Rook o

empurrou para trás, fazendo seuspés deslizarem no couro.

Arcturo estendeu um dedo daoutra mão e agitou o ar, emseguida descruzando os braçoscom um rugido e disparando umgolpe cinético pelas laterais doescudo.

Rook foi lançado para trás,chocando-se contra a parede edeslizando para o chão.

— É por isso que o feitiço deescudo é a primeira coisa a ser

feita quando se entra num duelo.Você até pode colocar seuadversário na defensiva se atacarprimeiro. Porém, se você não oderrotar com esse primeiro golpe,ele só precisará usar um feitiçode ataque enquanto você estiverdistraído e o duelo estaráencerrado. Atacar sem umescudo é uma manobra de tudoou nada. — Arcturo sorriu e oescudo se dissipou. A luz foisugada de volta ao seu dedo com

um silvar suave.“É melhor recuperar o mana

dos seus escudos sempre quepossível, especialmente no casodaqueles com demônios de nívelbaixo. Vocês vão precisar de todomana que conseguirem sequiserem perdurar no torneio.”Fletcher ouviu Rory praguejarem voz baixa atrás de si.

— Aquilo foi um golpe baixo!— rosnou Rook, limpando asroupas com as palmas.

— Você passou tempo demaislonge das linhas de frente, Rook.— Arcturo riu, retorcendo obigode. — Até um segundo-tenente sabe que é vital erguerum escudo se o seu primeiroataque não funcionar. Deixar defazê-lo é um ato de inteligênciabovina, se você me perdoa otrocadilho.

— Vamos ver o que você achados bovinos quando meuMinotauro estiver com as garras

em volta da garganta do seuCanídeo — retrucou Rook,dando um passo em direção aArcturo.

Os dois homens se encararampor um tempo, o ódio mútuoinconfundível. Eles lembravam aFletcher cães de caça rivais,esticando as correias para atacarum ao outro. Se os aprendizesnão estivessem na câmara, orapaz tinha certeza de que umduelo ilegal estaria acontecendo

ali e agora.— Turma dispensada! —

ralhou Rook, saindo da sala. —Não é como se algum de vocêspudesse capturar alguma coisaantes do torneio, de qualquerjeito. Inúteis, todos vocês!

Fletcher percebeu o sorriso deRory. Apesar dos melhoresesforços de Rook, os nobres nãotinham chegado nem perto decapturar novos demônios.Mesmo com a pedra de carga, a

habilidade de visualização delesera fraca demais para controlarseus demônios de formaeficiente. Por outro lado, osplebeus agora conduziam seusdemônios com facilidade,fazendo-os correr e saltar pelapista de obstáculos que elesmontaram no canto da câmarade conjuração. Fletcher erahabilidoso, mas seu minúsculocristal de visão o atrapalhava. Eleo tirou do bolso e o examinou.

— Vocês escutaram o homem;fora daqui, todos vocês! —resmungou Arcturo. — Menosvocê, Fletcher. Venha cá.

O rapaz foi até o professorlentamente, esperando umabronca pelo atraso. Em vez disso,Arcturo pôs a mão em seuombro.

— Deixe-me ver essa pedra devisão.

Fletcher a entregou sempronunciar uma palavra.

— Você não vai vencer otorneio com isto. Há desafios,Fletcher, que exigirão muitavisualização. Não posso lheemprestar minha pedra; nãotenho permissão para lhefavorecer e, mesmo se euquisesse, Rook está me vigiandobem de perto. Dê um jeito nisso.

Ele largou o cristal de volta namão de Fletcher e o olhou noolho.

— Essa é a diferença entre um

bom guerreiro e um grandeguerreiro. Rook se esforçoumuito, mas perdeu aquelabatalha. Não se esforce apenas.

Seja inteligente.

46

O golpe veio sibilando no ar,evitando a guarda de Fletcher eacertando a clavícula do meninocom um esmigalhar doloroso.

— De novo! — grunhiu SirCaulder, chutando a canela deFletcher com a perna de pau

antes de vibrar-lhe outro golpena cabeça. Desta vez, o aprendizaparou o ataque com a espada demadeira, desviando-o para o ladoe dando uma joelhada na barrigade Sir Caulder.

O velho desabou, ofegandona areia da arena.

— Fletcher! — gritou Sylva dolado de fora. — Cuidado!

Sir Caulder ergueu a mão e selevantou lentamente.

— Está tudo bem, Sylva —

sibilou ele, esfregando oestômago. — Um guerreirojamais pode hesitar diante deuma abertura. Deus sabe que oinimigo não o fará.

— Você mesma não golpeou orosto de Sir Caulder não faz nemdez minutos? — provocouFletcher.

— Aquilo foi diferente... —respondeu ela com um sorrisoarrependido.

Um grito veio de trás deles.

Fletcher se virou e viu Otelomontado em Serafim, com asarmas esquecidas no chão.

— Não, não, não; vocêsprecisam aprender a lutar comrefinamento! — ralhou SirCaulder com os dois. — Nãopodem simplesmente socar umao outro até que alguém secanse.

Os dois meninos selevantaram, sorrindoenvergonhados. Um hematoma

amarelo brotava no rosto deSerafim, e o lábio de Otelo estavainchado como uma ameixamadura.

— Já que você se deu aotrabalho de fazer Uhtredentalhar essas armas de madeirapara praticarmos, vocêprovavelmente deveria usá-las.— Fletcher riu, olhando a espadalarga e o machado de batalha demadeira largados no chão.

— Nós só nos empolgamos

um pouco — admitiu Otelo,catando o machado e limpando aareia.

Ele brandiu a arma com umafacilidade experiente, girando-ano ar antes de golpeá-la no chãoao seu lado.

— Bem, vocês melhorarammuito depois que começamos atreinar, não posso negar —admitiu Sir Caulder. — MasSylva e Fletcher já avançaram aum nível excepcional de esgrima.

Considero que vocês já possamfazer frente a alguns dos nobres,mas vão precisar de muitotrabalho para superá-los. Bomnão é o bastante.

Sir Caulder olhou feio para osdois por mais algum tempo,depois saiu pisando forte emdireção à saída.

— A aula de combate acaboupor hoje. Vocês podem treinarfeitiçaria aqui embaixo, sequiserem. Não vou impedi-los.

O estalar da perna de paucontra a pedra foi se afastandoaté que ele deixou a arena.

— Bem, esse foi o maiorelogio que eu já ouvi dele —observou Serafim, pegando aespada larga no chão. — Aindaassim, não nos falta tempo paramelhorarmos; ainda temos unsdois meses. Estou maispreocupado com a prova dedemonologia da próximasemana. Com tanto treinamento,

eu adormeço assim que abromeus livros!

— Vamos nos sair bem —insistiu Otelo. — Ainda não vinenhum dos nobres botar o péna biblioteca, e até mesmo Rory,Genevieve e Atlas passam amaior parte do tempo emCorcillum. Se obtivermos umanota ruim, todo mundo obterátambém.

— Então, vamos praticarfeitiçaria? — indagou Sylva,

caminhando sobre a areia eacendendo uma esfera de fogo-fátuo. — Por que você não tentauma bola de fogo desta vez,Fletcher? Vou erguer um escudoali e você pode usar como alvo.

Fletcher sentiu o rosto ficarvermelho, envergonhado comsua inabilidade em produzir atémesmo o mais básico dosescudos. Ele conseguia dispararondas de fogo, telecinese ou atémesmo relâmpagos, o que era

eficaz, mas gastava muito mana.Para seu desgosto, o rapaz aindatinha dificuldades em moldá-losnum raio ou mesmo uma bola.Energizar um glifo e o feitiço aomesmo tempo era coisa demaispara memorizar de uma só vez.Mesmo assim, ele melhoravalentamente, mesmo que não navelocidade desejada.

— Vocês vão em frente, jáestão muito mais avançados doque eu. Vou só treinar aqui do

lado, onde não atrapalho...— Tudo bem, se é isso que

você quer — respondeu Sylva,decepcionada.

— Rapazes, por que vocês nãotentam acertar um alvo móvel?

Ela lançou uma grande esferade fogo-fátuo no ar, fazendo-aziguezaguear pela arena numpadrão aleatório. Otelo riu eentalhou o símbolo do fogo,soltando uma língua de fogo quemoldou numa bola e a lançou no

rastro da luz azul. Serafim estavalogo atrás.

Fletcher se sentou deprimidona arquibancada, entalhando osímbolo do fogo repetidamenteno ar. Ele tinha conseguido, coma prática, acelerar oentalhamento em algunssegundos, tornando-se capaz deformar o glifo mais rápido quequalquer um dos outros. Mas eraali que sua habilidade acabava. Orapaz pingou algum mana e

observou um leque de chamas seformar. Com um esforço colossal,ele a compactou numa formamais ou menos esférica. Fletcherolhou a bola, surpreso, então alançou contra o fogo-fátuo antesque sua concentração serompesse.

Ela passou em disparada pelaesfera azul, pegando-a de raspãoe a apagando.

— Legal! — gritou Fletcher,socando o ar.

Atrás dele, palmas lentasecoaram da entrada da arena.

— Parabéns, Fletcher, vocêconseguiu lançar um feitiço —provocou Isadora. — Nossa, vocêconseguiu executar uma dashabilidades mais básicasnecessárias a um mago debatalha. Seus pais devem estartão orgulhosos. Ah... ops.

Fletcher se virou, sua alegriaimediatamente substituída peloultraje. Isadora lhe acenou

delicadamente e desceusaltitando os degraus daarquibancada. Fletcher ficousurpreso ao ver os outros setecalouros entrando atrás dela naarena.

— Enfim, como vocês podemver, estávamos certos. — Tarquinapontou um dedo acusadorcontra Sylva, Otelo, Fletcher eSerafim. — Eles estão treinandoaqui, em segredo!

— É por isso que vocês nunca

estão na sala comum! —exclamou Genevieve, surpresa,jogando o cabelo. — Vocêssempre dizem que estão nabiblioteca.

— Mas nós estamos mesmo.— Fletcher tentou apaziguá-la.— Nós só descemos para cádepois, para praticar esgrima comSir Caulder. Vocês não lembram?Ele ofereceu lições particularespara todos nós depois daprimeira aula.

— Isso não parece prática deesgrima para mim — comentouAtlas, apontando o espaço vazioacima da arena onde a bola defogo de Fletcher tinha apagado ofogo-fátuo de Sylva. — SirCaulder nem sequer está aqui.

— Por que vocês não noscontaram? — gaguejou Rory. —Vocês nunca me dão respostasdiretas quando pergunto o queandaram fazendo.

Fletcher não tinha resposta

para isso. Ele se sentia mal emnão incluir os outros. Só que teriasido muito difícil de explicar, umrisco grande demais de queTarquin e Isadora descobrissem oque faziam. Não que o segredotenha ajudado muito, no finaldas contas.

— Por que eles esconderiamisso de vocês? — ponderouTarquin em voz alta, com arteatral. — Talvez porque... não,não pode ser. Pode?

— O que você quer dizer? —indagou Genevieve, com o lábioinferior tremendo.

— Bem, lamento informar,mas parece que os outros plebeusestão treinando em segredo paraderrotar vocês — teorizouTarquin, balançando a cabeçacom nojo fingido. — Querodizer, eles não têm a menoresperança de derrotar os nobres,vamos ser razoáveis. Porém, sepuderem envergonhar vocês três

na arena, quem sabe nãoconseguem descolar umapatente?

— Que mentira nojenta! —berrou Fletcher, levantando-senum salto e avançando atéTarquin. — E, se acha que nãotemos como vencer os nobres,você é mais arrogante do que eupensava.

— Por que não descobrimosagora mesmo, então? — Tarquinlevou seu rosto a alguns poucos

centímetros do de Fletcher. —Estamos na arena.

Com uma plateia deespectadores. O que você me diz?

Fletcher estava absolutamentefurioso, com as mãos coçando deintenções violentas.

— Uma plateia detestemunhas, você quer dizer —interrompeu Sylva, puxando seuamigo de volta da beira doabismo. — Aí todo mundopoderá dizer que viu Fletcher

participar de um duelo e assimgarantir sua expulsão. Você nãose importa com a própriacarreira?

— Cipião jamais meexpulsaria — retrucou Tarquin,veneno escorrendo de suaspalavras. — É uma ameaça vazia.Meu pai é o melhor amigo do rei;o processo jamais iria longe.Quanto a um bastardo da ralé,como Fletcher...

Porém, Fletcher agora já

percebia o plano de Tarquin, enão lhe daria o gosto.

— Você terá seu duelo, nahora certa. Quando eu puderderrotá-lo com todo mundoassistindo. Vamos ver quem é omelhor conjurador então.

O nobre sorriu e se inclinouainda mais, até que Fletcherpôde sentir sua respiração noouvido.

— Vou esperar ansiosamente.Tarquin então fez uma saída

dramática da arena, seguido peloresto dos nobres. Por ummomento, Rory hesitou, com orosto marcado pela indecisão.Atlas pousou a mão em seuombro.

— Eles foram flagrados noato, Rory. Nós não deveríamoster sido tolos de confiar nessalaia. Um pretendente a nobre,um bastardo, uma elfa e ummeio-homem. Não precisamosde amigos desse tipo.

Fletcher se ofendeu com oataque, então percebeu que, paraAtlas dizer “pretendente anobre”, ele só podia ter ouvido aconversa entre Fletcher eSerafim.

— Você andou bisbilhotando,Atlas — acusou o rapaz. —Aquela conversa era particular.

— Ah, sim, ouvi muita coisanas últimas semanas. Quem vocêacha que contou de suasatividades extracurriculares a

Tarquin e Isadora?— Dedo-duro — cuspiu

Serafim, chutando a areia comraiva. — O que ele lheprometeu?

— Uma comissão nos Fúriasdos Forsyth, se eu jogardireitinho. Vocês dois deveriamfazer o mesmo — afirmou ele,virando-se para Rory eGenevieve.

— Você confiaria naquelasserpentes? — grunhiu Fletcher.

— Eles estão mentindo paravocê, e farão o mesmo com Rorye Genevieve. Não façam isso, porfavor!

Mas era tarde demais; eles játinham decidido. Um de cadavez, os três deram as costas aFletcher e foram embora. Atéque os quatro ficaram sozinhosde novo.

47

O suor pingava da testa deFletcher enquanto ele entalhavao símbolo do escudo no ar diantede si. Ele o fixou, remexendo odedo e observando o sinal seguirtodos os seus movimentos.

— Ótimo. Agora a parte difícil

— instruiu Sylva, cuja voz ecoavano espaço vazio da arena.Serafim os observava das laterais,pois já terminara seutreinamento naquele dia.

Parecia a Fletcher que suamente se racharia em duasenquanto ele tentava regular umfluxo de mana, até o símbolo eatravés dele ao mesmo tempo. Orapaz foi recompensado por umfino fluxo de luz branca quepairava no ar à sua frente.

— Já basta por ora, Fletcher.Agora, molde.

Era fácil puxar o fluido numdisco opaco, as incontáveis horasde prática de fogo-fátuofinalmente se fazendo valer.Espalhava-se bem fino e seestilhaçaria após alguns golpes deespada, mas aquilo bastava porenquanto.

Fletcher sugou o escudo devolta pelo dedo e sentiu opróprio corpo se encher de mana

outra vez. Com o torneio aapenas horas daquele momento,não era uma boa ideiadesperdiçar suas reservas deenergia mística.

— Muito bem, Fletcher! Vocêestá tendo sucesso em quasetodas as tentativas. Já deve estarmelhor que alguns dos veteranos,imagino — encorajou Sylva.

— Eu não dou a mínima paraa minha classificação no torneio— resmungou Fletcher. — Só

quero derrotar Isadora eTarquin. E eles são capazes deerguer um escudo em poucossegundos, duas vezes maisespessos que o meu. É a mesmacoisa com os feitiços de ataque.Consistência, velocidade e poder,são os fatores que realmenteimportam segundo Arcturo. Elesme superam em todos os três.

Sylva deu um sorriso solidárioe apertou seu ombro.

— Se você tiver que enfrentá-

los, eles terão que usar maismana para derrotar você, o quemelhora as nossas chances.Serafim, Otelo e eu já nosequiparamos a eles depois detanto treinamento. Não teríamosconseguido isso sem a sua ajuda,especialmente com a prática deesgrima. Até Malik diz que vocêé um bom espadachim, e osSaladin têm fama de ser osmelhores esgrimistas do país!

Fletcher deu um sorriso

desanimado e foi se sentar aolado de Serafim. Era quase meia-noite, mas Otelo tinha pedidoque eles o aguardassem na arena.Ele desaparecera algumas horasantes, com negócios misteriosos aresolver em Corcillum.

Os últimos meses tinham sidoexaustivos, preenchidos comsessões constantes de treino eestudo. A prova de demonologiatinha vindo e se ido, e todos elespassaram com notas altas.

Fletcher não sabia bem o quetinha feito seu pulso doer mais,os incessantes treinos de espadaou as intermináveis horasescrevendo redações duranteprovas que duravam um diainteiro.

Ele poderia ter suportadoesses meses recentes com relativatranquilidade, se não fosse pelafrieza com a qual ele, Sylva,Serafim e Otelo eram tratadospelos antigos amigos. Apesar das

tentativas de fazer as pazes, Rory,Genevieve e Atlas ainda estavamchateados, comendoseparadamente no café damanhã e os evitando sempre quepossível.

— Ah, eles ainda estão aqui— disse Otelo de trás deles. —Temos companhia, pessoal.Animem-se e venham receberuns velhos amigos.

Fletcher se virou e viu Otelo,Athol e Átila parados atrás deles.

Levantouse num salto e foiimediatamente embrulhado numabraço de urso, erguido pelosbraços fortes de Athol como seele não pesasse mais que umacriança.

— Achei que Otelo tinhafalado que ia buscar minhaencomenda amanhã! —Fletcherriu. Átila sorriu desajeitado e lhedeu um aceno respeitoso decabeça.

— Os verdadeiros amigos dos

anões recebem entregaspessoalmente — retumbouAthol, soltando o rapaz. — Átilatrabalhou dia e noite no seupedido. Agora, com a pernacurada, ele decidiu vir juntotambém.

— Bah, foi um trabalhodelicado, mas um prazer deexecutar — comentou Átila,erguendo o produto de seutrabalho à luz.

Fletcher tinha pensado

inicialmente naquilo depois desua conversa com Arcturo. Apedra de visão que ele receberasó era útil quando Fletcher asegurava junto ao olho. O tapa-olho de Arcturo tinha lhe dado aideia de prender a pedra ali,deixando suas mãos livres.

— Percebi que o seu conceitode monóculo clássico não dariacerto assim que comecei,Fletcher. Ele se soltaria se vocêlutasse enquanto o usasse. Mas

você disse que sua ideia veio dotapa-olho do seu professor. Entãopoli o cristal até ele ficartransparente, fiz uma moldura deprata e prendi uma tira nela.Experimente só.

A tira de couro do monóculoserviu perfeitamente na cabeçade Fletcher, com a pedra de visãoposicionada logo diante de seuolho esquerdo. Ele via atravésdela quase perfeitamente, apesardo lado esquerdo de sua visão

agora estar com uma coloraçãolevemente arroxeada.

— Ficou perfeito! Muitíssimoobrigado! — exclamou Fletcher,maravilhado com a clareza. Se eleiniciasse uma visualização, serialiteralmente capaz de ver ascoisas do ponto de vista deIgnácio, ficando ao mesmotempo livre para agir comoquisesse.

— Você pode fazer um dessespara mim? — indagou Serafim

com um toque de inveja. — Eujamais teria pensado nisso.

— Tarde demais agora —respondeu Átila, puxando abarba diante do elogio. — Mas,se você estiver com o dinheiro eo cristal, ficarei feliz em começarimediatamente.

— Hum, preciso da minhapedra para amanhã. Masaceitarei sua oferta muito embreve. — Serafim pegou opróprio fragmento de cristal e o

fitou com desapontamento.— Muito impressionante —

comentou Sylva, bocejando aosubir as escadas. — Só que otorneio é amanhã cedo, e precisode uma boa noite de sono. Vocêvem, Serafim?

— Sim, preciso do meu sonode beleza se eu quiser conquistaro coração de Isadora amanhã —brincou Serafim, mandando umapiscadela de despedida a Fletcherenquanto seguia a elfa. — Boa

noite a todos!Após os passos de ambos

desaparecerem no corredor,Athol pigarreou e lançou umolhar apreensivo a Otelo.

— Certo, temos mais umassunto a conversar, Otelo. Átilafez uma nova tatuagem, paracobrir a cicatriz na perna. Sei quevocê odeia isso, mas trouxe o kitde tatuagem para o caso de vocêquerer fazer uma igual. Depoisdo ataque fracassado, os

Pinkertons estão mais agressivosdo que nunca.

Otelo grunhiu enquantoAthol pegava várias agulhasgrossas e um pote de tinta negrana mochila.

— Não! Não desta vez.Cheguei à conclusão de que levara culpa no lugar de Átila sóserviu para deixar que ele vivesseuma vida sem consequências.Afinal, essa experiência de terquase morrido provavelmente

lhe ensinou mais lições de vidanuma só noite do que eleaprendeu em todos os seusquinze anos de existência. Não é,Átila? — observou Otelo,indicando Fletcher com umaceno de cabeça.

— Eu estava errado quantoaos humanos — resmungouÁtila, olhando para os pés. —Mas isso não apaga as muitasatrocidades que sofremos nasmãos deles. Percebi que não é a

raça humana que eu odeio, maso sistema em que vivemos.

— Mas, se nós quisermosmudar esse sistema, precisamosfazê-lo de dentro dele. — Otelosegurou o ombro de Átila. —Você vai se alistar em Vocans noano que vem? Eu não posso fazerisso sozinho, irmão.

Átila ergueu o rosto, seusolhos brilhando comdeterminação.

— Eu vou.

Otelo riu com alegria e deuum tapa nas costas do irmão.

— Excelente! Deixe-memostrar-lhe meu quarto. Vocêconsegue subir as escadas comessa perna?

Os gêmeos saíram de braçosdados, Otelo ajudando Átila amancar pelos degraus e deixar aarena. Suas vozes animadasecoaram pelo corredor, deixandoFletcher a sós com Athol.

— Como as coisas mudam —

comentou o rapaz.— E como mudam. Meu

coração se alegra ao vê-losamigos de novo — concordouAthol, enxugando uma lágrimado olho. — Eles eraminseparáveis quando novos,sempre se metendo emencrencas.

— Átila tem o coração nolugar certo — afirmou Fletcher,pensando no ódio que elemesmo sentia pelos Forsyth. —

Eu não sei se estaria tão dispostoa perdoar.

— O perdão não é danatureza dos anões — suspirouAthol, sentando-se e levandouma das agulhas de tatuagem àluz. — Podemos ser teimososcomo mulas, incluindo eu.Menos Otelo, porém. Lembro-me bem quando ele se ofereceupara ser testado pela Inquisição,e eu lhe disse que estava sejuntando aos nossos inimigos.

Você sabe o que ele merespondeu?

— Não, o quê? — indagouFletcher.

— Ele disse que o maiorinimigo de um guerreiro pode sertambém seu maior professor.Aquele guri anão tem umasabedoria que vai muito além desua idade.

Fletcher contemplou essaspalavras, mais uma vez sentindoprofunda admiração por Otelo. A

dama Fairhaven tinha dito algosimilar: Conhece teu inimigo.Mas o que ele poderia aprendercom os Forsyth, ou com Didric?Talvez, se tivesse acesso ao diáriode James Baker, ele pudesseaprender alguma coisa com osorcs. Porém, o livro ainda nãotinha voltado da gráfica, ondeeles tinham dificuldades empreparar as xilogravuras dosintrincados diagramas queadornavam cada página. Mesmo

que a maioria tratasse daanatomia dos demônios queviviam do lado órquico do éter,era impossível saber que outrasobservações úteis Baker poderiater anotado naquelas páginas.

— Você não quer umatatuagem também? Eu fiz as deOtelo e Átila, então sei o queestou fazendo — perguntouAthol, meio de brincadeira.

— Não, não é bem meu estilo— respondeu Fletcher, rindo. —

Sem querer ofender, acho queelas são meio brutas. Eu vi atéum orc...

O menino paralisou. Em suasmemórias, ele viu o orc brancoerguendo a mão, com opentagrama fulgurando violetana sua palma. Será que poderiaser assim tão simples?

— Você viu um orc comtatuagens? — repetiu Athollentamente, confuso pelo silêncioabrupto de Fletcher.

— Foi um sonho... —murmurou ele, traçando com odedo a palma da mão esquerda.

Fletcher sacou o khopesh ecomeçou a desenhar o contornode uma mão na areia da arena.Seu coração batia loucamente nopeito enquanto ele pensava noque estava prestes a fazer.

— Espero que você seja tãobom quanto diz que é, Athol —declarou. — Preciso que estatatuagem fique perfeita.

48

Fazia um calor intenso na arena,piorado pelas dúzias de tochasque Sir Caulder instalara nossuportes nas paredes. A areiaonde os calouros se perfilavamparecia se mover e deslocar sob aluz tremeluzente.

— Só tem mesmo 24 de nós?Achei que seria mais gente —sussurrou Serafim no ouvido deFletcher.

— Não, é só isso. São 12calouros e 12 veteranos, com umnúmero igual de plebeus enobres — respondeu o outro,com voz forçada.

Ele não se sentia bem. Cadabater do seu coração fazia a mãoesquerda latejar de dor. Não forauma experiência agradável com

Athol na noite passada, e o rapaznão tivera a chance de testar ateoria ainda. O anão tinha lhedito para deixar a mão se curar omáximo possível antes de tentarqualquer coisa.

— Olhos adiante! — bradouSir Caulder atrás deles, fazendoos alunos pularem. —Demonstrem respeito aosgenerais de Hominum.

Fletcher endireitou a posturaà penumbra do corredor de

acesso à arena. Primeiro vieramos generais, resplandecentes emseus elegantes uniformes develudo azul, bordados com fiosdourados que subiam pelasmangas até as dragonas. Ospeitos eram adornados com umaabundância de medalhas eborlas, e todos os generaisseguravam seus bicornes comforça junto ao flanco enquantodesciam rigidamente pelosdegraus. Eram homens severos,

com rostos que evidenciavampenosas experiências. Nenhumdeles falou, apenas passaram osolhos pelos cadetes como seavaliassem cavalos num leilão.

— Se eles ficaremimpressionados, vão nos oferecercomissões diretamente após otorneio para lutarmos no ExércitoReal — murmurou Serafim como canto da boca. — O soldo nãoé tão bom, mas as promoçõeschegam mais rápido que nos

batalhões nobres, por conta doalto coeficiente de atrito.Assumir o lugar de homensmortos e tudo o mais.

— Silêncio nas fileiras! —ralhou Sir Caulder, mancandoaté a frente e os desafiando aromper o silêncio. — Posição desentido! Se eu vir um de vocês semover um centímetro, vou fazercom que se arrependam!

Mas Fletcher não estavaprestando atenção. Um homem

tinha entrado na arena e oencarava. A semelhança familiarera inconfundível. ZacariasForsyth.

Zacarias não era comoFletcher tinha imaginado. Orapaz visualizara um homem comfeições frias e tortuosas.Entretanto, o nobre era alto ecorpulento, com metade daorelha faltando e um sorrisoconfiante. Ele descolou o olharde Fletcher para os filhos, que

estavam lado a lado.— Ora ora, Sir Caulder, deixe

que os cadetes relaxem. Haverátempo mais que suficiente paratoda essa cerimônia mais tarde —comentou Zacarias numa vozgrave e animada. Ele desceu até aareia e abraçou os dois filhos,bagunçando o cabelo de Tarquine dando um beijo no rosto deIsadora.

Por algum motivo, Fletcherficou confuso ao presenciar tal

cena. Parecia estranho pensarque alguém poderia adorarTarquin e Isadora, mesmo quefosse o próprio pai.

— E quem é este rapazrobusto? — trovejou Zacarias,parando diante de Fletcher e oolhando de cima a baixo,notando os cheios cabelos negrose o khopesh em seu cinto.

— É o bastardo, pai; aquelecom o demônio Salamandra —afirmou Tarquin, observando o

outro menino com desdém.— É mesmo? — comentou

Zacarias, fitando as profundezasdos olhos de Fletcher. O sorrisopermaneceu sem vacilar no rostodo nobre, mas o rapaz viu algomudar no fundo do seu olhar.Algo sombrio e feio que lhe deuvontade de estremecer.

— Vai ser interessante ver doque o seu demônio é capaz. Ora,aposto que ele poderia calcinar oombro de um homem até o osso,

se assim quisesse. — A máscarasorridente continuava lá, masFletcher não se permitiuintimidar por aquelebrutamontes.

— Ele pode, e já o fez —retrucou Fletcher, com dentestrincados. — Talvez eu possa lheoferecer uma demonstraçãoalgum dia.

O sorriso de Zacarias vacilou,e ele pousou a mão no ombro domenino e apontou para a

arquibancada. O lugar estava seenchendo com mais nobres,todos vestindo cores e uniformesque representavam seusbatalhões pessoais. Algunstinham se juntado a Zacarias naareia, abraçando os filhos efalando alto, para a irritação deSir Caulder.

— Será legal para você ter suafamília aqui para lhe dar apoio.Por que você não dá umtchauzinho ao seu pai?

Fletcher ficou paralisado.Berdon estava ali? Não poderiaser! E não era mesmo; Zacariasestava apontando para um casalgrisalho, que contemplava omenino com um olhar de puroódio.

— Tomei a liberdade deinformar os Faversham das suasalegações — contou Zacarias,com olhos cheios de malícia. —Até o rei demonstrou interesseespecial no seu caso. Afinal, você

acusou o lorde Faversham de tersido infiel à prima do rei maisuma vez, tantos anos depois detodos aqueles problemas comArcturo e os outros bastardos.

— Eu não aleguei nada disso!— enfureceu-se Fletcher. — Eujamais...

— Convidei os dois a meacompanhar e assistirpessoalmente. Espero que vocênão se importe. Arcturo foimandado para longe, de modo a

não se encontrar com o pai e amadrasta, o que faz parte doacordo dele com o velho rei. Issodeixa Rook encarregado dotorneio. Um velho amigo daminha família, sabe? Tenhocerteza de que ele fará umesforço doloroso para garantirque tudo seja o mais justopossível.

Zacarias piscou para Fletchere deixou a areia para se sentarcom os outros nobres, mas não

antes de exibir um sorriso detubarão a Sylva e Otelo. Fletchertremia de fúria, cerrando as mãosem punhos apesar da dor quepulsava na palma esquerda.

— Não deixe que ele afetevocê, Fletcher — sussurrouSerafim. — Vamos arrasar comos Forsyth.

— Sentem-se, sentem-setodos! — trovejou Cipião,chegando pelo corredor edescendo os degraus da arena,

seguido por um Rook sorridente.O reitor acenava e saudavagenerais e nobres igualmente.Conforme os espectadores seassentavam, o silêncio recaiusobre a arena. — Enfim, mais umano, mais uma safra de cadetesprontos para testar suashabilidades na arena —continuou Cipião, abrindo osbraços e sorrindo para os alunos.— Este ano é uma ocasião bemincomum. Tradicionalmente, só

teríamos mais ou menos umadúzia de candidatos que seenfrentariam em dueloseliminatórios e assimdeterminariam um vencedor.Porém, neste ano estendemos aoportunidade tanto aos calourosquanto aos veteranos, o que nosdeixa com 24 candidatos a seremavaliados. Vou deixá-los nasmãos capazes do InquisidorRook, que lhes explicará as novasregras do torneio.

Cipião se afastou e sentou-sena primeira fila da arena, tendocumprido seu dever.

— Muito obrigado, reitor. Eugostaria de aproveitar estaoportunidade para agradecer atodos por terem vindo; sei queseu tempo é precioso. Cadaminuto longe das linhas defrente é um minuto em que seussoldados estão privados de suaexcelente liderança. Para aceleraras coisas, decidi que haverá uma

batalha tripla na primeirarodada, onde apenas umcandidato seguirá adiante para apróxima. Não será um duelotradicional, mas detalhesadicionais serão reveladosposteriormente.

Houve murmúrios decuriosidade da plateia, porémnenhuma discordância. Rookesperou que o barulhoterminasse antes de continuar.

— A próxima rodada será a

eliminação tradicional entre doiscadetes, mas sem feitiços oudemônios. Historicamente, oscombatentes do torneioraramente se enfrentam corpo acorpo, preferindo lançar feitiçosou deixar que seus demônioslutem por eles. Parece uma penadesperdiçar todos os anos deaprendizado de esgrima que seusfilhos receberam, mesmo antesde vir à academia. Esta segundarodada evidenciará esta

importante perícia.Desta vez houve acenos de

concordância dos nobres nasarquibancadas, mas os generaispareceram menos felizes com oarranjo, franzindo os lábios eassentindo.

— Tenho uma objeção. Talprocedimento dá uma vantageminjusta aos jovens nobres, quereceberam aulas particulares deesgrima — afirmou um dosgenerais, falando diretamente

com Cipião. — Nós preferimosuma avaliação justa dashabilidades dos cadetes.

— Talvez o senhor prefira queprejudiquemos os nobres,simplesmente porque eles sãomais bem preparados? —indagou Rook com um tom desarcasmo. — Eles também nãoreceberam treinamento emfeitiçaria antes de chegar àCidadela? Talvez seja melhorlimitar os testes à prova de

demonologia?Cipião se levantou e se voltou

ao general que tinha falado.— Temo que eu tenha que

concordar com o InquisidorRook. Também me opus a essamudança inicialmente, mas logome lembrei de algo importante.A guerra é injusta; os fracosfracassam e os fortes sobrevivem.Se o torneio for desequilibrado,isso não permitirá umarepresentação mais precisa de

uma batalha real?— Também determinei uma

medida que permitirá que umnúmero igual de nobres eplebeus sigam para a segundafase — anunciou Rook. — Asduas classes não competirão umacom a outra na batalha de três,pois os grupos não se misturarão.Isso satisfaz ao senhor?

— De fato, Inquisidor.Obrigado. — O general se sentounovamente, apesar de continuar

com o cenho franzido.— Ótimo. A terceira e a

quarta rodada serão duelostradicionais, então presumo quenão há discordância nenhumaaqui. Agora, a arena deve serpreparada para a primeira fase —afirmou Rook, esfregando asmãos. — Sir Caulder! Leve oscadetes às suas celas!

49

Fletcher estava sentado naescuridão de sua cela de prisão,com o coração saltando como umpassarinho engaiolado. Eleacreditara poder assistir às outraslutas, mas as regrasdeterminavam que todos os

combatentes deveriam sermantidos isolados. Parecia quehoras já tinham se passado, e aespera, com a antecipação, erauma tortura.

O rapaz fitou a própria mão,traçando as linhas negrasprofundas desenhadas por Athol.No centro da palma havia umpentagrama, a estrela de cincopontas inscrita num círculo. Seaquilo funcionasse conformeplanejado, Fletcher poderia

evocar e infundir Ignáciosimplesmente usando a mão, emvez de ser obrigado a posicionaro demônio sobre um couro deconjuração. Só não sabia aindamuito bem como isso poderia serútil numa batalha.

Tinha deixado o dedoindicador esquerdo em branco,para poder entalhar com elenormalmente, caso precisasseusar outro feitiço. As pontas dosoutros dedos foram tatuadas com

os quatro símbolos de batalhapara telecinese, fogo, relâmpagoe escudo. Com alguma sorte, eleseria capaz de disparar mana porcada dedo sem precisar entalharo glifo no ar.

Um zumbido súbito lheassustou quando Valensapareceu pairando, passando porentre as barras da cela epousando no colo do menino.

— Veio assistir, capitã Lovett?— perguntou Fletcher,

acariciando a carapaça lisa dobesouro.

Valens balançou as antenas ezumbiu animado. De algumaforma, aquilo fez Fletcher sesentir melhor.

— Espero que possa assistir.Será ótimo ter alguém torcendopor mim.

Ou zumbindo.Passos soaram no corredor, e

o besouro disparou, escondendo-se num canto escuro da cela.

— Fletcher.Era Sir Caulder, fitando-o por

entre as barras.— Chegou a hora.Fletcher estava sobre uma

plataforma de madeira no limiteda arena, de costas para osespectadores. Um grande courode conjuração jazia aberto diantedele. Rory e uma plebeiaveterana chamada Amberestavam sobre suas própriasplataformas, um de cada lado e

equidistantes de Fletcher. Orapaz sentia sobre si os olharesdos Faversham, deixando-o coma nuca toda arrepiada. O olharde Rory também estavacarregado de malícia, como se oretorno à arena o fizesse lembrarda suposta traição de Fletcher.Com um balançar de cabeça, orapaz se forçou a ignorar tudoaquilo, concentrando-se na tarefaimediata.

O campo de batalha tinha

sido coberto de rochas grandes epontiagudas, como se umenorme rochedo vermelhotivesse sido estilhaçado eespalhado pela areia. No centroexato, havia um pilar gigante debarro, de uns 9 metros de altura.Uma trilha em espiral contornavada base ao topo da coluna comouma serpente, larga o bastantepara acomodar um cavalo.

Fletcher ouviu um zunirquase imperceptível acima e

olhou para o alto. Valens tinhaacabado de sobrevoá-lo,circulando a arena até pousar noteto côncavo, misturando-se àssombras. Fletcher sorriu. Lovetttinha a melhor vista.

— As regras deste desafio sãosimples — declarou Rook, dalateral. — O primeiro demônioque alcançar o topo do pilar emanter-se ali por dez segundos,vencerá. Vocês podem usarapenas o feitiço de telecinese.

Não podem atacar seus colegascadetes nem sair de suasplataformas. Se o fizerem, serãosumariamente eliminados.Comecem!

Fletcher caiu de joelhos epousou a mão no couro,evocando Ignácio com umaexplosão de mana. Ele passou apedra de visão nas costas dodemônio.

O diabrete soltou um trinadode empolgação e saltou à arena

sem hesitar.Ao seu lado, Amber evocara

um Picanço, e Malaqui já estavadisparando em direção ao Pilar.Rook tinha escolhido bem osoponentes de Fletcher; demôniosvoadores, um pequeno e difícilde acertar, o outro grande masduro de derrubar. Aquilo nãoseria fácil.

Fletcher ergueu a mão eapontou para Malaqui com umdedo tatuado.

— Espero que isso funcione —sussurrou ele consigo mesmo,inundando o corpo com mana.

O ar tremulou num espaçolongo e estreito, e Malaqui foiderrubado, caindo nas rochasabaixo. Tinha dado certo!

— Vai Ignácio, agora!A Salamandra galopou por

entre as pedras, dardejando paraum lado e o outro, enquantoRory e Amber disparavam contraele freneticamente. A areia

entrou em erupção em volta deIgnácio. Rochas eramdestroçadas, lançandofragmentos afiadíssimos comoestilhaços de bombas. Quando odemônio saltou para a espiral,um impacto cinético de Rory oacertou com força e o atirou paradetrás de um afloramentorochoso próximo à base do pilar.Fletcher sentiu um latejarabafado de dor, mas sabia queIgnácio não estava seriamente

ferido.O Picanço já tinha saltado

para o chão, preferindo seesconder atrás das pedras a serderrubado do alto. Fletcheraproveitou para colocar omonóculo, antes que Malaquifizesse outra tentativa.

Ele viu que Ignácio estavaescondido atrás de uma rochacôncava, e que a espiral nãoestava longe. Porém, se odemônio Salamandra começasse

a correr pela trilha, ficariaexposto demais para avançar obastante. Mesmo que alcançasseo topo, dificilmente ficaria lá emcima por tempo suficiente.

— Temos que caçar os outrosdemônios, derrotá-los antes queeles tenham uma chance de voarpara o alto — murmurouFletcher, mandando suasintenções para Ignácio. ASalamandra rosnou emconcordância, então disparou

para a pedra seguinte,procurando os inimigos de baixoenquanto Fletcher observava doalto.

Rory e Amber tambémespiavam suas pedras de visão,com o olhar saltando entre ocristal e a arena como o rabo deum gato furioso. Fletcher sorriu,impressionado com a imensaeficácia do monóculo. Ele aindapodia ver com os dois olhos,apesar de ter uma imagem

fantasmagórica e arroxeadasobreposta ao lado esquerdo davisão.

Ignácio ficou completamenteimóvel. O Picanço estava à frentedele, silenciosamente agachadosob a beira de uma grande rocha.Era um Picanço pequeno, maisou menos do tamanho de umaáguia crescida além da conta,mas tinha um físico poderoso,com plumagem brilhante e garrasferozes. Ignácio era capaz de

derrotá-lo.— Fogo — sussurrou Flethcer,

sentindo o mana se agitando emsuas veias.

O Picanço foi pego numredemoinho de fogo, sendolançando contra a face de umarocha. Ele crocitou e agitou asasas, mas Fletcher o golpeou comum impacto cinético, jogando-oao chão antes que se erguesse noar.

— Hoje vai ter peru assado!

— gritou Cipião, enquanto aplateia ao mesmo tempocomemorava e vaiava.

Ignácio saltou sobre o Picançofumegante, atacando-ofreneticamente com as garras eferroando-o com a cauda, comoum escorpião. O Picançoretribuiu com uma gadanhada,rasgando o flanco do diabrete. A

Salamandra guinchou de dore então empinou-se, pronto paradisparar mais chamas contra a

ave.— Não! — gritou Amber,

saltando da plataforma. Ignáciose deteve, espantado com obarulho. — Não o machuque!Não o machuque! — exclamouela, jogando-se sobre a cabeça doPicanço.

— Já chega, Ignácio. Elesestão fora do torneio! — gritouFletcher.

Mas o rapaz não era o únicoque estava gritando. A multidão

atrás dele urrava, e Fletcher viuque Malaqui estava no topo dopilar, espiando sobre a bordaoposta.

Ignácio já corria em direção àcoluna, mas não chegaria atempo. Fletcher disparou umimpacto, mas só conseguiu soprara poeira sobre o pilar. O ângulonão era favorável. Seria ummilagre se ele conseguisse atémesmo pegar Malaqui de raspão.

— Dez, nove, oito... — gritou

Rook.Fletcher precisava fazer algo

drástico. Deixou a próxima bolade energia cinética crescer até otamanho de uma toranja,cerrando os dentes enquanto abombeava com mana.

— Sete, seis, cinco... —continuou Rook, malescondendo sua alegria.

Fletcher uivou, erguendosobre a cabeça a esfera que seexpandia. Sentia o ar acima de si

se distorcer e vibrar. Ele hesitou,com o olhar fixo na figura frágildo Caruncho.

— Quatro, três, dois... — Oritmo se acelerou; Rook percebiao que o menino estava prestes afazer.

Fletcher lançou a bola atravésda arena com toda a sua força. Otopo do pilar se destroçou comoporcelana, arremessandoMalaqui para longe numturbilhão estrondoso de poeira e

fragmentos de pedra.— Nãããããoooo! — gritou

Rory, saltando da plataforma e seajoelhando na areia. Escavou ocorpo ferido do Caruncho deonde ele jazia. O besouro sedebatia e estremecia, as seispernas em convulsão. Rorysoluçava, desesperadamentetentando entalhar um feitiço decura no ar.

— A dama Fairhaven vaicuidar dele — anunciou Cipião,

enquanto a plateia começava amurmurar em solidariedade.Fairhaven correu e se ajoelhouao lado do menino. Ela entalhouo símbolo do coração no ar ecomeçou a fluir luz branca sobreo demônio ferido.

— Seu monstro! — berrouRory. — Ele está morrendo!

Fletcher sentiu o estômagorevirar quando viu uma manchade sangue escuro na areia onde oCaruncho tinha caído.

— Vamos lá — chamou SirCaulder, segurando-o pelo braço.— Não há nada que você possafazer por ele agora.

— Me solte! — gritou Fletcherenquanto era arrastado por SirCaulder.

— Malaqui!

50

Desta vez, Fletcher foi confinadonuma cela maior. Era igualmenteescura e desagradável, mas eleficou surpreso ao encontrar Oteloe Sylva nas outras celas combarras de ferro ao lado da sua.Ignácio chilreou com alegria ao

vê-los.— Você conseguiu! —

exclamou Sylva, erguendo-senum salto e sorrindo para ele.

— Rory quase me venceu. Eracomo se o desafio tivesse sidoprojetado para Carunchos. —Fletcher encarou o chão. Aindase sentia culpado, e sua mente sevoltava sempre a Rory e Malaqui.A imagem da areia manchada desangue ressurgiu de repente, eele sentiu uma onda de náusea.

— E foi projetado paraCarunchos. Você não vê o queRook fez? — resmungou Otelo,segurando as barras que osseparavam. — Ele queriaeliminar todos os plebeuspoderosos logo no começo, eassim fez com que fosse mais fácilpara os mais fracos nos vencer. Seo plano dele tivesse funcionado,os nobres estariam enfrentandoRory, Genevieve e alguns plebeusveteranos com Carunchos na

próxima rodada. Rook nãoseparou plebeus e nobres naprimeira rodada para ser justo;ele fez isso para que ficassecompletamente injusto para nós!

— Bom, ainda bem que elenos subestimou — respondeuSylva, com uma expressão dedeterminação severa no rosto. —Espero que Serafim se classifiquetambém. Vi que ele estava paraenfrentar Atlas e um veterano,quando eles passaram pela

minha cela.— Acho melhor torcermos

para Tarquin e Isadora não seclassificarem. Só que, com Rookdecidindo com quem eles vãolutar, acho pouco provável —resmungou Otelo, sombrio.

— Então, o que vem agora? —indagou Fletcher, observandoIgnácio lamber a ferida no flancoe se perguntando se deveriatentar o feitiço de cura. — Rookfalou alguma coisa sobre luta

com espadas. Athol fez o favorde afiar meu khopesh ontem ànoite. Mas o que nós vamosfazer, cortar um ao outro até quealguém desista?

— Não, perguntei a Cipiãocomo seria na semana passada —explicou Otelo. — O feitiço debarreira protege a pele dos cortes.É como um escudo muito flexívelque envolve seu corpo. Os golpesainda doem demais, mas o corteé contido, como se você estivesse

apanhando com uma barra demetal. Uma vez que Rook julgarque você acertou um golpemortal ou incapacitante, vocêserá proclamado o vencedor.

— Rook de novo. Bem, pelomenos ele não pode ser injustodemais com todo mundoassistindo — resmungouFletcher, coçando o queixo deIgnácio.

— Esperem aí, eu nunca ouvifalar nesse feitiço. Por que nós

não aprendemos a usá-lo? Seique os orcs costumam usar armasde impacto e não de corte, dequalquer jeito, mas issocertamente muda tudo! —exclamou Sylva.

— Porque você precisa depelo menos quatro conjuradorespoderosos para fornecer umabarreira forte o bastante —explicou Otelo. — Alguns dosnobres terão que fundir seumana e fornecer uma torrente

constante a você durante abatalha inteira. Fora de torneios,o feitiço quase nunca é usado.Exceto quando o rei está nocampo de batalha, é claro.

— Entendi. Bem, vamostorcer para que funcione; nãoestou muito interessado emperder a cabeça esta noite —comentou Fletcher, chamando odiabrete para seu colo.

— Aqui, deixe-me curarIgnácio — murmurou Sylva,

percebendo o humor de Fletcher.— Não, você vai precisar de

todo seu mana para derrotar osForsyth na terceira e quartarodadas. Ele vai ficar bem —respondeu o rapaz, desejando sercapaz de fazer um feitiço de curapor si só. Infelizmente, o gliforespectivo era geralmente muitoinstável, e Fletcher estava muitolonge de dominá-lo. — Deixa eudar uma olhada — disse Fletcherpara o demônio, erguendo

Ignácio para mais perto do rosto.O arranhão era superficial,

bem mais do que ele tinhaesperado. De fato, parecia estardesaparecendo diante dos olhosdele. O rapaz ficou sentado,observando com espanto cadavez maior conforme o corte seselava gradualmente.

— Caramba — murmurouFletcher. — Você é uma caixinhade surpresas.

Ignácio ronronou quando o

menino traçou a pele nova com odedo.

— Tem alguém chegando —anunciou Otelo, voltando para ofundo da cela.

Sir Caulder apareceu,conduzindo Serafim, que pareciabem feliz.

— Ainda não entendo porque os mantêm nessas celascomo um bando de criminosos— resmungou Sir Caulder,destrancando a cela em frente à

de Fletcher para Serafim. — Omínimo que eu posso fazer é lhesoferecer alguma companhia.

— Você sabe quem vai lutarem seguida? — perguntouFletcher.

— Sei. Parece que nenhumdos veteranos passou para apróxima rodada. Os pares sãoSerafim e Tarquin, Sylva eIsadora, Otelo e Rufus, Fletchere Malik. Todos vocês vão termuita dificuldade para vencer.

Especialmente no seu caso,Fletcher; a sua luta é a primeira,e Malik foi treinado pelo pai.Virei buscá-lo num instante, elesestão organizando voluntáriospara a barreira do seu oponente.

Ele saiu mancando, aindaresmungando, com o toque daperna de pau ecoando nocorredor.

— Olha, se nós já odiamosestas celas, imaginem comoaqueles nobres metidos devem

estar se sentindo — comentouSerafim, animado.

— Presumo que você tenhavencido, então? — perguntouFletcher.

— Claro que venci. Farpanocauteou Bárbaro com algunsespinhos venenosos do dorsodele. Atlas não ficou nada feliz!O Caruncho do veterano só ficouescondido embaixo de umapedra até tudo acabar. Quemquer que tenha participado da

batalha anterior fez uma beloestrago naquele pilar! Metade dacoluna estava em ruínas quandochegou a minha vez, sem falar noestado do Caruncho de Rory!Deixou aquele veteranocompletamente apavorado, semdúvida alguma.

— Está tudo bem com Rory?— indagou Fletcher, sentindooutra pontada de culpa.

— Ele parecia bem infeliz.Malaqui ainda estava sendo

tratado quando eu o vi pelaúltima vez. Os perdedores sesentam com a plateia, então vocêlogo verá por si próprio. Teremosuma bela audiência na próximarodada, podem ter certeza —afirmou Serafim, ainda sorrindo.

— Você e Sylva precisamvencer Isadora e Tarquin. É porisso que estamos aqui. Foi porisso que eu quase matei Malaqui.Agora comece a levar isso a sério— ralhou Fletcher.

— Desculpa. Eu não quisdizer...

Ouviu-se de novo o eco dospassos de Sir Caulder, deixando atodos num silêncio nervoso.

— Venha, Fletcher, você é oprimeiro — afirmou o instrutornuma voz ranzinza.

O instrutor destrancou a celae, com um último olhar para osoutros, Fletcher o seguiu.

— Lembre-se do que falei,Fletcher. Isto não é uma corrida,

não é emocional. Sua carreira é aguerra, e tudo isto são apenasnegócios. Malik sabe o quanto éimpaciente, que suas emoçõespodem lhe atrapalhar. Ótimo,deixe que ele pense que vai secomportar assim. Use isso ao seufavor.

Com essas palavras dedespedida, Sir Caulder oempurrou para a arena.

— Ah, Fletcher. Preciso dizer,ficamos muito impressionados

com o seu desempenho naúltima batalha; surpreendeu atodos! — Colocando a mão emsuas costas, Cipão o guiou para aarena cheia de rochas. —Entalhamento incrivelmenterápido, nem vi seu dedo semexer. Quanto à suaSalamandra, mas que espetáculo!Tenho certeza de que umaprimeiratenência é umapossibilidade real, se um dosgenerais vir o mesmo potencial

que eu vejo!Fletcher mal ouviu o discurso,

fitando o rosto marcado delágrimas de Rory enquanto omenino abraçava Malaqui juntoao peito. O demônio batia as asasfracamente, mas parecia estarvivo. O alívio inundou Fletchercomo uma droga.

— Rory, ele está bem? —gritou ao outro lado da arena.

— Não, e graças a você —gritou Rory de volta. A dor em

sua voz era óbvia, mas não haviaraiva verdadeira ali; apenasresquícios de medo.

— Me desculpe, Rory —implorou Fletcher, mas o outrolhe deu as costas, ocupando-sedo demônio ferido.

Apesar disso, Fletcher sesentia muito melhor. Malaqui iaficar bem, e isso era a única coisaque importava. Rory mudaria deideia.

Foi só quando ele viu Malik,

de cimitarra na mão, quedesabou de volta à realidade.

— Preciso de voluntários paraproduzir o feitiço de barreirapara o cadete Wulf — declarouCipião à plateia.

— Será meu prazer — bradouZacarias Forsyth. — E acreditoque os Faversham também estãoansiosos para ajudar. InquisidorRook, você se juntaria a nós?

Fletcher empalideceuenquanto os Faversham e

Zacarias desceram até a beira daarena. O casal não se deu aotrabalho de esconder o ódio emseus olhos. Cipião ia mesmodeixar que eles ficassemresponsáveis pela vida dele?

O reitor pigarreou diante deum estardalhaço e os olhou,parecendo desconfiado.

— Por mais que eu respeitesua boa vontade em ignorar as…complexidades entre vocês eFletcher, lorde e lady Faversham,

preciso insistir para que Rookpermaneça concentrado nojulgamento do torneio.

Não, eu assumirei essaresponsabilidade.

— Mas, milorde — gaguejouZacarias. — O senhor está…aposentado, não está?

— O rei foi generoso e meenviou um pergaminho deconjuração na noite passada. —Cipião criou um fogo-fátuo edepois o apagou com o punho. —

Sua Majestade acredita que sereinecessário na frente órquica embreve, e que fiquei em luto portempo demais. Estou inclinado aconcordar com ele. Preciso deixarpara trás a morte do meuprimeiro demônio, ocorrida hátantos anos, e seguir adiante.Meu novo filhote de Felídeoainda está se desenvolvendo, mastenho certeza de que, com aajuda de um conjurador tãopoderoso quanto você, ficaremos

bem. Agora, não ligue para nós,Fletcher. Você sentirá um leveformigamento na sua pele, mas ésó.

Vamos cuidar de todo o resto.Os quatro magos de batalha

deram as mãos e Cipião começoua desenhar um glifo complexo noar.

— Vá em frente, Fletcher —disse o reitor. — Malik estáesperando.

51

O khopesh estava escorregadiona mão de Fletcher. Ele tentounão pensar no que poderiaacontecer se Zacarias ou osFaversham decidissem cortar omana no momento errado. Umacidente trágico, era o que eles

alegariam.— Vamos lá, Fletcher, não

temos o dia inteiro — zombouRook, indo até o centro da arena.— Temos mais três batalhas sónesta rodada.

Fletcher o ignorou e instruiuIgnácio a se sentar naarquibancada, longe da batalha.Se o demônio interferisse, elesseriam desclassificados.

— Comecem! — declarouRook, fazendo uma mesura

exagerada aos competidores.Fletcher deu alguns passos à

frente, tentando se aclimatar ànova paisagem. Tinham sidotreinados na areia plana, masagora a arena estava coberta derochas pontiagudas e destroçosda primeira rodada.

Enquanto Fletcher circulava,Malik permanecia parado comouma estátua, observando-o. Ojovem nobre tinha escolhido bemsua posição, uma área cercada

por pedras soltas, nas quais umatacante poderia tropeçar.Fletcher decidiu que nãopermitiria ao adversário escolhero local do combate.

Em vez disso, ele olhou para atorre, com sua trilha espiral até otopo. Lembrou-se do que Otelotinha dito, sobre como os anõesconstruíam suas escadarias numaespiral no sentido anti-horário,para que o braço da espada dosatacantes ficasse atrapalhado pelo

pilar quando lutavam descendo.Pela mesma lógica, um atacanteficaria igualmente atrapalhadonuma trilha no sentido horárioquando estivessem subindo!

Fletcher disparou até o pilar esubiu parte do caminho. Aindade olho em Malik, ele manobrouaté ficar logo abaixo do tocopartido que ele tinha destroçadoalguns minutos antes.

— Venha até mim, se ousar!— desafiou Fletcher com um

grito, para deleito dosespectadores.

— Não vou enfrentar você nopilar, Fletcher. — A voz de Maliksoava calma e considerada. —Por que você não desce e meencara no meio? Em camponeutro?

Mesmo que a falta depaciência supostamente fosse afraqueza de Fletcher, eleesperaria até que Malik seaborrecesse. O rapaz não se

importava nem um pouco com oque os generais e nobrespensariam dele. Mas Malikligava. Se os dois ficassemnaquele impasse por tempodemais, as reputações de ambosficariam arruinadas aos olhos daaudiência. E, se reputação era oque preocupava Malik, Fletcherusaria isso ao seu favor.

— Então o filho do grandeBaybars se recusa a lutar! Talvezos filhos não puxem aos pais na

família Saladin.Malik se ofendeu com as

palavras do plebeu, dando umpasso raivoso à frente.

— Um Saladin luta emqualquer momento, em qualquerlugar. Já lutamos do deserto àstrincheiras, nas selvas maisprofundas das terras órquicas.Duvido que você possa dizer omesmo da sua família.

— Então prove! Venha memostrar o que um Saladin pode

fazer — provocou Fletcher,girando o khopesh com falsaconfiança.

Malik não precisou de maisprovocações. Ergueu a cimitarracurva e subiu a trilha empassadas longas e calculadas.Mesmo furioso, o rapaz era umespadachim nato. Fletcheresperava que o pilar lhe dessevantagem suficiente.

O primeiro golpe veioassoviando pelo canto, tentando

lhe cortar as pernas. Fletcher oaparou na curva do khopesh e ovirou para o lado, antes deinvestir contra a cabeça de Malik.O nobre se abaixou, deixando aarma se chocar contra o pilar.

Malik se afastou um pouco eavançou contra ele diretamente,fintando um corte torto em voltado pilar contra a cabeça dooponente e em seguida atacandonovamente as pernas. Fletchersaltou, deixando a cimitarra

sibilar sob seus pés. Aterrissandoagachado, ele socou e acertouMalik na bochecha, fazendo onobre recuar alguns passos.

Os dois se encararam comraiva, ofegando. Fletcher tinhasentido a lisura sedosa dabarreira no soco. Passou a palmana própria mão e sentiu omesmo, só que com muito menosintensidade. Provavelmenteapenas Cipião canalizava manacorretamente para o feitiço. Ele

relegou aquilo para o fundo damente. Não havia nada quepudesse fazer.

A cimitarra era brandida deum lado ao outro, segurada comleveza pela mão de Malik. Nãoera muito diferente de umkhopesh, com a lâmina curva e aponta afiada. Com um gesto dopulso, Malik a lançou da mãodireita à esquerda.

— Meu pai me ensinou alutar com a mão esquerda. Será

que Sir Caulder já lhe ensinouisso? — rosnou o nobre.

Fletcher o ignorou, mas suorfrio lhe escorreu pelas costas.Com a cimitarra na mãoesquerda de Malik, o pilar nãoera mais uma barreira entre eles.Ainda assim, pelo menos eletinha a vantagem da posição maiselevada.

Malik estocou contra oestômago de Fletcher, queaparou o golpe com a curva do

khopesh e forçou a cimitarra aochão. Eles lutaram, peito contrapeito, com a trilha de madeirarangendo sob seus pés.

Fletcher sentia o hálito quentede Malik em seu rosto enquantoo nobre usava sua altura e forçapara alavancar a lâmina nadireção da virilha de Fletcher.Ele fez um esforço paraempurrar, mas a espada doinimigo mal estremeceuenquanto lentamente continuava

subindo.O menino sentiu a ponta da

cimitarra raspando o lado internoda sua coxa. Era sangue o queescorria pela perna? A lâminaestava a poucos centímetrosagora. Em poucos segundos, seriacravada na sua carne.

Fletcher viu a própria vidapassando diante dos olhos;imagens de Berdon, Didric,Rotherham. Sua primeira briga.Rotherham dando uma cabeçada

em Jakov, um sujeito duas vezesmaior que ele.

A ficha caiu. Fletcher olhoupara o teto, depois lançou acabeça para a frente, acertandoMalik no nariz com a testa. Onobre cambaleou e caiu,agitando os braços, para o lado.

Malik quicou numa rochapontiaguda, que o acertoudiretamente na barriga. Ficoucaído na areia, ofegando comoum peixe fora d’água.

— Um golpe mortal! A rochao teria empalado — gritouFletcher.

— Não na minha opinião —retrucou Rook com uma caretade desprezo.

— Não parece tão afiadaassim. Viu, ele já está selevantando!

De fato, Malik estava quasede pé. Ele encarou Fletcher comraiva, respirando fundo, mas comdificuldade.

— Desista! Você está ferido, eeu tenho o terreno elevado! —implorou Fletcher.

Malik não o faria, porém.Fletcher o tinha provocadodemais, ferido seu orgulho alémda conta. O jovem nobre ergueua cimitarra com um rugido egolpeou o pilar. O estardalhaçodo metal foi alto, mas Fletcherviu fragmentos de barroespirrando.

Malik golpeou de novo, desta

vez com mais sucesso. Grandespedaços de argila vermelhacederam, e a plataformabalançou sob os pés de Fletcher.

— Desista você! — gritouMalik.

Mas não houve tempo sequerpara uma resposta de Fletcher.Com um estalo, o pilar começoua desabar, finas rachaduras seespalhando pela coluna comorelâmpagos bifurcados.

Com apenas segundos de

sobra, Fletcher saltou do topo,rezando por uma aterrissagemsuave. Enquanto ele rolava eficava de cócoras na areia, o pilardesmoronou ao seu lado,lançando um turbilhão de pó noar.

Ele não conseguia ver nada; opó vermelho recobria seus lábiose língua. Era difícil respirar. Umasombra passou pela suaesquerda, depois pela direita.Seria Rook? Ou Malik?

Subitamente, seu oponenteirrompeu da névoa rubra,gritando de fúria. Ele golpeouforte para baixo, mas Fletcher seesquivou para o lado, sentindo alâmina pegar seu antebraço deraspão. Malik desapareceu denovo, misturando-se à penumbraferruginosa.

Fletcher olhou para o braço.Sangrava, mas era só umarranhão. Agora sabia: aquilo erapara valer, a barreira era inútil.

Bastaria um lapso deconcentração, e ele estaria morto.

O menino girou, procurandoa sombra mais uma vez. Umvulto se moveu, fora do alcanceda sua vista. Fletcher estreitou osolhos, observando a figuraembaçada erguer o braço. Umapedra veio voando do nevoeiro,acertando-o bem na testa. Ele viuestrelas e caiu estatelado nochão, encarando a poeiraflutuante.

Fletcher sentiu dificuldadeem se manter consciente,apagando e acordando enquantoas bordas da sua visãoescureciam. Seria tão fácil sepermitir desmaiar.

Uma dor excruciante explodiuna palma da mão dele, trazendo-o de volta do abismo dainconsciência. Deixou a cabeçacair para o lado e viu Valens,mordendo sua mão. Fletchertossiu e chacoalhou a mão,

tentando se soltar dasmandíbulas dele. O besouro deumais uma mordiscada e enfimdisparou poeira adentro, tendocumprido seu papel.

Fletcher começou a selevantar, mas o khopesh lhe foichutado da mão e um pépressionou sua garganta.

— Vou nocautear você,Fletcher. Ninguém desrespeita osSaladin. — A voz de Malik sooubaixa, como se Fletcher a

escutasse de uma grandedistância. Ele precisava de ajuda.Ignácio? Não, ele também estavamuito longe.

Sua mão buscou uma pedra,qualquer coisa, mas só sentiuareia. Malik ergueu a espada,seus dentes incrivelmentebrancos contrastando com apoeira vermelha que recobria apele. Conforme o pó começava aassentar, Fletcher pôde ver aplateia. Os gritos de empolgação

beiravam a histeria.— Boa noite, Fletcher.Fletcher lançou um punhado

de areia contra o rosto de Malik.O nobre gritou e girou paralonge, temporariamente cego.Fletcher se levantou, instável, ecom sua última reserva de força,investiu contra Malik, jogando-ono chão. Houve um baquequando a cabeça do nobre sechocou contra a pedra, seguidode silêncio.

Os dois ficaram ali caídos porum tempo, a poeira baixando aoredor como um cobertor morno.Era sereno ficar deitado na terra.Ele mal sentiu as mãos que oergueram para que ficasse de pé,ou o copo de água que levaramaos seus lábios. Porém, ouviumuito bem as palavras queCipião gritava.

— Fletcher venceu!

52

— Não vou conseguir, Fletcher.Terá que ser você — implorouOtelo pelas barras da celavizinha.

O anão estava determinado.Sir Caulder tinha acabado delhes contar que eles enfrentariam

um ao outro na semifinal, eOtelo estava se recusando a lutar.

— Não, Otelo. Usei manademais na primeira rodada. Nãoserei capaz de vencer —respondeu o rapaz.

— Bom, muito menos eu;Rufus quebrou a minha malditaperna! Tive sorte em vencê-lo, nofinal das contas — retrucou oanão, apontando a canela, quetinha sido enfaixada e posta emtalas. — Na próxima rodada, vou

me render e deixar que você vá àfinal. Se tivéssemos que lutar umcontra o outro, vocêprovavelmente me derrotaria aesta altura, de qualquer maneira.Se eu me desclassificar, não vaiter que usar mana nenhum naterceira rodada.

— Por que não pede à damaFairhaven que cure a sua perna?— indagou Fletcher.

— O feitiço de cura sófunciona em ferimentos na

carne, lembra? Se você começar ase meter a curar ossos, eles sesoldam tortos. Pode acreditar, euperguntei. Quero uma chance dedar uma surra em Tarquin tantoquanto você, talvez ainda mais,mas sei que eu não teria a menorchance.

— Olha, talvez não faça amenor diferença no fim —argumentou

Fletcher, mostrando uma celamais adiante. — Tarquin pode

ter derrotado Serafim, mas Sylvavenceu Isadora. Sylva e Tarquinestão lutando agora mesmo paraver quem vai à final. Se elavencer, eu me rendo. Os anõesprecisam que um representantedo seu povo seja um dosfinalistas; vai impressionar maisos generais. Posso dizer quetenho uma concussão, e seriaquase verdade, de qualquermaneira.

Ele esfregou o corte na

cabeça, onde a pedra acertara. Oferimento tinha quase sido umabênção, de certa forma. QuandoCipião viu a pele lacerada, elepercebeu imediatamente quehouve trapaça. O reitor sugeriuque Zacarias e os Favershamdescansassem e os substituiu comnobres mais imparciais, queprotegeriam Fletcher de maneiraadequada na próxima luta.

Algo retumbou na cela deOtelo. Salomão estava grunhindo

de aflição. Ele perambulou pelacela, em seguida parou para tocara tala na perna de Otelo. Ignáciotrilou em solidariedade,lambendo o rosto do dono com alíngua molhada.

— Vou ficar bem, Ignácio.Tarquin não sabe das tatuagens.Ele vai nos subestimar —sussurrou Fletcher.

Sir Caulder bateu com ocajado nas barras da cela,fazendo Fletcher pular.

— Venham, vocês dois. Abatalha acabou.

— Sylva venceu? — indagouFletcher enquanto Sir Caulderdestrancava as celas.

— Veja por conta própria —respondeu o velho soldado numtom sombrio.

Dama Fairhaven e Cipiãotransportavam Sylva numa maca.Seus braços, pernas e rostoestavam cobertos de hematomasnegros e azulados, e ela tinha um

galo terrível na lateral da cabeça.Sariel cambaleava atrás dela, como rabo entre as pernas. O pelodela estava manchado de sangue,e havia um arranhão feio no seuflanco, que corria do focinho àcauda.

— Ele acertou Sylva com umimpacto cinético — explicouCipião ao ver os rostospreocupados dos rapazes. — Elacaiu de mau jeito. Ainda nãosabemos a gravidade do estrago.

— Pobre menina, teve queenfrentar os dois gêmeos, umdepois do outro — comentou adama Fairhaven, balançando acabeça. — Ela usou quase todoseu mana na primeira rodada, edepois precisou de toda a suaforça física para derrotar Isadora,então estava exausta quandoenfrentou Tarquin. Ela resistiubravamente, porém. Ninguémvai sair daqui achando que oselfos são fracos — concluiu a

enfermeira, com a voz carregadade solidariedade. — Com umferimento desses na cabeça, nãoé seguro usar o feitiço de cura,especialmente se ela tiver sofridoum traumatismo craniano.Vamos deixá-la descansar aolado da capitã Lovett. Se elaacordar, avisaremos a vocês.

Fletcher cerrou os punhos,fitando o corpo ferido na maca.

— Vamos lá.Ele ajudou o anão a mancar

até a arena. Ele se lembrou dequando apoiou Átila da mesmamaneira; lembrou-se do sangueque escorria por suas costasenquanto o carregava. Aslágrimas no rosto de Otelo ao verque estavam vivos. Os Forsythestavam no centro de tudoaquilo, como uma aranha gordano meio de uma teia dementiras. Fletcher ia fazê-lospagar pelo que tinham feito.

Otelo mal conseguia ficar de

pé quando chegaram à arena.Seu rosto estava esverdeado, comgotas de suor salpicando-lhe atesta. O anão tinha razão; ele nãoduraria dois segundos numa lutacom Tarquin. Fletcher era aúnica esperança deles agora.

— As regras são simples —declarou Rook, caminhandoentre os dois cadetes. —Demônios não podem atacarconjuradores, já que o feitiço debarreira é ineficaz contra ataques

demoníacos. Meu Minotauroajudará a manter suas criaturaslonge de seus oponentes, casoelas se empolguem.

Foi aí que Fletcher notou omonstro com cabeça de touroespreitando detrás do pilar caído.Tinha 2,10 metros de altura, comchifres curvos afiados e pelagemcrespa tão negra quanto oscabelos do menino. Seus cascosfendidos deixavam sulcosredondos na areia conforme a

criatura andava de um lado aooutro, como se mal conseguisseconter sua raiva. As mãos seriamidênticas às de um homem, nãofossem as garras negras e grossasque se estendiam dos dedos. Umpar de olhos avermelhadosencararam o menino com ódio,então o Minotauro se virou,borrifando o ar com umafungada de desprezo.

— Sim, é belo espécime, nãoé? — Rook notou o olhar de

Fletcher. — Caliban tem umnível de realização de onze,então deve ser capaz de conterqualquer demônio teimoso semdificuldades. Vocês foramavisados.

O Inquisidor continuoufalando, dando a volta na arena,com as mãos unidas às costas.

— Se um de vocês sair daarena, perde. Se o seu demôniofor nocauteado ou sair da arena,você perde. Se você matar o

demônio do seu oponente, serádesclassificado e tambémexpulso. Não lutamos até a morteaqui, e os demônios são umrecurso precioso. Então, avisempara que sejam cuidadosos. Elespodem ferir, mas não aleijar. Elespodem machucar, mas nãomatar.

— E quanto a nós, podemosmatar? — zombou Tarquin, dalateral. Ele estava sentado numadas plataformas desmanteladas,

acariciando uma das cabeças deTrébio.

— Não, continuam valendo asmesmas regras da sua últimabatalha, mestre Tarquin —respondeu Rook, sorrindo para ojovem nobre. — Se você acertarum feitiço ou golpe poderoso osuficiente para ser consideradoum golpe mortal, vencerá. Ofeitiço de barreira impedirá quevocês sejam eletrocutados,queimados ou cortados,

entretanto ainda sentirão muitador se forem atingidos; como eusei que você está ciente, Tarquin,depois de ter acabado com a elfa.

— Sim, ela de fato pareceuestar agonizando de tanta dor —comentou o jovem nobre, comum sorriso zombeteiro. — Porémeu logo acabei com o sofrimentodela. Sou tão generoso.

— Está bem, vamos acabarlogo com isso — resmungouFletcher, entre dentes. Otelo já

estava mancando para a lateralda arena.

— Comecem! — bradouRook.

Fletcher sorriu para Rook eobservou enquanto Otelo saía daarena e caía para o chão.

— Ah, não — gritou Tarquinde forma exageradamentedramática. — Eu estava torcendotanto para poder lutar contra omeio-homem. Derrotar dois sub-humanos num só dia, isso sim

teria sido um privilégio.— Cale sua boca imunda e

venha me enfrentar, Tarquin.Vamos começar com a final,agora mesmo.

Tarquin revirou os olhos edesceu para a arena.

— Ah, muito bem, vamoslogo com isso.

— As barreiras estãoerguidas? — indagou Cipião,erguendo uma das mãos.

— Estão, reitor — respondeu

um nobre da plateia.— Neste ca...— Comecem! — berrou Rook.Tarquin já estava lançando

bolas de fogo antes que Fletchertivesse sequer ouvido a voz deRook. O menino se abaixou atrásde uma rocha bem a tempo,sentindo o calor quando um dosprojéteis chamuscou-lhe ocabelo.

— Ignácio, esconda-se! —sussurrou Fletcher, mandando a

Salamandra em disparada para omeio da montoeira de pedras.Trébio era um demôniopoderoso, mas uma bola de fogobem posicionada de Ignáciopoderia acabar com a batalhaimediatamente. O diabrete sóteria que evitar as cabeçasserpentinas.

Uma bola cinética se chocoucontra a rocha, esfarelando olado oposto a Fletcher.

— Venha, Fletcher, quero

brincar — bradou Tarquin.— Eu estava só me aquecendo

— bradou o garoto de volta,ativando um escudo oval comum impulso de mana. Sentia suasreservas sendo drenadas, e sabia,graças aos estudos, que Hidrastinham níveis muito altos demana. Se ele e Tarquin seenfrentassem golpe a golpe, aluta não acabaria bem.

Fletcher rolou de trás darocha, disparando para a

cobertura do pilar caído. Seuescudo rachou ao ser atingidopor uma bola de fogo, masfelizmente foi uma das pequenas,sem a menor chance de derrubá-lo no chão.

— E que tal esta aqui? —provocou Tarquin, lançando umasegunda bola de fogo às costas deFletcher.

Esta se chocou contra oescudo como um aríete, jogandoo rapaz para longe. Enquanto ele

lutava para se levantar, Tarquinacertou mais uma, derrubando-onovamente no solo.

— Qual é; achei que vocêfosse deixar essa batalhainteressante — riu o nobreenquanto Fletcher se encolhiaatrás de uma pedra. — Pelomenos faça durar um poucomais. Trébio, encontre aSalamandra. Eu quero ferir!

Fletcher aproveitou aoportunidade para colocar o

monóculo. Ignácio estava dooutro lado da arena, tentando seesgueirar por trás de Trébio. Atarefa era quase impossível, comtrês cabeças cobrindo todos osângulos.

— Parte para cima, Ignácio —sussurrou Fletcher. — Vocêconsegue acabar com ele.

A Salamandra disparou,correndo em direção à Hidra.Saltou de pedra em pedra,evitando as cabeças que

tentavam mordê-lo comintenções malignas. Com umaúltima investida, Ignácio deslizoupara debaixo de Trébio,liberando um tornado de chamascontra o ventre desprotegido daHidra.

Trébio rugiu quando aschamas lhe queimaram a carne.Ele girou e pisoteou, mas Ignácioera tenaz, dardejando por entreas garras dançantes echicoteando o demônio com

línguas de fogo.— Já chega! — rugiu Tarquin,

apontando o dedo para osdemônios que lutavam. Umabola cinética voou sob Trébio,jogando Ignácio de cabeça parabaixo no centro da arena. Odiabrete ficou ali caído, como umbrinquedo partido no chão deum quarto de criança.

— Acredito que esta partidaesteja encerrada. — Rook riuenquanto o Minotauro

perambulava até Ignácio e ocutucava com o casco.

— Isso mesmo! — gritouZacarias da arquibancada.

Trébio sibilou, pisando firmeaté o demônio caído. Parou a ummetro dele, baixando as trêscabeças e lançando suas línguasbífidas sobre o vulto deitado.

Mas Fletcher não sentiatristeza nem desapontamento.Ele captava a mente daSalamandra, suas intenções.

— Isso mesmo, Ignácio —murmurou Fletcher. — Lutesujo. Combate de cavalheiros épara cavalheiros.

Fletcher absorveu o escudo devolta para seu corpo. Com amanobra que estava prestes afazer, teria apenas uma chancede acertar. O plano ia contratudo que Arcturo lhes ensinarasobre duelos, mas era um riscoque valeria muito a pena.

— Muito bem, Tarquin.

Vamos ver o que você acha deser atingido pelos três feitiços deuma vez — sussurrou Fletcher,energizando os três dedos comfeitiços de ataque. — Espero quevocê esteja pronto, Ignácio.

O garoto se levantou numsalto e saiu correndo a toda avelocidade pela arena. Ignácioganhou vida com um berro,saltando para o alto com umaonda de fogo trovejante.

A Hidra urrou e se empinou

sobre as patas traseiras, emseguida desabou sobre Ignáciocom força letal. Uma fração desegundo antes que fosseesmagado, o diabrete se dissipouem luz branca, infundido pelopentagrama na palma deFletcher.

Percebendo o que o outrotinha feito, Tarquin ergueu umescudo apressado. E bem atempo, pois o rapaz lançou umaespiral de relâmpago, fogo e

energia cinética que fez o nobredeslizar até o limite da arena,deixando sulcos profundos naterra com os pés.

O escudo rachou e sedeformou, mas Tarquin estavaconseguindo resistir,alimentando grossas tiras de luzbranca para reparar o dano.Fletcher dobrou a força doataque, inundando seu corpo demana e o empurrando à espiralde energia que continha o

oponente. Seus dedos ardiam dedor e o ar ao redor do raio sedistorcia, zumbindo comintensidade enquanto forquilhasde relâmpago estilhaçavamrochas em fragmentos cintilantes.A areia abaixo se tornou umcanal de vidro derretido,borbulhando como lava.

Ignácio estava com ele agora,mandando cada última gota deenergia e encorajamento.Fletcher rugiu, colocando tudo

de si numa erupção final demana, drenando tudo que lhesrestava nas reservas. Uma ondade choque virou o mundo decabeça para baixo quando oescudo explodiu.

Fletcher girou e rolou no ar,empurrado por um borrifo depoeira e pedras. Em seguida, viu-se deitado de costas, fitando oteto. As trevas o engoliram.

53

— Fletcher, acorde. — A voz deOtelo parecia estar distante.Alguém lhe tocou o rosto.

— Você conseguiu, Fletcher— sussurrou o anão. — Você oderrotou.

— Eu venci? — indagou o

rapaz, confuso. Ele abriu osolhos.

O rosto de Otelo o encaravade cima para baixo, com olhosverdes faiscando de alegria.

— Você nos deixou nochinelo. Tarquin bateu no tetoquando o escudo dele cedeu,literalmente. Se Zacarias nãotivesse aparado a queda com umcolchão cinético, o malditoprovavelmente estaria aquiconosco agora.

Fletcher se sentou e notouque estavam na enfermaria.Lovett e Sylva jaziam nas camasao seu lado, ambas imóveis esilenciosas. Sariel estavaenrodilhada debaixo do leito damestra, roncando suavemente.Valens tinha se aninhado no pelomacio do Canídeo, igualmenteisolado do mundo.

— Como ela está? —perguntou Fletcher, estendendoo braço até a outra cama e

afastando uma mecha de cabelodo rosto da elfa.

— Dama Fairhaven disse queela vai ficar bem. Mas terá quesarar por conta própria, assimcomo eu. Ficou com o braçopartido em dois lugares.

Otelo contemplou a elfa comemoções complexas no rosto, emseguida agarrou sua mão.

— Não teríamos conseguidosem ela, sabe. Sylva derrotouIsadora e enfraqueceu Tarquin,

correndo um grande risco. Elapoderia ter se rendido, que nemeu. Em vez disso, decidiu lutar,mesmo sabendo que nãovenceria — murmurou o anão.

— Ela é duas vezes oguerreiro que eu sou —respondeu Fletcher, observandoa respiração da garota.

— Foram vocês dois queconseguiram, no fim —continuou Otelo, em um tomdecepcionado. — Queria poder

dizer ao meu pai que fui eu.Queria que os Forsyth soubessemque foram os anões que lhescustaram a vitória.

— Otelo, os anões me deramas ferramentas necessárias paravencer e, se não fosse por você,eu teria gastado todo o meumana enfrentando Rufus nasemifinal — afirmou Fletcher,encarando o amigo nos olhos. —Fomos nós três que conseguimos.Até Serafim desempenhou seu

papel. Aposto que ele não foi umadversário fácil na luta contraTarquin. Só queria que Sylvaestivesse acordada paracomemorar nossa vitória.

— Ela logo estará —assegurou Otelo, esfregando ocansaço dos olhos. — É aprimeira coisa que vou lhe dizer.Raios, ela provavelmentereceberá ofertas de comissõesassim que acordar.

— Tenho certeza de que você

também, Otelo. Os recrutasanões vão precisar de líderes. Aochegar à semifinal, você provouseu valor. Não se esqueça domotivo pelo qual você veio atéaqui: provar ao mundo que osanões são aliados valorosos —disse Fletcher.

— É verdade — concordouOtelo, com um sorriso. — Nãotinha pensado nisso. Cipiãocertamente deixará Átila sealistar em Vocans agora; ele é

meu gêmeo, afinal. A primeiracoisa que vou fazer depois disto éaprender como a Inquisição testaos candidatos a adeptos. Vamosprecisar de magos de batalha nosexércitos enânicos.

— Pode contar com isso. Voumencionar o assunto na reuniãodo conselho imediatamente, sepuder — respondeu Fletcher.

Ele sentiu uma pontada deansiedade ao imaginar umalonga mesa num salão escuro,

cercada pelos homens maispoderosos do reino. Zacariasestaria lá, tentando desacreditá-lo a cada oportunidade. Mesmocom os gêmeos Forsythderrotados, Fletcher ainda teriaque lidar com o pai deles.

Passos ecoaram na escadaria,até que o rosto animado deSerafim surgiu à porta.

— Pessoal, a dama Fairhavendisse que eu já poderia vir aquibuscar vocês, se conseguirem

descer. Eles vão começar adistribuir as comissões em breve.Vamos lá! — O rapazdesapareceu logo em seguida, eos dois ouviram sua correriaescada abaixo.

— Alguém acha que vai se darmuito bem. — Otelo riu. — Ei,me ajude a descer? Não possobotar nenhum peso nessa drogade perna.

— Eu juro que parece quepassei metade da minha vida

servindo de muleta para anõesferidos — brincou Fletcher.

Ele passou as pernas para forada cama e se levantou. Houveum momento de tontura, quelogo passou depois de algumasprofundas respirações.

— Nós devemos parecer umbelo par — comentou Fletcher,passando o braço em volta dosombros de Otelo. — Acho quevou precisar da sua ajuda tantoquanto você da minha.

Ele estremeceu ao suportar opeso de Otelo, o próprio corpodolorido protestando contra oesforço.

Eles mancaram pelas escadase corredores, parando paradescansar a cada poucos passos.

— Vamos, você não podeperder a sua promoção a capitão— disse Otelo.

À lembrança da sua capitania,os troféus de guerra e armas quedecoravam os corredores da

academia subitamenteadquiriram um novo sentidopara Fletcher. Mais cedo ou maistarde, um orc poderia estarbrandindo uma daquelas armasassustadoras na direção de suacabeça.

O átrio estava repleto denobres e generais quando eleschegaram, todos fitando o parconforme eles mancavam salãoadentro. Alguns chegavam a termedo em seus olhos.

— Genialidade pura eautêntica! — bradou Cipião,caminhando a passos largos emsua direção. — Se tatuar parapular o entalhe; usar uma pedrade visualização como monóculo.Grandes saltos na tecnologia dosmagos de batalha; como jamaishavíamos pensado nisso?

Atrás dele, Fletcher pôde verTarquin ser repreendido pelo pai,com a cabeça baixa eenvergonhado. Os demais

aprendizes sentavam-se embancos trazidos do refeitório,esperando em silêncio pelacerimônia.

— Fique tranquilo,perguntarei sobre essa história detatuagens mais tarde. Agora,general Kavanagh, se pudertrazer a papelada para Fletcherassinar... Quando é o conselhodo rei, no próximo mês?Precisaremos de um professorpara ensiná-lo sobre as políticas

de Hominum nesse meio-tempo;como um plebeu, ele não devesaber muita coisa. — Cipiãozumbia ao redor de Fletchercomo uma mãe superprotetora,limpando a poeira de seusombros.

O rapaz corrigiu a postura evasculhou a sala, encontrando oolhar de generais e nobres comuma expressão firme. Orgulhoso,admirou a proeza que ele e seusamigos haviam alcançado.

Sylva e Otelo tinham provadoaos escalões mais elevados deHominum que seus povos eramforças a serem reconhecidas. Aelevação de Serafim à nobrezaseria uma transição suave, agoraque ele tinha demonstrado suatenacidade na arena. Quanto aFletcher, ele estava basicamentefeliz por ter evitado que osForsyth conquistassem mais umlugar no conselho, e por tergarantido a si mesmo um futuro

promissor. Só desejava queBerdon estivesse ali para ver.

O rapaz apertou o ombro deOtelo e apontou para os generaise nobres.

— Um desses homens vai lhedar uma comissão hoje. Vocêtem alguma preferência?

— Desde que não sejaZacarias ou os Faversham — riuOtelo em resposta. — Vocêdeveria ter visto a cara delesquando derrotei Rufus.

As portas principais seabriram de rompante, lançandouma rajada de vento pelo átrio.Três vultos se postavam naentrada, contornados pela luz doexterior, até que as portas decarvalho se fecharam de novo.

Quando os olhos de Fletcherse ajustaram à escuridão, eleficou alarmado ao notar que ostrês homens eram Rook, Turnere Murphy. O Inquisidor sorriacom ironia enquanto caminhava

até os dois.O coração de Fletcher saltou

quando ele viu que Turnersegurava um par de grilhões nasmãos.

— Otelo — exclamou ele. —Os Pinkertons!

— Qual é o significado disto?— bradou Cipião enquanto osPinkertons abriam caminho entreos nobres. — Este é um eventoparticular.

— Estamos aqui para buscá-lo

— afirmou Murphy, indicandoFletcher e Otelo. — Temos ummandado urgente para a prisãodele.

Fletcher entrou na frente doanão, cambaleante.

— Se você o quiser, terá quepassar por mim primeiro.

Murphy deu um passo àfrente, sorrindo maliciosamente.

— Fletcher Wulf — anunciouele, atando os grilhões aos pulsosde Fletcher. — Você está preso

pela tentativa de assassinato deDidric Cavell.

O rapaz ficou paralisadoconforme o significado daspalavras ficava claro para ele.

— Tire as mãos dele —bradou Otelo, tentando se pôrentre os dois. — Isto é umengano!

Turner bateu na mão abertano anão, derrubando-o no chão.

— Controle-se, anão, ou serápreso por desacato à autoridade

— cuspiu, cutucando-o com o pé.Rook passou por cima do cadetecaído e agarrou o colarinho deFletcher, puxando-o para perto.

— Este seu passeiozinhoacabou, Fletcher — rosnou Rook,com o hálito quente na orelha dorapaz. — Você vai voltar aPelego.

Demonologia

Caruncho — Nível 1 (Rory(Malaqui), Genevieve (Azura) eLovett (Valens))

Os Carunchos são osdemônios mais comuns na regiãode Hominum do éter, e tambéma fonte de alimento de váriasespécies demoníacas. Mesmo que

haja muitas variedades menoresde Carunchos, todas similares ainsetos, os CarunchosEscaravelhos são os maispoderosos de todo o gênero. Elessão como grandes besourosvoadores, variando do castanhofosco ao colorido brilhante.Quando inteiramente crescidos,desenvolvem uma arma paracomplementar suas poderosasmandíbulas: um ferrão cruel quepode paralisar temporariamente

seus inimigos. Muitosconjuradores usam Carunchoscomo batedores para explorar oéter antes de mandar umdemônio mais poderoso paracaçar.

Lutra — Nível 4 (Rufus eAtlas (Bárbaro))

Este demônio do tamanho deum cão é muito semelhante auma lontra supercrescida, comuma cauda espinhosa como umamaça-estrela e dois enormes

dentes incisivos. Geralmente sãoencontradas nos lagos e rios doéter, pois gostam particularmentede nadar.

Picanço — Nível 4 (Amber)Estes demônios com aspecto

de ave cruzam anualmente aparte de Hominum do éterdurante sua migração, tornandoincursões extremamenteperigosas durante uma semanado ano. Bem conhecidos pelaslongas penas negras, a

envergadura de suas asas éequivalente à altura de umhomem, com as plumas dasextremidades descoloridas. Obico de um Picanço é cruelmentecurvado, com uma barbela emvermelho brilhante na garganta euma crista vermelha no alto dacabeça, como um galo.

Salamandra — Nível 5(Fletcher (Ignácio))

Salamandras sãoextremamente raras e não

existem na região de Hominumdo éter. Não se conhece muitosobre seu hábitat ou história, mashá evidência de que os orcs ascapturavam no passado. São dotamanho de um furão, com umcorpo similarmente ágil e flexível,e membros longos o bastantepara que sejam capazes deavançar como um lobo damontanha, em vez dascorridinhas de um lagarto. Suapele é de um vermelho

profundo, a cor de um bomvinho tinto, com olhos grandesde brilho âmbar, redondos comoos de uma coruja. Salamandrasnão têm dentes de verdade, masseu focinho termina numa pontaafiada, quase como o bico deuma tartaruga do rio.

Matriarca Picanço — Nível 6A Matriarca Picanço é a líder

maternal de uma revoada dePicanços. Quase duas vezesmaior que o picanço médio, esses

demônios não devem sersubestimados. Não é raro queuma Matriarca capture filhotesde Canídeo, quando aoportunidade se apresenta.

Cascanho — Nível 6 (Serafim(Farpa))

Este demônio com forma detexugo tem pele grossa quaseindistinguível da casca dasárvores, vantagem que ele usapara se camuflar nas selvas doéter. Apesar de ser relativamente

comum, sua tendência a seesconder no topo dos troncos deárvores, além da crista de farpasvenenosas que disparam daespinha dorsal, tornam difícil suacaptura. A dieta desses demôniosconsiste exclusivamente emvegetação, que esmagam em suasbocas cheias de placas.

Vulpídeo — Nível 6(Penélope)

Um parente próximo e umtanto menor do Canídeo, este

demônio com aparência deraposa tem três caudas e éconhecido pela agilidade erapidez.

Canídeo — Nível 7 (Sylva(Sariel) e Arcturo (Sacarissa))

Um demônio canino comquatro olhos, garras letais, rabode raposa e uma crista espessa depelos que corre pela espinha. Otamanho desses demônios variaentre o de um cachorro grande eum pequeno pônei.

Felídeo — Nível 7 (Isadora(Tamil) e Cipião*)

Este gato-demônio bípedetem a estatura e a inteligência deum chimpanzé. Suas raças variamentre leonino, tigrino eleopardino, que são semelhantesa leões, tigres e leopardos,respectivamente.

Anubídeo — Nível 8 (Malik eseu pai, Baybars)

Outro parente distante doCanídeo, este raro demônio anda

sobre duas pernas e tem a cabeçade um chacal. Ao contrário dosoutros membros da família, eletem apenas dois olhos.

Golem — Nível 8 (Otelo(Salomão))

Este raro demônio da classeelemental pode ser formado porvários tipos diferentes deminerais, incluindo argila, lama eareia, sendo o mais poderoso nogolem de pedra. Filhotes deGolens tem pouco mais de um

metro, mas ao longo do tempopodem alcançar três metros dealtura. Têm aparência mais oumenos humanoide, porémpossuem apenas um enormededo e um polegar opositor nasmãos.

Hidra — Nível 8 (Tarquin)Uma Hidra é um grande

demônio com três cabeças decobra em pescoços longos eflexíveis. Seu corpo é similar aode um lagarto monitor, com mais

ou menos o mesmo tamanho deum Canídeo grande. Essesdemônios já foram outroracomuns na parte de Hominumdo éter, mas agora sãoextremamente raros.

Grifo — Nível 10 (Lovett(Lisandro))

Este raro demônioocasionalmente aparece na partede Hominum do éter. Dotamanho de um cavalo, tem ocorpo, a cauda e as patas traseiras

de um leão e a cabeça, as asas eas garras de uma águia.

Minotauro — Nível 11 (Rook)Esses demônios humanoides

são altos, peludos e musculosos.Têm a cabeça de um touro ecascos fendidos no lugar dos pés.Ao contrário dos Golens, elestêm mãos com garras capazes demanipular armas, mesmo queseja uma tarefa difícil ensiná-losa usá-las. É muito raro encontrarum deles na parte de Hominum

do éter.Nota:* O primeiro Felídeo de

Cipião morreu. Ele recentementefoi presenteado com um novofilhote da mesma espécie.