O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de...

149
13 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA INTERINSTITUCIONAL DE DOUTORADO EM FILOSOFIA Rodrigo Silva Rosal de Araújo A justiça e a sua imagem: contradição ou coerência no discurso de Trasímaco? João Pessoa 2009

Transcript of O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de...

Page 1: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

13

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA INTERINSTITUCIONAL DE DOUTORADO EM

FILOSOFIA

Rodrigo Silva Rosal de Araújo

A justiça e a sua imagem: contradição ou coerência no discurso de Trasímaco?

João Pessoa

2009

Page 2: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

14

Rodrigo Silva Rosal de Araújo

A justiça e a sua imagem: contradição ou coerência no discurso de Trasímaco?

Tese apresentada ao Programa

Interinstitucional de Doutorado em

Filosofia – UFPB/UFPE/UFRN- como

requisito para obtenção do grau de

Doutor em Filosofia.

Orientador: Professor Doutor José Gabriel Trindade Santos

João Pessoa

2009

Page 3: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

3

Dedicatória:

Aos que procuram com esperança a justiça, para que possam melhor apreciar

as suas múltiplas imagens.

Page 4: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

4

Agradecimentos

Ao Professor Doutor José Gabriel Trindade Santos, que, com sua postura

austera e generosa, atuou como um „psicagogo’ na orientação desta tese,

ensinando-me a ler Platão.

Ao Professor Doutor Anastácio Borges de Araújo, pela ajuda incondicional na

formulação do projeto apresentado na seleção para o ingresso no programa de

Doutorado.

Ao Professor Doutor Markus Figueira da Silva, pelas oportunas e sinceras

observações feitas durante a qualificação da tese.

Ao Professor Vincenzo Di Matteo, pelo auxílio com as normas da ABNT.

Ao Professor e amigo Katsuzo Koike, pelo suporte na bibliografia e nas

sugestões de melhoramento da tese.

Ao Professor Doutor Ferdinand Höhr, pela ajuda na leitura dos textos em

alemão.

Aos demais professores, funcionários e alunos do Programa Interinstitucional

de Doutorado em Filosofia – UFPB/UFPE/UFRN – pelo empenho e

pioneirismo.

Page 5: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

5

À família, pela alegria afetuosa de estarmos juntos.

Aos amigos, pela leveza e confiança da convivência.

À minha esposa, Vivianne Marie, pelo amor que construímos diariamente

rumo ao infinito.

Ao Grupo Espírita Kardecista Pedro Paulo de Aquino, por estreitar os laços do

plano sensível com o inteligível.

Page 6: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

6

„Não entendo de harmonias – prossegui eu -. Mas deixa-nos ficar aquela que

for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem

valente na guerra e em toda a ação violenta, ainda que seja mal sucedido e

caminhe para os ferimentos ou para a morte ou incorra em qualquer outra

desgraça, e em todas estas circunstâncias se defenda da sorte com ordem e

energia. E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos

pacíficos, não violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou

por meio da prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos

homens, ou, pelo contrário, se submete aos outros quando lhe pedem, o

ensinam ou o persuadem, e, tendo assim procedido a seu gosto sem

sobranceria, se comporta com bom senso e moderação em todas estas

circunstâncias, satisfeito com o que lhe sucede. Estas duas harmonias, a

violenta e a voluntária, que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem

e mal sucedidos, sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar. ‟ (Platão,

República 399 a-c)

Page 7: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

7

Resumo

O tema da justiça, ambientado no livro I da República, é

particularmente agudizado na primeira resposta de Trasímaco, que a identifica

com o interesse, a conveniência do mais forte (338c). O justo se reduz e se

parece com aquilo que está prescrito na lei editada pelo governante. Por trás

dessa questão, vê-se a problemática da governabilidade da cidade a partir da

lei escrita, convencionada. Lei que se coloca como medida da justiça e como

condição do exercício do poder.

Diante disso, analisando os argumentos que se desenvolvem ao longo

do livro I, nosso intento é sintetizar outros problemas que se ligam

inevitavelmente à questão, como, por exemplo, a dialética da physis e nomos e

a possibilidade de conciliação entre elas. Dela deriva a tensão que se dá, no

plano ético, entre autonomia e heteronomia, no político, entre naturalismo e o

positivismo jurídico. Associados a esta tensão, o chamado processo de

laicização e de relativização do saber.

Para alcançar tal objetivo, analisamos a teoria da aparência subjacente

ao tema da justiça e sua utilização na ética e na política. Precisamente para

caracterização dessa cidade ideal e desse melhor de acordo com a natureza

humana, é que não se pode prescindir da oposição aparência – realidade, pois

ela é extensiva ao campo prático, especificamente na discussão ética referente

à diferenciação bem real – bem aparente, ou a ser justo e parecer justo.

O ponto forte para auxiliar no deslinde – ou na melhor formulação da

questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu

pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência ou utilidade parece

decididamente marcada por uma relação de necessidade entre o mais forte e os

mais fracos. Evidencia-se que a estratégia de Trasímaco é a do pragmatismo.

Ele é irrefutável porque não se vincula a uma posição ética.

Essa constatação nos encaminha a vislumbrar o diálogo para além de

um simples exercício de investigação ética, admitindo-o como tentativa

legítima de definição de um campo de valores que possibilite avaliar com

acuidade a ação do cidadão. Na República, formular esse critério talvez

favoreça a compreender o frágil equilíbrio que opõe o bem próprio ao alheio,

necessário para definir a justiça, superando a concepção retributiva,

tradicional, rechaçada sucessivas vezes por Sócrates, porque conceitualmente

inepta para unificar a cidade. Isso reforça a idéia de complementaridade entre

as duas teses, sugerindo que são interdependentes.

Palavras-chave: justiça, Trasímaco, força.

Page 8: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

8

Resumen

El tema de la justicia, puesto en el libro I de República, és agudizado en la

primera contestación de Trasímaco, que la identifica con el interes de los más

fuertes (338c). Lo que és justo solamente significa lo que está en La ley. Por

de trás de esta question, hay el problema de la gobernabilidad de la ciudad

bajo la ley escrita. Ley que ponese como medida de justicia y condición para

el ejercicio del poder.

Mientras tanto, el tema se desarolla por el libro I, nuestro objetivo és sintetizar

otros problemas que vienen bajo la question principal, como por ejemplo la

dialética da physis y nomos ante La possibilidad de conciliación entre ellas.

Por ejemplo, también en El plan ético El debate entre autonomia y

heteronomia en La política, entre naturalismo y positivismo jurídico. Juntos

com estos temas, lo que llamamos de proceso de alejamento de la iglesia y

relatividad del saber.

Para alcanzar el objectivo del trabajo, comparamos la teoria de la aparencia

bajo al tema de la justicia y la ética en la política. Para la caracterización de la

ciudad ideal al mejor acuerdo com la naturaleza humana no si puede

prescindir de la oposición aparencia versus realidade, pues és extensiva al

campo prático en el debate ético entre “bem real y bem aparente” o también,

lo que és justo o parece justo.

El punto más fuerte para este trabajo, o al menos para La formulacion

de La pregunta principal está en el discurso de Trasímaco que vá al centro de

su pensamiento (343b-344c). Em su discurso, Trasímaco deja claro la

necesária relación entre los más fuertes y los más fragiles. Está claro su

estratégia por la pragmática que no si prende a la posición más ética.

Esta posición llevase a imaginar el dialogo más allá del ejercício de

investigación ética. Acepta una definición de valores sobre la ación del

ciudadano. Él libro La Republica quizá ayude a compreender el equilíbrio

entre el “bem próprio e o bem alheio”, importante para entender justicia, y

superar la concepción retributiva, tradicional, que fuera criticada por Sócrates,

considerada equivocada para unificar una ciudad. Creemos que eso refuerza

La Idea de complemetariedad entre las dos tesis, sugerindo su

interdependência.

Palabras-llave: justicia, Trasímaco, fuerza

Page 9: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

9

Sumário

Introdução. .................................................................. ...........................10

Formulação e contextualização do problema ........................................ 10

Relevância do tema tratado ....................................................................18

Metodologia e desenvolvimento da tese ................................................. 20

Capítulo I. A revalorização histórica da teoria de Trasímaco ............ ..23

1.1. Do desprezo inicial à assimilação residual .................................. .23

1.2. Algumas interpretações contemporâneas .....................................32

1.3. Absorção pela moderna teoria do direito .....................................38

Capítulo II. Physis e Nomos: paradigmas de governabilidade da cidade .................................................................................................................... 43

2.1. Concepção ética subjacente à controvérsia ................................. 43

2.2. O início da teoria do direito natural do mais forte ..................... 50

2.3. A problemática inserida na República I........................................ 54

Capítulo III. A lógica do poder: análise e interpretação da relação entre a

justiça e a sua imagem no Livro I da República.....................................61

3.1. Justiça como interesse do mais forte (338c) .................................. 61

3.2. Justiça como um bem alheio (343b) ............................................. 74

3.3. Contradições aparentes .............. ......................................................79

Capítulo IV. Trasímaco revisitado: explicitado pela teoria da aparência e

pelo Livro II da República ..................................................................................................................... 86

4.1. A imagem e o discurso falso como condição da justiça na polis . 86

4.2. Revisão dos conceitos: análise dos argumentos no segundo livro da

República.......................................................................... .........................95

4.3. Repensando Trasímaco: como harmonizar as teses?...................114

Conclusão ............................................................................................... 134

Referências ........................................................................................... 138

Page 10: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

10

Introdução

Formulação e contextualização do problema

A visão que se tem das tendências do pensamento filosófico mais

influente em outras épocas depende da valoração que os autores posteriores

tenham feito sobre elas ao criticá-las ou ao crer que as tenham superado. Uma

mostra disso é a influência da crítica de Platão aos sofistas.1

A revalorização de um grande pensador ou de um filósofo e a

interpretação de toda sua obra ou parte dela remetem necessariamente à busca

de seu ponto de partida. No que pertine a Platão, sua importância e autoridade

parecem tão grandes que em sua influência se poderia encontrar a explicação

da falta de interesse, durante muito tempo, pela obra dos sofistas.2

Não obstante, também podemos encontrar nos tempos mais recentes

apreciações e valorações positivas sobre os sofistas. Foi necessário que a

investigação filológica e filosófica do último século despertasse um interesse

mais amplo e crescente por suas teorias e sua problemática filosófica. A razão

que explica essa mudança de atitude é, sem dúvida, a concomitância de

determinadas tendências e problemas da filosofia moderna com o modo de

pensar dos sofistas. A revalorização foi motivada pela simpatia.

1 É importante desde já ressaltar o modo como encaramos os diálogos platônicos. Lendo-os como obras

ficcionadas, não pretendemos buscar verdade neles, pois não representam necessariamente reportagens de

conversas reais. Nessa direção, registramos o entendimento de José Trindade Santos: „não há dúvida de que a

oralidade se acha bem viva nessas brilhantes peças dramáticas, onde não falta pirotecnia sofística. Nada nos

obriga a aceitar a historicidade dos eventos relatados. Nem vemos razões que obriguem a atribuir a

personalidades históricas as opiniões expressas pelas personagens homônimas do diálogo‟. Para ler Platão.

Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p.12. 2 Para isso, conferir W. K. L. Guthrie, „The Sophists‟, em A History of Greek Philosophy, vol. III,

Cambridge: Cambridge Universyti Press, 1971, p.5.

Page 11: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

11

Assim, muitos dos problemas, idéias e concepções colocadas e

defendidas pelos sofistas voltaram a ter atualidade. Por exemplo, o ceticismo

diante da possibilidade de alcançar um conhecimento certo por parte da

filosofia, associado à atitude filosófica mais empirista; a admissão das

posturas relativistas, agnósticas e atéias, assim como uma concepção

contratualista e protecionista do Estado; a diferença entre direito natural e

direito positivo; a valorização do uso persuasivo da linguagem.

Temos que admitir que este conjunto de problemas supracitados e o

ponto de partida teorético na concepção sofística não surgiram

simultaneamente, senão que se encontram, ao menos parcialmente, em um

contexto próximo. O mesmo se pode afirmar sobre os problemas

gnosiológicos e sua influência no pensamento político.

Devido à escassez de textos conservados dos sofistas, é difícil

demonstrar com robustez a conexão direta entre a epistemologia e a teoria

política. Pode-se admitir o uso de determinadas teses gnosiológicas no estudo

e compreensão do Estado. Se se buscam relações e referências entre os textos

da epistemologia e fragmentos filosóficos e políticos, não se deveria

subestimar que os sofistas não eram um grupo homogêneo, no qual todos

defendiam os mesmos pontos de vista.

Todavia, um ponto de coincidência entre os sofistas foi a finalidade de

suas atividades: buscaram como meta da educação e da formação capacitar os

homens para defender seus interesses tão bem como os fosse possível nos

âmbitos públicos e privados.3

Dessa forma, os discípulos de Protágoras deviam ser capazes de

administrar bem seus assuntos e propriedades, e, ao mesmo tempo, realizar da

3 É o que se vê em Platão, Protágoras 318e-319 a. É fundamental distinguir Retórica de Sofística. A primeira

se ocupa em apresentar discursos sedutores, que agradam o público. A segunda se põe de forma mais

agressiva, preocupada unicamente em vencer o interlocutor.

Page 12: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

12

melhor maneira possível suas responsabilidades políticas harmonizando a

linguagem e as ações. Por esse motivo, a arte de falar de modo efetivo era

importante, pelo que todos os sofistas se ocuparam de um ou de outro modo

da retórica ou da linguagem.4

O fragmento mais importante da epistemologia de Protágoras é, sem

dúvida, o início do escrito „sobre a verdade‟, que começa com a conhecida

sentença: „o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e

das que não são enquanto não são‟.5 Os conceitos que se encontram nessa

sentença, conhecida como princípio de Protágoras, foram discutidos

amplamente na bibliografia existente sobre a sofística.6

Conforme sugerem alguns comentaristas (partindo do diálogo platônico

Teeteto 152a), a tese deve ser compreendida de modo individualista. Não se

refere ao homem enquanto gênero, senão ao homem enquanto indivíduo. O

suposto não se amplia à existência de objetos, mas aos fatos.7 O mesmo ocorre

com as percepções dos sentidos em geral e também no caso dos juízos.

Nessa perspectiva, Protágoras intentou aplicar sua tese em primeiro

lugar no campo da política. Desse modo, Platão pode atribuir-lhe a pertinência

de dito princípio para os juízos práticos sobre o bem e o justo. „ O que a cada

estado lhe parece justo e bom, o é enquanto este o tem por tal‟.8 E isto poderia

4 Jorge Carreira Maia, no texto Epimeteu, o benevolente: Política e educação no mito do Protágoras, de

Platão, p.2 afirma „que o Protágoras permite surpreender uma formulação ficcional do laço político muito

anterior às teorias contratualistas que vão de Thomas Hobbes a John Rawls. Essa formulação surge na

discussão, entre Sócrates e o sofista Protágoras, sobre a possibilidade de ensinar a virtude política No âmbito

de determinação do ofício de sofista, Protágoras confirma que pretende ensinar a arte de gerir a cidade e

transformar homens em bons cidadãos (319 a). ‟ O texto está no prelo, será publicado em obra sobre o

Protágoras, de Platão, pela Universidade de Lisboa. 5 É um dos motes de discussão no Teeteto 161c. 6 Entre outros, ver M. A. Sanchez Manzano e S. Rus Rufino. Introducción al movimiento sofistico griego.

León, 1991, p.15. 7 Essa, por exemplo, é a visão de G. B. Kerferd, em Le mouvement sophistique. Paris: Vrin, 1999, p.86. 8 Platão, Teeteto 167c.

Page 13: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

13

ser ampliado às leis do Estado, às regras da moral social, aos ritos religiosos,

aos costumes em geral.

Além disso, Protágoras defendeu claramente a idéia de que a respeito de

cada estado de coisas ou questão existem dois discursos ou suposições opostas

e contraditórias: pode-se manter uma afirmação e uma negação sobre o

mesmo.9 Estas suposições possíveis e contradições sobre um mesmo fato

devem diferenciar-se das afirmações subjetivas, que, de acordo com o

princípio protagórico, não são falsas nem emendáveis e não podem ser

contraditadas, porque são expressão de juízos verdadeiros apenas, embora

para aqueles que julgam desse modo, sejam vigentes enquanto quem emite o

juízo o mantenha.10

Por outro lado, as suposições contraditórias sobre cada fato devem ser

entendidas como afirmações aparentemente objetivas. Nessas se prescindirá

argumentativamente da limitação da validade do juízo à pessoa que julga. Se

se considera o juízo em si, sem relação a um determinado defensor do mesmo,

podem-se extrair, de acordo com Protágoras, argumentos sólidos a favor e

contra cada fato suposto no juízo.11

De acordo com o relativismo epistemológico de Protágoras, não existe

mais uma diferença entre a verdade e a falsidade nas afirmações subjetivas. A

verdade e a falsidade das afirmações não poderiam ser provadas, inclusive se

alguém quisesse supor que parte de duas afirmações contraditórias

consideradas em si.12

9 Diógenes Laércio, IX, 51. 10 É relevante destacar a utilidade do discurso na formulação e consolidação do laço político. Conforme Jorge

Carreira Maia, „ a cidade, enquanto comunidade política organizada dotada de ordem e de laços que suscitam

a amizade cívica, é o resultado de um processo temporal que liga o homem ao cosmos e às forças que nele

atuam, que de certa maneira o modelaram na sua natureza‟, em Epimeteu, o benevolente: Política e educação

no mito do Protágoras, de Platão, p.8. 11 Conforme J. Barnes, The Presocratic Philosophers. London, 1982, p.549. 12 Sugere que a técnica do discurso é uma aptidão ou capacidade a desenvolver, que deve ser aprendida e

exercitada.

Page 14: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

14

Tal posição relativista de Protágoras provoca um problema, que já foi

apreciado por Platão.13

Se as opiniões que alguém defende são verdadeiras

permanentemente e ninguém pode dizer algo falso, então onde radica a

sabedoria de Protágoras? As respostas de Platão o levam a dizer que apesar de

as opiniões não serem verdadeiras, podem ser úteis. O sofista admite a

capacidade para transformar as opiniões ruins em boas, ou as que imperam no

espaço político, por exemplo, na forma de leis.14

Nisso parece haver consistido

o objetivo da educação de Protágoras.15

Não apenas Protágoras senão também outros sofistas defenderam

concepções céticas de acordo com as quais aquilo que no uso cotidiano da

língua se denomina „saber‟ é total ou amplamente relativo ao sujeito enquanto

integrado no seu contexto dialético. Não haveria um conhecimento objetivo,

de acordo com este tipo de epistemologia, no campo da percepção, nem

tampouco no que diz respeito às crenças morais ou religiosas.16

Apesar de considerarmos uma interpretação difícil e discutível, parece

razoável aproximarmos os ensinamentos protagóricos com as teses defendidas

por Górgias no fragmento „sobre o que não é, ou sobre a natureza‟, no qual

defende que: a) nada existe; b) se algo existe, não é cognoscível; c) se algo

existe e é cognoscível, não pode ser comunicado aos outros (B3, 77-86).17 Isto

corresponde à idéia de Górgias de que o lógos não expressa nenhum saber,

senão opiniões subjetivas, que podem ser geradas ou alteradas pela retórica.

13 Teeteto 165-168. 14 Teeteto 166d-167d. 15 Jorge Carreira Maia ainda destaca „que a palavra e a comunicação não são suficientes para garantir a

subsistência biológica. O homem precisa ainda da arte que assegure a sua soberania, soberania esta instituída

a partir de um horizonte de sociabilidade.‟ Epimeteu, o benevolente: Política e educação no mito do

Protágoras, de Platão, p.11. 16 W. K. C. Guthrie. A History of Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge Universyti Press, 1971. p.50. 17 I presocratici: testimonianze e frammenti. Roma: Laterza, 1975, p.917.

Page 15: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

15

É bem provável que outros sofistas tenham sustentado de forma similar

concepções céticas, relativistas. No entanto, devido a uma deficiente

transmissão dos textos, não se pode afirmar nada com plena segurança.18

Ademais, uma atitude cética diante das pretensões de conhecer o bem absoluto

e um juízo relativista dos valores tradicionais não podem proporcionar

certamente uma fundamentação filosófica para as mais avançadas concepções

antropológicas, religiosas ou da filosofia do Estado, defendidas pela sofística.

Tais formulações foram apropriadas para fortalecer representações de

valores que sobreviveram, e que podiam levar através da educação sofística à

auto-realização do indivíduo. Nesse contexto, é particularmente interessante a

apelação de alguns sofistas ao direito natural. A idéia de que algo é correto ou

justo por natureza se manifestou em dois sentidos distintos no direito natural,

na doutrina a respeito do domínio dos poderosos sobre os fracos e em uma

concepção que com reservas se pode chamar a doutrina da igualdade natural

dos homens.19

O fato de que as duas versões de direito natural foram usadas

com fins políticos e ideológicos distintos parece ser algo seguro.20

A doutrina do direito natural do mais forte se conhece particularmente

por meio dos diálogos platônicos Górgias e República.21

No primeiro,

Cálicles, um jovem aristocrata ateniense, se destaca como defensor dessa

doutrina e fundamenta sua idéia do direito natural dos poderosos a dominar os

fracos, usando uma dupla via.22

Por um lado, através da alusão ao

comportamento dos animais, dos homens e dos heróis, aos quais atribui um

caráter similar ao das leis da natureza. Por outro, busca assegurar sua

18 G. B. Kerferd, Le mouvement sophistique. p.93. 19 Veja-se, entre outros, S. Rus Rufino, El problema de La fundamentacón Del derecho. La aportación de La

sofistica griega a la polêmica entre naturaleza e ley. Valladolid, 1987, p.16. 20 Conforme Tucídides, I, 76; V, 105. 21 Platão, República, 338c. 22 Platão, Gorgias 483c e seguintes.

Page 16: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

16

concepção por meio da crítica que desqualifica as pretensões da moral

tradicional, utilizando uma explicação sociológica da origem dos direitos dos

homens e das idéias morais tradicionais.23

Desse modo, a moral, de acordo com a teoria que Cálicles expõe, é um

meio de defesa encontrado pelos fracos para se protegerem contra os

poderosos. Mediante esta interpretação, as aspirações de Cálicles frente ao

ilimitado exercício do poder devem parecer completamente insustentáveis, já

que tanto os poderosos como os fracos, valendo-se de distintos meios, buscam

em cada ocasião sua própria vantagem.

Acompanhando o raciocínio anterior, os meios recomendáveis para

obter a máxima vantagem pessoal seriam o ilimitado exercício do poder e a

inobservância de regras morais. O diálogo Górgias é um exemplo do modo

em que se pode argumentar ao mesmo tempo, dentro do marco da

epistemologia sofística, a favor e contra posições tão paradoxais como a

suposição do direito natural dos poderosos e a negação da obrigatoriedade

moral.

Por dentro dessa visão, igualmente surgiu a idéia de que tanto o direito

como o Estado se baseiam num consenso ou num contrato entre os indivíduos.

A relação entre a doutrina da busca ilimitada do benefício próprio e a teoria do

contrato pode ser apreciada com maior clareza no segundo livro da República.

Na doutrina proferida por Gláucon se explicará a existência de leis e a

valoração moral do comportamento como justo ou injusto mediante um acordo

dos fracos entre si. 24

23 Interessante os apontamentos de Domingo García Belaúnde, professor de Filosofia do Direito da Pontificia

Universidad Católica Del Perú, no texto Existe un Derecho Natural en La filosofia griega?, apresentado em

1972 à Sociedad Peruana de Filosofía. 24 Platão, República 358e-359b.

Page 17: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

17

A finalidade do contrato serve para estabelecer as leis. Sob o recurso às

leis se julgará a avaliação moral dos modos de comportamento como justos ou

injustos. Por meio dessa formulação, os mesmos meios servem para a proteção

contra uma excessiva vantagem dos poderosos, pois o nomos que obriga o

cidadão serve como garantia do seu direito. Assim, o nomos não tem

capacidade por si mesmo de estabelecer um procedimento correto para

promulgar leis, e por si só carece de capacidade de fazer justiça e de alcançar

o bem da cidade. Isso somente é possível mediante o acordo voluntário dos

cidadãos manifestado num contrato.

Com o direito e sua sanção, os cidadãos poderiam manter a igualdade.

Um contrato que respeite a igualdade e dê satisfação mediante igual

participação o acordam unicamente pessoas que se consideram essencialmente

iguais.25

De toda sorte, a sabedoria e a habilidade técnica são insuficientes

para conviver pacificamente em sociedade, de um modo estável; é necessário

também o desenvolvimento de certas aptidões emocionais: a mútua

consideração e o respeito pelo direito.26

Isso conduz à virtude política, que será caracterizada pelas virtudes

singulares que a conformam: justiça, sensatez e coragem. A virtude política

representa uma condição necessária para a convivência em uma comunidade e

se supõe além da razão técnica das atitudes acima caracterizadas. Aqui os

sofistas contemplaram o seu campo de ação mais significativo, pois o direito

entre em cena para colmatar a lacuna que há entre a natureza frágil e

insociável e o exercício virtuoso das qualidades cívicas.

25 República 359c. 26 Conforme Platão, Protágoras 322c e seguintes. Aqui se faz presente a noção de justa medida, que pode ser

compreendida como uma delimitação do espaço territorial de cada cidadão onde se inscreve a proximidade ao

outro e a distância suficiente necessárias à coexistência. A isso há que juntar a justiça, que determina a

medida daquilo que cabe a cada um na distribuição dos resultados provenientes da cooperação social.

Page 18: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

18

É tudo isso que, em alguma medida, será reconsiderado na problemática

desenvolvida pelo debate entre Sócrates e Trasímaco, precisamente na

aplicação que se dá ao conceito de justiça „como o interesse do mais forte‟.

Em razão dessa discussão, Trasímaco é um dos personagens de mais difícil

classificação e que dá uma contribuição determinante na história das idéias

políticas e jurídicas do mundo moderno e contemporâneo.27

Relevância do tema tratado

Fascina o modo como Trasímaco, juntamente com os demais sofistas,

colocou questões que ainda hoje estão em voga nos diversos ramos do saber

humano: política, direito, ética, filosofia, retórica, ciências e muitos outros

aspectos. Não é em vão que a bibliografia sobre eles segue aumentando.

Nossa idéia inicial consistiu em elaborar um estudo onde se indicaria

com detalhes os argumentos que apontam contradição e aqueles que sugerem

coerência entre as falas de Trasímaco28

, oferecendo, em seguida, nossa versão

a respeito dessa figura singular do pensamento da sofística pré-socrática. No

entanto, ao avançarmos nos estudos, os textos nos revelaram um vasto campo

de assuntos, abrindo novos problemas, cujas ramificações ofereciam uma

27 Inegável é a presença, declarada ou não, da discussão entre Sócrates e Trasímaco no desenrolar da teoria do

direito e do Estado, nas mais diferentes perspectivas, sempre se debatendo em busca de uma equalização entre

o poder e a justiça. É essencial para compreender a situação do mundo atual. Particularmente, no Brasil, o

Patrimonialismo. Podemos citar, entre obras recentes que cuidam do problema do jusnaturalismo, o livro

„Law and Nature’, de David Delaney, pela Cambridge University Press, 2003. Noutra perspectiva, teorizando

sobre a moral, ver a obra Thrasymachus or the future of morals, de C.E.M. Joal, London, 1925. Ver, ainda, de

C. Lazzerini, Trasimaco: Il primo libro della Reppublica, La nuova Itália, Firenze, 1967. 28 A questão se localiza em República 338c – 344e. Retomando as linhas de Trasímaco, Glauco e Adimanto

serão os interlocutores de Sócrates no seguimento da República. Para esse intento, colhemos argumentos em

Kerferd e Veggeti. Além desses, há aspectos interessantes em D. J. Hadgopoulos, Thrasymacus and legalism,

Phronesis, 18, 1973, pp.204 e seguintes; bem assim em S. Harlap, Thrasymachus’s justice, Political theory, 7,

1979, pp.347 e seguintes.

Page 19: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

19

fascinante e singular oportunidade para descobrir o substrato de

funcionamento material da justiça na narrativa do diálogo.29

A recepção do problema em nossa época e a possibilidade de explicitá-

lo e de aproveitá-lo para uma reformulação crítica da teoria do direito e da

justiça é, nesse sentido, uma prova contundente da relevância percebida, que

se põe de manifesto com amplitude no presente trabalho.30

Ademais, já no terreno mais estrito ou próprio da controvérsia, a trama

teórica que informa o contencioso que se dá entre Sócrates e Trasímaco

descobre e assinala os diversos itinerários por onde os assuntos humanos

chegam ao nível da violência, arbitrariedade e supremacia em que se sustenta

a função da lei e da justiça, que para além da história e das contingências

parece uma das extensões permanentes na luta ou no intercâmbio de bens,

direitos e desejos que os filósofos e os juristas modernos acreditaram redimir

com o recurso da razão e da vontade.

Por outro lado, este texto de Trasímaco é francamente aplicável a boa

parte da conjuntura jurídica e política do mundo contemporâneo. Todavia,

inserido na República, não foi bem compreendido, pois é recebido como um

texto contra a filosofia, ou como um texto calunioso pelos políticos. Quando

vamos tentar mostrar que não é uma coisa nem outra.

Além disso, o discurso de Trasímaco se presta a ler como se fora de

Trasímaco, mas não temos provas seguras disso. Como está incluso em um

diálogo platônico, consideramos como sendo de Platão.31

29 Seja nas ficções modernas do contrato social, de Hobbes a Rawls, seja nas ficções clássicas, como as

produzidas por Platão, o espanto que o homem sente pelo fato de viver com os outros, perante a sua

sociabilidade, leva-o a elaborar a emergência da vida em comunidade. Na discussão entre Sócrates e

Trasímaco, isso se mostra na relação entre virtude e lei positiva. 30 Apenas como exemplo, cite-se o contributo de L. Strauss com a obra „Natural Right and History’. Chicago,

1953, p.20. 31 Para uma abordagem diferente, recomenda-se a leitura do texto de Salvador Rufino e Joaquín Meabe,

especificamente do capítulo I intitulado „La figura histórica de Trasímaco‟ da obra „Justicia, Derecho y

Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001.

Page 20: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

20

Metodologia e desenvolvimento da tese

Nesse intrincado caminho, o texto platônico serviu de guia seguro e

possibilitou uma tarefa que de outro modo seria inviável. Todavia, seria

igualmente impossível sem o suporte da erudição filológica e do trabalho de

estudiosos como J. Burnet, W. Jaeger, E. R. Dodds, W. K. C. Guthrie, M.

Fernández Galiano e outros que seria muito longo citar.32

O primeiro capítulo da tese serve para contextualizar melhor a

revalorização histórica da discussão desenvolvida entre Sócrates e Trasímaco.

Nela se estudará a concepção tradicional da justiça defendida por Céfalo33

,

que resume o paradigma pré-socrático. Posteriormente, discutiremos algumas

interpretações contemporâneas do assunto e sua absorção pela moderna teoria

do direito.

No segundo capítulo, a partir das conclusões produzidas pela

exploração do capítulo primeiro, desvela-se uma revisão crítica em volta da

teoria do direito natural do mais forte e da pragmática da lei que nos auxiliem

a recolocar o problema no contexto da ambivalência nomos – physis,

formulando melhor velhas interrogações ou incorporando novas perguntas.34

32 Por exemplo: Olof Gigon. Rationalité et transrationalité chez les sophistes. Actes Du Congrés de Nice, mai

1987. A. Pinto de Carvalho. Aspectos da Moral Homérica e Hesiódica (kalokagathía – Arete – hybris).

Revista de História, n.25, 1956, pp.49-57, São Paulo. Gilda Naécia Maciel de Barros. Sólon de Atenas: a

cidadania antiga. São Paulo: Humanitas, 1999. David J. Furley and R. E. Allen. Studies in Presocratic

Philosophy. London: Routledge & Kegan Paul, 1970. K. Freeman. The Presocratic Philosophers. Cambridge:

Harvard University Press, 1966. E. A. Havelock. The Greek Concepto f Justice: from its Shadow in Homer to

its Substance in Plato. Cambridge: Harvard University Press, 1978. 33 República 329a – 331d. 34 Destaque-se, desde já, a relevância, para esse tópico do nosso trabalho, do texto La Legge Sovrana: nomos

basileus. Milão: BUR/SAGGI, 2006, com a colaboração de Massimo Cacciari e outros. Igualmente

importante é a „Introdução‟ do texto Nomos und Physis, Damstadt, 1987, de F. Heinemann.

Page 21: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

21

O terceiro capítulo discute detidamente as implicações das duas

supostas teses de Trasímaco, buscando argumentos que apontem contradição

ou coerência entre ambas, já iniciando uma aproximação com a teoria da

aparência.

O capítulo quarto rediscute as conclusões do primeiro capítulo só que

agora revigoradas pelo suporte advindo com as conseqüências da relação entre

justiça e aparência, bem como os desdobramentos dos significados extraídos

da noção „interesse do mais forte‟.35

Utiliza-se a teoria da aparência e parte do

livro II para uma melhor compreensão do problema da justiça a partir do

entendimento da aplicabilidade do discurso falso nas relações sociais, como

também a sua imprescindibilidade na cominação do comportamento justo.36

Nas conclusões, demonstramos a pertinência de todo o discutido para a

teoria do direito e da justiça, apontando complementaridades nos argumentos

de Trasímaco, bem como a necessidade de se ler o livro I da República com o

suporte do braço constitutivo da teoria da aparência.37

Constatamos, igualmente, nas linhas do diálogo, a impotência real da

sociedade humana para evoluir além de certos princípios. Platão precisa de

Trasímaco para superá-lo. Seu discurso tem autonomia suficiente para se

apresentar como objeto filosófico da nossa tese.

35 Destaque-se a forma como a questão foi discutida por Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia,

Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, pp.90-96. Ver igualmente J. P. Maguire. Thrasymachus ... or

Plato?, Phronesis, 16, 1971, pp. 142 e seguintes. E ainda K. Lycos. Plato on Justice and Power. London:

Macmillan, 1987, p.43. 36 Foi determinante para elaboração desse capítulo o livro „Platão, pensador da diferença: uma leitura do

Sofista’, editora UFMG, 2006, do professor Marcelo Pimenta Marques. 37 A partir das problematizações feitas por Marcelo Boeri. Apariencia y realidad em El pensamiento griego:

investigaciones sobre aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de La acción em algunas teorias de La

Antigüedad. Buenos Aires: Colihue, 2007. É necessário compreender aparência e realidade, para explicar o

binômio justiça/injustiça.

Page 22: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

22

A prova disso está na inegável influência que exerceu em alguns

teóricos, como Maquiavel e Hobbes, por exemplo, bem assim na curiosa

insistência dos políticos contemporâneos em aparentar justiça nas suas ações,

apesar de suas condutas, não raras vezes, estarem impregnadas de injustiça.38

38 O Brasil, só para ficarmos nele, está rico de exemplos que consubstanciam escândalos políticos, nos quais

sempre se vê o discurso que apresenta a imagem da justiça por trás de todos os atos de poder.

Page 23: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

23

Capítulo I. A revalorização histórica da teoria de Trasímaco

1.1. Do desprezo inicial à assimilação residual

A partir do despertar do interesse pela sofística na erudição e na

filologia do século XIX, dá-se um curioso fenômeno de assimilação e de

revalorização teórica desses pensadores pré-socráticos, sobretudo para melhor

entender até que ponto influenciaram na reflexão crítica sobre a cidade.39

Não foi estranha a esse processo intelectual a derrocada da polis grega,

que segue à etapa de formação e decomposição do Império de Alexandre, e a

posterior dominação romana, onde se diminui a tal extremo a liberdade e se

elimina praticamente a autodeterminação cívica, que constituíam os principais

componentes da vida cidadã.40

O largo processo que, na cultura jurídica do Ocidente, conduziu a uma

recuperação relativa da liberdade e do progressivo restabelecimento do

autogoverno obrigou a retomar os tópicos vinculados aos problemas que

coloca a teoria do direito, do Estado e da justiça como interesse ou

conveniência do mais forte, a partir do que na Modernidade se chamou direito

natural racionalista.41

Como já dito, também colaborou para tal recuperação a

investigação filológica, em especial na Alemanha do século XIX.

39 Juntamente com a reflexão sobre a cidade, aparece a questão da comunidade soberana, garantida pela lei

como resultado do consenso entre os cidadãos. 40 É o que se dessume de Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. III, cit, pp.3-26. Bem como de Kerferd,

Le mouvement sophistique, cit. pp. 4-14. E Manzano y Rufino, Introducción ao movimiento sofístico griego,

cit. pp. 31-43, onde se expõe brevemente a reconsideração histórica dos sofistas. 41 Importante conferir „Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica’, de João Maurício Adeodato,

São Paulo: Saraiva, 2009. Aqui também, apenas para registro, é relevante mencionar que a teoria do direito

natural do mais forte é, de algum modo, rediscutida por filósofos modernos, como Hobbes e Spinoza. Na

mesma linha, pode-se colocar Grotius, Pufendorf e Stammler. No entanto, não é objeto do nosso estudo

confrontar os seus argumentos com aqueles colhidos em Platão.

Page 24: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

24

Esse extraordinário avanço filológico não alcança, apesar de toda a

enorme e crescente atenção que o humanismo dedicou aos sofistas no último

século, o sentido filosófico e a teoria, que remonta ao debate registrado na

personagem de Trasímaco nos diálogos platônicos, com o qual a ampliação

dos estudos em torno da sofística ganharia fôlego.42

Seguramente, uma investigação mais ampla irá descobrir melhores e

mais detalhados argumentos. Dessa forma, nosso esforço inicial, aqui neste

tópico, é estabelecer uma crítica dos fundamentos da filosofia do direito e da

justiça que se alimentam dessa peculiar ansiedade de aletheia.43

Voltando ao conteúdo do Livro I, o tema da justiça surge a partir do

personagem Céfalo, que coloca a questão da justiça como ela seria entendida a

partir dos costumes de Atenas. Figura venerável, Céfalo procurou pautar sua

vida por princípios que a tornaram reta, o que lhe deu como vantagem poder

desfrutar, na velhice, de uma consciência tranqüila, dos prazeres do diálogo,

do convívio dos amigos e sentir a segurança de quem está conforme com os

costumes da cidade e com os cultos religiosos.

Esse tipo humano segue uma filosofia natural de vida que o torna

superior àqueles que, por terem seguido descaminhos, não suportam, na

velhice, os males do corpo e vivem a culpar os demais pelos seus sofrimentos.

42 Inegável, por exemplo, a erudição de pesquisadores como Gomperz, Jaeger, Mondolfo, Havelock. Mas,

para nosso intento, o seu vasto arsenal serve apenas para apresentar o pano de fundo da discussão, pois não

chegaram a tratar especificamente de Trasímaco. 43 Não é incomum, mesmo hoje, verificar-se algum posicionamento que procure aproximar a teoria do direito

a uma teoria do discurso verdadeiro. Podemos ter como exemplo as preocupações de Habermas, em Israel o

Atenas: ensayos sobre religión, teologia e racionalidad. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p.76. Numa outra

direção, Paolo Grossi no livro Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004,

p.88.

Page 25: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

25

Para Céfalo, um rico meteco estabelecido em Atenas44

, os frutos colhidos na

velhice resultam das escolhas feitas na juventude e na maturidade.45

Por outro lado, está implícita na concepção de justiça seguida por

Céfalo, que velhice feliz implica ter algum dinheiro para torná-la um fardo

mais leve. Ainda em torno de Céfalo, homem de experiência que percorreu um

longo caminho de vida e por isto tem muito que ensinar, Platão empresta uma

dimensão piedosa a sua concepção de justiça, conforme era narrada pela

tradição.

Tu sabes, ó Sócrates, que, depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que

vai morrer, lhe sobrevém o temor e a preocupação por questões que antes não lhe vinham à

mente. Com efeito, as histórias que se contam relativamente ao Hades, de que se têm que expiar

lá as injustiças aqui cometidas, histórias essas de que até então troçava, abalam agora sua alma,

com receio de que sejam verdadeiras. E essa pessoa..., seja qual for a verdade, enche-se de

desconfianças e temores, e começa a fazer os seus cálculos e a examinar se cometeu alguma

injustiça para com alguém.46

O que cabe destacar nessa citação? A noção de justiça acima está

impregnada de um elemento exemplar, colhido da experiência, e de um

componente escatológico. A tradição oral contribuiu para formar o núcleo de

sabedoria popular, à qual o indivíduo, bem situado economicamente na Polis,

como é o caso de Céfalo, recorre para avaliar sua vida, nessa tradição.

A avaliação moral implica prêmio e castigo que acontece em um lugar

após a morte – o Hades. A imagem do Hades tem um efeito antecipador de

orientação da ação moral pelo provável raciocínio do tipo se... então, portanto

conseqüencialista; há de certa forma, uma consciência do que é justo e do que

não é na cultura da Cidade-Estado; há, ainda, a consciência de que existe a

44 Em E. Barker, na obra Greek Political Theory. Plato and his predecessors. London: Methuen, 1918, p.35,

pode-se ver as relações entre família e destino político. 45 Platão. República, I, 329 c, d. 46 Idem, I, 330 d – 330 e.

Page 26: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

26

virtude da santidade ou piedade, pela conotação do desprendimento em

relação aos bens materiais e do exercício da piedade merecedora do prêmio no

Hades. Alimentar a esperança de que há prêmios e castigos após a morte

presentifica, de alguma forma, o fim da vida, pela esperança nutrida e pelo

caráter moral que lhe é associado47

.

Qual a noção de justiça de que fala o respeitável Céfalo, justiça que

aprendeu e cultivou em sua vida reta? A noção de justiça, para ele,

compreende as relações interpessoais e se traduz por dizer a verdade, não estar

em dívida de sacrifícios para com algum deus ou de dinheiro para algum

homem48

. A partir dessa definição, Sócrates coloca em prática seu método de

investigação através de perguntas e respostas, para esclarecer a definição de

justiça, explorando sua extensão, as contradições ou inconveniências da

aplicação em situação vivida. Não é a resposta correta que Sócrates busca do

interlocutor – nem ela poderia ser avaliada pela metodologia usada -, mas a

aprendizagem da via que poderá vir a proporcionar-lha. 49

Cabe registrar, como fora afirmado, que, por esse método de

investigação, o Livro I se distingue dos outros nove, podendo ser considerado

como obra à parte. Se isto é verdadeiro ou não, não é relevante para o nosso

estudo, pois a compreensão do restante da República depende não só do Livro

I, como de todas as obras que a antecederam e daquelas que a seguiram; por

isso, a República será tratada como um todo.

Voltemos ao elenchos socrático para nos determos nos pontos de

inflexão do movimento do método socrático, em busca da resposta à pergunta

„o que é a justiça?‟. A primeira inflexão ocorre entre a refutação do conceito 47 Céfalo é o exato oposto de Cálicles, no Górgias; de resto a história de Atenas dá toda a razão ao orador, pois

a fortuna da família foi confiscada e o filho Polemarco morto. 48 331a-e. 49 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p.13.

Page 27: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

27

de justiça dado por Céfalo. Nela, Sócrates conclui que a noção de justiça não

se limita ao falar a verdade e devolver o que recebemos, conforme a máxima

do poeta Simonides, citado por Céfalo.

Nessa linha de pensamento, parece razoável a hipótese de os exames

efetivados por meio da metodologia elênctica se dirigirem à avaliação dos

princípios determinantes da ação humana, tal como se manifestam nos

comportamentos relativos ao tipo de atividade exercida por cada um dos

questionados. Por exemplo, saber da natureza da justiça é relevante para os

estadistas, a piedade sê-lo-á para os adivinhos, a coragem para os generais, a

sabedoria para os sofistas, e, no seu todo, a virtude constitui tópico de

interesse para qualquer homem bem nascido que deseje cultivar-se, sobretudo

se aspirar a exercer cargos políticos ou a granjear favores públicos.50

É, portanto, o problema da unidade da virtude que está subjacente nos

diálogos. E não há como entender e enfrentar adequadamente tal questão sem

considerar a teleologia que orienta a pragmática socrática: o princípio da

racionalidade. É por ele que o sentido da vida na cidade pode ser captado,

defendido e redefinido. Essa característica põe o homem racional numa

posição de dupla impotência, pois renuncia a qualquer embate cuja arma não

seja a razão e somente pode usá-la contra quem a aceita e respeita.51

Na República, formular esse critério talvez favoreça a determinar o

frágil equilíbrio que opõe o bem próprio ao alheio, necessário para definir a

justiça, superando a concepção retributiva, rechaçada sucessivas vezes por

Sócrates, porque incapaz de dar conta de si e inepta para cumprir o papel de

unificação da cidade.

50 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p.46. 51 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo I. São Paulo: Loyola. 2008. p.64. Conferir também em J.

Romilly. The Greek sophists in Periclean Athens. Oxford: Clarendon Press, 1998, p.56.

Page 28: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

28

Após o abandono de Céfalo, essa mesma máxima é interpretada pelo

seu filho Polemarco que afirma: “ser justo é dar a cada um o que se lhe

deve”.52

Aplicando o método da refutação a essa segunda resposta, Sócrates

objeta que em alguns casos é recomendável ser injusto e não justo, portanto,

não servindo como definição procurada.

O que ele quer mostrar é que a resposta não é minimamente

esclarecedora enquanto o respondente não manifestar um completo domínio

„do que são o justo e o injusto‟. Isso nota-se bem na segunda inflexão no

diálogo, ao considerar-se, em seguida, uma segunda interpretação da máxima

do poeta Simonides, dada por Polemarco: “o parecer dele é que aos amigos se

deve fazer bem e nunca mal.”53

Continuando na refutação dessa terceira definição, Sócrates substitui o

“dar o bem” por “fazer o bem” e associa este “fazer” ao fazer da arte, para

extrair desse conceito a idéia de bem como própria de toda arte e distinguir o

bem da arte e o bem daquele a quem a arte é aplicada. Em seguida associa a

idéia de bem da arte com o útil. Uma arte é útil quando faz o bem e, inútil

quando não o faz, isto é, quando não está sendo aplicada a algo. Além disso,

ocorre a ambigüidade „ético/prática do fazer bem‟.54

Pergunta Sócrates: “Logo, também é inútil o justo para quem não

estiver em guerra?”55

Com a resposta afirmativa de Polemarco, a segunda

parte da definição (dar o mal ao inimigo) é rejeitada. Quanto à primeira parte

(dar o bem aos amigos) Sócrates se vale do exemplo da arte de lutar, pela qual

o mais destro em dar golpes numa luta, seja ela pugilato ou outra qualquer, o

52 República 331 e. 53 República 332 a. 54 Hípias Menor, 371e – 376c. Aquele que mente voluntariamente é melhor do que aquele que mente

involuntariamente. Por isso, somente o homem de bem pratica voluntariamente o mal. 55 República 332 e.

Page 29: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

29

é, também, em defender-se, para afirmar que o bem fazer a arte pode tanto

fazer bem a outro quanto fazer mal.

De passagem, Sócrates faz dois tipos de crítica, uma a Simonides e

outra a Homero: a Simônides pelo modo enigmático de se expressar, com o

uso de uma linguagem indireta, cujo entendimento exige o auxílio de

intérprete. “Por conseguinte, Simonides falou, ao que parece,

enigmaticamente, à maneira dos poetas, ao dizer o que era justiça...”56

; a

Homero, fonte da sabedoria grega, associou-o a Simonides, colocando-os em

descrédito para falar sobre justiça:

Logo, o homem justo revela-se-nos, ao que parece como uma espécie de ladrão, e isso é

provável que o tenhas aprendido em Homero. Efetivamente, ele tem grande estima pelo avô

materno de Ulisses, Autólico, e afirma que ele excedia todos os homens em roubar e fazer juras.

Parece, pois, que a justiça, segundo tua opinião, segundo a de Homero e a de Simonides, é uma

espécie de arte de furtar, mas para vantagem de amigos e dano aos inimigos.57

Voltando à primeira parte dessa última definição de justiça, em 334e

Sócrates usa a dificuldade em se conhecer a natureza humana para poder

afirmar o que vem a ser um amigo, para além das aparências e, por

conseqüência, definir justiça pelo fazer bem ao amigo. Ainda, Sócrates refuta

a definição de justiça baseada no fazer bem ao amigo, pela dificuldade em

colocá-la em prática quanto a identificar o que é amigo, para além da

aparência.

Na sua última tentativa de refutação, volta à segunda parte da definição

(fazer mal ao inimigo), afirmando que sendo a justiça uma virtude da alma,

fazer mal ao inimigo é agir injustamente, o que não é possível pois a justiça,

como virtude que é, não pode produzir injustiça. Com isso a definição fica

completamente refutada.

56 Idem, 332 c. 57 Idem,, 334 a- b.

Page 30: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

30

Seguindo o movimento do diálogo sobre o conceito de justiça e,

agregando a ele os conceitos de bom e de mau, combinados com a capacidade

de poder reconhecê-los ou de deixar-se enganar pela aparência, decorrem, daí,

combinações que tornam muito problemática a aplicação da justiça como a

“arte de fazer o bem aos amigos e mal aos inimigos” pelo fato de não se ter

certeza de quando é que se pode afirmar que alguém é amigo.

Sócrates argumenta a partir da inadequação de se tratar o homem justo

como alguém que possa fazer mal a alguém, mesmo a um inimigo, porque o

homem justo deveria ser bom, sempre, mesmo diante do homem mau. Aqui,

pode-se dizer, encontra-se a crítica ao conceito de justiça que a cidade de

Atenas imperialista, do séc. V a.C., aplicava àqueles que não se submetiam a

sua vontade, vinculando o comportamento dos que seguem este princípio ao

comportamento de um tirano. Diz-nos Sócrates:

“Mas sabes de quem me parece que é essa sentença que diz que é justo fazer bem aos amigos e mal

aos inimigos? ... penso que é de Periandro, de Perdicas ou de Xerxes, de Ismênias de Tebas ou de qualquer

outro homem rico, que se tinha na conta de poderoso.”58

Se a justiça não pode ser definida do modo dos poetas, dado o tom

inconsistente da definição, ainda que sejam mestres da cultura59. Por

conseqüência, não se sabe o que é justiça, então não se pode ser justo, segundo

Sócrates. Por outro lado, a prática exige que se dê um fim à deliberação.

Vimos que a ética é necessária para duas coisas: distinguir o bem do mal e

impedir a inconsistência da definição retributiva da justiça.

É nessa altura que, na seqüência, Platão introduz no diálogo o sofista

Trasímaco. Caracterizando o seu jeito de ser e de atuar, com isso estabelece

uma mudança brusca na discussão em procura de uma definição mais

58 República 336 a. Há estreita relação com a crítica do tirano no Górgias. Ver diálogo dos Mélios, em

Tucídides, Hist.,VI. 59 Registre-se, nessa passagem, a subjacente crítica da tradição.

Page 31: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

31

adequada de justiça. Trasímaco critica o modo socrático de investigação,

considerando-o inadequado para a tomada de decisões no campo do agir e

propõe orientar-se segundo a regra: “que a justiça não é outra coisa senão a

conveniência do mais forte”60

.

Sócrates interpela-o sobre o sentido dessa afirmação, perguntando-lhe a

quem ele se refere como forte. Trasímaco diz que pode se entender como forte

aquele que detém o poder de um governo e que, portanto, pode ditar as leis

que lhe convém. A identificação entre as leis, o poder e o útil demonstra a

dependência da justiça não da ética, mas da realidade política.61

Com a entrada do sofista Trasímaco no diálogo, é retomada a questão da

justiça, que ficara inconclusa, embora Sócrates tenha afirmado que a

“definição da justiça não serve”62

. O tom do diálogo se altera de acordo com a

forte convicção de Trasímaco, deflagrando o seu acentuado viés pragmático e

revelando a sua irritação com a interferência da ética no domínio da política.

Sócrates põe-se a investigar com o sofista sobre o sentido prático dessa

definição, tendo em vista a orientação para o agir. Os exemplos do que o

sofista entendia por forte foram tirados da experiência sobre diferentes tipos

de governos. O mais forte é sempre o governante, seja ele tirano, aristocrata

ou democrata, pois tem poder sobre os outros, que não tem poder sobre ele.

Justo é, portanto, cumprir aquilo que a lei determina. Aquele que obedece à lei

o faz por causa da justiça, e esta convém ao governante. Tal como cumpri-la

60 República 338 c. 61 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo I. p.81. Na mesma direção K. Lycos. Plato on Justice and

Power. London: Macmillan, 1987, p13. 62 República 336 a.

Page 32: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

32

convém ao governado. Aqui, justiça se confunde com legalidade, bom e justo

é o que a lei estipula como tal, segundo a compreensão sofista.63

1.2. Algumas interpretações contemporâneas

Ainda com respeito à recepção das teses de Trasímaco e de nosso

específico debate, vamos considerar as afirmações de R. Dahl, que é um

politólogo com marcados interesses humanistas e formação tanto em ciência

política como em filosofia e no pensamento clássico. Seguiremos com a

singular visão de L. Strauss, para terminar com as valorações de H. Pitkin. São

três abordagens entre um conjunto de autores que por diversos pontos de vista

tentaram compreender as idéias de Trasímaco.64

Dahl sustenta que na polêmica entre Sócrates e Trasímaco se impõe

uma distinção das respectivas posições assumidas por eles com relação à

atitude e às funções do governante. Enquanto Sócrates aborda a questão por

um viés normativo, Trasímaco a maneja sob o prisma empírico. Sugere, ainda,

Dahl que Trasímaco poderia levantar aquelas idéias para defender as

instituições democráticas atenienses, como forma de garantir a prevalência do

mais forte.65

Os tópicos que Dahl utiliza, o normativo e o empírico, podem

considerar-se fundamentais para entender que tanto Trasímaco como Sócrates

63 República 338 e – 339 c. 64 Escolhemos esses autores porque enfrentam especificamente a temática que estamos abordando. O

interessante é que abordam a questão de perspectivas distintas, embora complementares. Servem como

exemplos para mostrar o „estado do problema‟ por meio de diferentes níveis de aproximação. 65 Determinada assim a questão, o campo teórico de R. A. Dahl mostra uma temática que necessariamente

deve restringir a polêmica entre Sócrates e Trasímaco acerca da justiça, limitando-se aos aspectos vinculados

exclusivamente com o interesse ou a indiferença para lograr influências sobre o governo. Entendemos que

isso pode comprometer a recuperação da complexa trama inerente ao debate. Consultamos, para tanto, a obra

Modern Political Analysis. New Jersy: Englewood Cliffs, 1963, pp. 121-148.

Page 33: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

33

insistem, ao fundar suas posições, na correlatividade dos deveres inerentes às

afirmações que postulam e que o filósofo sempre resulta o mais inclinado à

confirmação ocasional por meio da recorrente via do exemplo e da

comparação tópica, que irrita o sofista.66

Na interpretação de Dahl, Trasímaco havia representado um primitivo

intento grego de buscar explicações naturalistas à conduta política, tentando

explicar como, embora cada governante proclamasse que perseguia a justiça,

cada um impunha idéias diferentes dessa mesma justiça em seus Estados. A

justificativa óbvia desse paradoxo era que todo governante desejava

simplesmente seu próprio benefício. A justiça seria uma racionalização

ideológica no interesse dos governantes.67

Um problema observado por Dahl diz respeito à complexidade da noção

de „interesse próprio‟, que varia muitíssimo e nos obriga a considerar tanto os

motivos próprios como os do entorno, e não apenas a persecução racional,

senão também os motivos inconscientes que a análise deve rastrear. Nessa

direção, junto à abordagem normativa considera quatro tendências na

abordagem empírica: o naturalismo, o intuicionismo, o subjetivismo e o

semântico.68

Dahl relativiza a importância dessas abordagens, embora admita que,

em conformidade com a análise semântica, pode se dissolver o marco

anteriormente proposto, no qual o normativo se opõe ao fático, e a

controvérsia se manifestaria sob um novo traço.

66 Dahl se refere à passagem 331e – 336 a. 67 R. A. Dahl. Modern Political Analysis. pp.124-125. 68 R. A. Dahl. Modern Political Analysis. pp.144-148. Não é nosso objetivo aprofundar cada uma dessas

vertentes, mas apenas anotar o pensamento do autor.

Page 34: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

34

Essa posição de Dahl é criticada por L. Strauss, que revitaliza a

discussão mergulhando francamente nas grandes controvérsias da cultura

clássica antiga. No que pertine ao nosso estudo sobre o direito e a justiça do

mais forte em Trasímaco, seu pensamento tornou possível um giro orientado

para recuperação do sofista, propondo uma mais sensata e realista articulação

de suas idéias sobre a ética, o direito e a teoria da justiça.69

A importância de Strauss radica, por um lado, em sua visão de conjunto

em torno das origens e da formação do direito natural clássico; por outro, em

sua capacidade para delimitar contextualmente o discurso do sofista, por meio

de uma minuciosa leitura da República.

Avançando até o centro da polêmica fixada entre Sócrates e Trasímaco,

Strauss distingue entre um convencionalismo filosófico e um

convencionalismo vulgar.70 Sustenta que o último se mostra sumamente claro

nos discursos de Trasímaco na República. Sem embargo, nunca penetra de

todo no que caracteriza como a via de Trasímaco, apenas reconhece que há

uma justa indagação moral no sofista, no seio de uma sociedade onde o imoral

se erigiu como norma de comportamento.71

Na sua interpretação, Strauss considera que o sofista imitaria a cidade e

julgaria como personagem representativo ou paradigmático da mesma. Por

outro lado, a cólera do sofista estaria a serviço de sua arte, que é a arte

suprema da cidade real, onde os mestres da retórica e da arte da persuasão

destacam tanto o nível prático dos tratos e intercâmbios, como o nível político.

Desta relação se seguiria um vínculo profundo entre a idéia de justiça como

69 A obra consultada foi Natural Right and History. Chicago: University of Chicago Press, 1953. 70 Para o argumento convencionalista, o direito é produto de um acordo, uma convenção, porque esta não é

mais que um instrumento essencial da cidade, cuja origem é convencional. Os homens podem entender a

justiça do mesmo modo, mas não podem senão mostrar-se em conflito com as necessidades naturais. A

própria diversidade de concepções da justiça confirmaria seu caráter convencional. 71 Strauss, op. Cit. p.114.

Page 35: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

35

interesse do mais forte e a técnica que se deve possuir para considerar o

governante como tal.72 Por essa razão, o governante não pode falhar.

A técnica se equipararia à lei, e esta não se diferenciaria da justiça, de

tal forma que sem dificuldade se igualaria o pensamento do sofista com as

posições do positivismo jurídico, da lei positiva. Na conclusão de Strauss, a

diferença entre Sócrates e Trasímaco seria a seguinte: para o sofista, a justiça

seria um mal não necessário, enquanto para Sócrates seria um mal necessário.

Nesse caminho, aparece agora a contribuição de Pitkin, a qual se

estende no mesmo plano teorético que vimos examinando embora com uma

tendência e uma metodologia filosófica distinta da hermenêutica straussiana.

Embasada no seu conhecimento de filosofia da linguagem, propõe-se uma

ampla reformulação dos assuntos vinculados à linguagem moral e aos

problemas da justiça.73

Nessa linha, aborda Pitkin como primeiro problema substantivo o

complexo quadro que oferece o debate sobre a justiça no primeiro livro da

República. O núcleo da questão, na visão da autora, é fornecido pelas

respostas de Trasímaco e Sócrates. Trata-se de respostas tão antagônicas que

se poderia imaginar, como o faz Pitkin, que a rigor eles não discordam em

absoluto, pois se orientam para diferentes questões teóricas e por tal motivo

respondem a diferentes perguntas sem que seus argumentos cheguem a se

confrontar realmente.

De acordo com sua interpretação, a autora entende que Sócrates

contesta recorrendo ao significado da palavra „justiça‟74. Desse modo, o sofista

aponta para aquilo que o povo considera que sejam coisas ou tratos de justiça.

72 L. Strauss. Persecution and the art of writting. Illinois: Glencoe, 1952, capítulo 1. 73 H. F. Pitkin. Wittgenstein and Justice, Berkeley, 1972, p.249. 74 Estudo importante sobre a simbologia da justiça encontra-se na obra de Rudolf Hirzel, Themis, Dike und

Verwandtes. Leipzig: Verlag Von S. Hirzel, 1907, p.32.

Page 36: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

36

Nesse plano, Pitkin considera que um ou outro, ou ambos, podem estar

equivocados. Ainda poderia ocorrer ambos estarem certos.

A autora afirma que os termos da disputa se assemelham bastante ao

conflito que, na jurisprudência teórica, enfrenta o idealismo com o realismo

legal. O idealista legal, que coincidiria com Sócrates, sustentaria a idéia de

que a lei seria apenas um guia para tomar decisões corretas e apropriadas. Por

sua parte, o realista, que coincidiria com Trasímaco, se limitaria a registrar

que lei não seria mais que o resultado de um pronunciamento do magistrado

totalmente desvinculada de sua correção ou incorreção.75

Fazendo um balanço de sua reflexão teórica, a autora compartilha as

seguintes dúvidas: em que discordam os antagonistas? São disputas acerca das

palavras ou dos fatos? Seria possível unificar suas posturas para acolher

simultaneamente as verdades de cada um?

A respeito dos problemas de significado, assinala a autora que os

interlocutores não estão propondo duas definições competitivas de justiça,

porque a palavra „justiça‟ não significa o interesse do mais forte, nem

tampouco a conduta apropriada. A não equivalência lexical poderia ser

abordada sob a distinção entre denotação e conotação. Para Pitkin, Sócrates

parece mais interessado na conotação, enquanto o sofista se mostraria mais

preocupado com a denotação.76

A dificuldade teórica obriga a autora a buscar um novo marco de

resolução que satisfaça as exigências de sua trama. A alternativa de análise se

orienta então para um dispositivo mais amplo que considere a diferente

possibilidade de situar cada um dos antagonistas, com relação aos padrões

vigentes na sociedade em que vivem.

75 H. F. Pitkin. Wittgenstein and Justice, cit., pp.250-251. 76 Pitkin, cit., pp.253-254. A autora considera o problema seguindo a orientação de Wittgenstein, conforme a

qual o significado de uma palavra, em geral, é dado pelo seu uso e obedece a diversos jogos de linguagem.

Page 37: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

37

Nesse sentido, Sócrates apareceria dentro das premissas e dos

pressupostos tradicionais, aceitando-os e afirmando-os. Trasímaco, pelo

contrário, se colocaria deliberadamente em uma perspectiva externa a sua

sociedade e sua cultura, deixando de lado a falsa consciência de seus

pressupostos e valores, como se observasse à distância o que os nativos da

mesma fazem de fato.77

Avançando na discussão, Pitkin aduz que Sócrates argumentava a partir

do funcionamento da palavra, extraindo uma definição do justo que pudesse

oferecer ao falante uma garantia de veracidade susceptível de responder aos

requisitos de sua própria demanda.

Trasímaco, por sua vez, se limitaria ao registro das funções de etiqueta,

pondo a palavra „justiça‟ entre aspas, como querendo dizer a assim chamada

justiça, que não coincide em seus registros com a proposta socrática, mas com

o fenômeno que ele entende e descreve como o interesse do mais forte.78

Dirigindo-se para a conclusão da sua interpretação, a autora assevera

que enquanto Sócrates opta pelo significado do termo e contra as normas e

instituições existentes, Trasímaco se inclina pela Realpolitik dessas mesmas

instituições e contra o significado tradicional do termo. Por outro lado, ambos

impugnam os padrões vigentes, ainda que com alcances diferentes.79

Com suas colocações, para além das diferenças de enfoque ou das

críticas de detalhe, os estudos de Pitkin, Dahl e Strauss se inscrevem no centro

da recuperação filosófica do sofista ao tempo que fornecem uma sólida base

77 Pitkin, cit., p.261. Apesar de bastante perspicaz, parece-nos que a observação da autora é equivocada, pois é

justamente o oposto que se pode deduzir do diálogo: Trasímaco representaria as premissas da cidade,

enquanto Sócrates se posiciona contra isso. Todavia, quando avança na discussão, a autora parece corrigir

esse posicionamento. 78 Pitkin, cit., pp.262-263. 79 Pitkin, cit., p.277.

Page 38: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

38

para a construção de uma genuína critica do direito e da justiça na

contemporaneidade.80

1.3. Absorção pela moderna teoria do direito

A essência do embate entre Sócrates e Trasímaco não ficou apenas

como um legado à moderna teoria do direito, senão também se instituiu como

baliza fundamental para construção dos postulados do que se convencionou

nomear Direito Dogmático Moderno, ou simplesmente Direito Positivo.81

É possível identificar alguns fatores sociais mais importantes que devem

estar presentes para que uma sociedade seja chamada de juridicamente

moderna. Um desses fatores é a pretensão do monopólio da jurisdição por

parte do Estado, ou seja, a exclusividade na produção de normas jurídicas, na

delimitação do que é juridicamente relevante. 82

Como corolário desse primeiro fator, surge a prevalência das chamadas

fontes estatais, ou seja, o crescimento do prestígio da lei e da jurisprudência

(as decisões dos tribunais) na resolução dos problemas sociais, em detrimento

do costume. Aqui já fica evidenciado a subsunção do direito e da justiça à lei,

que aparece como vetor de legitimidade.83

80 Sem desprezar, obviamente, outras colaborações como, por exemplo, A. Ophir. Plato’s invisible cities.

Discourse and Power in the Republic. London: Routledge, 1991. M. Untersteiner. Sofisti. Testimonianze e

frammenti. Firenze: La nuova Itália, 1967. B. Smith. Thrasymachus a Pioneer of speech, Quarterly journal of

speech, 1927, pp.278 e seguintes. E. H. Harrison. Plato’s manipulation of thrasymachus, Phoenix, 21, 1967,

pp.27 e seguintes. F. M. Conford. The Republic of Plato. London: Clarendon Press, 1961, p.55. V. Beonio-

brocchieri. Saggezza di Trasimaco. Verona: Mondadori, 1943, p.47. C. F. Hournai. Thrasymachus definition

of justice in Plato’s Republic, Phronesis, 7, 1962. 81 Para este tópico, debruço-me em especial sobre as seguintes obras: Ética e Retórica: para uma teoria da

dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009. Do Professor João Maurício Adeodato; e Entre Têmis e

Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Do Professor Marcelo Neves. Anote-se que

ambos os autores discutem a positividade do direito a partir do referencial de Niklas Luhmann. 82 Essa é a razão por que se chama o direito de „dogmático‟, pois sem fazer menção à norma (a lei) não há

discussão jurídica, não há falar em justiça. Isso é expresso por duas características: a inegabilidade dos pontos

de partida e a obrigatoriedade de decidir. Conforme João Maurício Adeodato, cit., pp.177-179. 83 Nesse sentido, ver Marcelo Neves, op. cit., p.97.

Page 39: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

39

Um último e significativo fator a engendrar a modernidade jurídica é a

tentativa de emancipação do direito em face das demais ordens normativas

(moral, religião, etiqueta etc.). Essa emancipação (que também será chamada

de autoreferência) significa que para definir o que é juridicamente aceitável

não se recorre a nenhum outro subsistema (econômico, religioso, etc.).84 Eis o

cerne da doutrina jurídica positivista: um direito mutável que advoga a sua

independência de uma idéia material de justiça.85

Na formulação de Adeodato, aí está a grande contribuição do

positivismo jurídico: como não há uma justiça evidente em si mesma, não há

um conteúdo do justo previamente fixado, o legislador é que tem o poder de

dizer, de instituir, de colocar o direito, e também de modificá-lo, de substituí-

lo.86

Ao lado dessa suposta contribuição, o Direito Positivo vê-se obrigado a

enfrentar o problema da fundamentação das suas decisões: o que envolve a

questão da sua legitimidade, isto é, as razões pelas quais as leis devem ser

respeitadas, observadas.87

O sistema jurídico-dogmático da modernidade é constrangido a isso

justamente em decorrência de sua relativa emancipação dos demais

subsistemas normativos sociais, afastando o problema dos conteúdos éticos

específicos. Ao perder suas bases éticas comuns em um ambiente social

84 João Maurício Adeodato. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva,

2009, p.171. 85 Parece-nos que isso está presente na discussão sobre „a justiça como conveniência do mais forte‟, na medida

em que o justo é mutável, moldável, adaptável ao interesse do governante. Além disso, é uma defesa de que a

política não deve ser determinada pela ética. 86 Adeodato, cit., p.182. Nesse sentido, a modernização pode ser entendida, sem prejuízo de outros

paradigmas, como uma crescente diferenciação funcional, aliada à complexidade social. 87 É justamente a preocupação que norteia os argumentos de Sócrates, tentando mostrar que a justiça seria um

bem alheio.

Page 40: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

40

bastante diferenciado, o direito se vê sobrecarregado com questões de

legitimação e francamente acoplado à noção de justificação racional.88

Interessado em esboçar os elementos de uma teoria dos fundamentos

normativos e das condições empíricas do Estado Democrático de Direito na

sociedade supercomplexa da modernidade, Marcelo Neves enfrenta os

problemas trazidos pela positivação do direito a partir e além das divergências

e complementaridades existentes entre o paradigma sistêmico luhmanniano e a

teoria habermasiana do discurso.89

Analisando a concepção sistêmica, o autor entende que a noção de

positividade do direito moderno é indissociável do modelo de evolução social

como ampliação da complexidade social, que conduz, na sociedade moderna,

à diferenciação funcional. O fato de que as normas sejam proclamadas por

meio de processo legislativo não é suficiente para que se caracterize uma

ordem jurídica como positiva. A legislação já estava presente nas culturas

antigas. No entanto, a vigência do direito baseava-se em representações

sagradas ou tradições, vinculando-se às estruturas sedimentadas como

verdadeiras no passado.

Somente quando o direito passa a ser regularmente posto e alterável por

decisão é que se pode começar a falar de positividade. A escrita deixa de ser

88 Adeodato, cit., pp. 211-212. Tal estrutura de poder é que possibilita ao direito construir seus esquemas de

decisão, consubstanciados, por exemplo, nas chamadas fontes formais do direito, a fim de poder manejar

operacionalmente a realidade, escolhendo certas alternativas de conduta em detrimento de outras. Isso

igualmente reforçaria o caráter retórico do direito positivo, que entre os constrangimentos a que está

submetido sobreleva-se a necessidade de fundamentar. João Maurício trabalha especificamente a questão nos

capítulos décimo quarto e décimo sexto do seu livro Ética e Retórica. 89 Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Nas palavras do próprio autor:

„a metáfora utilizada no título, a relação entre Têmis e Leviatã, serve como guia da discussão em vários

níveis. O problema do Estado Democrático de Direito é exatamente o de como conciliar poder eficiente com

direito legitimador. Na tradição ocidental, Leviatã apresenta-se como símbolo do poder expansivo do Estado.

Têmis, antes de tudo, representa a justiça abstrata. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se

precisamente por ser uma tentativa de construir uma relação sólida e fecunda entre Têmis e Leviatã –

portanto, de superar a contradição tradicional entre justiça divina e poder terreno; uma tentativa no sentido de

que a justiça deveria perder sua dimensão transcendente e o poder não mais ser considerado mera facticidade‟,

pp. XVIII e XIX da Introdução.

Page 41: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

41

apenas um meio de difusão e sistematização de normas e princípios jurídicos

preestabelecidos, e torna-se condição da própria vigência do direito.90 Percebe-

se, então, que apenas a partir da positivação do direito na sociedade moderna,

diferenciam-se plenamente moralidade, eticidade e juridicidade. As normas

jurídicas já não se fundamentam diretamente em princípios de natureza

metajurídica, mas sim em princípios especificamente jurídicos.91

Acompanhando, ainda, os argumentos de Marcelo Neves, conclui-se

que a positividade significa que a decisão, mesmo se vier a alterar

radicalmente o direito, receberá o seu significado normativo do próprio

sistema jurídico. Dito de outra forma, o direito não fica mais

sobredeterminado pela ética.92

Para finalizar essa apresentação da recepção dos argumentos de

Trasímaco pela moderna teoria do direito, não podemos olvidar o contributo

de Norberto Bobbio, que elaborou textos de teoria geral do direito de

orientação normativista.93

Na perspectiva de Bobbio, a teoria do direito positivo só considera justo

o que é comandado, não existe outro critério do justo e do injusto fora da lei

positiva, vale dizer, fora do comando do soberano. Além disso, não existe um

justo por natureza, mas um justo por convenção. A conseqüência é a redução

da justiça à força. Se não existe outro critério do justo e do injusto a não ser o

90 Marcelo Neves, cit., p.24. 91 Nesse sentido, segundo o autor, a positivação significa que o direito é posto e revisável permanentemente

por decisão conforme exigências do poder estatal. Além da positividade, do legalismo e da formalidade,

aponta-lhe a necessidade de justificação. Ao perder seus fundamentos sacros, o direito assume o papel de

instrumento do poder, mas ainda mantém a necessidade de fundamentação em termos de uma racionalidade

procedimental, que implica uma criticabilidade dos princípios jurídicos à luz de uma racionalidade discursiva,

envolvendo questões pragmáticas, éticas e políticas. Aqui a semelhança com Trasímaco da primeira tese. 92 Marcelo Neves, cit., p.80. Nessa linha, a autonomia do direito não é mais do que operar conforme o próprio

código. Portanto, a justiça só pode ser considerada então a partir do interior do sistema jurídico, seja como

adequada complexidade, seja como consistência das decisões. Eis a parecença com Trasímaco da primeira

tese. 93 As obras utilizadas por nós foram: Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008; e O

Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995.

Page 42: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

42

comando do soberano, é preciso resignar-se a aceitar como justo o que agrada

ao mais forte.94

Nesse raciocínio, quando surge o Estado nasce a justiça, mas nasce

simultaneamente o direito positivo, de modo que onde não há direito

tampouco há justiça, e onde há justiça significa que há um sistema constituído

de direito positivo.95

Pensamos que já esteja demonstrada à saciedade a possibilidade de se

coadunar os argumentos apresentados por Trasímaco com as concepções

dominantes do positivismo jurídico contemporâneo. Demonstra-se,

igualmente, um conjunto de interpretações perfeitamente viáveis sobre o

debate encartado no livro I da República.96

94 Bobbio. Teoria Geral do Direito. p.41. Nessa seção, Bobbio faz referência expressa à doutrina sustentada

por Trasímaco no livro I da República e àquela defendida por Cálicles no Górgias. 95 Bobbio assume claramente seus guias teóricos: Hans Kelsen e Thomas Hobbes. Ao lado do poder absoluto,

expresso pelo monopólio da jurisdição, existem ainda os seguintes elementos do positivismo jurídico:

legalidade, segurança jurídica, relativização dos valores, verossimilhança e racionalidade discursiva. 96 Até porque os diálogos „não têm um modo correto de ser lidos, podendo os debates neles relatados serem

estudados no contexto histórico e filosófico e na língua em que foram produzidos assim como nos dos seus

leitores. No primeiro caso, dever-se-á prestar atenção aos seus objetivos específicos e à inovação que

constituem. No segundo, cada um é livre para encontrar neles as sementes das quais Sócrates espera que

possam brotar sempre „novos frutos‟ (Fedro 276d)‟. José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo I. São

Paulo, Loyola, 2008, p.39.

Page 43: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

43

Capítulo II. Physis e Nomos: paradigmas de governabilidade da

cidade

2.1. Concepção ética subjacente à controvérsia

A substância do pensamento dos gregos sobre eticidade consistia,

inicialmente, na idéia de que a vida boa não se fundamentava apenas na

observância das leis, mas fundamentalmente na aquisição e exercício

inteligente das virtudes, ou seja, daquelas disposições para agir que merecem

elogio e realizam nossas melhores capacidades.97

De uma maneira geral, a ética é considerada como uma decisão sobre a

conduta do cidadão politicamente inserido. Esta posição autonômica apóia-se

em duas fontes de valor: a lei e a natureza. A questão é de relevância singular,

e decisiva na reflexão do mundo antigo, a tal ponto que uma história das

teorias éticas deveria acabar coincidindo amplamente com uma história geral

da filosofia antiga. Isso também implica na inseparabilidade entre o estudo da

natureza e a análise dos costumes, das usanças sociais.98

As noções de virtude, cidade, lei, alma, destino, paixão e felicidade, de

que o pensamento ético se alimentou, nascem em um domínio extrafilosófico,

no terreno da experiência religiosa, política e social, e encontram suas

primeiras expressões culturais nas linguagens da poesia, da tragédia, da

comédia e da historiografia. Portanto, uma história das teorias éticas deveria

integrar-se em uma historia da idéias morais e de seu contexto antropológico

geral.

97 Conforme Adkins, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek Values. London: Oxford

University Press, 1960, p.2. 98 É o posicionamento de Mario Vegetti. La ética de los antigos. Madrid: Síntesis, 2005, p.22.

Page 44: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

44

Pensar em uma reflexão histórica da ética antiga, que não ignore estas

dificuldades e que, por outro lado, não resulte superior aos limites desse nosso

trabalho, significa pensar antes de tudo em seleções e preferências de nossa

parte. Trata-se, pois, de apresentar os momentos e cenários de encontro dos

problemas morais e da reflexão ética, cujo significado parece decisivo tanto

para a tradição antiga, e surpreendentemente para a contemporaneidade.99

A moral dos gregos, como qualquer outra, é tão antiga como sua

sociedade e, portanto, como seu primeiro documento poético; a ética grega, ao

contrário, inicia-se com Aristóteles, que a elabora imediatamente a partir da

indagação socrático-platônica.100

Se a questão dos inícios pode resolver-se em termos cronológicos

bastante precisos, existem aspectos de larga duração na reflexão moral e na

ética antiga que não variam substancialmente no curso de sua história através

dos séculos, e que formam um marco estável para a compreensão desta

história. Isso contribui para a compreensão do problema da oposição

nomos/physis.101

O primeiro desses aspectos consiste no papel central que os valores e as

normas morais desempenham tanto no governo da vida individual como nas

dinâmicas de integração e consenso social. A sociedade grega não dispunha de

fortes aparatos coercitivos de tipo político como o Estado e a magistratura, e

99 Adkins, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek Values. London: Oxford University Press,

1960, p.3. 100 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid, Síntesis, 2005, p.29. Importante esclarecer, de logo, que tomamos

os étimos „ética‟ e „moral‟ por, respectivamente, reflexão teórica sobre a conduta e conjunto de crenças, de

usos e costumes de uma sociedade. Para aprofundamentos, recomendam-se leituras de Pamela M. Huby.

Greek Ethics. London/Melbourne/Toronto: Macmillan, 1967; e K. J. Dover. Greek Popular Morality: in the

time of Plato and Aristotle. Oxford: Blackwell, 1974. 101 Gigante, M. Nomos Basileus. Napoli, 1956, p.11.

Page 45: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

45

menos ainda de aparatos de condicionamento ideológico e educativo, como

uma escola dirigida pelo Estado ou uma Igreja unificada.102

Nem sequer existiam textos dotados de um valor normativo universal,

como um corpo legislativo unificado ou um livro sagrado que pudesse ser

interpretado como uma escritura impositiva, embora a historiografia registre

algumas leis esparsas.103 Havia uma série de prescrições para o que fazer e o

que não fazer em vários contextos, mas essas prescrições nem sempre eram

compatíveis entre si e não eram deriváveis de alguns princípios ou ideais

básicos, carecendo, portanto, de sistematização.104

Esta carência era preenchida continuamente pela ação de agentes

morais, de alguma forma espontânea, como as dinâmicas de autoformação do

corpo social, as correntes de pensamento religioso, as mensagens sapienciais

e, mais tarde, o trabalho das escolas filosóficas e o intercâmbio político, os

festivais, concursos, exibições e teatro.105

A espontaneidade social e cultural dos processos de formação e

subjetivação moral do homem antigo deixa abertos espaços de incerteza,

conflitividade, de eleição e liberdade, desconhecidos em outros sistemas

sociais. Precisamente porque suprem esta ausência de regras coercitivas, a

moral e a ética antiga assumem um papel central baseado na pressão que

exercem dentro do âmbito da política, do governo da vida e da integração

social, exigindo um pensamento mais discursivo, mais argumentativamente

articulado, mais exposto à refutação.106

102 Burkert, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p.22. 103 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid, Síntesis, 2005, p.30. 104 K. J. Dover. Greek Popular Morality: in the time of Plato and Aristotle. Oxford: Blackwell, 1974, p.66. 105Adkins, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek Values. London: Oxford University Press,

1960, p.8. 106Vegetti. La ética de los antigos. Madrid, Síntesis, 2005, p.31. Também nesse sentido Havelock, E. A,

Cultura orale e civiltá della scrittura da Omero a Platone, Roma-Bari, 1983, p.14. Como também Vernant,

Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Lisboa: teorema, 1987, p.65.

Page 46: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

46

Apesar da necessidade de normas e valores interiorizados e socialmente

compartidos, nas culturas antigas o sujeito da ação moral, o destinatário do

discurso ético, nunca foi o homem em um sentido universal. Sempre fora

selecionado a partir de procedimentos de exclusão baseados tanto no

engajamento a determinado grupo social, como em importantes aspectos da

personalidade individual. O grupo dos bons (kaloi, agathoi), como quer que se

designe, tem enquanto tal direito ao poder, poder que pode considerar-se como

a recompensa que corresponde à virtude.107

A experiência política do século V redefinirá a linha de exclusões. A

cidade se compõe de um grupo mais ou menos homogêneo de iguais, para os

quais valem normas e valores comuns de conduta. Mas, além dessa linha, resta

a esfera dos súditos, aos quais não se exige outra virtude senão a submissão.108

Platão tentará racionalizar essas primeiras linhas de exclusão sociais

introduzindo outras que permanecem fortemente arraigadas na tradição da

ética antiga. Com Platão ficará demonstrado que nem todos os homens podem

ser sujeitos da mesma virtude, reconfigurando as relações do poder. 109É uma

posição aristocrática, fundamentada na seleção intelectual e moral, realizada

pela filosofia.110

No entanto, nos seus diálogos, a ética experimentou as exigências da

universalização da subjetividade moral, do valor e da norma, mas sempre

superando a dificuldade de construir um projeto valorativo e equalizador que

107 Finley, Moses I. Política no Mundo Antigo. Lisboa: edições 70, 1983, p.12. Nessa direção, veja-se Vernant.

Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2001. 108 Consoante José Gabriel Trindade Santos, „A questão consistirá em compreender o tipo de relação que se

desenvolve na cidade. Já se viu por que os escravos se acham necessariamente afastados dela. Mas a relação

que mantêm com os senhores serve de paradigma, visto implicar uma analogia pelo fato de em ambos os

casos haver exercício de poder. A diferença é que, quando o poder é sobre escravos, se fala de dominação,

quando sobre homens livres, de governo.‟ A cidadania: resumo de leitura. Archai, 2008, p2. 109 Santos, José Gabriel Trindade. A cidadania: resumo de leitura. Archai, 2008, p.2. 110 Goldschmidt, Victor. A religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963, p.34.

Page 47: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

47

contemplasse a todos os homens, que transformasse a cidade e permitisse a

integração recíproca de seus membros.111

Para se alcançar essa integração recíproca dos cidadãos, Platão concebe

o ideal da eudaimonia, que se coloca para a ética antiga como a finalidade, a

motivação, a satisfação pela conformidade à promessa da ação moral e da boa

vida, no coração da discussão aparência/realidade. Estritamente unido ao

problema da felicidade está o da virtude, instrumento de conjugação entre

eudaimonia e moralidade.112

Uma reflexão histórica e cultural sobre a moral antiga não pode situar

sua origem em outro local que não seja a Ilíada. Evidentemente, a Ilíada

representa para nós o início, apesar de supor o conjunto de textos mais antigos

que a tradição grega nos legou.113

Não se trata de um texto intencionalmente problemático: os problemas e

a crise parecem emergir da lógica interna do universo poético, como corolário

das tensões das suas personagens no seu contexto ambíguo, dramático e

polissêmico.

Nessa conjuntura, marcada pela ausência de uma burocracia eficiente,

as normas de conduta estão garantidas por meio da representação poética de

figuras perfeitas e exemplares, como regras vivas e encarnadas a servirem de

inspiração a toda comunidade.114

111 Conforme w. Jaeger. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.273. 112 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid: Síntesis, 2005, p.37. Também se colhe argumentos

semelhantes em Detienne, Marcel. L’invention de la mythologie. Paris: Gallimard, 1981, p.22 ; e Dodds, E.

R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988, p.16. Platão, República, livro IV. 113 Santos, J. G. Trindade. Deuses e Heróis: há uma ética na Ilíada?. In: O teatro da morte, da humilhação e da

dor: análise e tradução do canto XXII da Ilíada, de Homero. João Pessoa, Ed. UFPB, 2007. pp.05-14. 114 Como afirma A. Pinto de Carvalho: „se Homero não dá conselhos, nem, como Hesíodo, se preocupa com

intuitos didáticos, no entanto, na trama de seus poemas, destaca-se, aqui e ali, uma ou outra reflexão que nos

permite reconstituir, através da ação heróica, a concepção de um ideal moral.‟ Aspectos da Moral Homérica e

Hesiódica (kalokagathía – Arete – hybris). Revista de História, n.25, 1956, pp.49-57, São Paulo. Registra

ainda que „vamos encontrar duas concepções básicas sobre o valor moral: a areté homérica como uma

Page 48: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

48

O herói, na „sociedade homérica‟, é o líder de uma linhagem que detém

a soberania sobre uma comunidade humana e sobre seu território. Essa

soberania não está sujeita a nenhum tipo de controle institucional. A

legitimação da soberania está na capacidade do herói para levar a cabo seu

específico dever social, que é, em primeiro lugar, a defesa da comunidade e,

em segundo lugar, o esforço por defender seu próprio status. Disso dependerá

o consenso coletivo e o respeito, que são os fundamentos para uma soberania

de legitimidade institucional.115

O conjunto de serviços excelentes de que é capaz o herói constitui sua

aretê, sua virtude. Em Homero, a virtude se desprende essencialmente do

combate guerreiro, da capacidade para fazer prevalecer a própria força sobre

inimigos e rivais. Em tempo de guerra, a virtude é aproximada da violência.116

Na paz, da astúcia e habilidade.

O reconhecimento social outorgado à virtude, essencial para a

sobrevivência e legitimação da condição heróica, toma duas formas

correlacionadas: a fama (kléos) e a honra (timê).

No âmbito da interação social, a perda da fama dará lugar a duas figuras

que prejudicam irremediavelmente a condição heróica: a reprovação ou

desprezo social e a conseqüente vergonha. Ambas expressam a

vulnerabilidade radical do herói em relação ao juízo social, única fonte da sua

legitimação. A vergonha confirma a perda de seu particular direito à

soberania.117

qualidade de classe, qualidade inata dos indivíduos de certo grupo social ao lado da areté hesiódica

considerada como produto de um esforço individual. 115 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid, Síntesis, 2005, p.43. 116Adkins, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek Values. London: Oxford University Press,

1960, p.31. 117 No dizer de Gilda Naécia Maciel de Barros: „no arrebol da idade heróica, Hesíodo compõe um poema – os

Erga- onde, em parêntese à justiça, faz sérias advertências sobre os perigos da hýbris e suas conseqüências

Page 49: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

49

Tudo isso colabora para a reflexão sobre a formação da polis como

estrutura de convivência e colaboração político-militar. Trata-se, todavia, de

uma polis impossível porque na sociedade homérica não existem estruturas de

organização do poder, nem formas de mediação político-legal, nem os

pressupostos de uma concepção moral que permita uma colaboração baseada

em valores comuns, que exigiria uma forma unificada de poder.118

Nessa sociedade homérica, o nomos se resumia e identificava à physis

do herói e aos imperativos sociais que a própria posição heróica requer

enquanto tal. Nesse sentido, todas as ações que se levam a cabo na Ilíada

seriam consideradas naturais e, por isso, irrepreensíveis.119 Nessa questão da

responsabilização, havia uma estreita relação entre os deuses e os homens.

Por outro lado, essa excessiva proximidade, em momentos de conflito e

crise, não permitia aos deuses funcionarem como garantia de uma norma

superior e válida para as diferentes partes envolvidas. Esse modelo não podia

responder às exigências de universalização dos valores através de uma justiça

que funcionasse como norma imparcial, liberada da virtude heróica.120

Para conseguir este objetivo será necessário elaborar um pensamento

em torno da lei, tanto num sentido político-jurídico, como moral: uma lei que

garantisse a distribuição eqüitativa dos poderes, que controlasse

institucionalmente os conflitos, assinalando razões e erros, e que assegurasse a

interiorização de valores comuns e compartilhados.

desastrosas, não só para o indivíduo como para toda comunidade.‟ Sólon de Atenas: a cidadania antiga. São

Paulo: Humanitas, 1999, p.42. 118 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid: Síntesis, 2005, p.49. 119 Dodds, E. R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988, p.29. 120 Para Gilda Naécia Maciel de Barros, „o grande obstáculo a uma compreensão genuinamente democrática

do ideal de justiça foi a crença que a nobreza sempre demonstrou na superioridade de sua origem, traduzida

pela idéia de natureza (phýsis). Sob esse aspecto, também Sólon foi incapaz de superar o problema: sua

concepção de homem, apesar do espírito mais aberto que a norteava, não disfarça o velho princípio

aristocrático que distingue entre agathoí e kakoí.‟ Sólon de Atenas: a cidadania antiga. São Paulo:

Humanitas, 1999, p. 54.

Page 50: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

50

Estamos realmente no clima espiritual da cidade-estado. O velho

heroísmo guerreiro coloca-se agora a serviço da dóxa cívica: o soldado

presente ao campo de batalha está obedecendo às leis da cidade. O certo é que,

a partir de um dado momento, obedecer à lei, aprender a reconhecer-lhe o

poder do éthos, passa a ser a qualidade mais importante do cidadão.121

2.2. O início da teoria do direito natural do mais forte

Desenvolvida a partir da gênese da velha vivência que atravessou a

moral da sociedade homérica, a moral politizada ainda não se desgarrava do

substrato mais profundo da constituição da subjetividade herdada dos textos

homéricos: o complexo da virtude.122

Esse complexo é percorrido pelos diversos planos conjugados pela ação.

Era então necessário desenvolver a sabedoria política, a técnica eficiente para

superar eficazmente os problemas e os conflitos, além do vínculo de

colaboração entre os homens, que permitiria a unidade e a persistência da

polis.123

Reaparecerá então profundamente modificada toda uma gama de

elementos que supõem uma continuidade e uma transformação do velho

horizonte moral. Justiça (diké) e respeito (aidos) seriam considerados

121 Gilda N. M. de Barros. cit., p.56. „A par da progressiva assimilação e popularização de valores da

aristocracia, o homem sem estirpe encontrou na obediência às leis escritas garantia de direitos, ainda que

limitados e um novo ideal de vida. Dessa forma, no seu sentido mais profundo, na sua inspiração mais rica, o

ideal de justiça se põe no ambiente espiritual da polis.‟ 122Adkins, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek Values. London: Oxford University Press,

1960, p.40. 123 Pamela M. Huby. Greek Ethics. London/Melbourne/Toronto: Macmillan, 1967, pp.7-11.

Page 51: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

51

condição moral da nova ordem social.124 Da mesma forma, a aparência e os

resultados continuam sendo mais importantes do que os fatos e as intenções.125

Será preciso o desenvolvimento de um aparato ideológico, moral e

jurídico, capaz de tornar possível, reconhecível e satisfatório o êxito dos

profundos processos que lentamente reestruturaram a sociedade. Para tanto,

um primeiro passo fora a promulgação de leis, normas escritas de caráter

supostamente impessoal e universal.

Nessa empreitada, é imperioso registrar em breves linhas aquilo que

vem sendo considerado o itinerário da teoria do direito natural do mais forte

na Grécia, por ser um debate que conservou um valor permanente em grande

parte da história do pensamento jurídico, político e moral.126

Nesse debate, sobrelevam-se as idéias carreadas por Trasímaco, pois

vêm não apenas como crítica à tradicional concepção de justiça, mas

principalmente como reproche aos ideais de governança erigidos por Sócrates.

São, ainda, uma crítica da cultura.

Todavia, é imprescindível, antes de aprofundar o argumento de

Trasímaco, tratar dos seus antecessores, daqueles que prepararam o caminho

ao desenvolvimento da teoria do direito natural do mais forte. Seus

antecedentes se situam na própria sofística. Pode-se afirmar que se iniciou

124 Hesíodo, Trabalhos e Dias, 195-200/213-218/274-280. 125 Por exemplo: Olof Gigon. Rationalité et transrationalité chez lês sophistes. Actes Du Congrés de Nice,

mai 1987, p.232. Gigon afirma que a prática que está no centro do ensinamento de Protágoras e de Górgias é

antes de tudo uma prática política, que é organizada por uma técnica política. Essa técnica tem que ser

necessariamente uma técnica da palavra, palavra politicamente eficaz. Na polis, um só privilégio não poderia

ser abolido: o dom da palavra convincente e eficaz. Isso implica que não existe, na ética nem na política,

constrangimentos prévios, pois tudo é constantemente construído e reconstruído pela palavra. 126 Kerferd, Le movement sophistique, cit. pp. 4-14. E Manzano y Rufino, Introducción ao movimiento

sofístico griego, cit. pp. 31-43, onde se expõe brevemente essa discussão, analisando a contribuição dos

sofistas.

Page 52: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

52

com Górgias, continua com Crítias, aprofunda com Cálicles e culmina com

Trasímaco.127

Górgias foi um dos grandes sofistas que se concentraram no ensino da

retórica, propondo como fim principal a seus discípulos dominar os contrários

e interlocutores mediante a palavra, pela construção coerente e acertada de um

discurso convincente. Afirmava que era da lei natural que o fraco fosse

dominado, regido e guiado pelo mais forte, por aquele que tem o poder.

A figura de Cálicles, no diálogo Górgias, serve para mostrar como a

linguagem pode ser modificada, alterada, mudando os valores. Ademais,

Cálicles tem como propósito de vida triunfar sobre os outros. Trata-se de

buscar o poder por si mesmo, sem mais justificativa que impor-se aos

demais.128

Para Cálicles, a ordem da natureza e a ordem jurídica ou convencional

são distintas, irreconciliáveis, e se desenvolvem em esferas que não se tocam.

Logicamente, no jogo das forças se imporá o mais forte, ou seja, o mais sábio

politicamente. Este ser superior tem que mandar. O domínio se exerce em

virtude de uma norma de caráter objetivo, uma espécie de lei natural de

cumprimento obrigatório. 129

No entanto, as leis estabelecidas pelos homens nas sociedades não

respeitam esta situação e isso provoca que nas cidades mandem os fracos, e os

fortes sejam dominados pela astúcia do que não está ornado pela natureza de

poder algum. A maioria impõe um limite à dominação dos mais fortes; trata de

127 La Legge Sovrana: nomos basileus. Milão: BUR/SAGGI, 2006, pp.8-9, de Massimo Cacciari, Luciano

Canfora e outros. Como já dito, pertinente é a „Introdução‟ do texto Nomos und Physis, Damstadt, 1987, de F.

Heinemann. Também relevante é o texto A natureza e a lei: reflexos de uma polêmica em três textos da

Grécia Clássica, Inquérito, Lisboa, pp.77-111. Do Prof. José Gabriel Trindade Santos. 128 A Menzel. Calicles, México, 1964, pp.32-35. 129 Platão, Górgias 483 b-e.

Page 53: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

53

convencê-los de que têm que submeter-se ao direito, aos mandamentos

legais.130

Nesse raciocínio, a proclamação e a defesa da igualdade não são mais

que uma jogada astuta dos fracos para mascarar o verdadeiro conteúdo

político da democracia: a submissão ao domínio do mais forte. O direito é

instrumento de opressão contra os fortes, para que não possam emergir e

conseguir impor o domínio, o poder que têm outorgado pela natureza. O

homem forte triunfará sobre os fracos. Este ser superior será capaz de quebrar

a ordem jurídica opressiva, de restaurar a lei da natureza em todo seu

esplendor.

A posição de Cálicles é nítida. Concede a supremacia absoluta à

natureza sobre o direito. A lei da natureza é uma norma cósmica, que passa a

ser concretizada a cada momento pela ação do mais forte. Por conseguinte, o

homem forte que encarna o direito, a justiça e o poder deve estar ornado pela

força física, um verbo persuasivo, inteligência e astúcia para governar a

cidade.131

Dentro dessa concepção, o vínculo mais sólido não será o respeito às

leis, mas as relações internas que garantem e perpetuam o poder. Enfraquece-

se a idéia de que a lei da cidade poderia educar a natureza humana.132 Natureza

humana entendida, nesse contexto, como portadora de um desejo insaciável de

poder, de riqueza e de força: instaurando o conflito entre physis e nomos.133

Não se trata simplesmente de uma questão de convencionalidade ou

necessidade natural. Dado que a natureza é vida, morte, prazer e dor,

representa o âmbito da utilidade primária para o indivíduo, bem como o

130 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, pp.75-76. 131 Platão, Górgias 491e-492 a. 132 Demócrito, B33. Tucídides, I. 133 Tucídides, II, 32-45.

Page 54: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

54

espaço para sua autêntica liberdade. Diante da natureza, as leis que impõem

restrições e sacrifícios cooperativos não representam outra coisa senão

vínculos e laços. Tudo isso evidencia uma debilidade na concepção positiva da

justiça, em sua identificação com a lei.134

A natureza se rege por uma lógica bem distinta daquela imposta pelos

vínculos da cultura e da lei. Nesse raciocínio, o que é justo por lei pode ser

distinto do que é justo por natureza. A lei tem apenas o propósito de impor

limites ao poder dos „bons‟.

Nesse processo de reivindicação da prevalência da physis sobre o

nomos, será inafastável a análise do poder e de sua relação com a justiça como

interesse do mais forte. Essa tarefa, nos diálogos platônicos, será conferida a

Trasímaco no primeiro livro da República.

2.3. A problemática inserida na República I

A argumentação se apresenta rigorosamente articulada: se o justo

depende da norma positiva, da lei, e se quem detém a força e o poder

promulga a lei na cidade, então a lei está dirigida em qualquer caso à

manutenção e consolidação desse poder.135

A posição de Trasímaco, porém, não se reduz à afirmação do direito

natural do mais forte. Desvela antes de tudo, para além da ideologia da

neutralidade da política, da lei e de sua justiça, a inevitável natureza do poder,

de qualquer poder e de seu caráter irremediavelmente opressivo. Se nomos e

134 Kerferd. Le movement sophistique, cit. p.172. 135 Vegetti. La ética de los antigos. Madrid: Síntesis, 2005, p.97.

Page 55: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

55

diké não possuem nenhum outro fundamento, então não são mais que

prolongamentos, máscaras do poder e da força.136

As dificuldades de conciliar a justiça e o poder na figura da norma

(nomos) obrigarão Platão a retomar a questão dos fundamentos da justiça e

dos limites do poder. Estariam tais fundamentos e limites na concepção da

physis? É possível estabelecer um ponto de convergência entre a lei e a

natureza? Como pensar num poder que possa se coadunar com a justiça?137

Essas questões estão umbilicalmente ligadas à ideologia da polis e de

como ela se estrutura e organiza. A realidade política, dita por Trasímaco e

repetida por Glauco e Adimanto, mostra a impossibilidade de reformar a

cidade. Há portanto que refunda-la. É necessário trabalhar em voltar a fundar a

cidade e fazer dela algo verdadeiramente adequado a sua „idéia‟, algo que

realize seu projeto. Isso envolve pensar a cidade.

O nomos configurava-se como delimitação do espaço político por

excelência. A escrita da lei implicava em sua universalização imediata. Isso

não significa que eliminava as diferenças sociais, mas proporcionava um

espaço homogêneo no qual cidadãos podem confrontar-se e ser avaliados de

forma equânime. O espaço político regido pela lei é neutro e, por essa razão,

universal.138

Nessa perspectiva, a eunomia requer uma consideração intelectual e

moral, uma nova concepção de sabedoria, como alternativa ao império dos

valores competitivos e agressivos, que já se colocam como ineptos para a boa

136 Kerferd. Le movement sophistique, cit. p.184. 137 „Introdução‟ do texto Nomos und Physis, Damstadt, 1987, de F. Heinemann, p11. 138 Impende destacar o entendimento de Domingo García Belaúnde, professor de Filosofia do Direito da

Pontificia Universidad Católica Del Perú, no texto Existe um Derecho Natural en La filosofia griega?,

apresentado em 1972 à Sociedad Peruana de Filosofía. Nesse trabalho, o professor não reconhece no diálogo

República a existência de duas ordens autônomas que justificasse a relação direito natural/direito positivo. Em

sentido contrário, tem-se a perspectiva desenvolvida no texto La Legge Sovrana: nomos basileus, Milão:

BUR/SAGGI, 2006, pp.10-11, de Massimo Cacciari, Luciano Canfora e outros.

Page 56: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

56

governabilidade da polis. Comporta uma revolução de ordem moral cujas

conseqüências se revelam lentamente.

Este processo atravessou a Grécia dos séculos VI e V, sobretudo

Atenas. O fato de a lei ser a mesma para cidadãos que pertencem a estratos

sociais distintos traz como conseqüência que os cidadãos se igualem graças a

um comum pertencimento à dimensão político-jurídica. A igualdade é uma

tentativa de efetivar a participação de todos os cidadãos na administração do

poder e na tomada de decisões da polis, com vantagens, do ponto de vista

histórico, para os oponentes antigos da aristocracia.

Convertida em realidade efetiva por Clístenes, a isonomia invadia cada

expressão desta fase da consciência moral grega que se via transformando,

gradativamente, em consciência política. A isonomia sanciona e consolida um

sentido forte de identidade coletiva, um vínculo privilegiado do cidadão à

polis e, reciprocamente, da polis ao corpo cívico.139

Esse programa, todavia, mostra-se particularmente difícil de aplicação,

devido à ausência de aparatos institucionais de caráter ideológico e coercitivo,

pela falta de uma organização escolar regular e de um corpo separado de

magistrados.

Na busca por superar os conflitos de diversas naturezas, a lei será

considerada o eixo do projeto educativo na cidade. A lei estará destinada a

formar aqueles cidadãos que ela mesma necessita, a convertê-los em iguais. A

lei será o paradigma da virtude.140

De um ponto de vista ético, a justiça da cidade não parece consistir em

outra coisa senão na unificação moderada e responsável segundo a lei e as

139 Finley, cit. p.90. 140 Santos, José Gabriel Trindade. A cidade dos homens. Polis : educação e democracia. Philosophica 4,

Lisboa, 1994, pp. 97. Assim também, Tucídides, II, 32-45.

Page 57: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

57

regras do grupo. Isso é uma forma de manutenção do poder, consentida pelos

argumentos de Trasímaco.

Existe, naturalmente, uma forte exigência de interiorizar a justiça do

nomos, para transformar a sophrosyne (autodomínio, sensatez, temperança:

uma virtude cooperativa) política em uma norma de comportamento

individual, acrescentada a pressão educativa do coletivo. Nessa exigência

converge o pensamento ético de Sócrates, que teoriza uma „arte de medir‟,

uma sabedoria prática que permitia eleger de forma equilibrada entre prazeres

e dores, ou seja, evitar no comportamento individual tanto a tirania do thymos

como a do medo (phobos).141

Os pontos fortes do raciocínio socrático podem ser resumidos da

seguinte maneira: o caráter contratual dos acordos convencionais, das leis, não

diminui sua eficácia, porque cada cidadão, pelo fato de viver na polis, assume

o acordo de respeitar o compromisso feito com as leis142. Não há virtude sem

justiça, e a justiça consiste no respeito à norma positiva decretada por lei.

O princípio dessa discussão assinala-se pela verificação da necessidade

de distinguir dois elementos no ambiente do homem: seu ambiente natural e

seu ambiente social. É somente depois que a sociedade „fechada‟ de fato se

desmorona que se pode desenvolver uma compreensão teórica sobre a

diferença entre natureza e sociedade.143

Isso requer uma clara apreensão da distinção entre leis naturais e as leis

normativas. Sendo inalteráveis, as leis da natureza não podem ser quebradas

nem reforçadas. Tudo isso é muito diferente se nos voltarmos para as leis

141 Romilly, J. de. La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote. Paris, 1971, p.43. Ver a autocrítica do

Fédon, 69 a-d. 142 Críton, 50c – 51c. 143 Popper. A sociedade aberta e seus inimigos. 1º Volume. São Paulo: EDUSP, 1974, p.72.

Page 58: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

58

normativas. Seja ou não uma disposição legal ou um mandamento moral, uma

lei desse tipo pode ser reforçada pelos homens, sendo também alterável.144

Essa verificação se acelera quando se observa que as leis são alteradas e

feitas por legisladores humanos. Essas experiências podem levar a uma

diferenciação consciente entre as leis normativas, baseadas em convenções ou

decisões, e as regularidades naturais, que ficam além do poder humano.

Quando se compreende claramente essa diferenciação, pode-se

descrever a posição alcançada como um dualismo crítico, ou

convencionalismo crítico. No desenvolvimento da filosofia grega, esse

dualismo de fatos e normas anuncia-se em termos de oposição entre natureza e

convenção.145

O dualismo crítico apenas assevera que normas e leis normativas podem

ser feitas e alteradas pelo homem, e mais especialmente por uma decisão ou

convenção no sentido de observá-las ou alterá-las, sendo o homem

moralmente responsável por elas, não talvez pelas normas que encontra

existentes na sociedade quando começa a refletir sobre elas, mas pelas normas

que está capacitado a tolerar desde que verificou poder fazer algo para mudá-

las, para aprimorá-las.146

Dessa forma, todas as decisões morais se relacionam a um ou outro fato,

especialmente a alguma fato da vida social, e todos os fatos alteráveis da vida

social podem dar origem a muitas decisões diferentes. Isso mostra que as

decisões não podem nunca derivar-se desses fatos ou de uma descrição de tais

fatos.147

144 Romilly, J. de. La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote. Paris, 1971, p.44. 145 Conferir Robledo. La ley en el pensamiento platônico. In: Platón: los diálogos tardios. Actas del

Symposium Platonicum 1986. México: UNAM, 1987, p.6. 146 Popper, cit., p.77. 147 Essa é a preocupação socrática, forçando a discussão para justiça como um bem alheio. República 343b.

Page 59: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

59

Nessa visada, a afirmativa de que as normas são feitas pelo homem

muitas vezes tem sido mal compreendida. Quase todas as incompreensões

podem ser rastreadas a uma incompreensão fundamental, a saber, a crença de

que convenção implica arbitrariedade; de que, se somos livres para escolher

qualquer sistema de normas que desejamos, então um sistema é precisamente

tão bom como qualquer outro.148

Deve-se, sem dúvida, admitir que a opinião de serem as normas

convencionais ou artificiais indica a existência de certo elemento de arbítrio

envolvido, isto é, pode haver diferentes sistemas de normas entre as quais não

há muito onde escolher. Mas a artificialidade de modo algum implica a plena

arbitrariedade. Esse é o substrato do dilema autonomia versus heteronomia.149

Para entender a posição de Platão, que combina elementos de várias

posições, é preciso fazer um exame das três mais importantes dessas posições

intermediárias entre o monismo e o dualismo. São elas: o naturalismo

biológico, o positivismo jurídico, e o naturalismo psicológico ou espiritual. É

interessante notar que cada uma dessas posições tem sido usada para defender

opiniões éticas que radicalmente se opõem a cada outra; mais especialmente,

para defender a adoração do poder e para defender os direitos dos fracos.150

O naturalismo biológico é a teoria de que, a despeito do fato de serem

arbitrárias as leis morais e as leis dos estados, há algumas eternas e imutáveis

leis da natureza das quais podemos derivar tais normas. Tem sido utilizado

não somente para defender o igualitarismo, como também para sustentar a

doutrina anti-igualitária do domínio dos fortes. Assim, as leis que protegem os

148 Popper, cit. p.79. 149 Reeve, C. D. C. The argument of Plato’s Republic. Princeton: Princeton University Press, 1988.

150 Popper, cit., p.82.

Page 60: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

60

fracos não são apenas arbitrárias, mas distorções artificiais da verdadeira lei

natural, segundo os quais os fortes devem ser livres e os fracos escravos.

Noutra perspectiva, o positivismo jurídico advoga que não há outras

normas fora das leis que foram estabelecidas e que têm, pois, existência

positiva. As leis existentes são os únicos paradigmas da bondade: o que existe

é bom, a força é o direito.

Por fim, o naturalismo psicológico é, de certo modo, uma combinação

das duas concepções anteriores. Afirma que podemos deduzir os verdadeiros

alvos naturais do homem de sua verdadeira natureza, que é espiritual e social.

E podemos, além disso, deduzir de seus fins naturais as normas naturais de

vida. Pode, porém, ser combinado com qualquer decisão ética, com uma

atitude humanitária, assim como com a adoração da força. De toda sorte,

nenhuma dessas teorias consegue retirar de nossas cabeças a responsabilidade

moral por nossas decisões. Seja qual for a autoridade que possamos aceitar,

nós é que a aceitamos.

As fontes para resolução do conflito ético assentam na teoria da virtude

simultaneamente na alma e na cidade. Na República, ao articular a cidade com

a teoria da virtude, na cidade e no cidadão, Platão supera a oposição

nomos/physis, impondo a subordinação do político ao ético, com a sua

reformulação da ética no espaço da cidade.

Page 61: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

61

Capítulo III. A lógica do poder: análise e interpretação da relação entre a

justiça e a sua imagem no Livro I da República

3.1. Justiça como interesse do mais forte (338c)

Ao longo do século V, a democracia ateniense vivenciava um crescente

processo de perda de confiança na unidade e solidez que o nomos deveria

estabelecer e engendrar na polis. A situação era agravada pela sucessão de

questionamentos que se levantavam sobre o real alcance e o grau da atuação

política dos cidadãos, do seu entendimento e do interesse por ela suscitado.151

Por outro lado, a disjunção proclamada entre a vontade divina e o

nomos urbano como conseqüência do manifesto caráter variável e

convencional deste último produziu um efeito traumático: a relação entre a

natureza e a lei, physis e nomos, também será pensada de um modo fortemente

antagônico, tanto para prescindir da garantia divina quanto da garantia que

supõe uma ordem natural para lei política.152

Emerge, dessa forma, a noção de que a lei não tem nada que ver com os

deuses nem com a justiça, pois expressa a lógica desnuda do poder. Nessa

direção, levantam-se argumentos que visam demonstrar até as últimas

conseqüências a ideologia da lei e da dimensão política, desfazendo a

concepção de que representam o lugar de homogeneidade e de superação do

conflito social.153 As leis determinam a regra da cidadania, regulam a posse da

terra e a distribuição da riqueza.

151 Finley, Moses I. Política no Mundo Antigo. Lisboa: edições 70, 1983, p.92. 152 Vernant. Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2001, p.33. Registra também esse processo Dover, K.

J. Greek Popular Morality: in the time of Plato and Aristotle. Oxford, 1974, pp.288-291. 153 Louis Gernet. Droit et société dans La Grèce ancienne. Paris, 1964, pp.61-81.

Page 62: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

62

Principia a noção de que a cidade está dividida em dois grupos que se

enfrentam num conflito em que não cabe mediação: os pobres e os ricos, os

maus e os bons. Não há uma garantia de direitos proporcionalmente iguais

para todos os membros da polis, não existe possibilidade de um poder

compartilhado.154 Há freqüentes mudanças, golpes, revoluções, guerras, guerra

civil.

Tal crise leva Platão muito além da moralidade popular e colocam-no

em conflito com visões filosóficas como o convencionalismo relativista e

pragmatismo hedonista. A sua alternativa será adequar a concepção política à

ética ideal, apresentando uma proposta referente ao objetivo apropriado para

uma vida humana e ao caráter apropriado do agente que busca alcançar essa

meta.155

A questão recebe significativo tratamento na análise da posição de

Trasímaco no Livro I da República. O tópico da discussão é: o que é justiça?

Presumivelmente, algumas boas candidatas a uma definição sensata são que a

justiça é o que os deuses querem, ou que justiça é pagar suas dívidas, ou que

justiça é o que as regras do tribunal dizem.

Trasímaco, porém, não defende nada disso. Sua visão é que não

importa como se teoriza sobre a justiça, pois o que chamamos justiça numa

sociedade é, de fato, o que os elementos fortes da sociedade lhes impõem.156

Aparenta, antes de tudo, uma expressão de pragmatismo e ceticismo moral.

Ela vê a discussão socrática de justiça como vazia, inútil.

154 Finley, Moses I. Política no Mundo Antigo. Lisboa: edições 70, 1983, p.94. No mesmo sentido está a

leitura de Vegetti. La ética de los antigos. Madrid: Síntesis, 2005, p.99.

155 Moravcsik, Julius. Platão e Platonismo: aparência e realidade na ontologia, na epistemologia e na ética.

São Paulo: Loyola, 2006, p.112. 156 Platão, República 338c.

Page 63: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

63

Não importa o que pensamos sobre a justiça em nossos estados de

espírito idealistas. No fim, os elementos fortes da sociedade irão nos impor os

seus desejos e estes são chamados de justiça. O poder, e não a reflexão

filosófica, domina e determina a ação. Para saber o que é considerado justiça

numa sociedade, empreenda-se um estudo empírico das relações de poder

entre os constituintes, em vez de se dedicar a reflexões éticas.157

As reflexões de Trasímaco assemelham-se às de Cálicles no Górgias.

Cálicles afirma que a moralidade convencional é apenas um conjunto de

regras imposto a nós por uma maioria de pessoas numa sociedade, pessoas que

são fracas e não poderiam sobreviver numa luta pela sobrevivência.158 As

análises oferecidas pelas duas exposições são diferentes, mas o ceticismo

moral subjacente é comum a ambas.159

Platão parece ver tudo isso, pois ele não trata a proposta de Trasímaco

como mais uma análise ética da justiça, mesmo que ele o recalque. Em vez

disso, ele tenta extrair de Trasímaco o objetivo que este incorpora. A mesma

coisa acontece no Górgias. Lá, Cálicles é levado a concordar que a sua

finalidade é ser uma pessoa politicamente poderosa. Na República, Trasímaco

é conduzido à mesma confissão.

Os ideais extraídos de Trasímaco e Cálicles mostram os tipos de ideais

que provavelmente seriam abraçados por um cético moral típico. Platão, na

seqüência, empenha-se em demonstrar o que está errado no ideal defendido

por Trasímaco, apontando a urgente necessidade de uma reforma profunda no

sistema de gerenciamento da cidade, para que esta possa alcançar a

157 Kerferd. Le mouvement sophistique, cit. p.186. Na mesma perspectiva, conferir L. D. Davis. The arguments

of Thrasymachus in the Firs Book of Plato’s Republic, Modern Schoolman, 47/4, 1970, pp.425-428. 158 Platão, Górgias 483b-e, República 358 a 359b. 159 Essa é a posição de J. R. S. Wilson. Thrasymachus Theory of Justice, Polis, 3/2, 1980, pp.7-9.

Page 64: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

64

excelência.160 Se a cidade dos porcos (372d) satisfaz apenas as necessidades

corpóreas, a cidade ideal visa a realização dos fins globais da cidade (369c).

Enquanto Cálicles defende um naturalismo imoralista, segundo o qual a

natureza quer que uma minoria de fortes prevarique sobre a maioria dos

fracos, Trasímaco (que se move, a meu ver, na esteira de Protágoras) segue

mais a opção convencionalista. Pode-se bem constatar onde ele afirma que a

categoria dos mais fortes é ativa em qualquer forma de regime político,

inclusive a democracia: isto significa que, segundo ele, a divisão entre fortes e

fracos não é natural, mas contingente, e depende das formas de governo de

vez em vez adotadas.

Desta diferença deriva outra, talvez ainda mais importante. Logo, por

força do seu naturalismo, Cálicles não está disposto a admitir, como ao

contrário está Trasímaco, que os mais fortes, exercendo em sua própria

vantagem o poder de que dispõem, se comportem injustamente.

Neste sentido, pode-se dizer que, para Cálicles, a justiça assume

conotações opostas conforme os grupos a que é relacionada: para os mais

fracos a justiça consistirá em obedecer, para os mais fortes, em comandar.

Para Trasímaco, ao invés, o poder é justo enquanto tal. Conseqüentemente, a

única sociedade em que não existe injustiça é também a sociedade em que não

existe justiça, ou seja, paradoxalmente, uma sociedade em que não exista

homem algum que exerça poder sobre o outro.

160 Lycos, K. Plato on justice and power. New York: State University of New York Press, 1987. Na

interpretação de Moravcsik, no seu trabalho Platão e Platonismo: aparência e realidade na ontologia, na

epistemologia e na ética. São Paulo: Loyola, 2006, p.120, Platão estaria apresentando uma ética ideal e a

estrutura geral da República poderia ser lida da seguinte maneira: as primeiras seções são ocupadas por

interpretações superficiais da moralidade e do ceticismo moral. Nas seções seguintes, extrai-se dos

participantes do diálogo o comprometimento com certos ideais superficiais, demonstrando-se que são

inadequados. Isso culmina com a proposta de um ideal humano e político adequado, tanto no plano

individual como no comunitário, com a divisão natural do trabalho.

Page 65: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

65

Mas é óbvio que Trasímaco está bem longe de sugerir uma hipótese de

tal gênero, do momento em que, numa sociedade deste tipo, as possibilidades

de perseguir o útil seriam praticamente nulas (enquanto nas sociedades em que

vigora a distribuição do poder esta possibilidade é oferecida pelo menos ao

grupo que o detém).

Aparecem assim as características gerais do dúplice desafio que Platão

elegeu, contra Cálicles e contra Trasímaco. A antropologia proposta por

Cálicles é num certo sentido especular e contrária àquela platônica, enquanto

ele admite a existência de uma justiça ideal e paradigmática e de uma ordem

hierárquica, baseada nas relações de poder em que tal justiça se realiza.

Mas na visão de Cálicles a ordem dos valores é exatamente o oposto

daquela sustentada por Platão, por isso no cume da escada da felicidade é

colocada propriamente a figura que em Platão ocupa bem no último lugar, ou

seja, a do tirano. Além disso, Cálicles sacrifica, assim como Trasímaco, a

felicidade de uma parte da população em benefício da outra.161

O princípio que Platão deve combater para confutar Trasímaco, ao

contrário, é, sobretudo, o nexo por ele instituído entre poder e injustiça e,

portanto, entre felicidade e injustiça.162 É o mesmo princípio feito valer pelas

objeções provocantes de Glauco e Adimanto: Glauco, no início do livro II,

intervém exatamente para remediar à prematura retirada de Trasímaco (357a).

É uma dupla mudança de perspectiva: Glauco e Adimanto assumem

uma posição dialógica, enquanto Sócrates adota uma concepção relacional da

161 Górgias 492 a-d. 162 „A especificidade e a novidade da posição platônica consistem em mostrar que a alma, ao tornar-se cada

vez mais ordenada, pela ação de sua parte racional, pode ultrapassar os conflitos, as antilogias, a mistura de

sensação e pensamento, e atingir a realidade inteligível de modo que esta última determine sua ação e a torne

verdadeiramente boa.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista.

Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.126.

Page 66: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

66

justiça. Passa-se do combate erístico ao diálogo racional, de uma concepção

ideal a outra relacional.

Sócrates, discutindo propriamente a posição do sofista, a um dado

momento afirma que também em sua opinião a justiça deve ser algo de útil

(339b). A sua tese, argumentada não apenas nos livros II-V, mas também no

VIII e no IX (onde afinal se reúnem os frutos da indagação) é que a justiça,

como a tese de Trasímaco, é ao mesmo tempo um bem/útil alheio e um

bem/útil para si próprio; aliás, que não há verdadeiro modo para perseguir o

bem/útil para si próprio se não perseguindo também o bem/útil para os

outros.163

Então, não é verdade que quem deseja conseguir o próprio útil deva

praticar a injustiça (como, ao invés fazem os governantes de Trasímaco, nisto

diametralmente contrapostos aos governantes da kallipolis), e não é verdade,

como ao invés queria Cálicles, que a justiça legitimamente exercida por quem

comanda, comporta a submissão e a infelicidade de quem é comandado.164

Contra Cálicles, mal refreado no Górgias, e contra Trasímaco vencido,

mas não plenamente convencido pelos argumentos propostos no livro I, o

programa declarado da República se torna, a partir do fim do livro I e do início

do II, simplesmente aquele de mostrar a correlação entre virtude e felicidade;

uma correlação ao mesmo tempo universal e necessária, ou seja, válida

para todos os homens, independentemente das diferenças naturais admitidas

por Cálicles e pela desigual distribuição do poder assinalada por Trasímaco.165

163 Para Sócrates, a falsa aparência de conhecimento do bem produzida pelo sofista constitui um problema

efetivo, sobretudo porque aquilo que está em questão é a educação dos jovens para a condução da cidade. 164 Górgias 483 a-c. 165 República 420-421.

Page 67: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

67

Isto está bem demonstrado também pelo longo trecho com o qual se

encerra o diálogo, que significativamente encontra o seu epílogo nas palavras

“vivemos bem” (eu prattomen). Sem querer com isso minimizar o enorme

peso político das teorias expostas na República, podemos assim conjeturar

uma linha de leitura que vê neste diálogo o máximo esforço de Platão para

confutar o eudemonismo imoralista presente na ética do seu tempo, que a

figura de Cálicles é chamada emblematicamente a representar.166

Nesse aspecto, o peso e o valor do argumento de Trasímaco no Livro I

da República talvez possam ser dissecados por aquilo que entendemos como a

sua finalidade: negar com todas as forças que a ética determine a política. Essa

é a questão fundamental para entender o funcionamento da cidade.167

Na sua “primeira tese” Trasímaco defende que “o justo não é outra

coisa que o útil do mais forte” (338c). Eis como Vegetti resume as

argumentações de Trasímaco em defesa desta definição:

De fato (1) justo é o que as leis impõem a observância; (2) mas as leis são promulgadas por quem detém o

poder (to archon), qualquer que seja a forma constitucional do mesmo poder, tirânica, aristocrática ou

democrática; (3) o fim último das leis é aquele de conservar o poder de quem as emana; (4) “forte é quem

detenha o poder, singular, grupo ou maioria segundo as várias constituições; (5) portanto, “justo” é para os

súditos o obséquio às leis emanadas pelo poder dos fortes, e por isso mesmo “justo” coincide com o interesse

destes em manter o seu poder (338d-e).168

Com Trasímaco, a questão da justiça como interesse do mais forte

ganha contornos especiais: se a ética foi abolida, a justiça, sugere o sofista, é

injustiça e a injustiça é justiça. Frente à semelhante reversão, se pensaria que

166 Antonio Gómes Robledo. La ley en el pensamiento platônico. In: Platón: los diálogos tardios. Actas del

Symposium Platonicum 1986. México: UNAM, 1987, p.3. 167 K. Dorter. Socrates’ Refutation of Thrasymachus and Treatment of Virtue, Philosophy and Rethoric, 7,

1974, pp.25-46. 168 Vegetti. La Republica. Vol. I. Libro I. Italia: Bibliopolis, 1998, p. 240.

Page 68: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

68

se propõe um enredo originado na deformação puramente dialética do discurso

sofístico, como Cálicles.169 Trasímaco estaria explorando de forma artificiosa

as antilogias, justiça injusta versus injustiça justa. Justiça como dano e

injustiça como felicidade.170

Segundo a interpretação proposta por Vegetti, a primeira tese de

Trasímaco “combina de modo original e rigoroso duas diferentes posições,

ambas difundidas no pensamento ético-político do século V: o positivismo

jurídico (Rechtpositivismus)...e o desmascaramento da natureza do poder

(Machtpositivismus)” 171. Em outras palavras, o mérito desta tese seria de

tornar absoluta a natureza do poder, que deve ser considerado desligado de

todo compromisso com o binômio justiça-injustiça por ser a ele

conceitualmente anterior.

Vejamos, portanto, como Trasímaco argumenta a sua posição:

Toda forma de poder, portanto, fixa as leis em função do seu próprio útil: a democracia as fará democráticas,

a tirania as fará tirânicas, e semelhantemente as outras formas. E uma vez fixadas, as leis sancionam que

justo para os súditos é aquilo que é útil aos detentores do poder e consideram os transgressores como culpados

de ilegalidade e injustiça. É isto, portanto, excelente amigo, o que eu sustento de ser o justo no mesmo modo

em todas as cidades – o útil do poder constituído. Mas é logo isto que é forte, pelo que segue para quem

raciocine corretamente que justo é sempre o mesmo: o útil do mais forte. (338e-339a).

Para Vegetti, da afirmação de Trasímaco, segundo a qual a lei

estabelece aquilo que é justo, derivaria a conseqüência de que “na origem da

lei, isto é ao nível do poder, o problema da justiça não se põe” 172. Não se deve

169 Górgias 482e. 170 „Do ponto de vista estrito da experiência humana e do discurso-opinião que lhe é co-extensivo, as coisas

tais como elas nos aparecem são efetivamente contraditórias, e a antilogia é sua expressão discursiva máxima.

Para que os discursos humanos sejam uma via de acesso aos bens humanos e ao bem em si que os ultrapassa,

é necessário que o discurso falso seja possível.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença:

uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.131. 171 Vegetti, La Republica. Vol. I. Libro I. Italia: Bibliopolis, 1998, p.241. 172 Vegetti, cit., p.254.

Page 69: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

69

esquecer que a tese de Trasímaco não é uma teoria do poder ou da lei, mas

uma teoria sobre a justiça.

De fato, esta tese, tomada no seu conjunto, não diz simplesmente que a

justiça consiste na obediência às leis (como pensa Vegetti). Ela diz, em

primeiro lugar, que a justiça é o útil do mais forte, enquanto a obediência às

leis procede como sua conseqüência: esta obediência é justa logo porque ela

impõe aos mais fracos, de acordo com as intenções de quem tem o poder de

emaná-la, a realização do útil dos mais fortes.

Em outras palavras, Trasímaco não quer dizer que a lei (portanto o

poder que a promulga) determina a natureza do justo e do injusto, mas diz que

a lei se encarrega de tornar conhecido o princípio (que pode ser válido

independentemente de qualquer lei e de qualquer poder) segundo o qual o

justo é o útil de quem manda. Porém, obviamente, não se limita a isso.

Além de tornar conhecido o que é justo e injusto, a lei exerce uma

função coercitiva, obrigando aqueles que são mandados a realizar a “justiça”

que ela revelou a eles, ou seja, o útil dos governantes. A prova disso é o fato

de que Trasímaco nomeia explicitamente a função sancionadora da lei (e

naturalmente do poder do qual ela deriva), ou seja, a sua faculdade de impor

punições.

E é logo esta dúplice função prática, isto é, aquela de dar a conhecer a

natureza da justiça e aquela de cominar as sanções aos transgressores, a

função que lhe compete; não certamente o papel teórico de determinar o que

seja a justiça, porque não há teoria.173

173 K. Dorter. Socrates’ Refutation of Thrasymachus and Treatment of Virtue, Philosophy and Rethoric, 7,

1974, pp.30-32.

Page 70: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

70

Esta interpretação está confirmada, a meu ver, pela própria estrutura do

trecho que citamos acima. Nesta passagem, tanto o poder quanto a existência

de sociedades divididas entre grupos que detêm o poder e grupos que o

suportam, são considerados como um dado de fato.174

Quando se aplica a estas sociedades e à divisão do poder que está em

vigor, a definição de justiça como o útil do mais forte, se obtém o efeito de

compreender, à luz daquela definição, quem, de fato pratica a justiça e quem

não: pois é óbvio que quem tem o poder de obrigar os outros a realizar o seu

próprio útil (ou seja, a ser justos) o faz com certeza.

O poder, em outras palavras, é ativo, no raciocínio de Trasímaco,

somente para revelar, na base da sua distribuição de fato, quem são os justos e

os injustos em qualquer sociedade em que esteja em vigor tal distribuição; não

certamente em determinar o que seja a justiça enquanto tal.

Esta conclusão está confirmada também pela análise da definição de

Trasímaco enquanto tal. Se a sua posição fosse atribuída ao

Rechtspositivismus, deveríamos dizer que ele não fornece nenhuma definição

da justiça, por isso a justiça, em linha teórica, poderia ser qualquer coisa que

agrade aos governantes se assim a definirem.175

174

Conforme análise do professor Anastácio Borges de Araújo, „Assim o termo „mais forte‟ entra numa rota

própria de ambigüidades que pode ser compreendido tanto pelo sentido corpóreo de “mais forte”, passando

pelo sentido político de “mais poderoso” até o sentido de “melhor”, funcionando neste último caso como a

idéia de superioridade. Podemos antecipar que no desenvolver do diálogo ambos, Trasímaco e Sócrates,

tentarão afastar-se do sentido mais palpável do termo „mais forte‟

seguirá o sentido de “mais poderoso” ainda que o poder possua também a força. Sócrates buscará aproximá-lo

do sentido de “melhor”, pois como iremos sugerir ao final, sua investigação será constantemente “iluminada”

pelo bem de todos que compõem o homem e a cidade.‟. Os sentidos do ‘mais forte’ na República de Platão.

Apresentado no Simpósio da SBP, em Uberlândia, agosto de 2009, p.2. 175 Nessa definição, será o que lhes parecer mais conveniente. „E é justamente porque as coisas não podem não

aparecer, deste ou daquele modo, aos seres humanos, que as aparências merecem ser examinadas. O que

significa que as aparências devem ser conhecidas, na medida do possível, em sua inteligibilidade relativa. É,

portanto, o exame das diferentes aparências do filósofo que leva ao exame do sofista e, em seguida, ao exame

do próprio aparecer enquanto imagem.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma

leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.50.

Page 71: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

71

Na realidade não parece propriamente este o modo em que a sua tese

deve ser interpretada. Ela se inscreve num contexto dialógico em que são

examinadas, uma depois da outra, algumas definições da justiça (como, por

exemplo, aquela proposta por Céfalo e Polemarco, segundo a qual a justiça

seria fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos): definições que têm a

tarefa de enunciar qual é concretamente o conteúdo normativo desta virtude.

Ou, pelo menos, de trazer aparências de virtude que sejam suficientes

para governar a cidade. Por mais grave e séria que seja a questão do falso do

ponto de vista ético e político, Platão não quer absolutamente calar o sofista.

Reduzir o sofista ao silêncio implicaria não ter mais obstáculo, não ter mais

um problema a partir do qual constituir um discurso filosófico.

Conforme a leitura apresentada por Vegetti, a definição proposta por

Trasímaco, ao contrário, esvaziaria a justiça de qualquer conteúdo real,

limitando-se a dizer que este conteúdo é estabelecido de vez em vez pelo

poder e pela lei.176

Mas não é claramente isto o que Trasímaco tem em mente. Na definição

por ele proposta, a palavra “útil” não tem uma função de um indicador neutro

e relativo, que encontra o seu possível preenchimento somente em função da

vontade, do arbítrio ou da opinião de quem detém o poder. A prova disso é o

fato de que Trasímaco recusa, no decorrer da discussão com Sócrates, o

socorro que gostaria de dar-lhe Clitofonte, segundo o qual o governante

poderia contentar-se daquilo que ele julga útil, mesmo se errasse (340b).177

176 Vegetti, La Republica. Vol. I. Libro I. Italia: Bibliopolis, 1998, p.246. 177 Aqui se confundem, ainda que parcialmente, o filósofo e o sofista, pois „o filósofo também assume diversas

aparências aos olhos dos muitos, mas com a diferença de que não pretende, deste modo, enganar ou manipular

os outros. A diversidade de seus „apareceres‟ é posta a serviço de um valor, a verdade, a serviço de fazer

aparecer dialeticamente o ser e o não-ser das coisas, no e pelo discurso, e de um modo bem determinado.‟

Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG,

2006, p.53.

Page 72: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

72

Trasímaco, ao contrário, pensa que o governante, enquanto é

verdadeiro governante e por todo o tempo que o é, não comete erros,

exatamente como não cometem erros o médico enquanto é médico e o perito

de cálculos enquanto é perito de cálculos (340d-e).

Isto, além do mais, é confirmado pela sucessiva comparação com o

pastoreio (340d-e): assim como o pastor tira proveito do seu rebanho para ter

vantagens e bem-estar de caráter material, os governantes (mais fortes) tiram

vantagem dos governados (mais fracos) exatamente com a mesma finalidade.

Isto significa que a definição da justiça como “útil do mais forte” não quer

sugerir que os mais fortes estabelecerão de vez em vez, com pleno arbítrio, o

que sejam o útil e a justiça. 178

Quer dizer, ao contrário, que em base do princípio segundo o qual a

justiça consiste em realizar o bem-estar de quem governa, cada governo fará

com que os subalternos realizem propriamente este bem-estar, enquanto as

diferenças dependerão somente da forma de regime em vigor.

Por exemplo, se o governo é tirânico, os subalternos terão a tarefa de

procurar o bem-estar de um só, se os governantes são mais de um terão, ao

invés, a tarefa de procurar o bem-estar de mais pessoas, distribuindo-o

conforme o número de quem governa.

Em outras palavras, se na definição que Trasímaco dá da justiça há um

aspecto positivo e não natural, então este aspecto não interessa a uma suposta

indeterminação do útil (sobre isso para Trasímaco, como para Protágoras, não

há muito a discutir, pois geralmente é o mesmo para todos), mas diz respeito à

178 Convencendo os mais fracos de que obedecer à lei representa o que é bom, confirma a tese socrática de que

quem elege coisas más pensa que são boas. Marcelo Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego:

investicaciones sobre aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de la acción en algunas teorias de La

Antigüedad. Buenos Aires: Colihue, 2007, p.44.

Page 73: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

73

real indeterminação da distribuição do poder, ou seja as diversas formas de

regime em vigor.

E se o útil não é positivo, não é nem mesmo a justiça que está

incumbida a realizá-lo. Portanto, não são nem o poder nem a lei a estabelecer

o que é a justiça, uma vez que a natureza da justiça está esclarecida a priori

pela definição: ela consiste em geral e sempre (cfr. 339a) no fato que os

governados (mais fracos) realizem o útil (entendido naturalisticamente como o

bem-estar) de quem governa (mais fortes). As relações que os homens

desenvolvem na cidade são relações de oposição e de reciprocidade. É sobre a

base destes encontros que se apresentam as oposições dos discursos.179

Se bem que a natureza específica desta “justiça”, mesmo convergindo

sempre na definição geral “útil do mais forte”, será diferente conforme as

diferenças que estão presentes entre um regime e o outro.180

Isto é o modo mais simples e mais natural de entender a tese de

Trasímaco, tomada no seu conjunto a partir da primeira formulação em 338c

até às ulteriores explicações em 338c - 339a. Portanto, não me parece que

exista um motivo real, considerando também a simples interpretação destas

passagens, para preferir a explicação proposta por Vegetti.

Mas a diferença se torna absolutamente decisiva quando se constata que

esta explicação é incompatível, como Vegetti facilmente demonstra181, com os

ulteriores esclarecimentos que Trasímaco fornece em seguida (quando expõe a

sua suposta segunda tese, 343b-c), enquanto a outra não é. Estes dois

179 Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG,

2006, p.79. 180

„A força física se liga noutro nível ao vigor da palavra, contra a força de muitos a palavra pode convencer,

um discurso eloqüente é uma alternativa à força violenta. Porém, a persuasão exige a contrapartida do outro, a

escuta alheia, a abertura daquele (outro) que se deixa convencer, sem isso não há persuasão, diálogo, nem

mesmo possibilidade de convencimento. A única alternativa que o homem possui frente à força bruta é a

palavra persuasiva.‟ Os sentidos do ‘mais forte’ na República de Platão. Apresentado no Simpósio da SBP,

em Uberlândia, agosto de 2009, p.4. 181 Vegetti, La Republica. Vol. I. Libro I. Italia: Bibliopolis, 1998, p.248.

Page 74: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

74

elementos, tomados em conjunto, fazem pender a balança de modo decisivo

contra a hipótese que Platão ponha na boca de Trasímaco duas teses

contrastantes.182

3.2. Justiça como um bem alheio (343b)

O debate se desloca ao plano que não é outro senão aquele onde os

indivíduos tratam com um bem estranho e de todo alheio a cada um, já que se

manifesta nos atos que fazem o conveniente para o mais forte e o que governa,

ao ponto que somente por este ato vinculante de obediência recebem um dano,

que não é um dano genérico, mas um dano para o que obedece e está

submetido.183

Inclusive, a mesma injustiça não resulta simplesmente sua antagonista

ou contrário, mas tem que remeter o domínio a outro ato similar, vinculante,

imposto aos genuinamente justos, de maneira tal que só quando são mandados

fazem o conveniente para o mais forte. E tudo isso se confirma com uma

singular reversão da reciprocidade que se consuma quando os dominados se

submetem aos atos vinculantes do mais forte e servindo-o asseguram sua

felicidade e não a própria.184

182 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.90. O bem

alheio mostra que o interesse do mais forte não é somente o dele. Além disso, o bem alheio também se aplica

ao mais forte. É a estas objeções que Trasímaco responde com a explicação sobre a superioridade da injustiça. 183

„Trasímaco acredita que entre os homens sempre haverá conveniências diferentes e não convergentes,

assim a forma que os “mais fortes” encontraram de realizar seus interesses foi estabelecendo nas leis, aquilo

que é chamado “justo”, regras que contribuíssem para realizar os seus interesses velados e injustos, pois

visam o próprio bem. Justiça e injustiça são versos da mesma realidade e numa cidade sempre haverá aqueles

que conseguem realizar seus interesses, os poderosos, e aqueles que viabilizam o bem dos poderosos, o bem

alheio.‟ Os sentidos do ‘mais forte’ na República de Platão. Apresentado no Simpósio da SBP, em

Uberlândia, agosto de 2009, p.10. 184 É o caso, por exemplo, do Patrimonialismo.

Page 75: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

75

O que Vegetti chama de segunda tese de Trasímaco é exposta como

réplica a uma das tentativas postas em ato por Sócrates para confutar a

primeira. Sócrates tinha afirmado, servindo-se, como de costume, de certo

número de exemplos (a hípica, a medicina, a navegação), que normalmente

aquele que detém um papel diretivo finaliza a sua ação para o bem dos

subalternos e não em favor de si mesmo (o médico faz o bem dos pacientes,

não o seu, o comandante do navio o dos marinheiros, etc.).

A resposta de Trasímaco é decididamente, e talvez também justamente,

sarcástica. Se Sócrates acredita que pastores e boiadeiros procuram o bem do

rebanho ou dos bois, na verdade se demonstra infantil (até mesmo de merecer,

como tinha observado Trasímaco logo antes, a assistência de uma ama de

leite). Pastores e boiadeiros cuidam de rebanhos e manadas exclusivamente

para seus próprios interesses, e o mesmo vale, segundo Trasímaco, para

“aqueles que detêm o poder nas cidades”. Não se deve acreditar “que eles,

noite e dia, procurem algo a mais que não seja exatamente aquilo do qual

possam levar vantagem”.185

Em seguida encontramos a nova definição. Sócrates ignora:

serem a justiça e o justo um bem alheio – que na realidade consiste na vantagem do mais forte e de quem

governa, e que é próprio de quem obedece e serve ter prejuízo; enquanto a injustiça é o contrário, e é quem

manda nos verdadeiramente ingênuos e justos; e os súditos fazem o que é vantajoso para o mais forte e,

servindo-o, tornam-no feliz a ele, mas de modo algum a si mesmos186.

A segunda tese, inversamente, tornaria completamente vazia a eficácia

teórica desta posição, enquanto traria em jogo a avaliação moral do poder,

declarando explicitamente que o bem próprio dos poderosos é o exercício da

185 „A cidade, na visão de Trasímaco, resulta de um agenciamento dissimulado para fazer convergir o justo, o

bem do outro, com o injusto, o bem de si mesmo.‟ Os sentidos do ‘mais forte’ na República de Platão.

Apresentado no Simpósio da SBP, em Uberlândia, agosto de 2009, p.10. 186 343c.

Page 76: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

76

injustiça. Deste modo, a posição de Trasímaco se tornaria muito menos

original, enquanto se aproximaria das correntes do pensamento político muito

difundidas no século V.

O espaço do poder, que aparece completamente vazio na primeira tese

de Trasímaco (pois é verdade que o mesmo Trasímaco, como melhor veremos

dentro em pouco, considera esta tese compatível com qualquer forma de

governo), na segunda seria preenchido por uma concepção de caráter tirânico,

pelo domínio da pleonexia, motivos todos já amplamente atestados por

Tucídides na prática política “e representados nos diálogos pelo personagem

Cálicles” 187.

À luz de tudo isto, Vegetti se pergunta por que “Platão tenha atribuído

ao seu personagem duas posições tão diferentes”188. A resposta é que, segundo

Platão, a primeira tese de Trasímaco, apesar do seu rigor teórico, de certo

modo, era o prelúdio à segunda, no sentido de que é propriamente a

neutralização do espaço político em nome do puro poder que conduz à sua

ocupação por parte do mais forte.

O resultado vai ser sempre algo alheio, estranho aos indivíduos: um

bem estranho que se descobre no conflito e que, em todo caso, expressa e

resume esse conflito. Todavia, não é a solução proposta que Sócrates estima

insatisfatória, o que importa no ato reversivo do sofista, mas a reformulação

crítica que contribui a enterrar a idéia restitutiva já impossível de assumir,

diante da desigual ordem de negócios, contratos e relações entre os cidadãos

fundados no requerimento recíproco, mas não equivalente.189

187 Vegetti, p. 254. 188 Vegetti, p. 252. 189 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.93.

Page 77: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

77

A complexidade do assunto nos leva em verdade para outro terreno, que

constitui uma importante chamada de atenção que não se vincula de modo

genérico à tópica ocasional, na qual se enreda Polemarco com Sócrates, mas

ao único aspecto conflitivo dessa mesma tópica que se relaciona com o amigo

bom e o inimigo mau.

Em nenhum momento vemos Trasímaco intervir nesta seção e

tampouco vamos vê-lo introduzir um tema que, em princípio e para uma

leitura superficial, impressiona como algo muito afinado com sua concepção

reversiva da justiça.

Em todo caso, os estudiosos que associam Trasímaco com o

maquiavelismo e com a filosofia do poder ou da razão de estado teriam que se

perguntar por que o sofista não vincula seus argumentos com este conflito

básico amigo-inimigo que se insinua como um tema que encaixaria com

perfeição na sua trama teórica.190

Isso mostra a peculiar topografia temática da tradicional concepção da

justiça que não consegue redimir-se dentro do limite retributivo. A

unilateralidade que campeia não chega a modificar-se, nem se tem em conta a

relação da manipulação normativa da lei em benefício do mais forte com a

situação em que se privilegia a posição do amigo ou do inimigo.191

Trasímaco se enfada pela falta de equivalência que observa na fórmula

de Simonides entre „a retribuição adequada‟ e „o devido‟, tal como a utiliza

Sócrates na sua argumentação. Tampouco parece satisfeito com o colocar o

fundamento de tal equivalência as idéias de utilidade, vantagem e conveniente

como oposto à justiça. Disso se segue que a retribuição adequada, enquanto

190 Romilly, J. de. La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote. Paris, 1971, p. 56. 191 G. J. Borter., Thrasymachus and Pleonexia, Mnemosyne, 39/3, 1986, pp.274-278.

Page 78: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

78

chave e base para assimilação significativa, serve para individualizar casos e

para qualificar ou considerar tanto o homem bom como o homem justo.

O que nos adverte o sofista é que, num contexto mais amplo, a noção

envolvida na idéia do útil pode ser recuperada com eficácia na condição de

que dita noção se torne funcional e dependente de base argumentativa,

significativa e ideológica, na qual a questão não se enclausure numa simples

controvérsia verbal.192

O resultado ideológico inerente à terminologia de Trasímaco mostra

uma espécie de conservadorismo ou, se preferir, uma forma de tradicionalismo

estatutário e de conformismo cidadão objetivo, derivado de um patrimônio

comum a todos os membros da cidade.

De outra parte, parece que esse contexto de conformismo é

característico de quase toda a sofística, da mesma forma que a limitação do

uso do discurso, que seria privativo dos que podem falar e podem ser

escutados, no sentido de que dispõem de poder material para falar, poder que

provém da posição sobressalente, venerável e quase sagrada que ocupam na

cidade.193

Alguns críticos assinalam a objetividade e o realismo do sofista, que

põe o acento na responsabilidade dos governantes pelas calamidades cidadãs,

192 Platão, República 336b-d. Alguns autores abordam a questão a partir do que chama fragmentos de

Trasímaco. Nessa linha, consideram como provavelmente originais oito, cujo mais importante seria o

nomeado „sobre a constituição‟, que conteria uma prevenção a respeito do uso do discurso. Nesse texto,

supostamente de autoria de Trasímaco, encontram-se recomendações sobre a oportunidade de falar em

público e o bom regimento da cidade. A situação é o que para o sofista gera a oportunidade de falar ou

calar. Somente quando o desacordo dá lugar ao conflito, apresenta-se a oportunidade de falar, sempre

ouvindo os mais experimentados e sábios. o discurso estaria vinculado a uma noção de ter sob controle,

sob tutela, com sentido objetivo, desprovido de qualquer conotação ética. Por outro lado, expressa o

regimento e a direção do que manda, assim como sua manifestação material de direção imposta, o qual o

associa diretamente com a idéia de poder que logo resultará central no debate da justiça. Esse é o

pensamento, por exemplo, de Salvador Rufino e Joaquin Meabe, cit., 100-104. Como também de A. M.

Bellido. Sofistas: testimonios y fragmentos. Madrid: gredos, 1996.

193 Marcel Detienne. Os mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.54-55.

Ver também Kerferd, em Le Mouvement sophistique. Paris: Vrin, 1999, p.82.

Page 79: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

79

com independência da ação dos deuses ou da natureza. Esse realismo, sem

embargo, é produto de uma descrição sensualista e se origina em uma marcada

sobrevalorização da experiência que uniformiza o dispositivo da cidadania em

duas ordens: a dos que governam e a dos que são governados. Essas ordens

trazem uma decisiva chave valorativa que coloca em evidência o traço

conservador de seu pensamento, no qual a sobre-estimação do poder não é

senão o resultado irreversível que, de certa maneira, obrigará a suportar as

calamidades ainda que sejam somente produto dos governantes.194

Resulta, então, que o mando, o poder estabelecido e sua variedade de

modalidades e formas de exercício, constatam-se de uma maneira irrecusável,

na presença da extensão funcional de sua representação material, observáveis

nos atos de mandos ou em suas respectivas titulações pessoais.195

3.3. Contradições aparentes

A posição sustentada pelo sofista Trasímaco no livro I da República é

justamente considerada pelos estudiosos muito complexa e de difícil

interpretação. Contudo, deixando de lado a questão de entender se as opiniões

expostas pelo personagem Trasímaco têm ou não algo relacionado ao

Trasímaco histórico, o dilema mais grave diz respeito à congruência ou não

das duas teses que ele parece apresentar no decorrer do diálogo.

E é logo este o problema que aqui pretendemos discutir: contra a

interpretação proposta por Mario Vegetti, segundo o qual “conjeturar uma

194 Lycos, K. Plato on justice and power. New York: State University of New York Press, 1987, p.78.

Igualmente Kraut, R. Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p.91. Reeve, C. D. C. The

argument of Plato’s Republic. Princeton: Princeton University Press, 1988, p.55. Antonio Gómez Robledo.

Platón: los seis grandes temas de su filosofia. México: Fondo de Cultura Economica, 1986, p.14. 195 White, N. P. Platos’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 1997, p.33.

Page 80: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

80

coerência entre as duas principais teses sustentadas por Trasímaco no diálogo”

constitui “um subtil equívoco” 196, a nossa intenção será de mostrar que na

realidade não existem duas teses distintas de Trasímaco, mas uma única tese, e

aquela que para alguns parece ser uma segunda tese, não é mais que um

esclarecimento e uma ulterior explicação da primeira, totalmente congruente e

coerente com ela.197

No parecer de quem escreve, como foi dito, esta reconstrução da

posição de Trasímaco exposta por Platão no livro I da República não é

convincente. Em primeiro lugar é preciso perguntar-se: quais são os motivos

para afirmar que Platão quisesse atribuir a Trasímaco duas teses, e não apenas

uma (mesmo exposta e argumentada por etapas)?

Se ficarmos na letra do texto, de fato, é mais que evidente o fato de que

Platão queria apresentar a segunda tese não como um ponto de vista

independente, mas como uma ulterior explicitação da primeira. Na passagem

em que Trasímaco expõe a assim chamada segunda tese, que citamos acima,

ela está estritamente ligada à primeira, sem solução de continuidade e no

interior da mesma frase:

a justiça e o justo são, na realidade, um bem alheio (segunda tese) – o útil de quem é mais forte e de quem tem

poder – inversamente, porém, um dano inerente a quem obedece e está em condição de servidão; ao contrário,

a injustiça manda sobre a verdadeira ingenuidade dos justos, etc.

Sendo assim, portanto, é totalmente evidente o que Trasímaco tem em

mente. Para combater as objeções de Sócrates – e particularmente aquela pela

qual quem exerce um cargo diretivo faz o bem dos subalternos – Trasímaco

explica o que queria dizer afirmando que a justiça é o útil do mais forte: queria

196 Trasimaco, in M. Vegetti (cur.), La Repubblica, vol. I, Napoli 1998, p. 234. 197 Esse é o entendimento de Franco Trabattoni, em ‘Quantas Teses sustenta Trasímaco no livro I da

República?’, apresentado no Simpósio da SBP, em Uberlândia, agosto de 2009, p.2.

Page 81: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

81

dizer que quem pratica a justiça é sempre o mais fraco, pois faz o bem alheio

(ou seja, o bem de quem é mais forte), enquanto quem é mais forte, uma vez

que faz o bem próprio e não o bem alheio, deve corretamente ser considerado

injusto. Então, se tomarmos o texto por aquilo que simplesmente diz, não há

de modo algum duas teses de Trasímaco, mas apenas uma.

Para sustentar a hipótese de que as teses de Trasímaco sejam

efetivamente duas, haveria a incompatibilidade, ou até mesmo a contradição,

no plano teórico. Vegetti, de fato, sustenta que a segunda tese é feita derivar

da primeira “somente mediante uma falácia retórica” 198, enquanto não apenas

ela não é absolutamente contida na primeira, mas até mesmo a contradiz.

Antes de entrar no mérito dos argumentos que Vegetti utiliza para

demonstrar o seu ponto de vista, observamos preliminarmente que este modo

de proceder aparece já por si mesmo bastante arriscado no plano metódico e

hermenêutico.

Se o texto de Platão, como vimos, apresenta de modo inequívoco a

segunda tese como uma ulterior explicitação da primeira (que se acrescenta às

explicações fornecidas inicialmente por Trasímaco em 338d-e), a tarefa do

intérprete deveria ser aquela de seguir docilmente as intenções do autor, e

tentar reconstruir a tese de Trasímaco (visto que existe claramente apenas

uma) procurando combinar de modo orgânico todos os dados a disposição:

primeira tese e sua explicação (338c-e), outra explicação desta mesma tese

(343b-d).

Pensar, ao invés, que uma suposta incompatibilidade abstrata e teórica

seja motivo suficiente para afirmar que Platão quisesse atribuir a Trasímaco

duas teses diferentes, quando o texto demonstra claramente o contrário, é uma

198 Vegetti, p. 251.

Page 82: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

82

maneira de proceder que viola os mais elementares princípios da

interpretação.

Vejamos com quais argumentos Vegetti demonstra esta

incompatibilidade e procuremos entender se são válidos. Como vimos,

segundo Vegetti, a passagem da primeira à segunda tese é realizada mediante

uma “falácia retórica”, que ele explica como segue:

se a justiça diz respeito aos súditos porque consiste no obséquio às leis, por um simples dispositivo polar a

injustiça caberá a quem promulga as leis, isto é aos fortes e aos poderosos.199

Contrariamente, Vegetti observa:

mas não é assim: segundo Ta [a primeira tese de Trasímaco], a dupla justo/injusto diz respeito somente aos

súditos em relação às leis, que são justas se as respeitam, injustas em caso contrário. Na origem da lei, isto é,

no nível do poder, o problema da justiça não se põe... À luz de Ta, portanto, não tem sentido atribuir a

injustiça aos detentores do poder de emanar as leis. Segundo o seu positivismo jurídico, este último resulta

eticamente neutro no momento da emanação da lei.200

Há um ponto sobre o qual a análise de Vegetti parece-nos

incontrastável. Nem a primeira tese de Trasímaco, tampouco a explicação que

logo segue implicam necessariamente o particular tipo de preenchimento ao

qual Trasímaco dará vida com aquela que Vegetti chama de segunda tese. O

que, de outro lado, é óbvio: se Trasímaco sentiu a necessidade de acrescentar

num segundo momento outras explicações é logo porque elas não podiam ser

deduzidas do que foi dito anteriormente (como demonstra o fato que Sócrates

havia contestado a sua tese sem ter presente este quadro mais amplo).

199 Vegetti, p. 252. 200 Vegetti, p. 253.

Page 83: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

83

Mas o problema é entender se este preenchimento, que certamente não é

implícito, é também impossível. Vejamos, portanto, como Trasímaco

argumenta a sua posição:

Toda forma de poder, portanto, fixa as leis em função do seu próprio útil: a democracia as fará democráticas,

a tirania as fará tirânicas, e semelhantemente as outras formas. E uma vez fixadas, as leis sancionam que justo

para os súditos é aquilo que é útil aos detentores do poder e consideram os transgressores como culpados de

ilegalidade e injustiça. É isto, portanto, excelente amigo, o que eu sustento de ser o justo no mesmo modo em

todas as cidades – o útil do poder constituído. Mas é logo isto que é forte, pelo que segue para quem raciocine

corretamente que justo é sempre o mesmo: o útil do mais forte. (338e-339a).

Então vejamos, agora, em que modo a suposta segunda tese se

demonstra compatível com a primeira, se reinterpretada da maneira que tenho

proposto. O cerne da tese de Trasímaco, assim como pelas explicações

acrescentadas em seguida, é que a justiça é o útil do mais forte (338c, 343c).

Uma vez estabelecido isto, o primeiro elemento novo que aparece na segunda

passagem é o princípio segundo o qual a justiça é um “bem alheio” (allotrion

agathón).201

À primeira vista, a compatibilidade destas duas definições parece

problemática, porque enquanto a primeira enuncia um princípio

aparentemente egoístico, a segunda enuncia um princípio aparentemente

altruístico. Mas trata-se de uma dificuldade facilmente superável. Para

entender em que modo, cabe sublinhar a centralidade da noção de útil.

Dado o caráter comum eudemonístico da ética antiga, na qual

convergiam tanto os Sofistas quanto os próprios Sócrates e Platão, é natural e

legítimo que cada um procure ou não possa ignorar o seu próprio útil.

Todavia, amplas franjas do pensamento político do século V pensavam que a

201 Se alguém leva a cabo uma ação é porque acredita que tal ação tem como conseqüência algo bom ou

benéfico para si mesmo.

Page 84: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

84

prática da justiça fosse desvantajosa, enquanto o útil seria alcançável mais

com a injustiça (tudo isso se pode verificar, obviamente, nas intervenções

provocantes de Gláucon e Adimanto no início do segundo livro da República).

Uma vez que esta é também a opinião declarada de Trasímaco (343d-

344a), eis portanto o significado da sua tese. Se justo é quem procura uma

vantagem para os outros, injusto é quem procura uma vantagem para si

mesmo. Mas, enquanto todos são levados a realizar a própria vantagem, todos

estão propensos a serem injustos. Sendo assim, como se desenvolve, no

âmbito da sociedade, a divisão entre justos e injustos? Mediante a divisão, de

fato, do poder.

Quem detém o poder, tem a possibilidade de ser injusto, portanto de

perseguir o próprio útil. A este fim exercerá o seu poder, promulgando as leis,

com a finalidade de impor aos governados o respeito da justiça, ou seja, a

obtenção do útil de quem governa.202

Na posição de Trabattoni203, é possível reconstruir de modo coerente e

orgânico, sem nenhuma incompatibilidade, a única teoria que Trasímaco

expõe de 338c a 344a:

1) a justiça é o útil do mais forte (de quem governa);

2) isto significa que a noção de justiça se torna operativa somente na presença

de uma divisão entre fortes (governantes) e fracos (governados);

3) no interior de uma sociedade assim constituída se define “justiça” o

comportamento dos mais fracos (governados) orientado a produzir o útil dos

mais fortes (governantes);204

202„O homem, assim como a cidade, é uma unidade diferenciada de múltiplos aspectos e qualquer projeto de

realização para o homem e para a cidade terá que levar em conta este aspecto.‟ Os sentidos do ‘mais forte’ na

República de Platão. Apresentado no Simpósio da SBP, em Uberlândia, agosto de 2009, p.12. 203 Franco Trabattoni, em ‘Quantas Teses sustenta Trasímaco no livro I da República?’, apresentado no X

Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, em Uberlândia, agosto de 2009, p.8. 204 O bem alheio é o pretexto usado pelo mais forte para obter a sua vantagem: a prática política mostra como

isso acontece. Isso confirma a relação inafastável entre aparência e realidade na ética e na política grega.

Page 85: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

85

4) a justiça pode ser corretamente definida como “o bem alheio”; de fato os

fracos (governados), os únicos que pratiquem a justiça, realizam, na medida

em que praticam a justiça, sempre e somente o bem/útil de outros, e nunca o

próprio: portanto praticar a justiça é sempre e somente fazer o bem dos outros;

5) na base de todas as proposições anteriores, pode-se definir também a

injustiça: se os fracos (governados) realizassem o próprio bem ao invés que o

dos outros (ou seja, os fortes/governantes), seriam injustos. Disso deriva que a

injustiça consiste em realizar o bem/útil próprio;

6) os governantes, que realizam o bem próprio e não o de outros, praticam a

injustiça;

7) o poder, e as leis que constituem o seu instrumento de exercício, são

utilizados por quem detém a posse seja para manifestar aos mais fracos

(governados) em que consiste a justiça, seja para obrigá-los a realizá-la, ou

seja, a produzir o bem alheio/dos mais fortes (governantes).

Se esta reconstrução for correta, dela deriva que o poder, segundo

Trasímaco, não é absolutamente neutro, mas é naturalmente ligado à injustiça.

Pois de fato cada um deseja o próprio útil, enquanto a justiça só e sempre é a

virtude dos fracos que realizam o útil do mais forte, quem detém o poder será

naturalmente, automaticamente e necessariamente injusto.

Por outro lado, esse mesmo raciocínio serve também para corroborar a

tese segundo a qual quem detém o poder jamais comete injustiça,

simplesmente porque não erra, não comete enganos nem tecnicamente nem

eticamente.205

205 É o caso da ficção do Totalitarismo: os mais fracos servem ao interesse do mais forte, mas esse não é o

governante, é o próprio Estado.

Page 86: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

86

Capítulo IV. Trasímaco revisitado: explicitado pela teoria da

aparência e pelo Livro II da República

4.1. A imagem e o discurso falso como condição da justiça na polis

Trataremos neste item de como a teoria da aparência e o cotejamento

com o segundo livro da República auxiliam no entendimento de que sem

Trasímaco a República não existiria e somente haveria uma tese.206 Se, na fala

de Sócrates, a justiça é relacional, então é preciso defini-la a partir de ambos

os termos da relação. É precisamente aqui que assenta o contributo de

Trasímaco ao conceber a justiça como um bem alheio.

O questionamento sobre a justiça, como abordado até então, leva em

conta a condição de ser Platão um pensador situado na sua cidade e

comprometido com o destino não só dela, mas do mundo grego, no século IV

a.C. A pesquisa levada a cabo na República procura responder a questões

colocadas por outros pensadores que o precederam no tempo ou que viveram

em sua mesma época e, ainda, a outras questões brotadas de sua própria

experiência e da sua atividade na Academia.

No Livro I, Platão coloca em discussão a noção de justiça. Sócrates,

personagem principal do diálogo narrado e condutor da pesquisa, analisa

diversas propostas que pretendem definir a justiça procedendo seguidamente

ao debate. É oportuno notar - como veremos adiante, em particular na

discussão que se dá com Polemarco e Glauco – que as respostas são

206 Para construção deste capítulo, servimo-nos, sobretudo, da obra do professor Marcelo D.

Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre aspectos epistemológicos,

éticos y de teoria de la acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue, 2007. Colhemos

argumentos na „Introdução‟ e nos capítulos I e II.

Page 87: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

87

complementadas por comentários adicionais que qualificam a resposta dada,

por vezes agregando informações e esclarecimentos nada evidentes.207

A primeira tentativa de refutação refere-se à aceitação de falibilidade do

governante que, em se enganando, poderia ditar leis contrárias a seus

interesses ou mesmo que parecessem ser de seu interesse, e que não seriam de

fato. O sofista não aceita essa refutação porque para ele o governante não se

define a partir do erro, assim como, também, o médico, por exemplo, não se

define pelos seus erros. Portanto, para ele, o governante, enquanto governante,

enquanto perdurar como artífice do poder, é infalível.208

A segunda tentativa de refutação, Sócrates novamente vai buscá-la

ainda, no exemplo das artes. O justo, em qualquer arte, é produzir segundo ou

com vista a certo bem próprio. E, baseando-se em exemplos de artes úteis, no

sentido de produzir certo bem a outro, Sócrates inclui entre essas a arte de

governar e, por isso, o útil é o que convém ao mais forte e ao mais fraco, só há

governo na relação entre os dois.

Trasímaco propõe, como alternativa à analogia de Sócrates, comparar a

arte de governar com a de pastorear, como contra-exemplo, para afirmar que,

tal como nesta, em que o bem é de quem pastoreia ou de quem delega a

função de pastor, e não das ovelhas.

Segue daí, segundo Trasímaco, que o bem da arte de governar é do

governante, e não do mais fraco.209

„é esta segunda tese que parece inverter a

posição acima expressa, pois neste caso é o poder – o político – que é feito

207 Discute-se se o Livro I é ou não separado dos outros nove que compõem a República, alguns autores

afirmam que ele forma uma unidade em si mesmo e que teria o título de “Trasímaco”. Essa discussão se

baseia na semelhança de estilo com os diálogos socráticos, que Platão teria escrito antes da sua primeira

viagem à Sicília. Para o nosso estudo, no livro I encontram-se os elementos sobre os quais Platão desenvolve

o seu conceito de justiça nos livros II, III e IV. Para mais informações, ver a „introdução‟ de Maria Helena da

Rocha Pereira à edição da República utilizada neste trabalho, p.XVIII a XX. 208 República 340 d – 341 a. 209 República 343 b – 344 e.

Page 88: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

88

depender do ético, pela subsunção da justiça – identificada com a ação do

governante – no bem. Mas é na natureza deste bem – condensado na idéia de

vantagem – que assenta a necessidade de fundar a cidade justa.‟210 Há uma

ambigüidade ética no „fazer bem‟.

Nesse ponto, Trasímaco toma a iniciativa do diálogo, não segue o

método socrático e faz uma verdadeira apologia das vantagens da injustiça,

tomando exemplos práticos tanto dos negócios internos quanto os de política

externa das cidades-estado e, conclui, afirmando que as críticas contra a

injustiça nada mais são do que do medo de sofrer injustiça e não poder dela se

defender.211

Sócrates retoma a iniciativa da discussão, procurando distinguir outro

aspecto da definição dada pelo sofista. Na verdade, busca, novamente, saber o

que todas as artes têm de comum. A isto ele chega, distinguindo para cada arte

o bem próprio da arte e o bem do autor da arte. Este último é a remuneração a

que cabe dar àquele que por sua arte produz um bem a outro. Segue daí que,

no caso do pastoreio, há o bem das ovelhas e o bem do pastor. Por analogia,

na arte de governar, há o bem dos mais fracos e o bem dos que governam. Um

bem não exclui o outro. Porém, com essa distinção, a tentativa socrática para

refutar a definição dada não avança.

Em 351c – 352a, Sócrates apresenta o argumento mais sólido para

esclarecer a definição de Trasímaco e superar o diálogo. Com esse novo

argumento, Sócrates transfere o foco da discussão para um ponto, com o qual

210 José Trindade Santos. 2008. p.82, nota 20, onde diz:‟parecerá incrível a um leitor atual que a superioridade

de um Trasímaco ou de um Cálicles possa ser considerada „ética‟, mas é assim que a encara um grego

clássico. Todo o paradoxal debate do Hípias Menor (em que o mentiroso voluntário, que sabe, é considerado

superior ao que involuntariamente mente, por ignorância) assenta no equívoco, ou na identificação, de dois

critérios distintos, potencialmente opostos, de avaliação da ação: o prático (fazer bem feito) e o ético (agir

com correção). Esta natureza paradoxal da ética constituirá precisamente um argumento para subsumi-la na

ação política. Esse é ainda o núcleo da defesa da physis levada a cabo por Cálicles, no Górgias.‟ 211 República 343 b – 344 e.

Page 89: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

89

Trasímaco também há de concordar, onde não pode haver injustiça. A partir

do que, retoma a discussão para descobrir qual sentido da definição que deve

ser considerado para orientar a ação.

Pergunta Sócrates: “Mas faz-me o favor de responder ainda a esta pergunta: parece-te que um

Estado ou um exército, piratas, ladrões, ou qualquer outra classe, poderiam executar o plano ilegal que

empreenderam em comum, se não observassem a justiça uns com os outros?”212

A partir da resposta negativa de Trasímaco, Sócrates modifica o caráter

do ser forte de um único, o governante, para o de um grupo que detém o poder

e isso leva a considerar o conceito de justiça como referido à justiça interna ao

grupo e como condição de possibilidade de ser forte, implicando a união, a

harmonia e a cooperação dos componentes do grupo. As partes do grupo

deverão atuar entre si de forma harmoniosa, sem ódio ou desavença para que o

todo obtenha aquilo que lhe convém. Da justiça interna vem a concórdia e a

amizade e, do contrário, o ódio e a desavença viriam da injustiça, que não

contribuiria para que o todo fosse forte.213

O conceito de justiça fica delimitado em 351c, traduzindo-se como

elemento de coesão interna de qualquer grupo, como condição necessária para

que possa levar com eficácia até mesmo a ação ilegal. E, por analogia,

Sócrates estabelece o conceito de justiça para os indivíduos do grupo.214

E se existir (injustiça) num só indivíduo, produzirá, segundo julgo, os mesmos efeitos que por

natureza opera. Em primeiro lugar, torná-lo-á incapaz de atuar, por suscitar a revolta e a

discórdia em si mesmo, seguidamente, fazendo dele inimigo de si mesmo e dos justos. 215

212 República 351 c. 213 Tese fundamental que visa à unidade da cidade, trabalhada no Livro IV. Toma-se o grupo como análogo da

cidade. 214 Há ambigüidade: injusto para os outros e injusto para o grupo. 215 República 352 b.

Page 90: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

90

Daí se conclui que existem três regiões de aplicação do conceito de

justiça: o indivíduo, o grupo e entre grupos. A condição de completa justiça do

grupo exige completa justiça entre indivíduos para a realização de uma ação

do grupo, com objetivo de trazer vantagem para o grupo, mas não

necessariamente para os grupos que compõem a cidade. A vantagem vira o

bem do próprio, logo: a) ou é injusta; b) ou depende do bem. Desta última

seguem: funcionalidade (352), unidade (351) e felicidade (354).216

Até aqui, o conceito de justiça está vinculado a ações vantajosas.

Sócrates procura aplicar essa regra de justiça como regra de vida, para isso

relaciona-a com virtude da alma, valendo-se da função própria dos seres

animados e da aproximação da virtude com o melhor da efetivação da função

própria do ser:

– Não concordamos que a justiça é uma virtude da alma, e a injustiça um defeito?

– Concordamos, efetivamente.

– Logo, a alma justa e o homem justo viverão bem, e o injusto mal.

– Assim parece, segundo teu raciocínio.

– Mas sem dúvida, o que vive bem é feliz e venturoso, e o que não vive bem, inversamente.217

A partir daí, Sócrates interrompe a investida feita, deixa-a em suspenso,

para retomá-la novamente a partir do livro II, quando investiga as condições a

que deve satisfazer uma Cidade-Estado, enquanto grupo forte, para que possa

buscar o que lhe convém.

216 Como adverte Boeri: „O problema é a percepção que cada um tem do que „é‟ o bem. A conseqüência que

em geral se tira do fato de que as aparências das coisas variam é que tal variação prova que as pessoas não

percebem as coisas como em realidade são. A dificuldade aparece quando a representação de alguma coisa é

articulada em um juízo e quando dois juízos com valores de verdade diferentes pretendem ser a descrição

correta do mesmo fato.‟ Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre aspectos

epistemológicos, éticos y de teoria de la acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue,

2007, p.24. Na República, a distinção entre o que parece bom e o que é bom está articulada em 505d. 217 República 353 e – 354 a.

Page 91: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

91

Em primeiro lugar e pelo personagem Sócrates, estabelece analogia das

relações que existem entre o justo e o injusto, com as que existem entre o bom

e o mau artesão, para deduzir que o justo é bom, sadio e virtuoso e o injusto é

seu oposto. Para isto, considerou cada um deles do seguinte modo:

a) o bom artesão (médico, músico etc.) somente tira vantagem do mau

artesão pelo fazer bem sua arte e não por outro motivo. Levar vantagem tem o

sentido de saber fazer a sua arte.

b) o mau artesão procura tirar vantagem tanto do bom quanto do mau

artesão, por não dominar sua arte, não saber fazer sua arte. Aqui vantagem tem

o sentido de ter sucesso sobre outro se utilizando de engano ou trapaça.

c) justo é aquele que procura levar vantagem do injusto, mas não do

outro justo.

d) injusto é aquele que procura tirar vantagem de qualquer outro, quer

seja justo, quer injusto.

Em segundo lugar, partindo de exemplos práticos de cidades-estado ou

de exércitos, bandos de ladrões ou de outro grupo qualquer de malfeitores,

Sócrates conclui da necessidade de que, internamente, deva imperar a justiça

para que haja unidade sem discórdia (351 a-b), sem ódio, como garantia da

condição de ser forte e de manter seu poder natural.218

Nessa direção, a injustiça parece ter uma força tal, em qualquer entidade

em que se origine – quer seja um Estado qualquer, nação, exército ou qualquer

outra coisa –, que induz a incapacidade de atuar de acordo consigo mesma,

218 Para Boeri, „as posições socráticas típicas (como „o tirano não tem um grande poder nem faz o que quer‟,

„é pior cometer injustiça do que sofrê-la‟, „para quem cometeu um delito é bom ser castigado‟) demonstram

claramente a distinção aparência-realidade em ambos os planos: teórico e prático.‟ Apariencia y realidad en

El pensamiento griego: investicaciones sobre aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de la acción en

algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue, 2007, p.25.

Page 92: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

92

devido às dissensões e discordâncias; e, além disso, é inimiga de si mesma e

de todos os que lhe são contrários e que são justos.219

Em terceiro, Sócrates parte da constatação de que todas as coisas que

existem têm virtudes e excelências próprias pelas quais realizam operações

segundo sua natureza, para afirmar que a alma tem uma operação que lhe é

própria, que é a de dirigir, de governar e de todas as coisas desse gênero que

são funções próprias da alma e constituem sua virtude.

Nesse sentido, aduz: não te parece ter uma virtude que lhe é própria tudo aquilo que está

encarregado de uma função? ... A alma tem uma função, que não pode ser desempenhada por toda e qualquer

outra coisa que exista, que é a seguinte: superintender, governar, deliberar a todos os demais atos da mesma

espécie. Será justo atribuir essas funções a qualquer outra coisa que não seja a alma, ou devemos dizer que

são específicas dela?220

Em quarto lugar, pela combinação do concluído no primeiro e no

terceiro lugares e afirmando que a justiça é virtude da alma, remetendo-se ao

concluído no segundo lugar, Sócrates afirma que o sentido de viver bem é o

viver segundo a virtude e isto se aplica ao justo e não ao injusto. Este é um

desgraçado e aquele, feliz. Segue daí que a felicidade é mais vantajosa que a

infelicidade. “Logo, a alma justa e o homem justo viverão bem, e o injusto

mal.”221

Sintetizando o resultado do diálogo entre Sócrates e Trasímaco, o qual

não foi convincente aos demais participantes do diálogo, vemos que Sócrates

associou várias idéias para chegar às suas conclusões:

219 República 351 e, 352 a. A persuasão domina as relações cotidianas – na educação tradicional, nas

deliberações militares, nos Tribunais, no Conselho da cidade, na Assembléia e nas reuniões dos cidadãos. 220 República 353 c- d. 221 República 353 e.

Page 93: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

93

1) analisou função em unidade e finalidade, depois, esta com virtude,

tomadas no sentido de função própria da alma e segundo sua natureza.

Resultado da associação da unidade e finalidade.

2) associou bom artesão com homem justo para deduzir de bondade,

sabedoria e virtude desse último.

3) associou justiça com unidade interna das partes que constituem um

todo, enquanto esta é necessária para que o todo seja forte.

Na discussão, Sócrates vê-se limitado a estabelecer o conceito de justiça

nos limites da tese de Trasímaco, cujas conclusões poderão ser exploradas nos

livros seguintes para definir a justiça a partir do que entende por verdadeira

vantagem do grupo, enquanto grupo forte e dos indivíduos que participam de

um grupo forte. O conjunto de conclusões a que Sócrates chega no Livro I,

mesmo sem definir o que é justiça, são, no nosso entendimento, as seguintes:

1) a justiça implica unidade de propósitos e ações harmoniosas e

cooperativas dos indivíduos componentes de um grupo que pretende levar

uma ação em conjunto com maior eficácia, no sentido de obter vantagem.

Logo, a justiça é vantajosa para o grupo;222

2) a justiça é uma virtude da alma e torna o homem justo feliz;

3) o grupo com justiça interna é constituído de indivíduos que agem

entre si de modo justo e são, portanto, justos;

222 Relevante destacar que a refutação socrática e a erística sofística se aproximam bastante. „O sofista não é

um objeto comum, face ao qual o caçador filósofo poderia permanecer indiferente; ele é múltiplo, não se

deixa circunscrever por um discurso usual, que busque a identidade imediata da definição entendida como

fórmula proposicional. Ele é um pretendente à posição de sábio na cidade, aquele que exerce função de

sabedoria associada ao exercício do poder na condução da cidade. Ele se revela, então, como um concorrente

político do filósofo, aquele contra o qual o filósofo se define enquanto homem de sabedoria e homem de

poder.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte:

UFMG, 2006, p.35.

Page 94: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

94

4) um grupo que age com eficácia é constituído de indivíduos justos e,

portanto, felizes. A felicidade do indivíduo está em correlação com a eficácia

da ação do grupo do qual é componente;

5) o conceito de justiça como virtude da alma, apresentado em 353 e –

354 a, está impregnado do conceito de justiça definido a partir da ação

vantajosa.

Como dissemos acima, a continuação do diálogo deverá explorar o

sentido da função própria da alma e, conseguintemente, definir o que é uma

ação verdadeiramente vantajosa como regra de vida, reforçando a ligação

entre unidade, finalidade e felicidade, que assumirá sua função ordenadora no

livro IV. Para tanto, não se pode deixar de enfrentar a pertinência do discurso

falso como elemento integrante da ação política, e da manutenção do poder

nas mãos do mais forte.223

Na pragmática política, a vida na cidade se estrutura e se estabelece

como campo da dóxa, ou seja, da imagem e da contradição por excelência. O

indivíduo humano, pelos argumentos que avança, pelas representações que

produz e pelas ações que realiza na cidade, se encontra face a face com outro

indivíduo humano.224

223 „Segundo Platão, os homens produzem as representações das coisas, não como elas são, mas como elas

lhes parecem ser; eles produzem opiniões e discursos falsos que não são reconhecidos como tais. O sofista é

aquele que acredita que esta representação das aparências, do que é aceito como sendo verdadeiro, é tudo o

que é capaz de produzir o discurso humano, o que ameaça radicalmente a possibilidade de discursos

verdadeiros e, conseqüentemente, de toda filosofia. É preciso estabelecer a possibilidade da falsidade e, com

ela, a possibilidade da verdade.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do

Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.36. 224 Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG,

2006, p.33. O professor Pimenta, nesse livro, entende que „a filosofia é uma retórica e que ela, enquanto tal,

implica uma certa relação com o outro; quem pensa e fala, o faz tendo em vista outro psiquismo, outra

inteligência a que dirige seus argumentos e com quem constrói mediações, mostrações e demonstrações‟,

p.34.

Page 95: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

95

Ao remeter a prática discursiva de Platão ao fundo de cultura da qual

emerge, queremos indicar que ela representa uma tomada de consciência dos

problemas da cidade, assim como de suas práticas discursivas e de suas

deliberações políticas. Nesse sentido, toda relação técnica é, antes de tudo,

uma relação ética e política, porque se dá enquanto ação com o outro, porque

somente se realiza nas relações e através das relações dos indivíduos uns com

os outros, porque envolve os bens visados pela ação, porque a ação discursiva

se desdobra na cidade, pondo em jogo os valores fundamentais da vida em

comum.225

4.2. Revisão dos conceitos: análise dos argumentos no segundo livro

da República

No Livro II, em continuação e na procura da definição de justiça,

Gláucon manifesta-se insatisfeito com os resultados da investigação no Livro

I. Cabe agora a Gláucon, em primeiro lugar, e depois a Adimanto, insatisfeitos

com a defesa da justiça feita por Sócrates, exercerem a defesa da injustiça,

cobrando-lhe uma convincente refutação.226

Ambos, Gláucon e Adimanto, parecem não acreditar que a injustiça é

mais vantajosa que a justiça, mas o sentido do desafio que lançam a Sócrates é

ouvir um argumento que prove que a justiça é melhor que a injustiça, quando

as realidades políticas mostram o contrário. Em causa, acham-se duas

225 Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG,

2006, p.35. O orador, na mostração pública, e o sofista, no diálogo privado, desenvolverão toda uma técnica

de produzir estratégias de ação sobre o outro, sobre seus concidadãos, através do discurso. O que faz Sócrates

em sua ação discursiva é explicitar as implicações dos questionamentos dos valores operado pelos sofistas. A

excelência do indivíduo é perfeitamente congruente com a excelência da cidade, onde comanda e governa o

elemento que é o melhor. 226 A resistência de Gláucon não é casual, pois não está totalmente convencido de que Trasímaco tenha sido

efetivamente refutado. A relação entre aparência e realidade indica claramente isso (361-362).

Page 96: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

96

concepções de felicidade. Uma ligada à noção de bem-estar material,

vantagem, egoísmo (365d); outra vinculada à harmonia com o bem (420-421).

Ocorre então uma mudança de contexto: o debate passa a investigativo.

Gláucon dá início aos argumentos em seqüência àqueles abandonados por

Trasímaco em defesa da injustiça, para querer saber, de Sócrates, o que são em

si mesmos a justiça e a injustiça e os seus efeitos que por si mesmos produzem

uma e outra quando se instalam numa alma.227 Gláucon propõe a distinção de

três espécies de bens, para levantar a questão sobre a qual delas pertence a

justiça. Vejamos a distinção proposta por Gláucon:

... não te parece que há uma espécie de bem, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as

suas conseqüências, mas por estimarmos por si mesmo, como a alegria e os prazeres que forem

inofensivos e dos quais nada resulta de futuro, senão o prazer de os possuirmos? ... E aquele

bem de que gostaríamos por si mesmo e pelas suas conseqüências, como por exemplo a

sensatez, a vista e a saúde? Pois tais bens, apreciamo-los por ambos motivos... Uma terceira

espécie de bens, no qual se compreende a ginástica e o tratamento das doenças, e a prática

clínica e outras maneiras de se obter dinheiro?228

Tanto Gláucon quanto Sócrates estão de acordo que a maioria das

pessoas enquadram a justiça na terceira classe de bens, acima descrita, como

algo desejável somente pelos benefícios que dela decorrem, ou pior, da

ausência dos malefícios produzidos pelo seu contrário229

. Ambos, porém,

classificam a justiça na segunda classe de bens, embora não tendo apresentado

argumentos para justificá-lo. Para Platão, os resultados, as conseqüências, os

frutos da justiça são levados em conta, seja com igual peso ou não (isso não é

227 Trasímaco não está interessado em definir a justiça no sentido de saber o que ela é, mas, pelo contrário, em

mostrar como, na cidade real, ela é produzida pela prática política. Não é esta a posição de Gláucon e

Adimanto, que deduzem a justiça a partir do bem (357 b-c). É desta posição do problema que decorre a

mudança de contexto do debate: os argumentos são os mesmos, mas a finalidade é construtiva. Abre-se

espaço para a ética, que é o terreno de interesse de Sócrates. Altera o que foi dito no livro I, sem o negar. 228 República 357 b-d. 229 O parecer da maioria não é esse, mas sim que pertence à espécie penosa, o que se pratica por causa das

aparências, em vista do salário e da reputação, mas que por si mesma se deve evitar, como sendo dificultosa.

(República 358 a). O que está em jogo é o risco de se desvirtuar a ação.

Page 97: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

97

esclarecido), juntamente com o valor em si da justiça, pelo que a justiça é um

bem de segunda classe.

Gláucon confessa a Sócrates que a maioria das pessoas pratica a justiça

somente pelo que ela traz de vantagem e porque não tem disponível uma

alternativa melhor. Além disso, afirma que é natural que os homens achem

bom cometer injustiça e mau sofrê-la230

e, quando experimentam cometer e

sofrer injustiça, aqueles que não podem evitar sofrê-la consideram útil

entender-se para não cometer nem sofrer injustiça, e aqueles que podem evitar

não sofrer injustiça, continuarão a cometê-la231

.

No primeiro caso estamos diante dos contratos, das convenções, das leis

a que os homens se dão mutuamente para evitar o mal maior, que é sofrer

injustiça e não poder se vingar. Aquele que pode cometer injustiça e evitar

sofrê-la não tem motivos para se submeter e esse tipo de acordo. A justiça

decorreria da falta de garantia para preservar-se contra o mal maior, portanto

ela é buscada como um bem de segunda ordem (343c – 344c).

Dadas as condições favoráveis, nada impediria alguém de ser injusto,

afirma Gláucon. Para ilustrar este argumento, Gláucon narra a história do anel

de Giges232

, para concluir que, se um homem justo pudesse dispor de poderes

como aqueles do anel, não se diferenciaria do homem injusto, não há nada em

suas naturezas que os tornem diferentes um do outro: se o homem justo

pudesse seguir sua vontade, ele agiria de forma injusta: roubaria, mentiria,

mataria etc., desde que nada sofresse por isso.

230 (...) é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor do que a

do justo, no dizer deles. (República 358 c) 231 Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre eles e a designação de legal e justo para as

prescrições da lei. Tal seriam a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem –

não pagar as injustiças – e o maior mal – ser incapaz de se vingar de uma injustiça. (República 359 a). Há

relação com o argumento de Cálicles. 232 Em 359 c – 360 b, Platão adapta uma história contada por Heródoto (I, 8-12) incluindo a parte do anel que

tinha poder de tornar invisível quem o possuísse.

Page 98: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

98

Portanto, justo é que o que se mostra na aparência como tal, pelo que é

esperado comportar-se, segundo regras estabelecidas e, com isso, evitar o mal

maior.233 Somente diante de um efetivo medo de que venha a sofrer injustiça é

que os indivíduos, segundo Gláucon, se colocam, mutuamente, em estado de

fiscalização de cumprimento do acordo quanto ao modo esperado de

comportamento.234

Por outro lado, o injusto, suficientemente esperto e capaz de ludibriar a

fiscalização do outro ou de poder usar meios de confundir os demais, teria

maiores vantagens do que aquele que é justo. Nessa forma de pensar a justiça,

Gláucon sustenta-se no poeta para defesa de sua tese:

O dito de Ésquilo, aplicar-se-ia muito melhor ao injusto. Efetivamente, dirão que o injusto,

preocupando-se com alcançar uma coisa real, e não vivendo para a aparência, não quer parecer

injusto, mas sê-lo, colhendo, em espírito, o fruto do sulco profundo do qual germinam as boas

resoluções.235

Segundo essa forma de compreender a justiça, a desvantagem do justo

se agravaria ainda mais porque, parecendo ser injusto, sofreria conseqüências

por esse comportamento. Daí, poder-se-ia perguntar: se assim parecem que

são as coisas, então, quem escolheria ser justo?

Adimanto intervém para reforçar e completar os argumentos do irmão.

Nessa intervenção, Platão introduz críticas à Paidéia grega e aqueles que a

sustentam, como é o caso de Homero e Hesíodo. Diz Adimanto que os pais e

233 „Toda opinião refere-se a alguma coisa que aparece, toda opinião vem a ser em uma experiência efetiva. O

que aparece constitui o ambiente no qual uma opinião se forma. A opinião não faz mais do que manifestar

essa efetividade, essa positividade. Não se trata, portanto, de examinar se ela é verdadeira ou falsa, o que

importa é que alguém tenha percebido alguma coisa em uma disposição tal; essa positividade é suficiente para

dar conteúdo à opinião e para justifica-la.‟ 233 Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma

leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.120. 234 O episódio do anel de Giges mostra, segundo Gláucon, que ninguém é justo de bom grado, senão que o é

porque se vê obrigado a sê-lo. No contexto, ser justo deve significar respeitar a lei. O que faz a lei

convencional ou positiva é obrigar os homens a não fazerem o mal abertamente. 235 República 362 a.

Page 99: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

99

tutores recomendam aos filhos e pupilos que sejam justos pela consideração

moral que dela resulta:

“Em primeiro lugar, manda na cidade, por parecer justo; em seguida, pode desposar uma mulher da

família que quiser, dar as filhas em casamento a quem lhe aprouver, fazer alianças, formar empresas com

quem desejar, e em tudo isso ganha e lucra por não se incomodar com a injustiça.”236

Isso também vale para a religião, pois as divindades prodigalizam os

justos tanto na vida, como no Hades. Portanto, assim também era para os

poetas como para o comum dos homens, penosas as virtudes e a justiça,

enquanto os vícios e a injustiça seriam agradáveis.

Os argumentos de Gláucon e Adimanto são desafios a serem

enfrentados por Sócrates para encontrar resposta às questões que envolvem a

noção de justiça; sobre o valor da justiça em si mesma e sobre os benefícios de

escolher viver de forma justa, que não sejam aqueles a que o senso comum e

os poetas se referem; enfim, que Sócrates convença a eles de que a justiça é

um bem que vale por si e por suas conseqüências, na condição de que estes

não sejam desejados devido a sua aparência ou para evitar o mal maior.

Parece-nos que a exigência é de tal ordem, que deve valer mesmo diante

da possibilidade de se dispor de um anel de Giges, não no sentido mágico, mas

no de significar qualquer meio que permita quando se queira escapar de pagar

por cometer injustiça.

Tomando novamente a direção do diálogo, Sócrates procurará dar

respostas às questões de Trasímaco, às de Gláucon e às de Adimanto, não

mais pelo método da refutação. Como um artesão, ele desenvolve argumentos

valendo-se de várias idéias sugeridas no diálogo pelos seus interlocutores, que

236 República 362 b.

Page 100: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

100

ao final, depois de uma longa exposição, permitem compreender qual é a

concepção de justiça de Platão.237

A estratégia de argumentação de Sócrates em defesa da justiça procede

pela via indireta.238

Assimilando a lição de Trasímaco, Sócrates começa a

pensar em constituir um Estado imaginário seguindo a linha inicial de caráter

antropológico a que, mais tarde, se juntará uma linha metafísico-religiosa,

como o lugar onde se poderia encontrar a justiça para, daí, buscar a justiça no

homem.

Em resumo, este Estado de ordem seria, de início, um Proto-Estado

baseado na satisfação de necessidades materiais, segundo um modelo de

cooperação e de divisão de tarefas entre homens, incapazes de, sozinhos,

encontrarem os meios de satisfazer suas necessidades de sobrevivência,

portanto, não auto-suficientes, que ,reunidos, trabalham segundo um princípio

de eficiência do conjunto239

. Nesse Estado original auto-suficiente há um

equilíbrio entre produção e consumo, suprindo-se as demandas por um sistema

de trocas que Platão não se detém a detalhar240

.

237 „Portanto, em Platão, a crítica da antilogia concerne tanto ao fato de que os discursos dizem coisas

irremediavelmente contraditórias com relação aos seres, como ao efeito que a contradição produz no

interlocutor; o que nos permite compreender a dialética platônica como um esforço para ultrapassar a

antilogia sofística nos dois planos: lógico-epistemológico, o que o discurso diz sobre as coisas, e ético-

político, o que o discurso faz com o outro.‟ Marcelo Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma

leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.124. 238 „Dize-lhes então qual era o meu parecer, que a pesquisa que vamos empreender não era coisa fácil, mas

exige, a meu ver, acuidade de visão‟.

(República 368 c-d) 239 O princípio da eficiência é encontrado na passagem: „o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil,

quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em paz

as outras.” (República 370 c). O conceito de justiça para Platão pressupõe este princípio de eficiência, que

está vinculado ao princípio da divisão do trabalho no livro IV. 240 A descrição desse Proto-Estado, como uma cidade-pura, a seguir uma ordem natural, seria análoga a uma

“cidade de porcos”, na expressão de Gláucon, em 372 d. Este paraíso será quebrado para se transformar em

“cidade de luxo”, quando os homens quebram essa harmonia natural.

Page 101: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

101

Platão chega, portanto, ao ponto de justificar a necessidade de um

exército para proteger a organização social e para garantir o equilíbrio da

satisfação das necessidades materiais de seus membros. Um exército de

homens que tenham função específica e não outras, segundo o princípio da

eficiência, que determina a divisão de tarefas. Sugere Platão o que será o

ponto de apoio de seu projeto: a defesa da ordem contra os inimigos internos e

externos deverá ser uma tarefa específica, a ser executada por um “artesão”

especial – o guardião.241

A necessidade de um corpo de guardiões exercendo uma função sem

participar diretamente do conjunto de funções da produção, do transporte e da

troca dos bens, requer que o guardião receba uma formação que não segue a

tradição baseada na transmissão de conhecimento técnico do mestre ao

aprendiz. Há que se propor para ele um adequado programa específico de

formação das qualidades necessárias, que Platão descreve de 374 c – 376 d.

Em 376 d – 383 c, Platão completa o Livro II, com relação à formação

do guardião, aproximando a experiência da educação grega àquela que ele

propõe. Com isso mistura ficção com a realidade com a qual deverá buscar a

resposta à questão da justiça. O que Platão tem em vista é o próprio mundo

grego e, em especial, Atenas, na perspectiva de um Estado capaz de

ultrapassar as necessidades de seus cidadãos, visando a persecução das suas

finalidades. 242

241 Para Roberto Bolzani, Gláucon apresenta as principais características que o próprio diálogo considera

como próprias do guardião da cidade, isto é, de seu possível governante. A concepção de filósofo que a

República veicula poderia assim, ao menos em certa medida, ser observada no principal interlocutor socrático.

Glauco, guardião do logos. Apresentado no X simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas,

em Uberlândia, agosto de 2009, p.1. 242 O projeto platônico de fundação da cidade justa é dominado por duas teses: a) a vida que os homens levam

na cidade não é real; b) há que rejeitar essa existência inautêntica, educando os cidadãos com vista ao

desenvolvimento da natureza humana. José Trindade Santos. Platão: a República. In: 10 livros que mudaram

o mundo. Lisboa: Quase Edições, 2005, pp. 131-145.

Page 102: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

102

Para isso, Platão critica a Paidéia grega em função de identificar o que

serve e o que não serve para o programa de educação do guardião – o que será

a Paidéia platônica. Platão segue o caminho mais longo, passando pelos

fundamentos da cultura grega, para encontrar um conceito de justiça e por

isso, quando chegar a esse conceito, ter-se-á realizado a crítica do mundo

grego, segundo seu modelo de Estado.

Em 415 a-d, Platão relata o mito, variante do que fora contado por

Heródoto, dos homens que nasceram com alma de ouro, aptos a governar, os

com alma de prata, aptos a auxiliar os primeiros e os com ferro e bronze na

alma, destinados a serem lavradores e demais artífices. Este mito deve ser

contado (mesmo reconhecendo ser mentira, por Sócrates) como se fosse uma

fábula vinda da tradição.243

Além do programa de educação dos guardiões e de uma criteriosa

relação dos melhores para exercer a função de proteção da cidade, é

necessário, afirma Platão em 416b-d, que a comunidade disponha de

mecanismos de controle e com poder para fiscalizar a atuação do guardião

para que este não venha a ser tentado a abusar do poder em prejuízo da

comunidade. Platão não detalha este sistema de controle, mas pode-se

considerar que os mecanismos de controle dos regimes democráticos

satisfariam, de modo geral, a função a que ele alude.

Observamos que Platão reconhece que a educação não afasta a

possibilidade de o guardião se desviar de suas funções. E ainda, que a classe

dos guardiões, não pertencendo à classe produtiva, não deve “possuir bens

243 Ver notas 87, 88 e 89 de Maria Helena da Rocha Pereira, no livro III da República. É a questão da nobre

mentira, da identidade cultural.

Page 103: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

103

próprios, a nos ser coisas de primeira necessidade”244

; que devem receber dos

artesãos salário pelo exercício de sua função, tal que nada lhe falte, nem sobre.

No modo de vida desenhado para os guardiões, transparece o modelo

espartano.

Isso leva Adimanto a questionar Sócrates (419 a – 420 b) sobre que

vantagens têm os guardiões de exercerem tão poderosas funções, se são

privados de possuir bens, como os cidadãos comuns e estarem em constante

vigia do Estado? Sócrates responde-lhe que é possível que os guardiões sejam

mesmo assim os mais felizes dos homens, pois não é para um particular que se

deve buscar a felicidade, mas a maior felicidade para todos:

“(...) nem de resto tínhamos fundado a cidade com o fato de que esta raça, apenas, fosse

especialmente feliz, mas que o fosse tanto quanto possível, a cidade inteira.”245

A importância deste argumento justifica que perguntemos: Qual é o

sentido de felicidade que Platão usa para que se possa aplicar ao Estado inteiro

e não especificamente a um indivíduo ou a um grupo? Platão não responde

diretamente esse tipo de questão, mas o faz de forma indireta. A cidade

organizada segundo a divisão de tarefas, cuidada pelos guardiões que se

dedicam exclusivamente a esta tarefa, é onde mais facilmente se pode

encontrar justiça e onde é possível alcançar a maior felicidade possível para a

cidade inteira.

Pergunta-se: isto é suficiente para ser feliz ou é necessário buscar outros

padrões para a cidade, para que não seja somente por preservá-la dos efeitos

244 República 416 d. A distinção bem real-bem aparente é decisiva na hora de planejar um curso efetivo de

ação. De fato, a discussão de se os justos vivem melhor e são mais felizes que os injustos não constituem um

tópico vão, mas se trata de tema grave por importar o estudo dos efeitos do poder aparente que se manifesta e

impõe aos cidadãos. Marcelo Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre

aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de La acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires:

Colihue, 2007, p.40. 245 República 420 b.

Page 104: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

104

negativos do conflito e que não seja uma cidade apenas voltada a atender às

necessidades de seus cidadãos?

Platão sugere que a cidade feliz deve seguir o princípio da justa medida

grega, como, por exemplo, não seja nem tão rica nem tão indigente, pois os

dois extremos são prejudiciais ao convívio na cidade: “uma, porque dá origem

ao luxo, à preguiça e ao gosto pelas novidades; e outra, à baixeza e à maldade,

além do gosto pela novidade.”246

(A riqueza e a indigência, já que uma traz

consigo a moleza e a ociosidade, e a outra, a vileza e a degradação de qualquer

arte, e tanto uma como a outra tem a tendência para inovar).

Como conseqüência, a uma cidade assim, nem tão rica nem tão pobre, é

fácil ser aceita como aliada em uma guerra por não ter ambição desmedida

que é causa de conflitos, e porque é forte por ser unida internamente e ter

guardiões fortes, corajosos e dedicados a defendê-la.

A homologia entre a alma e a cidade se verifica em cada indivíduo,

entre as partes da alma e entre esta e seu corpo247. Aos poucos Platão procura,

por transposição, atingir o objetivo ético de seu projeto. A educação do

guardião, necessária para cumprir a tarefa de proteção da Cidade-Estado,

devendo ser estendida a todos os jovens filhos de cidadãos, passa a ser um

programa, de fato, que modela o ideal de cidadão, que se for assumido por

todos, mesmo exercendo outra tarefa na Cidade-Estado, seu caráter será

formado tendo em vista o bem comum que concorre para a paz interna da

Cidade-Estado.

246 República, 422 a. 247 A alma tripartida não merece aqui maior atenção, pois não há nos diálogos doutrinas platônicas, são pontos

de vista.

Page 105: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

105

A felicidade então passa a ser compreendida da perspectiva do Estado.

Por extensão, o indivíduo-cidadão é mais feliz por viver no melhor Estado

possível, naquele que pelos seus cidadãos é prudente, corajoso, moderado e

justo.248

Por estas virtudes, ele pode conservar-se bom para se viver, cada um

fazendo aquilo para o qual a sua natureza é mais adequada, ocupando-se de

uma função no Estado. Deste modo é possível realizar as suas funções

eficazmente na cidade.

Terminando a fundação da Cidade-Estado, cumpre-se o propósito

inicial, que era o de responder o que era a justiça. Platão não diz o que é a

justiça, mas como ela se manifesta na Cidade-Estado por ele imaginada.

Platão o diz de vários modos. Primeiro que a posse e a prática do que é

próprio de cada249

um será reconhecida como condição de possibilidade da

justiça.

O segundo modo de descrever a justiça será através do homem justo, o

qual é definido, por analogia, a partir das virtudes das três classes de cidadãos.

Nele encontramos, como na Cidade-Estado justa, a justiça como a virtude que

gerencia a temperança, a coragem e a sabedoria, e mantém-nas unidas e

hierarquizadas sob o comando da sabedoria. Tanto na Cidade-Estado justa

como no homem justo, a justiça traduz o bom, o desejado, quando cada parte

cumpre sua função de forma excelente250

.

Por outro lado, Platão apresenta uma terceira descrição de justiça que é

dada pela sua negativa – a injustiça. Há injustiça na Cidade-Estado quando há

quebra de hierarquia entre as classes, quando há abuso de poder, quando

248 Prudência, coragem, moderação e justiça são quatro virtudes cardeais, baseadas na doutrina pitagórica. 249 Expressões utilizadas por Platão como “o que é próprio de cada um” ou “segundo sua natureza”, quando

aplicadas a ocupações das funções do Estado, estão comprometidas com o princípio da eficácia de

funcionamento do Estado, segundo o qual o homem certo no lugar certo, maximiza a eficiência do conjunto.

O que é discutível é como definir “homem certo e função certa”. 250 República 441 d - e - 442.

Page 106: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

106

alguém é prejudicado em sua função por que não faz o que lhe diz respeito e

faz o que não lhe diz respeito; quando há desequilíbrio entre riqueza e

pobreza; quando o indivíduo é impedido de exercer ou não lhe é oportunizado

ter funções na Cidade-Estado segundo sua excelência; quando a Cidade-

Estado, no seu contexto, deixa de apresentar as virtudes próprias de cada

classe. Há injustiça na alma, quando houver quebra de hierarquia da parte

concupiscível ou da parte irascível em relação à parte racional e quando

deixem de apresentar, cada alma, as virtudes próprias.

Portanto, da educação do guardião segundo as virtudes necessárias para

servir a Cidade-Estado, Platão construiu um estado ideal, cujas virtudes

próprias das três classes transferem a ele ou recebem dele essas mesmas

virtudes. Retornando do estado ao cidadão, surge a afirmação de que a alma

humana é análoga ao estado e ela se constitui de três partes. Daí segue que, o

que se aplica ao estado aplica-se à alma do indivíduo e vice-versa. No estado

perfeito e na alma perfeita há a virtude que unifica e sustenta as demais

virtudes – a justiça.

Fazendo um balanço deste capítulo, podemos afirmar que Platão chega

ao conceito de justiça fundando um Estado eficiente que garanta a satisfação

das necessidades de seus cidadãos, protegido contra as ameaças internas e

externas à sua existência e, ainda, sendo provável bom parceiro em alianças

com outros Estados. Da eficiência do Estado chega-se ao indivíduo eficiente

para o Estado, o qual é formado, para tal, pela educação.

O conceito de justiça está vinculado, na origem, à noção de finalidade.

A seguir, veremos como Platão procurará uma nova dimensão para o conceito

Page 107: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

107

de justiça, para além da eficiência, determinando que quem age com eficácia

age corretamente do ponto de vista ético.251

Em que sentido a justiça é um bem maior para quem a tenha

independentemente dos ganhos, méritos e perdas que advêm de seu agir em

situação no Estado? A resposta encontramos na República não de uma forma

sintética, mas disseminada em vários pontos do diálogo. Por exemplo, a tese

que afirma que a justiça, independente da dor e da desonra, é mais vantajosa

que a injustiça, acompanhada das honras do justo, é apresentada por Sócrates

sem qualquer justificativa.252

Richard Kraut 253

defende a tese de que Platão se apóia na teoria das

Idéias para justificar essa proposição. Kraut aponta quatro argumentos a favor

da tese platônica, os quais encontram-se na República. O primeiro deles

encontra-se em 443c-d – 444a, que citamos a seguir:

– Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste gênero, ao que parece, exceto que não diz

respeito à atividade externa do homem, mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que

lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se dedique a tarefas alheias nem

que interfiram umas nas outras, mas depois de ter posto a sua casa em ordem no verdadeiro

sentido, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido

harmonicamente três elementos diferentes, exatamente como se fossem três elementos numa

proporção musical, o mais baixo, o mais alto e o intermediário, e outros quaisquer que acaso

existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os, de muitos que eram, numa perfeita

unidade, temperante – harmoniosa – só então se ocupa (se é que se ocupa) ou da aquisição de

riquezas, ou dos cuidados com o corpo, ou da política, ou de contratos particulares, entendendo

em todos estes casos e chamando de justa e bela à ação que mantenha e aperfeiçoe estes

hábitos, e apelidando de sabedoria a ciência que preside a esta ação, ao passo que denominará

de injusta a ação que os dissolve a cada passo, e ignorância a opinião que a ela preside.

251 Platão quer criar uma cidade tal como a natureza humana. 252 “Então jamais a injustiça seria mais vantajosa do que a justiça, ó bem aventurado Trasímaco” (Rep. 354 a);

“Ó Sócrates, queres aparentar que nos persuadiste ou persuadir-nos da verdade, de que de toda a maneira é

melhor ser justo do que injusto?” (357 a-b). 253 KRAUT, R. The defense of Justice in Plato´s Republic - In Plato. Kraut, R. (ed). Cambridge: Cambridge

Press, 1993, p.77.

Page 108: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

108

O segundo argumento encontramos no Livro IX em 580b-c, que é uma

conseqüência e aplicação do primeiro argumento. Comparando os cinco tipos

de governantes – o governante-filósofo, o timocrata, o oligarca, o democrata e

o tirano – Platão afirma que o primeiro é mais feliz que os demais, porque ele

se rege soberanamente a si mesmo.

O terceiro argumento encontra-se no mesmo Livro IX (580c-583a) e se

baseia no acesso e no desfrute dos prazeres mais nobres. O filósofo, homem

que se dá a lei da harmonia que, por conseqüência, sendo o mais capaz para

conhecer as outras espécies de prazer, pelo uso do raciocínio, prefere os

prazeres filosóficos.

– Portanto, dos três prazeres em causa, o desta parte da alma, através da qual aprendemos, será

o mais agradável, e o homem em que essa parte for a que manda, terá a vida mais aprazível?

– Como não haverá de sê-lo? Pois o sábio que elogia a sua própria vida é um encomiasta que

fala com autoridade.254

Por último, o quarto argumento é buscado em 583b – 588a, e é um

complemento ao terceiro, por justificar que, de fato, o prazer que pode

desfrutar o filósofo é mais real e maior do que aquele que qualquer pessoa

possa ter. A citação seguinte sintetiza esse argumento:

(...) excetuando o prazer do sábio, o dos outros não é perfeitamente verdadeiro nem puro, mas

uma espécie de sombreado, como me parece ter ouvido dizer a um sábio: e isso seria a maior e

mais decisiva das quedas..255

Segundo Kraut, este quarto argumento parece ser o que Platão destaca

como fundamental em sua tese. O que significa dizer que o prazer mais alto,

segundo uma escala de prazeres, como um bem, é um dos critérios para

254 República, IX 583 a. 255 Idem, IX 583 b.

Page 109: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

109

decidir entre a justiça e a injustiça e sobre sua escolha para se ter uma vida

feliz, pois a vida prazerosa e a vida justa se correspondem.

Ainda de acordo com a visão de Kraut, Platão considera o quarto

argumento como muito forte para derrotar os argumentos a favor da vida

injusta, no sentido de que a justiça é um bem que vale por si mesma, sendo

que este bem pode se traduzir por um prazer da alma.

Mas esse argumento não responde plenamente a Gláucon256

. Assim

como, para uma Cidade-Estado, pode-se considerar dois mundos de relações

distintas – o das relações internas a ela e o das relações entre ela e os outros

estados, pode-se considerar as ações que têm a ver com o homem, consigo

mesmo, e aquelas que têm a ver com os outros. Uma justiça interna não

implica, necessariamente, justiça externa.

A partir disso, cabe perguntar se o homem sábio e justo, que tem sua

alma em harmonia desfrutando dos prazeres mais nobres, ele,

necessariamente, se comporta em relação aos outros de forma justa? Isto é, o

bem que lhe proporciona a justiça interna determina ser justo para os outros?

Como vimos, a justiça é um bem em si porque ela é causa e mantém a

harmonia interna do indivíduo, garante-lhe a saúde da alma e esta é desejável

por si mesma. Vejamos como essa saúde da alma responde à idéia de justiça

do senso comum que se traduz em não explorar e nem causar mal aos demais,

não cometer adultério, negar os pais e os deuses.

Para compreender como a justiça interna ao homem implica em agir de

forma justa com os demais, temos que levar em conta que aquela é alcançada

por um processo de formação do homem sábio, cuja educação implica um

256 Em IV 445 b, Gláucon termina a frase com a expressão “se, realmente, uma e outra coisa se revelam tais

como as analisamos” quando pergunta se de fato adquirir a justiça torna suportável a vida.

Page 110: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

110

saber comprometido em ajudar seus concidadãos a se elevar à verdade e em

situação na comunidade na qual encontra os meios para viver, formando-se

segundo princípios que o orientarão a agir segundo a justiça, nos limites da

Polis.

O homem sábio e justo que se coloca objetivos intelectuais de filósofo

não teria interesse nos prazeres do corpo, nem precisaria de dinheiro para

obtê-los, portanto, como poderia ser injusto, se não tem interesse em dinheiro

ou poder? (Fédon, 64c-65ª).

O sábio enquanto indivíduo, circunstancialmente cidadão e o homem

comum, um ou outro podem causar ou sofrer dano, cometer ou sofrer

injustiça, segundo a concepção moral ordinária. A relação do sábio com o

artesão é de cooperação e ambos têm o mesmo objetivo, o de fazer um Estado

no qual seja possível a maior felicidade para todos.257

O que garante que o sábio, segundo o modelo ideal de estado, satisfaz a

moralidade comum, somente agindo com justiça? A resposta platônica

delineia-se no livro IV onde o guardião é pensado como um indivíduo ético,

cujos julgamentos são centrados nele mesmo e não na ação, ele age segundo o

tipo de pessoa que ele é e não porque dele se espera que aja de tal maneira

considerada como correta. A construção do estado-ideal se faz sobre as

condições e os meios para formar e manter uma boa pessoa com as

características que ele descreve em 443 c-d, (já citado).

257 No parecer de Marcelo Boeri, „no melhor dos casos se trataria de um consequencialismo eudaimonista, mas

haveria de esclarecer que a eudaimonia ou prosperidade vital de que fala Platão não pode identificar-se com o

mero prazer ou satisfação do desejo. Ademais, o argumento de Platão não pode ser entendido como

conseqüencialista em sentido estrito, já que sustenta que a justiça deve desejar-se pelas conseqüências mas

também por si mesma.‟ Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre aspectos

epistemológicos, éticos y de teoria de La acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue,

2007, p.77.

Page 111: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

111

Em Platão, a esfera da injustiça não se encontra nas ações externas, mas

nas condições internas da pessoa. Ele toma o agente moral em primeiro lugar

enquanto que no discurso de Trasímaco e na defesa da injustiça feita por

Gláucon e Adimanto, a posição refere-se à ação.

O caminho da argumentação de Platão para atender aos apelos de

Gláucon e de Adimanto, a partir do Livro II, não foi o de confrontar-se tão

somente com a tese de Trasímaco, mas também com as noções que vêm da

tradição, que identificam a justiça com atos justos, que identificam alguém

como justo porque age segundo uma norma considerada justa, alguém que é

considerado convencionalmente justo não pelo que é, mas por agir de forma

aceita como justa.258

Essas noções trazem dificuldades por exigirem uma lista de deveres

para poder caracterizar a justiça. Conforme a lista apresentada teremos uma

dada noção de justiça. O que Platão propõe é encontrar um critério que

caracterize justiça independentemente da lista de deveres. Esse critério

permitiria caracterizar o tipo de pessoa que agiria segundo a justiça em

qualquer situação.

Ao procurar tal critério Platão assume que deva haver uma noção de

justiça universal que contemple todas as listas de normas justas ou que, pelo

menos, contemple as dadas pelo senso comum da época. Esse critério se

fundamenta nas condições ou nos meios capazes de produzir e manter um

indivíduo como um justo, que fosse psicologicamente justo, isto é, capaz de

manter uma “saúde” da alma.

258 Conexão entre contratualismo e a relação aparência/realidade.

Page 112: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

112

Julia Annas comenta259

o caminho adotado por Platão para responder à

questão central do livro I e a que ele, de fato, responde. Segundo Annas, a

resposta de Platão sobre o que é a justiça coloca em xeque as concepções

convencionais de justiça ao tomá-la como harmonia interna (443 d-e) entre as

classes do Estado, por um lado, e por outro, entre as partes da alma no

indivíduo, a qual serve de modelo para julgar ou explicar o comportamento

convencional do que é justo ou do que é injusto.

Ainda consoante Annas, em 490 a-c, Platão se vale do seu modelo para

explicar os estados degenerados a partir de uma desordem entre as partes da

alma. Ele explica aquilo que é convencionalmente condenado a partir de sua

teoria e não porque é contrário à sua teoria. A aceitação de sua teoria resulta

do fato de que ela fornece argumentos razoáveis para explicar aqueles

comportamentos convencionalmente condenados e para julgar outros

comportamentos que, injustos segundo sua teoria, eram justificados por outras

fontes. Sua teoria propõe-se substituir as existentes e ser fundamento de uma

nova ordem moral, centrada na arte do filósofo e não na ação do filósofo. E

esta última decorre daquela.

Julia Annas260

, concordando com Kraut, entende que em Platão a justiça

ordinária foi assumida em sua teoria (sem produzir um argumento que a

justifique), pois o filósofo, formado de tal modo, procurará agir como se

espera que um justo convencional aja261

. Da formação do filósofo faz parte

exercícios das ações justas, portanto forma-se filósofo praticando a justiça

ordinária e fortalecendo o estado interno de equilíbrio e de harmonia pelo

desenvolvimento da alma racional, no estudo da matemática, das ciências e da

259 An introduction to Plato’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 1992, pp. 153-169. 260 Annas, op. cit., p. 154. 261 443 b.

Page 113: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

113

dialética e, ainda, orientando os desejos e apetites a aceitarem, como bom para

a alma como um todo, que é o bem para o comando da alma racional.

Encontramos em várias passagens262 o quanto Platão acentua as

condições internas de harmonia entre as partes da alma do guardião-filósofo,

as quais se fortalecem por uma prática comunitária coerente proporcionada

pela educação do filósofo, fazendo, com isso, corresponder o equilíbrio

externo com o interno, a justiça externa com a interna.

A justiça ordinária passa a ser um caso particular da justiça platônica.

Platão, segundo Annas, considera que moralidade não é uma estrutura abstrata

como a matemática e que ela se apóia na aceitação de certas crenças por parte

das pessoas, por isso que na sua construção mental leva em conta o consenso

moral existente, sem ser por isto conservadora, mas realista.

O realismo de Platão, segundo Annas, rejeita a prova experimental

centrada na ação, mas a submete à razão do filósofo. Platão acentua o agente

em detrimento da ação em sua teoria da justiça. O filósofo enquanto existindo

é justo. Justo e filósofo são a mesma coisa. Porque ele, sendo filósofo, sua

alma racional tem o domínio sobre as outras duas para comporem uma

unidade e por isso a justiça é boa para o filósofo porque a justiça é sua arete.

Ser injusto é ser contra sua natureza e isto não lhe traz vantagens. Este

argumento serviria para refutar a tese de Trasímaco.

Segundo Annas263

, a teoria da justiça de Platão torna-o mais próximo do

espírito religioso do que das teorias modernas de moral, à medida que mais

importante do que fazer tal coisa é ser um certo tipo de pessoa, comprometida

com a comunidade que lhe sustenta a qual se volta como ativo colaborador,

262 Como 443 d, 444 d, 444e, 485 d, 588e e 591. 263 Ver Annas, p. 165.

Page 114: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

114

porque lhe cabe uma parcela na busca do bem de todos. É uma combinação de

razão, finalidade e sabedoria.

4.3. Repensando Trasímaco: como harmonizar as teses?

Outro aspecto do confronto entre Platão e Trasímaco deve ser

considerado. A bem da verdade não se pode dizer que a tese desse último foi

refutada por completo, mas que ela foi subsumida pela tese de Platão. Justo é

o que convém ao mais forte pode ser interpretado como caso particular de

conceito de justiça platônica, na medida em que a unidade interna do homem

justo torna-o um forte. Ainda mais, na construção do estado ideal, Platão

partiu da aceitação por parte de Trasímaco de que o forte o era enquanto

admitisse a unidade interna garantida por uma justiça.

Pelo fato de Platão considerar o conceito de justiça, primeiramente,

como saúde da alma do filósofo e, secundariamente, como saúde da alma da

polis, ambas mutuamente implicadas e, ainda, por considerar que a justiça está

de acordo com a natureza do homem, precisamos compreender melhor como

ele concebe o homem e, além disso, como justifica o interesse do filósofo

retornar ao fundo da caverna para “salvar” seus concidadãos (519b-521c).264

A reflexão realizada sobre o conceito de justiça permite que se

compreenda o vínculo que Platão estabelece entre a ação ético-política e a

estruturação das capacidades humanas. Sua estratégia argumentativa tem

como matriz a tripartição das funções da alma e o poder divino da sua função

racional para coordenar e comandar as funções irascível e concupiscível, que,

264 „O princípio capital é que a educação não pode consistir no mero fornecimento de informação, mas na

integral orientação da alma para a Forma do Bem.‟ José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo II. São

Paulo: Loyola, 2008, p.87, nota 61.

Page 115: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

115

atuando cada uma segundo suas respectivas virtudes – sabedoria, coragem e

temperança – e que, alcançáveis por uma adequada educação, realizam a

justiça na alma como efetivação do Bem.265

Nesse sentido, a justiça no Estado é uma virtude da “alma” que,

segundo o princípio da eficiência que estabelece que a cada um cabe uma

tarefa, segundo sua natureza, mantém as virtudes da sabedoria, da coragem e

da temperança, manifestas nas classes dos governantes, guerreiros e artesãos,

respectivamente. As duas dimensões da justiça – a individual e a comunitária

– estão aqui presentes, intrinsecamente comprometidas entre si. Com isso,

Platão sintetiza, nesse conceito, um padrão de racionalidade para tratar a

questão da justiça.

Muitos dos conceitos de justiça que foram alvo da crítica refutativa de

Platão são subsumidos em seu conceito de justiça. Como, por exemplo, o

conceito sofístico – “Justo é o que convém ao mais forte”, é preservado na

unidade do propósito e na cooperação hierárquica das partes que compõem o

todo como expressão da justiça interna e condição de possibilidade de o todo,

realizando o que lhe convém.

O forte em Platão não se constitui a partir do agir, mas a partir de certa

condição interna. Com isso Platão, ao transferir o acento do forte para sua

parte interna e não para a ação, permite compreender o homem como capaz de

exercer o poder de imitação do divino e por isso capaz de construir um

265 „Uma primeira abordagem da questão do poder conduz, porém, à condição da qual depende o governo da

cidade ideal: que se parta do conhecimento da Forma do Bem (505 a-b).‟ José Trindade Santos. Para ler

Platão. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2008, p.83.

Page 116: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

116

ordenamento externo, a partir do ordenamento interno e, segundo a razão,

orienta-se dialeticamente pelo Bem.266

A justiça platônica qualifica o tipo de unidade interna e a conveniência

do todo enquanto forte e, mais, no caso do Estado, essa unidade e

conveniência estão de acordo com uma enaltecida e auto-representada

concepção de natureza humana, cuja expressão máxima é a figura do filósofo.

Por outro lado, constituindo a cidade como o mais forte.

Platão não diz o que é a justiça, mas, sim, como ela se manifesta no

Estado e no filósofo por ele imaginados. Isso ele diz de vários modos: a) que a

posse e a prática do que é próprio de cada um é condição de possibilidade de

justiça, o que entendemos como condição para que o Estado se organize com

maior eficiência segundo a fórmula de ter o homem certo no lugar certo; b)

que a cidade não seja nem muito rica nem muito pobre; c) que o Estado se

divida em três classes de forma hierarquizada e cooperante e que por elas

manifeste as virtudes do Estado – temperança, coragem e sabedoria.

Além disso, mostra que o homem com justiça na alma manifeste essas

três virtudes, cada uma delas correspondendo, respectivamente, a da alma

concupiscível, a da irascível e a da racional e que as três partes da alma atuem

cooperante e hierarquicamente sob o comando da alma racional; que tanto no

Estado como no homem justo a justiça traduz o bom e o desejado; e que a

justiça é um bem a ser buscado pelo homem porque está de acordo com sua

natureza e, por isso, torna-o um homem feliz por expressar uma harmonia

interna da alma e por poder desfrutar dos prazeres mais nobres da alma.267

266 „A atividade do filósofo certamente não é um ódio contra a vida. Ao mesmo tempo em que desejaria fugir

para o além a fim de contemplar as Idéias, o filósofo apóia-se aqui embaixo nos reflexos do inteligível que as

coisas belas representam.‟ Christophe Rogue. Compreender Platão. Rio de Janeiro: Vozes, 2005, p.96. 267 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 109.

Page 117: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

117

Se a justiça implica algum tipo de vínculo no qual se discerne acerca de

atos e intercâmbios entre os cidadãos, e do que corresponde reconhecer aos

demais por esses mesmos atos, então para o paradigma ético sensualista, que

não reconhece outra realidade que a observada e experimentada pelos

sentidos, somente se poderia buscar a chave para seu entendimento nos

fenômenos mesmos e em sua intransferível e irredutível percepção individual.

No caso das ações relacionadas com os atos do poder, a chave para o

sensualismo sofístico tem que ser encontrada do lado dos que exercem o

poder, porque ali é onde se manifestam as conseqüências daqueles atos de

poder cujos resultados se podem ver, ouvir e sentir. Ademais, de que outro

modo teórico poderia entender Trasímaco o complicado debate acerca da

justiça?268

Constata-se uma relação social assimétrica composta, por um lado,

pelas prerrogativas dos que mandam e, por outro, pelos deveres dos que vivem

submetidos aos que mandam na cidade, onde se vislumbra um significado que

tem a ver com a trama interativa do ato social, que não pode ser um ato de

poder que depende dos que controlam ou titularizam esse mesmo poder.269

No horizonte teórico em que está associada a sofística, o fenômeno do

poder não ultrapassa o nível da percepção sensível que a representa como o

resultado desigual e assimétrico de imposições e prestações dos que mandam e

dos que obedecem. A partir desse ponto de vista, a conveniência não é senão o

reverso da disposição do poder e uma de suas chaves mais significativas.

268 Aqui já se insere a questão da aparência e realidade, com seus desdobramentos na ética e na política, bem

assim na formulação da concepção de justiça que transpassa o diálogo República. Consultar Marcelo D.

Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre aspectos epistemológicos,

éticos y de teoria de La acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue, 2007, p.78. 269 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 111.

Page 118: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

118

A utilidade ou conveniência não seriam, ao mesmo tempo, a chave e o

limite do sentido da noção de justiça sustentada por Trasímaco? Se tivesse o

sofista que admitir uma ordem de equivalências superior na cidade, que ao

estilo da idéia platônica deveria tomar-se como pauta de confrontação e

julgamento das ações que a experiência registra como características do

exercício do poder, cairiam de imediato todos seus pressupostos sensualistas.

Por outro lado, estaria totalmente relativizada a subordinação que

acompanha a separação entre os que mandam e os que obedecem, uma vez

que aquela idéia supra-sensível se transformaria em um desiderato que

substituiria o critério de utilidade pela noção de bem ou de justiça enquanto

requisito necessário para a conservação do conjunto dos que formam a

cidade.270

Sem embargo, o passo que deu o sofista o leva a uma inesperada

contradição porque, para salvar o critério da conveniência, utilidade ou

proveito do que manda, teve que pulverizar o critério individual de justiça e

teve que colocar a mesma no interior de uma trama interativa de

correspondências desiguais que somente podem aplicar-se na relação

dicotômica governante - governado, entre o poder e o dever, mas não em

relação aos governantes entre si (República 351c – 352 a).

Devemos, então, examinar com detalhe a idéia de que a justiça é a

conveniência do mais forte, já que aqui parece estar a chave de sua

contribuição e o limite de seu pensamento. É relevante destacar a conexão

entre utilidade e acordo que revela a função de reciprocidade ou mútua

dependência que, por sua vez, desloca qualquer pretensão de unilateralidade

270 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 112.

Page 119: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

119

na ordem das questões que envolvem a idéia de justiça como justiça do mais

forte.271

O ponto forte para auxiliar no deslinde – ou na melhor formulação da

questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu

pensamento (República 343b – 344c). Aqui, a conveniência ou utilidade

parece decididamente marcada por uma relação de necessidade entre o mais

forte e os fracos, corroborando a idéia de dever que informa o sentido da

justiça pode depender de acordos ou convênios fundacionais, tal como

sustenta Glauco no Livro II da República.272

A relação entre governante e governado, entendida como uma exclusiva

relação de conveniência, ou utilidade, tem para Trasímaco uma conseqüência

necessária que se traduz na equivalência entre a lei e a justiça, no sentido de

que o conveniente para o governante é o justo e isto, e somente isto, chega a

ser lei, norma jurídica de cumprimento obrigatório.

Trata-se, pois, de uma mudança dos princípios sobre os quais se assenta

a convivência na cidade, seu governo e suas estruturas jurídicas, que elevam a

condição de paradigma o modelo sensualista. Desse modo, a injustiça ocupa o

lugar da justiça, em termos de ordem social e política, e adquire o caráter de

virtude.273

Trasímaco consumou um processo conforme o qual a justiça e o direito

funcionam exclusivamente como mecanismo que privilegia o uso desigual e

hegemônico das regras para benefício daqueles que se encontram numa

posição de supremacia, ou de vantagem relativa a respeito dos preceitos da lei

271 Constata-se uma forte polissemia no etmo „sympheron’, conforme adverte Places, E. Lexique de Platon.

Paris: Lês Belles Lettres, 1964. Ver também LIDDEL, H ; SCOTT, G ; Jones. A Greek-English Lexicon.

Oxford/London : Oxford University Press, 1966. 272 358e-359 a. 273 Lygia Watanabe. Sobre o envolvimento histórico do Livro I da República de Platão. In. Ética e Política no

Mundo Antigo. Hector Benoit e Pedro Paulo A. Funari (orgs). Campinas: UNICAMP, pp.275-288.

Page 120: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

120

positiva, que se põem em jogo para dirimir os conflitos originados da

convivência cidadã.274

As tendências que se construíram para explicar a posição de Trasímaco

são fundamentalmente quatro: a) o niilismo ético que nega qualquer obrigação

moral, já que esta não é mais do que uma ilusão fabricada pelos homens; b) o

legalismo, para o qual não há moral alguma à margem do direito, ou sem uma

norma legal que nos obrigue a atuar de uma maneira determinada; c) o

jusnaturalismo que afirma que a obrigação moral é independente e seu

fundamento está na natureza ou modo de ser específico do homem; d) o

egoísmo psicológico, no qual o homem sempre atua buscando seu próprio

interesse, logo, tende ao mais conveniente para ele mesmo.275

Tradicionalmente os investigadores diferenciaram três aspectos que

atinem diretamente à justiça: a) a justiça como o conveniente para o mais

forte, que se assimila tanto com os legisladores, como com os governantes; b)

a justiça como obediência às leis estabelecidas na cidade onde se vive; c) a

justiça como fazer o bem ou buscar o conveniente aos outros.

Com essas apreciações não se pode dizer que Trasímaco defina a

justiça. Não é isso que ele quer, mas calar Sócrates e a ética. A primeira idéia

a expõe com clareza no início do diálogo. As outras duas as desenvolve

quando Sócrates avança na conversação.

Nesse ponto, alguns autores identificaram toda a teoria da justiça e do

direito de Trasímaco com a primeira tese. A imagem de Trasímaco, portanto, é

a de um agressivo orador, ou advogado, que procura impor seu critério sobre

os demais usando meios que tem ao seu dispor. Mas essa imagem pode ser

274 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 119. 275 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 121.

Page 121: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

121

incompleta, lacunosa.276 É preciso entender a relação entre os bens e o bem,

compreendido como objeto supremo do conhecimento.277

A tensão dialética entre Sócrates e Trasímaco mostra com nitidez que a

conveniência do mais forte não se pode identificar com as leis estabelecidas

por quem tem o poder. Quando se trata das leis estabelecidas pelo sistema

político, ou por aqueles que têm o poder, afirma que, para o correto exercício

do governo, o fim imediato nunca é buscar o conveniente para os

governados.278

Mas, em última instância, o que se busca é o interesse do próprio

sistema político, ou seja, a continuidade do que governa. Logo, seria justo para

o governante buscar seu próprio interesse, pois dessa maneira se mantém no

poder para cuidar da cidade.

Assim, a (in) justiça como desvantagem do mais fraco não é contrária à

justiça como interesse do mais forte, mas são idênticas, porque na perspectiva

de Trasímaco há um conceito para a justiça: buscar o bem de outro; e outro

para a injustiça: buscar o próprio bem. Ambos se alteram segundo o ponto de

vista que tomemos do governante ou do governado. Na visão do governante, a

justiça é o interesse do mais fraco; na visão do governado, seria o interesse do

mais forte. Isso permite concluir que Trasímaco não é niilista, nem legalista ou

276 Consultar Marcelo D. Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre

aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de La acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires:

Colihue, 2007, p79. Verificar Kerferd, em Le Mouvement sophistique. Paris: Vrin, 1999, p.180. 277 „Fundamento último, o Bem foge à ordem do discurso, e Sócrates é obrigado, para representá-lo aos seus

interlocutores, a recorrer à imagem sensível que lhe parece a melhor, o sol. A imagem não é arbitrária. Ao

escolher designar o sol pela expressão „rebento do Bem‟, Platão quis marcar o caráter moral em si da ordem

cósmica, da qual o sol, exatamente, é, no plano do sensível, a origem, dando nascimento aos objetos visíveis,

como o Bem dava a essência e a existência aos inteligíveis.‟ Christophe Rogue. Compreender Platão. Rio de

Janeiro: Vozes, 2005, p.103. Conferir análise sobre a analogia do sol, analogia da linha e da alegoria da

caverna de José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2008, pp.84-90. 278 Não existe um único interesse dos governados. O governante se aproveita disso e impõe o seu próprio

interesse. Não há unidade entre os interesses do mais fraco. A oposição dos setores que compõem a cidade

impede a confluência de interesses dos chamados fracos. Mas é comum que ninguém voluntariamente legisle

contra si mesmo.

Page 122: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

122

positivista, nem admite o egoísmo psicológico, nem é um jusnaturalista. A

noção de justiça é a busca do bem para o outro.279

Alguns críticos viram as idéias defendidas por Trasímaco como uma

grande incongruência, porquanto sustentam que a justiça é subjetiva,

focalizada nos efeitos e conseqüências que produz na sociedade.280 Outros se

concentram na relação entre o mais forte e o direito, apontando que nas teses

de Trasímaco se verificam os elementos do chamado positivismo jurídico, que

reduziria a justiça a obedecer às leis editadas na cidade onde se vive.281

Outras abordagens282 se concentram na análise da definição de quem é o

forte, o legislador, etc. É um enfoque sociológico-político: a justiça exige a

relação, que se dá na sociedade em que se vive, e uma sociedade que cumpra

seu fim tem que estar ordenada juridicamente. Desse modo, a justiça é um

fenômeno social que exige a interação dos membros da cidade, ou um grupo

social, em que todos estão implicados.

Para esses, Trasímaco seria um defensor do positivismo legal, por isso a

justiça e o justo supõem a busca do benefício do mais forte. As defesas de

Trasímaco são críticas, afastando a idéia da intervenção da ética na política.

Não quer dizer tanto o que a justiça é, quanto o que não é.

O problema surge quando se trata da integração das partes na sociedade.

Entram em conflito e não podem harmonizar seus interesses, então se impõe

uma sobre a outra. Para construir a harmonia, teriam que entrar em acordo e

279 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p. 123.

280 Por exemplo: Lycos, K. Plato on justice and power. New York: State University of New York Press,

1987, p.65. Igualmente Kraut, R. Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p52. Reeve, C. D. C.

The argument of Plato’s Republic. Princeton: Princeton University Press, 1988, p86.

281 Como White, N. P. Platos’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 1997, p22.

282 Antonio Gómez Robledo. Platón: los seis grandes temas de su filosofia. México: Fondo de Cultura

Economica, 1986, p.6.

Page 123: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

123

construir uma sociedade unitária, mas isso só excluiria a justiça como o direito

do mais forte, se continuassem a existir fortes e fracos na cidade. É a

contrapartida da lógica platônica.

Isso nos mostra a variedade de opiniões sobre as teses de Trasímaco. No

entanto, entendemos que a interpretação mais completa é aquela focada na

alteridade, ou seja, que concebe a justiça como buscar um outro bem. O

virtuoso seria buscar esse bem pelo outro mesmo, não para benefício próprio.

Mas sabemos que é improvável se temos em conta que o poder do governante

o impede de governar em prejuízo próprio.

É difícil pensar que alguém com poder seja capaz de fazer atos contra si

mesmo, de legislar de forma que ele não seja o maior beneficiado, ou, pelo

menos, não prejudicado. Aqui é onde reside o maior problema: exercer o

poder de forma que não busque somente, ou como primeira finalidade, o

benefício individual.283

Parece fora de dúvida que para Trasímaco o direito é poder. Só existe o

direito, conjunto de normas legais emanadas de poder constituído. Isto

corresponde à definição primeira do sofista sobre a justiça, segundo a qual os

mais fortes, assimilados aos governantes, estabelecem leis segundo seus

interesses, buscando vantagem pessoal. Este critério subjetivo é elevado a

norma objetiva e universal, porque de inexorável cumprimento, ao demonstrar

que ocorre em todos os governos, sem exceção.

O conveniente pode ser entendido como aquilo que sempre se considera

benéfico ou vantajoso para alguém em algum momento, de forma

determinada. Seu paralelo na política seria o necessário para a manutenção, e

conservação do regime político, mais do que com a imposição realizada pela

força da maioria dos cidadãos, pois que todos os princípios da justiça

283 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.127.

Page 124: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

124

coincidem com o interesse do mais forte, do que tem poder. Assim, é coerente

dizer que a justiça é o que convém ao mais forte.284

Desse modo, entramos na questão da vontade do governante. Seja um

ou vários, sua vontade constitui sempre a opinião reta e acertada, que não

comete erros nunca. Por conseguinte, a lei que outorga sempre tem que acatar-

se e cumprir-se.

De outra parte, apresenta-se o problema entre a distinção do que parece

conveniente ao legislador e a verdadeira e real conveniência da lei para os

governados ou para a cidade. No plano da aparência o governante tem um

poder absoluto, legisla o que ele crê mais conveniente com independência de

que se corresponda com o mais conveniente na realidade. Todo o poder é

absoluto quando ordena: a lei comanda absolutamente. Mas Sócrates

argumenta que, embora a lei possa ser errada, o governante busca sempre o

melhor para a cidade, assim, pois, o seu erro é cancelado.285

Trasímaco não aceita o critério de Sócrates e ratifica sua opinião: o

direito protege somente o interesse dos dominadores. As normas emanadas do

poder são indiferentes aos problemas de validade ética, e não constituem a

expressão do interesse geral. E, precisamente por serem expressão da vontade

dos que governam, são obrigatórias.

Nesse contexto, as leis são a expressão da infalibilidade dos

governantes, prescindindo de qualquer outra consideração, porque esses atuam

como tais: buscando o melhor e o mais conveniente para eles mesmos e, como

284 Por exemplo: Lycos, K. Plato on justice and power. New York: State University of New York Press, 1987,

p.67. 285 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.128.

Page 125: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

125

efeito, o bem dos governados, para alcançar a participação no vantajoso, que

não é outra senão submeter-se à vontade do governante.286

Sócrates apela para a teoria geral das artes. Uma arte busca o mais

conveniente para quem dela precisa. O médico busca a saúde do enfermo, o

capitão que sua embarcação chegue a bom porto, etc. Portanto, segundo

Sócrates, o fim de todas as artes encontra-se na satisfação das necessidades

dos que a elas recorrem. Da mesma forma, o que governa ordenará o

conveniente para o governado (República 342 b-e).

Para Trasímaco, e para todos, no âmbito da política prática, é melhor e

mais vantajoso comportar-se de forma injusta que justa. Pois o destino dos

homens que são justos na atividade política é o estarem submetidos aos mais

fortes, que vivem e atuam de forma justa. É inevitável que seja assim.

Todavia, ao final do discurso Trasímaco incorre em alguns erros.

Considera como sujeito injusto o tirano, isto é, cede a um temor convencional

incoerente com sua opinião central, que obriga a ver no tirano a mais perfeita

espécie da suprema justiça.

Para Sócrates, o problema se move em dois planos que não são

coincidentes: o ideal e o real.287 Para Trasímaco, só há um plano: o real. Mas o

mais forte é uma noção relativa, cuja realidade cede ante o forte em abstrato,

que não está no plano humano. A dualidade se resolve com a apelação da

força e a livre afirmação do individualismo. Se quem infringe a lei é

castigado, vai ao seu interesse obedecer. Há um equívoco sobre o termo

interesse, fazendo oposição entre a natureza e a lei.288

286 Reeve, C. D. C. The argument of Plato’s Republic. Princeton: Princeton University Press, 1988, p88.

287 Antonio Gómez Robledo. Platón: los seis grandes temas de su filosofia. México: Fondo de Cultura

Economica, 1986, p.8. 288 Lycos, K. Plato on justice and power. New York: State University of New York Press, 1987, p.69.

Page 126: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

126

A teoria do direito natural do mais forte, como elemento fundante das

relações entre os homens dentro do ambiente político, como já falamos, se

enuncia e defende no Górgias. A diferença entre ambas as concepções reside

em que Cálicles tenta dar à sua opinião uma base objetiva e teórica conforme a

natureza. Trasímaco não procura um fundamento na natureza, mas apresenta

suas teses confirmadas de modo universal e inegável no plano das

manifestações da natureza e da história. Mostra que a lei reformula a natureza.

De outra parte, cabe notar que a identificação sofística do direito com a

natureza constitui o ponto decisivo em que se apóia a exaltada visão platônica

da ordem política ideal. O papel que nela desempenham os filósofos é, talvez,

a única solução possível ante a dificuldade que a técnica política coloca. Há de

garantir-se que os governantes estejam livres da tendência de usar o poder em

seu próprio benefício. Somente o filósofo compensa dita tendência com sua

aspiração ao mundo das idéias.289

Evidencia-se, assim, que a reflexão grega sobre os problemas políticos

teve uma larga tradição, cuja grandeza repousa na vivacidade e na

proximidade com a experiência, na capacidade crítica e construtiva, no

interesse constante e repetido por conseguir um regime político perdurável,

justo e ordenado ao bem comum, que satisfaça as exigências mínimas do ser

humano.

Identificou-se a sofística com a constatação do direito do mais forte que

se converte em direito natural objetivo baseado na natureza. Algo que

Trasímaco só admite parcialmente, pois sua constatação fática se deve às

formas de Estado e Governo, quer dizer, ao exercício do poder na comunidade

política.

289 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.130.

Page 127: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

127

A tese extrema é defendida por Cálicles, para quem o direito perde toda

sua dignidade e rigor ao assimilar-se á força. A identificação da lei com o

poder do mais forte supõe a claudicação da retidão da razão e sua entrega ao

domínio de uma instância suprema.

Assim, a interpretação da natureza humana como força é incompatível

com a correspondência e harmonia entre a natureza e o direito, e acentua sua

mútua incomunicabilidade. A ordem normativa desaparece quando a lei se

torna o cúmplice complacente dos fatos que ocorrem ou dos já cumpridos.

Trasímaco não aceita em sua totalidade este legado, nem aceita uma

atitude tão irracional. Mostra que o uso do poder é necessário para levar a

cabo a ação do governo na cidade, onde se atua não no plano do domínio, mas

no das relações recíprocas. Dessa forma, a luta pelo poder na sociedade, que

dá lugar à instabilidade política, não tem por que resolver-se em termos de

imposição, pode ser produto de um acordo racional entre as partes.

No entanto, uma vez aceito que um governe e outro seja governado, este

tem que submeter-se ao ditado jurídico de quem tem o poder. O direito e a

justiça se aceitam do mesmo modo que se aceita a repartição do poder na

sociedade.290

Platão não considera o acordo entre os cidadãos como o fundamento

adequado para sustentar e conservar a lei e, menos ainda, para assegurar o

dispositivo de tratos e prestações que conduzem à justiça, que o filósofo

associa a uma complexa dialética do fazer, na qual não apenas se requer uma

trama de correspondências nos tratos entre os cidadãos, mas impõe uma

conexão na vida e ação de cada homem que compatibilize seu pensamento e

290 Salvador Rufino e Joaquin Meabe, em „Justicia, Derecho y Fuerza‟, Madrid, Tecnos, 2001, p.132.

Page 128: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

128

seus impulsos de tal forma que do fazer de cada um resulte sempre um bem

fazer na direção dos projetos que em cada caso cumpre estabelecer.291

Precisamente para caracterização dessa cidade ideal e desse melhor de

acordo com a natureza humana é que não se pode prescindir da oposição

aparência – realidade. Aparência traz a noção do que tem traços acidentais ou

enganosos de uma coisa, do que depende da perspectiva. Também indica certa

dúvida a respeito de uma coisa, um fato ou um estado de coisas.

O aparente, nesse sentido, é algo que se mostra ao sujeito percipiente

como sendo de certo modo, mas nunca é algo sobre o qual se tem certeza. Em

todo caso, a expressão „aparência‟ tem um duplo valor – cognitivo e

fisiológico - que geralmente se confunde. A distinção reaparece com

renovada força nos diálogos platônicos no contexto de suas discussões

epistemológicas e morais.292

Com a palavra „realidade‟ temos ainda mais dificuldade, haja vista que

em grego não havia uma palavra para realidade, embora dentro de certos

contextos houvesse expressões que legitimamente poderíamos traduzir por

„realidade‟, geralmente usos abstratos ou reforçados do verbo ser. Ou seja,

existiam expressões que faziam referências de um modo muito direto ao que

entendemos como real no sentido do „maximamente real ou verdadeiro‟.

Pois bem, que razões justificam a tentativa de diferenciar aparência de

realidade? Os críticos apontam que as razões se apóiam principalmente no

chamado argumento da ilusão. Seu ponto de partida é que os objetos aparecem

ou apresentam aparências diferentes a diferentes observadores, ou ao mesmo

observador em condições diferentes.293

291 O bem alheio é uma mera satisfação que Trasímaco dá a Sócrates. 292 Boeri, 2007, p.18. 293 Boeri, 2007, p.24.

Page 129: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

129

A primeira conseqüência que se extrai do fato de que as aparências das

coisas variarem é que tal variação prova que as pessoas não percebem as

coisas nem tal como em realidade são, nem como outros as percebem. Pode

ser que um objeto não seja como se apresenta a um observador nem como se

apresenta a outro, mas o que não pode ocorrer é que seja ambas ao mesmo

tempo.

O ponto importante dessa discussão é o fato de um objeto poder parecer

às vezes o que não é não implica que nunca o percebamos tal como em

realidade é. Mas o problema é que para estabelecer que é possível perceber um

objeto tal como em realidade é, ou para dizer que o que alguém está

percebendo é uma mera aparência, é preciso pressupor que toda vez que um

objeto é percebido é possível estabelecer um critério que permita distinguir

com certeza o aparente do real.

Registre-se que o problema não se limita ao domínio puramente teórico

do que se poderia chamar teoria do conhecimento, pois tal dificuldade é

extensiva ao campo prático, precisamente na discussão ética referente à

diferenciação bem real – bem aparente, ou entre ser justo e parecer justo.294

Desde Platão, os filósofos se esforçaram por mostrar que há razões para

pensar que há certa ordem objetiva de bens e que há critérios mais ou menos

razoáveis para distinguir tipos de bens: bens instrumentais, por um lado, e

bens em si, por outro.295

294 „Trata-se de uma distinção axiológica, com sustentação ontológica. Temos um tratamento filosófico

original par a questão central que é flagrantemente ética e política. Tal como o prazer, o bem tem de ser de

verdade, para valer. Assim como ninguém quer falsos prazeres, ninguém quer, consentidamente, fingir ter

prazer, tampouco ninguém quer uma coisa boa que é só aparentemente boa ou que é tida como tal, sem sê-lo.‟

Marcelo Pimenta Marques. Aparecer e imagem no livro VI da República. In. Estudos platônicos: sobre o ser

e o aparecer, o belo e o bem. Marcelo Perine (org.). São Paulo: Loyola, 2009, p.152. 295 Boeri,2007, p28.

Page 130: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

130

A pergunta chave então seria „o que é o bem?‟ Quando expressamos o

que é bom ou mau o fazemos em afirmações que têm já um caráter avaliativo

ou prático. Nesse passo, Sócrates é provavelmente quem primeiro apresenta

uma sofisticada teoria do bem e sugere de um modo bastante evidente que se

algo é efetivamente bom não pode nunca ser um bem condicionado.

Associado a isso estava o tema central que cuidava das conexões existentes

entre o estado cognitivo do sujeito, isto é, como e de que qualidade é seu

conhecimento quando deve aplicá-lo a questões práticas, e o curso da ação que

decide seguir.296

A dificuldade colocada por Sócrates foi tomada seriamente por todos os

filósofos que se ocuparam do tema. De fato, a discussão de se os justos vivem

melhor e são mais felizes que os injustos não constitui tópico vão, pois se trata

de um tema que afeta diretamente a vida política e ética. Sócrates afirmava

que há coisas que nos parecem boas e coisas que são boas e que a avaliação

para diferenciá-las depende vigorosamente do estado cognitivo do agente, no

momento em que está fazendo essa avaliação.297

Daí decorre a necessidade de encontrar uma resposta mais radical, mais

solidamente fundamentada, às questões vitais da justiça e do poder, pois é da

ausência dessa resposta que se origina a degeneração da cidade e o abandono

do seu projeto original.

Buscando tal resposta, Platão pretenderá retomar a tradição da alma,

politizando-a ao mesmo tempo, com o objetivo de construir sobre ela a justiça

que a cidade necessita. Recoloca o problema do poder renunciando à ingênua

universalidade da isonomia, para apostar, ao contrário, em uma universalidade

dialética, que permita confiar a uma reduzida parte do corpo social –

296 Boeri, 2007, p.33. 297 Boeri, 2007, p.42.

Page 131: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

131

qualificada a partir da educação, do saber e da consciência moral – a tarefa de

gerenciar o poder em nome do interesse comum.

Nessa configuração ideológica, a polis seria reconhecida como a „forma

humana‟ por excelência, e pensada uma realidade perdida, mas historicamente

adquirida como o tempo feliz da igualdade, da concórdia e da virtude; um

tempo em que o poder, a lei, a educação e a justiça alcançaram um acordo

estável.298

O que acontece é que a justiça adquire agora um significado diverso,

mais interior299. Já não parece significar a mera obediência às leis, a legalidade

que tinha sido outrora o baluarte protetor do Estado. O conceito de justiça

situa-se acima das normas humanas. Para Platão, o ponto de partida de toda

compreensão do problema da justiça tinha de ser o ajuste de contas com a

concepção naturalista do direito do mais forte e o pragmatismo

convencionalista.

Para além da relação aparência/realidade, a justiça se mostra como

virtude relativa à boa gestão das outras virtudes, numa concepção relacional,

tendo por substrato a busca pela perfeita caracterização do filósofo. Torna-se

então possível perceber a relevância da distinção que opõe o filósofo àqueles

que contemplam as belas vozes, cores, figuras e outras, mas que é incapaz de

ver e amar o Belo em si (476b).300

A prática política utiliza a multiplicidade das coisas belas e feias, justas

e injustas. São estas que a todos „parecem‟ de um modo e de outro. Colocadas

entre o ser puro e o não ser pelos „contempladores da multiplicidade (479 a),

298 Vegetti, 2005, p.102.

299 Thomas Robinson. Is justice enough to produce eudaemonia? Some thoughts on a central issue in the

Republic. Apresentado no X Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, em Uberlândia,

agosto de 2009. 300 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2008, p.76, nota 35. „A argumentação

contra a aparência, lembremo-lo, castiga a defesa que dela fazem as descrições da justiça com as quais Glauco

e Adimanto desafiam Sócrates, no início do Livro II.‟

Page 132: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

132

nenhuma dessas coisas belas, justas ou outras, revelará mais que a opinião

daqueles que „nada conhecem das coisas que opinam (479d-e).301

Depois de abordar a descrição do filósofo e se confrontar com o

problema de sua situação na cidade atual (484ª-497ª), Sócrates concentra-se na

definição das funções que deverá ocupar na cidade ideal. A abordagem da

questão do poder conduz à condição da qual depende o governo da cidade

ideal: que se parta do conhecimento da Forma do bem (505a-b).302

Nesse ponto, verifica-se que conhecimento e ação são inseparáveis, e o

Bem figura como padrão supremo da reflexão ética. Nesse sentido, foi muito

ilustrativa a tese atribuída a Trasímaco da justiça como interesse do mais forte,

pois o prisma sofístico privilegia a faticidade na política. Todavia, Platão não

poderia aceitar o poder como critério que legitime a ação política.303

Apesar de o padrão do justo serem as formas, Platão se ocupa de

assinalar que o justo o será no sentido habitual de não prejudicar os outros,

não faltar com a palavra, não abandonar os pais, etc. (442e-443b). E indica

que a norma legal se subordina de certo modo à pessoa que sabe o que é justo

para a cidade. O ponto decisivo, para Platão, não é que as leis tenham força,

mas que a tenha a pessoa que deve governar.304

Na discussão sobre a força que deve presidir do governo da cidade, é

preciso ter em conta, antes de tudo, a defesa retórica da proposta do filósofo

como governante da cidade. Proposta que acaba por constituir um elogio

301 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2008, p.78. 302 José Trindade Santos. Para ler Platão. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2008, p.83. Para a multidão, o Bem

identifica-se com o prazer, enquanto para os „mais refinados‟ consiste na sabedoria. O Bem será apenas aquilo

„que toda alma persegue e a finalidade de tudo aquilo que faz‟ (505d-e). É o princípio ético supremo. 303 Consultar Marcelo D. Boeri. Apariencia y realidad en El pensamiento griego: investicaciones sobre

aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de La acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires:

Colihue, 2007, p.83. 304 A aparência da justiça serve para testar a segurança do interlocutor sobre o que é a justiça. Além disso, a

noção do justo é variável no próprio indivíduo, mudando com o tempo e com seu poder de discernir. Marcelo

Pimenta Marques. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: UFMG, 2006,

p.145-147.

Page 133: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

133

argumentado do filósofo e da filosofia, mostrando que o essencial na sua

formação depende tanto de uma problematização radical daquilo que parece

ser (aparece como sendo) como de uma reflexão inédita sobre a imagem.

A imagem é criticável na medida precisa em que fascina e impede que

os indivíduos a distingam daquilo de que ela é imagem. Mas a imagem,

criticamente utilizada, tem uma função decisiva na compreensão do que seja a

justiça. Conhecer, educar-se e agir na cidade implica fazer aparecer,

necessariamente, em ações e argumentos, as determinações essenciais do

indivíduo.305

É assim que a reflexão sobre a justiça ou a busca pelo justo (no

indivíduo e na cidade) acaba por levar à questão do bem que se revela como a

questão da condição mesma de todo valor. A pergunta pelo bom em si implica

perguntar sobre a efetividade do valor. A perspectiva técnica se torna política

quando se pretende conciliar o interesse do mais forte com o bem alheio.

305 Marcelo Pimenta Marques. Aparecer e imagem no livro VI da República. In. Estudos platônicos: sobre o

ser e o aparecer, o belo e o bem. Marcelo Perine (org.). São Paulo: Loyola, 2009, p.137. Segundo Pimenta,

„conhecer é reconhecer; aquilo que é, para ser conhecido, tem de ser reconhecido enquanto tal, enquanto o

que é. Podemos falar, então, de uma espécie de conhecimento pela imagem, no sentido de um reconhecimento

da imagem enquanto imagem.‟ p.139.

Page 134: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

134

Conclusão

Eis aqui o término do nosso trabalho de investigação filosófica,

apresentando de forma breve e objetiva o resultado do que foi

satisfatoriamente tratado nos capítulos pretéritos.

Da mesma forma que se atribui a Platão parcela significativa da

responsabilidade pelo desinteresse, durante certo tempo, em relação à obra dos

sofistas, também se deve reconhecer o crédito que lhe cabe pela revalorização

da sofística. Afinal, é por meio dos seus diálogos que se explicitam variadas

referências às supostas propostas e aos presumidos problemas levantados

pelos sofistas.

É preciso registrar, uma vez mais, a escassez de documentos

conservados de autoria dos sofistas, o que dificulta representar com segurança

aquilo sobre que pensavam. Nos diálogos platônicos, ao menos encontramos

suposições do que seriam teses sofistas. No entanto, já é o suficiente para

compor um bom material de análise e discussão.

Nessa perspectiva, o tema da justiça, na cidade e no indivíduo, desponta

como um dos principais a serem trabalhados, tendo em vista a pertinência e

relevância de tal temática para entendermos o funcionamento das relações

políticas.

Numa época em que a palavra construía, por assim dizer, a vida de

relação, era inevitável o embate entre retórica e filosofia, disputando a melhor

forma de educar o cidadão. Não é possível escolher entre elas, uma precisa da

outra para justificar sua prática. Da mesma forma que não é possível

compreender Sócrates sem Trasímaco.

Page 135: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

135

Nessa disputa, o cenário oferecido pela República, precisamente o que

tratamos neste trabalho, sintetiza as dificuldades em estabelecer critérios para

qualificar a ação como justa. Aqui, Sócrates assume uma posição: opta pela

ética. Já Trasímaco filia-se à política. Enquanto Sócrates tentou subordinar a

política à ética, Trasímaco não aceitou que a ética determinasse a prática

política.

A exigência socrática assenta na precisão de separar o que apenas

„parece justo‟ do que „parece e é justo‟. Por outro lado, a recusa de Trasímaco

é o corolário do que ele constata na pragmática da polis: a injustiça é justiça,

pois „aparece‟ como tal. Ademais, não está engajado em definir a justiça, mas

em apresentar o que „aparece como sendo justo‟.

Além disso, a intervenção de Trasímaco tem o propósito de denunciar o

caráter convencional, positivo, de que se revestem as leis, em oposição à

noção de justo por natureza, na qual os mais poderosos dominam os mais

fracos.

De todo modo, por dentro dessa visão contratualista robustamente

apresentada por Trasímaco, a lei serve para suprir a insuficiência da natureza

humana, marcadamente vulnerável, submetendo-a ao exercício das qualidades

cívicas que asseguram a unidade da cidade.

Essa é a função da justiça na síntese das duas teses atribuídas a

Trasímaco: harmonizar a difícil relação entre nomos e physis. E é isso o que se

desvela no debate entre Sócrates e Trasímaco, quando cuidam do interesse do

mais forte e do bem alheio.

Por trás desse debate, constatamos a premência em se superar a

tradicional concepção de justiça, bem representada na figura de Céfalo, porque

inapta para realizar o projeto de unificação da polis, e incapaz de dar conta do

problema da interferência da ética no campo da política.

Page 136: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

136

De outra parte, a justiça como conveniência do mais forte e como bem

alheio não é apenas uma questão que possa ser resolvida através da semântica

(Dahl), do convencionalismo (Strauss) ou da filosofia da linguagem (Pitkin).

Para além dessas interpretações, a essência da discussão entre Sócrates e

Trasímaco se coloca como ponto de partida para constituição dos postulados

do chamado Direito Positivo, profundamente marcado pela noção de poder, de

persuasão, de infalibilidade do legislador e de soberania.

A combinação das teses no discurso de Trasímaco se aplica

substancialmente ao direito contemporâneo, que recorre ao pensamento

discursivo, argumentativamente articulado e sujeito à refutabilidade. Direito

que ainda preserva a tensão permanente entre a lei e a natureza humana.

Nas falas que Platão concede a Trasímaco, o direito do mais forte se

expressa através da obediência à lei por parte do mais fraco. Todavia, o

vínculo mais sólido para estabilidade das relações políticas será aquele que

garante e perpetua o poder: o bem alheio. Desvelando a natureza do poder,

mostra claramente e de forma irrefutável como ele se coaduna com a justiça:

com a criação da lei.

Dessa forma, na República, usando a vigorosa argumentação de

Trasímaco, entendemos que Platão suplanta o aparente impasse entre justiça

como interesse do mais forte e justiça como bem alheio, demonstrando quem é

a representação do mais forte: a polis. Agindo no interesse da cidade, o

cidadão faz o bem alheio e preserva o interesse do mais forte.

Pelas razões esposadas até aqui, estamos convictos de que o discurso

não é de Trasímaco. A formulação das duas teses é de Platão, porque,

provavelmente, contém o programa que ele pretende desconstruir. Essa

hipótese foi sobejamente confirmada na análise que fizemos do Livro II, na

qual explicitamos a compatibilidade entre os dois argumentos com o suporte

Page 137: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

137

imprescindível da teoria da aparência. No debate sobre a justiça como

interesse do mais forte, a cidade triunfa como sua melhor imagem.

Page 138: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

138

Referências

Bibliografia Geral:

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da

dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009.

ADKINS, Arthur W. H. Merit and Responsibility: a study in Greek

Values. London: Oxford University Press, 1960.

BARKER, E. Greek Political Theory. Plato and his predecessors,

London: Methuen, 1918.

BARNES, J. The Presocratic Philosophers. London, 1982.

BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Sólon de Atenas: a cidadania

antiga. São Paulo: Humanitas, 1999.

BELIDO, A. M. Sofistas: testimonios y fragmentos. Madrid: gredos,

1996.

BEONIO-BROCCHIERI, V. Saggezza di Trasimaco. Verona,

Mondadori, 1943.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins

Fontes, 2008.

----------. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995.

BOERI, Marcelo D. Apariencia y realidad en El pensamiento griego:

investicaciones sobre aspectos epistemológicos, éticos y de teoria de La

acción en algunas teorias de La Antigüedad. Buenos Aires: Colihue,

2007.

Page 139: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

139

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da

mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1992.

BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica.

Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

CACCIARI, Massimo et al. La Legge Sovrana: nomos basileus, Milão,

BUR/SAGGI, 2006.

CORNFORD, F. M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Princípio

editora, 1994.

-------------. The Republic of Plato. London: Claredon Press, 1961.

DAHL, R. A. Modern political Analysis. New Jersey: Englewood

Cliffs, 1963.

DELANEY, David. Law and Nature. Cambridge: Cambridge

University Press, 2003.

DETIENNE, Marcel. L’invention de la mythologie. Paris: Gallimard,

1981.

----------. Os mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1988.

DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988.

DOVER, K. J. Greek Popular Morality: in the time of Plato and

Aristotle. Oxford, 1994.

FINLEY, Moses I. Política no Mundo Antigo. Lisboa: edições 70, 1983.

FREEMAN, K. The Presocratic Philosophers. Cambridge: Harvard

University Press, 1966.

FURLEY, David J. and R. E. Allen. Studies in Presocratic Philosophy.

London: Routledge & Kegan Paul, 1970.

Page 140: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

140

GARCIA MAYNEZ, E. Teorías sobre la justicia en los diálgos de

Platón. 3 volumes. México: UNAM, 1988.

GERNET, Louis. Droit et société dans La Grèce ancienne. Paris, 1964.

GIGANTE, M. Nomos Basileus. Napoli, 1956.

GIGON, Olof. Rationalité et transrationalité chez les sophistes. Actes

Du Congrés de Nice, mai 1987.

GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1963.

----------. Lês dialogues de Platon; structure et méthode dialectique.

Paris: Universitaires de France, 1947.

GUTHRIE, W. K. L. „The Sophists‟, em A History of Greek

Philosophy, vol. III. Cambridge: Cambridge Universyti Press, 1971.

HABERMAS, J. Israel o Atenas: ensayos sobre religión, teologia e

racionalidad. Madrid, Editorial Trotta, 2001.

HAVELOCK, E. A, Cultura orale e civiltá della scrittura da Omero a

Platone, Roma-Bari, 1983.

----------. The Greek Concept f Justice: from its Shadow in Homer to its

Substance in Plato. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

HIRZEL, Rudolf., Themis, Dike und Verwandtes. Leipzig: Verlag Von

S. Hirzel, 1907.

HEINEMANN, F. Nomos und Physis, Damstadt, 1987.

HUBY, Pamela M. Greek Ethics. London/Melbourne/Toronto:

Macmillan, 1967.

Page 141: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

141

JAEGER, W. cristianismo primitivo e paidéia grega. Lisboa: edições

70, 1961.

---------. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins

Fontes, 2001.

JOAL, C. E. M. Thrasymachus or the future of morals. London, 1925.

KERFERD, George Br. Le Mouvement sophistique. Paris: Vrin, 1999.

LAZZERINI, C. Trasimaco : il primo libro della Reppublica. Firenze:

La nuova Itália, 1967.

LIDDEL, H ; SCOTT, G ; Jones. A Greek-English Lexicon.

Oxford/London : Oxford University Press, 1966.

MANZANO, M. A. Sanchez e RUFINO, S. Rus. Introducción al

movimiento sofistico griego, León, 1991.

MARQUES , Marcelo Pimenta. Platão, pensador da diferença : uma

leitura do Sofista. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2006.

MENZEL, A. Calicles, México, 1964.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São

Paulo: Martins Fontes, 2006.

OPHIR, A. Plato’s invisible cities. Discourse and Power in the

Republic. London: Routledge, 1991.

OSTWALD, M. Nomos and the Beginnings of Athenian Democracy.

Oxford, 1969.

PITKIN, H. F. Wittgenstein and Justice, Berkeley, 1972.

PLACES, E. Lexique de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1964.

Page 142: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

142

POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. 1º Volume. São

Paulo: EDUSP, 1974.

REY, Abel. La juventud de la ciência griega. México: UTE, 1961.

ROBLEDO, Antonio Gómez. Sócrates y el socratismo. México: Fondo

de Cultura Econômica, 1994.

---------. La ley en el pensamiento platônico. In: Platón: los diálogos

tardios. Actas del Symposium Platonicum 1986. México: UNAM, 1987.

ROMILLY, J. de. La loi dans la pensée grecque des origines à Aristote.

Paris, 1971.

------------. The Greek sophists in Periclean Athens. Oxford: Clarendon

Press, 1998.

ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Rio de Janeiro: Vozes,

2005.

RUFINO, Salvador Rus e MEABE, Joaquín E. Justicia, Derecho y

Fuerza : el pensamiento de Trasímaco acerca de la ley y la justicia y su

función en la teoría del derecho. Madrid : Tecnos, 2001.

RUFINO, S. Rus. El problema de La fundamentacón Del derecho. La

aportación de La sofistica griega a La polêmica entre naturaleza e ley,

Valladolid, 1987.

SANTOS, José Gabriel Trindade. Para ler Platão: a ontoepistemologia

dos diálogos socráticos. Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

---------. Para ler Platão: o problema do saber nos diálogos sobre a

teoria das formas. Tomo II. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

STRAUSS, L. Natural Right and History, Chicago, 1953.

………. Persecution and the art of writting. Illinois: Glencoe, 1952.

Page 143: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

143

TAYLOR, A. E. Platón. Madrid: Tecnos, 2005.

UNTERSTEINER, M. Sofisti. Testimonianze e frammenti. Firenze: La

nuova Itália, 1967.

VEGETTI, Mario. La etica de los antiguos. Madrid: Síntesis, 2005.

------------. La Republica. Vol. I. Libro I. Italia: Bibliopolis, 1998.

-----------. La Republica. Vol II. Libri II e III. Itália: Bibliopolis, 1998.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Lisboa:

teorema, 1987.

----------. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1999.

---------. Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2001.

Page 144: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

144

Bibliografia específica.

a) Obras de Platão

PLATÃO. A República. 11a ed. Trad. Maria Helena Rocha Pereira.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

PLATON. Obras Completas. 9a reimp. da 2

a ed. Trad. de M. Araújo,

Francisco Yagüe, Louis Gil, J. A. Miguens, Ma. Rico, A. R. Huiscar e

Francisco de P. Saramanch. Madrid: Aguilar, 1990.

PLATONE. Tutti gli scritti. A cura de Giovanni Reale. Milano:

Rusconi, 1997.

PLATÃO. Diálogos. I-XIV Volumes. Tradução de Carlos Alberto

Nunes, Belém: UFPA, 1972 e segs. (Coleção Amazônica - série

Farias Brito).

PLATON. Oeuvres completes. Tradução Léon Robin. Paris: Gallimard,

1950.

PLATÓN. República. Traducción directa del griego por Antonio

Camarero. Estúdio preliminar e notas de Luis Farré. Buenos Aires:

EUDEBA, 1988. (Los fundamentales/Filosofia)

b) Obras sobre Platão

ALLEN, R. E.. (ed.) Studies in Plato’s Metaphysics. Lodon: Routledge,

1967.

ANNAS, J. An introduction to Plato’s Republic. Oxford: Oxford

University Press, 1992.

Page 145: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

145

BROCHARD, Victor. Estudios sobre Sócrates e Platón. 2. ed.

Tradução de León Ostrov. Buenos Aires: Losada, 1945. (Coleção

Biblioteca Filosófica).

CHERNISS, Harold. Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy.

Second Printing. Volume I. Ypsilanti: The Johns Hopkins Press, 1946.

CRESSON, André. Platon: sa vie, son ouvre, sa philosophie. Paris;

Presses Universitaires de France, 1947.

CROMBIE, I. M. Análises de las Doctrinas de Platón. 02 Volumes,

Tradução de Ana Torán y Julio César Armero. Madrid: Alianza

Editorial, 1988.

DIÈS, Auguste. Autour de Platon: essais de critique et d’histoire. 2a.

Edição. Paris: Les Belles Lettres, 1972. (Coleção D‟Etudes Anciennes).

DIXSAUT, Monique. Metamorphoses de la dialectique dans les

dialogues de Platon. Paris: Vrin, 2001. (Bibliothèque D‟Histoire de la

Philosophie).

DROZ, Geneviéve. Los mitos platônicos. Barcelona : editorial labor,

1993.

GRUBE, G.M.A.. El Pensamiento de Platón. Tradução de Tomás Calvo

Martinez. Madrid: Gredos, 1987. (Coleção Biblioteca Hispánica de

Filosofía, no. 80).

HAVELOCK, E. A. Prefacio a Platon. Madrid: Visor Distribuiciones,

1994.

Page 146: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

146

JEANNIÉRE, A. Platão. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995.

KRAUT, R. Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

LLEDÓ, E. La memoria del logos. Estudios sobre el diálogo platónico.

Madrid: Taurus, 1996.

LYCOS, K. Plato on justice and power. New York: State University of

New York Press, 1987.

MORAVCSIK, Julius. Platão e Platonismo: aparência e realidade na

ontologia, na epistemologia e na ética. São Paulo: Loyola, 2006.

MOREAU, Joseph. Réalisme et idéalisme chez platon. Paris : Presses

Universitaires de France, 1951.

REALE, G. Para uma nova interpretação de Platão. São Paulo:

Loyola, 1997.

REEVE, C. D. C. The argument of Plato’s Republic. Princeton:

Princeton University Press, 1988.

ROBIN, Leon. Platon. Paris: PUF, 1997. (Collection Quadrige).

ROBLEDO, Antonio Gómez. Platón: los seis grandes temas de su

filosofia. México: Fondo de Cultura Economica, 1986.

Page 147: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

147

ROSS, David. Teoria de las Ideas de Platon. Tradução de José Luis

Díez Arias. Madrid: Cátedra, 1989. (Coleção Teorema).

TAYLOR, A. E.. Plato: the man & his work. 7ª. Edição. New York:

Methuen.

VLASTOS, G. Plato. Notre Dame: University of Notre Dame Press,

1998.

WHITE, N. P. Platos’s Republic. Oxford: Oxford University Press,

1997.

c) Artigos

ARAÚJO JR., Anastácio Borges de. Os sentidos do ‘mais forte’ na

República de Platão. Apresentado no Simpósio da SBP, em Uberlândia,

agosto de 2009, pp.1-14.

BELAÚNDE, Domingo García. Existe um Derecho Natural en La

filosofia griega?, apresentado em 1972 à Sociedad Peruana de

Filosofía, pp.1-8.

BOLZANI, Roberto. Glauco, guardião do logos. Apresentado no X

simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, em

Uberlândia, agosto de 2009, p.1.

CARVALHO, A. Pinto de. Aspectos da Moral Homérica e Hesiódica

(calocagathía – Arete – hybris). Revista de História, n.25, São Paulo,

1956, pp.49-57.

Page 148: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

148

BORTER, G. J. Thrasymachus and Pleonexia, Mnemosyne, 39/3, 1986,

pp.274-278.

DAVIS, L. D. The arguments of Thrasymachus in the Firs Book of

Plato’s Republic, Modern Schoolman, 47/4, 1970, pp.425-428.

DORTER, K. Socrates’ Refutation of Thrasymachus and Treatment of

Virtue, Philosophy and Rethoric, 7, 1974, pp.25-46.

HADIGOPOULOS, D. J. Thrasymacus and legalism, Phronesis, 18,

1973, pp.204 e seguintes.

HARLAP, S. Thrasymachus’s justice, Political theory, 7, 1979, pp.347

e seguintes.

HARRISON, E. H. Plato’s manipulation of thrasymachus, Phoenix, 21,

1967, pp.27 e seguintes.

HOURNAI, C. F. Thrasymachus definition of justice in Plato’s

Republic, Phronesis, 7, 1962.

MAGUIRE, J. P. Thrasymachus ... or Plato?, Phronesis, 16, 1971, pp.

142 e seguintes.

MARQUES, Marcelo Pimenta. Aparecer e imagem no livro VI da

República. In. Estudos platônicos: sobre o ser e o aparecer, o belo e o

bem. Marcelo Perine (org.). São Paulo: Loyola, 2009, pp.137-165.

ROBINSON, Thomas. Is justice enough to produce eudaemonia? Some

thoughts on a central issue in the Republic. Apresentado no X Simpósio

Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, em Uberlândia,

agosto de 2009, pp.1-12.

SANTOS, José Gabriel Trindade. A cidade dos homens. Polis :

educação e democracia. Philosophica 4, Lisboa, 1994, pp. 81-98.

Page 149: O argumento da justiça: contradição ou coerência no ...questão – repousa no discurso de Trasímaco que destrincha o núcleo do seu pensamento (343b – 344c). Aqui, a conveniência

149

-----------. A natureza e a lei: reflexos de uma polêmica em três textos

da Grécia Clássica. Inquérito, Lisboa, pp. 77-111.

----------. Deuses e Heróis: há uma ética na Ilíada? In: O teatro da

morte, da humilhação e da dor: análise e tradução do canto XXII da

Ilíada, de Homero. João Pessoa, Ed. UFPB, 2007. pp.05-14.

---------. A cidadania: resumo de leitura. Archai, 2008. pp. 01-05.

---------. Platão: a República. In: 10 livros que mudaram o mundo.

Lisboa: Quase Edições, 2005, pp. 131-145.

SMITH, B. Thrasymachus a Pioneer of speech, Quarterly journal of

speech, 1927, pp.278 e seguintes.

TRABATTONI, Franco, em ‘Quantas Teses sustenta Trasímaco no

livro I da República?’, apresentado no X Simpósio Internacional da

Sociedade Brasileira de Platonistas, em Uberlândia, agosto de 2009,

pp.1-12.

WATANABE, Lygia. Sobre o envolvimento histórico do Livro I da

República de Platão. In. Ética e Política no Mundo Antigo. Hector

Benoit e Pedro Paulo A. Funari (orgs.). Campinas: UNICAMP, pp.275-

288.

WILSON, J. R. S. Thrasymachus Theory of Justice, Polis, 3/2, 1980,

pp.7-9.