O ATOR CARA DE BOLACHA -...

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O ATOR CARA DE BOLACHA X MIMI FLA-FLU Marcílio Moraes

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O ATOR CARA DE BOLACHA X

MIMI FLA-FLU

Marcílio Moraes

QUADRO I A – Respeitável público! B – Vamos contar para vocês uma história triste, porém muito instrutiva. Passou-se há não muito tempo atrás, aqui mesmo neste palco. C – É a história da representação improvisada que um jovem grupo de atores teve de encenar. D – Imaginem que durante dois meses eles ensaiaram uma peça. Com garra e abnegação criaram personagens maravilhosos, de força extraordinária. E – E eis que no dia da estréia, por razões até hoje desconhecidas, os personagens não puderam comparecer. F – A notícia colheu o grupo como um raio. Houve gritos, choros e lamúrias. G – Desesperado, o diretor resolveu cometer uma temeridade. H – Faltava menos de uma hora para que se abrissem as cortinas. I – O público feroz já começava a ocupar seus lugares. J – O diretor, um rapazinho que veio do Acre cheio de ideais, reuniu então os atores. K – Pessoal. A – Disse ele. K – Acho que a gente deve apresentar um espetáculo de qualquer maneira. B – Ousadas palavras. K – O publico está aí e eu tenho algumas idéias na cabeça. C – Prosseguiu ele. F – Mas não dá tempo! D – Obtemperou um dos atores. K – Dá sim. Num instante a gente combina alguma coisa e o resto a gente improvisa. A gente tem garra ou não tem? A – Concluiu ele, incitando seus companheiros.

B – (Para a platéia.) – Aí para os menos esclarecidos. Isso é teatro épico brasileiro, viu. C – Se bem que temerosos, todos concordaram. D – Traçaram então, rapidamente, as linhas do espetáculo. E – E se dispuseram a enfrentar o público.

(Cantam a canção do “ATOR CARA DE BOLACHA”.)

Canção do Ator Cara de Bolacha

Não adianta negar

Que teatro é diversão Quem acaba de jantar Quer fazer a digestão

O público de pança cheia E nós, sem sangue na veia

Teatro que se preza

É o mesmo que saliva Põe no bucho da platéia

Uma peça digestiva

O público de pança cheia E nós, sem sangue na veia

Mas o cara de bolacha

É ator sem personagem Teatro com ele

É na cara e na coragem

Não tem enredo Faltou o figurino

Nem por isso ele se agacha Sobe no palco e mostra

Sua cara de bolacha

O público de pança cheia E nós, sem sangue na veia.

A – Distinta platéia. O que vocês vão ver agora é a representação de uma representação. B – É claro que uma representação tem dois personagens: os atores e a platéia. C – O papel de atores nós vamos representar. A – E pedimos a vocês que representem o papel de platéia. B – Não é nada difícil. C – Basta que vocês procurem assistir com naturalidade. A – Portem-se como se realmente estivessem assitindo ao que realmente estão assistindo. B – Reajam como se as sensações que forem tendo fossem realmente as sensações que estão tendo. C – Se precisar mais alguma coisa, a gente avisa. (Quando acaba de dizer suas falas o DIRETOR chama disfarçadamente o ator CARLOS e os dois cochicham. Os demais continuam, mas estão preocupados como o que está se passando. Quando começam a cantar, o diretor chama a atriz LÚCIA e os três cochicham. Ao acabar a última fala, os atores demonstram que esperam algo do DIRETOR. Ele logo interfere.) DIRETOR – Vamos cantar de novo. (Cantam outra vez. Ao acabar a música o ator que diz as últimas falas indaga do DIRETOR se deve repetir. O DIRETOR faz um sinal que não e dirige-se à platéia.) DIRETOR – Vocês me desculpem mas é que ouve um probleminha aí. Uma das atrizes não veio e eu tive de fazer algumas modificações. Inclusive vou cortar o quadro inicial que era ela que fazia. Mas o resto outra menina vai fazer no lugar dela. (Sorri.) Acho que não vai ter grilo não. Dá pra gente levar. Desculpe, tá. (Volta-se para os atores.) Vamos lá Lia. (Faz um sinal positivo com o dedo para ela. Prepara-se a cena. Tudo pronto para começar. Entram atores com uma faixa que anuncia a cena: “CENA DE RUA”. O DIRETOR faz um gesto de irritação.) DIRETOR – Não é essa. Essa eu cortei. (Os atores voltam rapidamente ao interior e trazem outra faixa com os dizeres: “CENA FAMILIAR”. Exibem para o público e se retiram.)

QUADRO II Em cena: CARLOS, LARA, LÚCIA e ALBERTO. Os demais assistem. LARA costura, sentada. ALBERTO lê uma revista num canto. LÚCIA dança. LARA – Lúcia, passa uma vassoura na sala. Daqui a pouco seu pai está aí e você sabe que ele não gosta de encontrar a casa desarrumada. LÚCIA – Ah, mãe. Estou dançando. Depois eu varro. LARA – Quer fazer o favor, Lúcia. Não custa nada, né. LÚCIA – Isso é serviço de mulher. Ele faz outras coisas.

(LÚCIA varre perto de ALBERTO, cutucando-o.) ALBERTO – (Brincando) Te dou uma bolacha, hein. LÚCIA – Tira essa bunda daí que eu quero varrer. LARA – Mais respeito, hein menina. LÚCIA – Iiii! A senhora é tão careta, mãe. (LARA faz cara feia e sacode a cabeça. Silêncio. LÚCIA continua varrendo. Está nervosa. Lança alguns olhares disfarçados para o DIRETOR. Está evidente que esqueceu a fala. ALBERTO intervém.) ALBERTO – Mas conta o teu papo ontem com o Dadinho. LÚCIA – Ah, é. Encontrei com ele no ônibus, veio com um papo esquisito. (Hesita.) ALBERTO – Ele te convidou para ir a algum lugar? LÚCIA – É. Queria que eu fosse na Barra com ele. (O DIRETOR faz sinais a CARLOS para entrar. CARLOS hesita, indica que não é hora. DIRETOR insiste.) Você já viu papo mas esquisito. Não sei qual é a daquele cara não. ALBERTO – Ele não falou no carro do pai dele? LÚCIA – Pois foi exatamente esse o papo dele. (Entra CARLOS.) CARLOS – Boa noite. LARA – (Levantando-se para beija-lo.) Oi, querido. (Beijam-se.) LÚCIA – (Esperando que o pai venha beija-la.) Oi, pai.

CARLOS – Oi. (Ele não beija.) ALBERTO – Oi, pai. CARLOS – (Sentando-se.) Tudo bem? LARA – Como é que foi o dia, querida? CARLOS – Aquela luta de sempre. As mesmas caras, os mesmos problemas. Enfim, o que se há de fazer? (Para ALBERTO.) Você pagou aquela conta que eu te pedi Alberto? ALBERTO – Paguei. (Entra RENA disfarçadamente por trás. XXXXX cochicha com ela.) CARLOS – Obrigado. Pelo menos isto está resolvido. LARA – Você comprou o que eu te pedi? CARLOS – (Botando a mão na cabeça.) Tch, esqueci. Também hoje tive um problema que me deixou aborrecido o dia todo. (Cochicho continua. Carlos olha irritado para eles.) Lembra aquela promessa que o Frota me fez? Prometeu mundos e fundos em troca daqueles favores que eu fiz para ele. (Continua o cochicho. CARLOS vai se irritando progressivamente.) Hoje chegou cheio de conversa mole. Pela cara dele já fiquei desconfiado. Começou a inventar um milhão de desculpas, a me fazer agrados. Acabou dizendo que agora não ia ser possível, para eu compreender que depois a gente acertaria. RENA – (Deixando escapar.) Mas eu tenho que trabalhar Gregório. Teatro não dá para viver não. (CARLOS volta-se para eles e soca a mesa, furioso. Silêncio. Há um clima de mal-estar entre os atores. CARLOS tenta se controlar. Senta, fica em silêncio, LARA está apreensiva, DIRETOR faz-lhe sinal para que interfira.) LARA – Quer jantar? CARLOS – (Agressivo.) Não. Perdi a fome. (Silêncio.) LARA – Vem cá me ajudar um instante, Lúcia. (Ela vai.) Segura aqui. É tão complicado fazer isso. (Pausa.) Conta direito a tua conversa com esse rapaz ontem. LÚCIA – Ah, não foi nada não, mãe. Bobagem. (Hesita.) LARA – Está bem. Pode largar. (Levanta-se. Está nervosa.) Você já estudou pra prova Alberto? ALBERTO – De noite eu estudo. LARA – Aproveita e pergunta a seu pai aquilo que você queria saber. ALBERTO – (Levantando-se.) Ah, é. O senhor sabe descritiva, não é pai? (Ele não responde.) É que tem um probleminha aí que eu não consigo resolver.

CARLOS – E você acha que eu estou aqui para resolver os seus problemas? (ALBERTO se surpreende.) Acha? (ALBERTO não responde, procura o olhar de LARA.) Olha pra mim. Responde. ALBERTO – Não. Não acho não. LARA – (Intervindo.) Você sabe quem ligou pra você querido? CARLOS – (Sem dar atenção.) Vem aqui, Alberto. Enquanto eu estiver falando, você fica aqui. ALBERTO – Pensei que o senhor tinha acabado. CARLOS – Mentira! Você tem é medo de falar na minha cara. LARA – Acho que está na hora da novela. CARLOS – E você só pensa em novela, não é. Olha que bagunça que está a casa. Parece um chiqueiro. Que é que esses dois ficam fazendo em casa o dia inteiro? Por que é que você não manda eles arrumarem? LARA – A Lúcia estava varrendo a sala quando você chegou. CARLOS – Quando eu cheguei, não é? Pra tentar me enganar, pra tentar esconder o que é evidente. LARA – O que é que é evidente? CARLOS – Tudo! É evidente que vocês não fazem nada, que vocês não ajudam em nada. LÚCIA – (Tentando afagá-la.) Ah, paizinho, não fica assim não. CARLOS – (Repelindo-a.) Sai pra lá. Não vem com teus denguezinhos não. Já te disse mil vezes pra não fazer isso. LARA – (Tentando acalmá-lo.) Senta aqui, Carlos. Acaba de contar aquele negócio do Frota. CARLOS – Não quero sentar não. Será que você não vê que está tudo errado nessa casa. LARA – Até você chegar estava tudo muito bem. CARLOS – Não estava nada bem. Não era nada disso que eu queria. (LARA lança um olhar interrogativo para o DIRETOR e senta-se de costas para CARLOS.) Esses dois não sabem fazer nada, não servem para nada. Vem cá, Alberto. (Ele se aproxima.) Isso não vai ficar assim não hein. Vou te botar pra trabalhar. Você está ficando um vagabundo. ALBERTO – Eu tô estudando. CARLOS – Estudando nada. Você não faz nada. Você não presta pra nada.

LARA – (Pulando da cadeira.) Para de gritar, porra. Não agüento mais esses gritos. (ALBERTO senta.) CARLOS – Você vai agüentar. Vai agüentar até quando eu quiser. (LARA está furiosa mas se contém. CARLOS volta-se para LÚCIA.) Que é que você está olhando? LÚCIA – Estou querendo entender o que você quer. CARLOS – Não quero anda. De você não quero nada. Não era você que eu queria como filha. Nem você nem esse banana aí. (Para ALBERTO.) Levanta daí. (ALBERTO levanta-se mas não encara CARLOS.) Que é que você fez hoje? ALBERTO – Fui ao colégio. CARLOS – E depois? ALBERTO – Depois vim pra casa, ué. CARLOS – Fala alto. ALBERTO – Depois vim pra casa. CARLOS – Fala alto. Fala como homem. ALBERTO – (Colocando as mãos na boca, como um megafone.) Depois vim pra casa! CARLOS – Você é um banana. Você não dá pra nada. (Há um clima de ansiedade geral.) Que é que você fez em casa? LARA – Quer deixar o menino em paz. CARLOS – Cala a boca. Ninguém te perguntou nada. (Para ALBERTO que se afastou.) Alberto! Que é que você fez em casa? ALBERTO – Sei lá. Fiquei por aí. CARLOS – Fala alto. Solta a voz. ALBERTO – Fiquei por aí. CARLOS – Fala como homem. Fala aqui, na minha cara. (Pausa.) Fala! LÚCIA – (Estourando.) Pára com isso. Pára. Pára. CARLOS – (Espumando.) Cala a boca, sua idiota. (LARA aproxima-se para protegê-la. CARLOS volta-se para ALBERTO.) Vamos. Fala aqui, na minha cara.

ALBERTO – Falar o que? CARLOS – Fala. Fala o que você quiser, mas fala. ALBERTO – (Para os outros.) Eu não sei o que ele quer que eu fale, porra. LARA – (Alterada.) Quer deixar o menino em paz. CARLOS – Você não vê que ele não fala nada. Que ele é um banana. Que esses dois não servem pra nada. LARA – Como é que ele pode falar alguma coisa com você gritando desse jeito? CARLOS – (Desviando-se dela.) Vem cá, Alberto! Fala aqui na minha cara, como homem, fala. LARA – (Sacudindo-o.) Deixa o menino em paz, Chico. CARLOS – (Empurrando-a com brutalidade.) Me larga. Não se mete não. LÚCIA – (Partindo pra cima dele.) Não bate na minha mãe, não, porra. Não bate na minha mãe, seu filho da puta. (LARA segura-a e vai puxando-a para longe dele. Ela vai se debatendo, fora de si.) Não bate na minha mãe, não bate, não bate. (Chora. LARA solta-a e ela fica chorando no chão. LARA olha para o diretor, sem saber o que fazer.) CARLOS – Vem cá, rapaz. Fala aqui na minha cara. Fala. ALBERTO – Eu não tenho nada pra falar, porra. CARLOS – Fala alto. Solta a voz. ALBERTO – Eu não tenho nada pra falar. Não tenho nada. CARLOS – Tem sim. Fala aqui na minha cara, como homem. ALBERTO – Eu não vou falar. Eu não quero falar. CARLOS – Fala seu banana. Fala. (ALBERTO vai para um canto, fica de costas para ele.) Vem cá rapaz. Fala alguma coisa. Fala. (No auge.) Vem aqui, Alcion. (ALBERTO desmonta.) Assim não dá meu filho. Você nunca vai ser ator. Você estragou a cena toda. (Para o diretor.) Não dá. Pra mim chega. Ele não me enfrenta. Não sabe fazer nada, não tem voz. (O DIRETOR dá-se conta do que está se passando e corre para interferir. Manda o músico tocar alguma coisa e puxa CARLOS para um canto.)

QUADRO III DIRETOR manda músico tocar. Ele toca. DIRETOR tenta levantar LÚCIA que chora no chão. É repelido. Fala com CARLOS para acalmá-lo. CARLOS senta-se num canto. LARA está com ALBERTO. DIRETOR começa a preparar próxima cena, de que participarão todos, exceto CARLOS, LARA e o próprio DIRETOR. Manda dois atores anunciarem. Eles trazem um cartaz com os dizeres: “CENA JOVEM”. Já a esta altura o diretor mandou outros dançarem. Todos dançam, inclusive os que anunciaram. DIRETOR se afasta para assistir. Dançam e cantam. LÚCIA se ergue lentamente e dirige-se a platéia, sem se importar com os outros. Começa a falar. Os outros percebem, estão apreensivos mas continuam a cena. DIRETOR faz gestos. Tenta aproximar-se de LÚCIA, hesita e não vai. CARLOS esconde o rosto nas mãos. LARA está com ele. LÚCIA – Sabe, eu não acredito em nada disso. Eu sou uma pessoa diferente. Quando eu era criança costumava me fechar no quarto pra representar uma porção de coisas. Eu não gostava que ninguém visse. Mas eu fazia aquilo pros outros. Era uma forma de dar alguma coisa a eles. Eu representava o mundo como eu queria que ele fosse. Eu acho que todo mundo pode viver numa boa, entende. Nós aqui, vocês, a gente tá numa boa. Todo mundo pode entrar nessa. Eu sei que tem muita gente que não saca isso. MÚSICO – (Pára de tocar, levanta-se irritado e se dirige para os bastidores. Para o DIRETOR.) Tô fora dessa. LÚCIA – (Continuando como se nada tivesse acontecido.) Mas a gente pode dizer pra eles. Mostrar que a vida não é nada disso. O que eu fiz aí não é a minha, entende. Eu quero trabalhar em teatro pra dar a minha alegria. Acho que esses grilos de briga, de discussão não tem nada a ver. Não me toca não, entende. O importante é a gente se dar, amar. Eu sou assim. Eu quero dar a minha alegria pras pessoas. Meus problemas não me atormentam não. Eu estou sempre numa boa. Estou sempre alegre. (DIRETOR finalmente se decide e vai até ela. Puxa-a para um canto. Ela se deixa levar docilmente. Depois dirige-se aos atores. Bate as mãos para incitá-los). DIRETOR – Vamos gente. (Para LOMBINHO (LUIS).) Pega lá o cartaz. LOMBINHO – Qual? DIRETOR – Cena de Amor. (Dá algumas instruções em voz baixa para JOSÉ (JORGE) e MARTA (MARILKA). Prepara-se a cena. Atores fazem perguntas e DIRETOR responde enquanto arruma. LOMBINHO traz o cartaz e anuncia “CENA DE AMOR.)

QUADRO IV JOSÉ e MARTA. Demais assistem. Os dois caminham como se passeassem num bosque. JOSÉ – (Olhando para cima.) Está uma noite legal, não é? MARTA – São muito bonitas as noites de outono. JOSÉ – Eu me amarro na natureza, sabe. Tem dias que dá vontade de não fazer nada. Só ficar olhando. MARTA – Hoje em dia a gente nem pode ver o céu direito. Tem tanto edifício. Tanta coisa. (Silêncio. Andam.) JOSÉ – Sabe, fiquei muito contente de te encontrar na festa. MARTA – Por que? JOSÉ – Há muito tempo que eu estava querendo levar um papo com você. MARTA – E por que não levou antes? Todo dia a gente se vê na escola. JOSÉ – É, mas lá é outra transa. Não sei. Acho que é o teu jeito. Você é meio fechada. Ah, sei lá. O caso é que aqui eu me senti mais legal pra levar esse papo. Tô mais na minha. (Silêncio. Caminham.) Vamos sentar? MARTA – Vamos. (Sentam-se.) Tá vendo aquela árvore ali? (Ele olha.) É uma jaqueira. JOSÉ – Você saca esse negócio de botânica, é? MARTA – Ah, Zé. Quem não sabe o que é uma jaqueira? JOSÉ – Eu não sabia. (Olha fixo para ela.) Você que me ensinou, acho que eu tenho muita coisa pra aprender com você. (Ela desvia o olhar.) Sabe, quando eu olho pra você sinto um negócio estranho. É outra transa. MARTA – Que outra transa? JOSÉ – Outra transa. Não sei explicar direito. Tem alguma coisa em você que me atrai, que me faz pensar em mil coisas, entende? MARTA – Bobagem, Zé. Corta essa. JOSÉ – Por que? Isso que eu estou falando é verdade. Minha transação com você é um negócio diferente. (Pausa.) Eu tenho pensado muito nisso, sabe. Acho que é esse teu jeito

agressivo. Não sei. Só sei que eu gosto. (MARTA ri.) Você está rindo? Não ri não. Estou falando sério. MARTA – Deixa de papo furado, Zé. JOSÉ – Não é papo furado. (Pausa.) Marta, eu gosto de você, eu te amo. MARTA – Mas por que, Zé? JOSÉ – Não sei. É uma transa que eu também não entendo direito. (Aproximando-se dela.) Eu sei que eu gosto de você, estou muito a fim de você. (Tenta beijá-la mas ela evita e se afasta.) MARTA – Não, Zé. Não dá. Não dá. JOSÉ – Por que não dá? Eu estou falando a verdade. Eu gosto de você, eu quero te dar afeto, carinho. (Tenta beijá-la outra vez. Ela evita e se afasta.) MARTA – Não dá. Já te disse que não dá. Chega, tá. JOSÉ – Por que não dá, Marta? É claro que dá. Estou dizendo que gosto de você. Por que é que você diz que não dá? MARTA – Porque não dá. (Encara-o.) Não dá porque você é preto, entende. Eu não tenho nada contra você, mas não dá. Tá dentro de mim. Eu não consigo transar com um preto. JOSÉ – Você está mentindo. MARTA – Não. É verdade. Me dá um negócio aqui por dentro, eu não sei. JOSÉ – Mas Marta. Nós somos duas pessoas iguais. (Mostrando.) Essa diferença é só de pele. MARTA – Mas não dá. JOSÉ – Eu não acredito que você sinta isso. O negro é igual ao branco. MARTA – Mas não dá. Não dá pra transar, Zé. JOSÉ – Mas... (Hesita. Ri. Volta-se para o DIRETOR.) Não dá pra fazer, bicho. Isso é falso. Esse negócio não existe. A cena não engrena. É falsa demais. DIRETOR – (Após alguns momentos, irritado.) Falsa por quê? JOSÉ – Falsa. Ela não acredita no que está falando. Eu não acredito. Então o negócio fica falso. DIRETOR – Então vai e diz pra platéia por que você acha que essa cena é falsa.

JOSÉ – Eu acho que não tem sentido falar em racismo no Brasil. O próprio fato de eu estar aqui, num palco, falando pra vocês, desmente essa cena. É tudo igual. A diferença é só de pele. Tanto o negro como o branco são bonitos. Eu tenho a certeza que se eu quisesse namorar uma menina branca não ia ter o menor grilo. Por isso essa cena é falsa. Se existe algum problema com o negro no Brasil, é porque o próprio negro não sabe criar a sua oportunidade. Eu tenho absoluta certeza que essa cena é falsa. (Volta-se para o DIRETOR e faz um movimento com os braços. Enquanto isso o DIRETOR prepara a próxima cena. Quando a música acaba entra um ator com cartaz dizendo “CENA COTIDIANA”.)

QUADRO V CARLOS, LARA, RENA, ALBERTO, LOMBINHO. Estão todos sentados como numa sala de visitas. Demais assistem. CARLOS – Mas eu tenho certeza que o rapaz vai corresponder plenamente a suas expectativas, doutor Fernando. Ele é assim um pouco tímido mas é muito esperto. LARA – Às vezes é esperto demais. Eu até gostaria que fosse mais acomodado. CARLOS – Você sempre querendo prender o menino, não é Lara. LOMBINHO – Ora, as mulheres são todas assim, Carlos. Você acredita que minha mãe ainda me recrimina por não levar uma vida regrada. Você imagina, eu, velho desse jeito. (Ri.) CARLOS – (Acompanhando o riso.) Mas então o senhor acha que pode colocar o menino. LOMBINHO – Não vou prometer nada. Mas digamos que ele tem oitenta por cento de chances. O diabo é que ele não sabe datilografia. RENA – Mas isso ele aprende num instante. Depois ele é muito arrumado, muito organizado. O senhor precisava ver o quarto dele. (ALBERTO está mudo, tenso.) CARLOS – Está aí uma verdade. É um ótimo rapaz. E não falo por ser pai não. É até surpreendente. Pelo que se vê hoje em dia. Uma juventude sem o menos respeito pelos mais velhos. Graças a Deus meus filhos não são assim. O senhor mesmo está vendo. (Indicando ALBERTO.) Calado. Obediente. Não é respondão. Tenho certeza que ele vai se dar muito bem na vida. ALBERTO – (Estourando, para CARLOS.) Você fez aquilo porque você tem bronca de mim. Porque você tem trinta anos. (Para a platéia.) Trinta anos. E eu só dezoito. Eu posso fazer tudo aquilo que você não fez. Pra você isso aqui é a tua última oportunidade. Se não der certo você está fudido. Mas eu não. Eu ainda posso fazer mil coisas. (CARLOS fica mudo, olhando fixamente pra ele.)

LARA – (Nervosa. Levantando-se e tentando puxar ALBERTO.) Vem, meu filho, você está nervoso. Deixa seu pai falar. (Ele não se move. Continua encarando CARLOS. LARA pede com um olhar instruções ao DIRETOR. Ele também está confuso. ALBERTO se vira bruscamente e vai para um canto. DIRETOR manda músico tocar alguma coisa. Ele toca mas é logo interrompido por CARLOS.) CARLOS – (Violento.) Pára! (Faz-se silêncio completo. CARLOS se levanta lentamente. Aproxima-se de ALBERTO e após alguns momentos fala em tom controlado.) Não. Você não entendeu. Eu não sou assim. Você me conhece e sabe que eu não sou assim. O que eu fiz com você é o que meu pai fazia comigo. Pra fazer aquilo eu fui buscar lá no fundo de mim a voz de meu pai. Era ele que gritava: fala na minha cara, fala. E eu não falava. Eu tinha medo dele. Medo físico. Medo moral. Medo. Quando eu estava gritando com você eu não era eu. Eu era meu pai e você era eu. Você não reagiu. Como eu não reagi. Por isso hoje estou aqui. Com trinta anos e ainda um aluno da escola de teatro. (Pausa.) Você sabe por que eu faço teatro? Porque desde criança era representando que eu resistia a tudo aquilo que queriam me impor, que queriam fazer de mim e que não era eu. (Pausa.) Eu vou mostrar como era. Vou mostrar como comecei a fazer teatro. Eu tinha medo, me escondia pra representar. (Para ALBERTO.) Olha! (Ele volta a cabeça. CARLOS representa uma cena infantil, sem palavras. Veste-se sensualmente de mulher. Ao acabar, desaparece nos bastidores. DIRETOR está confuso. Por fim dirige-se a LOMBINHO.) DIRETOR – Faz alguma coisa aí. Distrai a platéia. (Ele hesita mas se dirige a platéia. Canta a canção “MIMI FLA FLU”. DIRETOR desaparece nos bastidores. Demais assistem.)

QUADRO VI LOMBINHO – (Entrando e cantando.)

“Eu sou sensacional Eu sou original Eu sou Mimi Mimi fla flu”.

LOMBINHO – (Após alguma hesitação.) Eu vou contar uma história pra vocês. Um dia ele chegou, sabe? Entrou assim e botou os olhos em mim. Eu gelei. Não disse nada. Mas pelo olhar dele eu senti que estava errado. Então mudei de posição. (Muda o cruzamento das pernas.) Ele veio pro outro lado. (Indica o movimento com os olhos.) Me olhou. Eu senti. Está errado. (Descruza as pernas.) E assim foi indo. Tudo que eu fazia ele achava errado. Vocês já imaginaram? Ter sempre uma pessoa do seu lado te criticando. Minha vida virou um inferno. (DIRETOR volta e assiste.) Aí eu comecei a falar. Mas vocês pensam que ele ouvia o que eu dizia? Nada. Só prestava atenção nas palavras que eu usava. E corrigia todas elas. (Pausa.) Iii! Acho que essa história não está muito boa. Vou contar outra. É a história de um autor. Ele era assim um sujeito meio antipático, sabe. Carrancudo. Sempre sério. Mas não era má pessoa não.

Ele escrevia umas historinhas de aventuras, uma coisa muito vagabunda. Tiros, socos, bofetões. Também era a única coisa que ele sabia fazer. LARA – Foi nesta hora que o publico, não agüentando mais, vaiou impiedosamente os atores. CARLOS – Só não jogou ovos e tomates porque os ovos e tomates estão muito caros. DIRETOR – Agora a gente precisa da colaboração de vocês. Vocês querem vaiar, por favor. Vamos, pessoal, vaia. (Atores incitam a plateia a vaiar. Mostram como é.) DIRETOR – Já está bom. LOMBINHO – Como é natural, o acontecimento deixou os atores desolados. RENA – Uns choravam. JOSÉ – Outros se lamentavam. LARA – E uns terceiros permaneciam em mutismo inquebrantável. LOMBINHO – Caminharam a passos trôpegos até o local de ensaio. LÚCIA – E ali se reuniram para decidir o que fazer.

QUADRO VII Estão todos sentados. Ficam em longo silêncio. LEILA – É o que eu digo. Fazer teatro assim não dá pé. DIRETOR – Assim como? LAICA – Assim como a gente faz. Sem recurso nenhum, sem tempo pra ensaiar, sem nada. DIRETOR – Mas só podia ser assim, Laica. Quer dizer, só podia ser assim se a gente quisesse fazer o que a gente quer fazer. Fazer alguma coisa de importante pro teatro, montar autores nacionais e essas coisas. LAICA – Mas aí dá no que deu, Gregório. Sai uma porcaria. (Voltando-se para a platéia.) Você viu a cara que eles fizeram? DIRETOR – Eu sei, Laica. Mas você tem que considerar que eles estão acostumados a ver é vaudevillezinho, é peça estrangeira com um violento esquema empresarial atrás, é filme policial

americano, tudo bem feitinho, tudo bonitinho. Então vê um negócio desses, se espanta, é natural. LOMBINHO – Eles não estão acostumados a ver os problemas como eles são. O homossexualismo, por exemplo, o que mostram a eles é a caricatura da bicha, só isso, então eles acham graça e cada vez ficam mais preconceituosos. LAICA – Mas o que a gente vai fazer? O esquema é esse e a gente não pode fazer nada. DIRETOR – Não sei. Se ninguém tentar, aí não pode mesmo. Mas se a gente tentar... LAICA – Você é muito idealista, Gregório. Mas as coisas não são assim não. Quer ver um exemplo? Quantas pessoas se formaram em teatro nesses últimos anos? Umas 1.500, por aí, não é mesmo? Agora vai ver quantas hoje são profissionais. Uma meia dúzia, se tanto. MARTA – Quer dizer, meia dúzia que são profissionais de uma profissão que não existe, não é. Porque nem regulamentada está. LAICA – É. E ainda tem isso. CARLOS – Acho que vocês têm razão. De fato, a gente está estudando para uma profissão que não existe; só se é estimulado a brigar por uma vaguinha mal-paga na televisão; não nos dão a menos perspectiva da importância cultural do teatro. E todas essas coisas. Então qual é a saída? LAICA – Não tem. CARLOS – Por que? Só o fato de a gente estar aqui, tentando organizar um grupo que funcione em regime de cooperativa, para montar só autores nacionais, já pode ser uma saída. LAICA – Não acho. O que aconteceu prova exatamente o contrário. A gente faz o maior sacrifício, se arrebenta pra montar um espetáculo. Aí, o que é que acontece? Na hora os personagens não vêm, não tem dinheiro pra comprar isso, pra comprar aquilo, fulano tem que trabalhar. Então o espetáculo sai uma porcaria. Todos os problemas vêm à tona. (Pausa.) A nossa realidade é essa. A gente não tem como fugir dela. (Silêncio.) DIRETOR – Está aí. Você acabou de me dar uma idéia. Se a gente faz teatro pra mostrar a realidade e se a nossa realidade é essa, então vamos mostrar isso no palco. CARLOS – Você diz fazer uma peça sobre o próprio grupo? DIRETOR – Uma peça que parta da nossa realidade, da nossa experiência. Que mostre os nossos problemas pra platéia. JOSÉ – É uma idéia. LOMBINHO – Eu topo.

DIRETOR – Que é que vocês acham? LÚCIA – Eu estou aí pra qualquer negócio. MARTA – Acho que a gente pode tentar. AND – Se for entrar umas musiquinhas, eu estou aí. LARA – Eu topo. ALBERTO – (Sacode a cabeça afirmativamente.) DIRETOR – Rena? RENA – Tá legal. LAICA – Acho que não vai dar pra eu fazer não. DIRETOR – Por quê? LAICA – Primeiro porque eu acho que para se fazer teatro bem, a gente tem que ter outra profissão. LARA – Eu não concordo com isso não. JOSÉ – É muito discutível. DIRETOR – Por quê? LAICA – Por tudo que eu já falei. Mas não vamos mais discutir isso não, tá. A razão mais importante é que o pessoal lá de casa está me pressionando muito. E não está dando mais. LARA – Agüenta mais um tempo, até a gente preparar um espetáculo. LAICA – Não dá. Não dá mesmo. Eu me sinto na obrigação de fazer isso, entende? CARLOS – Mas você quer? LAICA – Não. Meu negócio é fazer teatro. Mas eu dependo deles. Então eles têm todo direito de ficar me chateando. Pra fazer o que eu quero, eu tenho que trabalhar, eu tenho que me tornar independente. DIRETOR – Olha que armadilha é essa. Pra você fazer o que quer você vai deixar de fazer o que quer, que é o teatro, que é essa peça. LAICA – Mas não dá pé, Gregório. Eu tenho que trabalhar. DIRETOR – Se é assim. Você é que decide. (Pausa.) Então você vai sair do grupo mesmo?

LAICA – Vou. DIRETOR – Então tá. (Espera que ela saia. Após alguns momentos.) Você não vai sair? LAICA – Vou. DIRETOR – Então vai. LAICA – Eu vou, mas eu não vou, Gregório. Eu estou fazendo o papel da Daniela e da Márcia que saíram. Mas eu não vou sair. Entendeu? (DIRETOR fica com cara de bobo. LAICA volta-se para a platéia.) Eu só falei isso pra mostrar que a posição de duas meninas que saíram, entendem? Mas eu não vou sair. Porque se eu tivesse saído, eu não estaria aqui agora, não é? DIRETOR – Tá legal. ALBERTO – Você já tem alguma idéia da peça? DIRETOR – Não. Mas o que eu pensei foi cada um de nós falar sobre si mesmo e a gente vê o material que tem. LOMBINHO – Cada um dá uma entrevista? DIRETOR – É. LOMBINHO – Eu adoro dar entrevistas. DIRETOR – Então vamos lá. Primeiro você, Lúcia. LÚCIA – Eu? DIRETOR – É. Vamos lá. LÚCIA – Ah, que é que eu vou dizer de mim? (Hesita.) Eu sou uma pessoa que estou sempre numa boa, sabe. Meus problemas não me atormentam não. DIRETOR – Por que é que você faz teatro? LÚCIA – Ah, eu faço teatro pra dar a minha alegria pras pessoas. Mostrar uma realidade que elas não vêem. Sei lá. Eu faço teatro pra me dar, pra amar. DIRETOR – Tá legal. LOMBINHO – Só. DIRETOR – É. Depois a gente aprofunda.

LOMBINHO – Ah, eu estava pensando em dar uma entrevista de página inteira. Tirar uma foto cheio de plumas. DIRETOR – Agora você, Carlos. Por que você faz teatro? CARLOS – Bem, fora uma série de razões de ordem pessoal, quer dizer, uma porção de coisas que eu acho importante serem ditas, eu faço teatro porque foi representando que desde criança eu resisti a mil coisas que queriam me impor. Eu resistia representando escondido. DIRETOR – Tá legal. Acho que aí pode ter muito material pra gente explorar. Agora você, Zé. JOSÉ – Estamos aí. DIRETOR – Eu queria te fazer uma pergunta diferente. Como é que você encara o fato de ser negro? JOSÉ – Não tenho nenhum grilo não. Acho que sou igual aos outros. DIRETOR – Mas você nota algum racismo nas pessoas? JOSÉ – Não. Nunca vi. Talvez exista mais racismo por parte do próprio negro. Eu acho que é o negro que não sabe criar o seu lugar. O negro tem complexo, por isso não se joga nas coisas. LARA – Mas vamos ver um exemplo. Se você for disputar um emprego com um branco, os dois têm a mesma capacidade, você acha que vai ser prejudicado pelo fato de ser negro? JOSÉ – Não. Eu acho que não. O cara vai escolher aquele que pode realizar melhor o serviço. DIRETOR – Tá legal. Agora você, Rena. Por que você sempre chega atrasada? RENA – Sempre acontece uma coisa. Não é por que eu queira não. Hoje por exemplo eu pedi à menina que mora comigo pra quando saísse botar o despertador pra mim. Ela esqueceu. DIRETOR – Aí, tá vendo. Assim não dá. Você sempre tem uma desculpa. Eu quero a razão verdadeira, alguma coisa ligada à tua vida. RENA – Sabe por que é? Eu sou desquitada. Então me sinto muito sozinha. E a única hora que eu posso ficar com meus amigos é de noite. De dia todo mundo trabalha. Aí vou sempre dormir tarde e não acordo de manhã. DIRETOR – Tá legal. Você, Alberto. LARA – Eu quero fazer uma pergunta. DIRETOR – Vai.

LARA – Você sabia que o Gregório ia te tirar do elenco da outra peça por causa do problema de voz? ALBERTO – Eu desconfiava. Mas não sabia. Eu me sentia muito distante do resto do pessoal. Mas eu achava que ia chegar lá. LAICA – Como é a tua relação com teu pai? ALBERTO – (Hesita.) É ruim. Eu não entendo ele. Cada dia ele diz uma coisa. MARTA – Você conversa com ele? ALBERTO – Não. Eu não me sinto bem perto dele. Ele está numa outra. CARLOS – Você enfrenta ele? ALBERTO – Não. DIRETOR – Tá legal. Vocês estão vendo quanto material que tem aí, quanta coisa que pode sair? Qualquer autorzinho faz uma peça com isso. CARLOS – A gente podia chamar o Marcílio pra fazer. DIRETOR – (Torcendo o nariz.) É. O Marcílio mesmo serve. MARTA – Ainda mais agora que ele ganhou um prêmio. DIRETOR – (Severo.) Psst! Isso foi depois. MARTA – (Passada) Ah, é. Desculpe. LOMBINHO – Quero conhecer logo esse autor. Vou falar com ele pra arranjar uma cena que eu entre cheio de plumas. AND – (Levantando e dirigindo-se à platéia. Para DIRETOR.) Vou tocar uma música minha, tá? DIRETOR – (Perplexo.) Que isso, rapaz? Isso não está no texto não. AND – Eu sei. Mas eu pedi ao Marcílio e ele deixou. (DIRETOR continua perplexo.) Sério, rapaz. Ele deixou. DIRETOR – (Irritado.) O Marcílio está pensando que isso aqui é programa de calouro, pô. AND – A peça foi feita pra dar oportunidade a todo mundo. Eu também tenho que ter a minha. (Para a platéia.) Essa que eu vou tocar é minha mesmo. É o que eu quero fazer em música. (Começa a tocar. Pára.) Ah, o autor mandou dizer que não se responsabiliza. (Canta a canção “estações”. Demais assistem.)

QUADRO VIII AND acaba de tocar. DIRETOR – Está satisfeito agora? AND – Perfeito. LARA – A gente podia começar a experimentar algumas cenas. DIRETOR – É. Eu tenho uma ideia. Eu já vi isso em outros lugares. Mas acho que pode funcionar. É todo mundo rir da platéia. JOSÉ – Legal. CARLOS – Só isso? Rir da platéia. DIRETOR – É. Vem todo mundo aqui pra frente e começa a rir da platéia. Vamos ensaiar, pra ver como é que fica. (Vêm todos à boca de cena e riem da platéia.) AND – Já imaginou a cara que eles vão fazer? JOSÉ – Vai ficar tudo com cara de babaca. CARLOS – (Rindo.) A gente pode apontar e ir gozando um por um. ALBERTO – Olha aquele ali. DIRETOR – Olha a cara dele. LARA – Não devem estar entendendo nada. JOSÉ – Pô, vamos fazer isso. Vai ser um sarro.

(Riem até a exaustão.)

QUADRO IX LARA – E agora?

JOSÉ – Está aí. Essa precisava entrar. Vai ficar genial. MARTA – Vamos experimentar outra coisa. LÚCIA – A gente pode fazer cócegas neles. LAICA – Ah, minha filha. Te garanto que a gente entra no pau. DIRETOR – Não. Isso não. CARLOS – (Para DIRETOR.) Você tem outra idéia? DIRETOR – Estou pensando em fazer um improviso com a situação da Rena, o negócio do desquite. LAICA – Tudo que a gente fizer vai ser aproveitado? DIRETOR – Isso não sei. De qualquer forma, o processo de elaboração do espetáculo vai ser através de improvisos orientados. RENA – Então vamos fazer. DIRETOR – Tá. Alberto faz o marido. (Ele concorda.) Rena, explica pra ele como deve ser. RENA – É. Dirige você mesma a cena. RENA – Tá. (Conversa em voz baixa com ALBERTO. Demais se afastam. RENA senta e lê. ALBERTO vai para o fundo e volta.) ALBERTO – Salve. RENA – (Levanta-se e beija-o.) Oi, querido. ALBERTO – (Depois de guardar ou arrumar alguma coisa.) Você arranjou outra empregada? RENA – Não consegui. ALBERTO – Você procurou? RENA – Claro, Mateus. Liguei pra tia Matilde mas ela disse que não sabe de ninguém. Ficou de falar com uma vizinha dela e amanhã me telefonar. ALBERTO – Foi a única tentativa que você fez? RENA – Foi. Que mais que eu podia fazer?

ALBERTO – Só existe a tia Matilde no mundo. É a única pessoa que você conhece. Se ela não arranjar uma empregada nós vamos ficar assim até morrer. RENA – Eu também tenho outras coisas pra fazer, Mateus. Você acha que eu posso ficar o dia inteiro procurando empregada? ALBERTO – Claro que pode. Aliás, pode não. É seu dever. RENA – Eu tenho a minha vida, Mateus. Não é só isso não. ALBERTO – Sua vida é aqui. Dentro de casa. RENA – Não senhor. Eu também faço teatro. ALBERTO – Que teatro! Já cansei de te dizer pra largar esse negócio. Não quero você metida nisso. RENA – Eu gosto de teatro. Eu quero fazer teatro, Mateus. Isso não te prejudica em nada. ALBERTO – Como não prejudica? Por causa dessa merda de teatro você ainda não arranjou outra empregada. Eu chego em casa e não tem jantar. RENA – Eu faço uns ovos mexidos pra você. ALBERTO – Que ovos mexidos? Eu trabalho o dia inteiro pra chegar em casa e comer ovos mexidos? Você me acha com cara de que? Você acha que eu sou algum palhaço? RENA – Não, Mateus. Mas acho que você pode entender que eu também quero ter a minha vida. Que tem uma porção de coisas que eu gosto e quero fazer. ALBERTO – Antes de tudo você é minha mulher, você é uma dona de casa. Você tem obrigações a cumprir. RENA – Eu sou uma pessoa também, Mateus. Será que você não entende isso? ALBERTO – Não. Não entendo. Eu casei pra ter alguém que cuidasse da minha casa, alguém que fosse a mãe dos meus filhos. Se não fosse pra isso eu não casava. Continuava a pegar qualquer piranha aí e pronto. (Pausa.) Vamos resolver isso de uma vez. Ou você larga esse negócio de teatro, larga esses seus amigos... Ou nós vamos nos desquitar. RENA – Será que você nunca vai me entender, Mateus? ALBERTO – Eu te entendia até muito bem. Agora é que não entendo mais. Quando te conheci, você não era assim. Morava com os pais, era uma moça comportada e direita. Nem falava nessa porcaria de teatro. Agora é que está mudando. RENA – Será que você não percebeu que na casa da mamãe eu nunca consegui ser eu mesma, que eles me castravam completamente?

ALBERTO – Quer dizer que tudo aquilo era hipocrisia? Teu negócio era arranjar um marido e vir pro Rio pra então se largar por aí, se meter com esses vagabundos.

(DIRETOR cochicha com MARTA e a manda entrar.) RENA – Vagabundos não, tá. São meus amigos. ALBERTO – São vagabundos sim. Que é que eles fazem? RENA – Teatro. ALBERTO – Isso não é profissão. (Pausa.) Eu vou te avisar, hein. Pela última vez. Ou você muda o teu comportamento ou nós vamos nos desquitar. Escolhe? RENA – Se é assim, então você pode pedir o desquite hoje mesmo. (Pausa.) Eu gosto muito de você mas... ALBERTO – Gosta nada. Se gostasse não fazia isso. RENA – Gosto sim. Gosto muito mesmo. Mas também quero viver um pouco a minha vida.

(Entra MARTA.)

ALBERTO – Então vamos nos desquitar. RENA – Se você não consegue entender isso então é o melhor mesmo. MARTA – (Interferindo.) Você tem que obedecer a seu marido, minha filha. (Os dois não entendem de imediato a intromissão.) Será que você esqueceu tudo que eu te ensinei? Nós não te educamos assim não. RENA – (Após hesitar e olhar para o DIRETOR.) A senhora também nunca me entendeu. MARTA – Eu tenho experiência da vida, minha filha. Sei o que é bom pra você. RENA – Não. Não sabe não, mamãe. ALBERTO – Fala com ela, dona Lóló. Acho que só a senhora pode conseguir alguma coisa. Eu já desisti. MARTA – Está vendo, minha filha. Olha bem o que você está fazendo com seu marido. Você quer estragar a vida dele, desonrar o seu nome? RENA – Só quero viver a minha vida, mamãe. Ser só um pouquinho eu mesma. MARTA – Sendo uma boa dona de casa você vai ser você mesma, minha filha.

RENA – Não, mamãe. Não quero ser igual a senhora não. Sempre tive pena da senhora, por isso que nunca falei nada. Mas agora é diferente. Agora chega. Quero viver a minha vida, fazer aquilo que eu quero. MARTA – Quem é que andou te metendo essas coisas na cabeça, minha filha? Quando você morava comigo você não pensava assim. RENA – Pensava. Só que não dizia. ALBERTO – A senhora está ouvindo? A senhora percebe o que é que ela está dizendo? Tá confessando que sempre mentiu pra mim. Tá confessando que é falsa e hipócrita. RENA – Não é isso. Será que vocês não entendem.. MARTA – Você não está no seu estado normal, minha filha. (Para ALBERTO.) Não acredite nisso que ela está dizendo, Mateus. ALBERTO – Infelizmente não posso, dona Lóló. Sua filha tornou minha vida um inferno. Não posso ter confiança nela. Já tenho até medo de trazer algum amigo aqui. MARTA – Está ouvindo o que seu marido está dizendo, minha filha. Essa teimosia está desgraçando a vida de vocês. RENA – Por que a minha teimosia! É ele que está me forçando a ser uma coisa que eu não quero ser. MARTA – Não escuta o que ela está dizendo, Mateus. Tenha um pouquinho de paciência. Deixa eu conversar com ela. Ela está transtornada. Ela não é assim. ALBERTO – A senhora tenta. Eu, por mim, já perdi as esperanças. Acho que agora é só desquite mesmo. (ALBERTO se afasta. MARTA aproxima-se de RENA.) MARTA – Pensa um pouco, minha filha. Você está jogando sua felicidade fora. RENA – Como é que a senhora pode falar em felicidade, mamãe. A senhora nunca foi feliz na vida. Pensa que eu não sei. MARTA – Mentira. Eu e seu pai sempre fomos muito felizes. Agora escuta o que eu estou dizendo. Não há maior infelicidade para uma mulher que se desquitar. Você está iludida com a vida desses seus amigos. Se teu marido te deixar você não vai ter ninguém a quem recorrer. Vai ter que trabalhar. Os homens só vão querer se aproveitar de você. Você vai ficar sozinha. E a solidão dói, minha filha. Você não queira nem imaginar o que é ficar de noite sozinha, sem ter ninguém pra falar, ninguém pra te dizer uma palavra amiga. RENA – (Chorando.) Chega, chega. Pára de falar. (Silêncio.) DIRETOR – Tá legal. (Levanta RENA que vai chorando para um canto. LAICA vai confortá-la.)

LARA – Essa cena vai entrar? DIRETOR – Não sei. Isso é o autor que decide. (Inicia-se uma brincadeira entre AND e LÚCIA que vai se desenvolvendo em correrias e empurrões. JOSÉ e ALBERTO também participam. Demais assistem sem entender. A coisa vai até um auge eLÚCIA reage violentamente e grita alguma coisa. AND vem até o DIRETOR.) AND – Vai lá que ela á séria mesma.

(DIRETOR interfere e as coisas se acalmam. Silêncio. Há um certo mal-estar.) DIRETOR – Vamos sentar todo mundo. Acho que a gente precisa esclarecer algumas coisas.

(Sentam-se todos em roda.)

QUADRO X DIRETOR – Eu queria que cada um dissesse o que significa esse trabalho pra ele. JOSÉ – Pra mim é um negócio muito sério. Mas acho que a gente ainda não conseguiu assumir isso não. MARTA – A gente não pode confundir isso nem com psicoterapia de grupo nem com brincadeira. É um trabalho profissional. E acho que é muito importante pra gente. RENA – Acho que esse negócio aconteceu por causa da cena que a gente fez. Esses problemas de família mexem muito com todo mundo. LARA – Mas isso não é razão pra gente levar a coisa pro lado da galhofa. CARLOS – A gente tem que ter clareza de uma coisa: isso é um trabalho profissional. Um trabalho que vai pesar muito em tudo aquilo que a gente vai faze daqui por diante. O que se tem que ter em conta é que a gente está aí jogado num mercado de trabalho completamente amesquinhado. Amesquinhado mesmo. As chances de, não digo fazer um bom trabalho não, mas de simplesmente sobreviver de teatro são muito remotas. A gente tem que encarar este fato com realismo. Tem que ter consciência de que nós somos uma mercadoria cuja oferta é muito grande e a procura quase nenhuma. A gente está jogado aqui e pode ser que nunca apareça ninguém pra comprar. Então isso que a gente está tendo possibilidade de fazer deve ser encarado na maior seriedade, com o máximo de espírito profissional. Senão não vai dar não. (Silêncio.) DIRETOR – Tá legal. Acho que todos nós devemos pensar muito nisso que o Carlos disse. (Levanta-se e bate as mãos.) Toca alguma coisa aí, André.

(Ele toca “Mimi Fla-Flu” e todos dançam e cantam.)

QUADRO XI

DIRETOR – (Manda a música parar. Tira um envelope do bolso.) O Marcílio deixou um recado pra quando chegasse nessa hora. LAICA – O que é? DIRETOR – Não sei. Deixa eu ler. (Abre o envelope e lê.) Quero que vocês façam um improviso sobre como vocês se imaginam daqui a dez anos. Podem utilizar qualquer recurso, inclusive falar para a platéia. LARA – Como é que é? DIRETOR – Ele quer que a gente faça um improviso sobre a gente mesmo daqui a dez anos. Como a gente se imagina daqui a dez anos. CARLOS – Em grupo ou cada um? DIRETOR – Pode ser de qualquer jeito. Então vamos lá. (Todos se sentam e pensam. Depois os outros fazem várias tentativas de realizar algo. LOMBINHO, ALBERTO e LÚCIA não fazem nada. RENA, num determinado momento diz para a platéia: É uma boa. Vai ser uma boa. A cena deve ser longa e pesada. No fim, LOMBINHO se levanta e diz para a platéia.) LOMBINHO – Aí o autor se levantou e disse: CARLOS – A peça vai terminar assim. LARA – E terminou.

FIM

ESTAÇÕES

Vim das flores que um dia eu vi

Fiz das rosas o meu caminho

Vim dos sonhos que eu sonhei

De tudo, a imensidão

Hoje eu me encontrei

Eu sozinho sorrindo de mim

De outros sonhos posso viver

De outras flores escolher

Da minha sede agora tenho que beber

De minha fome vou me alimentar

E as estações...

Como folhas de outono

Espalhadas pelo ar

Vão passar por mim

Mas agora eu acho graça de mim

Vou sorrindo e fingindo que sim

Dessas folhes que um dia eu vi

Dessas rosas que um dia eu fui

Tudo se afastou, hoje eu me perdi

Só há leis e um escravo agora eu sou

De minha sede agora...

André Luis de Meirelles Marinho