O Barata Ribeiro 200 Com Pos-escrito de Yvonne Maggie e Comentarios de Anthony Leeds

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Anuário Antropológico II (2013) 2012/II ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Gilberto Velho e Yvonne Maggie O Barata Ribeiro 200 com pós-escrito de Yvonne Maggie e comentários de Anthony Leeds ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Gilberto Velho e Yvonne Maggie, « O Barata Ribeiro 200 com pós-escrito de Yvonne Maggie e comentários de Anthony Leeds », Anuário Antropológico [Online], II | 2013, posto online no dia 01 Fevereiro 2014, consultado no dia 01 Março 2014. URL : http://aa.revues.org/528 ; DOI : 10.4000/aa.528 Editor: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB) http://aa.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://aa.revues.org/528 Documento gerado automaticamente no dia 01 Março 2014. A paginação não corresponde à paginação da edição em papel. © Anuário Antropológico

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G. Velho

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  • Anurio AntropolgicoII (2013)2012/II

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    Gilberto Velho e Yvonne Maggie

    O Barata Ribeiro 200 com ps-escritode Yvonne Maggie e comentrios deAnthony Leeds................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

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    Referncia eletrnicaGilberto Velho e Yvonne Maggie, O Barata Ribeiro 200 com ps-escrito de Yvonne Maggie e comentrios deAnthony Leeds, Anurio Antropolgico [Online], II|2013, posto online no dia 01 Fevereiro 2014, consultado no dia01 Maro 2014. URL: http://aa.revues.org/528; DOI: 10.4000/aa.528

    Editor: Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (UnB)http://aa.revues.orghttp://www.revues.org

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    Gilberto Velho e Yvonne Maggie

    O Barata Ribeiro 200 com ps-escrito deYvonne Maggie e comentrios de AnthonyLeedsPaginao da edio em papel : p. 19-36

    Apresentao1

    1 O Barata Ribeiro 200 (Edifcio Richard) um dos prdios mais notrios do Rio de Janeiro. Estasua fama se deve sua presena contnua na crnica policial e nos noticirios escandalososdos jornais e como smbolo de tudo o que possa haver de precrio em termos de estilo de vidaurbano. Problema permanente para as autoridades e escndalo para os arquitetos, o BarataRibeiro 200 revela alguns aspectos interessantes da boa conscincia das autoridades e daideologia de camadas mdias urbanas.

    2 O prdio est situado na Rua Barata Ribeiro, entre as ruas General Azevedo Pimentel e PraaCardeal Arcoverde. Esta a parte de Copacabana que foi primordialmente urbanizada. Oponto de referncia original era o Copacabana Palace, junto ao qual desenvolveram-se intensocomrcio e especulao imobiliria. Com o crescimento do bairro, esta parte passou a ser ocentro de vida noturna da Zona Sul. Hotis, bares, boates, inferninhos surgiram em profusoao lado de grande nmero de prdios residenciais. Em poucos anos todos os terrenos foramocupados. A ocupao final pode ser estabelecida no grande boom imobilirio de meadosda dcada de 50 (poca de construo do 200). J nessa poca, no entanto, outras reas deCopacabana (posto 4, 5, 6), algum tempo depois, Ipanema e Leblon j passavam tambmpor fase de alta especulao imobiliria, ativa construo civil e incremento do comrcio.Pode-se dizer, no entanto, que estas reas, especialmente Ipanema e Leblon, tiveram umaocupao um pouco mais racionalizada, favorecidas por algumas medidas de urbanizao complanejamento.

    3 Na rea do 200 (posto 1 e 2), portanto, encontramos alguns dos prdios residenciais maisantigos da Zona Sul, um tanto decadentes e maltratados, ao lado de construes mais recentes.

    4 O Barata Ribeiro 200 comeou a ser construdo em 1953 e passou a ser habitado em 1957.Ocupa mais da metade do quarteiro em que est situado. Tem 12 andares com 45 apartamentospor andar, totalizando 540 unidades. Moram no prdio cerca de 2.000 pessoas. H dois tiposde apartamentos. Em cada andar existem 30 apartamentos de sala e quarto conjugados comkitchenette com 25m, e 15 apartamentos de sala e quarto separados com cozinha, com 40m.Metade dos apartamentos d para a Barata Ribeiro e a outra metade, de fundos, para um morro.Os apartamentos de fundos dos andares inferiores so muito escuros, estando praticamentegrudados no morro. Os andares mais altos so mais claros, bem ventilados e at gozam de niceview. O aluguel mdio atual do apartamento conjugado de NCr$ 250,00 e o do segundotipo de NCr$ 350,00.2 de se notar, no entanto, que a maioria dos inquilinos ainda pagaaluguis antigos (mais ou menos NCRS 10,00), bem inferiores.

    5 No trreo existe um comrcio variado bares, lojas de mveis, de tapetes, farmcia etc. Noprimeiro andar, ao lado de apartamentos residenciais, encontram-se cabeleireiros, dentistase outros. Existem, ainda, em outros andares vrias boutiques comrcio no oficializado e penses. A entrada nica do prdio era a entrada de servio na planta. No entanto, osconstrutores do 200 (Construtora Franco-Brasileira) venderam a entrada social para uma loja.Isto motivo de queixa dos moradores, que se consideram roubados pela construtora. Oenorme movimento do prdio faz-se todo em torno de uma entrada pequena e estreita. Existemseis elevadores para atender a 2.000 pessoas. O Edifcio Richard tem um sndico eleito pelosproprietrios. Ele assessorado por um conselho de quatro membros tambm eleitos pelosproprietrios e recebe um salrio de NCr$ 500,00 mensais. A administradora Palmares se

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    responsabiliza pela manuteno do edifcio, dividindo responsabilidades com o sndico. Este o responsvel por todos os entendimentos entre os moradores do prdio e a Administradora, aqual deve fiscalizar. Atualmente, o sndico um funcionrio aposentado da Central do Brasil,proprietrio de um apartamento conjugado no 12 andar.

    Anlise dos dados da tabela: algumas observaes sobre asituao dos moradores do 200 em termos de estratificaosocial

    6 Ao iniciarmos a anlise dos dados obtidos nas entrevistas, preciso dizer que nossa amostra, de certa forma, pouco significativa. Devido ao grande nmero de habitantes e exiguidadede tempo, s nos foi possvel entrevistar uma percentagem muito reduzida (1,3%) do totaldos moradores do prdio. No entanto, confrontando esses dados com outras fontes, podemosafirmar que pelo ao menos alguns destes so significativos para o tipo de anlise queprocuramos empreender e para chegarmos a algumas concluses importantes.

    7 Passemos anlise dos dados:

    1. Nmero de unidades habitacionais e pessoas por unidade8 Nas 26 unidades habitacionais visitadas vivem 64 pessoas, ou seja, 2,4 pessoas por unidade.

    Essa mdia bastante inferior mdia total do prdio (4,3). Esta defasagem pode estarrelacionada precariedade de nossa amostra, mas podemos supor tambm que tenha havidouma resistncia dos moradores em admitir o real nmero de habitantes em suas residncias.Outra hiptese a de que o nmero total de pessoas que moram no prdio seja menor do quese diz.

    2. Perodo de permanncia no prdioDe 0 a 1 ano 6 pessoas

    de 1 a 3 anos 6 pessoas

    De 3 a 5 anos 5 pessoas

    De 5 a 10 anos 8 pessoas

    Mais de 10 anos 4 pessoas

    3. Sexo e idade9 Das 64 pessoas no total de unidades visitadas, 30 eram do sexo masculino e 34 do sexo

    feminino. Quanto idade, temos a seguinte variao:De 0 a 12 anos 13 pessoas

    De 12 a 20 anos 4 pessoas

    De 20 a 60 anos 42 pessoas

    Mais de 60 anos 5 pessoas

    10 Dos 29 entrevistados, nove eram do sexo masculino e 20 do sexo feminino.

    4. Nvel educacionalAnalfabetos 1

    Alfabetizados 2

    Primrio incompleto 10

    Primrio completo 4

    Secundrio incompleto 4

    Secundrio completo 4

    Superior incompleto 2

    Superior completo 2

    5. Tamanho do apartamento11 Visitamos 17 apartamentos conjugados e nove de quarto e sala separados, sendo que dos 29

    entrevistados, 11 eram proprietrios de suas residncias e 18 eram inquilinos.

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    6. Origem e residncia anterior12 Das 29 pessoas entrevistadas, 10 nasceram no Rio. Dessas 10, cinco residiam anteriormente em

    subrbios, duas na Zona Sul, duas na Zona Norte e uma no Centro. Uma das entrevistadas eraestrangeira e morara anteriormente na Zona Sul. Das 18 restantes, seis nasceram no estado doRio de Janeiro, quatro em So Paulo, uma no Rio Grande do Sul, quatro em Minas Gerais, umaem Pernambuco, uma no Esprito Santo e uma no Paran. Dessas 18, 10 vieram diretamentede outros estados para morar no 200, cinco moraram antes em subrbios no Rio, uma na ZonaNorte, uma na Zona Sul e uma no Centro da cidade. interessante frisar que todos os naturaisde outros estados j moraram em cidades antes de virem para o Rio.

    7. Ocupao e local de trabalho13 Deter-nos-emos mais neste item, na medida em que pode nos fornecer alguns dados sobre a

    camada ou as camadas sociais a que pertencem os moradores do Barata Ribeiro 200. De incio,enunciaremos os tipos de ocupao encontrados e o nmero de pessoas por ocupao:Comercirios 4

    Donas de casa 5

    Funcionrios pblicos 2

    Professores 3

    14 Em cada uma das ocupaes que se seguem encontramos um representante: modista,farmacutica, lavadeira, arquiteto, alfaiate, funcionria do Jquei, vendedora de joias,costureira, mdico, estudante, chofer de txi, garota propaganda de TV e um que no declarouprofisso. Quanto ao local de trabalho, temos: sete no Centro, trs em Copacabana, um noGraja, um em Iraj, um na Tijuca, um na Gvea, um no Jquei, um em Botafogo, um na Urca,um no Catete, dois no tm local de trabalho determinado, dois trabalham em casa e oito notm local de trabalho (trs aposentados e cinco donas de casa).

    15 Verificamos que das 22 pessoas que trabalham (sem contar o estudante, as cinco donas decasa e a que no declarou profisso), 15 so empregados, sete so autnomos e nenhum empregador. Por outro lado, a maioria dessas ocupaes est relacionada com serviosurbanos, na forma de servios ligados administrao pblica, educao, ao comrcio, diverso ou rede hospitalar. Ainda temos que frisar que a maioria dos entrevistados se localizanos escales mdios desses servios (auxiliar de enfermagem, datilgrafo etc.).

    16 Vrios dos entrevistados declararam que suas rendas davam mais ou menos para se manter,tendo muitas vezes que recorrer a outras formas para suplement-las. O atual sndico, porexemplo, funcionrio pblico aposentado, ainda recebe uma pequena quantia para cumprirsuas obrigaes de sndico e duas das comercirias costuram para fora noite. Outro dadoimportante que todos os proprietrios entrevistados declararam ter conseguido comprar oapartamento (coisa que valorizam muito) com grande esforo, quer atravs de emprstimospblicos, quer por meio de rgida economia. A farmacutica, por exemplo, declarou: Viviquatro anos internada num hospital, dando planto diariamente, para poder economizar ecomprar o apartamento. Quanto aos inquilinos, ou pagam um aluguel de NCr$ 100,00 a NCr$ 150,00, pois vivem h muito tempo no prdio, ou pagam um aluguel mais baixo do que oaluguel mdio de Copacabana. Constatamos ainda que a maioria dos entrevistados no tinhaempregada domstica (apenas um declarou ter empregada). Isto mostra que a renda dessesindivduos no d para tal luxo (como disse uma das moradoras). Alm disso, o gasto comtransporte pequeno, pois Copacabana fica relativamente perto dos locais de trabalho. Essesdados iniciais j podem nos indicar que os moradores do 200 localizam-se nas camadas mdiae mdia inferior da sociedade.

    17 Passando para um outro nvel de anlise, verificamos que a maioria dos moradores no temcondio de sair do 200. Esto, de certa forma, encurralados entre o desejo de participarda sociedade de consumo e a precariedade de suas habitaes. Esses indivduos que tmuma ocupao mais ou menos estvel no sistema, uma renda superior a de um trabalhadorespecializado, e geralmente superior quela que tinham em seus locais de origem, passama consumir bens (mesmo que estes sejam limitados) da sociedade de consumo: televiso,

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    rdio, vitrola, geladeira, vesturio, diverses etc. A partir de um dado momento, j no podemprescindir destes recursos. Por outro lado, a necessidade de consumir novos bens vai limitaro montante de renda gasto na habitao. Portanto, a opo seria participar da sociedade deconsumo e morar em condies precrias, ou no participar (ou participar menos) e morarmelhor. bvio que a habitao de certa forma faz parte deste sistema de consumo, mas noisoladamente, e sim fazendo parte de uma rede de bens. Assim, usufruir continuamente de ummnimo destes bens implica para o morador do 200 sacrificar-se em termos de habitao espao, oxignio, contato com a natureza e mesmo higiene.

    18 Ao lado disso preciso frisar o fato de que na medida em que as camadas mdias da sociedadecaracterizam-se sobretudo por sua instabilidade, a maior ou menor possibilidade de sair doimpasse estar ligada, evidentemente, problemtica geral do processo de desenvolvimentoda sociedade brasileira como um todo.

    19 Embora seja difcil determinar com rigor a posio dos moradores do prdio na estratificaosocial, acreditamos que, de um modo geral, podem ser enquadrados nas camadas mdia emdia inferior da sociedade. importante chamar a ateno para a heterogeneidade dosmoradores, no s em relao renda, mas tambm ao status. bvio que estas diferenasso o reflexo da variao em nvel educacional, origem, ocupao, ser ou no proprietrio,entre outros.

    Prostituio e outros problemas20 Esta a parte de Copacabana onde mais evidente o movimento de prostituio. O grande

    nmero de hotis, boates, inferninhos e de turistas nacionais e estrangeiros explica, pelomenos em parte, o fato.

    21 Praticamente todas as pessoas de fora do prdio com quem conversamos sobre o Barata Ribeiro200 consideram-no um imenso bordel. As piscadelas de olho, os olhares maliciosos e as piadaspicantes acompanham as referncias ao prdio. As prprias autoridades com quem tivemoscontato o delegado de Copacabana e o fiscal da Secretaria de Justia consideram o prdiouma chaga, em que a prostituio o problema central.

    22 As nossas entrevistas, dentro e fora do prdio, no deixam dvida de que desde o habite-sepode ser registrada a presena de prostitutas ali residindo. A atitude da maioria esmagadorados moradores entrevistados em relao ao problema de procurar minimiz-lo, ao contrriodas pessoas de fora (vizinhos, autoridades etc.). Uns dizem que nunca viram nada. Outrosdizem que no andar em que vivem no h nada de anormal. Finalmente, h os que fazemquesto de ressaltar que no seu canto nada acontece de errado. Ao lado dos que negam purae simplesmente, existem alguns que admitem que h algum tempo atrs o prdio tinha muitosproblemas, mas que agora est tudo bem, trata-se de um edifcio familiar etc., etc. Raros dos29 moradores entrevistados admitiram ali a presena, atualmente, de prostitutas. Uma senhoraviva, farmacutica aposentada, foi a nica pessoa que falou com real desinibio sobre o 200.Enfatizou a existncia no s da prostituio, como tambm do homossexualismo, do trficode entorpecentes, de escndalos e brigas. Explicou as reticncias e as esquivas dos outrosmoradores dizendo que eles tm medo.

    23 Mais tarde viemos a saber que existiam recomendaes do delegado de Copacabana,transmitidas atravs do sndico, para que os moradores no comentassem e falassem dosproblemas do prdio, pois isto s podia piorar as coisas. O prprio delegado confirmaria isto.Referindo-se ao problema da prostituio no 200, disse que se ele tivesse sido cortado desde oincio com uma enrgica interveno das autoridades, o prdio no teria se transformado numdos maiores problemas policiais de Copacabana. Continuou dizendo que, na suaopinio, houve negligncia das autoridades da poca, no impedindo a proliferao dosproblemas. Afirmou procurar proteger os vizinhos do prdio das desordens promovidaspelas prostitutas. Quanto aos moradores do 200 propriamente, explicou que estes j estavamacostumados e que ele no dispunha de meios para limpar o prdio, expulsando osmaus elementos. Acentuou faltar-lhe cobertura jurdica para tomar tal providncia, mas queregularmente promove batidas na rua perto do 200, prendendo as prostitutas, mas que estasacabam sendo soltas, pois isto no crime. Disse no ver soluo para o problema do prdio

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    e que se deve tentar formar uma espcie de cordo sanitrio sua volta para proteger avizinhana.

    24 Apesar de todo o alarido, calculamos em cerca de 50 o nmero de prostitutas residentes noprdio, ocupando em mdia um apartamento por andar, ou seja, 2,5% dos moradores do prdio.Estes dados foram obtidos atravs das poucas entrevistas em que se pde falar do problemacom maior liberdade. Quem so os 1.950 moradores restantes? Sero todos marginais? O quepudemos depreender que existe no edifcio um nmero de homossexuais comparvel ao dasprostitutas, o que totalizaria cerca de 100 pessoas 5% da populao do 200. Ainda assim seriauma proporo muito reduzida para justificar o fato de o prdio ser costumeiramente encaradocomo um bordel ou um problema insolvel. Um dos pontos que acentuam a turbulnciareal do 200 o que poderamos chamar de sua populao flutuante os frequentadoresdos apartamentos das prostitutas e dos homossexuais, fundamentalmente. Ao que parece,algumas dessas pessoas tm ligao com o trfico de maconha, no sendo poucos os escndalosrelacionados com indivduos sob o seu efeito. Alm disso, alguns dos apartamentos soutilizados como garonires, no sendo habitados normalmente. Dizem ser utilizados porhomens de negcios, pessoas gradas... Embora no possamos precisar o seu nmero, eleno parece ser insignificante. Ainda assim, no chegaria a ser alarmante.

    25 O fato que o nmero de maus elementos mostra-se exguo se comparado com a quantidadede incidentes ocorridos no prdio. Pelo que verificamos na delegacia de Copacabana, realmente assustador o nmero de casos registrados no 200. Apesar das declaraes daautoridade policial de que as prostitutas so as responsveis pelos tumultos, examinando osltimos casos registrados no prdio, nada havia relacionado com o problema de prostituio.Tratava-se de incidentes entre vizinhos (barulhos, crianas etc.), ou entre marido e mulher brigas domsticas que assumiam propores um tanto excessivas. Examinaremos isto adiante.

    Ideologia26 Partindo deste problema como os moradores encaram a turbulncia do prdio verificamos

    algumas caractersticas interessantes de sua ideologia.27 Num primeiro nvel, os moradores entrevistados, praticamente sem exceo, negam a

    existncia de problemas no 200. Em um segundo nvel, admitem a existncia no passado dealgo (agora no h mais nada; tranquilo) e, quando admitem, enfatizam o papel dasprostitutas e, em menor grau, dos homossexuais. interessante que a maioria no d nome,utilizando uma linguagem meio fabular essa gente, gente que no presta etc. Em umterceiro nvel, revelam-se dados extremamente curiosos. Os entrevistados comeam a contara vida do prdio e passam a narrar os incidentes que presenciaram. Pouco a pouco eles vose contando nessas narrativas. Verificamos que os prprios entrevistados que, a princpio,se apresentaram como absolutamente distantes da turbulncia local, participaram de brigas,incidentes, que chamaram a polcia. Passam a ser personagens desses incidentes. importantefrisar que, dos 29 entrevistados, 18 contaram casos em que tinham sido participantesativos. Apenas uma minoria destes casos narrados envolviam problemas de prostitutas ouhomossexuais. Eram fundamentalmente brigas de vizinho. Daremos um exemplo de umadessas historinhas narradas por uma dona de casa, esposa de um funcionrio pblico:

    Sempre detestei barulho, sempre respeito os vizinhos. No deixo rdio ligado alto, no deixo meusfilhos fazerem barulho. Mas tem uma gentinha por a que parece que veio da favela. Cantam,brigam, xingam. No tm hora para fazer barulho. Uma dona a de cima sempre deixava o rdioaos berros at tarde da noite. Um dia, no aguentei. Fui para a janela e pedi para ela diminuir.Ela respondeu aos palavres. No tive dvida, chamei a polcia. Foi timo. Ela ficou quieta unstempos, mas agora j est comeando a se engraar de novo. Qualquer dia vou ter que chamara polcia.

    28 Perguntada por que no falava com o sndico, respondeu: Com essa gente tem que chamara polcia. No caso, essa gente era uma outra dona de casa casada com um mdico. Deum modo geral, essas historinhas tm trs elementos dois vizinhos contendores e a polcia.Ocasionalmente, outros vizinhos e o sndico podem participar dos tumultos, mas a regra geral esta.

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    29 bvio, portanto, que existe uma tentativa de mascarar a realidade que, acreditamos, ser emparte consciente e em parte inconsciente. H a tentativa tambm de manter uma imagem euma autoimagem de acordo com certas regras de bom comportamento. Embora no tenhamoselementos suficientes para comprovar o aspecto inconsciente do mecanismo, a convicodos entrevistados e um certo tipo de racionalizao comum aos moradores so preciososindicadores.

    30 Outro aspecto importante da ideologia dos entrevistados o tipo de justificativa para a suapermanncia no prdio. Indiscutivelmente est ligado ao que acabamos de abordar. Primeiroamenizam os problemas locais no tanto assim, qualquer lugar com muita gente temproblemas, nunca vi nada, estou muito satisfeita. Dizem que o tamanho do apartamento bom, que o ponto tem bons comrcio e transporte, cinema, diverses, praia etc. Em resumo,o que nos parece importante que existe certa admisso tcita de que h um preo para morarna Zona Sul, especialmente em Copacabana. No 200, os aluguis so mais baratos isto uma vantagem. H recursos.

    31 Ora, na medida em que verificamos que boa parte dos entrevistados veio do subrbio oude cidades do interior fica patente que para estes indivduos morar no 200 significa umamelhoria. Um ou outro falou nostalgicamente da casa onde morava, com muitos quartos,quintal, mangueiras... Mas estes foram excees. Ou a maioria dos moradores do 200 novivia nestas condies nos lugares de onde vieram ou, se viviam (os que viviam), acharamque valeu a pena perder espao e mangueiras para morar em Copacabana. importante frisarque poucas pessoas (vindas do interior) falavam vagamente em maiores oportunidades deemprego. Quando se insistia em saber a relao entre maior oportunidade de empregos e morarem Copacabana (por que no Mier, Tijuca, Botafogo ou outros?), voltavam a falar em maisrecursos, divertimentos e outros. importante chamar a ateno tambm para o fato de quevrios entrevistados tm certa conscincia de que morar no 200 pode torn-los objetos de umadiscriminao social. Por isto mesmo se defendem com unhas e dentes, dando exemplos deedifcios muito piores e sempre dizendo que a coisa no era to grave, que havia exageros...

    32 Por outro lado, conversando com vizinhos do 200, sentimos realmente sinais de discriminaoem relao aos moradores do prdio. Falam nessas vagabundas e nessa gentinha. Deviamacabar com o prdio, expulsar esse pessoal. As autoridades que entrevistamos no revelaramatitude muito diferente. O problema definido como policial. Dizem (especificamente aautoridade policial) que o edifcio no tem jeito, mas preciso mant-lo sob controle parano prejudicar os vizinhos. a teoria do cordo sanitrio que foi desenvolvida. O fato que o200 realmente vive sob controle. H pocas em que o sndico do prdio tem entrevista semanalcom o delegado de Copacabana. Este determina uma srie de coisas que so transmitidas pelosndico aos moradores. Sentimos especificamente isto, como j foi dito, diante da determinaodo delegado de que os moradores no falassem do prdio, pois isto s podia piorar. Apresena da polcia no 200 rotina, no s para atender aos constantes chamados, mas tambmpara controlar o ambiente. Os moradores esto acostumados com isso e j encaram comoparte das regras do jogo.

    33 Soubemos, atravs de um informante, que j houve problema de subverso no prdio.Com a descoberta de ninhos de subversivos em apartamentos da Zona Sul (especialmenteem grandes edifcios), aumentou ainda mais a vigilncia da polcia. Os prprios moradoresjustificam a presena da polcia dizendo que para lidar com certo tipo de gente que morano prdio s mesmo a polcia. Eles prprios, muitas vezes, tomam a iniciativa de chamar apolcia para intervir nos incidentes mais insignificantes, como briga de criana, barulho ououtros. Alm disso, impressiona fortemente a falta de solidariedade entre os moradores. Todos,sem exceo, dizem que no gostam de se meter com vizinhos. Percebemos que alguns sefrequentam, mas constituem exceo. O normal no manter nenhum contato mais ntimo.Os que tm telefone fingem que no tm para que os vizinhos no explorem. H um clima detenso constante, de desconfiana.

    34 Quando surgem problemas, no h nenhuma tentativa de dilogo imediatamente chama-se a polcia ou ento se parte para conflitos com ofensas e, muitas vezes, agresses fsicas.A mesmo que a polcia aparece. O sndico no consegue coordenar nada. Queixou-se

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    amargamente de que ningum colabora. Parece ser uma pessoa ao mesmo tempo hostilizada etemida. Isto porque ele o intermedirio entre os moradores do prdio e a autoridade policial.H constante mudana de sndicos, que so em geral acusados de corrupo. Uns renunciam,outros so demitidos pelo conselho de proprietrios, mas sempre o sndico funciona tuteladopelo delegado de Copacabana em maior ou menor grau. Isto tambm aceito de maneira tcita. bvio o clima de represso.

    35 Pelo que vimos, de um modo geral, o que os entrevistados fazem nas horas de lazer ,fundamentalmente, ver televiso. Ir praia ou ao cinema no aparece com muita frequncia.As crianas, quando no esto na escola, costumam brincar nos enormes corredores do prdioou ento assistem televiso. claro que parece que vo mais praia do que os adultos. interessante o caso de uma entrevistada que justificou sua ida para Copacabana falandoem recursos e divertimentos e que mais adiante disse que ficava sempre em casa vendoteleviso: Pra que sair? Televiso to bom.

    36 Em resumo, essas pessoas s podem viver em Copacabana em edifcios como o 200, onde osaluguis so mais baixos. No abrem mo de estar perto dos bens oferecidos pela sociedadeurbana industrial, mesmo que os utilizem de modo muito limitado. Em termos de status,sentem-se em posio mais elevada vivendo em um prdio em Copacabana que tem famade bordel, num apartamento mnimo do que num apartamento ou numa casa da Zona Norteou no subrbio com mais espao, terreno etc. Verificamos que apenas uma percentagempequena trabalha perto do prdio, no havendo, portanto, a explicao de proximidade deresidncia e local de trabalho. Estranho que possa parecer a princpio, o fato que, para amaioria dos entrevistados, morar no 200 significa subir na escala social e participar maisintegralmente das delcias da sociedade de consumo. O impasse que se alguns comeama se sentir emparedados no prdio, pouqussimos tm sada. Ter sada significaria mudar-separa um prdio melhor em Copacabana, mas a renda insuficiente. Voltar para o subrbioou para o interior praticamente inaceitvel. Portanto, os poucos (dos que entrevistamos)que demonstram maior insatisfao no tm perspectiva de sair e vo ficando cada vez maisangustiados e tensos.

    Concluses37 Nossa amostragem foi muito limitada, o que evidentemente relativiza muitas de nossas

    hipteses. Por outro lado, procuramos cotejar as entrevistas dos moradores com informaesde pessoas de fora do prdio desde vizinhos at autoridades. Ficamos especialmenteinteressados em perceber a imagem pblica do 200 no bairro e na cidade em geral.

    38 Parece-nos que o Barata Ribeiro 200 um caso limite de um tipo de situao muitoencontrada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. H dezenas de edifcios gigantescoscom apartamentos mnimos onde, como disse um morador do 200, as pessoas no vivem, seescondem. Estes prdios so frutos de uma especulao imobiliria desenfreada e de todo umprocesso global que transcende os limites de um simples problema de planejamento local.3

    39 Observamos outros prdios alm do 200 (mais superficialmente), e neles encontramos umasrie de caractersticas que muitos pensam ser exclusivas do 200. O que acontece que nestefamoso prdio os problemas atingem uma extenso e uma complexidade maiores devidos suas dimenses de fato excessivas e haver uma absoluta ausncia de racionalidade.Insistimos, portanto, que a situao do 200 s pode ser compreendia como resultadode um processo com variveis nos mais diversos nveis. Migraes, estratificao social,delinquncia, discriminao, represso so alguns dos temas que poderiam ser aprofundadospartindo do 200. No entanto, devido s nossas limitaes de tempo e pessoal, tivemos quemanter esta viso mais superficial e impressionista. Acreditamos que, apesar disto, algunsproblemas interessantes possam ter sido indicados.

    Comentrios de Anthony Leeds40 This is descriptively an excellent paper based on a rather difficult field work situation. Its lack

    of some sort of theoretical orientation is reflected in its lack of a title why the study? Whatwas it supposed to show? Actually this is my main complaint about the paper they could

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    Anurio Antropolgico, II | 2013

    have done a much more interesting job relating the paper to a number of issues which appearedin the classroom discussions. The absence of significant footnotes is a further reflection of thelimitation of the paper. It is obvious that the casal antropolgico is very talented and is (or are)able field workers. I knew from class work that they are able thinkers and understanders too.

    O Barata Ribeiro 200: um ps-escrito

    Yvonne Maggie

    IFCS/UFRJ

    41 Este texto um trabalho de curso que eu e Gilberto Velho fizemos para Anthony Leeds, em1970. Para situar o escrito a partir de minha perspectiva, tenho que tecer alguns comentrios,fazer uma certa arqueologia dessa pesquisa. O tempo apaga muitas coisas e a memria trai,mas os esquecimentos e as lembranas so a matria do pensamento e neles se pode entendermuito daquilo que dito.

    42 Gilberto Velho e eu nos conhecemos na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), no curso deCincias Sociais, em 1965, um pouco depois do golpe militar, e nos formamos em dezembrode 1968. Em julho desse ano nos casamos e fomos morar em um prdio de apartamentosconjugados o edifcio Estrela que seria mais tarde objeto da dissertao de mestrado deGilberto.

    43 Por injunes do destino, apesar de sermos indicados por Marina So Paulo de Vasconcelos,cassada pelo golpe de 1968, fomos contratados como docentes pela UFRJ e comeamos alecionar no IFCS em maro de 1969. O mestrado em Antropologia Social do Museu Nacionalhavia sido criado no incio de 1968. Em julho de 1969, nos tornamos alunos de ps-graduaosem ter que fazer nenhuma prova. No havia outros candidatos.

    44 Anthony Leeds foi lecionar no mestrado a convite de Roberto Cardoso, e ofereceu um cursosobre Antropologia Urbana, um dos mais ricos e inovadores daquele ano. ramos poucosalunos, mas me lembro bem de Luiz Antonio Machado da Silva e do arquiteto Carlos NelsonFerreira dos Santos, autor, mais tarde, do belo livro A cidade como um jogo de cartas (http://goo.gl/kHSQqH), entre outros.

    45 As aulas do Tony Leeds eram dadas em uma das salas arejadas que do para o jardimdos fundos do Museu Nacional. Foram discusses surpreendentes porque a antropologiaurbana de Leeds era extremamente rica e tinha uma abordagem pouco comum para a poca.Desorganizadamente organizadas, as aulas introduziram questes que foram como um mapapara as nossas pesquisas na cidade e para os futuros trabalhos do Gilberto. Tony insistia quefizssemos pesquisa de campo e nos estimulava a pensar a cidade e, em especial, o Rio deJaneiro, a nossa cidade. Lemos uma bibliografia inusitada e o texto que mais me marcou foi Asituao da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels. Tony nos mostrou como adescrio de Engels das cidades inglesas foi feita com o cuidado de um antroplogo em umaaldeia. Fontes primrias foram utilizadas e a prpria observao do autor era determinante eimpecvel. Foi nesse curso que Gilberto teve a ideia de pesquisar um prdio de conjugados ea viso de mundo das camadas mdias em uma cidade brasileira. A amizade com Tony noslevaria tambm ao Texas no ano seguinte.

    46 Como contei acima, morvamos no edifcio Estrela, um prdio de conjugados em Copacabana.Gilberto vivia perguntando aos vizinhos porque gostavam tanto daquele lugar. Era umapergunta sociolgica, claro, mas, na minha percepo, revelava tambm a angstia deGilberto de ter de viver naquele lugar de m fama. Antes de se mudar, Gilberto moravacom a famlia no mesmo bairro, mas em um bom apartamento de trs quartos. Um imvelconfortvel e que dava status. Mudar-se para um conjugado produziu nele uma espcie desofrimento social, apesar das alegrias do casamento.

    47 Eu no sentia assim. Para mim, morar naquele apartamento cheio de problemas, mas arrumadocom muito esmero por mim e com a ajuda financeira de um irmo, foi um alvio. Eu vinha

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    de uma casa enorme no Leblon, ao lado da praia. Tinha vivido minha vida inteira com muitosirmos e fui a irm mais velha (sem ser), que geria a vida domstica desde que ficamos rfosmuito cedo. Fui a ltima a sair da casa do Leblon. Deixei-a com dor, mas com a sensao deque era preciso mudar e viver a minha vida. Nunca pensei que morar em um conjugado fosseuma decadncia.

    48 Pessoas vivem histrias semelhantes e podem ter impresses muito diferentes sobre elas. Nomeu caso, o apartamento do edifcio Estrela era uma bno. Uma alegria compartilhada coma pessoa que eu havia escolhido para viver o resto da minha vida. Um alvio.

    49 Foi essa sensao de estranhar as perguntas de Gilberto aos vizinhos que me fez ver que euno me importava com o que eles pensavam. Gilberto era fascinado pelos outros moradores eum pouco irritado de v-los felizes ali. Suas perguntas eram uma forma de entender tambma sua prpria subjetividade. Por que no gostava de morar ali?

    50 A pesquisa no Barata Ribeiro 200 foi feita por sugesto de Tony, que insistiu para queGilberto tivesse uma experincia fora de um ambiente que j conhecia. Lembro-me bem dodia em que fomos pela primeira vez no prdio. Tinha uma portaria escura e corredores muitomais estreitos e longos do que os do edifcio em que morvamos. Lembro-me claramentedas entrevistas naqueles apartamentos cheios de mveis antigos, pesados, de madeira escura.Mesas que ocupavam quase todo o conjugado e armrios que, em alguns casos, serviam dedivisrias. Havia muita gente pelos corredores. Eu me recordo de uma moa que, ao serperguntada se gostava do lugar, respondeu: Eu no moro, eu me escondo aqui. A maioriadizia que gostava de morar ali pelos motivos que esto descritos no trabalho. Foram essasrespostas um tanto contraditrias que nos levaram a pensar sobre a mudana para Copacabanacomo smbolo de status e tambm sobre a experincia de no conseguir sair de l depois de seter acostumado com a facilidade de acesso aos bens de consumo e aos servios do bairro.

    51 A descrio do sndico do Barata Ribeiro parece hoje meio inverossmil, mas a pesquisa foifeita em 1970 e estvamos em plena ditadura militar no Brasil. No mencionamos isso notrabalho, mas a represso se utilizava desses porteiros para vigiar e punir os cidados. Noprdio em que moramos, houve inclusive um assassinato em que a polcia jogou um jovemmilitante pela janela.

    52 S hoje percebo como a minha participao naquele incio de vida acadmica do Gilberto foiimportante para ns dois. Aprendi a fazer pesquisa junto com ele e o Barata Ribeiro 200 foinosso primeiro passo. Viver no edifcio Estrela no teve o mesmo impacto na minha vida queteve na do Gilberto, eu suponho. Para a dissertao de mestrado, quis me afastar do familiare do prximo. Decidi estudar um terreiro de umbanda, longe da tradio da minha famliacatlica. Foi uma pesquisa que exigiu um esforo enorme de sair da minha vida cotidiana.

    53 Aquele curso do Tony foi o estopim para uma antropologia urbana menos sociolgica einfluenciada pelos modelos de classe social. As poucas referncias bibliogrficas, alm dotrabalho do prprio Leeds, eram de socilogos que estudaram estratificao social e hierarquiasocial, ou as formas socialmente construdas de pensar a posio social. No havia naquelaaltura a influncia da Escola de Chicago e de Howard S. Becker na obra de Gilberto e, muitomenos, a influncia da antropologia social inglesa, de Victor Turner e de Mary Douglas, nasminhas pesquisas.

    54 Relendo esse texto, 43 anos depois, fiquei com a sensao de que ali estava a origem dadissertao que foi defendida pelo Gilberto no ano seguinte. Sem a presso de Tony para quefssemos ao Barata Ribeiro 200, talvez o insight d A Utopia Urbana tivesse sido maisdifcil. Falar sobre esse trabalho me traz a percepo de que fizemos uma pesquisa muitopioneira. Nela estava o embrio no s dA Utopia Urbana, mas tambm dos trabalhos que seseguiram, nos quais Gilberto mergulhou no ethos, nas emoes e no mundo dos sentimentosde pessoas de camadas mdias urbanas. O esforo de relativizar sua experincia pessoal fezcom que ele construsse uma antropologia urbana diferente, uma antropologia na cidade e dacidade.

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    Anurio Antropolgico, II | 2013

    Bibliografia

    GERMANI, Gino. 1969. Desenvolvimento, Econmico, Urbanizao e Estratificao Social. ColeoTextos Bsicos de Cincias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

    PEREIRA, Luiz. 1969. Urbanizao e Subdesenvolvimento. Coleo Textos Bsicos de CinciasSociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

    STAVENHAGEN, Rodolfo. 1966. Estratificao Social e Estrutura de Classe. Coleo Textos Bsicosde Cincias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

    Notas

    1 O artigo original no possua titulo, como evidenciado na avaliao de Anthony Leeds. O ttulo foiinserido para esta publicao, com o consentimento de Yvonne Maggie.2 NR: Registro do antigo cruzeiro novo, moeda j fora de circulao no Brasil.3 Ver Leeds, Anthony, 1969. (Esta referncia constava na bibliografia original mas sem ttulo e, portanto,foi retirada da bibliografia nesta publicao)

    Para citar este artigo

    Referncia eletrnica

    Gilberto Velho e Yvonne Maggie, O Barata Ribeiro 200 com ps-escrito de Yvonne Maggie ecomentrios de Anthony Leeds, Anurio Antropolgico [Online], II|2013, posto online no dia 01Fevereiro 2014, consultado no dia 01 Maro 2014. URL: http://aa.revues.org/528; DOI: 10.4000/aa.528

    Referncia do documento impresso

    Gilberto Velho e Yvonne Maggie, O Barata Ribeiro 200 com ps-escrito de Yvonne Maggiee comentrios de Anthony Leeds, Anurio Antropolgico, II|2013, 19-36.

    Autores

    Gilberto VelhoMN/UFRJ Gilberto Velho (1945-2012) foi professor titular e decano do Departamento deAntropologia do Museu Nacional da UFRJ. Pioneiro da Antropologia Urbana no Brasil, com diversoslivros publicados, entre os quais A utopia urbana (1973), Desvio e divergncia (1974), Individualismoe cultura (1981), Subjetividade e sociedade (1986), Projeto e metamorfose (1994), Nobres & Anjos(1998) e Antropologia urbana (2002).Yvonne MaggieIFCS/UFRJ Yvonne Maggie professora titular do Departamento de Antropologia Cultural doInstituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre e Doutoraem Antropologia Social pela UFRJ, com especializao em Antropologia Urbana e das SociedadesComplexas na Universidade do Texas, em Austin. Comendadora da Ordem Nacional do MritoCientfico (2008) e bolsista Cientista do Nosso Estado da Faperj desde 2010. Autora dos livros Guerrade orix: um estudo de ritual e conflito (1975 [2001]), Medo do feitio: relaes entre magia e poderno Brasil (1992) e, em coautoria com Claudia Barcelos Rezende, Raa como retrica: a construo dadiferena (2002). Contato: [email protected]

    Direitos de autor

    Anurio Antropolgico

    Resumos

    Trata-se de uma etnografia da vida dos moradores de um prdio em Copacabana. Realizadoem 1970 como trabalho final do curso Antropologia urbana curso Antropologia urbana no

    mailto:[email protected]

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    Anurio Antropolgico, II | 2013

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia social do Museu Nacional da UFRJ. O cursofoi ministrado pelo professor Anthony Leeds. O artigo descreve a vida e as representaes dosmoradores do edifcio Barata Ribeiro 200 e aponta para as principais hipteses e conclusesque sero desenvolvidas por Gilberto Velho no seu clssico A utopia urbana e na sua obraposterior. Gilberto Velho e Yvonne Maggie, na poca casados, fizeram um trabalho de campopioneiro ao vivenciarem o dia a dia dos moradores do prdio de apartamentos conjugados, aomesmo tempo em que residiam em um edifcio semelhante em outra rua do mesmo bairro. Oartigo conta com um ps-escrito de 2013 de Yvonne Maggie e ainda traz as observaes doprofessor Anthony Leeds ao trabalho e ao casal de jovens antroplogos de 1970.

    The apartment building at 200, Barata Ribeiro streetThe article consists of an ethnographic account of the inhabitants of a building in Copacabana.It was written as a final paper for the course in Urban Anthopology taught by ProfessorAnthony Leeds, at the Graduate Program in Social Anthropology, Museu Nacional, UFRJ. Thearticle describes the life and representations of the people living in the building Barata Ribeiro200, and points to the main hipotheses and conclusions which were developped by GilbertoVelho in his classic book A Utopia Urbana, as well as his later work. Gilberto Velho andYvonne Maggie, married at the time, carried out pioneering fieldwork, sharing the everydaylives of the building made up of small studio apartments (conjugados), while living in a similarbuilding on another street in the same neighborhood. The article is accompanied by a post-scriptum written in 2013 by Yvonne Maggie, as well as Professor Anthony Leeds commentsto the young anthropological couple, written in 1970.

    Entradas no ndice

    Keywords :urban anthropology, Copacabana, Barata Ribeiro 200, social hierarchy andstatus, ethnographyPalavras chaves :antropologia urbana, Copacabana, Barata Ribeiro 200, hierarquiasocial e status, etnografia

    Notas da redaco

    Recebido em 23/09/2013

    Aceito em 25/09/2013