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  • O BARQUINHO VAI...ROBERTO MENESCAL E SUAS HISTRIAS

    Bruna Fonte

    Irmos Vitale Editores Brasil

  • O BARQUINHO VAI...ROBERTO MENESCAL E SUAS HISTRIAS

    Irmos Vitale S.A. Indstria e Comrcio

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  • Agradeo vida, que me deu a alegria de poder viver at hoje de minha arte, e a voc, Bruna,por ter tido a sensibilidade de tornar esta simples histria num livro.

    Roberto Menescal

  • Roberto Menescal, que ao abrir o livro de sua vida permitiu que eu escrevesse estas histrias.Bruna Fonte

  • Sumrio

    CAPAPor que resolvi escrever sobre vocO fogo da amizadeMenescal e a msicaBastidores da msicaProduzindo arteHistrias que no se esquece...P na estradaGurusFamliaO que dizer de vocCaderno de FotosAgradecimentos da AutoraRoberto Menescal

  • Por que resolvi escrever sobre voc

    29 de janeiro de 2010.Al, Bruna:At hoje, voc no me contou o porqu de escrever sobre mim!Abs.,Menescal Menescal:Quando entrevistei Oswaldo Montenegro, ele me disse: Voc no pode conhecer Roberto

    Menescal e continuar igual ao que era antes de conhec-lo. E assim aconteceu, em junho de 2008,quando entrevistei voc pela primeira vez.

    Comecei a entrevista seguindo a pauta que havia elaborado, falando somente sobre bossa-nova,mas em poucos minutos, a entrevista se tornou uma conversa. Fiquei impressionada com seu modo dever a vida, de pensar e com tudo que descobri sobre o seu trabalho (como a maioria das pessoas, euno tinha conhecimento dos outros trabalhos que voc fez e faz at hoje -, alm daqueles queforam feitos l no incio da bossa nova). Alm disso, nessa entrevista, aconteceu algo decisivo naminha carreira. Voc comeou a falar sobre a importncia de se seguir um sonho e contou quedecidiu ser msico por incentivo do Tom Jobim. Essa histria fez com que eu parasse para pensar naminha vida e me fez decidir no tratar a literatura como um simples hobby como planejando -, mascontinuar seguindo o sonho que me acompanhava desde a infncia: ser uma escritora. Nos dias que seseguiram, procurei livros, entrevistas e tudo o que falasse sobre voc, a fim de conhecer um poucomais a sua vida. Percebi que a maioria dos livros, sites e outras fontes abordavam somente a bossanova, e no mencionavam todos os outros trabalhos incrveis que voc fez. Pensei: No possvelque ningum tenha escrito um livro sobre a vida do Menescal. Da surgiu a ideia de escrever umlivro sobre voc, que falasse sobre bossa nova, mas tambm sobre toda a sua trajetria e mostrasse,alm do compositor de O barquinho, o Menescal produtor, amigo, admirador da natureza...

    Resumindo: um livro que mostrasse tambm a pessoa por trs da bossa nova. Alm disso, o livroseria um presente para voc que, ao contar sua histria, fez com que eu definisse a minha.

    Assim que tive a ideia, liguei para voc e falei um pouco sobre meu projeto. Voc me perguntou: Mas voc acha mesmo que algum vai querer ler um livro com as minhas histrias? Tenho certeza respondi. Topei foi sua resposta imediata.No esperava que voc aceitasse to rpido a minha proposta e devo dizer que isso me deixou

    muito surpresa, pois voc confiou em mim e no meu trabalho, mesmo sem me conhecer ou saber deque forma eu apresentaria o projeto. Nos meses que se seguiram, passei tardes incrveis as quaisjamais sero esquecidas ouvindo suas histrias, entrevistando seus amigos, familiares,pesquisando sobre voc.

    Durante o perodo em que escrevi este livro, fui descobrindo aos poucos uma pessoa formidvele me senti privilegiada em poder ter esse contato com voc, conhecer histrias que at ento poucaspessoas conheciam, as quais eu agora divido com o leitor. Poder escrever sobre voc e ainda passaralgumas horas em sua companhia foi um dos maiores presentes que eu j recebi. Trabalhar com vocfoi, est sendo e ser sempre uma experincia maravilhosa.

  • Obrigada por ter dividido as suas lembranas, ideias e pensamentos comigo. Alm de teraprendido muito, esse convvio distncia fez com que muitas vezes eu parasse para refletir sobreas coisas que voc falava, sobre as coisas que haviam acontecido com voc e aplicasse suas ideias minha prpria vida. Tenho certeza que as suas histrias faro bem s pessoas. Faro com que parempara refletir sobre a sua prpria vida, assim como aconteceu comigo. E hoje, um ano e meio aps oincio dessa trajetria, terminamos aqui uma fase dessa histria que, tenho certeza, est scomeando.

    Abs.,Bruna Fonte

    Fevereiro de 2010

  • O fogo da amizade

    No necessrio completar nenhuma linha do livro da Bruna com informaes novas. Acho queali est a pessoa que conheci de um lado da mesa, terminamos ficando do mesmo lado, no momentoque eu mais precisava ele esteve comigo. Sim, uma das pessoas mais talentosas que conheci. Sim,fez uma revoluo na msica. Sim, foi um excelente executivo. Sim, voltou para a estrada quandotodos estavam se aposentando. Sim, continua mais criativo que nunca. E isso conta? Muitssimo. Maso que conta mais sua atitude sempre tica, humana, colocando a amizade acima de tudo. Tive oprivilegio de conhec-lo em um momento muito importante de minha vida.

    Se no fosse ele e uma amiga, seguramente no estaria vivo hoje. Se estivesse vivo, seria umapessoa deprimida, infeliz, frustrada. Portanto, no h nada neste mundo que pague o que Menescal fezpor mim quando eu j no sabia o que fazer de mim mesmo.

    Cada vez que estou em um pas diferente, ele est comigo atravs de suas msicas. Cansei-me detelefonar no meio de um jantar, de uma reunio, de uma conversa, porque seu trabalho universal temlevado o nome do Brasil aos quatro cantos do mundo. Mas ele no est comigo apenas na sua msica;est no meu corao. E a esse propsito gostaria de contar uma histria que simboliza isso.

    Era uma vez um homem pobre, mas corajoso, que se chamava Ali. Trabalhava para Loic, umvelho e rico comerciante. Certa noite de inverno, disse Loic: Ningum pode passar uma noite assimno alto da montanha, sem cobertor e sem comida. Mas voc precisa de dinheiro, e se conseguir fazerisso, receber uma grande recompensa. Se no conseguir, trabalhar de graa por trinta dias.

    Ali respondeu: Amanh cumprirei esta prova. Mas ao sair da loja, viu que realmente sopravaum vento gelado, ficou com medo, e resolveu perguntar ao seu melhor amigo, Amir, se no era umaloucura fazer a aposta. Depois de refletir um pouco, Amir respondeu: Vou lhe ajudar. Amanh,quando estiver no alto da montanha, olhe adiante. Eu estarei tambm no alto da montanha vizinha,passarei a noite inteira com uma fogueira acesa para voc. Olhe para o fogo, pense em nossa amizadee isso o manter aquecido. Voc vai conseguir e depois eu lhe peo algo em troca.

    Ali venceu a prova, pegou o dinheiro e foi at a casa do amigo: Voc me disse que queria umpagamento. Amir agarrou-o pelos ombros: Sim, mas no em dinheiro. Prometa que, se em algummomento o vento frio passar por minha vida, acender para mim o fogo da amizade.

    Tenha certeza, Menescal, que todos ns que temos a alegria e a honra de sermos seus amigos,estaremos sempre prontos para acender esse fogo quando for necessrio. Voc sempre fez isso pelagente.

    Paulo Coelho

  • E foi assim que tudo comeou...

    Sou capixaba, mas meu pai foi transferido quando eu tinha trs anos de idade. Minha famlia semudou para o Rio e ficamos morando no Jardim Botnico. Chegamos ao Rio em uma poca difcil.Por causa da guerra, faltava um monte de coisas, faltava comida e tal.

    Quando eu tinha uns 11 anos, meu pai comprou um apartamento em Copacabana e isso foi muitolegal para mim, porque alguns anos depois comearam a aparecer vrios msicos que chegaram antesda gente, como Johnny Alf, Tito Madi, Lcio Alves e outros que tocavam nas boates. Ento, aos 17anos, comecei a dar uma fugida para esses lugares, para saber que msica nova era aquela que tavapintando. Por acaso, eu estava ali na hora certa (alis, eu tive vrias horas certas na vida!) e foi vitalestar ali naquele momento. Logo depois, influenciados por essa nova msica, comeamos a buscaruma msica que tivesse mais a ver com a nossa gerao e foi a que surgiu a bossa nova.

    Meu pai era engenheiro e preparou a gente para seguir o mesmo caminho, porque ele achava quearquitetura e engenharia eram o futuro do Brasil. Os meus dois irmos mais velhos, Bruno e Ricardo,e o mais novo, Renato, se formaram em arquitetura. Eu comecei a estudar para tambm entrar nafaculdade de arquitetura, mas depois pensei: P, na verdade no estou muito empolgado comarquitetura, eu estou empolgado com msica, mas vou procurar algum trabalho que eu possa depoislargar para ir para a msica.

    Decidi tentar entrar para o Banco do Brasil ou para a Marinha, porque pensei que se entrasse emum desses lugares, j teria uma segurana maior e poderia sair quando quisesse. Ento comecei aestudar para a prova da Marinha e para o concurso do Banco do Brasil.

    O Banco do Brasil foi o primeiro que descartei. Fiz os exames, passei em todos. O ltimo eradatilografia, que eu tirava de letra. Fui fazer a prova de datilografia em um domingo e fiquei vendoos caras do Banco que estavam organizando os exames de terno e gravata trabalhando nodomingo... Quando chegou a minha vez de fazer a prova, sa da fila e\fui embora. Eu disse: Noquero isso. No o que eu quero pra mim.

    Logo depois, conheci o Tom Jobim e decidi ser msico. Quando contei isso em casa, foi aquelebaque. Imagina! Meu pai no entendeu nada e ficou preocupadssimo comigo.

    Ento foi isso. Na verdade, tive coragem de largar tudo e tentar outro rumo que no era o previstopara mim e para o resto da famlia, e resolvi ser msico!

  • Menescal e a msica

    Tenho uma vida muito completa. P, que sorte eu tive na minha vida! Sou msico!

  • Foi a msica que me escolheu

    Na verdade, no escolhi ser msico. Acho que foi a msica que me escolheu.Quando tinha 11 anos de idade, meu pai deu para mim e para o meu irmo uma gaitinha de

    plstico, dessas bem porcarias, que se usa em chaveiro. Quando ele chegou do trabalho, noite, euestava tocando a msica Oh! Susana, enquanto meu irmo no tocava nada! Meu pai me perguntouquem havia me ensinado a tocar e eu disse que ningum havia me ensinado, mas que queria tocar econsegui. Ento, ele percebeu que eu tinha jeito para a msica e o meu irmo no. Logo depois, eleme colocou para fazer aula de piano, mas no segui, porque quem me ensinava era uma tia e ela eramuito rgida: sempre que eu tocava uma nota a mais, ela batia no meu dedo. Eu gostava de Chopin,mas sempre tocava umas notas a mais e ela dava uma varetada no meu dedo.

    A, como no quis mais levar varetadas, acabei largando o piano. Depois, fui tocar um pouquinhode acordeo, porque era um instrumento que eu poderia levar para outros lugares. Mas aos 17 anos,descobri o violo e foi paixo eterna.

    Meus pais no queriam de jeito nenhum que eu fosse msico. Meu padrinho me deu um violo,mas nem pensar em ter aula. A, quando a Nara Leo estava com uns 14 anos de idade, comeou a teraulas com um cara bem das antigas chamado Patrcio Teixeira e me chamou para assistir s aulasdela. Embora ele passasse umas msicas do tipo: vento que balana as paias do coqueiro, encrespaas guas do mar..., eu fui aprendendo os acordes e deu para ter uma. base de msica.

    Onze anos de idade + trs de piano

    Conheci a Nara muito cedo. Na poca, eu ainda tinha um acordeozinho em casa e nem pensavaem tocar violo.

    Tinha minha turminha de praia o pessoal do Posto 4, de Copacabana e, como sempre, aturma era composta de vinte garotos e quatro meninas. Trs amigos dessa turma eram filhos da MaraRbia, uma grande artista do teatro rebolado. Eles moravam em Copacabana, num apartamento quetinha um salo grande fechado em cima. Perto do meu aniversrio, a Mara falou pra mim:

    Voc vai fazer 15 anos. Faa uma festa aqui em casa! (Fiquei animado porque os meus paisno davam festas, no queriam saber dessas coisas.)

    Poxa, pode mesmo? A gente pode colocar um sonzinho l em cima, n? Claro! A, vocstrazem umas coisinhas pra comer.

    Mas como fazer? Eram vinte garotos e s quatro meninas! No dava pra fazer uma festa assim. Eufalei pros meus amigos:

    Podem deixar, que eu vou sair convocando umas meninas. Onde? No sei!O colgio que eu estudava ficava uns quatro quarteires da minha casa. Ento, eu saa do colgio

    e voltava pra casa a p. Vi umas meninas do outro colgio e ento cheguei at elas e disse: Vocs sabem quem eu sou? (Eu achava que era muito conhecido, n?) Olha, eu vou fazer 15

    anos, vai ter uma festa...E assim foi, at que um dia eu vi a Nara e outra menina atravessando a rua. Sa correndo e falei

    pra Nara: Oi, voc sabe quem eu sou? No, no sei.A, eu fiquei meio sem graa e expliquei: que eu sou aqui da turma do Posto 4. Vou fazer aniversrio... E assim convidei as duas

  • meninas para a festa. Ah, tudo bem, ns vamos ela disse.A essa altura, eu j estava mais sossegado, porque tinha umas vinte e poucas meninas. No dia da

    festa, todos os meninos estavam de terno, as meninas com aqueles vestidos.Era muito engraada a transformao das meninas, porque ns estvamos acostumados a v-las

    com o uniforme do colgio, aqueles sapatinhos e tal. De repente, quando elas chegavam festa, comaqueles vestidos de baile e de salto alto, a gente at levava um susto. Olhava com cara de espanto eelas perguntavam:

    Voc no est me reconhecendo? Estou, mas que eu t surpreso!A, a Nara chegou, bem vestida, muito bonitinha. Ns comeamos a danar e, de repente, chegou

    um cara e falou: Essa menina muito menininha... No, ela deve ter uns 14 anos. No, ela tem 11 anos. Onze?! No, no pode ser! Ela bem desenvolvida, mas tem s 11 anos.A, fui conversar com ela e vi que estava muito nossa frente, porque a Nara tinha uma cultura

    impressionante. Perguntei o que ela fazia alm do colgio e ela respondeu que estudava piano h trsanos. E tudo o que ela dizia, eu ficava somando com a idade dela: 11 anos + trs de piano... Eu noacreditava que ela pudesse ser to novinha. Mas, embora ela fosse to jovem, ficamos muito amigose foi assim que a gente comeou uma amizade muito legal.

    A amizade da Nara foi muito importante, porque ela me abriu demais a cabea. Por exemplo: eununca tinha ouvido falar em jazz, no conhecia nada. Foi ela, com 11 anos, quem me ensinou a ouvirjazz.

    Ficamos muito prximos, at o fim, principalmente no fim, porque quando soube do seu poucotempo de vida, larguei tudo pra ficar perto dela e fiquei junto at o ltimo dia.

    Os mdicos deram a ela trs meses de vida tanto no Brasil quanto em Houston e depoisdisso, ela viveu mais quatro anos. Nesse tempo, fizemos trs discos e mais algumas dezenas deshows juntos. Um bruxo que cuidava dela disse:

    Ningum pode dizer que ela tem trs meses de vida. Ela tem o tempo que ela quiser. difcil e duro, mas se ela quiser viver at os cem anos, ela vai viver. Quando ela estava perto

    do fim, ele disse: Agora, ela desistiu de viver.Chegamos a namorar um pouquinho, quando ela estava com uns 14 anos. No filme Singin' in the

    rain tem uma cena em que comea a chover e eles cantam na chuva. A, teve um dia que eu e Narasamos do cinema, estava chovendo, eu peguei Nara pela mo e samos cantando Singin' in the rain.No dia seguinte, estvamos os dois doentes, com uma febre danada! A, acabou toda a poesia domomento.

    E tudo comeou ali, com 11 anos de idade + trs de piano.

    O clube da bossa

    Comecei a tocar violo com 17 anos e, por acaso, a Nara tambm comeou nessa mesma poca.Estvamos de frias. Fui a Vitria (ES) e a Nara viajou a Campos do Jordo (SP). Na volta dasfrias, quando nos encontramos, eu estava comeando a tocar e ela tambm. Comeamos a tocar

  • juntos e sempre que dava certo, a gente se reunia no final da tarde ou noite para tocar. Nisso, outraspessoas comearam a chegar: Carlinhos Lyra, Ronaldo Bscoli; aos poucos foi se formando umgrupo que frequentava a casa da Nara quase todos os dias. O clube era l.

    A Nara morava em um apartamento na avenida Atlntica, em Copacabana, que tinha uma grandejanela de frente para o mar. Ali nasceram vrias das nossas msicas. Carlinhos chegava l com duasmsicas, sentava com o Ronaldo e fazia mais msica. A chegava Oscar Castro Neves e fazia umamsica com outro cara... A casa da Nara foi o nosso clube durante muito tempo. At que Nara brigoucom Ronaldo, porque ele deu uma namoradinha escondido na Maysa. Quando eles voltaram daArgentina, a imprensa noticiou e todo o mundo ficou sabendo.

    A Nara brigou com o Ronaldo e, por consequncia, com a bossa nova. Naquela poca, a bossanova no podia viver sem o Ronaldo, pois ele era o letrista, o jornalista, o cara que divulgava agente. Ela brigou com a bossa nova inteira e acabou o clube da bossa nova ali na casa da Nara. Masao mesmo tempo, isso aconteceu no ano que fomos para os EUA tocar no Carnegie Hall e cada umacabou ficando em um lugar do mundo.

    A gente se encontrava tanto! Hoje, as pessoas se falam pela internet, mas ns nos vamos todos osdias. Ento, cada um trazia uma novidade um acorde novo, uma msica nova, uma letra nova ou umcaso novo. Era muito engraada a vida da gente. Ns ramos felizes e sabamos, s no sabamos oquanto ramos.

    O universo todo conspirou

    Pode ser que as msicas da bossa nova paream ter sido elaboradas com muito cuidado, mastudo era to natural que ningum elaborava msica nenhuma. Elas vinham de uma maneira incrvel!Como o Paulo Coelho sempre diz: o Universo todo conspirou para que aquilo acontecesse naquelemomento. Fazamos msica de uma maneira to simples que at ficvamos envergonhados. Quantasvezes cantores pediam para que eu fizesse uma msica e eu dizia:

    Eu fao, mas preciso de uns dez dias.A, eu fazia a msica no mesmo dia e guardava na gaveta pra no parecer que era to fcil assim.

    Era to natural! Foi um momento do mundo que nos deu a chance de fazer as coisas com umanaturalidade que talvez no exista mais hoje.

    Imagina s voc com 20 anos, cantando Se eu morresse amanh de manh, minha falta ningumsentiria.... No dava para um jovem, cheio de esperana, de vontade e de vida, cantar isso a, n?Ns fomos a primeira gerao a usar a praia em todo o seu esplendor: A gente surfava, jogava vlei,futebol, namorava... A praia era o nosso clube e no poderamos estar na praia cantando aquelasmsicas pesadas.

    Bossa-nova: diversas influncias

    A bossa-nova uma mistura de ritmos que a gente ouvia: o samba-cano que se fazia nos anosprximos bossa nova, que j era um samba-cano um pouco mais moderno em termos de harmoniae melodia; o jazz, porque era uma msica jovem na poca, feita por msicos norte-americanos bemjovens e que trazia com a msica uma nova atitude perante a vida (o modo de se vestir, o modo deagir); o samba mas a gente no sabia nem tocar o samba direito, ento comeamos a fazer a bossanova, que era quase um novo samba; o bolero tambm influenciou muito a gente, porque na pocaouvamos e danvamos muito bolero.

  • A bossa nova no tinha como nascer em outro lugar

    As pessoas me perguntam: Vem c, por que a bossa nova nasceu no Rio? E eu digo sempre: Porque a cidade que, na poca, dava mais condies pra gente fazer o tipo de msica que

    fizemos.O Rio era uma cidade que oferecia a vida que a gente levava ali. A natureza nos favorecia. Ento,

    a gente tava duro, ia praia, jogava vlei, futebol, frescobol, pegava o violo e ficava tocando... Eno se pode fazer isso em qualquer cidade. A gente podia ir praia se quisesse podia at dormirna praia e tudo bem. Claro que hoje voc no pode mais ficar dando sopa, ir praia demadrugada e ficar l, porque sei l o que pode acontecer.

    Ento, o Rio oferecia essas coisas de graa. noite, tnhamos os bares de Copacabana, onde erapossvel ouvir msicas fantsticas.

    Podamos ir tambm ao Arpoador e passar o dia todo l. A gente ia pra l, pescava algunspolvos, vendia e pronto. A gente pegava uns mariscos nas pedras, colocava em um lato e todomundo comia.

    A gente tinha muita liberdade, o que favoreceu muito a nossa msica. O Rio foi o lugar certo paraaquele momento. Hoje, provavelmente, no seria, mas naquela poca, a bossa nova no tinha comonascer em outro lugar.

    O Rio era uma cidade muito mais bonita. No que as coisas tenham mudado de lugar: o Po deAcar continua l, o Corcovado tambm!

    Porm, voc quase no os v mais. Os prdios tomaram conta de tudo.

    Nara

    Nara era uma pessoa muito interessante, uma menina muito jovem, mas muito frente da suapoca, da sua turma. Ela era muito culta, de cabea muito aberta, que morava em um apartamentomaravilhoso na avenida Atlntica e cujos pais eram muito liberais, e preferiam que as pessoasfossem para dentro da casa dela a deix-la ficar pela noite por a. Isso ajudou a estabelecer a sede donosso clube, que foi na casa da Nara.

    Claro que a gente ia para vrios lugares tambm, mas a base era a casa dela.Naquela poca, era raro uma mulher tocar violo. As meninas tocavam aquele acordeo maldito,

    pesado e que amassava o corpo. Quando descobriram aquele instrumento leve, que podia ser levadoa todos os lugares, todas quiseram aprender; mesmo quem no tinha jeito queria aprender a batidinhada bossa-nova. Nara passou a simbolizar a menina jovem de classe mdia moradora de Copacabanaque saa com seu violo debaixo do brao.

    A bossa nova props uma nova posio perante a vida e perante a juventude; algo que at entono existia.

    Voltei ao apartamento onde a Nara morou e o astral estava todo l.Os atuais proprietrios compraram aquele apartamento porque so superfs da Nara, e

    conservam o esprito da casa dela, inclusive com fotos da turma da bossa nova.

    Alf, o grande mestre

    Um amigo me falou:

  • Tem um cara num bar em Copacabana que voc vai adorar. Mas eu no posso ir a bar ou a boate porque tenho 17 anos. Mas vai l, porque tem um garom que, se voc falar com ele e der um dinheiro, ele deixa

    voc entrar. Ele j conhece os policiais e qualquer coisa te esconde no banheiro.A fui e fiquei impressionado. Aquilo que o cara fazia em 1955 era uma msica toda dissonante.Fiquei louco! Comecei a frequentar o bar e passei a observar as pessoas que iam ver o Alf.Eram profissionais que saam dos seus shows e iam ver o Johnny Alf. Ele foi o professor de

    todos ns. O Tom [Jobim] mesmo disse: Alf o grande mestre.

    Carlos Lyra e Roberto Menescal: um encontro que deu bossa

    Quando eu tinha 17 anos, fui convocado para servir o Exrcito e ento fui estudar noite. Oumelhor, pretendia estudar noite...

    No primeiro dia de aula me disseram: Tem um cara aqui que toca violo e tem at uma msica gravada. mesmo? O caraj tem uma msica gravada? Quero conhec-lo.Fui apresentado era o Carlos Lyra e a gente comeou a conversar: Voc toca tambm? ele perguntou. Toco! respondi. Tenho uma msica gravada pela Sylvinha Telles. Voc a conhece? S de vista. Ento vamos fazer o seguinte: eu moro aqui pertinho. Vamos l pra casa? Matamos aula logo

    no primeiro dia. E nesse dia, os professores de matemtica e fsica mataram aula e foram junto com agente tambm.

    E foi assim que eu e Carlinhos Lyra nos conhecemos, e ficamos muito amigos. Passamos o anointeiro indo a vrios lugares ao invs de ir aula at que, quando chegou o fim do ano, fuifazer a prova de qumica. Quando sentei, o professor perguntou:

    Voc dessa turma? Na hora, levantei e disse: No, no. Desculpa.E foi naquele momento que parei de estudar, porque se o professor no me conhecia depois de

    um ano, j no tinha mais jeito mesmo.

    Sylvinha Telles: ela teve a ousadia de confiar em mim

    Eu ia sempre assistir a Sylvinha Telles na matin do seu show. Ela entrava no palco com omarido Candinho, que tocava muito bem, e eles cantavam uma msica chamada Amendoimtorradinho: Meu bem, este teu corpo parece / Do jeito que ele me aquece / Um amendoimtorradinho.... Eu tinha 17 anos de idade, estava apaixonado por aquele show, ia a todas as matins esentava na primeira fila. Um dia, ela fez um gesto para que eu fosse falar com ela ao trmino doshow. Nosso encontro foi atrs do palco e ela me disse:

    P, cara, voc vem aqui todas as semanas! , eu venho na matin porque baratinho. Agora, voc pode vir como meu convidado.Continuei indo todas as quartas-feiras, at que um dia ela me disse: Vai um dia l em casa.Ela me deu o endereo, que era bem perto da minha casa.

  • Eu fui e toquei, mas estava muito nervoso. Nessa poca, a filha dela, Claudinha Telles, estavacom uns quatro meses. Ela me disse:

    Olha, vou ter que fazer uma turn pelo Brasil. Voc topa fazer isso comigo? Eu, tocando naturn?!

    ! Ah, Sylvinha, eu no toco o suficiente pra fazer isso... Mas a gente tem um ms. Se voc topar, podemos ensaiar.Claro que aceitei. Isso foi por volta de 1955 e as viagens eram muito demoradas. Um ms depois

    do incio da turn, cheguei ao Rio de Janeiro e era outra pessoa: no meio do caminho, comprei umviolo novo e j cheguei tocando. A, eu j tirava meio de letra, sabe? A Sylvinha Telles foi a pessoaque teve a ousadia de confiar e apostar em mim quando eu estava comeando a tocar, e viramosgrandes amigos. Ela partiu muito cedo e foi uma perda muito grande. Mas conseguimos gravar muitacoisa e fomos muito amigos mesmo.

    A primeira vez que sa do Brasil foi para tocar com a Sylvinha Telles e foi muito engraadoporque eu achava que quando se saa do Brasil, tudo mudava. A escrevi uma carta ao meu paidizendo: os bois so os mesmos, as vacas so iguais.

    A Academia de Violo

    Abrir a Academia de Violo foi uma necessidade porque, na hora que a gente chega em casa e dizque quer ser msico e que no vai mais estudar, acaba tudo, inclusive a mesada. O que voc faz? Napoca, eu tinha um conjuntinho que tocava em bailes e todas as meninas chegavam dizendo quequeriam aprender a tocar a batida bossa-nova. Eu e o Carlinhos Lyra alugamos um apartamento echoveu gente querendo aprender: a gente passava o dia inteiro dando aula. Foi impressionante: napoca, todo o mundo queria aprender a tocar igual a gente.

    At ento, as meninas tocavam acordeo, que, alm de ser um instrumento pesado, era difcillev-lo para os lugares. Eu achava horrvel o tal do acordeo. No fim do ano aconteciam umas festase umas cem mulheres com vestido de baile tocavam aquilo. O som era horroroso! Um acordeo j difcil de aguentar, imagine cem? Ento, quando as meninas viram o violo, elas se interessaramporque era e um instrumento leve, que pode ser levado a qualquer lugar. Elas largaram o acordeoe passaram para o violo.

    O nome Academia d a impresso de algo imponente, mas, na verdade, a Academia era umquarto e uma sala. A coisa foi crescendo e eu falei pro Carlinhos:

    No d mais pra ficar aqui. Precisamos de um lugar maior e de mais pessoas para dar aula.A, ele abriu uma Academia e eu abri outra na mesma rua. Consegui um lugar muito legal, bem

    perto da avenida [Nossa Senhora de] Copacabana, que tinha umas seis salas e varanda. Que melembre, nessa poca estavam na Academia: Nara Leo, Marcos Valle, Wanda S, Edu Lobo,Nelsinho Motta, e outros tantos. Alguns viraram msicos, outros no.

    A Academia virou ponto de encontro, porque mesmo que no quisesse aprender violo, a pessoafrequentava s para entrar na onda. Quando as aulas acabavam, o pessoal se reunia na salinha paratocar e mostrar as msicas novas, e a Academia tambm se tornou um centro de composio.Lembro-me do Marcos Valle, novinho, vermelho de vergonha, perguntando: Posso te mostrai umamsica?".

    Quando comeamos a sair pelo mundo para divulgar a bossa-nova, no conseguimos mais mantera Academia.

  • Um convite inesperado

    Ouvia no rdio as msicas que o [Tom] Jobim estava fazendo com os seus parceiros primeiramente o Newton Mendona, depois o Vincius de Moraes e ficava, vidrado naquele queera e continua sendo o meu grande mestre. Queria muito conhec-lo. Ento, ia aos lugares onde elepoderia estar, mas nunca o encontrava. Ficava to nervoso por no ter encontrado o Tom que. svezes, me levavam embora de porre e a eu ficava sabendo que um pouco depois de ter sado, elehavia chegado.

    Naquela poca, eu e Carlinhos Lyra dvamos aula de violo em um apartamento e um dia, nofinal da tarde enquanto eu dava aula para uma menina (com a me dela vigiando ao lado, claro!) algum bateu porta e era o Jobim. Quando vi o Tom Jobim, quase nem acreditei! Ele meperguntou se eu era o Menescal e falou:

    Vim aqui para saber se voc pode fazer uma gravao comigo para o filme Orfeu negro. Mas claro que eu posso! Mas voc no est ocupado a dando aula? Eu dou um jeito! respondi.Bom, eu quase expulsei a menina, pois no podia perder aquela chance!Quando a gravao terminou, o Tom disse que tnhamos que acertar o meu cach e eu disse a ele: Deus me livre receber cach de voc! Quero saber quanto eu te devo!Imagine, seria um pecado receber por ter tocado com o Jobim!Como no aceitei receber, ele me convidou para jantar e fomos a um restaurante em Copacabana.

    Conversando com ele durante o jantar, contei que pensava em ser arquiteto, entrar para a Marinha oufazer qualquer outra coisa que me desse garantia. Ele me perguntou:

    Mas, cara, voc no quer ser msico? Quero. Ento largue tudo e v estudar msica!Ser msico era o que eu mais queria, mas at ento estava inseguro. Esse encontro mudou toda a

    minha vida! Talvez, hoje, eu fosse um arquiteto/msico, como os meus irmos que so arquitetos ou um mau arquiteto e um mau msico.

    Vou te contar uma coisa: essencial estar atento vida. Se voc no ficar atento a ela, as coisasvo passando e voc no v. Eu realmente sonhava no que eu fosse para cama, dormisse esonhasse: eu ia para cama e sonhava antes mesmo de dormir em tocar com o Jobim, com o JohnnyAlf... e, menos de um ano depois, eu estava tocando com todos eles. Ento, o sonho vital para quevoc consiga fazer o que quer. No s sonhar, tem que correr atrs tambm, mas sabendo o quevoc realmente quer.

    Samba de vero: isso sucesso O Marcos Valle era nosso aluno na Academia de Violo. Ele eraum cara muito tmido, muito envergonhado. Um dia, ele me disse:

    Poxa, eu fiz umas msicas... e queria te mostrar...Ele me mostrou uma msica chamada Sonho de Maria. Fiquei impressionado com o tipo de

    msica que ele fazia. Eu disse: Rapaz, vou te apresentar a uns caras que conheo.A, eu apresentei o Marcos aos Cariocas, ao Tamba Trio e eles gravaram msicas dele.Tanto que ele me chama de padrinho at hoje!Um dia, eu estava no Arpoador e o Marcos que era surfista chegou por l. E a, Marco! Rapaz, eu fiz uma msica e t doido pra te mostrar!Quando ouvi a msica, eu disse:

  • Marcos, isso sucesso! Voc acha mesmo? Escreva o que estou dizendo. Nunca soube qual das minhas msicas

    seria sucesso; mas essa, eu tenho certeza que um sucesso.Bom, essa msica era Samba de vero e at hoje ele diz que fui o primeiro cara que sacou que

    ela seria um sucesso.Nossa amizade continuou. Hoje, somos parceiros, moramos perto um do outro, e sempre que

    possvel fazemos shows juntos. Ele um grande artista, um grande msico e, principalmente, umgrande amigo.

    Castro Neves: uma famlia musical

    Quando notamos que ramos um grupinho fazendo msicas com uma nova forma de cantar e tocar,comeamos a procurar pessoas para aumentar esse grupo. Um dia algum falou pra gente:

    Tem uma famlia a de uns garotos que moram em Laranjeiras e tocam muito bem jazz e umamsica brasileira moderna. Eles tm um conjunto, o Conjunto Castro Neves.

    Era por volta das seis horas da tarde, ligamos e eles disseram: Podem vir pra c.Eles j trabalhavam, mas eram bem garotos. O Oscar tinha 16 anos e j trabalhava de terno e

    gravata.Pegamos um txi e quando chegamos, o irmo mais velho que era pianista nos recebeu e j

    comeamos a tocar na garagem. De repente, o violo saiu da minha mo: era o Oscar. (Ele um carato fissurado pelo violo que chegou tirando da minha mo e comeou a tocar.) A, a me dele falou:

    Pare e cumprimente eles. Ah, desculpa! ele cumprimentou a gente e j comeamos a tocar de novo.A famlia Castro Neves deu um novo embalo ao nosso grupo e fizemos muitas coisas juntos. O

    Oscar e o Ico chegaram at a tocar no meu conjunto. Hoje, o Oscar um grande produtor nos EUA econtinuamos amigos.

    Joo Donato

    Eu estava comeando a estudar msica com Moacir Santos, que foi um grande professor, e ficavaimpaciente porque queria tocar e ele dizia:

    Meu filho, calma. Antes de tocar, voc tem que aprender algumas coisas.Um dia, cheguei aula s 7h30 da manh, depois de virar a noite tocando com o Joo Donato. A

    o Moacir falou: Voc t com cara de quem no dormiu. verdade. No dormi mesmo. Passei a noite inteira tocando com o Donato.A, ele comeou a elogiar o Donato: Donato uma maravilha! Donato o grande!Eu disse: E Donato no sabe uma nota de msica! (Ele sabia tudo de msica, mas no lia msica.) verdade... Imagine se ele soubesse!Donato genial! Ele canta: Bananeira no sei,'bananeira sei l... bananeira!.O pblico todo grita: bananeira! E o pessoal sai cantando isso no mundo inteiro.

  • Wanda Vagamente

    A Wanda S ia aos nossos shows e ficava na primeira fileira, at que um dia tomou coragem e foifalar comigo.

    Me d um autgrafo? Dou! Escreve o seu telefone tambm, porque eu queria ter umas aulas com voc. Onde eu escrevo? Escreve na minha mo.Eu achei aquilo o mximo! Depois que escrevi, ela falou: No vou mais lavar a mo! (Aquela coisa de garota, n?)A Wanda comeou a fazer aula comigo e cantava muito bem. Um dia, o Bscoli foi minha casa,

    chegou durante a aula e quando ouviu a Wanda cantar, falou: Voc tem que cantar, fazer shows... tem que gravar um disco! Mas eu no canto profissionalmente... No, mas vai fazer um disco.Ele tinha um programa com o Miele em So Paulo chamado Dois no balano e a convidou para

    cantar. Ela foi a So Paulo, cantou no programa e ns fizemos um disco chamado Vagamente.Ronaldo e eu oferecemos essa msica para ela e ela ficou conhecida como Wanda Vagamente.

    Somos muito amigos e parceiros. J fizemos vrios discos juntos, j andamos por todo essemundo afora! Somos muito amigos!

    Wanda e Nara so as irms que eu no tive!O senhor cantor? Quando fui participar de um programa na TV Tupi do Rio, o Agostinho dos

    Santos chegou pra mim e disse: Voc faz uns acordes bacanas!Eu mostrei alguns acordes e ele comeou a cantar.Samos do prdio da TV Tupi e todo o mundo conhecia o Agostinho porque ele fazia muito

    sucesso. A, ele perguntou: T de carro? No. Ento vamos pegar um txi pra te deixar em casa. Onde voc mora? Em Copacabana.Quando estava chegando, mostrei onde eu morava e perguntei: Voc quer subir? Vamos l.No prdio, todo o mundo ficou olhando pra gente, porque ele era muito conhecido.Subi e minha me atendeu (ela era completamente por fora de tudo!) e foi a nica que no

    reconheceu o Agostinho. Oi, me! Esse aqui o Agostinho dos Santos, grande artista. Oi, muito prazer! O senhor cantor? Me, ele um cantor de grande sucesso! Ah, desculpa!Quando estava indo embora, ele disse para a minha me: Minha senhora, parabns pelo seu filho. Ele toca muito bem. O senhor acha, ? Poxa, que bom! Vou falar pro pai dele!A, quando ele saiu, eu falei: Como voc no o conhece? Eu vim at aqui com todo o mundo comentando e voc ainda

    pergunta se ele cantor? O Agostinho foi um cara que gostou de mim e apostou em mim. Ele gravoumuitas msicas minhas.

    Como nasceu a parceria Menescal e Bscoli

  • Havia umas reunies de um pessoal mais antigo que se juntava para tocar violo e, apesar de noser o meu tipo preferido de msica, eu ia e sempre aprendia uns acordes novos, e curtia tudo aquilo(sabe encosta tua cabecinha no meu ombro e chora? Era esse tipo de msica).

    Nesse lugar que a gente ia, tinha uma salinha separada onde colocavam umas bebidas e algumacoisa para comer. Na poca, eu bebia cuba-libre que era rum com Coca-Cola e teve um diaque fui para essa salinha pegar uma cuba-libre e ouvi um som diferente. Era uma msica to diferentedaquelas que a gente tinha at ento, que logo que ouvi um acorde, me interessei.

    Fui at a varanda e vi dois caras, um tocando violo e outro cantando. O que estava cantando erao Ronaldo Bscoli, fazendo tipo: cigarro, copo de usque, suter meio cado, sapato de camura,cala de veludo. Parecia um artista americano.

    Perguntei se podia ficar por ali. Fiquei ouvindo e pensando: Poxa, eu preciso levar esses caraspra minha turma. A, quando deu uma brecha, falei que tinha uma turma que tocava e o convidei paraque nos encontrasse no dia seguinte. Ele disse que iria, mas no apareceu.

    Um ano se passou, at que um dia eu estava na praia com a turma toda. Ele passou por ns,peguei o pessoal e fomos falar com ele.

    Voc se lembra de mim? Ah, menino, no deu pra ir l quando voc me chamou... Vamos l, quero que voc conhea a minha turma! Eu vou sim. Onde ? Expliquei onde era e noite ele chegou l, cheio de charme, com uma

    garrafinha pequena de usque, e cantou as msicas que tinha feito com o parceiro dele, Chico Feitosa.Ele comeou a frequentar as reunies e o Carlinhos Lyra logo aproveitou, porque ele tinha muita

    msica. Eles comearam a compor e da veio Lobo bobo, Saudade fez um samba. Eu ficava ali,esperando uma brecha, at que um dia o Carlinhos no foi e o Bscoli disse:

    P, o Carlinhos marcou comigo e no apareceu... Eu tenho umas musiquinhas aqui, Ronaldo...Mostrei uma, mas a msica era ruim, ruim. Ele disse: bonitinha.Da, fizemos uma msica chamada Jura de pombo, que falava de um pombinho que marcou um

    encontro, mas chegou atrasado porque o dia estava to lindo que, ao invs de voar, ele foi andando!Mas a msica era bem ruinzinha mesmo.

    Ele me perguntou se eu tinha outra msica e ns fizemos uma, chamada Luluzinha bossa nova,que tambm era uma besteira.

    Logo depois, fizemos uma msica chamada Errinho toa. Ele disse: Essa msica boa, as outras duas no.E a viramos parceiros.Hoje, os compositores trabalham assim: Manda a msica pra mim por e-mail que eu coloco a letra.E tudo feito por e-mail. No tem mais aquele negcio de sentar pra conversar e compor juntos.

    Quem esse Grupo Bossa Nova?

    Ns amos a todos os lugares onde ramos chamados. Um dia, nossa amiga Sylvinha Telles, quej era profissional, disse:

    Vou fazer um show na Sociedade Hebraica. Se vocs toparem, podem ir l dar uma canjinha.Claro que aceitamos e fomos todos. Quando entramos, vimos um cartaz feito a mo:Hoje, Sylvia Telles e um Grupo Bossa Nova. Pensei: Ento tem mais algum no show e eu

  • no sei quem . A, perguntei: Vem c, quem esse Grupo Bossa Nova? E o cara da Sociedade Hebraica respondeu: So vocs! Eu no sabia o nome de vocs, ento inventei o nome Grupo Bossa Nova. Tem

    problema? No, no tem, porque a gente no tem nome mesmo e esse nome legal, achei bacana.Ns samos dali depois do show, brincando um com o outro, e Sylvinha brincou chamando a

    gente de o meu Grupo Bossa Nova. Ronaldo Bscoli disse: Esse um nome bom, que diz exatamente o que ns estamos fazendo.E o nome ficou. Ningum pensou nisso. O nome bossa nova nasceu de uma maneira muito natural

    e ficou muito comercial, porque dali em diante falava-se carro bossa-nova, geladeira bossa-nova... Os jornais s falavam nisso! Tudo era bossa-nova!

    A bossa-nova foi a primeira msica brasileira com sabor universal, porque como foi baseadatambm no jazz e no bolero, ela tem um cunho de influncias vindas de fora. Botando um pouco doritmo brasileiro, a bossa-nova se tornou uma msica internacional.

    Um banquinho, um violo

    No incio da bossa nova, a gente sentava muito no cho ou ento no sof da casa da Nara.Um dia, fomos chamados para fazer um programa na TV Continental, no Rio, e conhecemos o

    Miele. No cenrio, tinha um sof e duas poltronas, e ele falou: Assim fica ruim pra tocar violo por causa do brao do sof, no fica? Ah, mas d, a gente

    senta na ponta. Sof no pra sentar na ponta, pra voc se refestelar!A, dissemos que poderamos sentar no cho, mas ele disse que ficaria ruim por causa da cmera.

    Ento, ele levou uns banquinhos, ajeitaram no cenrio e ficou bonito de se ver.E agora j fez cinquenta anos que a gente senta em banquinho! Uns, meio de lado, um pouco

    tortos, mas bossa-nova virou um banquinho, um violo!Tem gente que diz que a bossa-nova no teve influncia do jazz, mas teve muita influncia dele

    sim, no h dvida. Em 1960, a nossa msica comeou a sair do Brasil e influenciar o jazz, tanto quequando chegamos aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1962, todos os msicos bons de jazztocavam ou tentavam tocar a bossa-nova.

    Preciso terminar de varrer aqui...

    Costumvamos fazer alguns shows pequenos na Faculdade de Arquitetura, as jam sessions, queeram instrumentais. Tocvamos jazz e, como era o comeo, a Faculdade era um lugar bacana pragente se encontrar e tocar. Os outros msicos que tocavam l eram profissionais e ns s dvamosuma canjinha, at que um dia eu disse:

    Vou inventar alguma coisa diferente pra gente defender o nosso lado. Por que, ao invs defazer uma jam session, a gente no faz uma samba session? A gente improvisa, mas em vez do jazz,a gente toca samba.

    A, me perguntaram: A gente toca msica de quem? Vincius de Moraes, Carlos Lyra... Podemos tentar. Mas voc acha que vai algum? Eu tenho uns amigos, de repente chamo um

    amigo que artista pra dar uma fora e tal. Ento, se vierem uns trs artistas conhecidos, a gente jpromove isso.

  • Eu chamei a Sylvinha Telles, acho que Lcio Alves e Trio Irakit. O show foi divulgado ecompareceram umas trezentas pessoas. S tocamos msica brasileira. Era a primeira vez que a gentefazia um show de msica brasileira, e o pessoal ficou animado. Foi muito bacana!

    Um ano depois, resolvemos fazer outro show, porque muitas coisas importantes tinhamacontecido: tinha sado o disco do Joo Gilberto, o nome bossa nova j tinha surgido... Ento,resolvemos fazer um show de bossa-nova, mas no tnhamos nenhum recurso: as caixas de som eramda minha casa, o microfone, da casa do outro... Era tudo muito amador. Tnhamos que ajeitar tudopara o show: a gente limpava e varria tudo (porque era uma arena). Quando chegou a hora melembro bem eu estava varrendo o palco e um cara chegou pra mim:

    Roberto, vou ter que abrir. T na hora. No posso segurar gente l fora. Espera s um instantinho. Preciso terminar de varrer aqui... T tudo parado l fora! P, que azar! Logo no dia do nosso show o trnsito t parado! T parado por causa do show, rapaz! Por causa do nosso show? No possvel! Voc vai ver.Terminei de varrer e quando abriram as portas, tinha muita gente. Eu me perguntei:Tudo isso por nossa causa?! Que loucura!.Chamamos esse show de A noite do amor, o sorriso e a flor, que era o ttulo do disco do Joo

    Gilberto e era a frase da msica do Jobim, Meditao (O amor, o sorriso e a flor se transformamdepressa demais).

    O show foi fotografado por um amigo nosso e identificamos nas fotos os diretores de gravadorassentados no meio do povo no cho mesmo. Aqueles caras que no deixavam a gente entrar nasgravadoras estavam l, sentadinhos pra ver a gente. Ento, esse show foi da maior importncia parans e para a bossa nova.

    Maysa e O barquinho

    Conheci Maysa quando tinha 13 anos e ela 14. Foi rainha de um bloco de carnaval nosso l noEsprito Santo, porm nunca mais a vi.

    Anos depois, casada, ela gravou um disco, Convite para ouvir Maysa em que doou os direitospara obras beneficentes. Na mesma poca, ela apresentava um programa de televiso semanal. Euno perdia um, porque adorava as msicas dela. (O cenrio do programa tinha piano, flores, colunasgregas... Era um daqueles cenrios malucos que no tm nada a ver com o programa!)

    Dali em diante, ela foi acontecendo e logo se tornou um grande sucesso.Certo dia, Ronaldo Bscoli disse: Poxa, estive com Maysa e contei sobre a bossa-nova, do nosso grupo, e ela se interessou

    muito. Vou traz-la para se encontrar com a gente.O encontro com Maysa aconteceu, mostramos as nossas msicas e da veio a ideia de gravar o

    disco O barquinho. Ela marcou uma reunio com o diretor da gravadora e fomos eu, Luizinho Ea(que tocava piano muito bem) e Maysa. Luizinho e eu nunca tnhamos trabalhado com produo earranjos, mas Ronaldo Bscoli nos apresentou Maysa como dois grandes arranjadores e eu comoum produtor incrvel! Ento, fomos encontrar o diretor da gravadora como grandes arranjadorese eu como um produtor incrvel!

    Luizinho e eu resolvemos que o disco teria 12 faixas: seis seriam gravadas com um grupo

  • pequeno de msicos e as outras seis com uma orquestra. Fiquei encarregado do grupo pequeno e oLuizinho da orquestra.

    A, o diretor da gravadora perguntou do que precisaramos para a gravao e o Luizinhorespondeu:

    Eu preciso de 24 violinos, 12 violas, 4 cellos, 2 contrabaixos e 1 piano.No espervamos que o diretor concordasse com tudo o que o Luizinho estava pedindo, mas ele

    acabou concordando...Bom, quando samos dali, o Luizinho falou: Ai, como que eu vou fazer isso? No vai dar! Eu vou pra Terespolis!E eu disse: Voc no vai, no! O cara acertou tudo com a gente e agora voc vai fugir? Faz o seguinte:vou pra sua casa, morar l at terminarmos de fazer os arranjos.E foi assim que a gente fez. Ele comeou a escrever, comeou a se empolgar.No dia que fomos ao estdio e a orquestra comeou a fazer a introduo da msica O

    barquinho, com o piano junto, foi muito lindo. Quando a gravao terminou, a orquestra inteiralevantou e aplaudiu o Luizinho, batendo com o arco no instrumento. Ele levou os pais para assistir gravao e foi muito emocionante.

    O disco foi todo gravado nesse clima, apesar de Ronaldo e Maysa discutirem bastante.Ronaldo dizia que ela parecia um bonde balanando, que ela no tinha swing nenhum. Ento,

    de vez em quando, ela ficava muito nervosa. Mas, fora isso, o clima era de muita paixo, muitaemoo.

    Sentamos que aquela era a grande oportunidade da bossa nova. A repercusso do disco foiincrvel. A capa do disco estampa a foto de um barquinho com Maysa e todos ns dentro, o quemostrava que ela assumiu a gente.

    Logo em seguida, recebemos convite para fazer uns shows na Argentina. Passamos um ms l e osucesso foi inacreditvel!

    Depois disso, fiz alguns shows com Maysa no Rio e em So Paulo. Produzi, em 1970, um discode Maysa chamado Ando s numa multido de amores. Nesse disco h uma msica que compusemosjuntos chamada Me deixe s.

    Quem o dono do conjunto?

    Quando olhei para o cenrio da poca havia um monte de trio isso, trio aquilo... Vrios grupinhosem So Paulo e no Rio. Cada um queria fazer sua prpria msica e no queria acompanhar oscantores. Percebi que faltava um grupo para acompanhar os cantores. Ento formei um quinteto.Fizemos uns shows e as pessoas acharam que o nosso som era legal. Em pouco tempo tivemos muitotrabalho, porque os cantores comearam a nos convidar para tocar com eles. (Chegou at um flautistafamosssimo de fora, o Herbie Mann, e quis gravar com a gente.)

    Um dia, o Aloysio de Oliveira, da gravadora Elenco, me chamou e disse: Quero gravar esse grupo de vocs. muito legal. T certo! Vou trazer a turma toda! A turma toda no! Quero saber quem o dono do conjunto. No, no tem dono. de todo o mundo. No existe essa coisa de que todo mundo dono.Imagina eu aqui com cinco caras, cada um achando uma coisa? No d! Eu quero um dono para

  • esse conjunto. T, ento vou conversar com eles e a gente v quem vai ficar como dono do conjunto. No, eu quero que voc seja o dono do conjunto.Alm de msico, voc muito organizado; nos ensaios, voc organiza tudo e faz isso muito

    naturalmente.Achei aquela situao meio chata. Como ia explicar aquilo pros meus amigos? A, sentei com

    eles e disse: O grupo de todo mundo, mas ele quer tratar tudo comigo. Eu vou, mas o grupo continua

    sendo nosso.Na hora de colocar o nome no conjunto, o Aloysio disse que seria Roberto Menescal e seu

    Conjunto, e aquilo me preocupou, porque at ento, quem arranjava o show levava o nome, porexemplo, Luiz Carlos Vinhas e seu Conjunto. A, falei com a turma e eles concordaram em deixar omeu nome.

    No conjunto era assim, quando o cara estava ficando bom demais, eu chegava pra ele e dizia: No fica aqui, no. desperdcio. P, mas voc t me botando pra fora? De jeito nenhum!O Eumir Deodato passou cinco anos sem falar comigo, achando que eu o tinha colocado para fora

    do grupo, mas no isso. Eu disse que ele tinha que ir para o mundo, mas ele achou que eu o estavadespedindo. Hoje, ele v que era verdade: todo mundo quer gravar com ele e ser produzido porele.

    Surf board

    Lanamos, em 1966, o disco Surf board e o fotgrafo que fazia as capas da Odeon que eramergulhador e mergulhava comigo quis colocar na capa uma imagem de todos ns vestidos comroupas de mergulho. Esse foi o primeiro disco da srie. Entre as msicas, algumas so minhas, masgravamos tambm msicas do Carlinhos Lyra, Tom Jobim, Chico Feitosa, entre outros, porquequeramos divulgar o repertrio de toda turma.

    Gravamos uma srie de quatro discos e foi o primeiro instrumental brasileiro que vendeubastante na poca. At ento, instrumental vendia pouco, mas nos tomamos campees de vendas.

    Lcio Alves: Vou gravar isso!Lcio Alves era o meu dolo. Eu era garoto, ainda nem tocava violo, e j gostava dele, adorava

    o jeito bem bomio como ele cantava. (Eu chamava a voz dele de voz de sinusite.)Eu adorava aquelas msicas!Um dia, a gente se conheceu, no me lembro direito onde, e logo depois ele disse pra mim: Soube que voc faz umas msicas. sim, t comeando a fazer. V um dia l em casa. Quando? V amanh.No dia seguinte, eu estava l. na casa dele e ele pediu para eu mostrar minhas msicas. Mostrei

    Errinho toa e ele disse: P, que msica legal! Vou gravar isso!Pensei: Ele vai gravar minha msica! Inacreditvel! Mostrei outra e ele disse: Vou gravar.E eu pensando: Nossa, o Lcio Alves vai gravar duas msicas minhas! Os meus pais no vo

  • nem acreditar! Resultado: ele gravou um disco inteiro, chamado Balanamba, com msicas minhas.Ento, cheguei em casa e falei para minha me: Conheci o Lcio Alves, fui casa dele e ele vai gravar um disco todo com msicas minhas!Ela perguntou: E voc tem msica pra isso? Esse foi um passo da maior importncia na minha vida, porque

    dali em diante passei a ter um disco todo de msicas minhas, gravado pelo cara que, na poca, eraum grande sucesso. Isso me abriu muitas portas.

    Bossa sussurrada

    A turma da bossa-nova Bscoli, Chico Feitosa, Lcio Alves, Sylvinha Telles morava emapartamentos. Durante o dia, todos trabalhavam e, noite, l pelas 22 horas, nos encontrvamos paratocar. Logo, o vizinho de baixo comeava a bater no teto do apartamento com o cabo da vassoura,dizendo:

    Olha o barulho, eu tenho que acordar cedo!Ns j tocvamos baixo, mas comeamos a tocar ainda mais baixo para no incomodar os

    vizinhos e todo o mundo acabou se acostumando a tocar e a cantar baixinho. Foi assim que nasceuuma caracterstica da bossa-nova.

    Se prestar ateno, voc ver que a msica que a gente fazia era meio falada. Antes da gente, asmsicas eram cantadas mesmo, mas nas primeiras gravaes da bossa-nova voc j percebe que asmsicas so baixinhas e quase faladas.

    Carnegie Hall: foi a que acabou a turma da bossa-nova

    Algum no me lembro quem chegou para mim e disse: Olha, ns vamos fazer uma apresentao no Carnegie Hall, em Nova York... e me convidou

    para ir tambm.Perguntei quem iria e a pessoa disse que a turma toda iria. Na hora, fiquei em dvida sobre

    quem era a turma toda e perguntei: Rapaz, sabe o que ? Eu j tenho uma pescaria marcada em Cabo Frio, ento no vou poder ir

    a Nova York com vocs.Tom Jobim telefonou pra mim e disse: Menesca, por que voc no vai pra Nova York? A turma toda vai. Voc tem que ir tambm! Mas tenho uma pescaria marcada... Pescaria, rapaz? Mas a turma toda vai! Nem sei direito do que se trata... um concerto no Carnegie Hall!Eu no sabia o que era o Carnegie Hall e fiquei com vergonha de perguntar, mas acabei dizendo

    que iria tambm. (Pouco depois, tivemos um almoo no Itamaraty e foi a que percebi que o convitetinha sido de l.)

    A turma que foi a Nova York era grande. Ao chegarmos ao aeroporto, passando pelo controle depassaporte, olhei em volta e vi uns msicos de jazz, que eram nossos dolos, dos quais eu nuncaimaginei estar perto um dia! Quando os vi, virei pra trs e falei pro pessoal:

    Olha que sorte! Estamos chegando e os msicos de jazz tambm esto aqui!

  • A, o cara que estava recebendo a gente l, disse: Eles esto aqui para receber vocs! Mas como? Eles conhecem a gente? claro que conhecem!Estavam l Gerry Mulligan, Cannonball Adderley que era um saxofonista de jazz famosssimo

    e o pessoal do Modem Jazz Quartet (que, na poca, era um grande sucesso), alm de outros queno me lembro agora.

    Assim que passamos pela Polcia Federal, eles foram falar com a gente e nos convidaram parajantar. Veja s: eu nunca imaginava chegar perto daqueles caras e, de repente, eles estavam nosconvidando para jantar nas casas deles! Foi ento que percebi: estvamos indo tocar em Nova Yorkpela primeira vez, mas a nossa msica j havia chegado por l. (Na ocasio, a msica Desafinadoj estava nos primeiros lugares do hit parade e depois chegou ao primeiro lugar.) Naquela noite,Joo Gilberto, Milton Banana e eu jantamos na casa do contrabaixista do Modern Jazz Quartet e nanoite seguinte jantamos na casa do Gerry Mulligan. Nos dias que se seguiram, tocamos com esses evrios outros msicos, e no final eu j nem me lembrava mais do concerto no Carnegie Hall!

    Na vspera do concerto, algum avisou que teria um ensaio antes da apresentao e eu disse: Mas no sou cantor, nem trouxe o meu grupo. No vou tocar amanh, no. Vou l s pra ver

    vocs.A, o empresrio veio falar comigo: Soube que voc no vai participar do show de amanh. Como no? Voc est aqui com a

    gente h dez dias. Voc vai cantar.Acabei concordando. (Foi nesse dia, l no Carnegie Hall, que cantei pela primeira vez na vida.

    Acho que esse um fato indito na vida do Carnegie Hall e na vida de um artista:imagine estrear no Carnegie Hall? Mas acho que foi a carreira de cantor mais rpida que j

    existiu, porque comeou e acabou ali mesmo! Eu vi que no tinha jeito para cantar.)Na hora do show, o teatro estava lotado e muitas pessoas ficaram do lado de fora porque no

    havia mais lugar. O show daquela noite seria gravado e o empresrio, que junto com o Itamaraty noslevou para l, estava muito ligado no show, porque com isso j estava divulgando o disco que irialanar. Ele tambm era editor de msica e estava interessado em publicar as nossas msicas. (Fomospara l sem saber nada disso.)

    O show foi um pouco tumultuado porque havia muitos artistas no palco. (Quando chegou oconvite para tocar no Carnegie Hall, gente que nem era da bossa-nova ficou sabendo e resolveu irtocar tambm: pagou a passagem e foi junto. Ento, havia muita gente ligada bossa-nova comoTom Jobim, Joo Gilberto, o quinteto do Oscar Castro Neves, o conjunto do Sergio Mendes, CarlosLyra e eu mas tambm vrios artistas que no eram ligados bossa-nova. Por isso, no havia nadamuito organizado na hora do show.)

    Esse show foi vital para a divulgao da bossa-nova. Dali em diante, a nossa msica estavacolocada no mundo.

    Uma curiosidade: a partir desse show, a turma da bossa-nova terminou. Porque a turma era umgrupo que se reunia praticamente todos os dias na casa da Nara, do Ben Nunes, do Tom. Mas a,Tom, Joo Gilberto, Carlos Lyra, Sergio Mendes e outros ficaram por l. Eu voltei porque tinhacasamento marcado para dali a dois meses. A partir da, tudo acabou: a turma no se reuniu mais ecada um seguiu o seu caminho.

    Esse concerto no Carnegie Hall foi timo porque divulgou a bossa-nova para o mundo todo, mas,por outro lado, acabou aquela coisa gostosa que a gente tinha havia uns quatro anos que eramas reunies em que a gente tocava e criava.

  • No tnhamos noo de que estvamos fazendo algo que seria to duradouro e que transformariatanto a msica brasileira. Todos tnhamos entre 18 e 20 anos de idade, e a msica que estava noBrasil naquela poca possua assuntos muito pesados para a nossa gerao.

    Ento, queramos fazer uma msica que tivesse a ver com a gente.Mas a, ela modificou bastante o cenrio da poca e tambm os costumes. Quer dizer, bossa nova

    passou a definir um comportamento: "basta o jeitinho dela andar, sabe?".Menescal e Bscoli:As nossas msicas so cenas das nossas vidas.Bscoli e eu no botvamos letra em msica, a gente fazia uma histria. A gente nunca sentou e

    falou 'vamos botar umas palavrinhas bonitas aqui nessa msica', no era isso.Cada msica nossa tinha uma histria verdadeira que havia acontecido com a gente. A, a msica

    fica muito verdadeira e sincera.

    O Barquinho

    Eu era um apaixonado pelo mar! Eu era pescador de mergulho e levava isso to a srio quanto amsica, apesar de ser predador, porque na poca no tnhamos essa noo, nem a necessidade depensar em ecologia como hoje. Ento, achava que podamos pegar todas as lagostas do mundo e queteramos lagostas para a vida inteira, o que no verdade.

    Aos poucos, fomos aprendendo que as coisas so muito frgeis.Minha turminha de bossa-nova no tinha nada a ver com aquele negcio de mar e de pescaria,

    mas vivia pedindo para que eu os levasse junto comigo um dia, porque eu sempre falava dos lugaresbonitos para onde costumava ir. At que um dia, eu os convidei para passar um fim de semana emCabo Frio. ramos uns oito ou dez do grupo, entre eles o pessoal do Tamba Trio, a Nara Leo, oRonaldo Bscoli, minha mulher Yara e, talvez, mais um ou dois casais.

    Chegando l, alugamos um barquinho (chamvamos de traineira, uma traineirinha) e fomos prafora de Cabo Frio, que se voc olhar num mapa uma ponta pra fora do Rio. Fora disso, tem Arraialdo Cabo, que a ponta mais fora de Cabo Frio. Fora isso, tem a Ilha do Cabo, que a ltima coisadessa ponta e fui mostrar a eles a Ilha do Cabo pelo lado de fora, que uma paisagem nica noBrasil: voc pode ter milhes de paisagens bonitas, mas aquele tipo de paisagem s tem l. Mais oumenos s trs horas da tarde, o barco enguiou em um lugar muito fundo, porque como ali a pontamais para fora, a profundidade, perto da ilha, j comea em cem metros. No havia ncora quechegasse ao fundo e ns fomos indo cada vez mais para fora. Ficamos tentando fazer o motor pegar ea turma j estava apavorada. A bateria acabou; ento j no dava mais pra rodar na chave, tinha quepuxar uma alavanca para ver se o motor pegava. O motor no pegava de jeito nenhum e eu comecei abrincar com o barulho do motor, porque quando voc roda faz tacatacataca... taca... taca... ta...

    ca... [barulho de motor] e morre. Fiquei imitando o som do motor morrendo. O pessoal ficavaapavorado cada vez que o motor morria.

    Eram quase seis horas da tarde quando surgiu uma embarcao grande da Bahia que estavapescando l fazia quase um ms. A embarcao foi entrando para Cabo Frio, ns fizemos sinalpedindo socorro, ela veio e nos rebocou. Fomos entrando em Cabo Frio, passando pela Ilha e atardinha estava caindo, o sol morrendo e a gente comeou a brincar. Eu cantei: O barquinho vai, atardinha cai, mas s isso.

    No dia seguinte, o Ronaldo Bscoli meu parceiro na letra perguntou para mim: Beto, como era aquela coisa que voc estava cantando do motor? E eu comecei a cantar:

  • O barquinho vai, a tardinha cai... Isso no, disso eu me lembro, mas como era aquela coisa que tinha um ritmo legal? Eu no sei

    se fiz igual, mas me lembrei do som do motor, fiz uma melodia em cima e fiquei repetindo. Tivemosa felicidade de fazer essa msica, de quase que receber essa msica pronta e tomamos conta dela.

    A bossa-nova tinha um dom quase que geral de transformar tudo em coisa boa, mesmo que ascoisas no fossem boas. Estvamos numa situao realmente perigosa e sei l o que seria da vida,porque o prximo porto que tinha dali era a frica, pois no havia nada no meio.

    Apesar disso, no dia seguinte, transformamos aquela situao em um dia de luz, festa de sol enum dia bonito da vida da gente.

    Ns e o mar

    Ns e o mar resultante das nossas pescarias em Cabo Frio. Um dia, terminamos a pescaria napraia onde pegvamos o barco e eu falei:

    Ronaldo, vou sair dessa enseada e vou pro outro lado para ter uma noo de como o mar vaiestar amanh.

    Fomos de carro, subimos uma duna e sentamos na areia. A tarde estava linda.(Sabe aquela hora do dia que tudo fica bonito, que o sol est morrendo? Acho que o final da tarde

    a hora mais bonita do dia.) Vai estar bacana, amanh o mar vai estar bom falei.E a, fomos ficando praticamente sem falar nada, olhando a paisagem. A, o Ronaldo escreveu:L se vai mais um dia assim /E a vontade que no tenha fim /Esse sol /E viver, ver chegar ao fim /Essa onda que cresceu morreu /A seus ps. a histria do nosso dia e a nossa vontade que o dia no acabasse.A vem uma reflexo que fala da paisagem:E olhar /Pro cu que to bonito /E olhar /Pra esse olhar perdido nesse mar azul /Uma onda nasceu /Calma desceu sorrindo /L vem vindo.A comea a realidade. final do dia, a praia comea a desaparecer. A tarde est acabando e a

    noite comea a chegar.L se vai mais um dia assim /Nossa praia que no tem mais fim /Acabou /Vai subindo uma lua assim /E a camlia que flutua nua no cu.Nossa praia que no tem mais fim acabou, porque vai chegando a noite, voc vai perdendo a

    viso da paisagem. Ento, daquela praia imensa de 12 quilmetros, voc s consegue ver quatro,

  • depois comea a ver s mil metros. A viso vai diminuindo cada vez mais e a acabou o dia."

    Balansamba

    Quando Lcio Alves ouviu a msica Balansamba, disse: Poxa, essa msica muito interessante!E acabou que o titulo do disco que ele gravou com msicas minhas ficou Balanamba.Musicalmente falando, Balansamba uma msica toda quebrada e eu achava isso muito

    natural. Na hora de escrever o arranjo para o disco do Lcio foi um pouco difcil, mas o maestro que tinha a cabea bastante aberta falou:

    Se voc est tocando e est soando bem, a gente tem que dar um jeito de acertar issotecnicamente e botar no papel.

    A, ele fez o arranjo e ns fomos gravar com uma orquestra de uns vinte msicos. Quando osmsicos comearam a tocar, um flautista muito mal-humorado no me lembro o nome dele falou:

    No vou tocar essa porcaria, no!Guardou a flauta e foi embora.Eu tomei um choque com aquilo. De repente, outro msico levantou e disse: Desculpa, mas eu tambm no vou gravar isso, no! Tocando isso, estamos promovendo um

    negcio que musicalmente errado.Mais uns cinco msicos se levantaram e tambm foram embora. Ficou aquele clima no estdio,

    n? Pensou-se at em tirar a msica do disco, mas a, Jorginho da Flauta, um msico maisesclarecido, pediu para que eu tocasse a msica e falou:

    P, t soando bem. Olhando a partitura tecnicamente, a gente v que quebrado.Mas t soando bem, ento vamos gravar! Esqueam um pouco a tcnica, vamos ver as notas que

    esto escritas e vamos sentir a msica.Acabou dando certo: gravamos e ficou muito legal.Mas naquele dia quase desisti de ser msico porque pensei que estava fazendo tudo errado,

    achando que tudo estava certo. Foi bom, porque aprendi que as coisas no so to radicais assim. Abossa-nova fez isso, lanou muita coisa que era considerada at errada na poca.

    Ah!, se eu pudesse

    Quando Nara Leo e Ronaldo Bscoli terminaram o namoro, ele fez essa letra pensando nela enas coisas que tinham acontecido. (No sei se algum dia ela soube que a msica foi feita para ela.)Ele estava muito arrependido pelo que tinha feito. Em um trecho, ele fala daquela nossa fase de ir aCabo Frio nos finais de semana:

    Ah!, se eu pudesse /No fim do caminho /Achar o nosso barquinho e lev-lo ao mar.At hoje, quando toco essa msica, me lembro muito da Nara.Essa msica veio de uma poca que em poucos meses eu escrevi muitas msicas. Estava numa

    poca muito frtil, foi na nossa fase do amor; fazamos msica porque vivamos aquilo.O Tom gostava muito dessa msica. Um dia, ele ligou pra mim e disse:

  • Menesca, estou com uma msica sua aqui e estou adorando.A, fui para casa do Tom todo feliz de ouvir que ele estava adorando a minha msica.Ele j estava tocando a msica quase toda, quando pediu para eu ensin-lo a tocar a msica

    inteira, e ficamos na casa dele tocando at as quatro horas da manh. Naquele momento, eu atpensei: Essa msica deve ser legal mesmo, o Tom gostou tanto.

    A morte de um deus de sal

    Sempre que amos a Cabo Frio, saamos para pescar com o mesmo barqueiro e ele se tornoumuito amigo da gente.

    Um dia, fomos a Cabo Frio cheios de animao para mais um dia de pesca.Quando chegamos a Arraial do Cabo, vimos uma multido de pescadores na praia de onde

    sempre saamos para pescar. Chegamos perto para ver o que tinha acontecido e vimos que estavamtrazendo o corpo desse nosso amigo barqueiro. Ele tinha sado para pescar numa canoa pequena. Umpeixe grande fisgou o anzol, a linha se embaraou nele e encontraram o peixe e ele mortos, boiandono mar.

    Para ns, aquilo foi um choque muito grande, porque no tnhamos muitos choques desses navida. Ainda estvamos no comeo de uma vida que seria muito interessante dali em diante eficamos atnitos. No sabamos o que dizer ou o que fazer. Resolvemos fazer uma msica para ele,porque era a nica homenagem que poderamos prestar a algum que havia nos proporcionado tantosmomentos bons.

    A msica comea assim:Fim /Morreu Joo /Joo do mar /Deus quem quis levar /Quem levou pro fim /Um deus do mar /Que outro deus matou /Que pescar pescou /Mas que no voltou.A morte de um deus de sal no uma msica to conhecida, mas nossa homenagem, em que a

    gente conta a histria desse pescador que era um deus do mar.

    Voc

    Um dia, Ronaldo falou assim pra mim: Beto, eu t fazendo tantos shows com duplas... Por que a gente no faz uma msica pra duas

    pessoas cantarem, cantando uma para outra? Como? Uma fala uma coisa e a outra responde.A, a gente fez:Voc /Manh de todo meu /Voc /Que cedo entardeceu /Voc /

  • De quem a vida eu sou /E sei, mas eu serei.Ento fizemos essa msica encomendada por ns mesmos. Voc tem um tema meio jazzstico.

    Uma msica que ficou muito conhecida.

    Vagamente

    Bscoli e eu tnhamos marcado de ir a algum lugar e combinamos que ele passaria na minha casa.Quando chegou, ele disse:

    Vamos l, que ns j estamos atrasados. Deixa s eu te mostrar uma msica que fiz hoje. Ento mostra a.Mostrei a msica e ele disse: Gostei muito. O que essa msica te lembra? Ronaldo, no pensei em nada, no... Mas me d uma pista! (Sempre que algum faz uma msica, pensa em alguma coisa, o que

    pode ser uma dica para o letrista.) Poxa, eu t me lembrando vagamente de alguma coisa... T bom, essa pista j basta.Ele pegou a frase dita por mim e fez a msica em cima disso. Eu ia fazer um disco com a Wanda

    S e quando terminamos essa msica, resolvemos lanar juntos (eu e Wanda).O disco dela tambm ficou com o nome Vagamente. No compusemos essa msica pensando na

    Wanda, mas quando ficou pronta, achamos que era pra ela.

    Copacabana de sempre

    Em 1992, quando o bairro de Copacabana comemorou 100 anos, o jornal O Globo encomendouuma msica para um disco com canes sobre Copacabana. Ento, Ronaldo e eu compusemosCopacabana de sempre, que foi a ltima msica que fizemos juntos.

    Fizemos essa msica meio que contando a histria da gente. H umas frases muito bonitas namsica. A letra uma viagem por Copacabana. s ouvir a msica que voc vai entender o queestou falando.

  • Bastidores da msica

    A gente no escolhe a vida muito, no. Ela vai levando a gente. Ela escolhe o que a gente vaifazer.

  • Elis Regina

    Em 1968, a Elis me convidou para fazer uma temporada de shows no Pdo de Janeiro e, logo emseguida, veio um convite para tocar no Midem, que uma feira de msica que acontece em Cannes,na Frana. Estvamos tocando e nosso produtor recebeu uma proposta de um produtor europeu paraque comessemos uma turn pela Europa no dia seguinte. Aceitamos e fizemos uma turn de um mspela Europa. Nessa turn, gravamos um disco na Sucia com o Toots Thielemans um dos maioresgaitistas chamado Aquarela do Brasil Elis Regina e Toots Thieleman.

    Voltamos para o Brasil e fomos convidados a fazer uma gravao em Londres. Gravamos o discoElis Regina in London junto com o meu grupo e com uma orquestra grande. Gravamos esse disco emdois dias e logo em seguida fomos convidados para fazer outra turn pela Europa, comeando peloOlympia, que uma das casas de shows mais famosas na Europa. Ento, fizemos uma srie de outrosshows, rodamos o Brasil e fizemos muita coisa por aqui.

    Terminamos nossa turn em Londres. Estvamos em turn fazia um ms e eu j estava sufocadopor aquele ritmo acelerado da Elis, que eu no conseguia acompanhar. Era 23 de dezembro, nossoltimo dia em Londres, e ela falou assim:

    Sai comigo que eu quero fazer umas compras. Tomara que sejam as ltimas mesmo... (Ela j estava com seis malas cheias.)As ruas de Londres estavam todas lotadas, os lugares estavam aquela loucura... Ela comprando,

    eu carregando aquelas sacolas e dizendo: Elis, vamos embora? No d para levar mais nada!Passamos pela esquina da Oxford Street com a Regent Street, onde havia uma loja enorme s de

    noivas. Ento, a Elis falou: Pera que eu tenho que entrar nessa loja. Para qu, Elis? O que voc vai comprar? Voc j casada! Mas eu tenho que ver umas coisas! Ento eu te espero aqui na esquina porque no aguento mais entrar em lojas. (Eu j estava

    sentindo como se estivesse ficando maluco! Aquela movimentao, gente por tudo quanto lado...) Ento me espere aqui.Ela entrou na loja, eu olhei para o lado onde ficava a entrada do metr. No aguentei e desci a

    escada rolante para o metr. Cheguei ao hotel, entrei na banheira pra me acalmar, mas sabia queassim que ela chegasse iria telefonar pra mim.

    O telefone tocou e ela j comeou dizendo meio brava: Voc...E eu falei no mesmo tom: Como que voc me deixa no meio daquela rua, cheio de embrulhos e some? A, ela ficou

    meio sem jeito e disse: Ah, desculpa, que eu no te achei mais...Eu no tive coragem de dizer que fugi dela.Samos de Londres, pegamos um avio para o Rio. Sentei na poltrona da janela, ela sentou ao

    lado. Peguei um livro, ela pegou um livro tambm e ns ficamos lendo em silncio. De repente, elavira pra mim e diz:

    Voc pensa que eu vou ser uma Elizete Cardoso, que precisa ficar cantando com mais desessenta anos pra sobreviver? No vou, no! Voc vai ver que eu no vou.

    E eu disse:

  • No t pensando nada. Estou aqui lendo!Anos depois, quando ela morreu, a primeira coisa que me veio cabea foi essa imagem dela

    dizendo que eu no a veria com mais de sessenta anos cantando.Parei de trabalhar com a Elis em 1970 e foi quando eu entrei para a PolyGram. O ritmo de

    trabalho com Elis era sempre muito acelerado, foi o ritmo de trabalho mais acelerado que conheci naminha vida. Depois entendi que a Elis viveu naquele ritmo alucinante porque viveu uma vida inteirana metade do tempo; tudo aquilo que a gente faria numa vida inteira, ela fez na metade do tempo!

    PolyGram

    No final da dcada de 1960 eu tocava com Elis Regina. Toquei com ela uns dois anos e, nessetempo, gravamos discos, fizemos turn, viajamos bastante. Mas a Elis era uma pessoa intensa e vocno consegue lidar com isso com muita facilidade. Essa poca foi tima, mas fiquei muito tenso.Chegou um ponto em que no consegui mais acompanhar aquele pique todo dela.

    Tenho um grande amigo, Andr Midani, que na poca era presidente da PolyGram e todos ossbados e domingos a gente andava pela praia e conversava sobre trabalho. (Na poca, eu tocavacom a Elis, mas j fazia uns trabalhos para a PolyGram.) Um dia, falei pra ele:

    Andr, vou parar de trabalhar com a Elis. No faz isso, Roberto, a carreira dela est to boa! Eu sei, mas estou querendo fazer outras coisas. Tem certeza? Sim, estou decidido. Ento, quero voc l na PolyGram. Como? Eu quero voc l como contratado da PolyGram. Empregado da PolyGram? Hum... mas eu nunca fui empregado... Mas eu estou te fazendo uma proposta. Tem que ir todos os dias? Claro, Roberto! Voc ser um empregado da PolyGram! Ento me d uns trs dias para pensar.Pensei, voltei a conversar com ele e acabei aceitando ser produtor. Trabalhei quase um ano como

    produtor e logo depois ele me props ser o diretor artstico da gravadora, cargo que ocupei por 15anos.

    Ditadura: um jogo de co e gato

    Phono 73Tinha muita gente importante no cast da PolyGram. Na ocasio, a revista mais famosa era a

    Manchete e resolvemos mostrar nosso tamanho (isso deve ter sido mais ou menos em 1972):compramos as pginas centrais da revista e colocamos uma foto com todos os nossos artistas eprincipais executivos ligados msica. O ttulo era: S nos falta o Roberto [Carlos], e isso foi umescndalo no mercado. A repercusso foi uma loucura!

    Na mesma poca, fizemos trs dias de show no Teatro Anhembi, com todo o nosso cast, chamadoPhono 73 (Phono, porque na poca a gravadora se chamava Phonogram, hoje Universal). Nesseshow, s vezes, formvamos duplas inusitadas, como, por exemplo, Caetano Veloso cantando comOdair Jos (eles cantaram a msica Eu vou tirar voc desse lugar).

    Para esse show, Chico Buarque e Gilberto Gil fizeram uma msica chamada Clice, que erauma meno poca, ditadura. Mas a msica foi vetada pela censura e no poderia ser

  • apresentada. Chico e Gil disseram que queriam cantar de qualquer maneira. Ento, decidimos queeles cantariam a msica, mas havia o risco da polcia entrar no meio.

    Esses trs dias de show estavam sendo gravados e eu estava l em cima, trabalhando nagravao. Eles comearam a cantar, um cara da censura subiu correndo at o lugar onde eu estava efalou:

    Para, para! Tira o som!E eu tirei o som da sala, mas continuei gravando. A o cara olhou para baixo e viu que eles

    continuavam cantando. Mas os caras continuam cantando! Tira o som!A, eu disse: Voc pediu pra tirar o som, eu tirei o som daqui, mas o som l de baixo no sou eu quem

    controla.O cara saiu correndo, e Chico e Gil foram impedidos de cantar o fim da msica.Quando o show acabou, todo o mundo teve que ir delegacia de polcia, e acabou dando um rolo

    danado!

    Voc no entende nada

    A ditadura foi um perodo grande e antes de gravar as msicas, a gente tinha que mandar todaspara a censura, para eles avaliarem se ia poder gravar ou no. E foi a que comeou um jogo de co egato.

    Quando Caetano fez aquela msica Voc no entende nada, ele dizia: Eu como, eu como, eucomo, eu como, eu como / Voc, e eu vi que seria muito difcil isso passar pela censura. Entoreescrevi a letra antes de mandar para eles e fiz uma pequena modificao na forma: Eu como, eucomo, eu como, eu como, eu como a, pula uma linha, Voc no est entendendo quase nada do queeu digo.

    A msica foi aprovada pela censura, mas na gravao dizia: Eu como, eu como, eu como, eucomo, eu como / Voc. L na censura, ficaram irados e me chamaram, e queriam me prender! A,tentei explicar, disse que foi gravado desse jeito porque precisava de uma pausa para respiraoentre uma frase e outra...

    Escondendo a ndia

    Lembro-me tambm de um disco da Gal Costa chamado ndia. A foto da capa ela vestida dendia com os seios de fora. A, quando a censura viu aquilo, disse:

    Vocs no podiam lanar o disco com essa capa. Mas vocs no pediram pra ver a capa... Vocs tm que tirar esse disco do mercado. No podemos... Ou vocs do uma soluo ou tiram do mercado.Ento, dei uma soluo: colocamos o disco dentro de um saco plstico azul, que escondia a foto,

    e isso fez aumentar as vendas do disco, porque todo mundo queria ver a capa.A censura dava essas bobeadas que acabavam por chamar ainda mais a ateno para o produto.

    Tivemos de ser muito criativos nessa poca!

  • Eu nem tinha percebido...

    Outra vez, tambm aconteceu que ns lanamos um disco do Bob Marley e a censura me chamou.Tive que ir Polcia Federal que era barra pesada e resolvi levar um advogado porque jestava ficando preocupado, com medo de ir e acabar no voltando mais para casa. Chegando l, ocara falou para mim:

    Como voc faz vim negcio desses? induo ao uso da maconha. O que foi que eu fiz? A capa do disco induz a garotada ao uso da maconha! Olha, eu realmente no sei do que voc est falando. Posso ver a capa? Eu olhei a capa e

    disse: Realmente, no estou vendo nenhuma relao com a maconha... Voc muito cnico mesmo... Vire a capa.Quando virei, vi que a capa era inteira uma folha de maconha. Eu nem tinha percebido isso,

    porque a gente lanava muitos discos internacionais por ms e acabou passando...Ele pensou que eu fosse cnico e quis me prender, mas eu realmente no tinha visto aquela capa.

    A gente vivia o tempo todo nesse perigo.

    Julinho da Adelaide

    O Chico Buarque estava sem poder gravar porque todas as msicas dele eram censuradas.(Tinha sido, inicialmente, aprovada pela censura uma msica dele chamada Apesar de voc

    que eu no sei se ele fez pensando na ditadura, mas que todo mundo comentou que sim, e por isso elaacabou sendo vetada depois. Por isso, comearam a vetar tudo que o Chico fazia, mesmo as msicasque no tinham nada a ver com protesto, porque j desconfiavam que poderia haver uma mensagempor trs.) A, eu fiz uma reunio com o Chico e disse:

    Chico, eu tenho uma ideia. Grave um disco todo com msicas de outras pessoas, j aprovadaspela censura, que uma forma de voc lutar, de protestar por no ter o direito de gravar as suascomposies.

    Mostrei a ele uma msica chamada Sinal fechado, que o Paulinho da Viola havia feito, e disseque achava que esse devia ser o ttulo do LP, porque a ficaria Chico Buarque. Sinal fechado, eficaria na cara a mensagem que a gente queria passar. O Chico gravou o disco inteiro com msicasdos outros e teve ento a ideia de fazer uma msica e usar um pseudnimo.

    Ele fez uma msica chamada Acorda amor, assinou como Julinho da Adelaide, mas ningumsabia que era o Chico. A censura aprovou a msica do Julinho da Adelaide e, dois meses depois pelo boca a boca -, todo o mundo ficou sabendo que o Julinho da Adelaide era o Chico. A censuraficou uma fera com a gente, mas juramos at o fim que a msica era do Julinho da Adelaide.

    0 futuro mago, o maluco beleza e eu Quando contratei o Raul Seixas, o Paulo Coelho chegou comele. Perguntei ao Raul:

    Mas quem o Paulo? Paulete (ele chamava o Paulo de Paulete) o cara com quem eu faotudo... Fao letra e tal, o cara com quem vou fazer isso, fazer aquilo...

    Tudo o que era difcil de negociar, tudo que era coisa que ele queria falar, era o Paulo quemfalava e fazia por ele.

    O Paulo dizia: O Raul no vai fazer isso de jeito nenhum.

  • Vou falar com o Raul eu dizia. No adianta...Ento, ele era o escudeiro do Raul. Paulo ficou aquela pessoa antiptica para mim, porque eu

    brigava muito com ele. Tudo o que eu tinha que brigar com o Raul, briguei com o Paulo. No final,fomos nos aproximando e acabamos fazendo toda aquela estratgia de lanamento do Raul: a gentebolou umas loucuras, como o Raul cantando no meio da rua (esse foi o primeiro show feito no meioda rua l na avenida Rio Branco), discos voadores no show... Ns trs bolvamos muitas coisasdiferentes.

    Conheci o Paulo em meio a brigas, fomos ficando amigos e somos grandes amigos at hoje. Ele uma pessoa incrvel!

    Convidei o Paulo para trabalhar comigo na PolyGram e abrimos um departamento criativo, ondea gente preparava toda a estratgia de lanamento, redigia os artigos para a imprensa e fazia msicascom o artista.

    Paulo Coelho: quero ser escritor!

    O Paulo foi meu funcionrio na PolyGram durante uns cinco anos e quando trabalhava l, elevivia dizendo:

    Eu preciso sair daqui, porque quero ser escritor.E eu dizia: Paulo, mas voc vai sair pra qu? Escreva livro e continue na PolyGram.At que um dia, ele falou: Roberto, vou sair. Vou para Londres.Isso foi em 1978/79... no sei bem.Ele foi e passou um ano por l, escrevendo.Todas as segundas-feiras, eu mandava uma carta para ele e ele mandava uma para mim (as nossas

    cartas se cruzavam no meio do oceano) e, no final do ano, eu falei: Paulo, qual a realidade? Voc escreveu, escreveu... e ningum lanou nada seu. Volta pra c. Roberto, no posso. Se fizer isso, estarei assinando o meu fracasso... A no ser que voc

    venha me buscar, porque a eu posso voltar e dizer que voltei porque voc foi me buscar.Fui para l, passei 15 dias com ele e voltamos juntos. Ele trabalhou na PolyGram por quase dois

    anos at decidir que tinha mesmo que ser escritor. Foi a que ele estourou e o que aconteceu depoistodo o mundo j sabe.

    Bye bye, Brasil

    Um dia, o Cac Diegues marido da Nara Leo que era muito meu amigo, falou: Queria fazer um jantar aqui em casa e convidar voc e o Chico Buarque. T legal, mas por qu? que eu queria conversar com vocs.Fiquei sem saber o que ele queria. Apesar de eu ser produtor do Chico, ns no tnhamos

    amizade e a gente s se encontrava no ambiente de trabalho.No dia do jantar, Cac disse: Eu quero encomendar uma msica para vocs, para um filme que eu estou fazendo, chamado

    Bye bye, Brasil.Chico e eu nunca tnhamos feito msica juntos, mas Cac disse:

  • Tenho certeza que vai dar certo fazer essa mistura de vocs.Combinamos que primeiro eu faria a msica e mandaria para ele colocar a letra. Eu estava

    superempolgado com a coisa e, no dia seguinte, fui a So Paulo eu sempre ia a So Paulo evoltava no mesmo dia e na volta, o piloto disse que teramos que aguardar enquanto ele resolviaum problema tcnico, e que no valeria nem a pena descer do avio porque seria muito rpido.

    Eu estava na poltrona do meio, entre dois caras enormes. Cada um ocupou um brao da minhapoltrona e eu fiquei espremido. Tirei um papel do bolso, fiz uma pauta e resolvi fazer a msica Byebye, Brasil ali mesmo. O ttulo Bye bye, Brasil tinha ficado na minha cabea. Escrevi quatro notase pensei: est bom, j tenho a ideia. Cheguei em casa e fiz a msica. Chamei o Cac, que era meuvizinho, mostrei a msica e ele disse:

    Rapaz, isso mesmo. S que voc no pode definir um ritmo; no pode ser samba, choro...nada disso, porque a msica se passa em todos os lugares do Brasil.

    Mandei a msica para o Chico e dois meses depois a letra ainda no estava pronta.Cac disse: Vamos dar mais um ms. Mais do que isso no posso esperar.Gravamos a trilha toda do filme e o Cac falou: Vamos mixar o disco e a msica vai ficar sem letra mesmo.Estvamos no estdio mixando, quando de repente o Chico entrou. Ele foi largando no cho uns

    vinte papis, um grudado no outro, que era a letra de Bye bye, Brasil. (A letra da msica grande,no ? Ela era umas dez vezes maior.) A, o Cac pegou uma tesoura, cortou uns trs papis daquelese disse:

    Pra mim, isto o suficiente.Chico gravou, a msica foi para o filme e fez muito sucesso.No tempo que trabalhei na PolyGram, no compunha, nem tinha mais instrumento, porque resolvi

    produzir, tratar da carreira de outras pessoas, e achei que no podia ficar fazendo msica enquantoestava julgando msica dos outros. De repente, um artista poderia resolver gravar uma msica minhae eu no saberia se ele queria gravar porque gostava realmente da msica ou porque eu era o diretorartstico dele. Sei l! Ento, achei que no era tico da minha parte fazer msica nesse perodo. Anica msica que fiz nessa poca foi Bye bye, Brasil.

    Uma proposta irrecusvel? Nessa poca, estava entrando no Brasil uma gravadora alemchamada Ariola e estava vindo com toda a fora, e dinheiro /rue no acabava mais. Eles marcaramuma reunio comigo e queriam me levar para l.

    No quero sair da PolyGram, estou bem l eu disse. Est bem, mas a hora que eu te fizer a proposta, voc vai mudar de ideia.A proposta que eles fizeram realmente me fez parar para pensar. Era irrecusvel:eles me convidaram para ser o presidente da Ariola. Ficamos conversando e tomando uns

    drinques at tarde, e quando cheguei em casa, minha mulher falou: Nara teve um problema, foi pro hospital e parece que grave.Cheguei ao hospital s trs horas da manh e ningum sabia direito o que estava acontecendo. A

    Nara havia cado e batido a cabea, e no se sabia se ela tinha cado por causa de um problema nacabea ou se ela teve o problema por ter batido a cabea.

    O mdico que estava cuidando dela sentou-se ao meu lado e comeou a dizer: Pois , eu conheo a Nara muito bem, sei que voc tambm. Nara assim: voltou a estudar,

    foi fazer faculdade, j queria ser a primeira da classe; se e a comeasse a correr na praia, ia querer irpras Olimpadas... Ela quer sempre fazer tudo o melhor possvel. Eu falo pra ela: No precisa

  • disso, Nara, vai devagar.E ele comeou a falar aquilo como se fosse pra mim. Claro que ele no falou isso diretamente pra

    mim, mas pensei: Porque voc vai sair da PolyGram e vai pra outra gravadora s porque ela vai tedar mais dinheiro e tal?. Naquela hora, decidi que no iria para a Ariola.

    No dia seguinte, eu teria que assinar o contrato. Fui para o encontro, muito envergonhado, equando os alemes chegaram, eu disse:

    No vou assinar com vocs.Na hora, eles ficaram vermelhos de raiva e eu tentei explicar: Tenho uma razo muito forte para isso. Voc teve uma contraproposta? No, a PolyGram no sabe que eu ia sair.Continuei na PolyGram e eu sabia de toda a estratgia, de todos os truques da Ariola, porque eu

    sabia de tudo o que eles pretendiam. Eles queriam levar para l o Chico, o Caetano, o MiltonNascimento... Um monte de gente, a maioria da PolyGram. Eu conhecia a proposta que eles fariampara cada um e sabia que tinha alguns milhes de dlares no meio.

    Cheguei PolyGram, contei pra eles o que estava acontecendo e disse que eles levariam todos osartistas que pudessem. No levariam todos, porque os artistas tinham contratos a cumprir. O prprioChie rinha acabado de assinar um contrato de trs anos que havia sido feito por um tio dele que eraadvogado era o nico contrato da PolyGram que no havia sido feito por ns.

    Marquei um encontro com o Chico e conversei com ele. Chico, eu sei de tudo. Fui convidado para ser presidente da Ariola, mas no aceitei. o

    seguinte, voc vai querer sair, com toda a razo, mas a PolyGram, por outro lado, no vai querer quevoc saia porque ela tem contratos assinados com os artistas.

    P, mas eu j fiz muito pela PolyGram... Chico, numa boa, a PolyGram tambm j fez muito por voc. A PolyGram apostou muito em

    voc quando voc ainda nem vendia disco. Ento, vamos procurar fazer uma coisa que seja boa,porque a eu posso lutar l dentro pra te liberar. Eu no tenho como chegar l e dizer:

    Libera o Chico que ele vai ganhar uma grana. Mas o que voc sugere? Eu sugiro o seguinte. Voc deve trs discos PolyGram. No faz

    os trs, faz um s.Voc pode cantar as suas msicas em espanhol. Assim, no precisa compor msicas novas. s pegar as gravaes, tirar a sua voz em portugus e colocar a sua voz em espanhol. A, a

    gente consegue atender o mercado de msica em espanhol que gosta muito de voc.Ele gostou da ideia e concordou em fazer o disco.Duas ou trs semanas depois aconteceu uma premiao no Copacabana Palace. Estavam l vrios

    artistas, mas eu no vi o Chico. Quando anunciaram a nossa msica como a melhor do ano, Toninhode Moraes que era o procurador do Chico subiu ao palco e disse:

    Chico Buarque manda agradecer muito este prmio, mas ele no pode vir aqui receber ao ladoda pessoa que o impede de continuar sua carreira. (Fiquei sabendo que depois da nossa reunio, oChico havia resolvido no fazer o disco em espanhol.)

    Na hora, a imprensa toda veio para cima de mim perguntando: O que voc diz? No digo nada! No tenho nada a dizer, porque foi o Chico quem disse

    isso. Ento, vocs tm que perguntar a ele e no a mim. Mas o que voc acha da atitude dele? No acho nada! No vou me pronunciar.A, ficou aquela confuso. A Simone me defendeu muito e eu estranhei, porque no tnhamos uma

    relao muito prxima. Muitas pessoas me apoiaram, inclusive o Arrigo Barnab, que eu tambm no

  • conhecia.Fiquei quieto e at hoje estou quieto sobre esse assunto e o Chico tambm no falou nada.

    A imprensa publicou muita coisa sobre isso. Depois, o Chico topou fazer o disco em espanhol. Eumesmo lutei pela liberao dele e ele foi para a Ariola.

    Oficialmente, a imprensa nos brigou e ns nunca mais nos falamos. Ns nos cruzamos umasduas vezes depois disso e nos olhamos bem. Ento, isso j me deixou feliz.

    0 contrato de 1 dlar

    Muitos artistas deixaram suas gravadoras e foram para a Ariola. Logo, ela passou a ocupar oprimeiro lugar no mercado.

    A Ariola dava festas incrveis, jantares, presentes... Mas eu achava que eles no podiam estarganhando dinheiro gastando da maneira como gastavam, porque disco no rende esse dinheiro todo.No deu outra, uns trs ou quatro anos depois, a Ariola faliu.

    (Eles no declararam falncia oficialmente, faliram na moita.) O pessoal da Ariola fez umareunio secreta com a PolyGram e disse:

    Vamos sair do mercado brasileiro e queremos fazer uma negociao com vocs. No estamos interessados em comprar a Ariola. Ns queremos dar a Ariola para vocs. Mas como? Damos os contratos, os discos, os artistas... Damos tudo para voc