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Terra Indígena Xukuru Kariri: Horta agroecológica em mandala, Dona Marlene Santana da Silva, Gecinaldo Soares de Queiroz cultivando, criança pensativa, convivendo na ciranda, “Seu” Antônio Selestino da Silva – Fotos: Patrícia Bonilha ISSN 0102-0625 Ano XXXV • N 0 358 • Brasília-DF • Setembro 2013 – R$ 5,00 O BEM VIVER COMO RESPOSTA Diante de todas as históricas adversidades, povo Xukuru Kariri busca inspiração nos saberes ancestrais e se reorganiza para conseguir de volta o seu território tradicional. A produção de alimentos saudáveis combinada com a preservação da natureza e os rituais sagrados trilham um caminho de vanguarda, expresso na fala de uma experiente liderança: “Queremos viver o que somos”. Páginas 8 e 9 Conjuntura: Ruralistas insistem em rasgar a Constituição Páginas 2 a 5 Mato Grosso do Sul: um lugar sem direitos humanos Página 6 Morosidade do governo estimula retomadas de terras Páginas 10 e 11

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Em defesa da causa indígenaAno XXXV • N0 358 • Brasília-DF • Setembro 2013 – R$ 5,00

O BEM VIVER COMO RESPOSTADiante de todas as históricas adversidades, povo Xukuru Kariri busca inspiração nos saberes ancestrais e se reorganiza para conseguir de volta o seu território tradicional. A produção de alimentos saudáveis

combinada com a preservação da natureza e os rituais sagrados trilham um caminho de vanguarda, expresso na fala de uma experiente liderança: “Queremos viver o que somos”.

Páginas 8 e 9

Conjuntura: Ruralistas insistem em rasgar a

ConstituiçãoPáginas 2 a 5

Mato Grosso do Sul: um lugar sem direitos

humanosPágina 6

Morosidade do governo estimula

retomadas de terrasPáginas 10 e 11

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2Setembro–2013

Constituição ameaçada pelos ruralistas

Porantinadas

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Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Erwin Kräutler Presidente do Cimi

Emília AltiniVice-Presidente do Cimi

Cleber César BuzattoSecretário Executivo do Cimi

REPORTAGEM:Ruy Sposati (MS) e J. Rosha (AM)

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EDITORESRenato Santana – RP: 57074/SPPatrícia Bonilha – RP: 28339/SP

CONSELHO DE REDAÇÃOAntônio C. Queiroz, Benedito Prezia, Egon D. Heck, Nello Ruffaldi, Paulo Guimarães,

Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e

Lúcia Helena Rangel

Artigo

Dom Erwin Kräutler Dom Enemésio Lazzaris*

Aos ruralistas, seja na tribuna do Congresso Nacional ou pelos jornais, não há o que os leve mais ao descontrole do que a

causa indígena. Descontrole expresso em uma escalada de recursos contra os direitos destes povos e de comunida-des tradicionais garantidos pela Cons-tituição, prestes a completar 25 anos.

Um destes recursos é a Proposta de Emenda à Constituição 215/00, que transfere a competência da demar-cação de terras indígenas do poder Executivo para o Congresso. Proposta que, segundo Nota Técnica do Minis-tério Público Federal (MPF), afronta “cláusulas pétreas da Constituição da República” e viola o núcleo essencial de direitos fundamentais. Fere a di-visão dos poderes e anula o direito originário à terra, sendo a demarcação ato administrativo, segundo os juristas Carlos Frederico Marés e Dalmo de Abreu Dallari.

À PEC 215, se somam dezenas de outros projetos de lei, que tentam impedir o reconhecimento de terras indígenas e favorecer o uso delas pelo agronegócio. Nada parece deter os ruralistas, que ostentam uma bancada de 214 deputados e 14 senadores, com campanhas eleitorais financiadas pelo capital estrangeiro da Monsanto, Cargill e Syngenta, além da indústria de armas e frigoríficos (cf. dados da Transparência Brasil).

O que esperar dos povos indí-genas, quilombolas e comunidades tradicionais a não ser a resistência, tal Davi contra Golias, em defesa de seus direitos? Assim foi em abril, quando indígenas ocuparam a Câmara Federal, e tem sido assim na retomada de terras tradicionais, com procedimentos de-marcatórios paralisados pelo Executi-

A

Jogo dos sete errosA senadora ruralista Kátia Abreu

(PMDB/TO), também presidente da Confederação Nacional da Agropecuária (CNA), escreve aos sábados no jornal Folha de S. Paulo com ares de colunista importante. Não bastasse o desserviço existencial da ruralista, agora o ar de sua graça toma forma em linhas e parágra-fos, sempre pontuados por dados e no que ela acha bom aos povos indígenas. O jornal, todavia, decidiu se atrelar a tal escambo de informações. A questão indígena, portanto, é tratada por uma fazendeira no caderno de economia. A coluna da ruralista se adequaria melhor ao jogo dos sete erros da Folha.

Grande feirão Liquida Tudo!

Nas grandes cidades é bastante comum ruas ou centros tornarem-se pontos de feiras populares e de co-mércios. Em Brasília tais concentrações estão na Esplanada dos Ministérios. Porém, ao invés de produtos diversos o que se vende lá é o próprio país. Estamos em verdadeira liquidação. Os ruralistas querem terras, as construtoras querem obras, multinacionais querem o petróleo, empresas aeroportos e estradas, as mineradoras triplicar a produção. O setor elétrico quer agora um “balcão único” no licenciamento ambiental de projetos de energia. Tem “muita burocracia” para gastar bilhões em hidrelétricas a fio d’água, destruir o meio ambiente e expulsar comunidades de seus territórios. A Eletrobrás assina embaixo.

(De)Serviço Florestal Brasileiro

Este ano já foram três editais do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para permitir, a partir de 2014, a exploração de 1 milhão de hectares de floresta por madeireiras. Um desserviço medonho. A justificativa apresentada pela dire-ção do SFB é de que a medida evita grilagens, extração madeireira ilegal e o consequente desmatamento. A ideia começa quando Marina Silva era ministra de Meio Ambiente. O perverso, porém, é que quando o Estado decide agir a emenda sai pior do que o soneto: ao invés de combater o desmatamento pode madeireiras, a prática é legalizada via mercado. Se é para derrubar árvores, que o Estado ganhe alguns milhões.

MARIOSAN

vo, como a Terra Indígena Tupinambá de Olivença (BA), com procedimento administrativo encerrado desde 2009. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, porém, se nega a assinar a Portaria Declaratória. País afora a situação é dramática.

No Mato Grosso do Sul, a terra Kadiwéu, demarcada há 100 anos e homologada há quase 40, segue inva-dida. Relatório do Cimi registra que, de 2003 a 2012, ocorreram no estado 317 assassinatos de indígenas, dos 563 no país. No caso da morte de Nísio Gomes Guarani Kaiowá, o MPF apontou como mandantes ao menos seis “produtores rurais”. O confinamento às margens de rodovias ou em minúsculas reservas levou ao suicídio, entre 2000 e 2012, 611 indígenas, jovens entre 14 e 25 anos (Dados do DSEI).

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou, entre 30 de setembro e 05 de outubro, Mobilização Nacional contra a ofensiva à Constitui-ção e aos direitos indígenas. Cimi e CPT apoiaram, fundados nos valores do Evangelho e por dever de justiça e soli-dariedade a quem tem sido espoliado de seus territórios e de seus direitos.

Kátia Abreu, em coluna nesta Folha (Caderno Mercado 2, 7/9, pg.7) tenta desqualificar a ação destas pastorais taxando-as de “ideológicas”. O as-sentamento de famílias sobre terras indígenas, inclusive com emissão de títulos de propriedade do Estado, não nega o esbulho dos territórios. Isso não ocorre somente no caso de terras tradicionalmente indígenas. A senadora e familiares foram beneficiados pelo governo do Tocantins com terras ocu-padas por posseiros. Além de atentar contra o direito à terra dos povos e de posseiros, Kátia Abreu milita contra o direito à identidade coletiva. A sena-dora protocolou na Casa Civil pedido para que a FUNAI paralise o processo de identificação étnica do povo Kanela do Tocantins.

Os indígenas não estão solitários em suas mobilizações, pois a sociedade está atenta ao escândalo do latifúndio ruralista brasileiro.

* Dom Erwin Kräutler é bispo da Prelazia do Xin-gu (PA) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Dom Enemésio Lazzaris é bispo da Diocese de Balsas (MA) e presidente da Comissão Pastoral pela Terra (CPT). Publi-cado na edição de 17 de setembro, página 3, do jornal Folha de S. Paulo.

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3 Setembro–2013

Juristas reconhecidos, Dallari e Marés, rechaçaram a PEC 215: rejeição é uma questão de lucidez

Conjuntura

Renato Santana,de Brasília (DF)

s juristas Dalmo de Abreu Dalla-ri e Carlos Frederico Marés pediram aos deputados e de-putadas federais que rejeitem

a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000. “Espero que tenham lucidez para rejeitar a PEC. Estaremos atentos. Se forem adiante vamos ao Su-premo (Tribunal Federal - STF) e à Corte Interamericana contra esse escândalo”, enfatizou Dallari.

Apresentada pela bancada ruralista, a PEC 215, à espera de criação de comis-são especial, pretende que o Congresso Nacional autorize ou não demarcações e homologações de terras indígenas, quilombolas e áreas de preservação ambiental. Toma por base a tese da temporalidade, ou seja, as comunidades que estavam até a Constituição de 1988 na terra têm direito a ela; nos demais casos não.

Ambos definiram a PEC 215 como “absolutamente inconstitucional” durante audiência pública na Comissão de Partici-pação Legislativa, Câmara Federal, no dia 13 de setembro. Participaram do debate a liderança indígena Sônia Bone Guajajara, o autor da proposta, o ex-deputado Amir Sá, de Roraima, o relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB/PR) e Marivaldo Pereira, assessor do Ministério da Justiça.

Diante de um auditório tomado por cerca de 150 indígenas de mais de uma dezena de povos, e sob a mediação do deputado federal Lincoln Portela (PR/MG), Dalmo Dallari, atuante no processo constituinte, apontou que a PEC 215 é multiplamente inconstitucional, mas se ateve a três pontos, os quais o jurista considerou os mais graves e fundamen-tais. Opinião compartilhada por Marés.

“A proposta afeta uma regra jurídica fundamental: a separação dos poderes. A PEC propõe que o Congresso passe a aprovar ou ratificar a demarcação. Isso é um ato administrativo, do Poder Exe-cutivo (...) é o típico caso de se usar a aparência de legalidade para se avançar sobre o direito dos outros. A separação dos poderes é justamente para não se permitir isso”, explica Dallari, professor da Universidade de São Paulo (USP).

Ex-procurador estadual do Paraná e ex-presidente da Funai, Marés frisou que ato administrativo é um conceito jurídico e ato único. “O legislativo não tem que dizer qual é a terra dos povos indígenas, mas que os povos têm direito a ela”, disse. Conforme o jurista, a Constituição de 1988 garantiu o direito originário dos povos indígenas sobre suas culturas, sociedades e terras.

“Direito originário é um direito de sempre e no caso das terras independe de demarcação, que é o simples ato de dizer que a terra vai daqui até ali. O direito é a terra. A maldição da PEC é retirar esse direito. Os deputados são eleitos não para fazer atos técnicos, mas políticas e as políticas estão na Constituição”, destacou Marés de forma enfática. O jurista lembrou que enquanto os parlamentares querem legislar atos administrativos, o Estatuto dos Povos Indígenas, que é uma política pública, segue nas “gavetas do Congresso” há pelo menos duas décadas.

Terras inalienáveis Dalmo Dallari apresentou a segun-

da questão que avalia ser de extrema gravidade na PEC 215. De acordo com a proposta, as terras indígenas ficam ina-lienáveis apenas depois que o Congresso

confirmar a demarcação. “A Constituição Federal não deixa dúvida de que as terras indígenas são inalienáveis. O direito não depende da demarcação. É inconstitu-cional. As terras são inalienáveis e isso não depende do Congresso”, afirmou o jurista. Para Dallari, o desrespeito nesse ponto é “escandaloso”. Ao que Marés complementou dizendo que a PEC 215 representa um retrocesso não apara 1987, antes da Constituição, mas para o século XIX, quando não se tinha direito algum.

“A Constituição não oferece como direito a demarcação, mas a terra! Quan-do a proposta diz que as terras ficam inalienáveis apenas depois do Congresso dizer, não há mais direitos originários. Não é verdade que essa PEC reconhece os direitos do artigo 231 (Dos Índios), como dizem seus defensores, porque a proposta acaba com ele”, atacou Marés.

JURISTAS PEDEM A PARLAMENTARES REJEIÇÃO À PEC 215:

“Absolutamente inconstitucional”, dizem

O jurista que pior que inconstitucional é o fato da proposta ferir a dignidade do povo brasileiro de que se é um direito deve ser garantido.

“A lógica dessa PEC é dificultar as demarcações. Atribuir esses atos ao Con-gresso é negar o direito de se reconhecer o direito. A proposta é uma maldição que continua para as próximas gerações, porque só pode existir terra indígena depois que o Congresso aprovar. A PEC quer refazer o direito e acabar com o direito anterior”, declarou Marés.

Por fim, para os juristas, a demarca-ção é um ato administrativo e, tal como a PEC 215 propõe, é inconstitucional que o procedimento possa ser ratificado ou não pelo Congresso: “É um absurdo porque significa tirar um direito que já é do índio. O processo todo que envolve a demarcação é um ato jurídico perfeito, não tem razão de o Congresso rever ou ratificar”, defendeu Dallari.

Na opinião do jurista, “por mais que os deputados queiram, ou melhor, ouso dizer, por mais que o agronegócio queira não é possível de fazer. Vivemos um mo-mento de grande pressão do agronegó-cio. Mais terras é que o desejam, e a PEC 215 atende a isso, pois é mais dinheiro para o setor, mas e o povo? Será de fato bom para o povo?”.

“A proposta afeta uma regra jurídica fundamental: a separação dos poderes. A PEC propõe que o Congresso passe a aprovar ou ratificar a demarcação. Isso é um ato administrativo, do Poder

Executivo (...) é o típico caso de se usar a aparência de legalidade para se avançar sobre o direito dos outros. A separação dos

poderes é justamente para não se permitir isso”.

Dalmo Dallari

“A lógica dessa PEC é dificultar as demarcações. Atribuir esses atos ao Congresso é negar o direito de se reconhecer o direito. A proposta é uma maldição que continua para as próximas gerações, porque só pode existir terra indígena depois que o Congresso aprovar. A PEC quer refazer o direito e acabar com o direito anterior”.

Carlos Frederico Marés

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4Setembro–2013

Contra PEC 215, cerca de 1.500 Terena

trancaram duas rodovias

federais que cortam a

região central do Mato

Grosso do Sul. Na rodovia

MS 156, os Guarani

Kaiowá também fizeram

protesto

Conjuntura

“Ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Quem tiver adquirido, na realidade não adquiriu coisa alguma.”

Dalmo Dallari, Jurista

Padre Ton

ma onda conservadora co-mandada pelos agentes do agronegócio e da mineração no Congresso Nacional se ele-

va contra os povos indígenas a fim de abolir os direitos por eles conquistados e reconhecidos na Constituição Federal de 1988.

Historicamente, a postura do Es-tado brasileiro em relação aos povos originários evoluiu da política do exter-mínio, no início da colonização, ao re-conhecimento dos direitos originários, passando pelas tentativas de integração

forçada, renegando suas identidades em nome da inserção à nação brasileira, de forma acentuada no período militar.

A poucos dias de completar 25 anos da promulgação da Constituição cidadã, sem dúvida a mais avançada de nossa história, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam continuam a ser negados aos povos indígenas. Pior que isso, as mesmas forças que tentaram impedir o reconhe-cimento dos primeiros ocupantes desta terra como sujeitos de direito durante a constituinte, atuam cinicamente para retirá-los da Carta Magna.

Em uma primeira linha de ação, a tropa de choque do agronegócio e do setor mineral pretende transferir para o Congresso Nacional, onde não há representação indígena, a competência para dar a última palavra sobre a demar-cação das terras indígenas e, em outra frente, desfigurar o texto constitucional de forma a impedir a sua aplicação. Se

A comissão paritária com-posta por lideranças indígenas e deputados federais votou o relatório final dos trabalhos

do grupo criado após manifestações ocorridas em abril deste ano. A princi-pal conclusão é de que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, de interesse da Frente Parlamentar Agro-pecuária, é inconstitucional e deve ser arquivada.

A PEC 215 visa levar ao Congresso Nacional as demarcações de terras indígenas, quilombolas e a criação de áreas de preservação ambiental para serem aprovadas ou não. Por conta dela, entre outras medidas nocivas às comunidades originárias e tradicionais, os povos indígenas ocuparam em abril o plenário da Câmara Federal.

Na ocasião, o presidente da casa, deputado Henrique Alves (PMDB/RN), criou a comissão paritária - composta por dez parlamentares e dez lideranças indígenas. O grupo de trabalho deveria ser um espaço de discussão sobre todas as proposituras legislativas envolvendo os povos indígenas. São quase 100 matérias, no total.

Porém, apenas as lideranças indí-genas e parlamentares fora do escopo do agronegócio compareceram. O mesmo ocorreu na sessão que votou o relatório final do grupo. Para Lincoln Portela (PR/MG), mediador da comis-

são, a ausência durante os meses de trabalho se deu por conta da intensa agenda legislativa.

O encerramento da comissão, en-tretanto, ocorre nos dias prometidos pelo presidente da Câmara Federal para a criação da Comissão Especial da PEC 215, medida rechaçada por indígenas, indigenistas e juristas. A comissão é a ante-sala da votação em plenário, tomado por deputados ruralistas inte-ressados na PEC.

Justamente por essa razão, 1.500 Terena bloquearam as BR-262 e BR-060, na região central do Mato Grosso do Sul, contra a criação da Comissão Espe-cial da PEC 215. Em Dourados (MS), os Guarani Kaiowá trancaram parcialmente a MS-156, deixando apenas uma faixa de rolamento livre.

“Agora foram os parentes Terena e Guarani Kaiowá que pararam três ro-dovias, mas se essa Comissão Especial for criada, todos os povos indígenas do país vão se movimentar e vamos parar o país. A gente não aceita essa PEC e os interessados nela não quiseram conver-sa”, declarou o cacique Neguinho Truká, de Pernambuco.

Tabuleiro Com a votação do relatório final e o

fim do grupo de trabalho, que migrará para uma subcomissão da Comissão de Legislação Participativa da Câmara

GT paritário pede arquivamento da PEC 215

as propostas de emenda à Constituição 215, 038, 237 e o projeto de lei 227 forem aprovados como querem essas bancadas, nunca mais teremos uma terra indígena demarcada, um território quilombola titulado ou uma unidade de conservação criada no Brasil.

A manobra política empreendida pela bancada ruralista no Congresso contra as minorias indígenas representa grave violação dos direitos coletivos dessas populações e, consequentemen-te, uma afronta ao estado de direito por se tratar de tendência a abolição de cláusula pétrea de nosso Estatuto Básico. Um país que se pretende demo-crático e respeitado internacionalmente não pode permitir o aniquilamento dos direitos das minorias. Ainda mais sem ouvi-las, ao arrepio da Convenção 169, da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Não há mais o que legislar em relação aos direitos indígenas; o que precisa é cumprir a Constituição. A es-

perança é que o STF acolha o mandado de segurança impetrado pela Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Indígenas, vede a criação de comissão especial anunciada pelo Presidente da Câmara, deputado Henrique Alves, para o próximo dia 4 e, em caráter definiti-vo, exclua da deliberação da Câmara dos Deputados a proposta de emenda constitucional 215.

Somente o Supremo, como legítimo guardião da Constituição da República, pode impedir esse recuo ilegal do ar-cabouço jurídico do país. Os direitos fundamentais não podem ficar ao sabor da vontade de uma maioria parlamentar circunstancial, que se coloca a serviços de grupos econômicos interessados em avançar sobre as terras indígenas.

Padre Ton é presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indí-genas, é deputado federal pelo PT de Rondônia e ex-prefeito de Alto Alegre dos Parecis (RO). n

Federal, o presidente Henrique Alves teve o que precisava para criar a Co-missão Especial da PEC 215. Mesmo com parecer pela inconstitucionali-dade, nada impedia Alves de criar a comissão.

O presidente da Câmara declarou que caso não fosse estabelecido um consenso no grupo de trabalho, a Co-missão Especial da PEC 215 seria criada. “Se não vingar, se não corresponder à nossa expectativa do entendimento, eu vou sim pautar, vou criar a comissão especial”. A tática dos ruralistas foi de não comparecer às reuniões do grupo

de trabalho, garantindo o dissenso ne-cessário à criação da comissão.

Por outro lado, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitou informações à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal sobre a PEC 215. Barroso analisou mandado de segurança, com pedido de liminar, do deputado Padre Ton (PT/RO) contra a tramitação da PEC 215. O ministro não atendeu ao pedido do deputado de in-terrupção da tramitação. Porém, em seu pronunciamento, Barroso manifestou discordância com o teor da PEC 215. n

U

ARTIGO: Direitos indígenas: basta cumprir a lei

U

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5 Setembro–2013

Renato Santana,de Brasília (DF)

s ações parlamentares da banca-da ruralista no Congresso Nacio-nal contra os direitos dos povos indígenas ocorrem não apenas

pela PEC 215. São quase uma centena de proposições em tramitação. Entre elas está o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012. O presidente da Câmara Federal, Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), em ato oficial, instituiu comissão especial para o PLP 227 e apensou o projeto à matéria de mesmo teor, o PLP 260/1991, já votado no Senado.

O PLP 227 pretende criar lei comple-mentar ao artigo 231 da Constituição Federal – “Dos Índios” – apontando exceções ao direito de uso exclusivo dos indígenas das terras tradicionais, em caso de relevante interesse públi-co da União. Dentre as tais exceções,

A Constituição Federal está sob risco devido aos interesses de setores privados, especialmente dos latifundiários

A

Laudovina Pereira*

projeto de lei protocolado pela senadora Kátia Abreu (PSD/TO), que propõe proibição à demar-cação de terras que tenham sido

retomadas por índios, é obscurantista e revela o ódio do agronegócio contra os direitos indígenas. Quem poderia, sim, exigir uma lei para conter a invasão nestes últimos cinco séculos são, certa-mente, os povos indígenas.

Para completar, a senadora proto-colou nesta quinta, 5, na Casa Civil da Presidência da República, pedido para a imediata interrupção de qualquer processo de reconhecimento de grupo étnico ou demarcação de terras indíge-nas em curso no Tocantins.

Estes ataques preconceituosos e racistas pronunciados pela senadora Kátia Abreu, só mostram a prepotência do agronegócio, dos grandes produto-res rurais, latifundiários e empresários rurais, chamados pela representante da CNA de “pequenos produtores”.

A senadora não se envergonha em manifestar a cobiça destes setores pelos territórios indígenas. Os povos indígenas são os que estão sofrendo a insegurança jurídica com todas essas propostas como a PEC 215, 038, 237; a

soja no Tocantins, como Pedro Afonso, Campos Lindos, Barra do Ouro, entre outros, vivem sofrendo os impactos dos agrotóxicos e padecendo a mais extrema pobreza.

Em sua inflamada oratória, faz afirmações que pairam às raias do ab-surdo. Por exemplo, diz: “Somente no Mato Grosso do Sul, existem hoje 67 fazendas invadidas por indígenas que representam 3 milhões de hectares”. Ora, senhora senadora, se isso revelasse um mínimo de verdade, estaríamos diante abismal número de, em média, 44.766,11 hectares por fazenda. E sabe a senhora Senadora quantos mil hectares ocupam hoje, aproximadamente 45 mil Kaiowá no cone sul do Mato Grosso do Sul? Um pouco mais de 20 mil hectares.

O seu papel de parlamentar, senhora senadora, não é o de instigar o precon-ceito e a violência contra os povos indí-genas, mas apoiar os direitos destes po-vos garantidos na Constituição de 1988. E também a solução a estes conflitos é a DEMARCAÇÃO DE TODAS AS TERRAS INDÍGENAS DO BRASIL. E o seu papel como membro do Parlamento brasileiro é garantir os direitos das minorias. n

*Coordenadora do Conselho Indigenista Missio-nário (Cimi) Regional Goiás e Tocantins

PLP 227: o novo projeto anti-indígena dos ruralistas no Congresso

conforme o PLP 227, está a exploração dos territórios indígenas pela rede do agronegócio, empresas de mineração, além da construção de empreendimen-tos ligados aos interesses das esferas de governo – federal, estadual e municipal.

“Não queremos apenas que evitem a PEC 215, mas todas as propostas que os ruralistas usam para entrar nas nossas terras. O PLP 227 é ainda mais preocu-pante porque envolve a mineração e interesses do governo. Essa proposta nada mais faz do que transformar o re-levante interesse da União em interesse privado”, afirma Sônia Bone Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização que convocou a Mobilização Nacional. Para ela, a PEC 215 passou a ser usada como barganha, depois de desidratada em vista de sua inconstitucionalidade, para a tramita-ção de outras propostas anti-indígenas, caso do PLP 227.

Após o início da tramitação do PLP 227, proposta similar foi apresentada com o objetivo de criar lei complemen-tar ao artigo 231. O relator é o senador Romero Jucá (PMDB/RR), conhecido por sua intrínseca relação com a mineração – inclusive em terras indígenas. O par-lamentar propôs a medida à Comissão Mista (Câmara e Senado) que trata de regulamentações à Constituição Federal.

“As mobilizações precisam conti-nuar: não á apenas a PEC 215 que busca acabar com seus direitos. A estratégia é pesada. O PLP 227 e o PL 1610, da mine-ração em terras indígenas, são ameaças sérias. Por isso digo: não parem de se mobilizar! Aqui no Congresso somos minoria, precisamos de mobilização”, disse aos indígenas o presidente da Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, deputado federal Padre Ton (PT/RO). n

Kátia Abreu: manipulação de dados, mentiras e preconceito em novo projeto de lei

Portaria 303 da AGU, do PL 1610 da mi-neração, do PLP 227 entre tantos outros que tramitam no Congresso Nacional. Estes ataques aos direitos dos povos indígenas, recorrentes pela senadora, são os responsáveis e geradores de conflitos com os povos indígenas.

A Constituição manda demarcar todas as terras em cinco anos e a le-gislação internacional garante esses direitos. E, diga-se de passagem, as terras não foram demarcadas em grande parte por interferência do agronegócio e políticos inescrupulosos com a omis-

são e conivência do Estado brasileiro.O que Kátia Abreu omite ou mascara

é de que o agronegócio não tem o mí-nimo interesse em produzir alimentos para o nosso país. O que produz são as commodities que dão mais lucro. E usam o máximo de veneno para obter o máxi-mo de lucros. Quem produz comida para a mesa do povo brasileiro é a agricultura familiar, mais do que o agronegócio.

Neste ano, a soja no Tocantins teve alta na produção, mas mesmo com esse avanço na economia, as famílias que vivem nos municípios produtores de

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Ruy Sposati, de Dourados (MS)

ma comitiva da Anistia Internacional visitou, no dia 7 de setembro, comunidades indígenas Guarani Kaiowá da região de Dourados (MS). Durante o encontro, lideranças Kaiowá, Guarani, Terena, Kinikinau e Ofayé

se encontraram com o secretário geral da entidade, o indiano Salil Shetty, para denunciar a demora na demarcação de terras e as violências sofridas por estarem fora de seus territórios tradicionais ou confinados em pequenas reservas.

Pela manhã, Salil visitou um dos tekoha mais vulneráveis do estado, o acampamento Apika’y. Às margens da rodovia BR-163, no trecho que liga os municípios de Dourados e Ponta Porã, dezesseis famílias Kaiowá permanecem em barracos, há mais de dez anos, ladeados pelo tráfego de caminhões e pelas plantações de soja e cana. Cinco indígenas foram mortos em casos de atropelamento, e uma foi envenenada pelos agrotó-xicos usados na plantação.

“Em pleno 2013 não se pode simplesmente fazer o que se quer nas terras indígenas, como se não houvessem direi-tos a serem respeitados”, afirmou Salil aos indígenas. “Aqui, conheci mães que perderam seus filhos pequenos, velhos que perderam seus filhos. Essas coisas acontecem aqui à luz do dia, e não há investigação. As pessoas que cometem esses crimes simplesmente continuam livres. isso é uma verdadeira vergonha para o Brasil”, disse.

Na sequência, Shetty se reuniu com uma centena de lideranças de todo o Mato Grosso do Sul, onde colheu de-poimentos sobre a vida dos indígenas que estão na luta pela terra. “Visitando essa região, me sinto em um lugar onde direitos humanos não existem”, enfatizou Salil. “O Brasil tem se tornado cada vez mais poderoso, mas não consegue garantir o direito de seus cidadãos mais antigos”.

“Milhares de indígenas ainda não tiveram suas terras de-marcadas. Isso gera violência e intimidação. Eles estão sendo expulsos da terra, e também estão perdendo suas vidas”

A questão chave para entender o emaranhado de conflitos da região, para Salil, é a demora na demarcação dos territó-rios indígenas. “Uma justiça que demora é uma justiça que é negada”, afirmou às lideranças.

“Vocês colocam suas vidas em risco para garantir os seus direitos, a sua terra”, pontuou Salil. “Mas essa é uma luta desigual. Um lado tem armas e governo por trás. O outro não tem nada. Mas vocês têm a verdade. Vocês têm história”. Para o indiano, os relatos correspondem a uma realidade comum às demais populações indígenas brasileiras. “É muito doloro-so ouvir sobre tantas dificuldades que as comunidades locais estão passando, sabendo que essa não é só a história daqui, mas das comunidades indígenas de todo o país”.

A comitiva se reuniu em Brasília, na sequência, com o Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos e Secretaria Geral da Presidência da República. “A presidente do Brasil se recusou a nos receber. Talvez ela não queira ouvir sobre a realidade que encontramos aqui hoje”, concluiu. n

6Setembro–2013

Campeão de homicídios e suicídios

indígenas, o Mato Grosso

do Sul é o estado mais violento do Brasil com

estes povos

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MPF apura denúncia de indígenas de Carauari (AM)

J.Rosha,de Manaus (AM)

demissão de quatro professores do povo Kanamari da aldeia Ta-quara, no município de

Carauari (AM), sem consulta à co-munidade por parte da Secreta-ria Municipal de Educação, está sendo apurada pelo Ministério Público Federal. De acordo com a assessoria de comunicação do MPF, os procuradores instaura-ram um Inquérito Civil Público. O prazo é de um ano para con-clusão, podendo ser prorrogado. A denúncia foi encaminhada por lideranças indígenas da aldeia Taquara, depois de reuniões com a Secretaria de Educação, no último mês de abril.

O MPF recebeu a solicitação de apuração formulada pelos indígenas em maio. O órgão solicitou à Secretaria de Estadual de Educação e ao Ministério da

Educação informações a respeito do número de escolas indígenas no município de Carauari, bem como os nomes e currículos dos professores indígenas atuantes naquele o município – que fica a 780 quilômetros de Manaus, em linha reta, ou a 1.676,0 qui-lômetros por via fluvial.

O município de Carauari está sob a área de atuação da Procuradoria da República no Município de Tefé (PRM/Tefé), que atualmente funciona provi-soriamente na Capital.

A secretária de Educação de Carauari, Leinice Barroso, infor-mou que não houve demissão. “O contrato com os dois professores se encerrou em dezembro e eles não foram aprovados na seletiva feita em março. Outros dois professores assumiram, tanto que não faltam na aldeia os tra-dutores para que as aulas sejam bilíngues”, disse Leinice Barroso, acrescentando que a comuni-

dade não está sem professores.Para os indígenas, a secre-

tária desrespeitou a legislação que lhes garante participar da escolha dos professores. No documento protocolado no MPF, eles reclamam que os professores foram demitidos sem aviso e que a secretaria ao menos “consultou as comunidades sobre essas demissões passando por cima da organização interna, que tem direito de participar da escolha dos professores”.

Os indígenas se amparam no  Parecer  14∕99  -  CNE,  Reso-lução n.º 3, de 10/11/1999, do Conselho Nacional de Educação e na Constituição Federal de 1988, onde lhes é assegurado o direito a educação escolar indí-gena específica e diferenciada, formação inicial e continuada aos professores indígenas, que deve ocorrer em serviço e con-comitantemente à sua própria escolarização. n

PaísAfora

Recém nascido Awa Guajá morre sem atendimento médicoCimi Maranhão

o dia 2 de setembro, morreu um recém nascido Awa-Guajá, na Aldeia Tiracambu, localiza-da na Terra Indígena Caru, no

Maranhão. Não havia atendente de saúde na aldeia e, segundo informações

do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), às 15h30 foi solicitado ao Polo de Santa Inês o envio de um veículo de transporte urgente, que chegou somen-te mais de 3 horas depois, quando a criança já havia falecido. Nos meses de junho e julho, o movimento indígena do Maranhão realizou um grande protesto

em defesa da saúde e denunciando as violações e as mortes na saúde indí-gena em todo o estado. Cerca de 500 indígenas ocuparam o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), em São Luís, no dia 24 de junho. Eles denunciaram que há poucos médicos e não há médicos indígenas, além de não haver trans-

porte para deslocar os doentes, nem para fazer o abastecimento dos medi-camentos. O Cimi reitera a urgência do Polo em dialogar com a comunidade e reforça a demanda dos indígenas de que as autoridades investiguem a responsabilidade da Sesai na morte desta criança. n

Salil Shetty: “Me sinto em um lugar onde direitos humanos não existem”

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7 Setembro–2013

O descaso com a saúde indígena viola um direito fundamental garantido a todos os povos

Madeireiros invadem aldeia indígena Ka’apor erca de 50 madeireiros invadiram a aldeia Guru-piuna, Terra Indígena Alto Turiaçu, do povo Ka’apor,

município de Centro do Gui-lherme, norte do Maranhão. Na aldeia Gurupiuna vivem sete fa-mílias, num total de 48 pessoas. A aldeia foi invadida na última segunda-feira, dia 26.

Na invasão, os madeirei-ros agrediram o indígena Gonito Ka’apor, que somente nesta terça, 27, conseguiu sair da aldeia para fazer exame de corpo delito. O Ka’apor tentou registrar ocorrência na cidade de Governador Nunes Freire, mas não conseguiu porque o delegado responsável não estava.

A ação dos madeireiros é em represália a fiscalização e apreen-são de caminhões madeireiros empreendidas pelos indígenas no próprio território tradicional. No ato da invasão da aldeia Guru-piuna, os invasores amarraram e bateram em indígenas, saquea-ram plantações e levaram animais.

Sem os órgãos públicos res-ponsáveis pelas fiscalizações atuando, os Ka’apor não vêem alternativa a não ser a própria comunidade impedir a ação depre-datória. Segundo as informações dos indígenas, os madeireiros queimaram duas casas e agredi-ram indígenas. O povo denuncia também o desaparecimento de

uma indígena Awá, próximo ao rio Turi, perto da aldeia Cocal.

O c l ima é tenso na re -gião. Os Ka’apor temem novas in-vasões. As famílias buscam refúgio no mato como esconderijo. Com medo de novas invasões, indíge-nas estão sem sair de suas aldeias. Segundo informações, a Polícia Federal, IBAMA e Exército se des-locaram para a região.

Desde julho os indígenas Ka’apor, da aldeia Zé Gurupi, comunicavam a ação dos madei-reiros, que se organizavam para atacar a terra indígena por conta da Operação Hiléia, que fechou vá-rias madeireiras e apreendeu vários caminhões na região (G.R). n

Povos indígenas ocupam sede do Dsei de Lábrea (AM)

J.Rosha,de Manaus (AM)

esde as primeiras horas da manhã de sexta-feira, 13, mais de 80 lideran-ças indígenas dos povos

Apurinã, Palmari, Jarawara, Ma-dija-Deni e Karipuna ocupam a sede do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Médio Purus, localizado no centro da cidade de Lábrea, no sudeste do Amazonas, distante da capital, Manaus, cerca de 700 quilômetros. A precarie-dade no atendimento às aldeias, a imediata nomeação de Nancy Filgueiras da Costa para a coor-denação do DSEI e a não interfe-rência de políticos na indicação para aquele órgão, são os princi-pais motivos que à ocupação do prédio.

Dez funcionários foram orien-tados pelos indígenas a desocupar

as dependências. Ficaram no local apenas três funcionários para liberar combustível utilizado na remoção de pacientes. O Polo Base “Chico Camilo”, localizado nos arredores da cidade, permanece funcionando para atendimento em regime de plantão.

A manifestação foi decidida em reunião com a participação de lideranças da Federação das Organizações Indígenas do Mé-dio Purus (Focimp), Associação de Mulheres Indígenas do Médio Purus (Amimp) e membros do Con-selho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).

Os indígenas dizem que desde julho passado a coordenadora Fátima Aparecida Silva deixou a cidade, mas continua oficialmen-te respondendo pelo órgão. Há vários meses os indígenas mani-festaram descontentamento com a atuação de Fátima.

As comunidades denunciam que a coordenadora não partici-pou em algumas das conferências locais de saúde e, naquelas em que compareceu, não permitiu que os povos apresentassem propostas ou se pronunciassem, além de não acompanhar a situação dos polos base. Sem coordenação, “o atendimento à saúde está muito precário e um exemplo disso é a falta de condições da Casa de Saú-de Indígena – Casai de Lábrea”, diz João Neri Karipuna, coordenador do Condisi.

O DSEI do Médio Purus tem a responsabilidade de atender aldeias dos municípios de Lábrea, Tapauá e Canutama, abrangendo uma população de 8.310 indíge-nas dos povos Apurinã, Palmari, Jarawara, Jamamadi, Deni, Suruaha, HI-merimã, Kokama, Karuipuna, Mi-ranha, Mamori, Manoá e Juma, de acordo com dados do Condisi. n

Ano letivo ainda sem início nas escolas indígenas do Maranhão

Gilderlan Rodrigues da Silva, Cimi Regional Maranhão

iagem em um mar de areia no crepúsculo, clima nublado, vento soprando frio, pássa-ros saudando o dia que vem chegando. É assim que as crianças indígenas dos povos

Ramkokamekar-Canela e Apãniekra-Canela, das terras indígenas Kanela e Porquinhos, ambas no município de Fernando Falcão, Maranhão, acordam para irem à escola.

No entanto, ao chegarem à sala de aula elas se deparam com uma escola em condições precárias: faltam banheiros para condições de uso, ilumina-ção, ventiladores, lousa, carteira. A infraestrutura necessária para que se possa dizer que os indígenas têm uma escola de qualidade é inexistente.

Os professores e lideranças relatam que as con-dições de trabalho dos professores não atendem às necessidades da comunidade e o cargo ainda serve de moeda para negociação dos direitos com a Secretaria Estadual de Educação do Maranhão.

Já é final do mês de agosto, início de setembro, e o ano letivo ainda não começou, porque os pro-fessores indígenas somente assinaram os contratos com a Seduc/MA no mês de maio, ou seja, há dois meses. Nossa equipe encontrou nas comunidades alunos que desejam estudar, mas infelizmente estão impossibilitados.

Os professores denunciam ainda que a falta de alimentação escolar proporciona evasão esco-lar: quando os alunos saem para o intervalo, não volta mais porque têm de providenciar a própria alimentação.

Quando os alunos terminam o ensino funda-mental, e necessitam de documentação para matri-cularem-se nas escolas dos não indígenas, precisam recorrer à outra escola. Isso porque as escolas indígenas desses povos ainda não são reconheci-das. Até o momento não há nenhuma iniciativa da Secretaria de Educação para reconhecê-las.

A formação de professores não tem acontecido. Eles relatam que o curso de magistério indígena, iniciado em 2008, teve apenas quatro etapas e não tem perspectiva de continuidade. Essa realidade faz com que os professores indígenas busquem formação em outros espaços, como é o caso dos que estão fazendo o curso intercultural na Univer-sidade Federal de Goiás.

Os povos Ramkokamekra-Canela e Apãniekra-Ca-nela têm em suas comunidades setores de roças, que ficam cerca de 20 quilômetros do centro das aldeias. Os indígenas denunciam que a falta de transporte escolar tem prejudicado os alunos, que necessitam acompanhar seus pais para os setores de roças.

A Secretaria de Educação do Maranhão assinou em 2011, junto com o Ministério Público Federal, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a finalidade de melhorar a caótica situação da Educa-ção Escolar Indígena no estado. No entanto, muitas das ações prevista pelo TAC não saíram do papel. n

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8Setembro–2013

Resistência

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Em busca do Bem ViverApós séculos enfrentando diversas formas de esbulho, o povo Xukuru Kariri vive hoje em oito “ilhas” de resistência dentro do seu próprio território, que ainda não foi demarcado. Mesmo sem as condições necessárias para exercer o modo de vida tradicional, eles estão na contramão do atual modelo de desenvolvimento predatório.

Patrícia Bonilha,de Palmeira dos Índios (AL)

ara todo lado que se olha, mesmo no quintal comparti-lhado entre uma casa e outra, o que se vê são pés de banana, macaxeira, berinjela, maracujá, tomate, quiabo, abóbora. Um pouco mais adiante, na horta

em forma de mandala, dá gosto ver a enor-me quantidade de hortaliças visivelmente saudáveis: alface, cenoura, beterraba, couve, brócolis, couve-flor, dentre outras, e uma grande variedade de ervas utilizadas na culinária, como tempero, e outras pelas suas propriedades medicinais. Descendo um pouco a serra, as plantações bem cuidadas de milho, feijão, batata, fava, e outras mais, oferecem um delicioso espe-táculo aos olhos de quem se preocupa com a preservação da terra, do solo e da água. Sim, porque, ali, na retomada feita junto à Fazenda Canto, o povo Xukuru Kariri cultiva os alimentos, de modo tradicional, sem a utilização de agrotóxicos, fertilizantes e outras técnicas agrícolas que contaminam o meio ambiente, os animais e, como con-sequência, os próprios indígenas.

Além disso, sabidos do cada vez mais agressivo monopólio das empresas pro-dutoras de sementes, os indígenas estão fazendo um banco de sementes, através do qual poderão garantir a continuidade das sementes crioulas. Só de feijão, eles têm várias “qualidades”: guandu, preto, de vargem roxa, de corda, carioca, mulatinho, chita fina, rajadinho e o fogo na serra. Al-guns deles já sendo produzidos há 15 anos a partir das mesmas sementes.

Localizadas no município de Palmeira dos Índios, no agreste do estado de Alago-as, as terras do povo Xukuru Kariri foram confirmadas como sendo tradicionalmente indígenas pelo relatório antropológico da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2008, sendo que a Portaria Declaratória

do Ministério da Justiça foi assinada em dezembro de 2010. No entanto, elas ainda não foram demarcadas e a população de 3.217 indígenas se divide em oito “ilhas” de resistência: as aldeias Fazenda Canto, Mata da Cafurna, Coité, Serra do Capela, Cafurna de Baixo, Boqueirão, Serra do Amaro e Riacho Fundo de Baixo. Estas loca-lidades ocupam uma área não contínua de 1.125 hectares, cercadas por 463 imóveis incidentes – muitos improdutivos - no ter-ritório indígena. Como prevê a legislação, as propriedades avaliadas como sendo de boa fé deverão ser indenizadas e os seus ocupantes reassentados.

Apesar dos severos e cotidianos desa-fios, os Xukuru Kariri conseguem manter a relação com a terra herdada de seus an-cestrais. “A terra, para nós, não é objeto de negócio, de trocas. É um lugar sagrado que alimenta nosso sonho, nossa cultura para a construção do Bem Viver do nosso povo”, afirmam em uma carta coletiva.

Nesse sentido, metade da área ocupada por eles é de preservação da Mata Atlântica (cerca de 200 hectares) e da Caatinga (por volta de 300 hectares), o que inclui, claro, seus rios e nascentes. Essencialmente vinculados à mata, é nela que realizam o ouricuri, seus rituais espirituais e trans-cedentais. “É na mata que entramos em contato com Deus, com a natureza, com os nossos antepassados. O que vivenciamos nesses momentos de celebração, mas às ve-zes também de pesar e dor, trazemos para o nosso dia a dia como ensinamento e nos fortalece como povo”, afirma Raquel San-tana da Silva, uma das lideranças do povo.

Paradigma de vanguarda De modo intrigante, o que se vê evi-

denciado naquelas verdes serras do agreste alagoano é um interessante paradigma: os valores e saberes dos antepassados dos indígenas – o cuidado com a natureza, a compreensão da integralidade e comunhão de todos os seres, a fartura, a partilha -

estão profundamente sintonizados com as demandas e necessidades da sociedade atual que, marcada por um modelo de desenvolvimento fundamentado na ex-ploração exaustiva dos recursos naturais, carece de um outro jeito de viver, um outro projeto político

Nesse sentido, Saulo Feitosa, do se-cretariado nacional do Cimi, afirma que nenhum dos modelos econômicos, nem o capitalismo, centrado no capital, nem o so-cialismo, centrado no ser humano, aportou para a sociedade a concepção da natureza como própria centralidade e como sujeito de direitos. “A proposta comum do Bem Viver é a de que o ser humano sai da pers-pectiva de dominação das outras espécies e de supervalorização de si mesmo e parte para uma relação de coexistência e respeito com os outros seres, incluindo a terra”, filosofa Feitosa.

O enfrentamento ao modelo hegemôni-co feito pelo povo Xukuru Kariri, tanto em relação ao modo de cultivar os alimentos como ao de preservar a terra, as águas, o ar e os seres, está sendo feito mesmo em condições bastante adversas. Por

exemplo, apesar de abastecerem Palmeira dos Índios com mais de 70% da banana que é consumida na cidade e fornecerem alimentos agroecológicos para o Programa de Aquisição de Alimentos, com Doação Simultânea, (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), ambos do governo federal, devido às disputas pela terra, os indígenas são alvo de campanhas difamatórias. Além disso, a comunidade precisa de mais terra para plantar e precisa assegurar, com urgência, atendimento de qualidade na educação e saúde.

Diante das intempéries da vida, dois experientes líderes dos Xukuru Kariri dão sinais do espírito que move o povo nesta luta que, espera-se, seja logo vitoriosa. Morador de Coité, Francisco Januário dos Santos, “seu” Chico, de 67 anos, afirma: “A gente não dá esta importância toda pro dinheiro e poder. Se a gente se organizar, a gente vive sem dinheiro. Pra mim, dinheiro não é o mais importante, nem pra remédio. Eu sei fazer os remédios que meu pai me ensinou. O mais importante, pra gente, é o Bem Viver. É você ter uma vida digna, do jeito que Deus criou. Por isso, precisamos nos organizar e ocupar. Ninguém vem em nosso socorro, não”.

Antônio Selestino da Silva, “seu To-nho”, de 74 anos reforça: “Somos um povo que sofreu barbáries desumanas. Pra gente não morrer, tinha que aceitar ser chamado de caboclo. Eu não sou caboclo, sou índio. Mas é justamente nas mortes e desaparecimentos dos nossos filhos e nos sacrifícios que nos foram impostos que nos inspiramos. A ambição e o egoísmo não fazem parte da gente. Nós já somos muito ricos. Só queremos viver como somos e va-mos lutar até conseguir a nossa dignidade”, conclui emocionado. Lideranças jovens or-ganizadas em uma Comissão Permanente, que reúne dois representantes por aldeia, parecem compreender e absorver com clareza os ensinamentos de vanguarda de “seu” Tonho e “seu” Chico.

“A terra, para nós, não é objeto de negócio, de trocas. É um lugar sagrado que alimenta nosso

sonho, nossa cultura para a construção do Bem Viver do nosso povo

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9 Setembro–2013

Motivados pela sabedoria ancestral e determinação dos mais velhos, lideranças jovens Xukuru Kariri se reorganizam em busca da terra que lhes pertence: um outro jeito de viver

Um longo histórico de resistênciaprimeira retomada das terras tradicionais do povo Xukuru Kariri foi feita em 1979. Trinta e um anos depois – período em que muita

luta foi vivida e algumas lideranças assassinadas, no dia 15 de dezembro de 2010, a área de 7.073 hectares foi reconhecida pelo Ministério da Justiça como Terra Indígena Xukuru Kariri. Passados três anos, e mesmo sem nenhuma ação que pedisse a anulação do processo de homologação, ainda não foram concluídas a demarcação física, a de-sintrusão e a entrega definitiva da terra aos seus ocupantes originários.

A história de luta e resistência dos Xukuru Kariri por suas terras é secular e repleta de duras investidas contra a sua própria existência. Em 1700, a Coroa Portuguesa, através de Alvará Régio, afirmou que uma área de uma légua em quadra era de ocupação tradicional indígena. Uma Carta Régia enviada ao Governador da Capitania de Pernambuco, em 1703, confirmou esta ocupa-ção. A partir da criação do Diretório dos Índios, em 1757, foram abolidos o uso da língua nativa, a nudez, rituais espirituais e passou a ser exigido que os indígenas adotassem sobrenomes tirados das famílias de Portugal, além de ter iniciado um severo controle sobre os índios que desertavam ou fugiam para a mata.

Uma sentença judicial autorizou a demarcação de 12.320 hectares em 1822. No entanto, em 1872, o Presidente da Província de Alagoas ex-tinguiu os aldeamentos indígenas, transformando suas terras em domínio público. No centro da área que os Xukuru Kariri ocupavam, ergueu-se a cida-de de Palmeira dos Índios, hoje a terceira maior em população e extensão territorial do estado.

Em 1952, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) adquiriu a Fazenda Canto, com 287 hectares, para as quase 50 famílias que haviam sido contabiliza-das pelo censo. Por ser insuficiente para abrigar a população indígena, em 1979, foi feita a retomada da área da Mata da Cafurna, regularizada em 1981, após um turbulento processo social e jurídico.

“Teve épocas que a gente tinha medo de ser índio. A gente corria porque se não corresse, morria. A gente vivia com medo de viver”, relata dona Marlene Santana da Silva, 72, mãe de Maninha, uma das principais lideranças dos Xukuru Kariri, já falecida. Dona Marlene participou de cinco retomadas realizadas por seu povo. Em relação ao longo processo de demarcação, ela declara com ar de desesperança “as coisas são tão demoradas que perdem o sentido”. Cinco Grupos de Trabalho (GT) foram criados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a partir de 1988. Várias retomadas, algumas bastante conflituosas, foram realizadas nos últimos 30 anos com o objetivo de garantir as condições de sobrevivência ao grupo. Após 22 anos, a Portaria Declaratória de reconhecimento da TI Xukuru Kariri foi publicada. No entanto, desde então (2010), quase nada avançou.

Tamanha demora traz severos prejuízos a toda a população. Sem poderem viver em suas terras, a organização social, a segurança alimentar e a pre-servação dos valores culturais, crenças e tradições ficam ameaçadas. As políticas públicas garantidas por lei, como educação e saúde, são praticamente ausentes ou deixam muitíssimo a desejar. No entanto, o aumento da violência e dos conflitos com os não índios parece ser o pior legado que a não conclusão do processo de demarcação deixa marcada na história dos Xukuru Kariri.

“Se a Constituição tivesse sido cumprida, nossas terras tradicionais teriam sido devolvidas e demarcadas de forma pacífica e não teríamos que viver em meio a tantas ameaças e correr o risco de perder nossas próprias vidas para garantir a efetivação de direitos”, declara José Carlos Araújo Ferreira, morador de Cafurna de Baixo. Juntamen-te com Gecinaldo Soares de Queiroz, por terem sido ameaçados por posseiros da região, eles foram incluídos, em abril deste ano, no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PNPDDH). Além deles, várias outras lideranças Xukuru Kariri já foram ameaçadas.

Intromissão de coronéisesmo de modo letárgico, o levantamento fundiário - etapa em que se analisam as posses e benfeitorias dentro da terra indí-

gena, a cadeia dominial, os registros em cartório, se os títulos são de boa ou má-fé – estava sendo realizado. No entanto, no dia 16 de agosto a Funai suspendeu o trabalho que a equipe desenvolvia em campo. A alegação de falta de recursos do órgão indigenista não convenceu a comunidade indígena, já que o empenho de R$ 250.000 havia sido feito pelo governo federal para garantir a locação de veículos, combustível, estadia e diária dos servidores, e apresentado aos indígenas em reunião com a Funai entre os dias 18 e 20 de ju-lho, em Maceió. Também cabe ressaltar que dos R$ 23,9 milhões liberados pelo Orçamento da União para as ações relacionadas à “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras” no ano de 2013, apenas R$ 1,9 milhão foi executado, segundo dados do Ministério do Planejamento.

Os indígenas afirmam que o verdadeiro moti-vo da suspensão foi a ingerência e pressão política dos senadores Fernando Collor e Renan Calheiros, presidente do Senado, do deputado federal Re-nan Filho, do estadual Edval Gaia e do prefeito James Ribeiro, sendo que estes dois últimos são posseiros e invasores da terra indígena. Poucos

dias após uma reunião entre Calheiros e James Ribeiro com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, em Brasília, a Funai enviou o memorando no 876, do Departamento de Proteção Territorial, para a regional de Alagoas determi-nando a paralisação do processo de demarcação que, até a edição desta publicação, não havia sido retomado. A alegação dos políticos era de que muitos conflitos estavam acontecendo na área, o que é negado pelos indígenas.

Esta atitude dos políticos alagoanos reflete uma ação que vem sendo engendrada nos quatro cantos do país. Orquestrados pelos interesses da classe ruralista, os parlamentares brasileiros, juntamente com os representantes do Executivo e do Judiciário, vem traçando uma inédita ofensiva aos direitos indígenas garantidos pela Consti-tuição Federal de 1988. Exemplos disso são as famigeradas Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, além da proposta defendida pelo governo federal de mudar o processo de demarcação das terras indígenas – o que, na prática, os indígenas sabem, significa tornar ainda mais difícil o reco-nhecimento dos direitos dos povos originários às terras que lhes pertencem. n

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10Setembro–2013

A morosidade do governo

para demarcar terras

indígenas causa

desinformação e aumento do preconceito e

da violência contra os

povos

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Luta pela terra

Por Renato Santana,de Brasília (DF)

nquanto a Portaria Declaratória da Terra Indígena Tupinambá de Oli-vença, extremo sul da Bahia, segue

sobre a mesa do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, sem publicação há mais de um ano, o município de Buerarema, contíguo ao território tradicional, foi alvo de atos violentos promovidos por grupos ligados aos invasores da terra indígena. No início de setembro, indígenas foram roubados enquanto se dirigiam à feira e oito casas foram queimadas. O aten-dimento à saúde indígena foi suspenso.

Em contraste ao que aconteceu em Buerarema, a Serra do Padeiro, parte da terra indígena, não registrou distúrbios ou violências no mesmo período, apesar do estado de atenção. Sobretudo nas áreas das 40 fazendas retomadas pelos indígenas, sem nenhum conflito – razão pela qual as elites política e latifundiária incitaram os atos violentos contra os indígenas. “Dizem que virão para cá esbagaçar tudo. Estamos em alerta, mas tranquilos”, declarou uma liderança indí-gena, que terá a identidade preservada por segurança.

As oito casas identificadas como mo-radias de Tupinambá foram incendiadas, em Buerarema, sob o olhar passivo da polícia. Os imóveis estavam desocupados no momento dos ataques. Móveis foram lançados à rua e queimados, eletrodomés-ticos saqueados e a orientação era para

Povo Kadiwéu retoma fazenda em área demarcada há 113 anos

Por Renato Santana,de Brasília (DF)

erca de 300 indígenas do povo Ka-diwéu retomaram no final de agos-to uma das 24 fazendas incidentes

em 160 mil hectares da terra indígena demarcada em 1900 e homologada em 1984, no município de Porto Murtinho, na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul. Apesar da demarcação ter acontecido há mais de um século e a homologação há quase três décadas, a desintrusão da área nunca ocorreu.

A terra tradicional Kadiwéu possui um total de 538,5 mil hectares. Ao contrário do noticiado por alguns veículos de im-prensa, de acordo com os indígenas, a fazenda retomada estava sem nenhuma cabeça de gado. “O fazendeiro que é invasor, não a gente. A terra já é demar-cada, e há muito tempo”, disse uma das lideranças que preferiu não se identificar por falar em nome de toda comunidade. Em outubro do ano passado, os Kadiwéu, depois de retomarem quase toda a to-talidade do território invadido, tiveram que sair de suas terras por força de uma reintegração de posse.

Conforme a liderança, os indígenas foram recebidos a tiros pelos seguranças de uma empresa privada, contratada pelo fazendeiro. Como eram muitos, os Kadi-wéu conseguiram desarmar os indivíduos. Pistolas, revólveres calibre 38 e armas de grosso calibre, além de farta munição e duas motos, foram apreendidos e entre-gues aos servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai).

“Achamos até algemas com jagunços para prender o índio. Como isso acontece com a terra sendo nossa há tanto tempo? Governo tem de tirar esses invasores daqui. Não queremos o gado deles e nem nada deles, mas apenas nossa terra. Kadiwéu lutou por Brasil em guerra, agora Brasil responde assim?”, desabafa a liderança indígena.

Ao menos 30% do território indígena está invadido. Do total de hectares da terra homologada, ou seja, de proprie-

dade da União, quase 160 mil são usados na pecuária. As invasões dos fazendeiros ocorrem pelo menos desde a década de 1950. Relatos dão conta de que tanto o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) quanto a Funai oficializavam a ocupação territo-rial, arrendando a terra aos pecuaristas.

Histórico da terraDocumentos históricos comprovam

que o território dos Kadiwéu foi doado a eles ainda no Segundo Império, por Dom Pedro II, como recompensa pela participação dos indígenas, ao lado do Brasil, na Guerra do Paraguai, em 1864.

No início do século 20 a terra foi de-marcada, com outros decretos ratificando os limites. Contudo, as pressões sempre cercaram a vida dos Kadiwéu. Centenas de posseiros ocupavam as terras; invasores registravam, de forma irregular, títulos de propriedade em cima de áreas indígenas, no nome de terceiros, em cartórios de municípios vizinhos; órgãos governa-mentais de proteção arrendavam terras a grandes fazendeiros. Por fim, inúmeras incursões jurídicas e pressões políticas dos fazendeiros arrendatários para a ex-pulsão dos Kadiwéu do próprio território.

O processo de demarcação, homolo-gação e registro do território dos Kadiwéu foi finalizado pelo governo federal em 1984. Naquele ano, os pecuaristas, que se encontravam dentro dos limites da TI, ajuizaram ação para discutir a nulidade da demarcação. De um total de 585 mil hectares, entaram em litígio 155 mil - re-gistrados em nome da União, de usufruto exclusivo dos indígenas, mas ocupados por cerca de 120 fazendas de gado. Desde 1987, tramita no Supremo Tribunal Fede-ral (STF) uma ação que nunca foi julgada.

RETOMANDO O QUE É NOSSO!Cansados de esperar que o governo federal cumpra as determinações da Constituição Federal em relação às demarcações de seus territórios tradicionais, os povos Tupinambá de Olivença, na Bahia, Xakriabá, em Minas, e Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, retomam áreas cujos processos estão paralisados nas gavetas de gabinete, geralmente devido a pressões políticas. Como consequência dessa morosidade ocorre o aumento de ameaças e da violência contra os povos indígenas.

nenhum Tupinambá circular pela cidade. Comerciantes também não podiam ven-der aos indígenas. Quem desrespeitou teve o estabelecimento destruído. Mo-radores ligados aos Tupinambá foram agredidos.

As informações foram obtidas por fontes indígenas e textos publicados por blogs ligados aos fazendeiros. A imprensa foi praticamente proibida pelos vândalos de trabalhar na região, como atestou em nota o Sindicato dos Jornalistas da Bahia, depois que dois profissionais da TV Santa Cruz foram ameaçados. A onda de vio-lência começou depois de 40 retomadas terem sido realizadas pelos Tupinambá na Serra do Padeiro, parte da terra iden-tificada como tradicional.

Trechos da BR-101, na altura dos mu-nicípios de Buerarema e de São José da Vitória, foram barrados por manifestantes e ao menos três veículos do Poder Público foram incendiados, entres eles do Incra e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A destruição seguiu para Buera-rema, onde a sede do Banco do Brasil e patrimônios públicos foram vandalizados. Lá um acampamento foi erguido às portas da prefeitura. Conivente, a polícia assistiu aos atos de violência e afirmou não poder intervir dada a quantidade de pessoas envolvidas, conforme relatos.

Portaria Declaratória Para lideranças indígenas, o Mi-

nistério da Justiça precisa publicar a Portaria Declaratória e dar continuidade

Casas Tupinambá são incendiadas; Portaria Declaratória está atrasada

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11 Setembro–2013

As retomadas passam a ser a única alternativa dos povos no sentido de recuperarem as terras que são suas por direito

ao procedimento de demarcação para a violência arrefecer. “Porque aí todos teriam informações. O que acontece é a desinformação. Tem gente para ser reas-sentada, outros para serem indenizados. Tem produtor que já solicitou indeniza-ção. O ministro tem de parar de ouvir político, se pautar por eleições”, ressalta. A Terra Indígena Tupinambá Serra do Padeiro é uma das sete, espalhadas pelo país, engavetadas pelo ministro Cardozo, que poderiam ter a Portaria Declaratória publicada.

As recentes retomadas na Serra do Padeiro se intensificaram depois que o ministro da Justiça declarou à delegação Pataxó e Tupinambá, em Brasília, durante o mês de agosto, que não assinaria a Portaria Declaratória porque o governo federal seria processado – violando assim a norma de encaminhar a portaria 30 dias depois de recebida. Cansados de esperar, os Tupinambá foram às retomadas. Por sua vez, o governo Jacques Wagner au-torizou, de forma in-constitucional, a ação das polícias estaduais nas reintegrações de posse. Tudo conspi-rava pela explosão da violência.

E ela não tardou. Na noite do dia 14, um caminhão trans-portava crianças e adolescentes da es-cola para as aldeias, quando um homem não identificado des-feriu vários disparos contra o veículo. Nin-

Patrícia Bonilha e Renato Santanade Brasília (DF)

o dia 1º de setembro, cerca de 300 indígenas Xakriabá retomaram mais uma parte do seu território

tradicional. A área retomada é a Fazenda São Judas, que possui 6.000 hectares e está localizada na comunidade denomi-nada Vargem Grande, na região do Vale do Peruaçu no município de Itacarambí, no norte de Minas Gerais. A Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciou os es-tudos de identificação dessas áreas no ano de 2007. O estudo antropológico de identificação e o levantamento fundiário das áreas reivindicadas já foram concluí-dos e constataram que a área é indígena. No entanto, os procedimentos de pu-blicação e demarcação ainda não foram efetuados. Esta não publicação tem sido motivo de um acirramento dos conflitos na região. Com o objetivo de garantirem os seus direitos, os indígenas reivindicam a publicação imediata do Relatório de Identificação da TI Xakriabá e a efetiva regularização do território tradicional do seu povo.

No dia seguinte à ocupação, o fazen-deiro Pedro Luiz Cezarine, juntamente com seus dois filhos, chegaram de avião particular nas proximidades da fazenda. O clima ficou bastante tenso pois, mesmo na presença de policiais militares, os ditos proprietários da fazenda fizeram sérias ameaças aos índios, dizendo que se eles não se retirassem de forma pacífica “a coisa poderia ficar feia”.

Segundo o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Leste, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que tem um escritório em Ita-carambí, tem incitado os fazendeiros a reagir com violência contra os indígenas. “O processo de estudo da área e o levanta-mento de benfeitorias vinha caminhando com celeridade até o início de 2012 mas, a partir da investida da CNA, o processo pa-rou”, afirma ele. Oliveira conta ainda que a CNA contratou uma antropóloga para fazer um laudo contestando o relatório da própria Funai. “Este laudo foi enviado à

Funai em abril deste ano. Ele foi feito pela mesma antropóloga fazendeira do Mato Grosso do Sul que fez estudos contra os Guarani Kaiowá, afirmando que as áreas que eles ocupam não é terra indígena”, acrescenta.

No dia 9 de setembro, uma liminar que concedia reintegração de posse à família Cezarine foi suspensa pela Justiça Federal a pedido de procuradores gerais da República. Eles demonstraram ao juiz da 2ª Vara Federal, que em menos de três horas havia deferido o pedido de rein-tegração favorável ao fazendeiro Pedro Luiz Cerize, a complexidade do conflito fundiário deflagrado. O juiz, então, revi-sou sua decisão.

Apesar de novas ameaças terem sido feitas aos indígenas pelos membros da família Cerize após a suspensão da liminar, o fazendeiro enviou cerca de 20 caminhões para Itacarambí com o intuito de retirar o gado. Na cidade, de acordo com apoiadores dos Xakriabá, o ambiente é hostil aos indígenas.

Em ato simbólico, os Xakriabá apaga-ram o nome da fazenda de uma das placas da antiga propriedade e escreveram no lugar Terra Indígena Xakriabá. No final da última semana, teve início a retirada das 3 mil cabeças de gado do território tradicional.

Chacina XakriabáHá 26 anos, em 11 de fevereiro de

1987, três lideranças Xakriabá foram brutalmente assassinadas por grileiros invasores da terra indígena. O massacre ocorreu na aldeia Sapé, município de São João das Missões, e vitimou o vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira, de 42 anos, e outros dois indígenas, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana.

“O sangue de Rosalino fecundou a terra e alimentou a luta do povo. A área Xakriabá foi totalmente liberada de possei-ros e grileiros. Os assassinos de Rosalino foram condenados e cumpriram pena na prisão”, escreveu, em 2006, Fábio Alves dos Santos, o Fabião, ex-missionário do Cimi, advogado e professor da PUC-MG.

A terra foi homologada, com 46.414 hectares, em 1989. Porém, a demarcação ocorreu antes da Constituição de 1988 e não abarcou a totalidade do território, perto de 100 mil hectares, conforme estudos antropológicos. Como metade da área ficou fora, os Xakriabá passaram a reivindicar os territórios exclusos. Em 2000, conseguiram mais uma área, cha-mada de Rancharia. Agora os indígenas estão mobilizados para fechar o total da terra indígena e exigem que o Ministério da Justiça complete o procedimento.

Para as lideranças Xakriabá, o sangue de Rosalino germinou as lutas recentes. À margem de ameaças e da morosidade do governo federal sobre as novas retomadas e demandas, os Xakriabá repetem o que a liderança assassinada em 1987 dizia: “Eu prefiro ser adubo, mas sair daqui não vou”. n

guém foi atingido, mas dois jovens aca-baram feridos pelos estilhaços de vidro. Os indígenas especulam que o alvo era o irmão do cacique Babau, proprietário do caminhão. Ameaças de morte voltaram à tona contra os Tupinambá e o direito de ir e vir passou a ser limitado nas cidades do entorno da terra indígena.

A agenda eleitoral, no entanto, parece ser mais um elemento na conturbada con-juntura no extremo sul baiano e no país. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardo-zo, passou a suspender os procedimentos de demarcação em busca de mesas de diálogo, sempre atendendo aos pedi-dos de políticos da região sob conflito fundiário. “Essas mesas são verdadeiros balcões eleitorais, negociação de apoios regionais”, analisa o secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário, Saulo Feitosa. Para o indigenista, o governo trata o direito dos povos indígenas como barganha eleitoral.

Povo Xakriabá retoma território já reconhecido e sofre ameaças

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12Setembro–2013

Propostas legislativas,

como o PL 1610 e o PLP 227,

pretendem abrir as terras

indígenas para a mineração:

retrocesso histórico

Egydio SchwadeCasa da Cultura do Urubuí

companhando uma equipe de TV alemã, tive a oportunidade de presenciar uma incrível e heróica ação de um grupo de

Yanomami na retirada e destruição de garimpos ilegais em suas terras. Cansa-dos de esperar que o Estado brasileiro cumpra seu dever de proteger as suas terras, essa gente se arrisca em defesa de seu povo, território e da natureza, que é a garantia de suas e nossas vidas e culturas.

Doze índios Yanomami, metade armada de arco e flecha e metade com velhas espingardas, espólio de garim-pos já destruídos, com o apoio de três funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai), mais Floriano, cineasta de São Paulo, Daniel, da TV alemã, Erick de Manacapuru e eu como convidados. O objetivo da expedição era a destruição de mais dois garimpos nos confins de suas terras, próximo à Venezuela. Um pouco mais de uma hora de voo num velho Cesna, mais dois dias de viagem em três pequenas embarcações e uma hora e meia de caminhada pela floresta e estávamos todos diante do primeiro garimpo em plena atividade com o “tu, tu, tu” de seus dois possantes motores em pleno funcionamento, puxando lama e água por sobre um jirau. E lá no fundo do buraco seis garimpeiros mourejando no barro.

Era aproximadamente uma hora da tarde quando oito índios cercaram os garimpeiros e deram o grito de guerra, enquanto os quatro restantes ficaram escondidos no entorno para surpreender algum fugitivo. Apenas um reincidente tentou a fuga, mas foi imediatamente cercado e capturado. Os prisioneiros fo-ram conduzidos até um rancho coberto de lona plástica. Ali ficaram guardados por quatro Yanomami e seus pertences examinados por um funcionário da Funai, enquanto os demais se dirigiram imediatamente em direção a outro garimpo não muito distante dali, pois se ouvia nitidamente a batida de mais motores. Ali se repetiu a cena e mais cinco garimpeiros foram presos.

A

Relato

Ouça o Potyrõ Todos os sábados e domingos, às 12h35,dentro do Programa Caminhos da Fé, na rádio Aparecida. A transmissão é para todo o Brasil.

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820 kHz

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Seguiu-se a destruição dos equipa-mentos, iniciando pelos motores. Para isto serviram picaretas e machados encontrados ali mesmo. Depois os jirais de lavagem, mangueiras e os tapetes de coleta do ouro. E finalmente, a queima dos barracos. O mercúrio encontrado com os garimpeiros foi entregue para os agentes da Funai para ser levado às autoridades como prova de mais um crime ambiental.

Com todos os demais pertences dos garimpeiros ensacados como espólio, os índios iniciaram um verdadeiro pro-cesso pedagógico de reeducação dos garimpeiros para que ninguém deles mais ousasse repetir a ação ilegal na qual estiveram envolvidos.

Sempre de armas na mão, agora com mais duas espingardas apreendi-das, reuniram os prisioneiros.

Apesar do avançado da hora e a grande distância a ser ainda vencida até a aldeia, dois tuxauas fizeram um longo discurso, no qual lhes descreveram o mal que estavam praticando a seu povo,

poluindo as suas águas e depredando a sua floresta, seus rios e caça. Finaliza-ram com advertências e ameaças caso voltassem de novo. Mas esta primeira etapa do processo de reeducação ter-minou com um ato de humanidade: a soltura de um dos garimpeiros para que procurasse a sua mulher, a única mulher no meio do grupo, que apavorada com os gritos dos índios na hora do ataque se embrenhara na floresta. Exigiram, en-tretanto, que o mesmo se apresentasse ao tuxaua de determinada aldeia e no Posto da Funai. Na caminhada de volta até as embarcações, coube a eu carregar uma cartela de ovos do espólio.

Desanimados com a lentidão ou omissão das autoridades policiais, os índios estão tomando a arriscada iniciativa da expulsão dos garimpeiros de suas terras. Aos 78 anos de idade, acompanhando apenas como elemento de apoio, sem arma nas mãos, pude testemunhar como seria fácil para o Ministério da Justiça cumprir seu de-ver de acabar com os garimpos ilegais

nas terras indígenas, este angustiante problema de tantos povos nesta região amazônica.

Mas ao contrário, está aí o flagrante de dezenas de deputados federais da base aliada, integrados na bancada ruralista, tramando com o tal PLP de nú-mero 227/2012, como os portugueses e espanhóis o fizeram durante todo o pe-ríodo colonial, contra as leis do Estado e contra a consciência da humanidade, saqueando as riquezas minerais dos povos indígenas e transferindo-as aos países ricos como commodities.

De Roraima me dirigi à outra reserva indígena. Desta vez ao Leste do Pará, a reserva do Alto Guamá dos índios Tene-tehara. Acompanhando o Tuxaua Valde-ci, aquele que em dezembro último foi notícia nacional, quando sobreviveu a um ataque e tentativa de sequestro de invasores e cultivadores de maconha no município de Nova Esperança do Piriá. Escapou embrenhando-se pela floresta, onde permaneceu escondido durante três dias. A floresta da reserva já está em 50% destruída por madeireiros que também já detonaram toda a mata ao redor da Terra Indígena, inclusive ao longo dos rios e igarapés. Agora amea-çam o que restou das áreas indígenas do Alto Guamá e Rio Capim. Para o governo flagrar os invasores não é ne-cessário grande esforço. Basta alguns funcionários trafegarem pela estrada de terra de Paragominas até a aldeia do Cajueiro dos índios Tenetehara ou, de dia mesmo, sair de Paragominas rumo ao Rio Capim, atravessar a balsa e já se defronta com a destruição instalada em enormes serrarias ou, ambulante, sobre carretas carregadas com montanhas de toras.

A covardia do Governo na defesa dos povos e populações necessitados de um mínimo de auxílio raia a inutili-dade desse poder de Estado, quando se trata dos direitos dessa gente. Deixem suas modernas armas em mãos dos ín-dios que eles mesmos farão o que é de-ver primeiro do Exército e da Polícia: a defesa dos mais fracos e da Constituição do país. Que desenvolvimento é esse que destrói o ambiente, o bem viver dos povos e o futuro da humanidade? n

Garimpos ilegais em terras Yanomami

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13 Setembro–2013

Em junho, os Munduruku vieram a Brasília afirmar sua posição contrária à construção da hidrelétrica no Rio Tapajós. Ministro Gilberto Carvalho afirmou que esta posição é ruim para o governo e para eles

Renato Santana,de Brasília (DF)

epois de intervenção prota-gonizada pelo Poder Público de Jacareacanga, município ao sul do estado do Pará, durante

reunião do povo Munduruku, em agos-to, caciques e lideranças afirmam, em nota pública, que o povo Munduruku seguirá contrário à construção de usi-nas hidrelétricas no rio Tapajós, cujas águas cortam o território indígena e se barradas inundarão aldeias, áreas de subsistência e locais sagrados do povo.

Para as lideranças Munduruku, o governo federal e demais grupos interessados, que usam a prefeitura e os vereadores para dividir o povo e facilitar a entrada do projeto de usina hidrelétrica no Tapajós. “Querem colo-car pessoas que são a favor (da usina) para ter o controle. Fizeram reunião para enviar relatório ao governo”, de-nuncia Jairo Saw, porta-voz do cacique geral Munduruku.

No último dia 3 de setembro, foi convocada uma reunião para avaliar o movimento de resistência aos projetos da usina. Cerca de 83 caciques des-ceram das aldeias para Jacareacanga. “A pauta dizia que era para avaliar os últimos acontecimentos do movimen-to. Era para fortalecer a luta contra os grandes projetos e a organização dos Munduruku de uma forma geral”, explica Saw.

Porém, o prefeito da cidade, Rau-lien Queiroz, filiado ao PT, policiais fortemente armados, vereadores e as-sessores políticos garantiram a inversão da pauta: o encontro passou a ser para mudar a direção da Associação Pusuru. Capangas proibiam registros fotográ-ficos, quem chegasse era revistado e faixas contra o projeto hidrelétrico foram proibidas de serem abertas.

A Associação Pusuru se tornou um dos principais instrumentos do povo Munduruku de mobilização contra empreendimentos hidrelétricos nos rios da Amazônia. Entre abril e maio, os Munduruku ocuparam por duas vezes o principal canteiro da UHE Belo Monte, no rio Xingu, e em junho realizaram manifestações em Brasília e detiveram a ação de técnicos que trabalhavam no interior do território indígena para preparar relatório ambiental em prol da construção da usina. Protestaram também na Câmara dos Vereadores de Jacareacanga, reivindicando um posi-cionamento contrário dos edis ante o

D

Tapajós

projeto hidrelétrico do governo federal. Todas as ações foram criticadas

pelo prefeito durante a reunião, sem possibilidade de defesa por parte dos Munduruku. “Os caciques e lideranças não foram permitidos de falar e o tem-po estava restrito em poucos minutos. Não existe isso em nossas reuniões. A maioria não entendeu o que estava sendo discutido, porque era para se dis-cutir outra coisa”, destaca Jairo Saw. Na nota, o movimento aponta que o golpe foi dado por políticos da cidade que vi-sam acabar com a resistência ao projeto hidrelétrico, mas que “não conseguiram acabar porque somos maioria”.

Maria Leusa Munduruku acabou retirada da Associação Pusuru, da qual era vice-presidente. Passou cerca de dois meses fora da aldeia, entre as ocupações ao canteiro de Belo Monte e as mobilizações de Brasília. Sempre foi contra a usina e presenciou o secretário de Assuntos Indígenas de Jacareacanga ameaçando de que não garantiria o combustível dos barcos para a volta das lideranças às comunidades se as faixas contra a usina não fossem reti-radas. “O cacique com quem ele falava se intimidou. Eram muitos policiais,

capangas. Fomos todos pegos de sur-presa”, afirma.

Estratégia que vem de cimaNão é a primeira vez que o Poder

Público de Jacareacanga é usado como via de acesso para a imposição de pro-jetos nas terras Munduruku, aquém às vontades e opiniões do povo. Em agos-to de 2011, representantes da empresa Celestial Green, ligada ao mercado de carbono e REDD, se reuniram com ve-readores para assinar um contrato que concedia direitos de uso absoluto das terras indígenas à empresa durante 30 anos. Os Munduruku não aceitaram, denunciaram às autoridades e negaram qualquer trato.

Para Jairo Saw, a situação presente não é diferente: o governo federal age pelo Poder Público local para impor o projeto de usina nas terras do povo. “A ideia do governo é acabar com a nossa cultura, dividir o povo e fazer a integra-ção social do índio na sociedade que o governo controla. Se o Munduruku está reagindo é para manter a cultura; se o povo se aquietar é porque desaparece-ram as tradições e a língua”, explica o assessor do cacique geral.

Outro ponto destacado por Saw é o local da reunião. Para ele, a armação co-meça quando foi decidida a cidade para o encontro. “Eles (prefeito e vereadores) tinham medo de que acontecesse nas aldeias e as lideranças se revoltassem com a atitude dos vereadores. Em Jaca-reacanga eles podiam chamar a polícia a qualquer momento, intimidando os caciques e lideranças”, analisa Saw. O encontro foi arcado, segundo a lideran-ça, pelos próprios gestores municipais. Dos 83 caciques presentes, apenas seis tiveram direito a fala.

Num outro sentido, as lideranças Munduruku apontam a ingerência dos vereadores indígenas. Saw explica que mesmo que eleitos com votos Mun-duruku, os parlamentares indígenas não representam o povo e tampouco podem falar e decidir pelo povo, tal como aconteceu na questão do contra-to com a Celestial Green e agora no caso da construção da usina. A decisão dos Munduruku é uma só: contra qualquer usina nos rios da Amazônia, sobretudo no Tapajós.

“Então eles precisam respeitar isso. Governo federal tem que discutir com a gente, nossa opinião é que vale. Da ou-tra vez foi a mesma coisa: Paulo Maldos (da Secretaria Geral da Presidência da República) se reuniu com os vereadores, enquanto os caciques ficaram esperando por ele na aldeia Sai Cinza”, frisa Saw.

Os vereadores indígenas alegaram que o movimento Munduruku, em suas ações, sobretudo na retirada dos técni-cos do interior da terra indígena, “passa por cima” do cacique geral. Saw rechaça a acusação: “Assessoro o cacique geral e ele acompanha o movimento de resis-tência, assim como os outros caciques. Inclusive ele esteve presente aqui em Jacareacanga para que os guerreiros mantivessem o controle e ele ter como orientar”. n

Caciques e lideranças Munduruku denunciam intervenção do governo federal para forçar construção de usina

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14Setembro–2013

Durante o processo de colonização

que quase os dizimou,

membros do povo Charrua

foram levados para a França

e expostos como “bichos

de circo”

Elaine Tavares  Jornalista

m 1626 é a vez da chegada dos jesuítas que começam a criar missões para aldear os Charrua. O objetivo era domesticar e con-

verter. Os guarani foram mais suscetíveis ao discurso e a ação dos jesuítas, mas os charrua não quiseram nem saber. Eram homens e mulheres livres, acostumados aos caminhos da pampa e não houve quem pudesse prendê-los, ainda que com discursos de salvação. Diz a história que chegou a existir uma pequena redução charrua, em torno de 500 almas, mas não durou mais que quatro anos. Os charrua prezavam a liberdade e, acossados pela invasão branca, acabavam por realizar ope-rações de saque nos povoados, em busca do fumo e da erva-mate. Por conta disso a relação com os colonizadores se acirrava cada vez mais. Naqueles dias começavam a surgir as estâncias, e o gado deixava de ser solto nas pradarias, sendo recolhido em grandes currais. Assim, os animais livres escasseavam e os indígenas perdiam sua fonte de sobrevivência, passando a viver em estado de miséria. Sem terra, sem gado e sem comida, só restava o roubo.

Para os espanhóis e criollos que começaram a ocupar as terras da Banda Oriental, aquela “indiarada” começou a ser um problema e tanto. Era preciso exterminá-los. Foi nesse contexto que aconteceu a famosa “batalha de Yi” em 1702, quando os espanhóis decidiram encerrar a aliança que mantinham com os charrua e os minuano, e resolveram matar todo mundo. Para isso, de forma perversa, contaram com a ajuda dos gua-rani, os quais já mantinham aldeados há anos. E o resultado foi que mais de 200 charrua pereceram sob o exército de dois mil guarani. Outros quinhentos, levados como prisioneiros para as missões, foram assassinados pelos tapes, também orien-tados pelos jesuítas e chefes espanhóis. Era o que os espanhóis chamavam de “limpeza dos campos”. Na metade do século muitos tinham sido passado pela faca e as mulheres e crianças mandadas a Buenos Aires e Montevidéu servindo como domésticas. Ainda assim, vários grupos resistiram e seguiram vagueando pelos campos, vivendo de contrabando de gado e roubo.

Artigas, os charrua e a independência

São esses valentes que o jovem José Artigas vai encontrar nas cercanias das terras onde vivia com os pais, na imensidão da campanha gaúcha. Desde bem guri ele fugia para as tolderias e aprendia com os charrua o valor da vida em liberdade. Aprendeu suas táticas de guerra, sua cultura, sua forma comunitá-ria de viver. Quando então, finalmente, saiu de casa para não mais voltar, foi

E

Resistentes

viver de aventuras como contrabandista de gado. Abdicando de ser um “filho de fazendeiro” era com os irmãos charrua que ele vagueava pelos campos na única rebelião possível naqueles dias: pegar os espanhóis pelo bolso. Em 1897, quando decide entrar para o batalhão de Blanden-gles, Artigas já tem muito claro os seus objetivos. Inspirado por tantas lutas que assomaram contra o domínio espanhol, Artigas decide que, junto com os negros e índios – os mais explorados entre os explorados – vai comandar a luta pela independência da Banda Oriental.

E é assim que as coisas acontecem. O soldado Artigas não é um soldado qualquer. Ele pensa e propõe. Tem do seu lado uma leva de homens livres que o seguem de livre vontade. Não como um líder, mas como a um irmão. Acreditam nele e nos seus desejos de vida digna, de terra repartida, de vida comunitária. Esse legado, aprendido com os charrua, é o que vai comandar toda a proposta artiguista de libertação. E é na valentia indígena que acontece a primeira grande batalha de Artigas, na comunidade de Las Piedras, em 1810. Armados apenas de facas, os comandados de Artigas colocam para correr os soldados bem armados da coroa. Depois disso, são inúmeras as pá-ginas da guerra, com Artigas e seu grupo de índios e negros, aos quais chamava de “povo de heróis”. Com eles, praticava a política da soberania popular e da autode-terminação, gestando uma consciência de classe, de pertencimento, que se manteve firme até o massacre final. Nos acampa-mentos comandados por Artigas todas as coisas eram discutidas abertamente, cada soldado, cada mulher, cada ser, tinha direito a voz e voto. Era essa gente que deliberava, Artigas apenas cumpria. No primeiro grande êxodo, quando o povo seguiu com ele pelo lado norte do rio Uru-guai, Artigas chegou a criar uma entidade sociológica, a qual dizia obedecer. Era o “povo oriental em armas”. Nunca traiu os seus companheiros e com eles levou a Banda Oriental à liberdade.

Mas, a história da libertação desta parte do sul do mundo tem também os seus traidores, que acabaram sendo os carrascos de Artigas e dos charrua. Logo depois da independência, os interesses da elite criolla foram se consolidando e “aquela gente suja” que andava com Arti-gas acabou virando uma pedra no sapato. Ninguém queria que as ideias de reforma agrária, democracia e autodeterminação vingassem por ali. A revolução artigista representava uma transformação radical nos métodos e práticas de governo. A prioridade era a ação direta do povo. As comunidades elegiam seus representan-tes de forma livre e era nas assembleias que se discutiam os temas relevantes da nação. Este sistema foi cunhado como o “sistema dos povos livres”. Pela primeira vez, depois da conquista europeia, o

território voltava a ser das gentes. E a proposta defendida por Artigas era tão avançada que ele conseguia manter unidos os povos originários e os descen-dentes espanhóis sob o mesmo desejo: criar uma pátria nova, livre, soberana, onde cada um tivesse o mesmo poder. Era coisa demais para as elites locais e para os que sonhavam em dominar a região, rica em carne e couro.

Foi aí que começou a se gestar o pro-cesso de destruição de Artigas e de seu povo. Através de intrigas e difamações, o comandante é escorraçado do Uruguai, partindo para o exílio no Paraguai. Com ele seguem dezenas de famílias charrua, decididas a compartilhar sua derrota. Mas, outros tantos permanecem no território uruguaio e passam a ser vistos como um perigo em potencial. Eram homens livres e não haveriam de aceitar a perda das terras e de todo o ideário construído com Artigas. O presidente da nação recém-criada, Fructuoso Rivera decide então chamar os charrua para uma armadilha.

Corre o ano de 1831, num cálido abril, quando Fructuoso envia convites a todas

as tolderias charrua para um encontro em Salsipuedes. Pede a ajuda dos indí-genas para defender as fronteiras contra os portugueses. Os charrua acorrem, solícitos, em defesa da pátria oriental, a qual aprenderam a amar como sua. Eles chegam, armam seus toldos e esperam pelo presidente. Ele nunca chegaria. Durante a noite, enquanto os indígenas dormem, o exército ataca. A ordem é matar todo mundo. Nenhum charrua deve sair vivo. O que se vê na manhã seguinte é um banho de sangue. O povo charrua está exterminado. Os poucos que restam vivos são vendidos como escravos. A nova nação se vê livre do incômodo: o valente povo charrua que, na verdade, foi o protagonista da liberdade.

Entre os “escravos” levados para Montevidéu seguem Vaimaca, Senaqué, Tacuabé e Guyunusa, que dois anos mais tarde são levados como “bichos de circo” para a França. Subsumidos como criados e perdidos de sua liberdade o povo charrua originário do Uruguai vai se apagando, até deles não restar mais vestígios. Alguns poucos homens que sobrevivem ao mas-sacre de Salsipuedes, comandados pelo cacique Sepé atravessam o rio Uruguai pela cidade de Quaraí, e passam para o lado português, indo, mais tarde, se integrar às colunas do exército farrapo que iniciou a luta pela independência na região do Rio Grande do Sul. Misturados aos minuanos e tapes, eles irão escrever páginas gloriosas no chão brasileiro, mas, igualmente derrotados, também desapa-recem na poeira da história.

O fim?Até o final do século XX era dado

como certo que o povo charrua era uma gente extinta. Dela restava só a memória daqueles anos longínquos da independên-cia. Mas, pouco a pouco, pessoas foram se deparando com suas raízes, descobrindo seus ancestrais. Descendentes da gente charrua que passou para o Paraguai com

Levanta o povo Charrua – PARTE II

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15 Setembro–2013

Luto

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Artigas, do grupo que cruzou o rio Uru-guai e veio para o Brasil, dos que sobre-viveram como escravos ou empregados domésticos. A história charrua voltou a ser contada, palavras da língua original começaram a ser lembradas e a vida brotou. O povo charrua foi assomando nos descendentes e hoje já são milhares os que se autodenominam assim. Há uma organização do povo charrua no Uruguai e outra no Rio Grande do Sul. Não há um território específico sendo reivindicado ainda, mas já se sabe que no início de 1900 havia um pequeno grupo fixado na região de Tacuarembó, no Uruguai, bem como atualmente há um grupo vivendo em comunidade próximo à Porto Alegre.

Para os descendentes o mais impor-tante agora é recuperar a história. O povo do Uruguai precisa saber que só é livre porque um dia o povo charrua se levantou em armas, junto com Artigas, e defendeu as fronteiras ajudando a criar a nação. O povo do sul precisa saber que os charrua foram enganados, massacrados, mas ain-da assim deixaram viva a sua marca. Não é sem razão que na entrada de Porto Ale-gre, no Rio Grande do Sul, a estátua que representa a cidade é uma figura que é

Carlos Alberto dos Santos Dutra,Indigenista, professor e escritor

ue tristeza uma notícia dessas no dia dos religiosos” nos lem-bra o amigo Padre Lauri Vital Bósio. A tragédia ocorrida na

tarde de sexta-feira, dia 16 de agosto último, senti a mesma dor e aperto no coração ao saber do fato. Duas religio-sas, Lucinda Moretti e Adelayde Furla-netto, que pertenciam a Congregação Irmãs de São José de Chambéry, foram vítima de acidente de trânsito na BR-163, a três quilômetros do perímetro urbano do município de Juti, no sentido Naviraí, em Mato Grosso do Sul.

As irmãs Lucinda, de 71 anos, e Adelayde, de 77 anos, “deixaram marcas na região Sul do Estado no trabalho em favor dos indígenas e na defesa dos pequenos proprietários rurais. Desde a década de 70 em Mato Grosso do Sul, Lucinda foi uma das pioneiras da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e idealizadora da Feira da Semente Crioula, em Juti”, nos lembra Lidiane Cober. A perda dessas duas batalhadoras missionárias do Reino de Deus, que deixaram sua terra natal lá no Rio Grande do Sul — Feliz e Gari-baldi –, para dedicarem-se, pelo CIMI, na luta em favor dos povos indígena e campesinos, está sendo sentida por toda a comunidade de Glória de Dourados, Fátima do Sul, Caarapó, Juti e Dourados, onde suas ações são por demais conhecidas.

Sob a poeira da estrada e lá a vemos, Irmã Adelayde, sempre ativa e zombando da idade – o que dava inveja a muito jovem –, atuando no distrito da Nova Casa Verde, em Nova Andradina, entre os deserdados da sorte. O amigo Vanilton relata que, na ocasião do aci-dente, elas retornavam de uma aldeia indígena: iam ao sitio de um amigo para pegar fertilizante natural.

Quem conhece as estradas que margeiam sítios e chácaras na região

de Dourados e sul do Estado, ponti-lhada de pequenas propriedades de agricultores familiares, acampamen-tos rurais e aldeias indígenas, sabe que o progresso é veloz e pouco se apercebe dos que estão à sua volta. Os passos lentos e sadios da esperança, que andava de Gol, e lançava amiúde sementes do Reino para um justo amanhã, entretanto não é páreo para velozes caminhonetes Rangers XLS e o frescor da juventude. Conforme apurado pela reportagem do Caarapó News, o veículo foi jogado a mais de 30 metros do local da colisão. As irmãs eram muito queridas pelas famílias assentadas da reforma agrária, noticia a Imprensa. Elas moravam nesses as-sentamentos auxiliando as mulheres e as crianças.

Viviam de modo humilde, levando o carisma da ordem, espiritualidade e lutando por melhores condições de vida. Na Pastoral da Terra, cita Lilian Donadelli, elas desenvolviam projetos voltados à educação ambiental, de forma participativa, incentivando a conservação de espécies existentes na área do assentamento, além de ensinar a multimistura rica em vitaminas para fortalecer a imunidade das crianças e adultos. Perdem, assim, os povos indí-genas e os sem-terra de Mato Grosso do Sul, as irmãs Lucinda Moretti e Ade-layde Furlanetto que foram sepultadas no domingo (18.8.), em Garibaldi-RS, dia em que se comemora o dia das vocações religiosas.

Os municípios de Juti e Carapó, hoje, estão de luto, em especial a aldeia indígena Te’ yikue onde a Irmã Lucinda prestava seu abnegado trabalho pastoral. O Mosteiro de São José de Garibaldi haverá de dobrar os sinos de lamento e glória, pela partida dessas duas missionárias que deixa-ram sua terra, e hoje, temos certeza, se encontram na terra definitiva de Ñhanderú, ao lado da Assunta Virgem Maria. n

Lucinda e Adelayde: missão, simplicidade e testemunho

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um misto de paisano e charrua. O famoso “laçador”, apesar de um semblante bem paisano, aparece com o xiripá, a vincha na testa e a boleadeira, elementos típicos da cultura charrua.

E, hoje, já na metade da primeira década do século vinte e um, os charrua se levantam e se mostram. Tanto que no dia 9 de novembro de 2007, após uma luta que já durava 172 anos, a Câmara Municipal de Porto Alegre reconheceu a comunidade charrua como um povo indí-gena brasileiro. Considerado extinta pela Fundação Nacional do Índio (Funai), essa foi uma vitória fundamental. O evento foi organizado em conjunto pelas co-missões de Direitos Humanos da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa e do Senado Federal.

Há informações de que existem mais de seis mil charrua nos países que com-põem o Mercosul. Só no Rio Grande do Sul, são mais de quatrocentos índios pre-sentes nas localidades de Santo Ângelo, São Miguel das Missões e Porto Alegre. A terrível sentença de Fructuoso Rivera não se cumpriu. O povo que dominava todo o território da Banda Oriental não foi exterminado. Ele vive e avança! n

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Benedito PreziaHistoriador

mbora os Manao tenham ficado conhecidos na História do Brasil pela luta de Ajuricaba e, sobretudo, pelo nome que legaram à capital do Amazonas, muito pouco se sabe sobre eles. Eram de língua aruak,

grandes guerreiros, tendo sido acusados de antropofagia, embora tal prática nunca tenha sido comprovada.

Em 1727 espalharam-se pelos afluentes do médio rio Negro, embora muitos tenham aceitado viver nas missões dos carmelitas, que ocupavam a região Norte.

A chegada do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal, significou a implantação de uma política mais independente, cujo objetivo era ampliar as fronteiras da colônia e diminuir o poder das missões.

O Diretório Pombalino, de 1757, concre-tizou esse projeto, acabando com os aldea-mentos missionários, que se tornavam vilas portuguesas. Os indígenas foram considerados livres, portanto, cidadãos portugueses, mas de 3ª. classe, pois a metade deles, dos 13 aos 60 anos, era obrigado a trabalhar para os colonos, que nem sempre os remunera-vam. Para suprir a mão de obra indígena, o governador estimulou a aquisição de escravos africanos, alegando que eram mais aptos ao trabalho “sis-temático”. Mas pouco resultado deu, pois um escravo importado

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16Setembro–2013

APOIADORES

OS MANAO ENFRENTAM A CRUZ E O CANHÃO custava quatro ou cinco vezes mais do que um escravo indígena.

Outra iniciativa desse governador foi criar a capitania de São José do Rio Negro e a capital ser implantada na vila de Barcelos, no médio rio Negro, para garantir uma ocupação mais efetiva dos rios Negro e Branco, que cortavam regiões disputadas pelos holandeses. A nova povoação só se manteve graças à aliança com lideranças indígenas Baré, Kawaricenas, Ka-rajá e Manao, como Kaboquena, cuja aldeia, próxima a Barcelos, foi transformada na vila de Moura.

Ainda era grande o controle dos missioná-rios sobre os indígenas, o que provocava cons-tantes reclamações, algumas vezes violentas. Foi o que aconteceu com Domingos, liderança Manao, morador de Lamalonga. Irritado com a interferência de um missionário, que o obri-gava a separar-se de uma concubina, decidiu expulsar o religioso. Articulado com outros indígenas cristãos, como João Damasceno, Ambrósio e Manoel, no dia 1º de junho de 1757 invadiram Moura, entrando na casa paro-quial. Não encontrando o frei, a residência foi saqueada. Em seguida a igreja foi igualmente invadida e os ornamentos e vasos do culto foram levados. Por fim, a vila

foi incendiada.

Buscou articular-se com mais lideranças não catequizadas e aldeadas, como Uanokasari e Mabé. Quatro meses depois, a 24 de setem-bro, atacou a vila de Moreira. Apanhados de surpresa, vários portugueses foram mortos, inclusive duas lideranças emblemáticas: o carmelita Fr. Raimundo de Santo Eliseu, líder espiritual, e o cacique Kaboquena, o interme-diário dos invasores.

Dois dias depois a aldeia de Bararoá, que mantinha um destacamento militar de 20 homens, foi igualmente tomada. Houve uma debandada geral, inclusive de seu coman-dante, João Teles de Menezes e Mello, que se escondeu nas matas vizinhas. Como nos ataques anteriores, a igreja foi saqueada e a cabeça da imagem de Santa Rosa, quebrada, sendo colocada como troféu na proa de uma das canoas.

Animados com essas vitórias, buscaram um projeto maior: a invasão de Barcelos. Por causas desconhecidas, os preparativos e as alianças para o ataque demoraram para acon-tecer, podendo o governador ser avisado. De Belém mandou importante reforço, que salvou

da destruição a capital e todo pro-jeto de ocupação do rio Negro,

levando os Manao a desapare-cerem pela repressão e pela mestiçagem*.

* Essas informações foram colhidas do Diário da Viagem de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, ouvidor e intendente da Capitania do Rio Negro, realizada em 1774-1775 (Lisboa, 1825).