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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O CADERNO E O GPS
Luciano Ferreira da Silva1
Fernando Seffner2
Resumo: A trajetória de vida escolar dos meninos é atravessada por embates entre os diferentes
modos de construção e de manutenção de sua masculinidade. Muitas vezes, tais construções entram
em conflito com as exigências do desempenho escolar desse menino. Não raras vezes, o menino
abre mão de construir-se como um bom aluno para privilegiar atitudes na escola que garantam a ele
uma popularidade maior e que, ao mesmo tempo, reforcem sua masculinidade. A ideia de ter um
GPS para se encontrar num caderno escolar partiu de um menino durante o período de observações
e entrevistas numa pesquisa de doutorado. Verifica-se, assim, que o menino, muitas vezes, a fim de
consolidar-se como homem no ambiente escolar, mostra-se como um aluno relapso, sem material,
ou dono de um material completamente desorganizado, a exigir estratégias de busca sofisticadas.
Outrossim, chamadas de atenção por parte dos professores aos meninos logo viram elogios,
especialmente se acompanhadas de enunciados como “Isso é coisa de menino”, o que acaba
configurando-se mais como um estímulo ao ato do que como uma forma de evitar sua recorrência.
Num processo de normalização, constroem-se muitos meninos como donos de uma masculinidade
hegemônica que, muitas vezes, entra em conflito com atitudes que seriam esperadas de um bom
aluno, ou, pelo menos, de um aluno que tenha um melhor desempenho escolar. Prefere o menino,
pois, ser visto e reconhecido como homem, mesmo que isso interfira em seu desempenho como
aluno.
Palavras-chave: Masculinidades. Empenho escolar. Construção. Normalização
Uma Escola, Uma Escolha – O Método
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de doutorado em andamento, desenvolvida na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPEGEdu). Nesta primeira parte, pretende-se apresentar a escola na qual a pesquisa está
sendo desenvolvida, os métodos escolhidos para a coleta de dados e material empírico, bem como a
origem da expressão que dá título ao trabalho – O caderno e o GPS. Tudo partiu da própria
experiência do pesquisador, que, durante mais de vinte e cinco anos, tem sido professor de Ensino
Fundamental e Médio em escolas da rede pública e da rede privada do estado do Rio Grande do Sul.
São anos, pois, de observação, de inquietação, de desacomodação com questões de gênero que se
observam na sala de aula, em especial no que diz respeito ao comportamento dos meninos e o
quanto esse comportamento pode influenciar no seu desempenho escolar, principalmente no que
tange à produção e manutenção de sua masculinidade. Trata-se, ao fim e ao cabo, daquilo que se
1 Mestre em Educação, doutorando no PPGEdu (UFRGS), Porto Alegre, Brasil. 2 Doutor em Educação, Professor no PPGEdu (UFRGS), Porto Alegre, Breasil.
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pode chamar de implicações. São as implicações do professor com o tema e o modo como tais
implicações foram compondo toda a pesquisa.
O professor, porém, se faz pesquisador. Sai da sala de aula onde atua e observa e vai para
outra escola onde também observa, mas entrevista, conversa, ouve, coleta dados. Muitas vezes,
pesquisador e professor se confundem, pois um está imbuído do outro; um reside no outro. O
pesquisador não pode despir-se do professor, por mais que queira qualificar a pesquisa com o
devido distanciamento que se espera de uma pesquisa acadêmica. Fica presente, o tempo todo,
portanto, a subjetividade de ambos. Trata-se, pois, de uma pesquisa qualitativa, que se quer pós-
crítica, inserida no campo dos Estudos Culturais, mais especificamente, no campo dos Estudos de
Gênero. Sobre a pesquisa qualitativa, destaca-se o que tem a dizer Denise Gastaldo:
É assim que a pesquisa qualitativa pós-crítica pode explicar sua relevância: como uma
abordagem teórico-metodológica flexível, inserida em contextos específicos que falam das
micropolíticas do cotidiano que constituem e são constituídas pelos discursos dominantes
de nossa sociedade, na qual a subjetividade do/a pesquisador/a é uma ferramenta a serviço
da investigação, um exercício simultaneamente rigoroso e político permeado pelas relações
de poder que pretende estudar. (GASTALDO, 2012, p.13)
Conforme o que se verifica nas palavras da autora, localiza-se a pesquisa qualitativa num
contexto específico, qual seja, no caso desta pesquisa, o ambiente escolar, mais precisamente o de
uma escola em particular, onde a pesquisa se dá, bem como as observações, as capturas de cenas
escolares, entrevistas e conversar em grupos. Muitas cenas são registradas em diário de campo;
cenas estas provenientes da observação do pesquisador em suas próprias aulas. Tal observação pode
ser chamada, assim, de “participação observante”, pois o pesquisador já participa do processo,
sendo ele professor dos alunos observados e entrevistados; professor que também é pesquisador e
que tem seu olhar capturado pelas cenas que observa. Sendo assim, converte-se a participação do
pesquisador numa estratégia observante. Mas era preciso, também, sair da sua própria sala de aula,
sem despir-se do “jaleco de professor”.
Buscou-se, pois, uma escola da rede estadual de ensino, num município da Grande Porto
Alegre, para fins de continuidade da pesquisa. Uma escola da rede pública estadual do Rio Grande
do Sul onde o pesquisador não atua como professor. Tal escola tem sido visitada uma vez por
semana durante este primeiro semestre de 2017. Lá, procura-se investigar, entrevistar, reunir grupos
para discutir. Tudo com o objetivo de entender melhor a trajetória do menino, da construção de sua
masculinidade e suas implicações com o desempenho escolar. A escola escolhida é uma escola de
porte médio, com um número aproximado de quinze turmas; o turno em que se dá a pesquisa é o
turno da manhã, no qual apenas o Ensino Médio é oferecido. A faixa etária dos participantes,
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portanto, fica entre os quatorze e os dezoito anos, ou seja, entre alunos do primeiro e do terceiro ano
do ensino médio. Alguns métodos escolhidos para a coleta de dados são a observação, as
entrevistas, algumas dinâmicas, como a mostra de trechos de filmes ou cenas disponíveis na internet
e que tenham relevância para as discussões que se quer travar, além de discussões em pequenos
grupos.
Nesta escola também se fazem observações, o que acontece em diferentes aulas, desde aulas
ditas tradicionais, ou mesmo expositivas; momentos de avaliação – a famigerada prova; idas ao
pátio durante as aulas de educação física; ou mesmo momentos de descontração, como a hora do
lanche ou o recreio. Durante as observações, notas são registradas em um caderno, ao qual eu
chamo de “caderno de campo”; tais notas são reescritas com maiores detalhes num diário digitado
em computador, ao qual eu chamo de “diário de campo”.
As entrevistas são feitas em salas separadas, com um aluno ou aluna de cada vez, ou mesmo
em duplas. A eles e elas são feitas algumas perguntas, mais para que “os ponham a falar”, do que
para que deem respostas específicas. Tudo é registrado no celular do pesquisador, que funciona
como um gravador. As gravações – apenas de voz – são autorizadas devidamente pelos
participantes. A eles, sempre é esclarecida a sua total liberdade para a participação naquela
entrevista e que o mesmo ou a mesma pode, sempre e quando quiserem, retirar-se do ambiente,
abandonando a entrevista. Algo, que, porém, nunca aconteceu. Os alunos, em geral, gostam muito
de participar de momentos como esse. Muitos dizem se sentirem importantes ao serem entrevistados
e que as entrevistas os fazem pensar em suas próprias vidas; os fazem refletir.
As discussões, por sua vez, se dão em salas diferentes da sala de aula, com grupos de sete a
dez alunos e sempre após um vídeo, ou música, ou mesmo uma situação apresentada pelo
pesquisador e que serve de base para um debate ou discussão. Nesses momentos, o pesquisador
procura intervir pouco, deixando os participantes falaram à vontade, apenas interferindo quando o
assunto parece morrer. Foi num desses encontros que surgiu a frase que dá origem ao título deste
trabalho – O Caderno e o GPS.
Um menino relatou, durante uma discussão acerca da organização dos alunos e alunas em
relação às coisas ditas de sala de aula, como mochila, cadernos, trabalhos, temas de casa, entre
outros, que seu caderno era tão bagunçado que, para que ele mesmo pudesse se encontrar, precisaria
de um GPS. Ou seja, nem ele “se acha” naquele caderno. Tal assertiva gerou uma boa discussão, na
qual se refletiu sobre o porquê de tal situação ter sido apresentada por um menino e não por uma
menina; se isso também poderia ter sido dito por uma menina; se é mais comum entre os meninos
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terem cadernos desorganizados em comparação com as meninas; e por qual razão as pessoas, em
geral, entendem mais, ou mesmo “perdoam” mais, inclusive os professores, quando tal
comportamento parte de um menino. É como se esse comportamento estivesse na “norma” do
menino; na “norma” da construção da masculinidade; na “norma” do desempenho escolar dos
meninos. E é sobre norma, masculinidades e desempenho escolar que versa a próxima parte deste
trabalho.
Norma, Normalização e Poder Disciplinar
O que é normal numa sala de aula? O que consideramos normal no comportamento dos
alunos e das alunas? Há diferença no que diz respeito a essa normalidade entre os meninos e as
meninas? “Me empresta uma caneta?” “Quando é a prova?” “Tu poderias copiar pra mim, né?” “Eu
não trouxe o livro, professor.” “Não, eu não tenho caderno. Eu não copio.” “Eu gosto mais de
matemática e de física.” “Bem que a gente poderia ter educação física todos os dias.” “Ter cane-
tas coloridas, pintar e destacar partes do trabalho não é coisa de guri.”
Tais enunciados são repetidos cotidianamente na sala de aula. Podem ser enunciados de
meninos e de meninas. Mas muito provavelmente, são de meninos. Na maioria das vezes, muitos
deles não têm o material completo, não gostam de copiar do quadro, não têm materiais extras, como
lápis de cor, régua, cola, tesoura; quando muito, levam para a sala de aula o caderno e a caneta,
quase sempre fixada pela tampa no próprio caderno. Estojo3, para quê?
São gestos simples, cotidianos, aparentemente sem importância. Conforme o que nos diz
Foucault, quando se refere à passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de
fraude, em sua famosa obra Vigiar e Punir:
Com maior certeza e mais imediatamente, porém, significa um esforço para ajustar os
mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos: significa uma adaptação
e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das
pessoas, sua identidade, gestos aparentemente sem importância; significa uma outra política
a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa.
(FOUCAULT, 1997, p.66)
O que aqui interessa é justamente essa expressão usada pelo autor: gestos aparentemente
sem importância. Pois são justamente tais gestos, ou atitudes, ou forma de agir e de se comportar,
conforme os exemplos anteriormente citados, que posicionam sujeitos, ditam uma forma de ser
menino na sala de aula, fazem parte de uma norma, de uma postura esperada.
3 Estojo – palavra usado no sul do Brasil para referir-se àquele objeto dentro do qual se guardam e carregam canetas e
lápis, entre outros materiais. Em SC e no PR, é comum a palavra “penal”.
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O fato é que se considera como “normal” que um menino queira jogar futebol o tempo todo
e que a menina seja mais identificada com a sala de aula; que os meninos não tenham uma caneta
no dia da prova, momento em que este material é de suma importância; que mais meninos
apresentem um rendimento escolar baixo, se comparados às meninas; que mais meninos se evadam
da escola, principalmente da escola pública.
Faz parte da norma que uma menina não queira fazer nada na sala de aula, que não tenha o
material, que enfrente os professores? Quando uma menina age assim, diz-se muito tranquilamente
que ela está se comportando como um menino. Faz parte da norma, por exemplo, que muitos jovens
homens procurem cursos de engenharia quando chegam à faculdade e que os cursos de
enfermagem, de Letras, de Pedagogia ainda sejam mais procurados por mulheres. Faz parte da
norma, enfim, que os meninos apresentem, com frequência, cadernos tão desorganizados que, para
que possam se localizar, um GPS seria uma ótima opção.
Haveria, pois, uma norma, uma forma de ser estanque da qual não se pode fugir. E isso leva
a um ponto: questionar essa norma, colocando-a em cheque; dizer, até, que ela, per se, não existe. É
preciso, pois, estranhar a norma, aquilo que é considerado normal. Assim, invertamos a lógica: não
é “normal” que os meninos queiram jogar futebol mais do que estar na sala, mas diz-se que isso é o
normal; diz-se que é normal que os meninos não tenham o material completo assim como as
meninas; diz-se que é normal que mais homens frequentam os cursos de engenharia do que
mulheres; diz-se que é normal que mais mulheres façam Letras e Pedagogia; diz-se que é normal
que as meninas são donas de cadernos organizados e material completo na sala de aula.
Sim, dizemos todas essas coisas cotidianamente. Em outras palavras, normalizamos atitudes;
fazemos com que se pareçam normais; produzimos a norma; e assim, a norma passa a ser verbo –
normalizar é o que fazemos. Há uma constante normalização que enquadra as pessoas e que faz
com que delas esperemos determinadas atitudes. Conforme Fonseca, ao analisar os conceitos de
norma e normalização em Foucault, através de sua obra chamada Foucault e o Direito: Os
mecanismos disciplinares podem ser entendidos como instrumentos destinados à criação de hábitos,
instrumentos orientados ao desenvolvimento de hábitos em torno de práticas e posturas esperadas
(Fonseca, 2012, p. 171).
Trata-se, pois, de práticas e posturas esperadas. Espera-se que o menino não tenha a tal
canetinha e que não queira sublinhar os títulos dos conteúdos em seu caderno. Que ele queira,
enfim, um GPS para se encontrar em seu próprio caderno. Ou ainda, invertendo-se a lógica – não é
que se espera do menino que assim aja; mas considera-se normal quando ele assim age; considera-
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se que isso é uma postura esperada de um menino. O professor e a professora esperam de todos,
meninos e meninas, posturas semelhantes, atitudes semelhantes na sala de aula. Espera-se, enfim,
que todos estudem, que aprendam, que façam as tarefas solicitadas, as lições de casa, os deveres
escolares. Porém, quando isso não ocorre, quando aquilo que o professor e a professora esperavam
não acontece, estranha-se quando parte de uma menina e considera-se normal, quando parte de um
menino.
A sala de aula se configura num local de constante negociação entre o que o professor ou a
professora planejou e o que de fato pode vir a acontecer. Para que tudo se dê conforme o esperado,
é necessário que haja uma sujeição por parte dos alunos. Espera-se que haja aquilo que chamamos
de disciplina na sala de aula. Mas para ficarmos, ainda, na questão da normalização anteriormente
citada, relacionando-a com o disciplinamento, fiquemos com o que Veiga-Neto chama de
normalização disciplinar, ou seja, uma tentativa de conformar as pessoas a um modelo previamente
tido como a norma. Nas palavras dele:
Como explicou Foucault (2006), acontece uma normalização disciplinar quando se tenta
conformar as pessoas – em termos de seus gestos e ações – a um modelo previamente tido
como a norma. Assim, é dito normal aquele que é capaz de moldar-se ao modelo e,
inversamente, o anormal é aquele que não se enquadra ao modelo. (VEIGA-NETO,
LOPES, 2007, p.955)
Há um estreito diálogo entre o que diz Veiga-Neto e o que aqui se apresenta. Note-se que o
autor se refere à norma como algo previamente tido. Ou seja, algo que se supõe existir, que está
dado. Assim, não é que haja uma norma, uma forma determinada de ser menino e de ser menina que
é anterior à linguagem. Pelo contrário, ao tentarmos conformar as pessoas em termos de seus gestos
e ações é que estamos produzindo esta norma, ou seja, estamos impondo sobre as pessoas uma
normalização disciplinar. É tido como normal, pois, o menino que não tem o caderno, pois está de
acordo com o modelo; e é tido como anormal o menino que tem todo o caderno organizado, com
títulos destacados, com adesivos que marcam pontos importantes, ou que ali estejam apenas como
alegorias. Afinal, o normal é que as meninas enfeitem os cadernos e não os meninos. É no ato
mesmo de “enquadrar as pessoas e julgar os comportamentos” que produzimos ou reproduzimos a
norma, performatizamos a norma, como nos diz Butler, (2001, p.155).
Todo esse comportamento considerado normal quando vem de um menino pode, na verdade,
ser uma cilada para este menino que, se nela ainda não se encontra, pode vir a encontrá-la em sua
trajetória como aluno, como menino que quer ser, como quem constrói e mantém sua masculinidade
e que, por vezes, encontra, no caminho dessa construção, a cilada de que se fala. Os projetos de
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futuro dos meninos, por exemplo, podem não ser realizados da forma como ele espera se ele não se
der conta de que pode estar sentenciando o próprio fracasso através das na escola.
Um trabalho em grupo na sala de aula pode ser uma forma do menino exercer sua
malandragem, colocando seu nome no trabalho sem que tenha feito nada ou quase nada para isso.
Tal atitude, porém, provavelmente não será bem-vinda quando este mesmo menino for um homem
adulto e estiver no ambiente de trabalho. Assim, pode-se aqui perguntar, que ambiente de trabalho
será este? Para onde vão os meninos que abandonam a escola, que com ela não se identificam, que
por ela passam sem nela ver uma das possibilidades de um futuro melhor em termos profissionais?
Para onde vão os alunos que precisam de um GPS para se achar no próprio caderno?
Ora, na sala de aula, alunos como ele podem até ser admirados por alguns, até pela
masculinidade que exercem, pela forma como se mostram como homens. Mas até quando será
assim na vida deste e de muitos outros meninos que se comportam dessa forma? Na esteira desse
menino, muitos outros vão: são cadernos desorganizados como os dele; trabalhos não entregues;
negociações com professores para ganhar “na malandragem” oportunidades para entrega de tarefas;
é a falta de material em dias importantes como os dias de provas; são meninos que se orgulham de
terem uma letra muito mal desenhada. Quem nunca disse que letra de guri4 é sempre feia? O que é
preciso, então, para que se tenha uma “letra bonita”, ou ainda, uma “letra de menina”. Talvez seja
necessário todo um disciplinamento dos corpos, como também nos traz Foucault:
No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso
ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem
disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por
exemplo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por
inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador. (FOUCAULT, 1997, p.130)
Neste momento de sua obra, Foucault está falando mais especificamente do poder
disciplinar, poder que normaliza, que fabrica indivíduos, formas de ser, que, como diz o autor,
mesmo que o termo seja forte, “adestra” as pessoas:
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais
e melhor. [...] A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que
toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e instrumentos de seu exercício.
(FOUCAULT, 1997, p.143)
4 É a segunda vez que a palavra “guri” é usada. Trata-se de uma palavra sabidamente usada no estado do Rio Grande do
Sul para se referir aos meninos. Porém, muitas vezes tem uma conotação diferente da palavra menino. Dizer guri, ao
fim e ao cabo, não é a mesma coisa do que dizer menino. Guri parece estar mais colado a uma marca de masculinidade
hegemônica do que menino.
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Entendemos, no entanto, assim como Márcio Alves da Fonseca, quando analisa os conceitos
de norma e normalização em Foucault, que tais conceitos são imprecisos, são processos abertos e
variáveis (Fonseca, 2012. p. 40), pois ambos, meninos e meninas, podem resistir a isso: em algumas
situações, meninas não querem ajudar os meninos e meninos podem surpreender quem sempre acha
que eles não têm o material. A resistência, ou a possibilidade de resistência, é uma das
características do conceito de poder em Foucault. Assim, um e outro podem surpreender, ou seja,
resistir.
Tais atitudes, comportamentos esperados de meninos e meninas, formas de ser homem e
mulher se dão o tempo todo em muitos locais, não apenas na escola. A escola, porém, é um “lugar
institucional”, onde, conforme Fonseca, “os mecanismos de normalização disciplinar encontram sua
condição de possibilidade. É no contexto de uma estrutura institucional que a norma da disciplina é
produzida e tem seus pontos de aplicação.” (Fonseca, 2012, p.120).
Novamente temos a ideia de que a norma não é natural. É, conforme o autor, produzida.
Voltemos, assim, ao ponto de partida – estranhemos o que é normal e não confundamos normal com
natural. Não pode ser natural que o menino tenha a letra feia. Não está em seu corpo, em sua
biologia, não é determinado pela natureza. Normal e natural não são, pois, sinônimos. Não é
natural, pois, que os meninos não se comportem da forma como se espera de um bom aluno na sala
de aula. Não é, sequer, normal. Assim, o adjetivo verbaliza-se, pois o que fazemos é “normalizar”.
É como nos diz Foucault: “A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os
instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em
uma palavra, ela normaliza” (Foucault, 1997, p.153).
Encerra-se esta parte deste trabalho com este excerto de Foucault, sugerindo esta
verbalização da norma. Através de nossas palavras e do que dizemos acerca do ser menino e do ser
menina, comparamos formas de ser; diferenciamos uns dos outros; hierarquizamos, pois
valorizamos mais uma forma de ser homem e de ser mulher do que outras; homogeneizamos
esperando que todos se conformem a padrões pré-estabelecidos e conforme condutas esperadas;
excluímos quando não valorizamos formas ditas subalternas de ser homem e de ser mulher, ou de
ser menino e de ser menina na sala de aula; e para, encerrar, como diz o autor, em uma palavra –
normalizamos. Se normalizamos, a norma não pode ser natural, existir per se.
Considerações Finais
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Para encerrar, faz-se um convite: que estranhemos a norma, o que é dado como normal,
como “a” norma. Faz-se esse convite para que possamos estranhar o que é tido como natural e, a
partir daí, questionar a norma. Tal convite surgiu durtante uma disciplina de doutorado. Um colega,
numa intervenção de aula, disse ter chegado, um dia, num curso de Pedagogia, para fazer tradução
de LIBRAS e achou estranho o fato de ali ter uma esmagadora maioria de mulheres. Ele disse ter
visto aquelas mulheres todas e estranhou.
Eu logo pensei que o estranho seria o contrário. Num curso de pedagogia, seria “normal”,
pensei naquele momento, que se encontrassem muito mais mulheres do que homens. Isso muito me
incomodou, mas também me desacomodou. Passei a questionar a mim mesmo. E foi assim que
surgiu essa ideia de estranhar a norma, perceber que a norma é algo construído diariamente através
de práticas cotidianas, gestos aparentemente sem importância, de condutas esperadas. Comecei a
perceber que fazemos isso o tempo todo – criamos normas, criamos o que é “normal”, fazemos com
que algo passe a ser normal; realizamos, como disse anteriormente, um processo de verbalização do
adjetivo; o normal vira verbo, vira normalizar. Enquadramos, enfim, as pessoas em situações
estanques, esperando que ajam sempre de formas esperadas. Estranhamos quando a norma é
quebrada.
Convido, assim, para que fiquemos vigilantes quanto a esses pequenos gestos e práticas.
Não sou, porém, o único a estranhar. “São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as
palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamento e, em
especial, de desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é
tomado como “natural”. (Louro, 2007, p. 63)
Estranhamento é uma palavra que “roubei” de Guacira Lopes Louro. Ela solicita que
“estranhemos o currículo”. Aqui, eu sugiro que estranhemos, também, a norma. Segundo ela, essas
práticas rotineiras são banalizadas, mas não deveriam. É preciso, segundo a autora, que renovemos
nossa atenção constantemente a tais práticas. É preciso que desconfiemos delas. É preciso que
desconfiemos, por exemplo, de uma sala de pedagogia cheia de mulheres, bem como de uma sala de
engenharia cheia de homens. Esta realidade deve gerar desconfiança como estratégia de uma leitura
crítica daquilo que envolve as construções de gênero, neste caso, as masculinidades no ambiente
escolar. Onde estão as mulheres que querem ser engenheiras? Onde estão os homens que querem
ser pedagogos? Por que não podemos estranhar justamente aquilo que é tido como normal? Isso nos
remete ao que não é tomado como norma e, logo, sugere questionamentos.
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E uma vez que aqui se falou, também, em armadilha e cilada, que se fazem para e pelo
próprio homem, acredito que, muito provavelmente, deve haver mais mulheres fazendo engenharia
do que homens fazendo pedagogia. São as mulheres passando à frente neste e em outros setores,
superando as imposições da norma, causando estranhamento através de suas práticas de gênero,
deixando para trás uma posição de subalternidade e galgando posições que, há muito já deveriam ter
galdado, afinal, uma sociedade democrática, deveria prover acesso de forma igualitária em
diferentes instâncias sociais, independente do gênero. No caso específico das engenharias, é
provável que as mulheres ainda enfrentarão a subalternidade em suas rotinas de trabalho nos
canteiros de obras, pois, para muitos, lá “não deve ser lugar de mulher”.
A armadilha não consiste, em absoluto, em ver as mulheres nas posições em que as vemos
hoje. A armadilha consiste em achar que ser homem, por si só, já é nobre o suficiente e que,
portanto, basta sê-lo para se ter o sucesso merecido. Infelizmente isso ainda ocorre muito, haja vista
a desigualdade de gênero ainda presente em diversos países, dentre os quais o Brasil se destaca,
mesmo tendo elegido uma mulher para o maior posto de um Estado presidencialista. Mulher esta
que caiu muito em função de gênero, pois estava lutando num mundo marcadamente masculino.
Mas essa é outra discussão.
Espera-se, enfim, que os meninos percebam que ser homens de bem, homens de verdade,
homens honestos, homens valorosos não é sinônimo de ser homem. Aí reside a grande armadilha. É
preciso que eles entendam que tudo isso que buscam ser tem que ser fruto de uma luta, de uma
construção, de uma caminhada. É preciso tornar-se homem, e estranhar os privilégios que a norma
sugere na construção da masculinidade. É preciso, enfim, desconfiar, como diz Guacira Lopes
Louro, da norma e do que é considerado normal. É preciso olhar com desconfiança para situações
nas quais se diz que menino tem letra feia porque ter letra feia é coisa de menino.
A pesquisa que alimenta este texto está em andamento. O que se traz aqui é fruto de
pesquisa de campo, de coleta de dados, do material empírico. Outros achados continuarão sendo
registrados em Diário de Campo e alimentarão outros textos. Assim como já ocorreu com textos
publicados, haja vista um em especial, intitulado Mind the Trap: o menino, a escola e a flha de
alface, que fala sobre os embates entre produzir-se homem, ser bom aluno, cumprir as exigências
curriculares, viver sua cultura juvenil, ocupar-se com a preparação para o futuro, atender aos planos
familiare e ser compreendido pelos professores. Lá, o menino usava um boné com uma folha de
maconha nele bordada, mas que ele disse ao professor que se tratava de uma “folha de alface”, fala
que teria sido seguida de risos. Aquele menino desafia a norma ao usar um boné que vai de
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encontro aos padrões e exigências da escola quanto à forma de se vestir, mesmo que isso seja, para
ele, um embate. Aqui, nosso menino precisa de um GPS para ajudá-lo a “se encontrar” no caderno,
constituindo, assom como no outro caso, o terreno pelo qual a trajetória de ambos se desenrola na
escola.
É como se houvesse, na trajetória escolar do menino, aparentes privilégios, formas de ser e
de agir que entram em conflito com a escola, mas que a escola acaba como que relevando. Afinal, lá
está o menino com seu boné. Ele não é impedido de circular na escola com ele. Lá estão as dezenas
de menino, quiçá centenas, com seus cadernos que anseiam por um GPS. Os privilégios, porém,
podam trajetórias, limitam construções no ambiente escolar e, por extensão, na vida pessoal e
profissional, já que a escola é um espaço privilegiado na construção de futuros cidadãos, de
mulheres e de homens, aqui, em especial, desses últimos. Para além do gênero, a construção do
cidadão, pela escola, deve focar nas suas potências, que devem ser estimuladas ao se tentar superar
a armadilha na construção das masculinidades. Estranhemos, pois, tudo isso. Estranhemos, pois a(s)
norma(s).
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The notebook and the GPS
Abstract: The trajectory of a boy’s school life is crossed by several clashes within the different
ways of building and maintenance of his masculinity. Many times, such buildings conflict with the
demanding of the school performance of this boy. It is not rare that the boy relinquishes the
opportunity of building himself as a good student in order to privilege attitudes at school which will
guarantee him a major popularity and that, at the same time, will reinforce his masculinity. The idea
of having a GPS to find something on a school notebook was said by a boy during a process of
observations and interviews within a doctor degree research. It is verifies, in this sense, that that
boy, not rarely, in order to consolidate himself as a man in the school environment, presents himself
as a relapse student, with no material, or with a completely disorganized one. Likely, warnings from
the teachers to the boys may sound as compliments, especially if they are accompanied by
enouncements like “This is boys’ stuff”, which is more like a stimulus to the act than a way to avoid
its recurrence. Within a process of normalization, many boys construct themselves as the owners of
a hegemonic masculinity which, several times, conflict with expected attitudes of a good student,
or, at least, of a student who has a better school performance. The boy prefers, therefore, to be seen
and recognized as a man, even if it interferes in his performance as a student.
Keywords: Masculinities. School Performance. Construction. Normalization.