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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 www.compos.org.br / page 1/23 / Nº Documento: 4D517A6D-4BA2-4B6B-A8B8-4FF2D941A0CC O camp e o lindo no cinema queer brasileiro contemporâneo The camp and the pretty in Brazilian’s contemporary queer cinema Ricardo Duarte Filho I I Mestrando, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected] Resumo: O seguinte artigo almeja analisar as novas configurações estéticas do cinema queer brasileiro que vêm se destacando por fugir ao realismo da filmografia mundial contemporânea. Serão analisados quatro filmes, “Estudo em Vermelho” (Chico Lacerda, 2013); “Doce Amianto” (Guto Parente, 2013), “Batguano” (Tavinho Teixeira, 2014) e “A Seita” (André Antônio, 2015). Dedicaremos uma maior atenção ao último por vermos nele a interseção dos conceitos explanados ao longo do artigo como possíveis chaves de leitura dos elementos estéticos e narrativos presentes nesses filmes, a saber: o camp, o lindo e a superficialidade. A hipótese aqui levantada é de que ler esses elementos estéticos como novas possibilidades políticas queer, indo de encontro ao assimilacionismo e normatização através da estetização e da ludicidade. Palavra chave: camp, estética, lindo, queer, superficialidade Abstract: This paper aims to analyze Brazilian’s queer cinema new aesthetics, which are on the spotlight for denying the hegemonic realism predominant in contemporary cinema. Four films will be analyzed in this article: “Estudo em Vermelho” (Chico Lacerda, 2013); “Doce Amianto” (Guto Parente, 2013), “Batguano” (Tavinho Teixeira, 2014) and “A Seita” (André Antônio, 2015). A more focused view is going to be given to the last one, since it is seen as a natural intersection between the aesthetics and narratives concepts discussed in this paper: camp, pretty and superficiality. These elements are going to be portraited as new queer’s political possibilities that contest politics of assimilationism through aestheticism and playfulness. Keywords: aesthetic, camp, queer, pretty, superficiality

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O camp e o lindo no cinema queer brasileiro contemporâneo

The camp and the pretty in Brazilian’s contemporary queer cinema

Ricardo Duarte Filho I

IMestrando, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

Resumo: O seguinte artigo almeja analisar as novas configurações estéticas do cinema queerbrasileiro que vêm se destacando por fugir ao realismo da filmografia mundial contemporânea.Serão analisados quatro filmes, “Estudo em Vermelho” (Chico Lacerda, 2013); “DoceAmianto” (Guto Parente, 2013), “Batguano” (Tavinho Teixeira, 2014) e “A Seita” (AndréAntônio, 2015). Dedicaremos uma maior atenção ao último por vermos nele a interseção dosconceitos explanados ao longo do artigo como possíveis chaves de leitura dos elementosestéticos e narrativos presentes nesses filmes, a saber: o camp, o lindo e a superficialidade. Ahipótese aqui levantada é de que ler esses elementos estéticos como novas possibilidadespolíticas queer, indo de encontro ao assimilacionismo e normatização através da estetização eda ludicidade.

Palavra chave: camp, estética, lindo, queer, superficialidade

Abstract: This paper aims to analyze Brazilian’s queer cinema new aesthetics, which are on thespotlight for denying the hegemonic realism predominant in contemporary cinema. Four filmswill be analyzed in this article: “Estudo em Vermelho” (Chico Lacerda, 2013); “DoceAmianto” (Guto Parente, 2013), “Batguano” (Tavinho Teixeira, 2014) and “A Seita” (AndréAntônio, 2015). A more focused view is going to be given to the last one, since it is seen as anatural intersection between the aesthetics and narratives concepts discussed in this paper:camp, pretty and superficiality. These elements are going to be portraited as new queer’spolitical possibilities that contest politics of assimilationism through aestheticism andplayfulness.

Keywords: aesthetic, camp, queer, pretty, superficiality

 

 

 

 

 

 

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“Que o leitor não se escandalize com essa gravidade do frívolo, que selembre de que há uma grandeza em todas as loucuras, uma força emtodos os excessos”(Charles Baudelaire)

Introdução

                O personagem, vestido impecavelmente, caminha lentamente entre as ruínas

de uma cidade abandonada. A câmara o acompanha, em movimentos lânguidos e quase

desinteressados: se perde do personagem e centra-se em rachaduras e outros detalhes do

local, mantendo sempre uma distância fria do personagem. Ela é indiferente à ação que

filma. Durante um diálogo entre o protagonista e um de seus amantes ela não se fixa na

imagem dos dois personagens, ou mostra um plano e contra-plano do diálogo, mas continua

a movimentar-se pelo ambiente, preterindo o diálogo em favor dos objetos de cena. A

decoração, as roupas e os móveis são tão importantes para o filme quanto seus personagens.

Sua casca, sua superfície abarrotada de bibelôs, tecidos e objetos decorativos, é a força

motriz da produção. Nesses momentos de “A Seita” (André Antônio, 2015), podemos

observar vários dos elementos estéticos presentes em filmes produzidos nos últimos cinco

anos no Brasil e que estão se destacando dentro da filmografia queer nacional por recusar a

estética naturalista preponderante na filmografia contemporânea. Cremos que esses filmes

contemporâneos defendem uma nova proposta estética queer ao utilizar o frívolo e o

artificial através do camp como forma de contestar uma imposição entre o considerado real

e artificial, entre o “profundo” e o “superficial”: “um prazer do enfeite pelo enfeite, do

estilo pelo estilo, onde a sociedade vê desabar o credo materialista sobre o qual ela se

baseia” (BOLLON, 1997: 13).

            O objetivo do seguinte artigo é uma discussão acerca de alguns elementos caros

a essa nova e instigante filmografia queer brasileira, perpassando por alguns de seus filmes

e se prendendo mais detidamente em “A Seita” como possível modelo a ser analisado desse

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novo caminho estético, sendo ponto de encontro de discussões presentes ao longo do artigo.

Tal como o paradoxo levantado pelo dândi e sua simulação de atitudes aristocráticas, essa

filmografia preocupada com o estilo pode ser considerada subversiva e política? A hipótese

que defendemos é que esses filmes, utilizando-se de elementos muitas vezes considerados

fúteis, subvertem e criticam a interpretação compulsiva da obra artística e do utilitarismo

exigido da arte de forma muito mais ambivalente através do camp , do lindo e da

superficialidade.

O queer e o lindo

              Originalmente, o termo “queer” era uma ofensa dirigida à população LGBT

(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), uma palavra que

significa “estranho, diferente”, colocando as pessoas desse grupo na condição de fora do

“normal”. Ao contrário de “gay” ou “lésbica”, ela não possui por si só uma essência e

definições própria, mas define-se pela comparação e exclusão perante o que é

institucionalizado como normal. David Halperin a define como “o que quer que esteja em

desacordo ao normal, ao legítimo, ao dominante. Não há nada particular a que ela se refira.

É uma identidade sem uma essência.” (HALPERIN, 1997: 62). A sua ressignificação

deu-se por grupos de ativistas durante a crise de HIV/AIDS, quando este começou a ser

utilizado como um adjetivo de auto-afirmação: de colocar-se como diferente, porém sem o

intuito de estigmatizar e insultar, mas ver essa diferença como um ato político. [1]

“Autodenominar-se queer era fazer de um termo negativo e que deveria causar vergonha

uma forma de combate às forças normalizadoras cujo intuito de exclusão e até mesmo

eliminação de dissidentes sexuais e de gênero era patente” (MISKOLCI, 2014: 9-10)

              Essa auto-afirmação e retomada da ideia de “ser diferente” como algo positivo

e como possibilidade de escapar do binarismo simplista “heterossexual/homossexual”,

acaba, então, por resultar numa busca e afirmação de um modo de vida divergente, com

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uma consequente valorização de uma estética marcadamente queer : do comportamento

diário, com trejeitos e expressões próprias dos grupos LGBT, à criação de um repertório

audiovisual próprio. A estética camp tornou-se então um dos principais elementos dessa

exaltação do queer , do diferente, por se definir “sobretudo pelo desprezo por instâncias

oficiais de legitimação do gosto na arte e na cultura, optando por uma acolhida a

características geralmente rejeitadas por aquelas, como o exagero, o artifício, o excesso”

(LACERDA, 2011). Suas diversas facetas podem ser vistas em exemplos diversos, como

nos filmes do “New Queer Cinema” norte-americo da década de 90, nos vídeos amadores

cômicos compartilhados na internet (a exemplo da websérie “Leona, a assassina

vingativa”), em coletivos cinematográficos que utilizam essa estética como resposta a cena

majoritariamente heterossexual masculina do cinema nacional, como a “Surto &

Deslumbramento”, e na grande profusão de festivais de cinema voltados a temática LGBT

que dão espaço para filmes que representam desejos e corpos que fujam às instâncias

hegemônicas de sexo, gênero e desejo.

              Por essa pluralidade de representações audiovisuais, que propõe novas

estéticas, narrativa e sexualidades, o cinema queer brasileiro contemporâneo vai de

encontro à arte sóbria e realista dominante, onde a presença do belo e a ênfase no

esteticismo são vistas com desconfiança por parte de público e críticos. Rosalind Galt

ressalta que essa recusa da beleza plástica dos filmes, chamado por ela de “lindo”, está

ligada ao discurso patriarcal e eurocêntrico, onde o adorno, o excessivo e o frívolo são

considerados femininos, afeminados e estrangeiros.

O cinema comercial certamente privilegia um tipo de lindeza,criando prazer visual desde os corpos desejáveis das estrelas jovense as locações estimulantes em que suas histórias se situam.Enquanto isso, a crítica de cinema tem inúmeras vezes destituído oque vê como lindo demais – espetáculo vazio, superfície semprofundidade, o ornamento em massa. (...) O sentido de lindo comouma estética inferior, superficial ou bem fácil, vincula o cinemacom críticas históricas da cultura de massa e com tais estudiososque têm revelado a natureza de gênero destas associações. O lindoevoca um medo patriarcal dos prazeres do cinema popular e suas

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audiências incontroláveis.(GALT, 2015: 46)

               Assim, essa recusa do “lindo” encontra-se ligado também à defesa do queer

de busca de novas representações estéticas, pois são “os mesmos modos dominantes de

julgamento estético que põem os termos pelos quais os corpos podem ter acesso à beleza

também definiram quais formas podem ser significativas.” (GALT, 2015: 47). Assim, a

beleza e o esteticismo dos filmes analisados nesse ensaio funcionam como um possíveis

solventes dessa desconfiança na plasticidade da imagem e da busca da imagem “sóbria” e

documental. Também aqui vemos um paralelo com o dândi: que critica os anseios

produtivistas da burguesia ao focar-se no frívolo e no estilo pelo estilo. Esses filmes

“parecem ir de encontro a toda uma tradição de pensamento e prática do cinema – aquela

que associa a natureza do medium cinematográfico à contingência do real fotográfico, à

apropriação documental das coisas do mundo” (BARBOSA, 2015: 138). Neles, as

representações de uma estética queer são usadas de formas diversas, nem sempre

harmoniosas, onde podemos notar a presença constante de alguns denominadores comuns

como o uso recorrente do camp e do artifício.

              “Doce Amianto” (Guto Parente, 2013) é uma ficção do coletivo

Alumbramento, que mostra a personagem título como alguém imersa em suas fantasias e

em um constante embate com a realidade, que a rejeita. Os elementos estéticos e narrativos

do filme provêm dessa constante fuga da realidade: as cores são saturadas, predominando o

vermelho e o azul, os cenários são deliberadamente artificiais e estilizados, com uso de

chroma-key, a decoração é kitsch, com bonecas de porcelana e abajures coloridos e

atuações altamente exageradas. E, “ao invés da contenção dos gestos, da rarefação dos

espaços  e do esvaziamento dramático (tão celebrados em várias propostas hoje em dia)”

(LOPES, 2013)”, há no filme uma estética extremamente afetada que será mantida até o

final.

              “Batguano” (Tavinho Teixeira, 2014) se aproxima de diversas formas de

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“Doce Amianto” em relação a esse escape do real através de uma estética artificial e camp

, ainda que de forma mais contida que o anterior. O filme deixa entrever essa tensão entre o

real e o artificial nas cenas em que os protagonistas (versões de meia-idade dos

super-heróis americanos Batman e Robin) passeiam no seu carro enquanto são projetadas,

ao fundo, imagens fora de sincronia com o automóvel. Essas remetem às técnicas de filmes

clássicos que filmavam os personagens dirigindo e inseriam o cenário posteriormente, o

que, muitas vezes, acarretava em uma artificialidade não planejada, uma vez que tais filmes

almejavam uma estética realista. Já em “Batguano” esse efeito de estranhamento é

claramente proposital, até mesmo chegando a mostrar o equipamento da projeção: o carro

fixo e a tela da projeção ao fundo.

  

Imagens 1 e 2: "Batguano"

              “Estudo em Vermelho” (Chico Lacerda, 2013) é parte da filmografia do

coletivo pernambucano “Surto & Deslumbramento”, coletivo cinematográfico que tem se

mostrado bastante produtivo dentro do crescimento da filmografia queer no Brasil. O

curta-metragem, um dos seus primeiros trabalhos, já traz elementos que serão bastante

caros à filmografia do coletivo e que ressoam com preocupações e representações estéticas

presentes nos outros dois filmes escolhidos. Diferente dos filmes anteriores, “Estudo em

Vermelho” não possui uma narrativa linear clara.Começa com um plano de um homem

morto no chão do banheiro e logo em seguida, mostra dois personagens, sem conexões

aparentes, de maneira intervalar. Perto do fim voltamos ao homem no chão do banheiro,

que se levanta. Nos é revelado que ele estava em uma gravação, onde também vemos os

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outros dois personagens/atores se preparando para interpretar o que vimos anteriormente.

Vemos esse choque como uma crítica a uma hipotética fronteira bem delimitada do real e

da imagem documental e realista.

O queer dá pinta no cinema: O New Queer Cinema e as representações nacionais

              Dentro do cenário cinematográfico brasileiro atual, os filmes queer

destacam-se por essas características experimentais, especialmente relacionadas a uma

sarcástica autoironia e ao uso da estética camp, da cultura pop e do artifício como resposta

ao latente realismo e sobriedade de grande parte do cinema nacional contemporâneo, [2]

como salienta André Antônio Barbosa:

Parece-me significativo que, no cinema brasileiro contemporâneo,sejam os filmes queer a – num contexto como o da sociedade decontrole, em que a luta política parece ter perdido a segurançaontológica de posições e identidades típicas da sociedadedisciplinar – ousar propor uma estética nova, onde a identidade doque é filmado se dissolve num simulacro incorpóreo, cômico einconsequente. (BARBOSA, 2015: 146)

              Essa afirmação,ao ressaltar as novas e instigantes possibilidades levantadas

pela estética dessa nova onda do cinema queer nacional, ecoa com o que B. Ruby Ritch

escreveu em 1992 ao cunhar o termo “New Queer Cinema” após notar a presença maciça

de filmes com temáticas LGBT em festivais alternativos de cinema e de um crescente

interesse do público e da mídia em relação a essas obras. Alguns filmes primordiais dessa

nova postura da representação queer no cinema seriam, pela autora, obras como “Swoon”

(Cristopher Munch, 1992); “Instinto Selvagem” (Paul Verhoeven, 1992); “Veneno” (Todd

Haynes, 1991); a filmografia de Derek Jarman e vários outros exemplos. Todos esses

filmes possuiam elementos estéticos e narrativos divergentes, porém Ruby Ritch ressalta

que todos esses possuem um elo, uma conexão dada por suas representações de questões

LGBT que contrastava com a que era a ordem estabelecida no cinema até então:

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Eles são unidos por um estilo comum (...). Há traços em todos essesfilmes de apropriação, pastiche e de ironia (...). Definitivamenterompendo com abordagens humanistas antigas e com os filmes e fitas queacompanhavam políticas da identidade, essas obras são irreverentes,enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elassão cheias de prazer. Elas estão aqui, elas são queer. (RITCH, 2015: 20)

              Podemos ver que os dois autores vêem certos traços estéticos nesses filmes de

períodos tão distintos que possuem certa conexão entre si, como a irreverência e a energia.  O

que poderia então conectar os filmes do “New Queer Cinema” com o profícuo cinema queer

nacional que vem surgindo nos últimos anos, se é que existem elementos de conexão? De onde

vêm essas novas estéticas dissonantes, que utilizam do artifício, da afetação, do pop e do camp

como forma de sacudir o realismo dominante no audiovisual contemporâneo? Embora tenham

contextos históricos bastante diferentes (Estados Unidos da década de 1990 e Brasil da década de

2010), podemos tirar desse entrelaçamento histórico e estético alguns diálogos frutíferos.

              Os filmes do “New Queer Cinema ” destacam-se por romper com a estética do

assimilacionismo defendido pelos ativistas LGBT até então, como Ruby Ritch destaca ao afirmar

que esses filmes rompem “com as abordagens humanistas antigas e com os filmes e fitas que

acompanhavam políticas da identidade” (RITCH, 2015: 20). Obras como “Swoon” e “The Living

End” (Gregg Araki, 1993) levaram às telas personagens homossexuais explosivos, problemáticos

e às margens da sociedade. São muitas vezes assassinos, drogados, politicamente alienados,

egoístas (o lema dos personagens de “The Living End” é “foda-se tudo!”), ligados à prostituição

e ao tráfico. A cultura homossexual negra também é representada por filmes como no

documentário sobre a cena de drag queens “Paris is Burning” (Jennis Livingston, 1990) e no

militante curta-metragem experimental “Tongues Untied” (Marlon Riggs, 1989). As estéticas

desses filmes são extremamente diversas, da fotografia em preto-e-branco, com fortes contrastes

de claro-escuro e cortes rápidos e secos de “Mala Noche” (Gus Van Sant, 1987) à exuberância

visual e fotografia de tons pastéis de “Caravaggio” (Derek Jarman, 1986), porém há elementos

comuns, como a presença da ironia, do pastiche, de uma estética afetada e do camp. Elementos

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até então criticados pela militância, mas que ganham força com os estudos queers e os novos

grupos ativistas influenciados por eles, como o ACT UP e o Queer Nation. É nesse período de

agitação política e social, com a disseminação alarmante do vírus HIV, espalhando ainda mais o

preconceito contra os “dissidentes sexuais” e gerando uma censura ao sexo não-heterossexual e

reprodutivo, que “aos grupos ativistas queer , que já se utilizavam do deboche camp como

estratégia de luta, juntou-se um grande número de artistas, que aderiram às expressões mais

radicais do estilo, com vistas a uma arte eminentemente política” (LACERDA, 2011: 11). Assim,

as características atribuídas pejorativamente aos homossexuais, como o exagero, a frivolidade e a

afetação, até então retraídas e condenadas pela militância, tornam-se elementos estéticos políticos

de autoafirmação e ganham força nos movimentos artísticos, concomitante com o surgimento do

novo campo de estudos queer.

               No cinema brasileiro, a forma de representação do gay também foi alvo de debates

e dúvidas, como podemos ver no livro “A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro” de

Paulo César Moreno, onde o autor julga a representação feita pelo cinema brasileiro como

depreciativa por focar-se nos “desvios de conduta” que o "New Queer Cinema" apresenta:

“Pelo retrato social oferecido nesses filmes, o homossexual seria, emsíntese: um sujeito alienado politicamente; existente em todas as classessociais, com preponderância na classe média baixa, onde geralmente temum subemprego; de comportamento agressivo e que usa, frequentemente,um gestual feminino e exacerbado, o que se estende ao gosto pelovestuário; e que, nos relacionamentos interpessoais, mostra tendência àsolidão e é incapaz de uma relação monogâmica, pois utiliza-se de váriosparceiros, geralmente pagos, para ter companhia.” (MORENO, 2001: 291)

              É notável a crítica feita por Moreno da representação de elementos ligados ao

universo da “bicha louca” e do homossexual afeminado, que estaria ocupando o lugar do gay

bem sucedido, bem comportado e monogâmico, pois nos filmes nacionais analisados por ele, “a

presença de um travesti ou de um homossexual tipo "bicha louca" ficou como obrigatória e

patente.” (MORENO, 2001: 131). Portanto é curioso que seja “Madame Satã” (Karim Aïnouz,

2002), o filme de um gay negro, cross-dresser, pobre e violento, todas características criticadas

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por Moreno, o filme onde podemos ver o surgimento uma nova forma de representação queer no

Brasil, ao politizar “a homossexualidade e o cross-dressing, incorporando questões de classe,

etnia, condição periférica, sem aderir a narrativas hollywoodianas nem a hetero e

homonormatividades” (Lopes, 2015: 126) e ao ter um protagonista que “não é exemplar, nem

uma imagem positiva nem negativa. Sua complexidade não é tanto psicológica mas feita pelo

jogo de imagens e pelo corpo, pela superfície da pele.” (LOPES, 2015: 127).

              Mesmo que outros filmes anteriores como “A República dos Assassinos” (Miguel

Faria Jr) e “Anjos da Noite” (Wilson Barros, 1987) já tragam o camp , o artifício a afetação, é

com o filme de Aïnouz que esses elementos tornam-se potências de mudança, pois impulsionam

a transformação do próprio personagem: suas relações com o palco, suas performances de

cross-dresser  e sua inspiração das divas americanas são o que o leva a transformar-se em algo

para além de sua realidade subalterna, o transformam no personagem-mito que dá título ao filme

e marcou a história da boêmia carioca. “Assumir o nome num desfile de Carnaval, no fim do

filme, é um gesto de afirmação de uma identidade pela máscara, pelo jogo constante na vida e no

palco” (LOPES, 2015: 127). Embora o filme tenha uma estética predominantemente realista, que

apenas dá espaço à afetação nas cenas onde o protagonista performa seus espetáculos, coberto de

ornamentos, roupas coloridas e maquiagem carregada, é nele que vemos primeiramente o uso do

camp, do artifício e do lindo como agentes que podem romper a realidade e o realismo, chave

para uma leitura da estética dos filmes discutidos no artigo. Por sua utilização desses elementos

de forma política como agentes de ruptura e mudança, o filme de Aïnouz noa mostra sua

importante contribuição para o cinema queer brasileiro contemporâneo. Em “Madame Satã” essa

mudança dá-se dentro de sua narrativa e diegese ao transformar, literalmente, o personagem em

sua nova persona, já nos filmes contemporâneo, discutidos nesse artigo, a estética camp e o

artifício marcam também a própria estética.

O camp sai do armário

              Podemos traçar algumas linhas que conectam essa estética camp com movimentos

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artísticos como “o Barroco (...) e estilos próximos, como o Maneirismo, o Rococó, o Preciosismo

e, por extensão, o Neo-Barroco e (...) o art nouveau” (LOPES, 2002: 73-74), onde o exagero e o

artifício são valorizados em detrimento da sobriedade e naturalismo. Também possui relações

estreitas com o dandismo do século XIX, e a presença constante dessa figura emblemática em

vários estudos [4] sobre o camp reforça esses laços. Os dândis iam de encontro aos ideias

burgueses predominantes da sua época ao emularem comportamentos aristocráticos, ao não

seguir os ideias da modernidade de praticidade em detrimento da estética, transformando, assim,

“seu modo de vida numa espécie de paradigma estético, (...) a possibilidade de uma nova forma

de vida, uma nova maneira de se relacionar com o mundo.” (BARBOSA, 2015: 4). Ao focarem

em atividades consideradas contra-produtivas pelo pensamento capitalista e no elogio do frívolo

e da superficialidade, “o dândi põe em cheque o que é sério e o que é irrelevante, embaralha o

que é considerado produtivo e inútil pela ordem econômica e social” (BARBOSA, 2015: 5). É

através dessa “estética da existência” dândi, cujo objetivo era a “elaboração de sua própria vida

como uma obra de arte pessoal” (FOUCAULT, 2006: 290), vista no elogio da superficialidade e

da frivolidade e na busca de um comportamento aristocrático, que podemos fazer uma conexão

entre o dândismo e a estética camp, pois essa segunda “redimensiona o espaço público através do

ludismo das massas, do gosto pela fantasia no cotidiano e da valorização da beleza; nesse

sentido, é um dos herdeiros de uma atitude aristocrática na sociedade de massas.” (LOPES,2002:

70).

              É com essa vasta bagagem de referências e precedentes históricos que o camp “sai

do armário” nas discussões acadêmicas através do texto canônico de Susan Sontag, “Notes on

Camp”, cuja ideia diferencial e instigante é a de colocar o camp dentro da esfera do esteticismo.

A autora o define como “uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. Essa

maneira, a maneira do Camp , não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização.”

(SONTAG, 1964: 2). A autora vê no elogio da artificialidade e do exagero a marca mais

definitiva desse esteticismo ao afirmar que a “essência do camp é sua predileção pelo inatural:

pelo artifício e pelo exagero.” (SONTAG, 1964: 1) e que “todos os objetos e pessoas camp

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contêm um grande componente de artifício.” (SONTAG, 1964: 3), estabelecendo assim a forte

conexão entre o camp e o artifício. Embora levante vários pontos que hoje são considerados

canônicos, algumas das ideias que Sontag defende nesse texto foram bastante debatidas e

criticadas posteriormente, especialmente pelos estudos queer surgidos com o pós-estruturalismo,

muitos dos quais começaram a discutir a estética camp dentro da esfera queer.

              Embora Sontag ressalte brevemente o camp como uma “espécie de código pessoal”

(SONTAG, 1964: 1) e menciona sua ligação com os homossexuais, ao escrever que eles foram

sua vanguarda, a autora também ressalta que “o gosto camp é muito mais do que gosto

homossexual.” (SONTAG, 1964: 12). É com teóricos como Richard Dyer que as fortes ligações

da estética camp com a cultura homossexual começam a ser motivos de preocupação e pesquisa.

Ao contrário de Sontag, Dyer foca nessa conexão entre o camp e o homossexual em um dos seus

ensaios mais conhecidos, ressaltando essa ligação desde o título do texto (It’s Being So Camp as

Keeps us Going). O autor defende uma ideia política do camp bastante divergente da levantada

por Sontag, pois onde essa afirma que “a sensibilidade Camp é descompromissada e

despolitizada — pelo menos apolítica” (SONTAG, 1964: 2), Dyer vê um forte potencial

progressista na estética camp, e embora ressalte que “nem todo camp seja em fato progressista”

(DYER, 2002:60), logo em seguida afirma que “ainda assim ele tem o potencial de sê-lo”.

(DYER, 2002:60). O autor também define esse potencial político e progressista do camp

posteriormente, ao argumentar que:

O que o camp permite é a desmistificação da imagem e representação domundo da arte e mídia. Nós somos educados e encorajados a sermosextremamente solenes na presença da Arte; e somos tentados pelos filmese pela televisão a tomarmos os mundos que eles representam como sefossem reais. (...) O camp, por chamar atenção para os artifícios usadospelos autores, nos lembra constantemente que o que estamos vendo éapenas uma visão subjetiva da vida. (DYER, 2002: 60.)

            Essa ideia discutida por Richard Dyer é um importante ponto de partida para se

discutir as estratégicas estéticas desses novos filmes queer experimentais que vemos surgindo no

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Brasil nos últimos anos. Ao negar o naturalismo e entregar-se deliberadamente ao artifício, o

camp nesses filmes abre espaço para uma relação mais lúdica entre a obra e o público, como

argumenta Denilson Lopes, “revelar-se superficial, hoje, não é necessariamente sinônimo de

banalidade, de vulgaridade, mas reintroduzir a ludicidade na relação social” (LOPES, 2002. P:

52). É então com essa ludicidade, que esses filmes se propõe a jogar com a audiência, em uma

constante ambiguidade de representação dos estereótipos do gay superficial e frívolo em uma

estética tão claramante artificial e teatral, que acaba por mostrar a própria artificialidade desses

estereótipos, do binarismo “masculino/feminino” e dos valores impostos por uma sociedade

majoritariamente heterossexual.  Tomar “a afetação, a desmunhecação, o camp como formas de

resistência a um padrão bem comportado de gay de classe média, integrado na sociedade

conservadora de consumo em que vivemos.” (LOPES, 2015: 127)

               Dyer sugere essa relação ao se indagar o porquê de uma estética fortemente ligada à

cultura gay seja definida pelo artifício e então, afirma "que os gays são extremamente adaptáveis

, ou seja, nós tendemos a achar fácil nos encaixarmos em qualquer ocupação ou círculo de

pessoas” (DYER, 2002: 59). Nessa constante “atuação”, os gays vivem em um constante jogo de

máscaras, de constantes devires e num limiar eterno entre o ocultar e o revelar. Assim, por seu

papel como “atores sociais” constantes, os homossexuais teriam desenvolvido uma percepção

apurada sobre os códigos sociais e sua artificialidade, pois “as possibilidades do jogo que

vivificam a subjetividade pelo uso de máscaras reside na compreensão da natureza imagética da

sociedade atual” (LOPES, 2002: 49).

             A sequência de "Doce Amianto" ao mostrar o início do romance da personagem

título com um homem (Herbbie) que conhece numa festa e desemboca no casamento dos dois,

perpassando por outras cenas de um de seus encontros em cenários altamente estilizados e toscos,

funciona também como uma representação artificial da ideia do “amor a primeira vista”,

monogâmico e romântico. A artificialidade e exagero das locações, atuações, efeitos visuais e

trilha sonora funcionam aqui então como paródia da função dos filmes mainstream , reforçando

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assim a ironia e o estranhamento sobre esses gestos da sacralidade do amor romântico. As

declarações românticas exacerbadas de Herbbie, o cenário bucólico onde os dois passeiam, o

chroma-key claro da igreja, tudo contribui para o aumento da artificialidade de toda a situação. A

quebra definitiva com esses ideiais acontece também na narrativa quando, após uma cena de um

término onde Herbbie manda Amianto sair de sua vida para sempre, o filme mostra-nos que tudo

aquilo se passava dentro da mente de Amianto idealizando um relacionamento romântico, onde

até mesmo a separação é artificial e afetada.

  

Imagens 3 e 4: "Doce Amianto"

               Em "Batguano" o próprio mote do filme é marcadamente camp e artificial: Batman

e Robin, símbolos da cultura de herói norte-americana, são representados como um casal de

meia-idade, latinos e num futuro distópico, onde seus cotidianos resumem-se a brigar e discutir,

procurar sexo casual com outros parceiros e rememorar nostalgicamente as glórias de outrora. O

filme encaixa-se dentro do gênero de ficção científica, pois se passa em 2046, após uma doença

provocada por morcegos ter dizimado grande parte da população, porém há uma subversão das

lógicas desse gênero, pois os personagens vivem em um local ermo, no meio da vegetação,

cercado por animais e cachos de banana, o seu meio de transporte é um carro velho e usado (o

Batmóvel) e não há luta pela sobrevivência (ao menos física) como no subgênero da ficção

cientifica distópica: a doença fatal só é mencionada, mas nunca chega a afetar os protagonistas

diretamente.

              “Estudo em Vermelho” também provoca uma inconstância de gênero audiovisuais

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através do artifício e da frivolidade, já a partir do próprio título, homônimo da primeira obra

narrativa do personagem Sherlock Holmes e que, junto com a primeira cena do curta: um homem

coberto de sangue e morto jazendo no chão, faz-se inicialmente pensar que estamos diante de um

filme de investigação, apenas para quebrar essas expectativas logo na cena seguinte, onde um

outro personagem, sentado numa poltrona e cercado por uma decoração extremamente camp ,

começa a ler sobre instruções de primeiros socorros e novamente na cena seguinte: um outro

personagem, caracterizado de mulher, acena de um carro em movimento e posteriormente

reencena um videoclipe de Kate Bush.

              Esse traçado do camp e do artifício, que perpassa por movimentos artísticos tão

diversos, constantemente ressalta esse embate que almeja a não sedimentação da arte em um

conceito binário de realidade e artifício. Essa abertura e diálogo entre os limites do real acabam

por suscitar dúvidas sobre o conceito ontológico de realidade, expondo a sua construção como

calcada em interesses sociais e políticos e também excludente ao contrapor a realidade com o

artifício, a afetação, o exagero e a frivolidade e assim julgar a primeira como modelo a ser

alcançado e os outros conotações negativas, presente até mesmo nas suas significações

gramaticais. Sontag já ressalta essa característica do camp como elogio ao artifício no seu ensaio

ao escrever que “o Camp introduz um novo modelo: o artifício como ideal, a teatralidade.”

(SONTAG, 1964:10) e Denilson Lopes aponta que esse artifício não funciona como negação do

real, mas “um dissolvente da dualidade real versus irreal.” (LOPES, 2002. P:77-78).

              Assim, o cinema queer que vem sendo produzido no Brasil nos últimos anos

utiliza-se do artifício e do camp como forma de contestar esse binarismo entre o real e o artifício,

entre a sobriedade e a afetação, conectando-se a uma longa tradição artística que também

problematizam essa ideia, como o barroco, o dandismo e o “New Queer Cinema”. Buscam,

através do artifício, da ludicidade e jogo que empreendem com o público, “sacudir o consenso

empoeirado” e descobrir “as novas desordens que a suposta ordem totalizada encobria”

(PELBART, 2013: 18).

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“A Seita” e os possíveis novos caminhos do cinema queer nacional: superficiais por

profundidade.

              Podemos observar fortemente o entrelaçamento entre o camp, o dandismo e o elogio

do artificial e do frívolo como um novo caminho estético para o cinema queer brasileiro no

longa-metragem “A Seita”. Acreditamos que a chave para compreender as escolhas estéticas e

narrativas do filme, e também das outras obras analisadas ao longo desse ensaio, seja o enfoque

dado na superfície, através do esteticismo e do constante jogo entre real e farsesco, como forma

de criticar a leitura metafísica predominantemente ocidental, onde há a necessidade de encontrar

a profundidade e de interpretar as coisas do mundo, conceito hegemônico que podemos noticiar

desde a desconfiança platônica acerca da falsidade das imagens: as sombras projetadas no fundo

da caverna. Na arte, essa ideia culmina na separação de “forma” e “conteúdo” e na exaltação do

segundo em detrimento do primeiro, pois “ainda hoje assume-se que uma obra de arte é o seu

conteúdo. Ou, como é usualmente colocado hoje em dia, que a obra de arte, por definição, diz

algo (“O que X está dizendo é...”, “O que X está tentando dizer é...” etc., etc) (SONTAG, 1987:

2). O que esses filmes trazem é a “segunda superficialidade”, conceito que Patrice Bollon traz

dos escritos de Nietzsche, uma superficialidade além de um simples olhar inocente, que absorve

tudo que ver , mas que traz uma ideia de redobra além da profundidade, “permanecer

valentemente na superfíce”, uma opção pela superficialidade “após ter experimentado os

tormentos e os impasses da profundidade” (BOLLON, 1997: 169).

              Para Bollon, essa superficialidade é “uma arte de sentir e viver que conserva às

coisas e ao mundo exterior sua natureza inexplicável e, por consequência, seu sabor, sua beleza,

sua cintilação de enigma insondável, intocado” (BOLLON, 1997: 169). Ela é uma celebração do

mundo como pura aparência:

Existe a ideia de uma espécie de celebração pagã, de panteísmo do mundocomo ele aparece, a qual leva à escolha deliberada da superfície. A

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superficialidade, ao introduzir,pela ruptura do laço de interpretação, umrecuo no olhar, chegando a restabelecer uma espécie de sentimentooriginal de estranheza diante do mundo, recoloca este em sua natureza deobjeto de contemplação infinita (...). Abolindo essa subjetividade forçada,quase “dramatização”, criada pela vontade de tudo interpretar a todocusto, a superficialidade, por assim dizer, “desata” o olhar (...) Mais doque uma arte de viver, é uma vida eregida em obra de arte, em objeto desatisfação e de conhecimento estético, uma verdadeira estetização domundo. (BOLLON, 1997: 168-169)

               A consequência de “desatar o olhar” através da estetização do mundo é o que,

argumento, os filmes do novo cinema queer nacional almejam: é o retorno da arte sobre a

interpretação que Susan Sontag clama em seu artigo “Contra a Interpretação”. Para a autora, a

“interpretação (...) viola a arte. Ela faz da arte um artigo para uso, para organização em um

esquema de categorias mentais” (SONTAG, 1987: 6). Ao falar de obras que evitam serem

reduzidos a interpretações (através da paródia, do abstracionismo ou da não-arte), Sontag

também ressalta o motivo do porquê, para ela, os filmes ainda não terem sido totalmente

dominados  pela interpretação compulsória. Para a autora, isso provêm da relativa novidade dessa

forma artística e do preconceito que ele suscitou no início de sua história, quando era visto como

uma possibilidade diversão no tempo ocioso dos operários e também da linguagem técnica e

estética do cinema: que poderia ser analisada no lugar de seu “conteúdo”. É então no esteticismo

e na técnica que os filmes queer que veem despontando no Brasil tentam “desatar o olhar” da

interpretação, fazer um olhar “livre, fluído, irônico – “zombateiro” (...). Um olhar de “incrédulo”,

de esteta, de pagão, que deliberadamente para na superfície das coisas, preferindo gozar sua bela

casca do que se lamentar sobre as hipotéticas “essências” que as explicam (BOLLON, 1997:

169-170).

            Em “A Seita” esse olhar nos é transmitido através de suas luxuriosas locações

internas, suas charmosas ruínas decadentes, os enquadramentos onde os personagens parecem

perdidos em meio ao cenário, os planos longos e onde pouca coisa acontece e uma “câmera fria”

e desinteressada: em certo diálogo do filme ela parece não importar-se em filmar aquilo que está

se passando, dando ênfase em mostrar a decoração do ambiente em outra, de deambulação do

protagonista, ela mostra detalhes das ruínas deixando de se guiar pelo personagem. A

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mise-en-scéne do filme é claramente camp , com porcelanas adornadas e coloridas, roupas de

cetim, vários bibelôs pela casa, cortinas floridas e brilhantes. Aqui, o camp traz o ornamento e o

artifício para dentro do filme, onde podemos ver uma grande preocupação com o lindo.

   

Imagens 5 e 6: "A Seita"

              Embora Rosalind Galt diga que o camp comumente seja uma apropriação irônica do

lindo como forma de ironizá-lo, em “A Seita” esse uso dá-se como forma de realçar seus

objetivos de ater-se à superfície e contrapor o belo à estética sóbria hegemônica de matriz

patriarcal, heterossexual e européia. Galt afirma que essa estratégia da utilização do lindo contra

essa ideologia reacionária é vista em artistas como Adriana Varejão e que, embora não tão

proeminente quanto nas artes plásticas, também pode ser vista em vários filmes do World

Cinema contemporâneo. Acreditamos que em “A seita” e nos outros filmes aqui discutidos, a

utilização do camp segue essa estratégia discutida pela autora e também ligada à ideia da

estetização do mundo requerida pela superficialidade defendida por Patrice Bollon.

              O filme se passa em um futuro distópico, onde os habitantes mais abastados de

Recife abandonaram a cidade para viver em “colônias espaciais”, um dos moradores das colônias

decide então retornar para a cidade, onde passa seus dias lendo, flanando pelas ruínas e fazendo

sexo casual com homens que encontra em suas andanças. Para entender a representação da

“superficialidade” em “A Seita” é esse personagem, seu protagonista sem nome, um dos

elementos principais. A imagem do dândi é uma chave importante para a interpretação do

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personagem e do filme, pois a película traz a superficialidade que almeja representada pelo

próprio personagem. O dândi “transforma a elegância e o supérfluo na própria razão de existir”

(AGAMBEN, 2007: 82) e cria a si mesmo ao realizar uma espécie de ascese de uma

superficialidade moral e estética.

A futilidade era realmente, sem ambigüidade possível, um artifício, umaatitude deliberada, voluntária, construída, que não lhes era absolutamente“natural”, pelo contrário, exigia deles um esforço a cada instante (...) Essamaneira de celebrar o mundo em sua aparência, e mesmo como puraaparência, lhes servia de modo de vida e de ética, de ideologia, e constituapara eles sua única, última moral (...). Eles concebiam a vida como umaarte, eles se colocavam como artistas de suas próprias vidas. (BOLLON,1997: 181-182)

              Para Charles Baudelaire, essa exaltação do artificial e do frívolo resultava na

principal característica do dândi: a recusa do utilitarismo em favor da aparência. As

indumentárias e o dinheiro não lhes eram importantes, mas apenas um meio de construir a si

mesmo: a maior obra de arte. Os dândis, então, transformam-se nas próprias máscaras que criam

para si, pois demonstrar profundidade acabaria por ruir a fachada que criou para si mesmo.

Giorgio Agamben argumenta que esse seria o objetivo final dessa figura: a transformação em

algo não-humano

A condição para o sucesso dessa tarefa sacrificial consiste em que o artistaleve às suas últimas conseqüências o princípio da perda e dodesapossamento de si (...) Da mesma maneira que a obra de arte devedestruir e alienar a si própria para se tornar uma mercadoria absoluta,também o artista-dandy deve transformar-se em cadáver vivo, tendendoconstantemente para um outro, uma criatura essencialmente não-humana eanti-humana. (AGAMBEN, 2007: 85)

              O protagonista de “A Seita” cria para si essa máscara impassível através uma rotina

fixa e ao demonstrar poucas emoções ao longo da película. Ele recebe um tratamento ambíguo

durante o filme, pois, embora possua uma atração inegável, também vemos suas ideias e ações

serem contestadas por outros personagens, afetando-o e fazendo assim cair sua máscara,

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entretanto entramos assim num paradoxo: o que acontece ao cair a máscara de alguém que já se

tornou a própria máscara? Após uma discussão com um dos seus parceiros sexuais, que questiona

se ele crê que seu fetiche por Recife o faz diferente dos outros moradores das colônias espaciais,

a rotina do personagem se quebra juntamente com as cenas e planos repetidos ao longo da

projeção. O longo plano sequência fixo em que o vemos inicialmente tentando ler e, após desistir,

revirar-se e refletir no sofá é um indicador dessa mudança no personagem e na estratégia estética

da repetição. Quando sua própria essência é destruída juntamente com sua máscara e sua

impassibilidade diante de tudo, o personagem então parte em busca de algo novo, encontrando

então a seita, numa das últimas sequências do filme: um grupo clandestino que desenvolveu uma

fórmula que permite com que as pessoas voltem a sonhar, possibilidade que fora extirpada da

população através de uma injeção obrigatória aplicada pelas colônias espaciais que

impossibilitava o sono em busca de uma maior produtividade.

              Assim, nesse personagem-máscara vemos refletido as ideias do constante devir

queer e sua consequente ligação com o farsesco e o artificial. Cremos ser esse ponto de ligação

entre as diversas argumentações explanadas ao longo do artigo uma enriquecedora possibilidade

de posicionar as escolhas estéticas do cinema queer nacional dos últimos anos. Todos esses

filmes utilizam uma estetização excessiva e artificial do mundo como forma de desatar o olhar,

de mostrar a superficialidade além da profundidade. Suas escolhas estéticas são políticas por

funcionarem como contestações da condenação patriarcal e eurocêntrica do ornamento e da

beleza frívola, ligado intimamente à condenação do considerado “estranho”, excessivo e

estrangeiro, pois “se o lindo é para ser uma polêmica, decididamente não é uma polêmica para a

feminilidade tradicional, branca e hétero. Cor, opulência, excesso e estilo são armas estéticas

para corpos queer também.” (GALT, 2015: 60). Ao expressar a importância política da

estetização como forma de ruir valores pré-estabelecidos do que é considerado normal, sério e

profundo, essas obras são então como o líquido produzido pela seita contra a produtividade cega

exigida pelas colônias espaciais através do sonho induzido: frívolo e belo. Através do camp, da

ênfase no lindo e da decisão de manter-se na superficialidade através de suas estéticas, suas

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Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junhode 2016

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narrativas e de seus personagens-máscaras, esses filmes demonstram que “nesse desejo de vida

total que se expressa paradoxalmente por essas formas tênues e superficiais que são as

aparências, uma voz tenta nos sussurrar uma verdade surpreendente: nada é mais fútil do que

nossos esforços para tornar tudo sério, útil, racional; nada mais sério do que o fútil...” (BOLLON,

1997: 14). Esses filmes mostram então um possível novo caminho estético do cinema queer

nacional para além do realismo, o camp e o lindo como possibilidade estética-política queer.

Notas

[1]  O artigo usa a expressão “queer” no lugar de “bicha” ou “veado” por sua referência não ligada estritamente àhomossexualidade, como dito por Halperin, mas a uma forma não-normativa de ver e representar o mundo. Pois “oqueer não é uma defesa da homossexualidade, é a recusa dos valores morais violentos que instituem e fazem valer alinha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e aosdeprezo coletivo” (Miskolci, 2012. P:25)

[2]  Importante ressaltar que ao falar dessa estética experimental do cinema queer nacional dos últimos anos, nãoenglobo todos os filmes com temáticas LGBT em um único bloco fixo, pois dentro dessa produção existem diversasformas de expressões estéticas, onde muitos filmes queers contemporâneos buscam uma estética realista e não-afetada,como “Hoje eu quero voltar sozinho” (Daniel Ribeiro, 2014) e “Na Sua Companhia” (Marcelo Caetano, 2012). Ojornal norte-americano The Guardian, em um artigo publicado em 2012, ressalta essa nova onde de realismo nocinema queer . Para a publicação o seu diferencial seria “utilizar o naturalismo – muitas vezes com câmera na mão ecom performances que beiram a improvisação – para contar histórias com especificidades psicológicas, mas comressonância universal”. (WALTERS, 2012).

 

Referências

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