O campanário do tempo...- Aprendi que a gente só beija alguém com quem vai casar e isto depois do...

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1 Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa LITI BELINHA RHEINHEIMER 1941- (Celeste Ribeiro de Sousa) 2013 O campanário do tempo Volume III O fim da eternidade Liti Belinha Rheinheimer

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Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br

PROJETO DE PESQUISA COLETIVA

Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa

LITI BELINHA RHEINHEIMER 1941-

(Celeste Ribeiro de Sousa) 2013

O campanário do tempo

Volume III

O fim da eternidade

Liti Belinha Rheinheimer

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Dedico este III volume a meus netos para que tenham conhecimento

dos antepassados e honrem as suas raízes. Com amor: Pietro Rutzen Marrone - * 16/8/1999 Tiago Rutzen Marrone - * 12/3/2002 Alessandra Molling - * 16/5/2001 Maria Rosa Molling - * 26/6/2007 e outros que, porventura, venham a nascer. Também aos jovens de todas as idades, a fim de que, através de agradáveis horas de lazer, tenham um pouco de conhecimento da vida dos ancestrais e como era exuberante a natureza, atualmente tão destruída.

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QUEM REGE O TEMPO?... Os humanos têm um pequeno de vida terrena. Se tivessem trezentos anos ou mais, ouviriam e veriam o badalar dos sinos do tempo

e saberiam que conceitos, preconceitos, costumes e hábitos mudam com o passar dos séculos.

Dar-se-iam, então, conta de que não vale a pena lutar, brigar, sofrer por muitos de seus atos e atitudes pequenas e estúpidas que só lhes trouxeram tristeza e remorso.

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Cap. I

ARROUBOS JUVENIS

Não terminara o mês de agosto, quando o senhor Tannenhaus, com

mais de 90 anos, reunia as últimas forças para continuar em vida. “Mutta”

Teicher pediu a um dos filhos que buscasse o pastor da vila mais próxima

para dar a última unção ao pai.

Por esta época, já havia mais moradores em povoados ao redor do

núcleo inicial da colonização alemã de São Leopoldo. Também pastores e

padres aumentaram em número, embora ainda fossem poucos. Havia os

povoados de Campo Bom, Sapiranga, Dois Irmãos, Santa Maria do Herval e

outros. Para os lados da antiga Estância Velha também se formavam

núcleos populacionais.

Um pastor da redondeza visitava as colônias, casualmente, e chegou

por ali. Por isso, “Mutta” Teicher nem precisou mandar buscar outro nos

povoados. Este pastor, porém, sentia-se cansado. Viajava em burricos, o que

lhe tirara muita energia. Como não gostava de viajar sozinho, para precaver-

se de possíveis ataques de tropas, bugres ou animais de grande porte, trazia

consigo a filha mais velha, uma vez que os filhos-homens ainda eram

crianças. A moça beirava 17 anos.

A viagem do pastor durara em torno de duas semanas. Quando chegou

aos Tannenhaus, quedou-se a ficar. O cansaço das muitas viagens quase o

debilitara. Preferiu pousar alguns dias, pois conhecia bem a família. Era o

mesmo que oficiara o casamento de Peter e Luísa, e Miguel e Catarina. Além

disso, o nonagenário Tannenhaus dormitava quase sempre. Era difícil

conversar com ele. Entretanto, o pastor preocupou-se com o longo tempo

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fora de sua casa e a mulher que devia estar aflita. Então, falou com “Mutta”

Teicher:

- Eu gostaria de mandar a minha filha para casa. Será que vocês

podem ceder um empregado para levá-la?

- Sim, sem dúvida. O Esaú pode fazer isto. Ele é guapo e

inteligente. Além disso, como não é parente direto do “Opa”, não haverá

problema de faltar, se, por acaso, este vier a falecer antes da volta dele.

Sim, sim. Ele pode levar a sua filha. Ele pode ir na charrete, aí chega mais

depressa.

- É um grande favor que a senhora faz. Estou preocupado com a

minha mulher. Ela deve estar aflita. Ao mesmo tempo, não quero deixar um

senhor tão idoso como o senhor Tannenhaus morrer sem uma assistência

divina. Assim, fico uns dias, atendo ao acamado e descanso um pouco das

minhas viagens.

- Não é favor algum. Ficamos muito contentes em tê-lo aqui,

senhor pastor. Assim, o “Opa” poderá morrer tranquilo, se este for o desejo

de Nosso Senhor.

Desta forma, Esaú foi incumbido de atrelar os cavalos na “chaise”

(pronuncia-se cheese, com dois es átonos) e conduzir a moça, cujo nome era

Gudrum, para a volta a casa desta. Chovera uns dias antes e a picada estava

embarrada. A carroça deslocava-se com lentidão, porque os cavalos, ágeis

em dias secos, tinham dificuldade de andar com rapidez com os barros que

se grudavam nas rodas e os buracos que a chuva fizera nos locais mais

moles.

Certamente, levariam quase um dia inteiro para chegarem. O pastor,

que conhecia a família, mas nem tanto, pensou que Esaú era um empregado

da família Teicher. Nem lhe passou pela cabeça que o rapaz, negro, era neto

do falecido Peter Teicher.

Gudrum, moça branca como o leite, algumas sardas e cabelo quase

ruivo, índole voluntariosa, atrevida, acostumara-se a viajar com o pai e

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aprendera manhas e espertezas dos homens. Conhecia Esaú, desde os

tempos de infância, quando a família dele algumas vezes fora ao culto,

também quando o pai oficiou o casamento de Peter Filho e Luísa, e Miguel e

Catarina. Por aqueles dias, brincou com ele, coisas de que o pai nem se

apercebera.

Por isso, a conversa entre os dois rolava solta. Passadas em torno de

duas horas, a moça tornou-se lasciva:

- Esaú, tu és forte e valente, bonito... hum... esses braços.

O rapaz apenas a olhava, um pouco constrangido. Nunca uma mulher

lhe dirigira palavras neste tom. Ela continuou:

- Que me dizes?... Não me achas bonita?

- Claro que te acho bonita.

- Mas, não assim... bonita como uma vaca, uma égua ou outro

bicho! Como mulher... gostosa. Não te dá vontade de me pegar? Me beijar?

Esaú não ficou vermelho, porque era preto, mas sentiu rubor muito

forte, uma insegurança, um tremor. Não sabia o que dizer ou fazer.

- Ôôôôô....haaaa...

Fez os cavalos pararem e verificou se as rodas continuavam inteiras, se

não havia rachaduras. Depois, voltou ao coche e tocou os cavalos. A moça

achegou-se mais. Encostou no corpo dele.

- Que foi? Não gostaste do que eu disse? Não sou gostosa o

suficiente para que me dês um beijo?

- Não é isso! Pára de falar estas coisas. Fico encabulado e

nervoso.

- Ah. É? Nervoso, por quê? Achas que eu não gostaria que me

abraçasses e beijasses?

- Sei lá. Nunca fiz isso. Como vou saber?

- E não viste como os outros fazem?

- Gudrum, pára com isso! Teu pai não ia gostar de saber que

tu fazes isto comigo.

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- Meu pai está longe. Ninguém vê. Estamos sozinhos nesta

estrada. Vamos, aproveita! Se não me beijas hoje, não vais poder me beijar

nunca!

- Aprendi que a gente só beija alguém com quem vai casar e

isto depois do casamento.

- Arre! Como és puritano! A filha do pastor sou eu! Dizem

estas coisas só para a gente não poder beijar ninguém. Que mal faz? Não

vou morder o teu lábio, juro! Adoro estes teus lábios carnudos.

- Gudrum, por favor, pára de falar estas coisas! Tu sabes

muito bem que não há chance de eu casar contigo. Sou preto. E tu, tão

branca e ainda por cima filha de pastor, só vais poder casar com um branco

como tu.

- Mas quem está pensando em casar? Eu gostaria de casar

contigo, se pudesse. Gosto muito de ti, desde que éramos pequenos. Como

brincávamos! Como nos dávamos bem! Mas eu sei que as nossas famílias

jamais aceitariam um casamento entre nós. Então, vamos aproveitar hoje

que estamos sozinhos!

- O teu pai me mata, se souber disso. Ele pensa que eu sou

um empregado.

- Meu pai não mata ninguém. Ele é pastor. Pastores não

matam.

- Mas pode desgraçar a minha vida. Convocar outras pessoas

para me machucarem.

- Como ele vai ficar sabendo? Não tem ninguém por aí.

A carroça sacolejava e os dois avançavam caminho. Gudrum insistia no

beijo e Esaú mantinha-se duro como pedra. Apesar de ter mais de vinte

anos, nunca tivera uma namorada e conservava-se puro como uma criança.

As maquinações da moça pareciam-lhe maquinações do Diabo, pois era isto

que ensinavam às crianças, naqueles tempos. Sexo e erotismo eram tabu,

sujeira, insinuações diabólicas.

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Gudrum, mais vivida que o moço, via, naqueles momentos, uma

chance de desafogar os desejos que sentia pelo jovem. Pouco lhe importava

que ele era negro, ou, talvez por isso mesmo, sentia-se atraída pela

masculinidade, pelo porte atlético, pelos cabelos negros, lábios carnudos que

a fascinavam.

Esaú, por sua vez, sentia o cheiro do corpo da jovem. Quando a

olhava, via aquele rosto branco, as sardinhas sobressaindo-se como pingos

sapecos, os cabelos quase vermelhos, as mãos acariciando, de vez em

quando, o corpo dele. De repente, pensou: o Diabo tomou conta de mim.

Estou louco para beijá-la. Como suportar? Estou perdendo o controle.

Nesse momento, a carroça como que caiu, parou e os cavalos também

pararam. Esaú desceu para ver o que tinha acontecido. A charrete caíra em

um buraco fundo, não visto por estar coberto de barro e água da chuva.

- Temos de parar. – falou para Gudrum. – A charrete caiu num

olheiro. Reze para que a roda esteja inteira.

A moça não respondeu. Desceu da “cheese” e tentou ajudar. Buscaram

pedras e tocos para colocar no buraco. Depois de cheio, Esaú mandou

Gudrum tocar os cavalos, enquanto ele usava de toda a sua força para

empurrar a roda para fora do olheiro.

Nessa dificuldade, lutaram uma hora inteira até que finalmente a roda

desentocou. Os dois estavam cobertos de lama, principalmente o rapaz. Com

isto, o ardor da moça esmaeceu um pouco.

Continuaram pelo caminho, mais quietos por um bom tempo. Em uma

baixada, encontraram um riacho. Pararam. Desceram. Lavaram-se. Olhando

Esaú lavar-se, voltou o desejo à moça. Mais uma vez, pôs-se a tentar o

rapaz. Puxou a longa saia até os joelhos e o moço pode ver as brancas e

roliças pernas da garota. Ela deu gritinhos de prazer ao contato dos pés com

a água. Chamou Esaú para perto.

- Vamos tomar um banho pelados. Deve ser uma delícia.

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O moço encheu-se de desejo e ruborizou-se todo, mas não se notava,

por causa da pele escura. Mais que depressa saiu do riacho e voltou para a

charrete, mantendo a compostura. Sentia-se completamente intimidado,

tonto, quase incapaz de dominar os próprios desejos, mas, num esforço

desesperado da razão, gritou:

- Vamos embora! A tarde termina depressa.

Voltaram à charrete e à jornada. Gudrum continuava na sua tentativa

de sedução. De repente, aparece pelo caminho um mendigo. Caminhava

cambaleante. Rapidamente, a moça tomou posição de distância do moço. Os

dois ficaram apreensivos, mas continuaram como se nada de estranho

houvesse.

Quando chegaram bem perto, o caminhante ergueu a cabeça e os

fitou. Alguma coisa se moveu na mente de Esaú. Uma lembrança

desagradável retornou da infância.

- Adão???????

- Sim, sou eu. E tu deves ser o ... – falou em alemão, embora

negro fosse, fazendo uma longa pausa, como a lembrar algo distante. - ... o

Esaú. Sim, deves ter crescido. Eras uma criança, quando eu fui enxotado de

lá.

Esaú lembrou-se da cena desagradável da infância. Este mendigo fora

empregado do avô “Teicher”. Achando-se injustiçado, desabafou com

palavras obscenas, ofensivas à mãe e ao pai dele. Lembrou-se de que

naquela ocasião, criança, tivera vontade de bater em Adão, que tanto

ofendia a mãe e o pai. Adão, preto como o pai Martin, ofendia a mãe

Verônika, branca, por estar casada com um negro. Mas a “Mutta” Teicher,

antes que alguém pudesse reagir, pois tudo fora muito rápido, tomara o

relho e expulsara o homem daquelas terras.

Toda a raiva acumulada desde então, explodiu em palavras:

- Desgraçado!!! Que andas fazendo por esta estrada!! Se eu

tivesse uma arma, te matava agora.

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- Eu sei. Eu sei. Tens toda a razão. Eu fui um crápula. Peço

que me perdoes.

Esaú não esperava por tal humildade, soava-lhe falsa. Pegou o relho

com que tocava os cavalos, desceu da charrete e investiu contra o infeliz.

- Não, Esaú! Não! Não batas no pobre homem! Ele é velho! É

fraco! Parece doente! – Ouviu a voz de Gudrum, mas não cessou. O homem

caiu, e colocava os braços perante o rosto para se proteger. Gudrum desceu

da carroça e gritou o mais que podia. Envolveu seu corpo e braços em torno

de Esaú e continuou gritando:

- Pára! Pára, Esaú! É uma covardia! Vais matar o pobre!

Deixa-o!! Deixa-o, por favor!!!

Aqueles gritos estridentes no seu ouvido fizeram-no parar.

- Vem! Volta para a charrete! Vamos seguir nosso caminho!

Deixa este infeliz seguir o seu destino. – disse Gudrum, conduzindo Esaú de

volta à “cheese”.

A moça tocou os cavalos e seguiram viagem. Não sabia porque o rapaz

tivera aquele acesso de fúria sobre o mendigo, mas calculava que devia ser

algo grave, pois o seu amado sempre fora calmo. Esaú tremia de

nervosismo. Deixou-se levar. Depois de perderem de vista o Adão, Gudrum

encostou a cabeça do rapaz no seu ombro, acariciou-lhe o rosto, os cabelos.

- Calminha, meu querido. Calminha! Tudo já passou. Aquele

homem horrível ficou longe. Vem, eu te faço feliz de novo.

E o beijou. Aqueles lábios quentes, depois de uma emoção negativa

muito forte, trouxeram-lhe um alívio nunca antes sentido. Abraçou-a e

beijou-a com furor. Os cavalos conduziam a carroça sozinhos, enquanto os

dois ficavam em êxtase.

De repente, um dos cavalos ergueu-se nas patas dianteiras, enquanto

soltava um relincho desesperador. Os moços encerraram o êxtase. O cavalo

baixou as patas e bateu-as várias vezes contra o chão, como a pisotear algo.

Tratava-se de uma enorme cobra que o corcel conseguiu matar com suas

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patas.Em seguida, bateu em disparada. O outro acompanhou. A carroça

quase foi derrubada.

Esaú segurou as rédeas com força e tentou parar os animais que

corriam com força descomunal, como movidos por um tufão. Gudrum

segurava-se o mais que podia na trave da boléia para não ser jogada para

fora. A carroça subia os outeiros, descia em desabalada carreira as encostas.

Pedras, tocos, buracos eram transpostos como nada. Mas não se afastaram

do caminho aberto, seguiram pela picada da mata, o que impediu de se

acidentarem.

Quando, finalmente, Esaú conseguiu parar os cavalos, os quadrúpedes

e os jovens estavam cansados.

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Cap. II

PRECONCEITO

Quando chegaram mais perto da localidade, onde Gudrum devia ficar,

desistiram dos beijos e amassos e comportaram-se como era o costume na

época. O rapaz seguia na boléia em frente, enquanto a moça ficava no banco

de trás. Entretanto, antes da última curva, Gudrum pediu:

- Só mais um beijinho antes de encerrar esta viagem de

sonhos. Eu te amo, Esaú. É uma pena que não possa casar contigo. Sei que

meus pais jamais aceitariam. Eles são racistas. Arre! Esses preconceitos

bestas!

Esaú aquiesceu. Virou-se, enquanto os cavalos conduziam a carroça

sozinhos, e a beijou, com ardor, longamente; mas nenhum dos dois deu-se

conta de que um menino, atrás de alguns arbustos, via o que faziam. O

menino, filho de alemães, saiu a correr, sem que eles percebessem e dirigiu-

se à aldeia.

Lá chegando, fez um escarcéu:

- Eu vi! Eu vi! Um negro beijando uma moça branca!

Os que o ouviram indignaram-se de imediato. Aquilo era um alvitre,

uma sem-vergonhice que não conseguiam aceitar. Perguntaram onde estava

o dito cujo, onde vira a malandragem ao que o garoto prontamente

respondeu:

- Eles vem vindo pela estrada, numa “cheese”.

Como no momento o menino era o centro das atenções, inventou mais

um pouco que o beijo fora à força, que a moça lutara contra o negro, etc.,

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etc. Em seguida, a caleça apontou na estrada. Alguns homens dirigiram-se

até ela. Avançaram para cima de Esaú com grosseria, truculência,

chamando-o de negro sem-vergonha, desgraçado, e outras alcunhas a mais.

O rapaz viu-se, de um momento para o outro, encurralado. Saltou da carroça

e pôs-se a correr, perseguido de perto por meia dúzia de brancos alucinados.

Um outro que ficou, subiu na carruagem e tocou os cavalos, enquanto

pensava acalmar a moça:

- Não te preocupes, moça! Eu te levo para casa. Sei quem és:

a filha do pastor. Este negro desgraçado não põe mais a mão em ti! Podes

ficar tranquila. Eu te levo para casa. Os outros o pegam. Este infeliz vai

lamentar ter nascido.

Gudrum, tomada pela surpresa, impotente, não sabia o que pensar ou

fazer. Gritou desesperada para o homem que tentava protegê-la:

- Está tudo errado!!!! O que estão fazendo???? Aquele rapaz

não me fez mal algum! Ele é meu amigo! Amigo do meu pai! Pára! Pára esta

carroça! Parem de persegui-lo.

O homem respondeu:

- Desculpa, moça! Mas negro nunca é amigo nosso! Quando

muito é empregado! Por que o defendes? Sei que a menina tem bom

coração, tem pena do negro, mas ele passou dos limites.

Vendo que nada conseguiria mudar a mentalidade dos homens e, não

sabendo o que acontecia, só lhe restou chorar e rezar para que Esaú

conseguisse escapar dos perseguidores.

O menino delator conseguiu alvorotar toda a aldeia. Quando Gudrum

chegou em casa, a mãe já a esperava, aflita.

- Quem era esse cara, filha?

Gudrum, ainda pranteando seu susto, atirou-se nos braços da mãe e

soluçou:

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- Mãe, está tudo errado. Há um tremendo mal entendido entre

as pessoas. Esse rapaz não me fez mal algum. Ele é o Esaú, o neto do

falecido Peter Teicher, lá da Colônia Teicher. Ele me trouxe para casa.

E explicou à mãe que o pai ficara com o moribundo Tannenhaus e que

Esaú a trouxera para não deixar a ela, mãe, preocupada.

- Mas... contaram que o menino falou que ele te beijou. Isto é

verdade, filha?

Ao que rapidamente Gudrum respondeu:

- Não foi ele quem me beijou. Fui eu que o beijei.

Uma tapa bem forte estalou no rosto da moça.

- Louca!!! Vagabunda! Como ousas dizer isto??? Diz que é

mentira! Diz!!! Diz!!!

Gudrum sentiu-se mais atarantada que antes. Não sabia o que dizer ou

fazer. Parecia que o mundo desabava encima da sua cabeça. Era como se

tivesse cometido um dos maiores crimes. A mãe avançava sobre ela,

enfurecida. Batia na cabeça, no rosto, nos braços, nos ombros, onde

alcançasse.

- Ainda queres defendê-lo? Não sejas boba! Nunca mais digas isto!

Então, é verdade. Ele te beijou! Negro desgraçado! Que ele se afogue num

mar de lama! Mas tenho certeza que os homens que foram atrás dele vão

pegá-lo, vão lhe dar uma surra tão grande que nunca mais terá coragem de

olhar para uma branca.

- Não, mãe! Não! Pára, mãe! Pára! Nós não fizemos nada de

mal. Nem ele, nem eu. Não sejas injusta, mãe! Ele não fez nada de mal! Ele

só me ajudou. É mentira do guri.

- Vai para teu quarto! E não sai de lá. Quando teu pai chegar,

tu vais te explicar com ele.

A moça, apavorada, percebeu que se metera numa enrascada sem

saída. Se a mãe, que geralmente, era compreensiva, tinha batido nela, o que

faria o pai? Chorou durante uma hora, mais ou menos, enquanto os

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pensamentos fervilhavam em sua cabeça. O que fazer? Como sair dessa?

Nem sabia por que a condenavam. Quem a vira beijar Esaú? Pobre Esaú!

Que Deus o ajudasse a escapulir com vida! Por alto, entendera que um guri

vira o beijo e espalhara a notícia da forma mais desumana possível, tanto

que todos os aldeões se enfureceram, até sua mãe. O pai receberia a notícia

da forma mais negativa possível. O que seria dela? O que ele faria?

O medo começou a tomar conta. A noite estendeu seus longos braços

sobre a terra e encobriu a tudo e todos. A mãe não veio vê-la. O castigo doía

na alma. A menina não dormiu. A cabeça martelava. Pela madrugada, bolou

um plano de fuga. Pegou algumas coisinhas que julgava suas, colocou-as

numa fronha de travesseiro, pulou a janela, que era apenas duas tábuas

encostadas uma na outra, e desapareceu antes de o sol nascer.

Bateu na porta de uma tia viúva. Quem abriu foi o primo de doze anos,

filho dela.

- O que fazes tão cedo aqui, Gudrum?

- Chama tua mãe! Chama tua mãe! Preciso falar com ela!

O tom de voz impunha respeito. O menino chamou a mãe que

ordenhava uma vaca, no quintal. A tia estranhou o rosto decomposto, as

olheiras, os olhos lacrimejantes, mas, bondosa, entendeu o motivo da

chegada da moça, uma vez que as más línguas já haviam espalhado a

notícia pelos quatro cantos da aldeia.

- Filha, o que fazes tão cedo aqui? Fugiste de casa?

- Claro, tia. Tu sabes o que aconteceu, não é?

A tia anuiu com a cabeça, espantada. Os outros filhos começaram a

aparecer, duas moças mais velhas e três meninos mais jovens. Olhavam

para Gudrum, como se ela fosse um fenômeno.

- Pois é. A mãe está furiosa comigo, porque eu disse que

beijei o negro, que não foi ele que me forçou. Ele é negro, mas é bom. Não é

escravo, nem empregado. A mãe dele é alemã, que nem nós. O pai é preto.

Eles são casados. Acho que formam um dos primeiros casais mistos entre

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brancos e negros. Eu gosto dele. É meu amigo. Nunca me fez nada de mal,

sempre foi gentil e educado comigo. Tenho medo da reação do pai, quando

ele voltar. Por favor, tia, me ajuda!

A tia, solícita, imediatamente sentiu pena da moça.

- Entra, entra, filha. Que posso fazer? Ah! Meu Deus! Em que

loucura te meteste! Será que o teu pai não vai compreender?

- Tenho certeza que não, tia. Conheço o meu pai. – E

começou, mais uma vez, a chorar.

- Mas ele é pastor. Vive pregando por aí que não devemos ter

preconceitos.

- Isto é na teoria. Na prática, ele é racista igual aos outros. Só

a senhora que é boa e não faz diferença entre branco e preto. – Soluçava a

moça, em altos brados.

- Somos todos filhos de Deus.

- Eu sei, mas o pai não vai querer um negro como genro, é

óbvio. O pai acha que o Esaú é empregado, mas ele é, na verdade, o neto do

falecido Peter Teicher, da Colônia daquele nome. Tia, eu preciso que a

senhora me ajude.

- Mas... como?

Pensarem, trocaram ideias, matutaram. Por último, a tia concluiu:

- Já sei. Tens de te afastar por uns tempos. Mando-te para Porto

Alegre. Ficarás na casa de uma amiga, uma conhecida minha até que a

tempestade maior passe, até que teus pais se acalmem. Afinal, foi apenas

um beijo. Depois de teus pais ficarem um mês sem te ver, tenho certeza que

terão saudade, remorso e pensarão melhor. Então, poderás voltar. Detesto

ter de fazer isto com minha própria irmã. Mas vou enganá-la para o próprio

bem dela e teu. É a única forma que encontro de te ajudar.

Assim, Gudrum, naquele dia, tomou assento num barco que sairia do

Rio dos Sinos em direção ao porto de Porto Alegre. A tia vestiu-a de preto

cerrado. Vestes que ainda guardava do seu luto do marido, falecido há

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muitos anos. Um lenço cobria a cabeça e quase todo o rosto. Ninguém a

reconheceria. Gudrum levava consigo uma carta escrita pela tia que

explicava à amiga porto-alegrense quem ela era e a situação em que se

encontrava. Também levava escrito o endereço, caso não encontrasse a

casa. Algum dinheiro, embora pouco, foi-lhe colocado num lenço que

amarrou e colocou no saco em que Gudrum levaria suas peças de roupa.

Acompanhava-a o primo de doze anos, pois, naquela época, nenhuma

mulher andava desacompanhada de homem, mesmo que fosse apenas um

menino.

A moça chorava baixinho, para dentro de si mesma. Ninguém

percebia. Só o primo, encostado nela, sentia o pranto. Também este estava

coberto de roupas de pessoa mais velha para não ser reconhecido. Ninguém

deveria saber quem eles eram. Uma das outras filhas mais velhas t pagou a

passagem ao barqueiro. O menino falou baixinho, brincando, para agradá-la

e dirimir-lhe o sofrimento:

- Não te preocupes! Quando eu for mais velho, caso contigo, juro!

Sou novinho, mas já sei me comportar como homem. E gosto de mulheres

mais velhas!

Gudrum apenas deu-lhe um soco, de leve, nas costelas.

Os poucos homens que viajavam no barco olhavam de vez em quando

para aquela viúva com um garoto ao lado. Curiosos para saber quem era,

não tiveram coragem de abordá-la, pois chorava muito.

Esaú, depois que pulou da carroça, correu o mais que pôde para livrar-

se dos seus perseguidores. No início, fugiu pela estrada, mas, em breve,

percebeu que o número de perseguidores aumentava. Começou a sentir-se

cansado, enquanto alguns novos perseguidores, descansados, entravam na

fila. Então, enveredou pelo caminho da floresta e, ali, se refugiou. Estava

acostumado a embrenhar-se em matas e foi o que fez. Em breve, os

perseguidores não sabiam que rumo tomara e desistiram da busca.

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Não mais ouviu a conversa dos homens e sentiu-se aliviado.

Entretanto, esta floresta era desconhecida e ele se aprofundara nela. Em

dado momento, parou. Escutou. Como nada ouvisse, sentou-se num tronco

caído e descansou. Não sabia por que o perseguiam os homens, mas achou

que seria por ter beijado a filha do pastor. Foi a conclusão a que chegou

pelas conversas e xingamentos que ouviu. Mas, como descobriram? Quem os

vira? Bem que eu avisei Gudrum que isto ia dar problemas. Poucos alemães

gostam de negros. A minha pele me denuncia. Embora minha mãe seja

alemã, eu sou preto como meu pai. E, agora, o que faço? Como vou voltar

para casa? Que caminho tomar? Isto aqui tudo me é tão estranho.

De repente, lembrou-se da moça. O que aconteceu com a Gudrum?

Será que ela foi sã e salva para a sua casa? E a charrete da “Mutta” que

ficou lá na aldeia? Como vou voltar para buscá-la? Que aflição! O que faço?

Não posso voltar para lá. Essa gente me odeia e me mata, se eu aparecer.

Em breve, anoiteceu e Esaú sabia que, logo, logo, a noite lançaria suas

asas negras sobre a floresta. Procurou um pedaço de madeira que servisse

como bordão para defender-se. Depois, uma árvore alta e copada para

dormir. Exausto, sabia que era preciso cuidar-se para não ser comido por

feras. Sabia que, no mato, na noite, animais caçadores como jaguatiricas,

gatos do mato, onças, além de outros poderiam machucá-lo ou matá-lo.

Também poderia envenenar-se por aranhas, cobras e, até, taturanas e

outras lagartas, grudadas nas árvores. Sabia, também, que aquela seria uma

noite de lua nova, escura como breu.

Dormiu intranquilo. Apenas cochilava de quando em vez. A cada

barulho mais próximo, apesar do cansaço, acordava, pegava o bordão e

ficava alerta, apavorado, imaginando que em breve serviria de jantar para

um animal faminto.

Mas, apesar do medo e desconforto, a noite passou. Pela madrugada,

os pássaros iniciaram seu concerto. Esaú sentia cansaço e sede. Algumas

folhas grandes mantinham água em suas entranhas e Esaú sorveu-as com

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sofreguidão. A fome começava a fazer-se sentir. Pensou em sair da floresta

e seguir por outra direção que não a da aldeia. Olhou para a copa das

árvores, altas, cerradas, cheias de cipós e concluiu que não sabia onde

estava. Para qual direção dirigir-se? O sol indicava o leste, mas o que

haveria a oeste? Mais mato? O que fazer?

Começou a andar. Para algum lugar deveria ir. Andou, andou e andou.

Parecia que a mata não tinha fim. Onde andaria? De repente, teve a

impressão de que as árvores pareciam todas iguais, que não tinha saído do

lugar.

- Meu Deus! – gritou. – Estou perdido! Perdido! Não sei como sair

desta floresta.

Depois, conversou consigo mesmo:

- Calma, Esaú! Calma! Lembra-te que teu pai viveu muito tempo na

floresta, sozinho, e era criança. Tu és um adulto. Lembra-te do que ele

contava, como ele se virou na floresta para não morrer de fome e não ser

comido pelas feras. Ele conseguiu sobreviver. Tu também vais conseguir.

Embora apavorado, conseguia andar. Procurou amoras, gabirobas,

araçás e outras frutas do mato para saciar, pelo menos um pouco, a fome

que sentia. Tinha vontade de gritar, chamar para ver se alguém o ouvia, mas

não o fazia por medo. Os perseguidores poderiam reaparecer. Preferia a

solidão da floresta à perseguição.

O dia passou e Esaú continuou embrenhado na selva, sem saber que

rumo tomar. Os pés feriram-se, racharam, sangraram.

- Seria bom se tivessem cortado os meus pés, quando nenê, como

os bugres fizeram para a “Mutta Teicher”. Talvez, então, eu tivesse os

cascões na palma dos pés, como ela e não sentiria dor. Nada me feriria. Ai!

Como doem!

Pernas e braços também feriram-se, principalmente, quando fugira

desatinado. Até as roupas foram rasgadas por espinhos, galhos e tocos.

Mais uma noite dormiu sem sossego. No outro dia, todos os seus atos se

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repetiram. Não sabia se estava mais para dentro do âmago da floresta ou se

ia para fora dela. No terceiro dia, o desespero tomou conta dele e gritou,

chamou por socorro, indiferente ao medo de ser linchado. Pediria perdão aos

alemães, seria escravo, poderiam prendê-lo, judiar dele, o que quisessem,

desde que pudesse sair desta situação de perdido. Entretanto, nada, nem

ninguém se manifestou. Apenas os ruídos típicos da mata lhe davam retorno.

A fome o ameaçava. Um desejo intenso de comer outras coisas além de

frutinhas. Pensou em carne. Mas como caçar, se não tinha arma, apenas um

pedaço de pau, um cajado?

Subiu numa árvore bem alta para divisar algo? Mas o que viu ao redor

deixou-o mais desanimado ainda. Só árvores e mais árvores até onde ia a

visão.

- Acho que, em vez de ter ido para fora da floresta, sempre fui mais

para dentro.

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Cap. III

A BRUXA

Após ajudar a enterrar Tannenhaus, o pastor despediu-se da família,

montou o seu burrico e tocou-o para a volta a casa. A viagem transcorreu

normal, com vagar, como ocorria naqueles tempos. Burros são lentos. De

vez em quando, paravam para um descanso, beber água, deixar o animal

pastar e o homem comer algo, se tivesse.

Chegou à aldeia no fim da tarde do terceiro dia. Antes de chegar à

moradia, como era seu costume, cumprimentava os que o encontravam. O

primeiro cidadão já lhe informou do incidente com a filha e o negro. Em

seguida, mais alguém repetiu a história. O pastor começou a ficar nervoso.

Mais adiante, duas mulheres aumentaram a fofoca. O homem sentiu-se

desconfortável e pediu que o deixassem ir para casa, pois vinha de longa

viagem, estava cansado e desejava ver a família. Com ela, resolveria logo os

problemas.

Ao chegar, amarrou o burro ao poste e correu para dentro. A mulher

cumprimentou-o friamente. As outras crianças rodearam-no e ele as beijou.

- Onde está Gudrum?

- Eu a tranquei no quarto. – A mãe respondeu. As crianças

lançaram olhares de medo.

- É verdade o que andam dizendo por aí? Que o negro que a

trouxe na charrete a molestou? – Perguntou com irritação.

- Acho que sim.

- Quero vê-la! Conversar com ela! Deve estar muito

assustada!

O pai correu ao quarto. Abriu a porta. Não viu ninguém. Chamou:

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- Gudrum! Gudrum! Onde estás?

A mãe acudiu. Abriu as portas do roupeiro. Procurou embaixo da cama.

Abriu a janela.

- Ela fugiu! Ela fugiu! Vê! A janela só está encostada!

A mãe desesperou-se. Pôs-se a gritar e a puxar os cabelos.

- Como ela pôde fazer isto?! Que guria!

O pai, estupefato, estampava a surpresa no rosto.

- Mas, por que ela fugiu? Esta menina está louca!

Uma das crianças falou:

- Ela fugiu, porque a mãe bateu nela!

- Bateu? Mas, por quê? Coitadinha! O que ela fez de errado?

- Bati, porque ela me disse que não foi o negro que a

molestou, que foi ela que beijou o negro. Ela o defendeu, me enfrentou, foi

arrogante comigo. Eu até bati pouco. Disse para ela que o pai bateria muito

mais.

- Se ela falou isto, realmente, eu bateria nela. Filha minha não

tem este tipo de comportamento. Mas, e agora, fugiu? Para onde foi?

Teremos que descobrir! Será que foi roubada pelo negro? Será que os dois

fugiram juntos?

- Nem diz uma coisa destas! – corroborou a mãe, aflita, as

lágrimas saltando dos olhos.

O pai olhou para as crianças, que se afastaram com medo. Sabiam que

a descarga dos nervos dos pais sobraria para elas, como geralmente

acontecia.

- E vocês? Sabem de alguma coisa? Viram para onde ela foi?

Como nenhuma respondesse, deu uma volta ao redor da mesa e

repetiu a pergunta, com mais ênfase:

- E vocês?? Sabem de alguma coisa?? Andem! Falem! O que

vocês sabem?

O menino mais velho balbuciou:

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- Não sabemos de nada, não. Ela não falou conosco e nós não

falamos com ela, desde que voltou.

- Essa agora! Mando a moça para casa para deixar a mãe de vocês

tranquila e, no entanto, cria-se mais problemas. Temos de procurar! Vamos

bater o sino! Vamos chamar todo o mundo e ver se alguém pode nos ajudar.

Os dois meninos mais velhos correram a bater o sino, que era o

trabalho deles, só que não era um sino, apenas uma sineta grande tocada a

mão, mas que se fazia ouvir na aldeia que era de poucos moradores.

Em seguida, apareceram alguns homens, mas principalmente as

mulheres. Quando o pastor lhes contou que a filha desaparecera, ficaram

mais indignados e nervosos que no dia do beijo. As raivas todas se

concentraram em Esaú, o negro que tivera a audácia de beijar uma branca.

Para culpá-lo do desaparecimento da moça foi só um instante.

- Este desgraçado roubou a moça!

- Claro! Só pode ser isto!

- De fato! Só ele poderia fazer tal malcriação!

- Mas... e o que vamos fazer? Onde procurá-lo? – interrogou o

pastor.

Alguém teve uma ideia brilhante:

- A cheese! A cheese! Vamos levar de volta a cheese para a família

Teicher! Talvez ele esteja por lá!

- Escondido!

- Só pode ter voltado para lá. Para onde iria?

O pastor concordou com a ideia. Mas, como estava cansado, deixou

para viajar no outro dia, pois o mal já estava feito de qualquer maneira.

Levaria alguns homens com ele.

- A família Teicher vai esfolar esse empregado maldito! Pobre

da minha filha! Que destino! Que tristeza para a nossa família! Toda a família

desonrada! Terei de mudar de aldeia, onde ninguém nos conheça, para que

a Gudrum possa ter um casamento que nos honre outra vez. Por favor,

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podem voltar para suas casas. Amanhã, pela manhã, sairemos daqui com a

charrete e alguns homens. Quem pode me acompanhar?

O sobrinho, aquele que levara Gudrum para Porto Alegre, entre os

outros presentes, quase não se aguentava de vontade de gritar que a prima

estava em Porto Alegre, mas a mãe, ao lado dele, beliscava-o, reprimia-o,

pois o fizera prometer que nada falaria.O coração gritava, mas a boca ficou

em silêncio. A mãe poderia sofrer represálias dos presentes, e ele também.

Alguns se prontificaram a acompanhar o pastor, aqueles que tinham

bons cavalos. O pastor e somente mais um iriam na charrete, para não

cansarem os cavalos e poderem andar depressa.

Até que todos se organizaram, o tempo foi passando. Apenas, em

torno das dez horas da manhã do outro dia é que saíram da aldeia. Apesar

de cavalgarem com rapidez, chegaram depois do meio-dia à colônia Teicher.

A família Teicher almoçara intranquila, pois sentiam a falta de Esaú. Já

faziam alguns dias que ele saíra com a charrete, tempo suficiente para levar

a moça e ter voltado para casa. Embaixo de uma árvore frondosa, os

homens confabulavam, em pé, nervosos, enquanto as mulheres lavavam a

louça e arrumavam a cozinha. O pai, Martin, gesticulava:

- Alguma coisa ruim deve ter acontecido com ele. Esaú não

faria algo para nos deixar preocupados. Juntou do chão uma varinha e batia

com ela no tronco de uma árvore. - Verônika não pára de chorar. Não

aguento mais esta agonia.

- Hoje à tarde, encilho um cavalo e saio em busca do meu

irmão! – falou, gesticulando e levantando-se do toco, onde se assentara, o

irmão mais velho de Esaú.

- Calma, rapaz. – falou Peter. – Nós vamos contigo. Todos os

homens serão dispensados de suas tarefas e iremos em busca do

desaparecido. Nalgum lugar deve estar.

Ninguém contestou as ordens daquele que era o líder natural.

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Neste instante, os cães levantaram-se e subiram a estrada aos pulos,

latindo bravamente. Era um sinal, o sinal de que alguém chegava. Em

seguida, ouviram as batidas dos cascos dos cavalos e, logo depois, os

próprios, com seus cavaleiros. A cheese vinha na frente.

Entre estupefatos e ansiosos, os homens saíram de sua imobilidade, os

músculos tensos e os olhos em disparada. As mulheres abandonaram suas

lides, correram para a área e dali desceram as escadas em direção ao pátio.

A charrete parou no meio do terreiro, os cães latindo ao redor. Num

átimo, Verônika viu que Esaú não se encontrava entre os que chegavam. O

pastor desceu da caleça, sobrecenho carregado. Os acompanhantes apearam

de suas cavalgaduras. O pastor dirigiu-se violentamente a Peter:

- Onde está aquele negro desgraçado?

Ninguém respondeu, porque ninguém entendeu a quem ele se referia.

O pastor repetiu a pergunta, magoadíssimo:

- Há poucos dias estive aqui, ajudando vocês no enterro do

saudoso senhor Tannenhaus, pedi para aquele negro levar minha filha para a

minha casa e ele, o que fez? Molestou-a e ainda por cima a roubou. Onde ele

está? Vocês o viram? Vocês viram a minha filha? Onde eles estão?

Lágrimas quase lhe saltavam dos olhos. Foi um choque para os

ouvintes. Rodearam os acompanhantes, principalmente os jovens e crianças

negras que eram os irmãos de Esaú. Ninguém conseguia balbuciar qualquer

palavra. Um dos acompanhantes agrediu mais:

- Digam logo onde ele está! Não adianta acobertar a maldade!

Ele deve ter-se escondido por aí!

Ouviu-se um choro desesperado. Era Verônika, correndo para dentro

de casa, alucinada. Já tinha entendido tudo. Os visitantes procuravam por

Esaú e acusavam-no de alguma coisa. Seu coração de mãe, mais uma vez,

sentiu a dor de ter gerado filhos negros, os quais eram acusados de qualquer

coisa sem chances de se defender. Onde estaria Esaú? O que acontecera

com ele?

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No terreiro, Peter adiantou-se, com calma:

- Senhor pastor, boa tarde. Não sabemos de que o senhor e

estes homens que o acompanham estão falando.

- Não se faça de inocente. Aquele negro que levou a minha filha

para casa, molestou-a e a roubou. Temos certeza de que está aqui. Para

onde mais ele iria?

- O senhor está falando de Esaú, eu acredito. Desde aquele dia

em que saiu daqui, levando sua filha para casa, não mais apareceu. Estamos

aflitos. O senhor sabe alguma coisa sobre ele?

O ministro da Igreja olhou-o, incrédulo.

- Mas ele não está aqui? – balbuciou.

- Não sabemos de nada. Por favor, explique-se melhor. O que

aconteceu com sua filha?

O homem, desesperado, pôs-se a chorar e esbravejar:

- Quando cheguei na aldeia, contaram-me que este negro, que

vocês chamam de Esaú (deve ser este o nome dele), molestou minha filha, a

Gudrum.

- Molestou como?

- Molestou. Molestou. Beijou-a na boca, pronto. – falou,

envergonhado. – Depois, ao chegar em casa, descobri que Gudrum fugiu ou

foi raptada. Achamos que o negro a raptou. Ela está aqui?

- Não sabemos de nada, não. Alguém viu o Esaú ou a filha do

pastor? – Rodeou a cabeça para todos os lados, inquirindo os demais

familiares, os empregados e as mulheres. Como todos meneassem a cabeça

em sinal de negação, enquanto os visitantes olhassem, longamente, para

todos os rostos, prosseguiu: - Também estamos preocupados com o

desaparecimento do rapaz. Desde que saiu daqui não mais voltou. Já vai

para o quarto dia.

- Então, teremos de procurar juntos. – o pastor anuiu, mais

calmo.

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Um dos acompanhantes, entretanto, vociferou:

- Eles estão mentindo!!! Garanto que este rapaz escondeu-se

em um destes galpões e a Gudrum junto com ele. Eles não me parecem

confiáveis!

Como do lado de cá também houvesse homens nervosos,

principalmente os irmãos e o pai, Martin, este retrucou:

- Não confiáveis são vocês! Trazem a carroça sem o meu filho

e o acusam de coisas que nós nem sabemos o que são. O que fizeram com o

Esaú? Onde ele está?

Outro visitante, mais agitado, gritou com todos os pulmões:

- Se tivéssemos pegado aquele negro sem-vergonha, nós o

teríamos esfolado!

Martin não aguentou a ofensa e partiu para cima dele com socos e

pontapés.

Os ânimos exaltaram-se e todos se engalfinharam em luta corporal.

Somente o pastor e Peter mantiveram-se fora da briga, olhando para um e

outro lado, sem saber como terminar com aquilo. Nesse instante, ouviu-se

um sibilar de relho. Olharam de onde vinha e pararam a luta. Da área descia

a “Mutta” Teicher que até agora se mantivera calada, sentada na sua cadeira

de balanço. Descia as escadas, empunhando o relho, fazendo-o sibilar por

diversas vezes. Todos olharam para aquela figura esquelética, cabelos

desgrenhados, boca enrugada pela falta de dentes, com olhar de felino

ferido. Parecia uma bruxa saída das páginas amarelecidas de uma bíblia

medieval.

- Seus alemães porcos! O que fazem aqui? Vão para suas

casas! Vão para suas lides! Nunca nos ajudaram em nada! Que querem?

Acusar-nos? Humilhar-nos?Trabalhamos! Suamos! Tudo o que aqui existe foi

feito pelos braços das pessoas que aqui vivem, que aqui foram abrigadas

pelo seu trabalho honesto. Esse negro imundo, como vocês chamam, é o

meu sobrinho Esaú, moço honesto, neto do senhor Teicher que construiu

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esta colônia também com os braços do pai de Esaú, o senhor Martin,

igualmente homem honrado, (apontou-o) casado com minha enteada

Verônika, filha do meu saudoso marido Peter Teicher. Não temos

preconceitos aqui. Negros, brancos e bugres têm o mesmo valor, são iguais.

Vocês são mais imundos que qualquer um de nós, porque têm a mente

imunda. Só vêem maldade nos negros. Os maldosos são vocês. Negros

trabalham e é com o braço deles que os brancos enriquecem. Vão embora

daqui! Xô! Xô! – E brandia o relho com fúria, quase acertando alguns. - Fora

daqui! E só voltem, quando tiverem a mente mais limpa! Só voltem, quando

trouxerem Esaú são e salvo para casa! Senhor pastor, como pôde deixar-se

levar por mentes sórdidas, quando você mesmo prega, nos cultos, que todos

os homens são iguais?

O pastor sacudiu-se, envergonhado.

- O negro é neto de Teicher? Como ele pôde...?

Não terminou a frase, pois Walkíria brandia o relho e continuava:

- Vão embora! Vão embora, seus alemães imundos! E

obrigada, pastor, por ter trazido a cheese. Pena que não tenha feito o

mesmo com o Esaú. Tenho certeza de que ele nada fez de mal. É um rapaz

honesto, trabalhador. Eu o conheço bem. E vocês não ousem por os pés

nesta colônia pacífica, se não tiverem mente limpa! Lamentamos, também, a

perda do nosso pastor, pois depois disto, é impossível acreditar nas suas

palavras.

Ela brandia o relho e se aproximava. Por esta os homens não

esperavam. Naqueles tempos, as mulheres, submissas, assustadas,

escondiam-se dos homens. O enfrentamento, feito por uma mulher, idosa e

fraca, envergonhava-os sobremaneira. Pararam de brigar. Montaram seus

cavalos e partiram. Os irmãos de Esaú ficaram parados, quase como

estátuas. Tinham muito respeito pela velha “Oma”. A cheese ficou sozinha

no terreiro.

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Os familiares e empregados olhavam para a velha “Mutta”,

boquiabertos. Conseguira terminar com a briga, o que, eles, homens não

tinham conseguido nem aos socos.

Logo em seguida, confabularam mais e uma caravana partiu, em busca

de Esaú. Walkíria voltou para dentro da casa, subiu as escadas e foi para o

sótão, onde sabia que encontraria Verônika, em prantos, encolhidinha num

canto.

- Não chores mais, Verônika. Os alemães malvados já foram

embora. E os nossos homens partiram em busca do Esaú. Fica tranquila! Eles

vão encontrá-lo!

Em breve, outras mulheres achegaram-se e os outros filhos de

Verônika. O sótão ficou pequeno para abrigar tanta solidariedade.

Os cavalarianos andavam a galope, quando ouviram atrás de si,

galopes mais acelerados. Dobraram-se em suas cavalgaduras e olharam para

trás. Logo, os que chegavam passaram à frente. Eram Luísa e Rosalina,

cavalgando em pelo. Aquela quase nunca montava, só em casos de última

necessidade. Por isso, os homens a olharam estarrecidos. Ela falou

- Por favor, homens, não façam isto! Provocarão uma revolução!

Toda a aldeia pode colocar-se contra nós! Podem invadir a colônia e nos

fazer muito mal! São em número maior. Não vão em grupo! Não perguntem

pelo Esaú! Esaú para eles é apenas um negro. E negros vocês sabem como

são tratados. Por favor, Peter! Pede aos outros que voltem!

Martin, mais envolvido que qualquer um dos outros, vociferou:

- Dona Luísa, então propõe que deixemos o pobre do meu filho nas

mãos desses facínoras?!

- É claro que não, Martin! Mas é preciso cautela!

Um dos outros retrucou, com desprezo:

- Agora temos de obedecer às mulheres!

Peter interferiu, magoado:

- Ela só quer ajudar!

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- Por favor, Peter! Manda estes homens voltarem! Não podemos

criar mais dificuldades do que já existem. Um só homem deve procurar por

Esaú. Assim, não criará suspeitas, nem trará ideias de revanche. –

obtemperou Luísa.

- E não pode ser Martin. Ele está muito nervoso. – acrescentou

Peter.

- E também por ser negro. Tem que ser um branco. – anuiu um

dos outros.

Martin foi o primeiro que virou o cavalo para voltar. Seu rosto encheu-

se de lágrimas, enquanto dizia para a cunhada:

- Luísa tem razão. Nós, negros, mais uma vez temos de engolir as

maldades dos brancos. Não vamos começar uma guerra. Seria pior para

meu filho. Retornemos, pois. Vamos planejar melhor. Não adianta sairmos

por aí com cabeça quente. Só faríamos mais confusão. Além do mais, meu

filho é esperto. Ele vai saber se virar, disso tenho certeza.

De volta à colônia, planejaram o que fazer. Peter e outro homem

branco dirigiram-se à aldeia. Além de mal recebidos, por defenderem um

negro, nada encontraram. A resposta era sempre a mesma: ele fugiu. Outra

caravana foi enviada. Quando esta voltou, mais outra. E, assim,

sucessivamente, até esgotarem-se as esperanças de encontrar Esaú. Apenas

o preconceito cresceu. Toda a colônia foi invadida por preconceito por abrigar

uma família de negros, como se fossem brancos; por haver uma alemã boba

o suficiente para casar com um negro e, pior, ter filhos com ele e serem

todos aceitos pelos brancos da colônia Teicher.

Não mais queriam negociar com eles, vender para eles, deixá-los ir à

igreja deles. A vida na colônia tornou-se difícil, precisavam suprir as suas

necessidades por conta própria e, quando se dirigiam a uma das aldeias,

aguentar as maledicências, os deboches, o desrespeito. Até pedras jogavam

contra eles.

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Entretanto, havia alguns colonos e fazendeiros que não faziam coro a

estas maldades e continuavam negociando com eles, visitando-os, dando-

lhes apoio moral.

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Cap. IV

VIDA DE FAZENDEIROS

Arthur August, o primogênito de Catarina e Miguel, adorou a nova

moradia, nos confins do Rio Pardo. A grande casa, com vários quartos,

móveis de madeira, maciços e pesados, camas individuais para todos. Era

um conforto ao qual não estava acostumado. Na colônia onde nascera, as

crianças dormiam todas juntas, num só quarto, sem camas, apenas colchões

grandes de palha de milho seca e desfiada que cobriam o chão.

Miguel também se sentiu rei, o todo-poderoso, pois ali entrava como

primogênito, o herdeiro do patrão. O pai levava-o para todos os cantos e

recantos da fazenda, ensinava-lhe as lides campeiras, apresentava-o como “

o patrãozinho, aquele que vai herdar tudo que é meu,”. Exigia respeito e

obediência.

A única que não se sentia bem era Catarina. A vida aqui era muito

diferente daquela a que estava acostumada. Nunca antes tinha saído da

Colônia Teicher e, quando saiu, teve de deixar o irmão Peter, a cunhada

Luísa, a tia Verônika, a “Mutta” Teicher e todos os sobrinhos e amigos que

fizera entre os empregados. Aqui todo mundo só falava português e ela, mal

e mal se comunicava nesta língua, ainda assim com sotaque alemão.

Uma índia velha recebeu-a bem, com mesuras, às quais Catarina

também não estava acostumada. Esta morava numa casinha de madeira

roliça, bem perto do casarão dos Casares. A índia, logo no primeiro dia,

depois de atender a tudo e todos, dirigiu-se a sua humilde choupana, mas,

quando a noite já tinha entrado, voltou à casa grande com uma lamparina

para lavar os pés dos patrões.

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O senhor Casares sentou-se numa cadeira e a índia puxou as botas

das suas pernas e pés. Depois, colocou uma bacia com água morna, onde ele

colocou os pés e ela os lavou. Fez o mesmo para Miguel que se sentiu feliz.

Em seguida, foi a vez de Catarina. Esta se sentiu ridícula. Posso lavar eu

mesma meus pés. Não sou aleijada, pensou consigo mesma. Catarina tentou

entabular conversação com a mulher, mas não teve sucesso. Ela mal

respondia as suas perguntas, olhava para o chão e parecia muda.

No outro dia, Catarina comentou sobre este mutismo, na hora do

almoço, o novamente a calada índia velha e duas moças. Almoço este que

era apenas de carne seca salgada, chamada charque, e pirão de farinha de

mandioca. O pai de Miguel retrucou:

- Dona Catarina, aqui a senhora é patroa, a senhora só manda. As

empregadas, as quais são comandadas por dona Rosário, é que fazem todo o

serviço. A senhora só precisa dedicar-se ao seu marido e filhos. Rosário é

uma serva fiel, de muitos anos, ela sabe o que deve e não deve fazer. Ela

lavará seus pés todas as noites. É o trabalho dela.

- Mas posso lavar eu mesma meus pés. Não sou aleijada.

- Claro, Catarina, mas os costumes daqui são outros. Não discuta

com o senhor Casares. – Acrescentou Miguel, tentando agradar o pai.

Catarina nada mais falou, porque não conseguia argumentar em

português. Mesmo assim, sentiu-se ridícula. Na colônia, era ela que lavava

os próprios pés, os do marido e os das crianças menores.

Miguel dominava melhor a língua portuguesa, pois andava a tiracolo

com o pai. Um dia, o senhor Casares chamou Miguel à parte e mostrou-lhe

algo diferente. Embaixo da cama dele e Catarina havia um alçapão que ele

nunca percebera, tão bem feito fora. Por ele descia-se para um túnel, uma

espécie de porão. Lá, atrás de uma pedra, encontrava-se um tesouro. Dentro

de um baú reluziam várias moedas de ouro e prata.

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- Quero que saibas da existência destas moedas. Se eu um dia faltar,

tu serás o dono delas. Ninguém deve saber. Deves contar somente a tua

mulher. Quando tu morreres, ela cuidará delas.

Miguel ficou estupefato. Na sua mente, voltava a história da “Mutta

Walkíria” que guardava as moedas de ouro em um bauzinho.

- Foi deste lugar que a tua mãe tirou as moedas que deu para a

“Mutta”, quando a tua mãe morreu?

- Foi.

- Noooossa! Isto é algo que me impressiona muito.

- Acredito, filho. Fala só para a tua Catarina. Por favor, este é um

grande segredo nosso.

- Não se preocupe, senhor meu pai. Sei guardar segredos.

Passados alguns dias, as crianças sentiam-se cada vez mais alegres e

confiantes. Empregados, a mando do sogro, mostravam a fazenda aos

menores, sentados em carretas. Os maiores, entre eles, Arthur August,

andavam a cavalo e deliciavam-se com as muitas cabeças de gado.

Para Catarina trouxeram um cavalo com arreio especial para

mulheres. Não era necessário sentar sobre o lombo do cavalo como os

homens. O arreio chamava-se selim e era um assento, em que as pernas

ficavam separadas apenas por uma saliência maior, na parte mais alta sobre

o dorso do cavalo. O selim permitia à mulher ficar sentada como se estivesse

em uma cadeira, com as duas pernas para um lado do animal. Também

permitia encobrir as pernas com o vestido e não expunha as partes íntimas

ao atrito do lombo do cavalo. Propiciava-se, assim, um conforto maior para

as mulheres e os homens não podiam deliciar-se com a visão das pernas

delas.

Catarina acostumara-se, desde criança, a cavalgar em pelo. Como seus

companheiros de infância foram meninos, imitava-os e não tivera

preocupação com suas pernas. Elas eram encobertas por calças compridas

que as mulheres usavam sob o vestido. Aqui, na fazenda, o costume era

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outro. As mulheres vestiam-se com vestidos de chita rodados e usavam, sob

eles, apenas calçolas curtas que tapavam os joelhos, por isso os tornozelos

poderiam aparecer se andassem a cavalo como se acostumara em casa.

Estes costumes incomodavam-na por demais. Desejava cavalgar como

estava acostumada, mas sabia que mudar de atitude seria um escândalo.

Este e outros costumes começavam a deixá-la com a impressão de que

perdia a liberdade. Sentia-se como um bibelô. Todos a tratavam como

rainha, mas tinha de seguir certas regras que achava ridículas.

À noite, só à noite, sozinha com Miguel, desabafava, na língua a que

estava acostumada. Mas Miguel não entendia o porquê de tantas queixas. Os

sentimentos dele eram outros: de alegria e felicidade. Aqui, sentia-se

valorizado. Na Colônia Teicher, o irmão Peter era quem dava as ordens

finais. Até ele, segundo irmão, (embora não de sangue) precisava obedecer

ao mais velho. Aqui, ele era o mais velho, o patrão, podia mandar em quem

quisesse, desde que não ferisse os brios do pai. As mulheres admiravam-no

e, algumas vezes, queriam deitar-se com ele, o que lhe causava um prazer

antes desconhecido.

As queixas de Catarina pareciam-lhe infundadas e exageradas.

Seguidamente, discutiam. No início, as discussões foram curtas e tranquilas.

Entretanto, com o passar dos meses e anos, tornaram-se ásperas, grosseiras

e violentas. Às vezes, até os filhos e o sogro precisavam intervir para voltar

a calmaria.

Isto trouxe desgaste na relação conjugal. Catarina sentia-se infeliz e

Miguel já não sabia mais como contentá-la. O sogro procurava agradar

sempre mais ao filho e desprezava os arroubos da nora. Catarina sentia que

perdia terreno, até os empregados, às vezes, debochavam de seu linguajar

com sotaque. Um dia, um deles disse-lhe, quando ela foi ao terreiro:

- Dona Catarina, a senhora viu o “cu” preto que passou por

aqui?

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Todos os outros empregados riram, até os filhos que estavam

próximos. “Kuh” em alemão significa vaca. Catarina ensinara algumas

palavras alemãs a algumas pessoas. Por isso, entendendo a brincadeira, riu

junto. Entretanto, às vezes, ofendia-se.

A alimentação também a incomodava. Sentia falta das batatas, dos

legumes, da carne de porco. O que mais comiam aqui era carne de gado,

pirão e alguns quitutes feitos com milho, como cuscuz, pamonha e curau.

Tanta carne deixava-a enjoada, mas não podia contestar, senão já a

taxavam de delicada, finória e outros adjetivos que a desfaziam.

Um dia, pediu ao sogro que trouxesse sementes de hortaliça, pois

pretendia fazer horta. Este pedido fez o senhor Casares lembrar de um dia

distante, um dia da sua juventude, quando Walkíria fizera o mesmo pedido

ao pai dele. Por isso, empenhou-se em realizar o pedido da nora, mas,

apesar de muito procurar em Rio Pardo, nada achou.

Depois disso, Catarina chorou baixinho durante muito tempo no seu

travesseiro. Nem plantar conseguia. Sua vida tornava-se, a cada dia, mais

amarga e triste. Será que ainda saberei sorrir um dia? Miguel e o sogro

tinham ido, outra vez, para Rio Pardo, como faziam muitas vezes, e

voltavam quando já era quase madrugada. Isto também a entristecia. Aonde

iam? O que faziam? Se eu perguntar à Dona Rosário, certamente ela dirá

que não sabe. Se eu perguntar ao próprio, o Miguel, laconicamente, ele

responderá que vão a negócios.

- Mas que negócios são estes que só fazem de noite?

- Negócios com tropeiros. Em breve, eles vêm buscar uma tropa

de gado que será levada para o norte. – Tenho certeza que será isto que ele

responderá.

- Mas por que não negociar de dia? Por que se arriscar de noite,

quando vocês podem ser pegos por ladrões ou animais selvagens? Imaginem

quanto vocês gastam com querosene nos lampiões para iluminar toda a

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fazenda que fica à espera de vocês e também para iluminar a estrada! – Ela

falava sozinha e argumentava para si mesma, na língua alemã.

E ouvia, nos seu cérebro, a resposta:

- É meu pai que assim quer. Tenho que obedecer.

De repente, armou-se um temporal assustador. Levantou,

temerosa, e verificou se todas as janelas estavam fechadas. Os lampiões de

rua mexiam-se de um lado para outro, tremeluziam. Alguns apagaram.

Arthur August apareceu ao lado dela.

- Que temporal feio, mãe! Onde está o pai?

- O papai ainda não voltou para casa.

- Mas onde ele está, mãe? Vai se molhar nesta chuva horrível!

- O papai sabe se cuidar, Arthur. Não te preocupes. Vai deitar,

filho!– Falou, com calma, procurando deixar a criança despreocupada.

Arthur dirigiu-se ao leito. Catarina viu, por entre as frestas, que o

vento fustigava as árvores. De repente, um raio cortou uma ao meio. A

árvore caiu sobre uma cerca e o gado, assustado, fugia pelo buraco. Não viu

nenhum empregado correndo atrás dos animais. Será que estão todos

dormindo? Mesmo com esta chuva? E este vento? Tenho de fazer alguma

coisa!

Vestiu um casaco e correu até aos casebres dos empregados. Enquanto

isto, Artur August assustava-se com os raios e trovões. Não conseguindo

dormir, ergueu-se novamente do leito e procurou pela mãe. Como não a

encontrasse, abriu uma das janelas, onde o vento e a chuva não batiam

muito e pôs-se a olhar e escutar o que ocorria lá fora.

- Ei! Tem alguém aí? Socorro! Tem alguém aí? – Ouviu a mãe gritar.

Depois de alguns minutos, uma cabeça apareceu na abertura que

servia de janela. Ao ver que era a patroa, o peão abriu a porta, assustado:

- Dona Catarina, o que a senhora faz nesta chuva?

- O capataz está aí?

- Não, patroa. Ele saiu com os patrões.

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- Ah! Meu Deus! Ele também saiu?!... Um raio partiu uma árvore.

Ela caiu sobre uma cerca. O gado foge. Alguém precisa fazer alguma coisa.

Por que vocês, homens, não correm atrás do gado? Estão com medo de uma

chuvinha?

- Não, dona Catarina! Perdoa a gente. Nóis não faiz nada, porque

ninguém mandou. A senhora sabe que a gente só faiz o que os patrão ou o

capataiz manda.

- Então, EU estou mandando. Na falta do senhor Casarres, meu

marrido e o capataz, quem manda sou eu. Levantem do chão onde estão

deitados e vão recolher o gado!

- Mais a gente vai se molhar munto, patroa. Deixa prá amanhã de

manhã, quando o dia tá claro.

- Não, não dá prá deixar prá amanhã. Amanhã, o gado vai tá todo

perdido por estes campos sem fim. E vocês por acaso são de açúcar? Vão

derreter, se molharem um pouco? Eu já estou molhada. Vocês também

podem se molhar. Se não recolhermos o gado logo, sabe Deus onde eles vão

parar, neste descampado.

- Mas a gente não enxerga direito nesta escuridão!

- Enxerga, sim! Enxerga através dos relâmpagos!

O empregado percebeu que não adiantava argumentar. Ela estava

decidida. Não mais retrucou. Chamou os companheiros e dirigiram-se ao

estábulo para pegar os cavalos. Enquanto isso, Catarina tomou a dianteira de

todos. Pegou um dos cavalos mais guapos, montou-o em pelo e saiu em

disparada, na frente de todos. Os empregados acompanharam-na

boquiabertos, procurando ver as pernas da corajosa amazonas. Até os

cavalos mostravam-se indóceis. A chuva, o vento, os relâmpagos os

assustavam. Nenhum deles sabia bem onde pisar. Isto lhes trazia

insegurança, mas quando um novo relâmpago surgia, Catarina sabia por

onde guiá-los. Os empregados com seus cavalos seguiam-na.

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- Lacem a vaca-madrinha!!! Lacem a vaca-madrinha!!! Lacem a

vaca-madrinha!!! –bradava. Os brados ecoavam junto aos trovões.

- Estou tentando! Estou tentando! – gritou um dos empregados.

- Os burros também fugiram! – gritou outro.

- Pois vão buscá-los! – vociferou Catarina. – E lacem a vaca-

madrinha! Quando conseguirem, levem-na prá dentro! Aí os outros animais a

seguem! Maneco e Osório, vocês dois, vão lá fechar pelo menos um pouco o

buraco que a árvore rebentou.

Ninguém ousava retrucar. Obedeceram-lhe sem pestanejar, atônitos

com a sua ousadia.

- Sim, dona Catarina! Sim! Vamos fazer isso!

Demorou algum tempo até que um dos empregados conseguisse laçar

a vaca-madrinha que trazia o cincerro ao pescoço. Depois de laçada,

levaram-na para a invernada. Os outros animais seguiam o barulho do

sininho.

Lidaram em torno de uma hora para juntar algumas cabeças, mas a

maioria ficou dispersa. Os desgarrados seriam rastreados no outro dia.

A partir deste momento, as ideias dos empregados sobre a patroa

mudaram completamente. Perplexos, quase não conseguiam acreditar no

que viam, eles que achavam que a nora do senhor Casares era uma frágil

colona da raça alemã.

Arthur August, à distância, ouviu as ordens da mãe e via-a, de vez em

quando, através da claridade dos relâmpagos. Galopava na frente dos

empregados, como uma visão fantasmagórica. E pensou: Onde está o pai,

agora? E o avô? Sentiu grande aflição. Em seguida, Rosário apareceu.

Também tinha acordado e vira a patroa lutando contra o vento, a chuva e os

relâmpagos.

- Vem, filho! Vem para dentro! Vai ficar molhado e doente.

- Não! Quero esperar a mãe!

- Sua mãe já volta!

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- Não! Não! Vou ficar aqui!

E não se afastou. Rosário buscou um poncho, colocou-o sobre os

ombros do menino e esperou pacientemente a volta da mãe.

Quando Catarina adentrou a casa, viu o menino paralisado de terror e

transido de frio.

- Filho, o que fazes aqui? Por que não estás dormindo?

- Fiquei preocupado contigo. Tu estás bem?

Catarina abraçou-o com carinho.

- Não te preocupes. Estou bem.

- Onde estão o pai e o avô?

- Não sei, filho. Não sei. Não te preocupes. Eles sabem se cuidar.

- Não estou preocupado com eles. Estou preocupado contigo.

Quem devia fazer o serviço que tu fez, eram eles, não tu. Espero que não

fiques doente.

Rosário interveio:

- Vou secar a senhora e fazer um chá.

- Não precisa, Rosário! Eu mesma me seco. Busca mais um

agasalho para o menino. Ele está com frio. Depois, podes fazer o chá. Dá

primeiro prá ele. Logo estará bem. Vai deitar, Arthur. Teu pai e avô chegam

em breve.

- Não, mãe! Vou ficar com a senhora! Vou tomar chá com a

senhora. Não vou deixar a senhora sozinha. Não vou fazer como o pai.

Catarina ficou feliz com a solidariedade do filho, mas, ao mesmo

tempo, entristeceu-se. Infelizmente, o pai não dava bom exemplo aos filhos.

Miguel e o senhor Casares divertiam-se numa casa de chinas.

Quando o temporal começou, Miguel ficou aflito.

- Precisamos voltar para casa, pai. Está vindo aí uma baita chuva,

com vento, relâmpagos e trovões. Trouxemos o capataz junto. Não há

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nenhum homem em casa para comandar a fazenda. Catarina está sozinha

com os filhos. Podem ficar com medo.

- Duvido. Estas alemoas são muito corajosas. Não têm medo de

nada. Olha, filho, agora mesmo é que não podemos voltar. Temos de pousar

aqui, esta noite. Os cavalos não são nada dóceis, quando há relâmpagos e

trovões. Além disso, os lampiões apagam e aí, como vamos achar o

caminho? Senta aí e te acalma! Há muitos empregados que moram perto. Se

houver um problema mais sério, eles ajudam a resolver.

Miguel, a contragosto sentou-se. Nunca tinha dormido numa casa de

chinas, embora a frequentasse seguidamente. Esta seria a primeira vez.

Aflito, preocupava-se. Catarina iria odiá-lo pelo que estava fazendo, mas

logo uma china nova enlaçou-o em seus braços e ele esqueceu a esposa. Era

tão gostoso aquele abraço, aquele perfume de mulher jovem que os

sentidos tomaram conta de todo o seu ser. Casares continuou a falar,

tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo:

- Sabe, filho, ando com estas mulheres todas aí, mas a única

mulher que eu amei de fato foi tua mãe. Eta alemoazinha corajosa e guapa!

– E começou a contar pela vigésima vez o seu namoro com a mãe de Miguel,

Walkíria. Miguel enojava-se. Seu pai bebera demais. Não queria mais ouvir

suas histórias, mas a volúpia da garota deixava-o meio tonto. Em breve,

estavam na cama e o cheiro de esperma e bebida sobrepunha-se a tudo.

Os homens pernoitaram ali mesmo e só voltaram no outro dia, quando

a chuva cessou.

O dia subsequente foi de brigas. Logo que chegaram, dois empregados

puseram-nos a par do que acontecera na noite anterior. Os outros

procuravam o restante do gado fugido pelos campos ao redor. Assim que

Catarina viu Miguel adentrar a casa, falou rispidamente, na língua que ela

dominava:

- Onde estavas?

- A negócios. Tu sabes. – respondeu ele, inseguro.

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- Ah! Eu acredito! – falou em tom de deboche. – Como tu e teu pai

atrevem-se a deixar a fazenda sozinha, numa noite como esta?

- A gente não sabia que ia chover.

- E por que não vieram antes?

- Pára de me xingar, Catarina! Não posso mandar no meu pai. Ele

que quis ficar.

- Ah! Então, é assim? Tu viraste o paspalho do teu pai. Tu és um

homem feito, com mulher e filhos. Não podes decidir o que fazer?

Detestava, quando Catarina enfrentava-o assim: briguenta, histérica e

chata.

- Catarina, já sei que tiveste de sair de noite a catar o gado.

- Eu sei que não precisava. Eu agi assim, porque quis. Nem tu, nem

teu pai, nem o capataz em casa. Só os empregados. Se eu não tivesse feito

o que fiz, quanto gado se perderia neste descampado. Vocês três são uns

irresponsáveis. Os lampiões acesos, à espera de vocês. Os lampiões

poderiam cair e botar fogo em vários lugares.

- Pára de gritar, Catarina! Tu tens razão, mas eu não podia faze nada.

- Sempre tens uma resposta mentirosa. - desesperou-se. -

Desgraçados! Estou arrependida de ter vindo para cá. Só gente estranha,

costumes estranhos, vida estranha. Estou farta disto!

- Vê se te acalma! Não é para tanto! Pára de gritar e choramingar!

- Casei com um homem fraco. – deduziu Catarina, com tristeza.

- Pai, não briga com a mãe! – ouviram atrás de si. Parado na porta do

quarto onde discutiam, estava Artur Augusto.

Miguel olhou para ele e ficou envergonhado, mas não quis admitir e

jogou a culpa na esposa.

- É ela que está brigando comigo!

Catarina afastou-se em prantos. Miguel olhou o filho que olhava

prá ele:

- Não te mete, guri! O que sabe uma criança da tua idade?

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Não esperava resposta. O menino não respondeu. Só

pensou com seus botões: mais do que tu pensas.

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Cap. V

COBRA GRANDE E MENINA LOUCA

A pequena Maria das Dores, filha de Peter Teicher Filho e Luísa

Campos, até os sete anos, adorava passear pelos arredores da Colônia, às

vezes, indo longe demais. As tias, Rosalina e Josefina, esmeiravam-se em

cuidados com a garotinha. Quase nunca a deixavam sozinha. Sempre que

possível, deixavam-na brincar com os primos, filhos de Martin e Verônika, os

quais eram uma turma. Mesmo assim, de vez em quando, conseguia driblar

a vigilância e saía a passear sozinha.

Era uma época de chuvas. Chovia muito. Duas semanas inteiras

choveu. A água desabava como se o céu se abrisse e a água fosse atirada

por baldes. Um verdadeiro dilúvio. Os adultos, mesmo com ela, precisavam

sair um pouco das moradias para cuidar dos animais domésticos e ver os

estragos na lavoura. Depois, voltavam para as residências, trocavam a roupa

molhada e procuravam algo com que se ocupar. As mulheres iam para a

cozinha e os teares. Faziam todo o tipo de quitutes, teciam os panos para

vestirem, para as camas e outros apetrechos. Enquanto isso, a conversa e o

chimarrão andavam à solta..

Os homens, no galpão, tiravam a palha dos milhos, debulhavam os

grãos, picavam-nos, moíam na mó, caçavam os camundongos, limpavam o

que podiam e, quando não mais sabiam o que fazer, do tanto de tempo que

a chuva os deixava presos no galpão, ficavam a picar e mascar fumo, tomar

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chimarrão e conversavam, olhando a chuva que não parava de descer pelos

telhados. Água e mais água.

As crianças, dentro das casas, inquietas, corriam de um canto para

outro, subiam nas camas e nas mesas, escondiam-se embaixo delas,

zanzavam ao redor das saias das mulheres, atravancavam-se em briguinhas

e eram xingadas pelos adultos por causa do rebuliço que faziam.

Quando o sol se mostrava por uns minutos, todos, adultos e crianças,

corriam para fora, ansiosos para ver se as nuvens iriam embora. Entretanto,

elas se afastavam um pouco e, em seguida, retornavam.

Depois de duas semanas, o sol despontou e ficou por algumas horas.

Maria das Dores aproveitou um momento de distração dos adultos e

fugiu para os lados do arroio que costeava a colônia. Curiosa queria ver o

arroio, o tanto que ele teria crescido com as chuvas.

De fato, ele crescera. As águas subiram as margens. Era um

espetáculo grandioso ver a imensidão de água esforçando-se para caber

naquele pequeno espaço que era o arroio. Ela subia os barrancos,

espumando-se toda.

De repente, Maria das Dores viu algo que a deixou perplexa. O que era

aquilo? Parecia um tronco enorme, mas era mais grosso na margem oposta a

que ela se encontrava e ia afinando. A coisa vinha descendo o rio e se mexia

de vez em quando. Apesar de pequena, Maria das Dores já conhecia muita

coisa da floresta.

- É uma cobra!!!!! Uma cobra gigante!!!!! Meu Deus, que bicho

enorme!!! Tenho de chamar mamãe, a tia Verônika e a Rosalina. Elas

precisam ver este bicho! Acho que nunca viram uma cobra tão grande como

esta!

Correndo o mais que podia, voltou para casa. Quase sem fôlego,

contou o que vira.

- É sim, eu vi. Mãe, tia, é uma cobra enorme. Tão grande que

atravessa o arroio de uma margem a outra. A água a carrega!

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Todas a olharam estupefatas e a xingaram por sair sozinha.

Mariazinha tanto insistiu que a mãe e Rosalina a acompanharam.

Infelizmente, quando chegaram, a cobra já se fora. Maria das Dores

mais uma vez foi xingada e passou por mentirosa.

- Não saias mais sozinha! Se de fato uma cobra destas aparece, ela vai

te engolir.

- Mãe, é verdade. Não estou mentindo. Eu vi. Juro que vi.

- Está bem. Mas, agora, vamos voltar para casa. E se tu fugires outra

vez, tu sabes, né, a mãe não vai mais ser boazinha. Vais apanhar de vara.

Quedou-se silenciosa e triste. Sabia que a mãe não acreditara nela,

nem a tia. Acompanhou as duas para casa, quase chorando. E pensava: por

que essa cobra boba teve de desaparecer tão ligeiro?

Outra tarde, caminhava descuidada pelos arredores. Perseguia

borboletas que voejavam pelos matos. Uma delas chamou-lhe especial

atenção, tão linda era. O inseto exibia cores azuladas, brilhantes que

reluziam ao sol. Grande, magnífica, inconsciente de própria beleza, batia as

asas num ritmo compassado. Arrastava sua exuberância por onde passava.

Maria das Dores zanzava atrás do bicho, desejosa de pegá-lo e mostrar para

a mãe e tias. Mas, então, chegou ao topo de um barranco, uma picada

aberta abaixo, de mais ou menos um metro. A borboleta voou adiante e ela

teve de parar.

Aí viu uma cena que a deixou petrificada. Quando conseguiu safar-se

do horror por que passou, correu o mais que pôde até chegar em casa.

Maria das Dores adentrou a casa com tanta rapidez que parecia um

furacão e escondeu-se embaixo da cama dos pais, no último cantinho que

encontrou. Tremia de medo. A mãe teve dificuldades para tirá-la de lá. Não

sabia o que acontecera, só sabia que a filha apavorara-se por algum motivo.

Quando o pai voltou das suas lides na lavoura, Luísa lhe falou da atitude de

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Maria. Ele conversou com ela, mas nada conseguiu decifrar. A atitude da

menina ficou um mistério. Quase todo o dia permaneceu escondida. Só saiu

à noite, porque o pai e a mãe insistiram muito, dizendo que não deitariam na

cama para dormir encima dela. Quando saiu do esconderijo, encolheu-se

entre a fazenda do vestido da mãe. Depois, soluçou durante muito tempo,

mas nada falou.

- O que tens? O que foi? Por que choras, meu bem? Dói alguma

coisa? Um bicho te mordeu? Uma pessoa te fez algum mal? - aflita, a mãe

perguntava.

A menina apenas meneava a cabeça negativamente. O pai insistia:

- Fala, filha! O que foi? Assim, o pai e a mãe não podem te ajudar!

As tias tentaram arrancar-lhe algo, os primos, mas foi em vão. Maria

só meneava a cabeça em sinal negativo, quando lhe perguntavam algo sobre

cobras, aranhas, besouros ou outro animal qualquer que lhe tivesse feito

mal.

Depois desse dia, Luísa percebeu modificações significativas nos

hábitos da filha. Não mais saía de perto dela. Tinha medo de ficar sozinha.

Nem de noite dormia sozinha. Às vezes, tinha pesadelos e corria apavorada

para o quarto da mãe. Sempre pedia a companhia de alguém. As tias

perceberam que, quando saía de casa, junto com elas, ficava com a

mãozinha presa na mão da tia. Nunca mais saiu sozinha para lugar algum.

Nem ao banho no arroio próximo permitia-se ir com as outras meninas da

colônia, como sempre fizera antes. Quando havia dias muito quentes,

preferia ficar suja a banhar-se sem algum adulto que a acompanhasse. Só ia,

quando as tias ou a mãe iam junto.

Além disso, Luísa notou que tinha medo dos empregados,

principalmente de um apelidado de Besouro pela forma curvada do dorso.

Quando este aparecia, grudava-se na saia da mãe para esconder-se dele.

Luísa intuía que alguma coisa de grave acontecera com a filha, mas não

sabia o quê. Será que Besouro fizera alguma maldade a ela?

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Meses passaram-se e Maria das Dores não mudava as atitudes de

medrosa. As outras crianças começaram a tratá-la mal por isso. Brigavam

com ela. Xingavam-na. Outros debochavam. Mas ela permanecia medrosa.

Escondia-se até dentro de casa. Quando, por ventura, aparecia algum

visitante, corria a esconder-se embaixo da cama, encolhidinha num canto,

onde ninguém conseguisse alcançá-la. Algumas pessoas da casa pensavam

que o patrão gerara uma filha louca.

Peter sentia-se triste. Além de ter só esta filha, ela ainda tinha

comportamento estranho. Talvez ele, de fato, tivesse parido uma filha louca,

como pensavam algumas pessoas da colônia. Mas como, se antes fora

saudável? Seria uma doença que se perceberia só mais tarde?

Foram-se muitos anos. Maria das Dores crescia branquinha, magrinha,

frágil e assustada.

Peter, o pai, carinhosamente chamava Maria das Dores de

Marichen (diminutivo de Maria na língua alemã), pois não gostava de sempre

lembrar das dores da mulher no parto. Um dia, convidou-a para ir com ele

para a roça para desnucar umas espigas de milho que estavam no ponto de

serem desnucadas. Também convidou Besouro para ajudá-lo. Marichen

recusou-se a acompanhá-lo.

- Por que não quer ir comigo, Marichen? Vem junto com o papai,

vem! Tem de aprender as lides da roça. Já estás bem crescidinha!

- Não! Hoje não quero! Fico com a mamãe! – respondeu, amuada.

- Aliás, não é só hoje! Tu nunca queres! Está na hora de ir para a

roça. Já estás quase uma mocinha.- repreendeu o pai.

- Ora, meu anjo, vai junto com o pai! – insistiu a mãe.

Maria das Dores olhou para Besouro, o horror estampado no rosto. E o

homem, mais que depressa, para disfarçar, acrescentou, com cinismo:

- Ela não vai por minha causa. Ela não gosta de mim. Besouro

é muito feio, não é, menina?

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Marichen encolheu-se toda e escondeu-se outra vez na saia da mãe.

Luísa sentiu que o homem falara com sarcasmo. Algum problema havia entre

ele e a filha. Mas qual?

- Não insista, Peter. Deixa-a comigo! Outro dia, ela vai. – falou a

mãe, para encerrar. Peter aceitou a sugestão da esposa e foi para o trabalho

com o peão, mas sabia que alguma coisa não estava certa em relação à

menina e este homem.

Um dia, Besouro machucou-se ao usar o machado para cortar toras.

Deu-se ele mesmo um corte profundo no pé. Passados alguns dias, a ferida

infeccionou.

“Mutta” Walkíria usou de todos os chás e infusões possíveis para curá-

lo, mas foi em vão. Ele teve tétano, que, naqueles tempos, chamavam de

envenenamento do sangue. Depois de gritar, desesperadamente, por alguns

dias, morreu.

Desde o início da doença dele, Marichen rezava. Todos pensavam que

ela rezava pela vida dele. Luísa, mais uma vez, percebeu que havia alguma

ligação entre este empregado e a filha. Quando ele morreu, a menina saiu a

correr lépida e faceira pelo terreiro:

- Estou livre! Livre! Graças a Deus, ele morreu! Deus, obrigada,

ele morreu!

Uma empregada ouviu aquilo, correu para ela, puxou as suas orelhas e

xingou:

- Que é isto, menina? Bem se vê que é louca mesmo! Pobre do

homem! Morre e você fica a agradecer a Deus a morte dele?!

Só depois de enterro é que a menina contou à mãe o episódio a que

assistira meses atrás, as ameaças que sofrera e o medo que passara por

estes anos todos.

- Um dia, eu saí,sozinha, a passear. Corria atrás das borboletas.

Havia tantas e eram tão lindas. Uma me chamou a atenção. Era grande,

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azulada, brilhante, de brilho tão intenso que fiquei deslumbrada e corri um

tempão atrás dela. De repente, cheguei àquela parte da roça onde tem um

barrancão, sabes, mãe, lá perto daquele lugar onde nós represamos os

peixes.

- Sim, eu sei.

- Pois, ali eu tive de parar, pois a borboleta voa, mas eu não. Não

podia descer o barranco. Olhei para baixo e vi uma cena que fez eu ficar

sem reação. Tive um susto tão grande, mãe. Fiquei dura, não pude mais me

mexer. – E começou a chorar.

- Sim, Marichen, e daí? Vamos! Conta! Continua! Não chores! O

que querias me contar?

- Aí... aí... aí... olhei para baixo e vi uma cena que me deixou louca

por todos estes anos. Um peão ajeitava uma égua para perto do barranco. O

homem tirara a calça e tentava enfiar o pênis na entrada da vagina da égua.

Eu nunca tinha visto um homem nu. Aquele homem, com o pênis ereto e o

saco dependurado deixou-me paralisada. Além disso, por que o homem

tentava enfiar aquilo na égua? Neste instante, o peão me viu e eu vi quem

era.

- O Besouro.

- Sim, mãe.

- Desgraçado!

- Ele puxou as calças mais que depressa para cima e investiu

contra mim: - Garota safada!... Que faz aqui?... Tu não viu nada! Tu não viu

nada! – Ele gritava. - Se tu contar para alguém o que viu, sobra prá ti,

hein?! Se tu falar pra alguém, eu enfio esta coisa em ti, não na égua, na tua

boca e tu vais ter de engolir! – E mostrou aquela coisa horrível para mim.

Era como se a cobra grande fosse entrar pela minha boca, descer pela

garganta e eu sufocar.

Eu me apavorei tanto que só conseguia mover a cabeça para ele em

sinal negativo. Besouro aproximou-se. Pegou-me pelas pernas, puxou-me

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barranco abaixo, empurrou-me contra o chão, e foi gritando, enquanto me

empurrava com os pés:

- Ele te faz mal, filha?

- Não, mãe, mas me xingou, gritou comigo: - Agora, vai embora! –

Ele berrou. - Vai! Te manda daqui! E lembra do que eu disse! Bico calado,

hein?! O que estavas fazendo? Não tinhas nada que andar por aqui! Vai

embora, antes que eu ponha este negócio em ti! – E balançava o pênis sobre

a minha cabeça.

Quando parou de me cutucar com os pés, eu me ergui, quase sem

fôlego, e saí correndo. Como nada sabia sobre sexo, pois vocês não ensinam

as meninas sobre isto, o episódio me deixou fora de mim, com medo

extremo, sem saber como reagir. Via, em minha ingenuidade, aquela coisa

sendo enfiada pela boca e me sufocando. Imaginava aquela coisa horrível

sufocando-me como uma grande cobra. Era isto que eu sonhava nos meus

pesadelos: aquela coisa horrível transformava-se na cobra grande e me

enrolava, depois queria entrar na minha boca. Era horrível, mãe. Não quero

nunca mais sonhar aquilo

- Mas, e, agora, como sabes alguma coisa sobre sexo? Quem te falou?

- As meninas e as tias. Muitas falam alguma coisa.

- Então, era isso. O Besouro fez maldade contigo. Agora entendo por

que ficavas com medo dele e que sempre estivesses com medo de que ele te

fizesse algum mal. Agora entendo por que ficaste feliz com a morte dele. Se

foi realmente assim, foi bom ele ter morrido. Realmente, agora estás livre.

Deus seja louvado!

Luísa, como mãe compreensiva, entendeu a filha e aconselhou-a a

nada contar aos outros, talvez apenas às tias. O fato era fora do comum e

muitos pensariam que ela inventava histórias, por ser aloprada.

Marichen passou a ter comportamento diferente a partir de então. Saía

sozinha, cantava, ria, conversava com todos, pessoas da casa ou

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empregados, não tinha medo de nada. E, aos poucos, todos esqueceram que

a julgavam louca.

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Cap. VI

DIFICULDADES DE RELACIONAMENTO

As idas e vindas de Miguel e do sogro a Rio Pardo tornaram-se mais e

mais frequentes. E as brigas entre o casal também. Um dia, uma índia jovem

falava com outra empregada mais velha e Catarina ouviu a seguinte

conversa:

- Essis homi vão prá Rio Pardo prá ficá com as china.

Catarina adentrou o recinto e perguntou à queima-roupa:

- Que chinas são essas?

- Nada, não, patroa. A gente não sabe de nada.

- Eu ouvi muito bem. Não sou surda. Que chinas são estas? São

diferentes das chinas dos nossos peões? Anda! Fala! Quero saber!

A mais jovem encolheu-se toda, temerosa. As suas palavras poderiam

atiçar a ira da patroa e do patrão. O castigo viria logo a seguir. A mais velha,

menos temerosa e mais experiente, adiantou-se:

- Dona Catarina, deixa que eu falo. A guria aí num disse por mar.

- Mas, então? O que há? Que chinas são essas?

- Patroa, perdoa nóis. A senhora num vai castigá nóis?

- Prometo, nenhum castigo, mas quero saber a verdade.

- A senhora num vai contá pro patrãozinho, nem pro patrão qui

fumo nóis qui falemo.

- Prometo. Não falo prá eles. Mas desembucha! Vamos! Fala logo!

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- É qui aquelas china são china mais cara, mais fina. Véve numa

casa de luxo. Tão ali só prá servi os homi qui podi pagá elas. Tem uma ou

até um homi que é o dono. As otra trabaia prá ela ou ele. Às veiz, são moça

da sociedade que os pai botaru na rua, prumque elas foram

desemcaminhadas por algum moço qui num respeito elas, quandu sortera. O

patrão Casares, antes de vocêis chegá na fazenda, visitava munto aquelas

moça, prumque ele não tinha muié. Ele casô uma veiz, mais a muié dele

caiu do cavalo e morreu. E ainda levô o fio dele com ela. Nóis num ligava

não, prumque ele é patrão, podi fazê o que quisé. Agora, levá o teu marido

junto. Isto nóis num acha certu, não, mas eles são patrão, podi fazê o que

quisé.

- Mas, o que é que essas mulheres fazem com os homens?

- Agradus, patroinha, agradus.

- Já entendi. Obrigada por me abrir os olhos.

Catarina, estarrecida, não sabia o que pensar e como agir. Por alguns

dias, apenas observou o comportamento de Miguel e do sogro. Sempre que

voltavam de Rio Pardo, vinham alegres, sorridentes e cansados. Miguel

dormia dois dias, quase sem parar. O sogro levantava antes, tratava-a bem

e saía, em seguida, para fiscalizar empregados, os burros e o gado.

Catarina matutava. Um dia, teve uma ideia e falou, mansamente, ao

marido:

- Faz tantos anos que viemos para cá. Nunca voltamos para a

Colônia para saber como está todo mundo. Eu queria fazer uma visita para

eles. Estou com saudade do nosso pessoal.

Miguel foi pego de surpresa e não gostou da ideia. Estava tudo tão bem

para ele, na fazenda, que aquele desejo não lhe agradava Preferia esquecer

a Colônia.

- Não concordo nem um pouco. É muito longe e levaríamos dias

para chegar. Tu sabes quanto tempo levamos para vir para cá.

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- Eu sei. Não precisa lembrar. Eu sabia que tu não ias querer fazer

algo que eu te pedisse. Só fazes o que as chinas querem, aquelas que ficam

te agradando, porque tu as pagas bem, não é?

- O que estás aí a falar? De onde tiraste isto?

- Pensas que sou burra? Pois, saiba que eu sei aonde tu e teu pai

vão, quando se dirigem a Rio Pardo.

Miguel riu um riso disfarçado.

- De onde tiraste estas ideias? A gente só faz negócios, nada mais.

- Negócios, sim. Negócios muito prazerosos. – E se retirou, com

altivez.

Miguel contou ao pai as desconfianças da esposa. Casares riu

baixinho.

- Com o tempo ela se acostuma. Homem sempre vai às farras. A

mulher não pode impedir. É um direito do homem.

- E as mulheres? Também têm este direito?

- É claro que não. Mulher deve servir o marido em todos os seus

desejos. A mulher é como uma serva do homem. Não tem desejos, quereres

e não pode reclamar do marido que tem outras mulheres fora do lar.

- E se ela se achar com os mesmos direitos e se deitar com um peão,

por exemplo?

- Tu podes matá-la para defender a tua honra.

Miguel ficou um pouco chocado com o que ouviu. Na colônia não tinha

disto: dois pesos e duas medidas. Apesar de as mulheres serem submissas e

trabalharem mais que os homens, os maridos eram fiéis, embora houvesse

deslizes de vez em quando, que redundavam em muitas fofocas. Mas nunca

ouvira falar em matar para limpar a honra, a não ser que ele fosse mal

informado, por ter morado bastante isolado.

Um dia, Casares levou o filho a uma choupana mais distante, fora dos

limites da fazenda. Uma senhora idosa, feia, macilenta, enrugada, cabelos

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em desalinho é que abriu a porta. Miguel viu, de relance, outra figura

esgueirando-se pela parede e desaparecendo logo a seguir.

- A tua filha está em casa? – perguntou o pai.

- Não, sinhô. Ela saiu.

- Saiu para onde?

- Foi prus matu corta lenha.

- Arre! Mas que azar! Quero mostrar a moça para meu filho!

- Intonces, tem que vim otro dia. Ela não tá!

- Está escondendo a tua filha de mim, Noca? Tu sabes, china

véia, eu pago bem.

- Sei, sim, sinhô, mais ela saiu. Descurpa, sinhô, vem otro dia.

- Diz prá ela ficá em casa, na quinta-feira, que meu filho vem aí

de novo.

Miguel sentiu-se desnorteado. Meu pai trata as mulheres como

mercadoria. Porque paga, sente-se no direito de usar as mulheres a seu bel-

prazer. Fez uma pergunta:

- Por que o senhor quer que eu conheça esta moça?

- Ela é bonita! É uma mistura de índia com negro. A moça saiu

um primor.

- Mas e o que eu devo fazer com ela?

- Que pergunta, filho! Ela vai fazer tudo o que tu quiseres. Ela

vai te agradar muito e tu vais usufruir da beleza e juventude dela.

- Pai, desculpe, não gostaria de fazer isso. A gente já tem as

chinas de Rio Pardo.

- Que é isto, filho? Ficou frouxo de repente? Com esta é

diferente. Ela é jovem, virgem. Não é como aquelas moças murchas da casa

das chinas. A mãe dela também foi minha, antes do Onofre ficar com ela.

Onofre foi o peão dela, por muitos anos. Já faleceu. Ela foi uma indiazinha

muito bela e carinhosa. Tá tão feia, agora, coitadinha! Quem a viu, quando

jovem, não pode imaginar que viraria este traste que viste. Achava que eu

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ia casar com ela, coitadinha! Mas a gente não casa com qualquer uma, ainda

mais com índia. Quando ficou sem graça para mim, dei ela pro Onofre.

- E ele aceitou? Achou bom?

- Ele nunca soube de nada. Era negro e bronco.

- Será que a índia nunca contou para ele?

- Eu a proibi. Ela não era louca de contar. O Onofre poderia

querer me matar.

- Mas e a guria não pode ser tua filha?

- Não. Não. Sempre tomei cuidado para não engravidar as

moças. A filha dela nasceu um bom tempo depois de ela estar com o Onofre.

– E emudeceu.

Quanto mais o pai falava, mais desnorteado Miguel ficava. Bem que ele

vira ódio profundo, estampado nos olhos daquela mulher que o sofrimento

tornara feia e velha antes do tempo. Jamais imaginara que o pai contaria

histórias e fatos de uma vida passada perversa. Cada vez mais percebia

que, realmente, sempre amara sua mãe. Não fora capaz de transferir para

outra mulher o sentimento que tivera pela sua mãe. Aquela fantasia da

índia-loira extasiara-o tanto que jamais a tirara da mente. As outras

mulheres só serviram para o prazer sexual.

Sentiu pena da moça com a qual ele deveria ter contato físico

prazeroso, mas só para ele, segundo seu pai. E pensou que a figura que se

esgueirara pela parede deveria ter sido a da rapariga que fugira, enquanto

pôde. Pobre criatura! Que destino cruel o pai dele reservara para ela.

De repente, o pai saiu de seu mutismo e retomou a conversa:

- Só tive azar uma vez com outra guria, uma empregadinha da casa.

Foi tão gostosa, grudou-se em mim e lá foi a minha porra para dentro dela,

sem que eu tivesse tempo de impedir. Nove meses depois, nasceu um guri.

E esta, agora. Miguel estatelou os olhos para ele. O choque foi tão

profundo que gaguejou ao perguntar:

- Então, eu tenho um irmão?

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- Meio-irmão. Mas ele não vai te incomodar. Já disse várias vezes

para a mãe dele que levasse o guri para outra cidade. Ela não se convenceu.

Ela não acreditava que eu tivesse outro primogênito. Quando tu chegaste,

percebeu que o filho dela nunca seria meu herdeiro.

- Pai, estou apavorado! Por que nunca me falou disto antes?

- Porque não precisava. Nós não somos como vocês, alemães, aqui

a lei e a ordem quem faz sou eu. Tudo o que aprendi na Europa, todo aquele

refino de comportamento, aqui não tem valor. Esta terra é bruta e assim são

as pessoas. Não há ainda civilização por aqui. E eu tive de me adaptar a esta

realidade. Demorei a conseguir, mas tornei-me bruto e cruel como este solo

precisa que nós sejamos. Aquele é filho de macega, e eu o expulsei daqui.

- Cruz credo, pai! Ele é teu filho!

- É meu filho, mas não foi educado como tu. Ele é perverso, ele só

pensa e faz maldades. Ofereci-lhe uma fazendola que comprei no Uruguai.

Ele e a mãe aceitaram, porque tinham medo de não ganhar nada. Dei o sítio

prá ele e disse-lhes que nunca mais botassem os pés aqui. Fiz até um

documento oficial com o juiz de paz de lá, colocando no documento que eu

doava a fazendinha para ele por ter prestado grandes serviços para mim.

Nada consta no documento que diga que ele é meu filho. É filho bastardo,

não tem valor.

Miguel sofria com as declarações de seu pai de sangue. Lembrava-se

do pai adotivo e de como este amava todos os filhos, não discriminando

ninguém. Era triste saber que o seu verdadeiro pai não queria bem aos

outros filhos, só a ele. Até começou a concordar um pouco com Catarina,

quando esta dizia que não conseguia acostumar-se aos hábitos daqui, mas,

ao mesmo tempo, sentia uma afeição muito grande ao senhor Casares por

todo o carinho que lhe demonstrava. Entendeu que o pai levara uma vida

devassa, sem sentimentos de amor, compreensão, caridade, pois, durante a

Revolução Farroupilha perdera toda a família e, depois a mulher que amava,

sua mãe.

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Na próxima quinta-feira, quando deveria encontrar-se com a jovem

filha do peão, Miguel amanheceu doente. Disse que estava com dor de

cabeça e dores pelo corpo todo. Talvez, dessa forma, se livrasse de

aproximar-se da moça que o pai o forçara a conhecer. Conseguiu seu intento

e, por algum tempo, o pai esqueceu a china.

Miguel tentou aproximar-se de Catarina que o desprezava. Meu pai não

tinha mulher amada, esposa, filhos. Por isso, viveu uma vida desregrada.

Não devo imitá-lo, pelo simples fato de que a minha vida é outra. Tenho

família, uma mulher que amo, filhos queridos. Tive dois pais, irmãos, nunca

passei por uma revolução. Ainda recebi uma fazenda, assim do nada, sem

nunca sonhar com isto. Tenho empregados, gado... puxa! Tenho muita coisa.

Sou um sortudo. Tenho de reconquistar minha mulher.

Uma noite, ao aproximar-se dela, Catarina o rejeitou:

- Não te aproximes de mim! Vai procurar tuas chinas!

- Catarina, não faz assim. Juro que nunca mais busco chinas!

- Idiota! Pensas que eu acredito? Nunca mais vais é te deitar

comigo! Chegam os filhos que temos! Não quero mais saber de ti! Morreste

para mim!

As palavras dela soavam como marteladas em seus ouvidos.

- Não fales assim! Sou teu marido e tenho direito de deitar

contigo.

- Já disse! Vai deitar com as tuas chinas! Eu te odeio!

- Ora, ora! Pára com isso! És minha mulher e tens obrigação de me

servir!

- Sou tua mulher, mas não sou tua escrava!

As vozes alteravam-se sempre mais e, aos poucos, os outros

moradores da casa acordavam e ouviam a briga. Entre eles, Arthur Augusto

que escutava os xingamentos, perplexo. Não entendia o que falavam.

Escutou com atenção e ouviu a mãe chorar, depois de muita discussão.

Enquanto isso, Miguel e Catarina continuavam.

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- Fui criada no meio de guris e não tenho medo de ti!

Arthur teve a impressão de que alguma coisa fora atirada contra a

parede.

- Eles vão se matar! – pensou. E correu para o quarto dos dois.

Abriu a porta de sopetão e gritou:

- Pai, não machuques a mãe!!!

A noite era clara. A lua iluminava quase tudo. Quando Miguel viu o filho

na porta, envergonhou-se:

- Filho, não te preocupes! Não vou machucar tua mãe! Ela é que

atirou um toco contra mim.

Catarina chorava, encolhidinha num canto, fora da cama. Arthur não

sabia se acreditava no pai ou se ficava com pena da mãe. Entrou, dirigiu-se

a esta, pôs a mão no ombro dela e falou, suavemente:

- Mãe, não chores, mãe. Eu estou aqui.

Catarina também ficou envergonhada de sentir a presença do filho, de

saber que ele ouvira a discussão. Talvez outros tivessem ouvido.

- Vou dormir com vocês.

Ergueu-se e acompanhou o filho ao quarto, deitando-se junto das

crianças que a esperavam assustadas e a acariciaram e abraçaram, quando

chegou.

Miguel sentiu-se o mais ínfimo dos homens, mas o orgulho falou mais

alto:

- Ela me paga! Ela é minha mulher, tem obrigação de me servir.

Não vai poder esconder-se, sempre, entre os filhos. Deixa, minha querida,

esta guerrinha apenas começou.

No outro dia, quando todos estavam sentados à mesa, tomando o

costumeiro café da manhã, Catarina falou:

- Quero visitar a minha família, lá na Colônia Teicher. Vou mandar

arrumar uma carroça, pegar algumas coisas necessárias e estou saindo

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amanhã, com meus filhos. Qual o homem que vai me acompanhar? – falou

sem olhar para o marido.

Miguel respondeu, também sem olhar para ela:

- Não vou junto contigo, pois não mandas nada aqui e nem me

consultaste.

- Vou sozinha! Não preciso de ti!

- Nenhum peão vai te ajudar. Só fará isso, se o avô ou eu

ordenarmos.

- Vou sozinha, já disse!

Miguel irrompeu num riso irônico.

- Nem sabes empunhar uma arma.Vais é morrer de fome ou servir

de alimento para algum jacaré!

Agora, todos riram sem jeito. Por que o pai falara em jacaré? Nem ele

sabia. No nervosismo, saíra esta palavra. Ficou engraçado, pois era mais fácil

ser comida por onça, jaguatirica ou caititu. Estes havia em profusão,

enquanto jacaré somente na beira dos rios. Apenas Catarina não riu. Estava

por demais magoada.

- Podem rir. Não sou medrosa. Sei me defender.

- Mulher não viaja sozinha!

- Não sou qualquer mulher e não tenho medo!

- Mas é época de revolução. Pode haver bandidos por aí.

- Isto é verdade. Em época de revolução, os bandidos

fantasiam-se de revolucionários e assaltam os viajantes. – assentiu o senhor

Casares.

- Também atacam as fazendas que eu sei. Nenhum lugar é

seguro. – prosseguiu Catarina. – Eu vou viajar. Está resolvido! Não tenho

medo!

Os outros, entre eles o avô e os filhos, olhavam ora para um, ora para

outro. Já tinham ouvido as brigas da noite anterior e, agora, ouviam e viam

outra mais acirrada.

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- Desde o dia em que viemos para cá, nunca fizemos uma visita

aos nossos parentes. Meu esposo não quer ir, mas eu quero. Então, vou

sozinha, com meus filhos. Os bandidos respeitam mulher e crianças. –

decretou a mulher.

Arthur Augusto que até agora se mantivera quieto, levantou e disse:

- Vou contigo, mamãe, não te preocupes. Eu cuido de ti e dos

meus irmãos.

Miguel puxou um longo suspiro.

- Tinha que ter alguém para concordar com esse desatino da tua

mãe, pirralho! Tu és muito criança, não sabes nada da vida e queres bancar

o macho? – desafiou Miguel, a raiva estampada no rosto. – Vai crescer

primeiro! Cala-te que esse assunto é entre eu e tua mãe. Não metas o

bedelho, onde não és chamado!

O senhor Casares percebeu que o filho não demoraria a explodir de

raiva. Talvez fizesse uma besteira. Talvez descarregasse a ira sobre o neto

que de nada tinha culpa. Tentou intervir, mas, quando abriu a boca para

falar, Catarina explodiu em palavras:

- Já disse que não preciso mais de ti! Toda a tristeza e sofrimento

que sinto nestes últimos tempos têm tudo a ver contigo! Não fico mais dois

dias nesta casa! Vou embora amanhã, nem que tenha de ir sozinha. Se meu

marido não serve mais para mim e nem para meus filhos, o que quero? Vou

embora! Tenho certeza de que meu irmão, minha madrasta, minha tia e

sobrinhos hão de me tratar melhor. Eles irão gostar de mais braços para a

lavoura.

Miguel recompôs-se. A briga tomava rumo errado.

- Querida – falou com calma e suavidade, o que não passou

despercebido dos outros. “Ele quer ganhar terreno”, pensou o senhor

Casares. - Querida Catarina, não posso sair daqui de uma hora para outra.

Pensa, meu amor. Esta fazenda ficaria sozinha novamente, só com o meu

pai. Ele ficaria abandonado.

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Neste momento, Casares interveio:

- Posso dar uma sugestão?... – Ao que ambos anuíram. – Miguel,

tu ficas na fazenda, administrando-a. Catarina vai fazer a sua visita e eu a

acompanho, juntamente com meus netos e dois empregados. Ela merece

esta compensação, já que está há vários anos distante da sua família. Até

seria bom vocês dois ficarem separados por algum tempo para esfriarem as

cabeças. Estas pobres crianças devem estar tristes com as constantes brigas

do pai e da mãe. E eu poderia rever a minha velha e querida Walkíria. O que

acham?

As crianças bateram palmas e vibraram com a ideia. Pai e mãe não

mais sabiam o que dizer e, simplesmente, concordaram.

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Cap. VII

TRAGÉDIA

O século XX estava próximo. Havia algumas rusgas políticas, que, por

enquanto, não tinham atingido a Colônia, por ficar distante dos núcleos mais

povoados. Além disso, os governantes queriam que os colonos continuassem

a produzir alimentos para as tropas e a população das cidades. Entretanto,

ouvia-se falar de muito banditismo, roubos, saques, mortes, degolas, de

ambos os lados: maragatos e pica-paus. Roubos, principalmente de cavalos,

pois era o meio de transporte mais veloz da época. Pairava um clima de

terror.

Quando algum visitante chegava, contava novos causos de horrores

praticados pelas tropas, novas degolas, o medo e horror estampados no

rosto. Às vezes, famílias inteiras eram degoladas, nem crianças eram

poupadas. Por isso, a Colônia prevenira-se, junto com outros colonos das

redondezas, para o caso de algum ataque. Cães preparados, cavalos

escondidos, alguém sempre de tocaia perto da picada principal. Um menino

junto com ele para correr com rapidez e anunciar o ataque. Neste caso,

todos se afastariam rapidamente e se esconderiam no mato. Os

mantimentos e principais utensílios da lavoura e domésticos também foram

escondidos entre as taquareiras.

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Mas os dias transcorriam e não foram atacados. Talvez pelo fato de

estarem muito longe dos objetivos das tropas.

Os primeiros vizinhos de Peter e Luísa eram um casal jovem, vindo da

Alemanha, com uma filha de dois anos e um bebê recém-nascido. Tinham

comprado uma colônia que distava oito quilômetros dali. Adiante deles, em

torno de doze quilômetros, havia outro casal, também jovem, vindo no

mesmo navio, sem filhos.

O casal mais próximo de Peter, seguidamente, separava-se. O marido

ia para a roça ou saía a caçar. A mulher permanecia em casa para cuidar das

crianças. Tinham duas espingardas. Uma, ele levava consigo, outra deixava

em casa para que a esposa pudesse defender-se, caso um animal selvagem

ou bugre aparecesse. Seguidamente, o marido dizia à esposa:

- Vou novamente à casa do vizinho. Temos de acertar mais alguns

negócios.

Ela não perguntava que negócios eram, pois em assunto de homens as

mulheres não se metiam.

Um dia, ela e os rebentos tomavam sol no pátio, enquanto ela

descascava algumas espigas de milho verde para fazer pamonha. De

repente, ouviu um ruído estranho, como o ribombar de muitos trovões. Uma

vez que já tinha prática, sabia que uma vara de porcos-do-mato

aproximava-se. Ergueu-se rapidamente do toco, onde estivera sentada,

pegou as duas crianças por baixo dos braços, correu para dentro de casa,

trancou-se, pegou a espingarda, ajeitou-se num buraco da parede e esperou.

Em breve, os animais chegaram. Começaram a chafurdar por toda

parte. Os cães os molestaram no início, mas vendo que a vara era

numerosa, esconderam-se em buracos de árvores ou fugiram. O pátio ficou

em grande desordem e, às vezes, investiram contra as paredes da casa. As

crianças choravam transidas de pavor. A mulher, também aterrorizada,

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atirava a torto e direito. Alguns animais caíram, agonizantes. Ao perceberem

o perigo que corriam, os caititus afastaram-se.

A mulher, cujo nome era Gisela, abraçou-se, então, aos filhos e chorou

com eles. Defendera-se bravamente. Agora, o terror afastara-se. A tensão

que a mantivera forte antes, agora inundava de lágrimas seus olhos.

Entretanto, ficou com medo de abandonar o interior da casa. Resolveu

aguardar a volta do marido. Ele saíra cedo pela manhã e demorava a voltar.

Em geral, quando ia para a casa do vizinho, voltava depois de duas ou três

horas. O sol fez o seu percurso normal, passou a pino e foi descendo. Gisela

ficou aflita. Por que o marido demorava tanto? Mil pensamentos horríveis

começaram a povoar a sua cabeça. Um animal selvagem o pegara? Ou

seriam bugres? Uma cobra o picara? Uma aranha? Ou caititus? Onça? Onde

estava? Por que demorava tanto?

Quando foi meia-tarde não aguentou mais. Resolveu procurar por ele.

Para ir mais rapidamente, trancou as crianças na casa e foi, sozinha, em

busca do marido, levando consigo a espingarda. Corria pela picada aberta

por um gadanho como um veadinho, ansiosa para chegar com rapidez à casa

do vizinho e encontrar seu marido. Afastava os capins com as mãos e corria.

O capim fustigava pés e pernas. O pensamento voltado para as criancinhas,

fazia-a correr tão rapidamente que em breve chegou ao local. Não havia

cães no pátio, como acontecera em outras vezes que para lá fora. Tudo

estava em silêncio. Viu a porta da casa aberta.

- Vizinho! – gritou. – Vizinha!

Mas ninguém lhe respondeu. Chamou mais algumas vezes. Nada.

Temendo algo sinistro, adentrou a casa, devagar, a arma apontada, pronta

para qualquer emergência. Continuou chamando pelos vizinhos. O silêncio

sepulcral intuía algo sinistro. Ouviu umas moscas zunindo, atrás de uns

panos que separavam aquilo que devia ser o quarto do restante do casebre.

Abriu o pano vagarosamente. Uma cena dantesca lhe encheu os olhos: seu

marido e a vizinha jaziam sobre a cama, ensanguentados, mortos, quase

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nus, ele caído sobre ela. A cama era uma enxerga imunda, alguns sarrafos

ajustados uns sobre os outros, algumas tiras de couro, trapos amarrados. O

sangue escorrera por entre os trapos, algumas moscas e formigas

deliciavam-se com o banquete. Alguém atirara neles, há algumas horas e os

deixara naquele estado. A cena deixou-a petrificada por alguns minutos.

Depois, levou as mãos ao rosto e tapou os olhos num gesto de horror.

E entendeu tudo. Os dois eram amantes e o vizinho descobrira e os

assassinara. Um vômito incontido invadiu o estômago e estourou.

Cambaleante, saiu do recinto e vomitou fora da casa o mais que pôde.

Depois que conseguiu raciocinar um pouco, pensou: onde está o

marido da vizinha? Ele poderia aparecer enlouquecido e matá-la também.

Esqueceu a espingarda no quarto e até dos filhos não se lembrou. Afastou-se

dali, correndo mais rápido que antes, em busca de socorro. O medo nos dá

asas. Assim, chorando, vomitando, caindo, dirigiu-se à colônia Teicher, que

era a mais próxima e onde sabia que encontraria auxílio.

Quando lá chegou, viu apenas um menino no pátio, perto de um poço.

Aos gritos desesperados de socorro, Luísa e a mãe, que costuravam dentro

de casa, deplorável. Correram até ela.

- Que foi, Gisela? Meu Deus! O que aconteceu? Onde está seu marido?

E as crianças?

Gisela dobrou os joelhos sobre si mesma, olhava-as, soluçava um

pranto agonizante, mas não conseguia falar. Estava em choque. Peter

encontrava-se dentro do poço, arrumando-o, pois que se tinham desprendido

alguns pedaços de terra e poderia desabar. Ouviu alguns gritos abafados e

preocupou-se. O menino que o ajudava encontrava-se do lado de fora do

poço. Sua tarefa era espiar para dentro do poço para ver se o patrão estava

bem. Parou de olhar para dentro do poço por uns momentos e fitava,

assustado, a mulher que acabara de chegar.

- O que está acontecendo aí fora? Que gritos são esses?

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- É uma mulher que chegou. Acho que é a vizinha, a dona

Gisela.

- O que ela tem? Por que grita?

- Não sei, não, senhor Teicher. Agora, ela se ajoelhou.

Peter, curioso, entrou na pipa em que descera e pediu ao menino que o

subisse depressa. Era um trabalho pesado demais para o menino.

- Senhor Taicher, espera um pouco. Vou chamar alguém para ajudar a

tirar o senhor daí.

- Anda! Vai logo!

Enquanto isso, Luísa e a mãe tentavam, de todas as formas, fazer com

que a mulher falasse e ela continuava muda.

- Vem, Gisela, vem para dentro. Vamos te dar um chá. Acalma-te!

A gente vai te ajudar. Seja lá o que for que aconteceu, a gente vai te ajudar.

Levaram-na para dentro. Quiseram dar-lhe algo para tomar, mas a

mulher não tinha forças nem para levantar os braços e pegar a caneca que

lhe ofereciam. De repente, entrou num choro convulsivo e falava junto. Luísa

e a mãe não entendiam o que ela dizia, pois, além dos soluços, falava na

língua alemã.

Quando Peter chegou, apesar de sujo de terra, Gisela conseguiu

diminuir o choro. A presença do homem que entendia a sua linguagem

animou-a um pouco. Lembrou-se dos filhos e balbuciou:

- Die Kinder!... (As crianças!...) Estão sozinhas.... Os porcos do

mato....

E já começou a chorar. Ao ouvir aquilo, Peter teve um choque. Em

breve, começaria a anoitecer. Os filhos de Gisela estariam sozinhos à noite?

Teriam eles sido comidos por caititus? Não era possível deixar sozinhas

crianças tão pequenas!

- Depressa!!! - Gritou para o menino. - Pegue dois cavalos!

Um pro Nestor e um prá mim. Vou pegar a espingarda. Vamos para a casa

da dona Gisela. Vamos ver o que aconteceu por lá.

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Como um pé-de-vento, o menino saiu. Peter, tão rápido quanto ele,

agarrou as espingardas que estavam na varanda. Deu uma para o

empregado e ficou com outra. Luísa tentou impedi-lo:

- Cuidado, Peter! Não sabes o que vais encontrar! Melhor esperar a

Gisela dizer o que acontece e, depois, ir com mais homens!

- Não podemos esperar! As crianças dela estão sozinhas como ela

mesma disse. Logo será noite. Não te preocupes! Eu sei me cuidar! Além do

mais, o Nestor vai junto!

Correu ao encontro do menino que já trazia os cavalos, montou um em

pelo para não se demorar e os dois homens e suas cavalgaduras saíram a

galope. Gisela não conseguia explicar-se. Contou dos porcos-do-mato,

contou como os espantou e chorava, quando lembrava que deixara os

rebentos sozinhos, mas não conseguia falar do que vira na casa do outro

vizinho. Como falava apenas alemão, Luísa e a mãe quase nada entenderam.

O percurso de Peter à colônia dos primeiros vizinhos foi vencido com

rapidez. Ouviu o choro do bebê antes de chegar, depois viu os caititus

mortos ou agonizantes.

- Deus! O que aconteceu aqui? Onde está o vizinho?

Apeou, deu um nó nas rédeas do cavalo ao redor do tronco de uma

árvore e entrou na choupana, devagarinho, arma em punho. Mas só viu as

crianças, assustadas, num canto da casa. A menina de dois anos abraçara-se

no bebê que se encolhia num cantinho. O bebê chorava desesperado, a

menina olhava Peter apavorada.

- Crianças, vêm! Não precisam ter medo. Vocês conhecem o

tio Teicher, não é mesmo?

A menina sussurrou:

- Mãe... Mamãe...

- Vou levar vocês até a mamãe.

Como a menina mais velha conhecia Peter de algumas vezes que

estivera na colônia dele, veio-lhe ao encontro. O bebê chorou mais.

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- Deve estar com fome. – concluiu Peter

Achegou-se a elas. Colocou-as debaixo dos braços e saiu. No pátio,

colocou a menina no cavalo do empregado e levou consigo o bebê que não

parava de chorar. Ele deve estar com fome, disse de si para si. Logo, logo,

estarás com a tua mãe e vais poder mamar à vontade.

Quando chegaram, Gisela abraçou-se aos rebentos e chorava mais que

eles. Luísa buscou uma xícara de leite de vaca para dar aos pequenos, pois

via que a mãe não conseguia alimentá-los. A senhora Campos alimentou o

bebê com colherinha. O pobre bebia e chorava, bebia e chorava, até que se

saciou e parou de chorar. Gisela agarrava-se nas crianças e não as largava.

Era m o seu porto seguro no desespero e dor. Peter perguntou:

- Onde está teu marido?

Gisela permaneceu calada .

Peter insistiu:

- Onde está teu marido?

Soluçando, ela respondeu:

- É morto.

- Deus! Que desgraça! Um homem tão jovem! Mas onde ele está?

O que o matou? Os porcos-do-mato? Um bandido?

Fez uma pausa. Esperou. Mas ela não respondeu. Insistiu:

- Foi um animal? Um bugre? Foram os caititus?

Novamente, Gisela emudeceu.

- Ele caiu? Machucou-se? Onde está o corpo? Se ele está morto,

precisamos enterrá-lo dignamente, como cristão.

Gisela continuou muda e começou a cantar uma canção de ninar para

as criancinhas.

Luísa aproximou-se de Peter e sussurrou:

- Deixa ela! Amanhã, ela fala. Deixa-a descansar.

Peter não gostou da intromissão.

- Mas precisamos enterrar nosso vizinho.

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- Sabe-se lá o choque que ela levou. Temos de esperar. Ela

não está em condições de falar. - Concluiu Luísa.

Peter não mais insistiu. Quando a Mutta Walkíria, Martin, Verônika, os

filhos destes e os empregados voltaram da roça, foram recebidos pelas

notícias, lamentando a morte do vizinho e temendo os porcos-do-mato. A

noite passou desassossegada e mal dormida. Todos ficaram de sobreaviso.

Pensaram que os maragatos ou pica-paus tinha matado o marido dela.

Redobraram os cuidados, o alerta na trilha principal, não trataram os cães

para ficarem alertas, deixaram lampiões e tochas acesas para o caso de

terem de fugir depressa, pois a noite era escura.

No outro dia, Gisela sentiu os peitos vazios. Não tinha mais leite para o

bebê. O susto secara os peitos.

Uma das empregadas tivera nenê há poucos dias. Foi chamada para

dentro para amamentar o bebê de Gisela. Só então a mãe o largou e deixou

que a empregada o amamentasse. As meninas, Josefina, Rosalina e Maria

das Dores encheram de carinho e cuidados o bebê e a menina de dois anos.

Gisela sentia-se mal só de pensar na cena do dia anterior, um nó na

garganta, uma vontade louca de vomitar seguidamente. Não sabia se sentia

vergonha, nojo, medo ou tudo junto, mas raciocinou com frieza e pensou:

tenho de contar para eles. Será pior se o marido traído vier para cá e tirar

desforra. E os mortos? Precisam ser enterrados! O que será deles, se

ninguém os enterrar? Apesar da dor, conseguia ser generosa.

Criando coragem, pediu para falar com Luísa, Peter, Walkíria e

Verônika, pois entendiam a sua língua. Ainda não falava português. Entre

soluços entrecortados, contou como encontrou o marido morto. Os três

escutaram petrificados. Depois de algum tempo, Peter falou:

- Apesar de tudo, temos de ir lá e enterrá-los. Além do

mais, temos de ver o que houve com o outro. Que situação!

Gisela fracamente pegou a mão de Luísa.

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- Por favor! Não espalhem! Estou morrendo de vergonha!

O que será de meus filhos, se todos ficarem sabendo?

- Pode ficar descansada! Não faremos alarde! – explicou

Peter. - Isto é trágico para ser falado. Martin, eu e mais os dois filhos mais

velhos de Martin e que são de inteira confiança iremos para lá ver o que

pode ser feito.

Luísa, por sua vez, abraçou Gisela para consolá-la e assegurou:

- Além de nós, só a minha mãe, saberemos da verdadeira

história. Para os outros diremos que seu marido foi morto pelos caititus. Está

bem assim?

- Muito bem. Obrigada. Vocês são uns anjos! Estou muito grata a

vocês!

Os homens que foram a casa onde ocorreu a tragédia, sentiram o

cheiro de carne putrefata antes de apearem de suas cavalgaduras. Quando

adentraram o recinto, apesar de estarem acostumados à vida dura e

selvagem, enojaram-se do que viram. Uma nuvem de moscas ergueu-se dos

cadáveres. As formigas continuaram banqueteando-se.

Os homens saíram da casa com as palmas das mãos sobre o nariz.

Peter ordenou:

- Depressa! Procurem um lugar adequado para a cova, não

muito perto da casa. Não são necessárias duas covas. Façam só uma. De

qualquer maneira, morreram juntos. Vamos dar um jeito de limpar este

local, onde o demônio pôs as patas. Alguém fique de guarda. O marido traído

pode voltar.

Mas não voltou. Os homens providenciaram a cova, enterraram os

infelizes, lavaram e limparam o chão batido da casa, queimaram a cama e

os trapos ensanguentados. Ninguém falava, apenas agiam. Ser expectador

daquela tragédia deixou todos mudos. Depois, dirigiram-se a casa de Gisela

para enterrar os porcos-do-mato mortos no dia anterior. Não mais era

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possível aproveitar a carne para alimentação, porque também já estava em

processo de decomposição. Entretanto, tiveram uma surpresa. Gatos do

mato e jaguatiricas banqueteavam-se e lhes mostraram os dentes ante sua

aproximação. Mais uma vez enojaram-se, deram volta aos cavalos e

voltaram para a casa.

Ao voltar, andando mais devagar em sua cavalgadura, Peter pensava:

os quatro vieram juntos no mesmo navio. Gisela, jovem, com uma menina

de um ano e outra no ventre, talvez, não tenha percebido que o marido

sentira-se atraído pela outra, jovem, fresca, sem filhos. O marido desta,

talvez, não fosse muito sensual, talvez fosse reprimido no aspecto sexual.

Quem pode saber por que foram relacionar-se? O marido traído não achou

outra alternativa. Vingou-se, matando os dois. Terrível desenlace de uma

atração proibida!

Gisela ficou morando na colônia Teicher. Depois que se refez da

tragédia, trabalhava como os outros, agradecida por ter sido adotada pela

família. Nunca mais voltou a sua casa. Peter mandou construir uma

choupana perto da casa principal, onde ela passou a morar com seus dois

filhos. Também buscaram seus pertences. Do marido traído, assassino,

nunca mais alguém ouviu falar.

Maria da Dores, agora com mais idade, era a pessoa que mais brincava

e se dedicava aos bebês de Gisela. O motivo é que podia ficar em casa,

sempre junto de outras pessoas.

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Cap. VIII

NOVO RUMO

Esaú perdeu a conta de quanto tempo ficou perdido na densa floresta.

Sobrevivia como um bugre, ou melhor, como um animal. Depois de alguns

dias, achou a soberana das árvores, sumaúma, próxima de um córrego.

Frondosa, subia por sobre todas as outras e expunha os galhos, no alto,

como para dizer que todos estariam protegidos sob ela. Firmava-se no chão

por raízes enormes e não se sabia se era o tronco que se subdividia em

vários braços ou se eram as raízes que subiam até o grosso tronco. Entre

duas raízes formava-se um oco que dava passagem para o outro lado.

Esaú pensou que Deus o ajudava a encontrar saída para continuar

vivo. Aquele lugar era propício para a sua proteção. Parecia abrigo natural,

uma caverna. Sentiu que poderia utilizar-se da árvore para não ser comido

pelas feras. Limpou bem o canto formado pelas grandes raízes. Sobrepôs

bastantes folhas e palhas sobre uma armação de varas que colocou encima

das duas raízes. Fechou, fortemente, com troncos grossos e pesados, uma

das entradas do oco. Ali não poderiam entrar bichos peçonhentos.

Na outra entrada fez tipo de um portão que podia abrir e fechar,

amarrado com cipós que só ele conseguia movimentar. Encheu o chão de

folhas e ciscos secos e fez daquele local a sua casa. Podia deitar-se com

tranquilidade, dormir à noite, sem medo dos animais carnívoros que ali

dificilmente chegariam. A partir de então, passou a viver por aqueles

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arredores, sempre marcando com folhas, frutinhas ou caroço o caminho por

onde andava, a fim de poder voltar, antes que a noite chegasse.

De noite, sonhava com os melhores dias que já tivera. De dia,

conseguia beber água pura do córrego. Só precisava, diariamente, procurar

comida.

Um dia, encontrou um papagaio caído no chão. Uma das asas

quebrara-se. Esaú quis pegá-lo, mas o bichinho escapulia por entre as folhas

e galhos, até que ficou preso num galho pela asa machucada. Esaú

conseguiu pegá-lo e disse-lhe:

- Vou cuidar de ti, amigo. Nenhum bicho maior vai te comer!

Levou-o para dentro da toca e cuidou do animalzinho. Como ele repetia

algumas palavras, ensinou-o. Por fim, depois de curado, o pássaro

acompanhava-o para todos os lugares. Conquistou, também, a simpatia de

outros pássaros, que vinham comer frutinhas na sua mão. Todos os dias,

depois que saciava a si mesmo, procurava alimento para os animais.

Um veadinho também se tornou seu amigo. Percebeu que de tão

pequeno, devia ser bebê. Aproximou-se devagar e deu-lhe os dedos para

chupar, o que ele fez com sofreguidão.

- Onde está tua mãe? Certamente morreu por alguma razão. Mãe

nenhuma deixa seu filho assim.

Esaú procurou capim bem macio. Levou para o bichinho e deixou que

ele chupasse um dedo, enquanto com a outra mão colocava o capim na

boca. Aos poucos, o animalzinho aprendeu a comer sozinho. Esaú acolheu-o

como a um filho. Para que não corresse perigo, de dia trazia-o sempre

consigo. À noite, colocava-o junto dele na toca, onde ele mesmo dormia. O

animalzinho crescia. Quando maior, às vezes, afastava-se do pai adotivo,

mas, voltava em seguida para pastar bem próximo.

Assim, meses foram passando. Quando o veado já estava quase

adulto, foi a vez de um quati-bebê ser encontrado. Esaú adotou-o também.

Como não havia pessoas, era com animais que falava e se relacionava

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amigavelmente. O quati vivia grudado nas suas costas, mas não o

arranhava. Se isto acontecia, Esaú imediatamente jogava-o ao chão. Às

vezes, o quadrúpede brigava com o papagaio que gostava de ficar nos

ombros. Este não conseguia voar alto ou longe, por causa da asa quebrada

que curara, mas não lhe permitia voos longos.

- Parem os dois com isso, senão vou botar vocês de castigo! –

falava, como aprendera de seus pais. O papagaio emendava:

- Castigo... castigo... castigo...

Passados os dias quentes de verão, vieram dias frios do outono. Esaú

não conseguia dormir, tiritava e esperava com ansiedade que a madrugada

chegasse para levantar e correr. Só assim conseguia esquentar-se

novamente. De noite, cobria-se o mais que podia com as folhas secas, mas o

frio o castigava de qualquer forma. As roupas tornaram-se apenas farrapos.

Numa dessas gélidas manhãs, bem cedo, quando a neblina infiltrava-se por

entre as árvores, e Esaú tiritava de frio, falou para si mesmo:

- Vou ter de dar um jeito de sair desta floresta, senão vou morrer de

frio no inverno. Mas como?... Vou ter de procurar mais... Ai! Meu Deus! Me

ajuda! Será que Deus quer que eu morra? Já fiz de tudo para sair e não

consegui. – Como se alguém respondesse, ouviu em sua mente: - Só não

seguiu o curso d’água... É isto. Vou tentar seguir o curso d’água. O córrego

corre para algum lugar, para um riacho ou arroio maior, este segue para

uma água maior, por fim, chego a um rio. Os colonos, geralmente, assentam

suas famílias próximas a um rio. Assim, vou encontrar gente. Só espero que

não encontre os meus perseguidores. Será que aquela louca da Gudrum

ainda pensa em mim? Por causa daquela doida é que estou nesta situação!

Mas que ela era gostosa, ah!, isto era.

Como pensou, assim fez. Enquanto o córrego era raso, seguiu pela

água. Ela lhe pareceu mais quente que a terra, além disso, seus pés não se

feririam tanto. Andou muito, acompanhado de seus três amigos. Pensava em

Gudrum, nos pais, irmãos, nos outros familiares. O córrego descia muito, as

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pedras eram íngremes. De repente, não viu mais o veadinho. “Acho que ele

não quer viajar para muito longe. Só espero que saibas te defender dos

animais carnívoros. Ainda és tão novinho! Pobrezinho!” Chegou a um lugar

em que o córrego entrava num arroio maior. Vibrou com o achado, mas o

arroio corria caudaloso. Poderia ser carregado pela corrente.

- É melhor eu subir. Acho que mais acima já deve ter alguém

morando.

A descoberta deixou-o tão contente que até esqueceu o frio. Andou,

andou, andou. Sol não havia, pois estava fortemente nublado e uma garoa

fina molhava a copa das árvores. Não sabia se era meio-dia ou meia-tarde.

Continuou andando, apesar do cansaço e fome. De vez em quando, parava

para observar alguma coisa que lhe chamava a atenção: um grande número

de girinos, as ovas brancas e moles das rãs. Sapos e rãs abundavam. Quase

era necessário afastá-los com os pés, tantos havia. Sapos e rãs de todos os

tamanhos: grande, médios, pequenos; de todas as cores: marrons, pretos,

verdes, coloridos, matizados. Faziam ruídos de todos os tipos. A natureza era

pródiga em sapos e rãs, além de milhares de insetos e pássaros. De vez em

quando, Esaú parava para admirar os animais ou as plantas. Centenas de

tipos diferentes de árvores, de cipós, de orquídeas, de bromélias. De fato, a

natureza era por demais pródiga. Comia folhas, insetos, raízes que não o

repugnassem. De alguma coisa precisava alimentar-se.

De repente, avistou uma manada de capivaras que o olharam,

espantadas, e em seguida, fugiram espavoridas.

- Ai, meu Deus! Se há tantas capivaras por aqui, certamente não

haverá colônias. As pessoas não deixam as capivaras viverem. São caça

muito boa.

Mesmo assim, seguiu em frente. A fome e o cansaço começavam a

deixá-lo desesperado. Os animais-amigos também já estavam ariscos. A

insegurança dele transmitia-se para os bichinhos que, igualmente, sentiam

fome e cansaço. Começava a escurecer, quando ouviu um latido.

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- Mas é um cão! Amigos, - falou aos animais – é um latido. É o

latido de um cão. Ah! Meu Deus! Ah! Meu Deus! Se tem cão, tem gente.

Estamos próximos de alguém. – E pôs-se a escutar. – De onde vem? De

onde vem? – E seguiu arroio acima. Corria o mais rápido que podia, pois

parecia que de lá é que vinha o som.

Andou bastante e nada mais ouviu. “O cão deve ter-se recolhido, por

causa do frio”. Procurou uma árvore grande e buscou um galho onde

pudesse passar a noite. O quati não desgrudava dos farrapos que ainda

estavam nas costas de Esaú. O papagaio empoleirou-se num dos mais altos

galhos. A noite, certamente, passaria sem maiores dificuldades.

Entretanto, não dormiu bem. O frio, os ruídos da noite, o medo, a

ansiedade não o deixavam adormecer. Mal fechava os olhos, já acordava

sobressaltado. Não via a hora de a madrugada surgir. Quando, finalmente,

os pássaros matutinos começaram a anunciar o dia, sentiu-se feliz. Aguardou

alguns instantes, desceu da árvore e pôs-se novamente a andar.

Caminhando, não sentia tanto frio e enganava o estômago. De repente, do

nada surgiu novamente o veadinho. Abraçou-o com ternura:

- Não queres ficar sozinho, não é? Não vais me abandonar? És um

amigão!

A manhã toda andou arroio acima. Subia corredeiras. De vez em

quando, tinha de sair da água para andar pelas margens, subir penhascos,

evitar buracos traiçoeiros. O arroio ia diminuindo, diminuindo até ser apenas

um riacho de água cristalina. Mas não surgia nenhuma chaminé fumegando a

distância, nenhuma plantação que indicasse colonização, nenhum animal

doméstico. O cão do qual ouvira o latido não mais se manifestou.

- Vou morrer de fome e frio! – lamentava, segurando as peles

flácidas do ventre. Como se alimentara quase nada nos últimos tempos, o

corpo murchara, os ossos das costelas sobressaíam-se e um buraco formara-

se na região do estômago e arredores.

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Pegou peixes, pequenos peixes do rio e os comeu inteiros, crus.

Algumas folhas que pareceram comestíveis também lhe apeteceram. Embora

se enojasse, mastigou vermes dos troncos podres e sentiu-se fortalecido.

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Cap. IX

(MUSTERREITER)

O MASCATE ITALIANO

Pelo meio-dia, o sol mostrou-se um pouco. Esaú sentou sobre uma

árvore caída e deixou que o deus Helios o esquentasse. Foi neste instante

que ouviu novamente latidos de cão. Ergueu-se rapidamente e escutou. Os

latidos eram de mais cães e pareciam próximos. Pôs-se a andar em direção a

eles. Andou, andou até que chegou bem perto Então, os cães cessaram de

ladrar. Esaú temeu. Antes de arriscar-se demais, subiu numa árvore e

procurou pelos cães. Enxergou-os perto do córrego que devia ser a cabeceira

do riacho. E viu mais. Vários burros pastavam na beira, livres de suas

cargas. Não conseguia contá-los, pois se moviam de um lado para outro e as

folhas da árvore impediam que visse com clareza. Uma carroça com

quinquilharias estacionara perto. Um homem dormitava na sombra de uma

árvore. Ao lado dele, alguns cães montavam guarda. Mais adiante,

descortinava-se uma picada.

- Estou salvo!!!! – quase gritou, mas conteve-se. O homem dormia

com um chapéu sobre o rosto. Não podia saber quem estava por baixo

daquele chapéu. Era um pouco avantajado, mais gordo que magro, com boas

roupas, botas. Dormia sobre um pelego. Como chegar até ele? Como saber

se seria bem recebido? Bem ou mal? Teria de fugir novamente como uma

caça?

Um dos cães ergueu-se. Farejara algo. Os outros logo o imitaram.

Como um prisco um deles avançou, latindo. O veadinho saiu aos pulos pela

mata a fora, com cães ao seu encalce. O quati assustou-se e também saiu a

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correr, escondendo-se entre a vegetação rasteira. Cães o seguiram, mas um

parou embaixo da árvore onde Esaú se escondia e latiu para o alto. O

personagem dorminhoco acordou com os latidos. Tirou o chapéu do rosto e

balbuciou entre sono e acordar:

- Que se passa?

Sem muita vontade para levantar, ergueu-se devagar. Acompanhou os

cães com o olhar. Viu que um deles se punha a latir, olhando para cima de

uma árvore.

- Será algum predador?

Pegou da espingarda que tinha ao seu lado, enquanto dormia. A passos

lerdos, com cuidado, aproximou-se da árvore. Esaú viu o homem aproximar-

se e pensou:

- Estou perdido! Este me fuzila!

Fechou os olhos, esperando o tiro que não veio. Em vez disso, ouviu

uma voz:

- Vamos! Quem és? O que faz nesta árvore? Queres que te mate?

Esaú, ao ouvir as palavras do estranho, percebeu que ele não falava

alemão. A voz dele tinha um sotaque desconhecido. Também não era

português correto. Devia ser outra raça. Abriu os olhos, os braços e suplicou,

no melhor português que sabia:

- Não! Não me mates! Não tenho armas!

O idioma português dele era péssimo. O estranho ouviu aquele sotaque

que puxava para o alemão e pensou que o negro debochava dele.

- Desce daí, se não quiser levar chumbo!

- Já vou descer!

Como ágil macaco, Esaú obedeceu. Desceu. No rosto estampava-se

pavor. O estranho acompanhou-o com a arma apontada. Ao defrontar-se

com o cujo, Esaú percebeu que ele tinha marcas profundas no rosto e nas

mãos, marcas quase que como um círculo. Parecia que a pele fora furada por

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ferro redondo e depois se tivesse cicatrizado. Nunca vira alguém assim.

Quase não conseguiu falar:

- Estou perdido, senhor! Perdi-me na mata, há quase um ano. Foi

Deus que botou o senhor no meu caminho. Obrigado, senhor!

E ajoelhou-se e beijou as mãos do homem das horríveis cicatrizes. O

sotaque dele mais uma vez soou mal aos ouvidos do estranho. Já ouvira esse

sotaque antes, sabia que era de alemães.

- Afinal, deves ser um escravo fugido. Claro, quase não há

escravidão, mas os negros ainda servem seus patrões sem receber

pagamento. Viveu com alemães? Preto e fala com sotaque alemão. Estás

rindo de mim?

- Não! Não! Venho de uma família de alemães. Não me mate!

- Negro fugido, é? De onde fugiu?

Esaú tremia dos pés à cabeça. O medo quase o impedia de falar. O

linguajar esquisito, que nunca antes ouvira, deixava-o atônito. Não devia ser

descendente de português.

- Não, não fugi. Sou filho de uma alemã com negro. Moro na

colônia Teicher.

- Ah! – fez, olhando de soslaio para o rapaz. Não acreditou que

fosse filho de alemã. Pensou que devia ser empregado em colônia de

alemães. E acrescentou: - Nunca ouvi falar. Prá que lado fica?

- Morro dos Bugres.

- Nunca ouvi falar. Não sei onde fica. Como é teu nome?

- Esaú.

- Ah! Nome bíblico. – Baixou a arma. – Estendeu-lhe a mão. – O

meu é Horácio. Sou italiano. Morei no Campo dos Bugres. Hoje sou mascate,

viajante. Às vezes, vendo para alemães.

Esaú não sabia o que era italiano, nem mascate, nem viajante, por isso

ficou mudo. Horácio fez uma pausa, depois continuou:

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- Estás bem feinho com cabelo crescido, emaranhado, pareces

bicho. – Esaú pensou: “Tu também és feio... com esses buracos na cara”.

Pensou, mas nada falou. Horácio continuou: - E estes trapos?! Precisa de

uma roupa nova. Para onde vais?

- Não sei. Já falei. Estou perdido.

Horácio coçou o queixo.

- Bem que eu poderia ter um negrinho para me ajudar, só que não

és um negrinho, és um negrão. Apesar da magreza, deves ter muita força.

Queres trabalhar para mim?

Esaú estava feliz de ter encontrado um ser humano que não era um

dos perseguidores, muito menos alemão. Faria qualquer coisa para ficar com

ele. Percebeu que o outro nada sabia da perseguição anterior, não era um

deles e parecia não ter preconceito racial, pois o tratava bem. Que mais

poderia querer?

- Farei qualquer coisa para ficar com o senhor. Prometo que não se

arrependerá. Sou trabalhador.

- Bem... isto veremos... Estás com fome? Queres comer alguma

coisa?

Apesar da fome, falou:

- Não. Não precisa se preocupar. O senhor é quem sabe.

Horácio dirigiu-se a um dos pesuelos. De lá, retirou um naco de queijo,

um pão amanhecido e um pedaço de salame. Ofereceu-o ao rapaz. Esaú

comeu com tanta sofreguidão que quase mordeu os dedos. Horácio apenas o

observava. Ficou com pena dele. Certamente ficara muito tempo sem comer

com decência. Num outro pesuelo procurou algumas roupas. Encontrou tipo

dum camisolão que ofereceu ao rapaz:

- Vai lavar-te! Tira do corpo estes trapos que parecem ter

quinhentos anos e põe este pano. Apesar de não ser bonito, fica melhor que

os trapos.

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Esaú obedeceu. Entrou no riacho, prostrou-se atrás de um tronco,

rasgou os trapos, jogou-os para longe, lavou demoradamente o corpo todo,

esfregando-se nas folhas fibrosas das margens e vestiu o camisolão. Não

gostou, mas ficou mais decente.

O papagaio voou ao seu encontro. Pousou no ombro. O moço dirigiu-se

ao lugar onde Horácio se encontrava. Espreguiçava-se sobre os pelegos.

Era inverno e a tarde não iria durar. Horácio e Esaú amarraram os

burros um atrás do outro para andarem em linha indiana, colocaram as

cargas sobre as cangalhas, ajeitaram os mais fortes para sua montaria e se

puseram a caminho.

- Para que lado queres ir? – perguntou Horário.

- Não sei. O senhor é quem manda.

- Perguntei, porque gostaria de levar-te para tua casa. Para o sul,

vamos em direção a Novo Hamburgo, São Leopoldo. Para o norte iremos

para Walahei, Santa Maria do Herval, Padre Eterno. Só não vou para os lados

de Sapiranga. Lá vivem os Muckers. Já ouviu falar?

- Não. Não sei o que é isto.

- É uma seita religiosa. Sabes o que é seita?

- Não sei, nunca ouvi falar.

- É tipo de uma religião, mas não é reconhecida como tal. Em geral

são pessoas fanáticas. Os Muckers acham que Jesus Cristo voltou à terra, em

forma de mulher. Não sei, não. Ou ela é louca, ou mulher iluminada por

Deus. Sei lá. E loucos são todos os que a acompanham. Aqueles que não

acreditam dizem que os Muckers são violentos. Matam quem discorda deles.

É muito esquisito este fanatismo. Eu, hein? Italiano já não é muito bem

recebido pelos alemães, imagina ainda ser confundido com inimigo deles.

Com certeza, davam um fim no Horácio. Será que Jesus iria querer

reaparecer neste fim de mundo?...E ainda por cima em forma de mulher? É

muito estranho este pensamento. O que achas?

- Nada sei. Não me perguntes.

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- Quero distância deles

Esaú não se manifestou. Nada sabia sobre este assunto.

- Ah! Acho que Padre Eterno fica próximo de onde moro. –

acrescentou.

- Então, iremos nesta direção.

Viajaram, na lenta marcha dos burros. Os cães iam à frente.

Farejavam. Latiam. Se algum animal perigoso, ou peçonhento estivesse no

caminho, os cães o denunciavam. Em seguida, vinha o burro-madrinha,

montado por Horácio. Este burro trazia, amarrado em seu pescoço, o

cincerro que balançava e tocava música como um sino, o que indicava aos

outros burros que deviam segui-lo. Na terceira posição, aparecia Esaú,

acompanhado do papagaio que voava ao seu lado e, às vezes, empoleirava-

se no seu pescoço. Isto dava briga com o quati que também se grudava nas

costas do rapaz.

- E estes bichos? Vão ficar sempre contigo? – perguntou

Horácio.

- São meus amigos. Fizeram-me companhia todos estes meses.

Quero que fiquem comigo. O senhor deixa?

- Se este é teu desejo, pode continuar com eles.

O único que se afastou e adentrou a mata, foi o veadinho. Cada vez

que chegava perto, os cães o perseguiam. Foram tantas as vezes que ele

desistiu da amizade e embrenhou-se na floresta, para nunca mais voltar.

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CAP. X

VIAJANDO E APRENDENDO

Às vezes, a trilha era mais larga, dava espaço para dois burros

seguirem um ao lado do outro. Nesses momentos, Esaú e Horácio

conversavam. O jovem contava da sua história de fuga dos alemães

enfurecidos, escondendo o detalhe da causa principal da perseguição.

Embora o português do rapaz fosse precário, Horácio tentava entender e,

seguidamente, traduzia para o italiano. Alguma vez, Esaú ouvia-o exclamar:

- Mamma mia! ... Porca miséria!...

E Esaú perguntava:

- Quê??? Que o senhor falou?

- Nada! Nada de importante. Continua tua história.

Esaú falava da família, mãe, pai, irmãos, tias, avós, sobrinhos e até

dos empregados. A colônia já tinha muitos moradores.

Horácio também contava sobre sua vida, a vinda da Itália, a família, a

morte precoce da esposa que morrera de varíola.

- E estes buracos que tenho no rosto, nas mãos e em quase todo o

corpo são daquela doença desgraçada que nos atacou. Eu sobrevivi, mas a

minha querida Donatela não.

Esaú entendia quase nada do que Horácio narrava e imaginava a Itália

como um lugar que se via no horizonte depois de um rio um pouco grande.

Não conseguia fazer ideia do que era o mar, o oceano.

Entendeu, também, por que Horácio tinha o rosto e as mãos tão feias,

marcadas pela varíola.

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Numa ocasião, quando Esaú falou das muitas mortes pelo tifo ou pela

difteria, Horácio concluiu:

- Na França, que é um outro país perto do meu, há um homem

estudioso, ao qual todos chamam de cientista, chamado Luís Pasteur, que

descobriu que se colocarmos os objetos que usamos numa água e

fervermos, a fervura mata os bichinhos que não vemos e não ficaríamos tão

doentes. É da água crua que vem a maioria das doenças, diz ele. É preciso

ferver!

- Ah.... é? É tão simples assim?! Pegar um vasilhame, colocar sobre

um fogo e ferver. Se a gente soubesse antes, muita gente não teria morrido.

- É verdade! Principalmente, se fervêssemos a água e o leite que

tomamos.

Sempre que possível, caçavam pássaro ou animal de chão. As partes

nobres assavam para o próprio alimento e, às vezes, assavam a carne para

os cães, mas, quase sempre, devido ao cansaço, os cães comiam a carne

crua.

Nesse ínterim, os burros pastavam.

À noite, procuravam um lugar aprazível para dormir. Aliviavam os

burros, tirando-lhes a carga. Os cães montavam guarda. Enquanto não

chovesse, a marcha andava, embora lenta. Quando pressentiam chuva,

procuravam achegar-se a um alojamento. Podia ser uma fazenda, uma

colônia ou até um casebre abandonado numa roça qualquer.

O inverno chegou e, com ele, muita chuva e frio. Os mascates

precisavam hospedar-se nas casas dos compradores e esperar pela melhoria

do tempo. Sempre que encontravam fazendas, aldeolas, colônias ou outros

moradores isolados ofereciam seus produtos para venda. Os burros

carregavam em suas cangalhas muitos objetos úteis: panelas de ferro,

botijões de barro, talheres de cobre ou latão, tecidos, lãs, linhas, agulhas,

outros apetrechos de costura ou de cozinha, também pás, machados, facas,

foices, gadanhos, etc, tudo de que as pessoas necessitavam para o trabalho

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na lavoura, ou em suas residências. Casas de comércio só havia nas vilas e

povoados maiores e, seguidamente, as fazendas ou colônias ficavam muito

distantes uma das outras. Nestes lugares, os mascates eram bem recebidos,

uma vez que traziam apetrechos de que os moradores necessitavam.

Também traziam notícias de outras querências. Eram, sem querer, o correio,

o jornal falado da época. Os descendentes de alemães chamavam-nos de

“musterreiters”, isto é, cavaleiros que trazem amostras.

Horácio sabia como ninguém entreter os hospedeiros com suas

histórias, notícias. Falava em alto e bom tom, alegremente, com detalhes e

minúcias, numa voz meio cantada que fazia o deleite dos ouvintes. Desde os

mais velhos até as crianças mais jovens, todos se tornavam expectadores

atentos. Contava da Itália, dos vizinhos, dos bugres, das plantas e animais

da floresta, das novidades que ouvia por todos os lugares por onde passava.

Tinha o dom da palavra e a capacidade imaginativa que encantava.

Esaú aprendia com ele. Sempre vivera na colônia Teicher, seus

conhecimentos do mundo restringiram-se ao mundo da Colônia. Com Horácio

dilatavam-se os horizontes.

Um dia, quando o céu prenunciava grande quantidade de chuvas,

chegaram à fazenda de um português que os recebeu muito bem e os

hospedou por longo tempo, enquanto a chuva não parou de encharcar os

caminhos e tudo o mais.

Não eram racistas e a esposa do fazendeiro ofereceu os melhores

quartos de hóspedes para Horácio e Esaú. Este, não acostumado a camas,

ainda mais depois de passar por tudo que passou, sozinho na selva, ficou

sem saber como agir. Não se achou digno de tanto luxo e, na primeira noite,

dormiu no chão. Pela manhã, contou a Horácio o sucedido ao que este deu

boas risadas. E lhe falou:

- Deixa de ser bobo, rapaz! Aproveita a boa cama que te oferecem!

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No segundo dia, ensaiou e conseguiu dormir na cama. Adormeceu

quase sem perceber. No outro dia, perdeu a hora do café. Acordou, quando

Horácio lhe gritou ao ouvido:

- Ah! Gostou da cama, hein, malando?

Deu um salto, assustado.

- O que foi? Que aconteceu?

- Nada de especial, meu caro, apenas que dormiste demais. Vamos,

levanta, que o dia está um pouco sem chuva e o nosso fazendeiro quer nos

mostrar a fazenda.

- Está bem. Logo estarei pronto.

O hospedeiro deu-lhes bom cavalo e levou-os a visitar a fazenda. Era

enorme, a perder-se de vista. Criação de gado vacum, ovinos e equinos.

Esaú ficou encantado, nunca vira tanto gado num só lugar. Achou os campos

magníficos, aquele verde que coleava pelas colinas.

Naquela noite, os peões e os patrões reuniram-se no galpão e, na luz

de um lampião, cantaram, tocaram música e dançaram. Algumas mulheres

faziam parte da festa, embora fossem poucas. Uma jovem negra, com

vestido de chita, aproximou-se de Esaú e convidou-o para dançar.

- Eu não sei dançar. Nunca dancei.

- Eu te ensino. – falou a mulher.

- Já disse. Não sei, sou desajeitado.

- Vai lá, garoto! – gritou um peão. – A Marialva te ensina. Se nunca

dançou, ta na hora de aprender.

Desajeitado, encabulado, trôpego, ensaiou alguns passos, mas, mal e

mal conseguiu acompanhar os outros. Era a dança do “Pezinho”, depois a

“Chimarrita” e a “Cana Verde”. Horácio também tentou acompanhar, ouvia-

se a sua risada e as brincadeiras abafadas pelos acordes da gaita. Esaú fez o

que pôde, mas os seus passos continuaram trôpegos.

Mais tarde, Marialva levou-o para um galpãozinho, onde, pela primeira

vez, sentiu o gosto do sexo. Marialva era experiente e deixou o rapaz numa

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excitação total, mas, antes de o sol raiar, mandou-o embora, mandou-o para

a fazenda, pois que já tinha outro homem, um tropeiro, que viajara e

voltaria nos próximos dias.

Mais uma vez, Esaú sentiu-se atrapalhado, esquisito. Na mesma noite

em que a mulher o deixara em êxtase, mandava-o embora como se fosse

uma bota velha que não se quer mais usar.

Ficaram mais algum tempo na casa deste fazendeiro, findo o qual,

chegou a primavera. Agradeceram, então, a boa hospitalidade e partiram

para outra viagem, a fim de continuar a profissão.

Um dia, Esaú reconheceu o caminho.

- Horácio, esta trilha vai dar na minha colônia.

- Ah, é? Queres ir para casa?

- Quero. Quero. Sem dúvida. Ficarei muito grato, se fores comigo para

lá.

- Então, sigamos por ela. Quanto tempo achas que precisamos para

chegar até ela.

- Não sei, com certeza. Mas já passei por aqui. É ainda um pouco

longe, mas vamos chegar mais dia, menos dia.

E lá se foram os mascates pelo caminho escolhido

- Quem sabe teus familiares compram alguma coisa. Quem sabe

precisam de algo.

- Creio que sim, Horácio. Creio que sim.

E apressava os burros para chegar o quanto antes.

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Cap. X

A VISITA

A Colônia Teicher aumentara em número de moradores. Casais novos

que se formavam, geralmente, tinham muitos filhos. Construíam-se mais

casas de madeira. As que já existiam continuavam de xaxim e chão batido

por dentro. As trilhas entre uma e outra faziam pó em tempo seco e barro

em dias chuvosos. Bois, vacas, cães, galos e galinhas, porcos, gatos

zanzavam entre as pessoas e as casas. Por isso, pulgas, carrapatos, piolhos

e percevejos viviam em profusão, ocorria sarna e outras micoses. Também

havia muitas moscas transmissoras de bicho-berne, bicheira e outras, sem

contar os mosquitos que zuniam ao redor dos ouvidos, infernizando a vida

das pessoas e dos animais.

Os predadores eram os pássaros e os sapos, mas as pessoas os

destruíam. Comiam os pássaros maiores. Os sapos eram mortos por vários

motivos, pelo fogo ateado nas roças após o desmatamento, por brincadeiras

das pessoas, pisoteados por animais, carroças, além de outros motivos. Os

predadores que sobravam não davam conta da infinidade dos insetos.

Por isso, de vez em quando, fazia-se uma limpeza geral, quando todas

as casas eram lavadas e desinfetadas por plantas que afastavam os insetos

pelo cheiro ou outra causa que afastasse os indesejados visitantes. Também

lavavam os cães, mas os outros animais não. Aqueles não gostavam do

banho, pois, só, às vezes, eram lavados, não pegando, portanto, o costume.

Arrastavam-nos para o riacho, à força, amarrados por cipós, o que era uma

luta entre pessoa e animal, cujo vencedor quase sempre era o ser humano.

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Neste dia, pela manhã, tinham feito esta faxina, na qual entraram

todos os moradores.

Pela tarde, foram limpar uma roça nova. Apenas Gisela e seus dois

filhos, por serem muito pequenos, ficaram em casa, juntamente com outras

crianças menores. Um peão ficara com ela. Este descascava milho em um

dos galpões.

Tatuíra desceu a trilha que conduzia a casa Teicher, quase caindo do

burrico que o conduzia, tal a ansiedade para chegar depressa e ver a família.

Acompanhava-o outro frade, montado noutro burrico e um terceiro

animal carregava nas costas alguns pertences.

Alguns cães puseram-se a latir. Gisela dava de mamar a um bebê de

outra mãe, pois que ainda possuía bastante leite. Sentara-se no pátio de seu

ranchinho. Naqueles tempos, era vergonhoso mostrar a amamentação a

qualquer pessoa estranha. Por isso, ao ver homens descendo pela trilha,

correu para dentro. As crianças que a rodeavam, imitaram-na. O peão espiou

pelo galpão para ver por que os cães latiam. Ao ver que eram padres, abriu a

porta e foi ao seu encontro. Nesse ínterim, Tatuíra já apeara da besta. O

peão saudou-o:

-Boa-tarde!

Tatuíra respondeu em seguida:

- Boa-tarde! Sou o Tatuíra, o irmão adotivo do senhor Teicher.

- Ahn... - fez o outro que não o conhecia.

- Onde estão todos?

- Na roça do outro lado do riacho.

- Sei onde é. Vou lá. Agripino, - falou, dirigindo-se ao frade que o

acompanhava - fica aqui com este senhor e cuida dos burros.

O peão mostrou-se solícito.

- Quer que acompanhe o senhor até a roça, padre?

- Não, não é necessário. Conheço o caminho. Cresci aqui.

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- Então, cuidaremos dos animais, pode deixar, senhor padre, daremos

água. Podemos colocá-los no piquete depois?

- Claro! Claro! Façam isto!

Piquete, uma invernada pequena, onde era fácil encontrar os animais

domésticos ali colocados.

Nesse meio tempo, apareceram as crianças menores, curiosas, e Gisela

que, vendo que se tratava de padres, tivera a coragem de apresentar-se.

Tatuíra percebeu que havia muitas pessoas novas na Colônia,

principalmente crianças, mas como queria ver os irmãos, apressou-se em ir

para a roça. Gisela e o peão tomaram conta do outro frade e dos burros.

Tatuíra correu o mais que pôde para achar a família. Quando os achou,

acabavam de atear fogo em um local novo para plantio. Estavam todos lá:

Peter, Martin, Verônika, a “Mutta” Walkíria e muitos outros, alguns

conhecidos e outros nem tanto. Só não achou Esaú. Uma alegria muito

grande invadiu o seu coração. A família onde vivera a infância, estava quase

toda ali.

Deviam ter tirado as toras grandes há uns dias. O que sobrara de

galhos, folhas e cisco pequeno agora o fogo consumia. Alguns dias depois,

poderiam plantar, as cinzas deixariam a terra fofa e a colheita seria farta.

Tatuíra lamentou. Já aprendera com seus mestres no seminário que

este processo destrói a mata nativa, elimina os microorganismos, a terra

resseca e, em poucos anos, a colheita não mais será a mesma. Os colonos

não sabiam disto e o seu desejo era imediatista; plantar rápido para colher

rápido.

Ninguém viu Tatuíra aproximar-se, nem os cães. Todos se

preocupavam com o fogo. Este não poderia cruzar o trecho em que tinham

feito tipo de um valo. Se isso acontecesse, as chamas poderiam propagar-se

pela mata. Cuidado era necessário. Todos de prontidão: enxada na mão,

alguns com vassouras feitas com plantas. Caso o fogo se alastrasse, enxadas

e vassouras apagariam as chamas que, porventura, cruzassem.

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Tatuíra esperou pacientemente que a tarefa terminasse. De repente,

um dos cães pressentiu um cheiro estranho e avançou em direção ao padre.

Tatuíra percebeu que o bicho era de poucos amigos. Subiu rapidamente

numa árvore. Nesse momento, incentivados pelo latir do cão, algumas

pessoas perceberam o padre encarapitado num tronco. Um desses foi Peter

que logo gritou:

- É o Tatuíra!

Esqueceu o fogo e correu ao encontro do irmão. Acalmou o cão. Tatuíra

desceu da árvore. Peter abraçou longamente o visitante. Os outros

continuaram na tarefa, muitos nem o conheciam. Luísa, Verônika, Martin

também vieram abraçá-lo e alguns que o conheciam, principalmente filhos

de Martin e Verônika. A “Mutta” ficou para trás e foi a última a abraçá-lo,

com lágrimas nos olhos, lágrimas de felicidade.

- Mãe, como estás?

- Bem, meu filho, bem. Estou feliz por te ver com saúde. Que bom que

vieste nos visitar.

Tatuíra olhou para o rosto cheio de fuligem da mulher que o criara

como filho. Os olhos já eram baços, escondidos embaixo de um chapelão que

mal tapava os poucos cabelos brancos. Quando sorriu, a boca mostrou

apenas um dente, mas, mesmo assim, achou-a linda, de uma beleza interior

inigualável por tudo que fizera por ele e os outros filhos.

- Vamos para casa, Tatuíra. – falou Peter. - O resto do pessoal termina

de limpar a roça e plantar. Quem vem conosco?

Walkíria acompanhou os homens. Durante o trajeto, conversaram

bastante.

- Não vi o Esaú. Onde está o Esaú?

Peter contou-lhe o que acontecera. Tatuíra ficou sabendo do sumiço

de Esaú, da ida de Miguel e Catarina a Rio Pardo, dos filhos nascidos, das

mortes, das doenças, das colheitas, da tragédia de Gisela, a mulher que

encontrara ao chegar.

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- Vamos banquetear a tua visita. Mataremos algumas galinhas velhas.

- Não é necessário. Qualquer coisa serve para mim. Tu sabes: sou um

padre e padre está acostumado à alimentação frugal.

- Claro, claro, mano amado, mas nós temos algumas galinhas que não

põem mais ovos e que só estão esperando uma ocasião especial para serem

comidas. Hoje é uma ocasião especial. Quão pouco podes nos visitar!

- Isto é verdade. Mas, maninho, só vim vos visitar, porque estou em

uma missão da Igreja e resolvi visitar-vos antes de partir.

Walkíria arregalou os olhos:

- Que missão é esta?

- Mãe, incumbiram-me de catequizar os bugres da selva, aqueles que

ainda não tiveram contato com os brancos.

- Mas isto é muito perigoso, filho! Tu estás acostumado com os

brancos, não és mais bugre.

- Não, mãe. Eles são o meu povo. Vou saber lidar com eles.

- Ah! Meu filho, fico muito aflita. Os bugres da selva são selvagens.

Podem te machucar, te matar.

- Não te preocupes, mãe. Ninguém melhor que eu para compreendê-

los. Sou índio, falo a língua deles, embora não me lembre muito. Aliás,

agora, falo três línguas, ou melhor, quatro. Posso até ser orgulhoso por isso,

não é mesmo? Quem diria que um bugre poderia falar alemão, português e

latim, além da língua indígena?

- Ih! Estás muito exibido, mano. Deus não vai gostar.

- Ele sabe que é só para o bem Dele que aprendi tudo isto.

- Mesmo assim, fico preocupada. – interferiu a mãe.

- Não se preocupem. Deus vai me ajudar.

Peter interveio:

- Também fico preocupado, mas se a Igreja manda, tu tens que

obedecer.

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Tatuíra e Agripino ficaram alguns dias na Colônia. Depois, montaram

em suas mulitas e partiram. Peter deu mais uma mula com uma cangalha

para carregar foice, machado, enxada e outros apetrechos. Também lhe

doou dois casais de cães. Até uma espingarda lhe arrumou. Tatuíra não quis

levá-la.

- Não vou matar ninguém, nem os animais: esta é a lei de Deus.

Peter insistiu:

- Vais usá-la para caçar teu alimento e para tua defesa, caso sejas

atacado por uma onça, uma cobra traiçoeira ou outro animal qualquer.

Defender-se a gente pode... ou não?

- Pode.

- Então, leva-a. Ela poderá te ser útil.

Assim, depois de muitos abraços e adeuses, tomaram o rumo da mata

fechada. Na Colônia Teicher ficaram muitas lágrimas, orações e esperanças

de um retorno para breve.

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Cap. XI

MISSÃO

No verão, o tempo quente e seco propiciava marcha rápida. Andaram

muito. A selva densa e fechada parecia impenetrável. E não achavam

bugres. Parecia que tinham desaparecido. Ou se escondiam muito bem. Os

pés de Tatuíra, acostumados a andar descalços, não se feriam. Tinham sola

grossa, já feita pelos índios, quando fora bebê. Agripino sofria mais. Andava

de sandálias com panos e tiras de couro amarradas sobre eles. Estes

artefatos molhavam, deixavam espinhos transpassarem. As grimpas

machucavam pés, pernas, braços, mãos, às vezes, até o peito ou o dorso.

Agripino gemia de dor. Então, precisavam parar, lavar os panos e pés, deixar

secar aqueles, por folhas medicinais sobre os arranhões e as feridas. Tatuíra

queria voltar, poupar o companheiro dos sofrimentos. Agripino não

concordava.

- Deus está me pondo à prova. Devo seguir, sofrer para atingir a

santidade.

No outono, quando a chuva chegou, tornou-se mais difícil. As vestes

molhavam e tinham de seguir quase nus, enquanto as roupas secavam na

cangalha do burro de carga. Apesar de bugre e acostumado a andar nu, o

que incomodava Tatuíra eram as moscas, muriçocas, mosquitos, cabeludos,

besouros. Seu companheiro sofria mais.

A densa selva quase impedia os padres de seguirem sua missão.

Usavam a foice, o machado, às vezes, a enxada para cortar os inços, galhos,

cipós e conseguir abrir uma trilha para se deslocarem. Em geral, eram os

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burros que escolhiam o caminho para seguir adiante, principalmente quando

desciam as encostas dos morros. Os burros, na realidade, nada tinham de

burros, achavam os melhores caminhos para andar pela floresta.

A troupe encontrava todo tipo de animais silvestres: cotias, antas,

porcos-do-mato, capivaras, cobras e macacos de várias espécies, lobos-

guarás, veados, pássaros em profusão. Com onças e pumas ainda não se

tinham defrontado, mas não encontravam bugres. Parecia que tinham

desaparecido.

Quanto mais adentravam a mata, mais densa ela se tornava.

Paisagens lindíssimas descortinavam-se de vez em quando, árvores floridas,

verdes de vários tons, orquídeas, bromélias e outras flores. Era um

espetáculo constante para os olhos.

Quase sempre dormiam nas árvores, mas, de vez em quando, ao

encontrar uma clareira, arriscavam dormir no chão, protegidos por um

círculo de fogo, pelos cães e burros. O círculo de fogo tinha alguns

inconvenientes. Enchia-se de insetos: moscas, mariposas, besouros, alguns

gigantes que caíam próximos aos padres. Por isso, muitas vezes, dormiam

apenas com uma tocha bem perto de si, uma tocha em brasa que poderia

facilmente aumentar a chama. .

Certa noite, dormindo ao relento, de repente, foram acordados pelo

latido furioso de um dos cães. Os burros tentavam desamarrar-se, puxando

com força as rédeas e zurravam desesperados. Os outros cães latiram

assustados. O círculo de fogo quase se extinguira. Os padres levantaram-se

horrorizados, pegaram as tochas e procuraram pelo inimigo. A noite não era

de todo escura. Havia luar e alguns raios perpassavam através dos galhos e

folhas.

Nisto, ouviram os ganidos de um dos cães que ultrapassara o círculo de

cinzas e brasas. Chorava, como se fora atingido por algo ou alguém.

Divisaram um vulto do outro lado do fogo que se movia e fugiu por entre as

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árvores. Não conseguiram ver o que era. Só perceberam tratar-se de algo

grande.

O medo invadiu o coração dos dois padres. Naquela noite, não mais

dormiram e as rezas foram constantes.

Ao clarear o outro dia, viram apenas um rastro de sangue deixado pelo

cão que certamente servira de jantar para um felino. Tatuíra tremeu da

cabeça aos pés. Pegou a espingarda que Peter lhe deu e carregou-a no

ombro. Agripino olhou-o de forma estranha. Tatuíra percebeu o olhar

desaprovador e justificou-se:

- Estou com medo, Agripino. Estamos muito longe de qualquer ajuda. É

bom a gente se prevenir. Neste fim de mundo, somos nós os invasores. Os

animais selvagens podem nos destruir. Deus sozinho não vai nos proteger,

uma vez que invadimos a terra dos animais selvagens que também são seus

filhos. Se queremos continuar vivos, vamos nos defender.

Agripino nada respondeu. Considerava Tatuíra seu chefe.

Passaram-se alguns dias mais calmos, sem sustos. Encontraram

muitos pinhões. Colocaram uma boa quantia deles no meio de um monte de

grimpas. Puseram fogo nas grimpas e os pinhões sem casca saltaram diante

de seus olhos extasiados. Fartaram-se para valer.

Aos poucos, iam esquecendo o incidente daquela noite fatídica, mas

outro cão foi sacrificado pela picada de uma cobra venenosa. Os dias

passavam e nada de encontrar bugres. Já estavam cansados, enjoados,

pensavam em voltar até que uma tarde...

Sentados num toco a descansar, ouviram sibilar uma flecha que foi

cravar-se na coxa de Agripino. Em seguida, viram um bugre parado a uns

metros de distância, agachado, escondido atrás de arbustos, com lança,

pronto para atirar. Tatuíra pegou a arma, mirou o bugre, mas disparou para

o alto. Em seguida, gritou na língua indígena:

- Não atires a lança! Somos amigos, não lhe faremos nenhum mal.

Viemos em paz.

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A face do selvagem fez uma careta de espanto. Ouvia alguém falar na

sua língua. Além do mais, teve medo da espingarda. Já tivera contato com

brancos e vira os índios morrerem como moscas toda vez que as armas dos

brancos eram utilizadas. Saiu a correr.

- Espera aí! – falou para Agripino. - Vou atrás dele! – e, em linguagem

indígena. – Não fujas! Quero falar contigo. Sou de paz, sou de Deus.

E pôs-se a perseguir o bugre. Este corria mais rápido, acostumado com

a mata. Seguiu-o pelos galhos e folhas que balançavam depois da passagem

do índio. Mas, depois de algum tempo, Tatuíra perdeu-o. Retornou, então, ao

lugar de onde saíra.

Agripino chorava de dor. A perna ensanguentara-se, não conseguia

tirar a flecha.

- Meu caro amigo, temos de arrancar esta flecha. Aguenta firme aí que

vou puxá-la para fora. Vai doer, mas é o único jeito que temos de melhorar

teu sofrimento.

- Não! Não! Vou morrer de dor!

Tatuíra posicionou-se de forma a poder executar a tarefa. O grito de

dor do companheiro foi de cortar o coração, mas a flecha saiu, junto com

alguns pedaços de carne, enquanto Agripino quase desmaiava, coberto de

suor. Tatuíra rasgou um pedaço de suas vestes e amarrou uns panos para

estancar o sangue que teimava em sair do buraco feito. Depois, sentou-se no

toco, desanimado.

- Quando encontramos um bugre, ele te feriu e, ainda por cima, fugiu.

Que faremos? Deus, Senhor, onde estás? Virgem Maria, ajuda-nos, por

favor!

Vendo que o companheiro mal reagia, Tatuíra tentou consolá-lo.

Conversava, sentado no toco, o olhar perdido por entre as pernas:

- Pelo menos sabemos que deve haver bugres por perto. Claro, isto

significa nada para ti. Infelizmente, vens a conhecê-los da pior forma

possível. Será que estamos perto da região do Campo dos Bugres? Se assim

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for, talvez encontremos italianos por aqui. Tu sabes, né, que alguns italianos

iniciaram uma colonização por estas bandas. Vou ficar atento para ver se

enxergo sinal de fumaça saindo de alguma choupana. Aí estaremos salvos,

principalmente tu que precisas de repouso e tratamento para a tua ferida.

Agripino nada comentava. A dor o deixava inerte.

De repente, Tatuíra ouviu um farfalhar de folhas. Olhou para cima e o

que viu? Um grupo de índios guerreiros a sua frente. Conhecia seu jeito, as

pinturas no rosto e corpo. Os mais fortes da tribo eram os guerreiros.

Assustou-se por demais. “Estou perdido”, pensou. Pegou a arma e quis

atirar. Os bugres, em coro, gritaram: uhu... uhu... uhu. Tatuíra lembrou-se,

então, de sua missão, de Deus, da Virgem Maria e raciocinou: estou pronto

para o sacrifício em nome da Santa Igreja Católica. Fechou os olhos e

esperou o golpe fatal. Mas o golpe não veio. Em vez disso, ouviu vozes. Um

dos selvagens, que devia ser o líder, falou em kaigang:

- Homem ferido precisa do pajé!

Tatuíra sentiu murchar a tensão dos músculos. Os bugres tinham vindo

para ajudá-los. Não falavam muito, apenas uns sons guturais, mas ele

conhecia a linguagem deles. Sentiu-se feliz, tão feliz quanto se sentira na

infância, quando a “Mutta Walkíria” falara com ele na sua língua, ao ser

encontrado pelos brancos, depois de perder-se de sua tribo.

Baixou a arma e concordou:

- Sim, ele precisa de cuidados.

Os aborígenes estranharam o fato de ele entender e falar a sua língua.

- Os brancos amansaram vocês? Então, são nossos inimigos. – falou o

líder.

- Não. Não índios amansados. Índios que ensinam brancos. Índios

pajés, índios padres. – Logo se arrependeu de ter falado a palavra padre. Os

bugres não sabiam o que ela significava.

Fizeram algumas perguntas, às quais Tatuíra respondia com alegria.

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Agripino mal reagia. A dor o deixava sem reação. Os bugres

improvisaram uma maca com galhos e cipós. Em seguida, colocaram-no

sobre ela e saíram, arrastando-a pelo mato. Convidaram Tatuíra para

acompanhá-los e a troupe deslocou-se sem maiores dificuldades.

Depois de andarem um bom tempo, chegaram a uma caverna

escavada no chão pelos próprios selvagens. Servia de moradia e abrigo

contra os perigos da floresta, o frio e a chuva. A caverna ou buraco escavado

no chão era grande, espaçoso. Entrava-se acocorado por um pequeno buraco

que, depois, abria-se largo e alto. Podia-se ficar em pé, sem tocar no solo de

cima. O local era morno, seguro e agradável. As paredes de terra aqueciam o

local. Levaram Agripino para dento e um curandeiro ocupou-se dele com

ervas e infusões.

Tatuíra conversou um bom tempo com os índios que se mostraram

bastante amigos e impressionados com tudo que falava, mas compreendiam

quase nada. Tatuíra percebeu que entendiam tanto quanto uma criança de

cinco a sete anos. Ingênuos, broncos, não conseguiam captar o que

significava Deus, na realidade. Imaginavam-no um índio poderoso, pai

biológico de Tatuíra e mais capaz que o pajé. Tinham desejo de vê-lo de

perto.

Depois de conversar por algumas horas, cansou e pediu repouso, no

que foi prontamente atendido. Tatuíra dormiu por muito tempo, como uma

criança, sem acordar. Fazia meses que não dormia tão bem. Os bugres

falavam:

- Deixem o filho do deus dele dormir!

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Cap. XII

A ONÇA PRETA

Tatuíra e Agripino permaneceram um bom tempo com aquela tribo.

Agripino recuperou a saúde com as ervas do pajé. O outono passou e o

inverno entrou com toda a sua frieza. Caça não faltou. Tinham comida e

proteção. O inverno, bastante rigoroso nesta região, não lhes trouxe maiores

problemas. A caverna dos bugres mantinha-os aquecidos.

Difícil era fazer com que os silvícolas entendessem a missão dos

padres, mais fácil era eles se adaptarem aos costumes indígenas, à vida

simples, apenas preocupando-se com alimentação e sobrevivência. Não

tinham vergonha de andarem nus, não tinham dogmas, nem sacramentos,

regras de moral, não casavam. Não tinham apenas uma mulher, trocavam,

quando queriam, tanto eles quanto elas, sem regras, sem culpa, gerando

muitos filhos. Eram bons com esses. Carinhosos, devotos, ensinavam-nos a

caçar, pescar. Os meninos aprendiam a tratar bem as mulheres e as

meninas. As meninas aprendiam a servir os homens e os meninos e

esperavam que eles as protegessem dos perigos da selva.

Quando alguém morria, encomendavam sua alma aos deuses e

cultuavam a ideia de que a pessoa voltava em forma de animal ou planta. E

contavam muitas lendas. As doenças vinham da maldade de deuses

malignos, os quais eram temidos.

De vez em quando, Tatuíra e Agripino tentavam incutir-lhes algum

ensinamento cristão, mas sentiam que o difícil era os bugres entenderem o

que queriam dizer. Um dia, alguém disse:

- Eu já vi o deus de vocês!

- Como assim? Onde? Quando?

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- Uma vez que passamos perto de uns campos. Ele estava montado

num cavalo forte, mesclado de branco e preto. Deus vestia roupa bonita,

com bolinhas brilhantes. Estava sentado em cima de uma coisa que também

tinha brilhos, como se fossem raios de sol.

Tatuíra entendeu o que ele não entendia. Deus, para ele, era um

homem, um homem de autoridade, montado num cavalo encilhado com

enfeites brilhantes. Deus devia ser concreto. Os índios não conseguiam

entender o abstrato. Ainda estavam na fase do concretismo, como as

crianças pequenas.

Tatuíra sentia-se em casa. Pensava até em abandonar a vida de

sacerdote e ficar com os índios. A vida simples e pacata fascinava-o. Não

tinha vontade de mudar o status quo deles. Era melhor deixá-los seguir

como estavam acostumados. Se fossem viver entre os brancos, certamente

se dariam mal. Certamente seriam convencidos por um general a lutar

contra outros inimigos brancos. Os silvícolas pensariam que estavam

obedecendo a Deus. Seriam explorados, maltratados, mortos. Era melhor

deixar que continuassem com a vidinha selvagem, seus costumes, suas

crenças.

Agripino, no entanto, sentia-se como um peixe fora da água. Depois de

curado, seu desejo era voltar o quanto antes.

As mulheres assediavam-nos, pois não entendiam o porquê do celibato

dos visitantes. Tatuíra conseguia driblar-se bem, falando a língua delas.

Agripino não sabia como se livrar, sem magoá-las.

Num desses raros dias de sol do inverno, todos os bugres saíram da

toca. As crianças brincavam ao sol, as mulheres andavam em grupos,

catando gravetos para fogo, outras buscavam folhas e raízes medicinais,

outras ainda catavam os piolhos da cabeça uma das outras.

Os homens saíram em busca de alguma caça, Tatuíra e Agripino com

eles. Dividiram-se em grupos de três. Cada grupo tomou outra direção para

não espantar as caças. Agripino e Tatuíra seguiram com aquele mesmo que

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flechara o padre, quando os encontrou. Seguiam rapidamente, desviando

galhos, troncos, grimpas. Agripino, como sempre, era o mais lerdo.

Em dado momento, o índio disse:

- Vocês me atrasam muito. Fiquem aqui. Volto, assim que conseguir

caçar alguma coisa.

Obedeceram. Estavam mesmo cansados. O outro, jovem e guapo,

acostumado a correr pelo mato, tinha força e agilidade nas pernas.

Passou algum tempo. De repente, ouviram um barulho diferente, como

passos. Folhas e galhos mexiam-se a uns vinte metros de distância à sua

frente. O que seria? Imediatamente, veio-lhes à mente, a visão de um índio

inimigo ou um felino. O medo fez-se presente. Tatuíra empunhou a arma.

Preparou-se para algum ataque, mas não via nada, apenas ouvia passos:

clap... clap... clap... O que seria? De repente, surge, de um morrinho

próximo, um animal enorme, negro que se joga sobre eles. Agripino

vociferou:

- Aaaaaiiiiii!!!

Tatuíra atirou, mas o bicho continuou na direção deles e tombou bem

ao lado de Agripino que se jogou para o outro lado, num átimo, o horror

estampado no rosto. Os homens correram por alguns minutos, mas, logo em

seguida, Tatuíra segurou o braço do amigo.

- Escuta! Ela está gemendo! Ela foi atingida. Não precisamos correr.

Vamos esperar! Quero vê-la de perto.

Escutaram por um bom tempo. Ela gania, chorava, urrava num gemido

forte, tristonho, um animal grande ferido em sua potente força.

- Que urros horríveis! Eu não quero vê-la!!! Vamos embora! Ela quase

me pegou! É horrível! Ela ainda pode nos atingir com suas garras. Não vou

para lá, de jeito nenhum!

- Não! Não! Espere! Nunca vi uma onça preta de perto. Quero vê-la!!

- Tu és doido. Deixa este bicho! Vamos embora!

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- Vai tu, se tens tanto medo. Eu quero vê-la! É uma oportunidade

única. É uma criação de Deus e deve ser muito bela.

Agripino tremia, mas acompanhou o amigo. Estava tão apavorado que

não conseguia raciocinar direito e tinha mais medo de ficar sozinho que de

seguir a loucura do companheiro.

Aos poucos, o gemido do felino foi diminuindo até que cessou por

completo. Os homens voltaram ao local do abate.

Uma onça preta, enorme, pelo reluzente, olhos afogueados, jazia

morta sobre o pedacinho de grama que a acolhera. Tatuíra admirou-a.

- Olha, Agripino! Não é linda? Que bicho maravilhoso Deus criou. Olha

que pelo reluzente! E a cor! Linda! Preta! Tão preta que parece azulada! É

uma obra prima de Deus!

- Pena que a gente tenha de matá-la para não ser comido por ela.

Olha, Tatuíra, olha. – falou Agripino, admirado. - Ela não morreu com o tiro.

Ela tem uma lança cravada no peito.

Tatuíra aproximou-se mais e descobriu uma verdade antes não

percebida. O animal não fora atingida pelo tiro, mas por uma lança. Na

confusão e no medo que se instalara no coração dos padres, nem tinham

percebido que quem os salvara da onça fora um bugre que perseguira a onça

e a abatera antes que ela saltasse sobre os padres. Ele estava parado sobre

o morrinho, as pernas abertas, outra lança nas mãos erguidas para o alto e

os olhava. Comportava-se como um guerreiro vitorioso, como de fato era.

- Paguei a minha dívida contigo. – gritou do alto o bugre para Agripino

que não entendeu a linguagem. – No início, machuquei-te, mas, agora,

salvei a tua vida.

Agripino correu até ele e ajoelhou-se, em sinal de gratidão. O bugre

não entendeu o gesto. Desceu do morrinho. Fez uma maca para a qual pediu

a ajuda dos padres. Colocou a onça sobre ela. Os sacerdotes ajudavam, mas

tremiam de medo. O bugre conduziu o seu troféu até a aldeia. Foi recebido

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com festas e glórias, o que colocava o guerreiro no mais alto grau de

hierarquia. Acima dele, só o pajé e o cacique.

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Cap.XI

ASSALTO

Enquanto Catarina, o senhor Casares e os netos deste dirigiam-se à

Colônia Teicher, Miguel curtia a solidão. Acompanhavam-no apenas os peões

e os serviçais da casa. Quando se sentava à mesa para tomar o café da

manhã, os rostos sorridentes dos filhos não estavam para dizer bom-dia,

nem o do sogro, nem o de Catarina, apesar dos ranços dela, nos últimos

tempos. Pensava neles distantes, viajando, a chegada na Colônia Teicher.

Que saudade! Que saudade dos irmãos, da mãe, dos sobrinhos, dos animais,

vacas, bois, cães, da terra, de tudo. E condenava-se: por que não fui junto?

Para diminuir a saudade dos familiares, seguidamente cavalgava até

Rio Pardo. As chinas faziam-lhe companhia, carinho e satisfação sexual.

Certa tarde, ao anoitecer, enquanto ausente, bandidos invadiram a

fazenda Santo Cristo. Os peões acabavam de entrar no galpão, quando isto

aconteceu. Recolhiam-se para o costumeiro chimarrão, antes de jantarem e

se recolherem para um sono reparador depois de exaustivo dia de trabalho.

As mulheres, na casa, tinham desfiado charque e cozinhavam carreteiro.

Preparavam o jantar para os peões. Tudo estava quase pronto. Em seguida,

levariam o panelão ao alojamento dos peões.

Nisto, chegaram os bandidos. Atiravam para o alto. Gritavam palavras

de ordem. Apearam. Arrancaram das varas o charque que secava ao sol.

Enfiaram a carne nos alforges. E exigiam serventia:

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- Queremos comida servida na mesa do patrão e muitas coisas para

levar depois!!! Se não nos atenderem, mataremos alguns e carregaremos as

mulheres, também a mulher e as filhas do patrão.

Os peões, no galpão, escutaram estáticos, como estátuas. Pegos de

surpresa, não souberam como reagir prontamente. Acostumados a obedecer,

buscavam com os olhos o patrão e o capataz que não se encontravam entre

eles.

Além de Rosário, havia apenas outra mulher, na casa grande. Esta

correu a esconder-se, atrás de uma escada que havia no quarto dos patrões.

- Então, cadê todo mundo? – vociferou um dos bandidos. Depois,

sussurrou aos comparsas: - É bem como nos informaram. O patrão velho

viajou, o novo deve estar divertindo-se com as chinas de Rio Pardo. Só

ficaram os peões medrosos e as empregadas da casa.

Um dos peões, no galpão, sussurrou:

- Quantos são?

Outro espiou por uma fresta.

- Ih! São mais que os dedos da minha mão.

Um dos mais velhos aconselhou:

- Melhor fazer o que eles mandam. O patrãozinho detesta sangue. Se

nós reagirmos, muitos de nós podem morrer.

- Não, nada disso! Não somos covardes! – falou um jovem.

O nervosismo tomou conta. Alguns pegaram suas armas. Nesse

instante, ouviram uma voz feminina:

- Por favor, não atirem mais! O patrão não está, mas eu vou servi-los,

senhores! Podem entrar! Vou servir algo para os senhores comerem, mas,

por favor, não machuquem ninguém. Daremos tudo o que pedirem,

senhores!

Era Rosário. Os bandidos debocharam:

- Eta, patrão covarde! Manda a empregada velha, desdentada, feia,

para nos receber.

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- É verdade! O patrão está em Rio Pardo.

- Ô veia, manda uma china bonita nos servir!

- Entrem, senhores, por favor!

- Oh! É velha, mas gentil. Entremos, pois!

Os peões não gostaram nem um pouco do que Rosário fazia, mas não

intervieram. Era melhor ficarem quietos e se prepararem para a defesa.

Os bandidos entraram e se banquetearam com o carreteiro. Comeram

o que tinha sido feito para os peões. Não satisfeitos, pediram vinho, cachaça

e outros quitutes. Rosário trouxe tudo o que pediram. Comeram, beberam,

riram, lambuzaram-se como porcos. Depois, procuraram pela mulheres.

Onde estavam? Onde se esconderam? Entrementes, a outra tinha

conseguido fugir para longe da casa e se escondera no mato próximo.

Os bandidos, violentos, desejosos de mulher, puxaram os cabelos de

Rosário, empurraram-na para todos os lados, derrubaram-na, bateram no

rosto, mas ela nada falou:

- Sabemos que tem mulher nova por aqui. Tu, velha, não conseguiria

fazer tudo o que comemos sozinha. Onde estão?

- Já disse que não tem. Meu patrão só tem a mim. Podem me matar

que não vai aparecer mulher jovem. Não tem aqui.

Nesse meio tempo, os homens do galpão tinham se organizado e os

bandidos ouviram um tiro. Mais que depressa, pegaram suas garruchas.

Aquele que parecia o chefe, ordenou:

- Vamos embora, macacada! Acho que vem encrenca por aí! Peguem o

que puderem!!

Pegaram algumas coisas, correram para a rua, montaram os cavalos e

se mandaram. Já escurecera e os peões atiravam a esmo. Ouviu-se o tropel

dos cavalos que se iam afastando.

Os peões ainda rastrearam os caminhos com lampiões, mas nada

encontrando, retornaram aos seus lugares. Como estavam muito nervosos,

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não voltaram para os galpões. Ficaram no pátio, conversando uns com os

outros. Mantinham-se alertas para o caso de os bandidos retornarem.

Entretanto, longe dos olhares, a dois quilômetros dali, uma outra

luta inglória acontecia. Ao passar pela cabana da índia velha, um dos

bandidos cismou que poderia haver mulher jovem atrás daquelas paredes de

xaxim, onde tremeluzia uma fraca luz. Afastou-se do grupo, apeou e

adentrou a residência. Logo, viu o olhar aterrorizado da idosa e uma linda

jovem, Sem pensar duas vezes, jogou-se sobre a garota. Em poucos

segundos, a menina estava no chão, debatendo-se como podia. Ante a força

bruta do homem, ela pouco podia. Não conseguia defender-se. Mordeu-o,

chutou-o, mas não o vencia. Lágrimas de incompetência e horror saltavam

dos olhos feridos.

A mãe correu para a parte usada como cozinha, pegou um facão,

correu para cima do homem e, com toda a força que tinha, deu um grito

gutural horrível e cravou o facão nas costas do agressor. Ele deu um grito de

dor, tentou erguer-se, cambaleou e caiu sobre o corpo da jovem,

mortalmente ferido, botando sangue pela boca.

A moça, cujo apelido era Mocinha, embaixo do pesado corpo, mal

conseguia respirar, quase desmaiou. A mãe puxou o corpo do homem de

cima do corpo da filha, embora quase não tivesse forças para tal feito.

Quando Mocinha conseguiu desvencilhar-se daquela coisa fétida,

ensanguentada, molambenta, parecia não conseguir manter-se sobre as

próprias pernas. Chorava, vomitava, tremia. A mãe falou:

- Vamos, filha! Temos que tirar essa imundície de dentro da casa.

Com muita garra e persistência, depois de muito esforço,

conseguiram tirar o corpo de dentro da casa. Mas não sabiam o que fazer,

como agir. Por fim, a Noca sentenciou:

- Pelo menos, ele não conseguiu te fazer nenhum mal! De onde

saiu este traste? Como veio parar na nossa casa? Uma coisa é certa: este

monstro está morto. Temos de enterrá-lo.

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- Mãe... – choramingou a moça, num fio de voz. – Não temos

força para arrastá-lo.

- Isto é verdade! Temos de pensar. – Depois de algum tempo. - É

melhor falar com o patrão e deixar que ele nos ajude. Ele vai saber onde

enterrar este infeliz. Vai lá na casa grande e fala com ele.

- Mãe, eu não consigo. Estou apavorada. Está escuro demais. Não faz

isto comigo!

A mãe foi enérgica. Pegou-a pelo braço, sacudiu-a e gritou:

- Filha, vai! Nós não temos outra alternativa! Ou queres ficar com o

morto?

- Não! Não! Não! Pelo amor de Deus, com ele não!!!

- Então, vai!

Correndo, chorando, atropelando-se, caindo, erguendo-se, caindo e

erguendo-se de novo, a moça foi. Ao chegar perto da casa grande, viu os

lampiões acesos, os peões no pátio, a agitação toda em torno dos ladrões.

Assustaram-se com a chegada da moça, pensando tratar-se de ladrão.

Quando os peões a viram, um dos peões falou:

- Mas é a Mocinha, filha da Noca.

Outro perguntou a ela:

- Mocinha, que fazes aí, menina, no meio da noite? É perigoso! Sabias

que ladrões invadiram a fazenda?

Ela somente sacudiu a cabeça em sinal negativo.

- Mas já foram embora... E tu? Que queres? Por que andas sozinha no

escuro? Endoidou?

- Queria falar com o patrãzinho.

- A esta hora? ... Ele não está.

Rosário apareceu, os cabelos em desalinho, o rosto machucado,

hematomas nos braços. Mocinha apavorou-se mais. Apesar da violência para

com ela, Rosário conseguia administrar seus sentimentos.

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- Entra, menina! O patrãozinho não está. Tu podes esperar dentro de

casa. É perigoso ficar na rua, com estes bandidos rondando por aí.

Rosário logo percebeu que a moça não estava bem, nervosa, chorosa,

tremelica, nem conseguia raciocinar com clareza.

- Aconteceu alguma coisa? O que aconteceu?

A menina ficou muda.

- O que aconteceu? Fala, guria!

Mas a moça não conseguia falar. Estava em estado de choque.

Depois de algum tempo, Rosário arrumou uma cama e disse para ela

deitar e dormir, pois percebeu que algo de muito ruim acontecera à moça.

Erci deitou, mas não dormiu, nem falou. Pela sua mente, só passavam as

cenas horríveis anteriormente acontecidas. Ficou deitada, sem reação.

A mãe, na choupana, esperou em vão. Temendo pela vida da filha,

também correu em direção à casa grande, mas, ao ver os lampiões e

burburinho dos peões temeu e não se aproximou. Escondida na noite e nos

arbustos, achegou-se e escutou a conversa. Interou-se de tudo, inclusive do

fato de a filha nada ter comentado sobre a tentativa de estupro e a morte do

bandido. Sentiu que a filha ainda era muito jovem para conseguir safar-se da

emoção que o algoz lhe causara.

Afastou-se quietinha, mas não voltou ao rancho. Esperou a noite

passar, ao relento, encostada num tronco de árvore.

Na casa grande, aos poucos, os ânimos foram se acalmando. peões

dirigiram-se ao galpão para dormitar um pouco. Mocinha permaneceu na

cama que Rosário lhe indicou, mas não dormiu. O pavor deixou-a de olhos

abertos toda a noite.

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Cap. XII

FASCINAÇÃO

Miguel retornou pela manhã e recebeu a notícia do assalto. Como

levara o capataz com ele, imediatamente sentiu-se culpado. Não deveria ter

deixado a fazenda sozinha, apenas nas mãos de Rosário e os peões.

- Levei o capataz comigo para que eu estivesse protegido. - desculpou-

se para si mesmo, em silêncio. – Mas não posso deixar nunca mais a fazenda

sozinha.

Depois de ouvir todos os comentários sobre o assalto e as peripécias

para se livrarem dos bandidos, elogiou a atitude de todos e prometeu

reforçar a segurança da fazenda. Quando tudo parecia resolvido, Rosário

emendou:

- Para a Mocinha, a filha da índia Noca lá do rancho do matinho,

também aconteceu uma coisa ruim. Logo depois que os bandidos se foram,

ela veio até a casa da fazenda procurar pelo senhor. Estava apavorada com

alguma coisa, tremia, chorava, mas não falava. Como o senhor não estava,

eu disse para ela ficar aqui, mas não fala, não diz o que tem, só olha para a

gente. Parece um bichinho assustado.

- Onde ela está?

- Ta no meu quarto. Deixei que ficasse lá.

- Fez bem. Diz pra ela vir até a mim.

Dirigiu-se ao quarto que, às vezes, servia de escritório. Em seguida, a

moça apareceu. Miguel encantou-se imediatamente com sua beleza. Era

pequena, mais magra que gorda, o rosto de pele um pouco bronzeada,

torneado por longos cabelos negros, na testa uma franjinha discreta e os

olhos, os olhos negros, quase oblíquos a olharem para ele com jeito meigo,

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mas assustado. Miguel não pôde deixar de olhar para os lábios, carnudos,

como a lhe fazerem um convite para beijá-los. Ficou por longos segundos a

olhar a formosura e meiguice da moça. Mocinha nada dizia. Ainda estava em

choque. Miguel pensava: era esta a garota que o pai queria que eu pegasse

para mim. É linda mesmo. Um naco fascinante. Dá vontade de pegar, beijar,

acariciar. Sentiu o sangue esquentar nas veias. O pênis inchou, ergueu-se e

teve de se controlar para o corpo não se jogar sobre ela.

Percebeu que se excedia na contemplação e falou depressa, antes que

fizesse uma bobagem:

- E então, querias falar comigo. Que se passa?

Mocinha não conseguia abrir a boca.

- Vamos, menina, fala!... Se não falares, tens que sair da minha

presença.

Assustada, a moça sussurrou:

- Senhor Miguel, aconteceu uma coisa horrível!!!!

- Vamos! Conta-me, então.

Mocinha desatou a chorar. Miguel deixou que chorasse, isto lhe

provocava mais ternura. De repente, foi ríspido. Aquela cena mexia demais

com suas emoções.

- Tu vieste aqui para chorar, Mocinha?

Ela respondeu num átimo:

- Minha mãe matou um homem.

- O quê???????????

Miguel ergueu-se da cadeira, onde estivera sentado. Todo o êxtase que

sentia desvaneceu-se no mesmo instante. Era como se tivessem jogado um

balde de água fria encima dele.

- O que tua mãe fez???

- Foi para me defender... – e contou-lhe todos os fatos, com detalhes,

entre soluços. Por fim, pediu-lhe ajuda para se desfazer do corpo.

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Miguel escutou, entre perplexo e atarantado. Sentou-se e ergueu-se da

cadeira várias vezes. Baixava a cabeça. Erguia-a. Passava a mão pelos

cabelos. Pensava. O que fazer? Como agir? Não podia deixar as duas

mulheres enterrarem o infeliz, sozinhas, pois nem forças físicas teriam para

isso. Além disso, como se sentira atraído pela rapariga desde o início, queria

ajudá-la.

Por fim, decidiu-se:

- Mocinha, tu ficas na casa. Vou mandar buscar a Noca. Vocês ficam

com a Rosário por uns tempos. Vocês podem ajudá-la nas lides da casa. Vou

mandar fazer camas para vocês. Não é bom ficarem lá no rancho. Pode

algum bandido procurar pelo falecido.

- Quem?

- Algum parente, amigo, outros bandidos. Com este tipo de gente é

bom tomar cuidado!

Mocinha assustou-se de novo e perguntou:

- E o morto?

- O morto mando enterrar, bem longe daqui, para que o seu espírito

maligno não nos venha incomodar.

Aí, Mocinha esboçou um leve sorriso que Miguel apreciou. Conseguira

fazer a moça sorrir.

E foi assim que Mocinha e a mãe passaram a morar na casa grande.

As mulheres adaptaram-se rapidamente a nova residência. Ajudavam

no que podiam nas lides da casa. Quem ficou feliz foi Rosário, menos

trabalho para ela.

Passadas uma duas semanas, o horror, aos poucos, ia dando margem

a outros sentimentos mais agradáveis. Miguel não mais fugiu para Rio Pardo

para desafogar sua solidão e começou a se interessar cada vez mais pela

moça que abrigara em sua residência.

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As atitudes dela agradavam-no sobremaneira. Comparava com as

chinas de Rio Pardo, suas experiências no trato com os homens, a falsidade,

a malandragem, os perfumes baratos. Via a juventude, a pele fresca, o jeito

ingênuo, a pureza do olhar, a meiguice e humildade de Mocinha no trato

diário. Tudo isto o deixava fascinado pela jovem índia-mestiça.

Quando a encontrava, sentia-se esquisito, atraído, um desejo quase

incontrolável de beijá-la, estreitá-la nos braços, possuí-la. Percebia, também,

que ela o olhava de modo diferente de todas as outras pessoas.

- Acho que ela está apaixonada por mim.

Um dia, andando pelos arredores, viu-a na margem do riacho,

abaixando-se para lavar roupa. Parou para observá-la melhor. Abaixava-se

para molhar a roupa. Erguia-se para esfregar. Voltava a abaixar-se para

enxaguar. Voltava a erguer-se e torcia a peça com as mãos. Era um quadro

que o excitava por demais. Aproximou-se, sem ser percebido:

- Bom-dia, Mocinha!

A moça deu um salto para o lado. Olhou-o, assustada, mas, quando viu

quem era, deu um sorriso e encolheu-se timidamente.

- Bom-dia, patrão! Desculpe ter me assustado.

- Não se desculpe. O culpado fui eu, por chegar tão de repente.

Ela nada falou. O seu desejo era fugir. A presença dele a intimidava.

- És muito bela, Mocinha. Estive admirando a tua beleza.

Ela levantou uma das mãos, no desejo de tapar o rosto, esconder-se

do próprio semblante e sussurrou:

- Patrão...

Miguel pegou-a pela mão e acariciou os dedos da moça. Achegou-se.

Pegou os cabelos dela, alisou-os, num desejo quase incontido de tomá-la

para si. Mocinha tremia.

- Tens medo de mim, Mocinha?

- Não, patrão, não.

- Por que tremes?

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- Não sei.

Acariciou o pescoço dela, puxou-a para perto de si. A rapariga, quase

menina, não reagiu. Nada faria que desgostasse o patrão, mas sentiu que lhe

agradavam as carícias, um ardor desconhecido, incontrolável tomando conta

de todo o corpo.

Miguel recompôs-se. De repente, sentiu-se larápio, maldoso. Destruía

aquela pureza que tanto o fascinava. E falou, enquanto se afastava:

- Continua o teu trabalho, Mocinha. Vou continuar o meu... mas tu és

muito linda!

Mocinha, descontrolada, continuou a tarefa, enquanto o sangue

latejava em seu corpo. E murmurava para si mesma: que tenho? O patrão

me deixa neste calor, neste nervosismo todo. Tenho que cuidar para não me

aproximar dele. Não sei como agir.

A cada dia que passava, mais o desejo de Miguel pela moça

aumentava. Mas não queria tomá-la de qualquer jeito como um homem

qualquer. Dizia para si mesmo que devia respeitá-la para ser respeitado por

todas as pessoas que viviam na fazenda. Entretanto, um dia, esbarrou nela

no corredor da casa. Foi o que bastou para perder o controle. Tomou-a entre

os braços e a beijou com ardor. Mocinha, sem saber exatamente que fervor a

atormentava, correspondeu ao beijo e o abraçou com força. Miguel sentiu-se

perdido. Quando, finalmente, conseguiu raciocinar um pouco, disse-lhe:

- Hoje à noite, quando todos estiverem dormindo, vem ao meu quarto!

À noite, escutou os passinhos descalços, suaves aproximando-se do

quarto. Quando a ouviu abrir a porta do quarto, sentiu-se culpado. A garota

obedecia ao seu pedido. Seria por atração a ele ou seria, apenas, por

obediência ao patrão?

- Meu Deus! Que fiz? Vou destruir a pureza deste anjo?

Mas, em seguida, o egoísmo falou mais alto:

- Ah! Se não for eu, será outro. Melhor ser eu mesmo a saborear este

quitute.

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Mocinha chegou de mansinho, tímida, tremelica. Miguel a agarrou com

todo o ardor a tomar conta do seu corpo. Acariciou-a tanto que a moça se

sentiu atormentada e começou a chorar. Não sabia que emoção era essa que

tanto a envolvia, mas Miguel conseguiu acalmar-se e tratou-a com muito

carinho, o que, aos poucos envolveu mais e mais a moça.

E foi assim que Mocinha e Miguel começaram a ter um caso de amor

que se intensificou com o passar dos dias. O patrão adorava a moça e a

moça idolatrava o patrão. A dupla iniciou com cuidado para que ninguém

descobrisse o caso. Aos poucos, porém, o desleixo foi tomando conta até que

todos na fazenda sabiam do que acontecia com os dois. De vez em quando,

a mãe, Noca, e Rosário alertavam a moça:

- Cuidado, Mocinha! Tu estás te expondo demais! Quando a patroa

voltar, tu vais sobrar e sabe-se lá o que vai acontecer.

- O patrão me ama! – revidava.

- Patrão nunca ama empregada! Apenas se deita com ela!

- Ah! Não quero pensar nisto. Eu gosto muito dele. Ele é bom para

mim. Eu sou feliz.

- Sim, agora, enquanto a patroa está longe!

- Ela é que vai dançar!

- Filha, como estás enganada! Tu vais sofrer muito, isto sim.

Um dia, na hora do almoço, quando já sentara à mesa, Miguel falou:

- Rosário, busca mais três pratos!

Rosário estranhou:

- Três pratos? – E ficou parada, sem entender.

- Sim. Três pratos. – e convidou: - Vocês vão almoçar comigo!

- Como? – As mulheres estranharam, mas obedeceram. O patrão

mandava, elas obedeciam. Trouxeram os pratos e talheres.

- Noca, Rosário, Mocinha, sentem-se na mesa comigo! Não precisam

comer na cozinha! Façam-me companhia!

- Mas... patrão... – iniciou Rosário.

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- Vamos! Podem sentar-se! Sou eu que estou convidando.

As mulheres, timidamente, assentaram-se, mas quase nada comeram.

Estavam envergonhadas. Nunca comiam com os patrões. Faziam as refeições

na cozinha. A única que se sentiu mais à vontade foi Mocinha. Sabia que

aumentava seu espaço na casa.

O tempo passava e ela sentia-se cada vez mais à vontade. Tomava até

ares de patroa. As mulheres mais velhas incomodavam-se com isto. Noca

comentava com Rosário:

- Era só o que faltava. Parece até que sou empregada da minha filha.

- Não é para tanto, Noca. Mocinha sente-se como uma rainha. Deixa

ela curtir a boa vida que tem agora, porque, infelizmente, para ela e para ti

não vai durar.

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Cap. XIII

VISITAS IMPORTANTES

A viagem de Catarina com o sogro, os muitos filhos e um

empregado foi longa e cansativa. O inverno já se tinha ido e os dias de

primavera trouxeram muita chuva. Os caminhos, que eram mais trilhas que

estradas, enchiam-se de barro, as carroças afundavam na lama e a marcha

dos burros tornava-se lenta. Muitas vezes, tiveram de parar e abrigar-se

embaixo de árvores frondosas que impediam a vazão dos grossos pingos que

caíam do céu.

Catarina viajava taciturna, quieta. A algazarra era apenas das

crianças. O empregado, montado num cavalo, ia na frente, junto com os

cães farejadores, fazendo o papel de batedores, cuidando para que nenhum

animal indesejável atacasse a troupe.

O sogro, sentado ao lado de Catarina na carroça, conversava de

vez em quando. Sabia que Catarina decepcionara-se e muito com o marido.

Sentia-se culpado. Fora ele que levara o filho para a farra na casa das

chinas.

Faltava em torno de meio dia para chegarem à Colônia Teicher.

De repente, na curva da estrada lá na frente, caminhava um andarilho. Ao

chegarem mais perto, viram que era um padre. Ele parou e olhou para trás.

Em seguida, gritou:

- Catarina!!!!!!!! És tu mesma????

Os olhos da mulher extasiaram-se. Era Tatuíra. Parou os burros.

Saltou da carroça. Correu ao encontro dele. Ele também correu ao encontro

dela. Abraçaram-se longamente. As crianças e o sogro permaneceram na

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carroça, sem nada entender. Casares quase nada entendeu da linguagem a

seguir, pois falavam na língua alemã.

- O que fazes na estrada, Tatuíra?

- Que bom te ver, Catarina! Mas e tu, de onde vens?

- Venho de Rio Pardo. Vou visitar a Colônia Teicher, o mano Peter e

todo o resto da turma.

- Que feliz coincidência! Deus seja louvado! Também estou indo para a

Colônia antes de voltar para o seminário.

- De onde vens?

- Venho da selva. Fui indicado para catequizar os bugres que ainda são

selvagens.

- Catequizar os bugres? Coitadinhos deles! Devem ter ficado muito

atrapalhados. Vem! Vem conosco na carroça! Podes, então, descansar estes

pés que devem estar doloridos de tanto andar.

Catarina apresentou o viajante aos outros integrantes da carroça.

Todos o saudaram com respeito e admiração. Padres eram vistos pelas

crianças como um fenômeno, um santo, entretanto, em seguida todos se

sentiram à vontade, pois a conversa e a alegria da mãe e do desconhecido

contagiaram a todos. As crianças viram e ouviram a mãe rir e se alegrar,

atitudes que há muito não percebiam nela.

Os burros continuaram seu trajeto. Catarina pediu:

- Então, estavas na selva? Conta-me! Conta-me como foi. Quanto

tempo estiveste lá? Por onde andaste?

- É uma longa história, irmã. Há muita coisa para contar. Meu

companheiro e eu quase fomos mortos, uma vez por um bugre, outra vez

por uma onça.

- Ah, é???????????? Conta, conta como foi. – gritaram as crianças,

curiosas. Bugre e onça eram as espécies mais temidas na época.

- Quietas, crianças! – falou Catarina. – Deixem o tio falar. Foste com

um companheiro. Onde está ele?

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- Foi direto para o seminário. Eu resolvi passar primeiro em casa,

visitar meus parentes.

A carroça seguiu o caminho, lentamente, enquanto Tatuíra entretinha a

família com suas histórias. As crianças estimulavam Tatuíra a falar mais,

cada vez que cessava um relato. Ouvidos atentos, deliciavam-se com os

pormenores da façanha: a dificuldade de locomoção na selva, os diversos

tipos de animais selvagens, as cavernas típicas, onde os bugres moravam, a

aparência destes, a linguagem, as crenças. Havia muito assunto para

entreter os viajantes.

Chegaram na Colônia ao entardecer. O alvoroço foi geral. Os primeiros

a perceberem a chegada da visita foram os cães. Espantaram galináceos que

se preparavam para dormir e tentavam subir nos galhos próximos da casa.

Até porcos tiveram de abrir caminho para os cães que latiam e corriam em

direção aos que chegavam. Os olhares dos adultos, cansados de um dia

inteiro de trabalho, viram a carroça descendo a ladeira com os burros a

trotar.

Ao notarem que eram Tatuíra, o senhor Casares, Catarina e os filhos

desta, a alegria foi geral. Correram ao encontro dos visitantes. Estes mal

davam conta dos abraços. Alguns dos mais novos na Colônia mantinham-se

à distância, pois não entendiam o motivo da euforia. Assim, também, certas

crianças. Escondiam-se atrás das amplas saias das mães. Peter parecia o

mais feliz de todos. Abraçou Catarina, longamente. Notou a ausência de

Miguel, mas nada comentou. Abraçou Tatuíra, comovido.

- Então, os bugres te deixaram voltar!

Depois, foi a vez do senhor Casares e das crianças. Com essas,

comentou:

- E o papai Miguel, onde está?

Catarina sentiu como que um vácuo no ar, o qual logo foi desfeito por

Miguel avô:

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- Alguém tinha de ficar na fazenda para cuidar dos negócios. Ele foi o

indicado.

- Ah! – surpreendeu-se Peter. E convidou: - Vamos entrar. Entrem!

Entrem! A casa é de vocês. Vamos todos tomar um bom banho e depois

jantar.

Prepararam uma janta especial. Martin pegou a espingarda e,

como tinha boa pontaria, da varanda mesmo abateu algumas galinhas velhas

que sacolejavam as barrigas perto do terreiro da casa. Este ritual só era feito

para visitas importantes.

Enquanto a janta era feita, os hóspedes puderam tomar banho numa

tina, pois que ainda era muito frio para lavar-se no riacho próximo. Mesmo

assim, o senhor Casares e alguns meninos dirigiram-se ao riacho e, lá,

tomaram o seu banho.

Todos contentes, satisfeitos, banho tomado, jantaram. Na primeira

mesada, comeram os adultos hóspedes e os da casa. Na segunda, as

crianças visitantes e as da casa. Entrementes, escureceu. Depois de tantos

dias sem um lugar decente para dormir, o cansaço da viagem tomou conta.O

sono atingiu a maioria. As crianças procuraram seu lugar de dormir.

Brincaram um pouco, mas adormeceram em breve. Dormiram todas juntas,

visitantes e hospedeiras, numa sala grande, no assoalho forrado com

algumas cobertas grossas.

As camas ficaram para os adultos. Muitos se recolheram cedo. Ficaram

conversando à luz de lamparina: Peter, Tatuíra, Catarina, Miguel Casares e

“Mutta” Walkíria. Esta, alegre com a vinda do seu antigo amor e triste pela

falta de Miguelzinho.

- E como se sai o Miguelzinho na condução da fazenda, senhor

Casares? – perguntou Walkíria.

Miguel percebeu o tom nada íntimo de Walkíria. “Ela ainda tem

reservas para comigo. Esses alemães são mesmo muito puritanos”. –

pensou.

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Então, Catarina e Casares falaram sobre a vida na fazenda. Em

seguida, foi a vez de Tatuíra contar das peripécias para a sobrevivência na

selva. Os olhos cansados não permitiram muita conversa. Em breve, todos

se recolheram em seus cômodos.

No outro dia, a alegria era geral. Catarina e Peter caminharam pela

Colônia, observando as mudanças. E a mulher comentava:

- Mudou muito tudo por aqui, desde que saí.

- De fato. Agora, já temos uma pequena olaria, um serraria, um

moinho, uma ferraria, um local para fiação, local especial para costuras, para

o tacho, onde fazemos nosso sabão e nossas chimias.

- Mas... e quem cuida de tudo isso?

- Ah, Catarina. Vários peões ou até pessoas da família responsabilizam-

se por algum tipo de trabalho, de acordo com seu gosto. Os mais velhos e

experientes ensinam os mais novos.

- É muito bom ver tudo isso, a Colônia progredindo. Já é quase uma

aldeia, uma vila.

- E lá, como está a fazenda Santo Cristo? É uma vergonha que ainda

não a conheça.

- Vai indo.

Peter notou uma certa tristeza no falar da irmã. Aos poucos, Catarina

queixou-se a Peter do comportamento de Miguel, o que deixou o mano

estarrecido.

- Pena que estou tão longe, senão daria uns puxões de orelha no meu

irmão. Onde já se viu te tratar assim?!

- Por favor, não fale nada a ninguém. Fico com vergonha. Não quero

que os outros me apontem o dedo e digam que sou uma pessoa infeliz.

- Pode deixar. Não conto para ninguém.

Passou-se quase um mês. As visitas ajudavam na manutenção da

lavoura e das lides caseiras. De vez em quando, o sogro lembrava a

Catarina:

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- Tu tens de voltar para a fazenda, Catarina. O tempo está passando.

Meu filho está sozinho. Isto não é bom.

- Não tenho nem um pingo de vontade de voltar à fazenda, meu sogro.

Vou ficar mais um tempo.

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CAP. XIV

AJEITAMENTOS

Foi num domingo um pouco antes do meio-dia que ele chegou. Era um

belo dia de sol, na primavera. Estavam sentadas na varanda todas as

pessoas da família, com exceção de duas mulheres que preparavam o

almoço na cozinha: Luísa e Dulcineia. Tomavam chimarrão, enquanto a

conversa corria solta. Já fazia quase um mês que Catarina e a sua turma

hospedavam-se na Colônia Teicher, bem como Tatuíra.

De repente, os cães ergueram-se e debandaram em direção à estrada.

Indício certo de que algo ou alguém se aproximava. Os cães espantaram os

galos e as galinhas que ciscavam no terreiro. Até porcos fugiram grunhindo.

Uma vaca e um cavalo que pastavam, calmamente, ergueram a cabeça e

olharam para os cães em debandada. Logo, surgiram na descida da encosta,

quatro burros com carga.

- São mascates! – alguém concluiu.

Um vinha, na frente, tocando o burro para que andasse com mais

rapidez. Uma das crianças menores, filha de Martin e Verônika, que se

adiantara e se dirigira ao terreiro, gritou:

- Mas é o mano Esaú!

Ao que quase todos se ergueram dos assentos, principalmente

Verônika e Martin. Foram os primeiros a correr para o terreiro. Esaú mal

conseguiu descer de sua cavalgadura e abraçou longamente a mãe que

chorava, depois o pai, os irmãos, “Mutta” Walkíria e demais familiares.

- Meu filho! Meu filho! Foi considerado morto! E renasceu. Está

novamente entre nós. É um milagre. Um milagre. – soluçava Verônika.

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Depois de abraçar os irmãos que o rodeavam, Esaú parou em frente de

Catarina e Tatuíra:

- Vocês também estão aqui? Que beleza! É muita sorte encontrar a

todos no mesmo lugar. Miguel também está?

- Não, Esaú. O único não presente é Miguel, mas os filhos dele estão

aqui e o pai dele: Miguel Casares. – explicou Catarina.

Esaú lembrou-se de apresentar Horácio que também cumprimentou a

todos, com alegria e incontidas palavras de satisfação por estar entre eles.

Italiano como era não tinha dificuldades em conversar com qualquer pessoa.

Todos se sentiam estranhamente alegres. Não sabiam a quem

agradecer em primeiro lugar, se a Deus, a Horácio, à sorte ou a quê. Depois

de se abraçarem e chorarem, Tatuíra falou:

- Hoje, de tardezinha, vamos rezar uma missa de agradecimento ao

Senhor pelo milagre do retorno do Esaú e por todas as bênçãos que temos

recebido.

A concordância foi geral.

À tarde, realmente, a missa aconteceu. Tatuíra pediu aos homens que

trouxessem tocos, onde pudessem encontrá-los, para servir de assento aos

ouvintes da missa. Depois, preparou um altar com troncos toscos. Pediu às

meninas que trouxessem flores. Enfeitou o local com galhos, folhas e flores.

No horário marcado, todos se assentaram nos tocos. Quem não sentou, ficou

em pé ou sentou no chão, com pernas cruzadas, atitude que a maioria das

crianças tomou.

Quando Tatuíra postou-se no altar com a Bíblia na mão, a solenidade

tornou-se pomposa, embora no meio do mato. Todos voltaram o olhar para

aquele homem pequeno, magrinho e silenciaram. O respeito tomou conta.

Tatuíra tomou a palavra, rezou, agradeceu a Deus as bênçãos

recebidas e pediu pela continuidade das bênçãos naquela Colônia, leu a

Bíblia, deu conselhos. Todos o ouviam embevecidos. Parecia que o rapaz

estava sob uma aura de espiritualidade.

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Começaram a perceber que, ultimamente, estavam mais ligados ao

Catolicismo que ao Protestantismo. Esta mudança dava-se, em parte, ao

desastroso fato ligado ao desaparecimento de Esaú. O pastor, pai de

Gudrum, nunca mais visitara a Colônia. Outro fato ligado à mudança devia-

se ao padre Tatuíra que com devoção a Deus, meiguice, compreensão e

solidariedade a todos encantava.

Eram dias felizes na Colônia. Dias de sol, amenos, com pouco frio. Dias

propícios para as lides na lavoura, plantações de milho, aipim, abóbora,

pepinos e outras hortaliças. Os adultos iam para as lides na roça,

trabalhavam, mas também conversavam, contavam causos, riam à beça. As

crianças divertiam-se no riacho, nos potreiros, nos galpões. Parecia que a

felicidade duraria para sempre e ninguém mais precisaria preocupar-se com

cousas difíceis. De vez em quando, o sogro lembrava Catarina:

- Nora querida, tu precisas voltar. O Miguel ficou sem ti e os filhos.

Deve estar se sentindo muito sozinho.

- Ainda não. – respondia secamente e se afastava.

Sentia-se tão bem na Colônia que preferia esquecer o marido.

O senhor Casares também não tinha interesse na volta. Sentia-se bem

na companhia de Walkíria. Não a via como de fato era agora: uma idosa,

sem nenhum encanto físico. Via-a como a indiazinha loura que encontrara no

pasto há muitos anos atrás, nuazinha, bronzeada, cabelos dourados

escorrendo sobre o rosto e ombros, olhos de onça assustada. Lembrava do

desejo intenso que o invadiu, chegando a ponto de caçá-la como a um

animal, o arrependimento depois e o grande amor que levou pela vida toda.

Walkíria também não o via como velho quase decrépito, mas como

jovem guapo, montado em seu cavalo baio, ereto, as botas reluzentes, como

se fora o personagem imaginário da história do Gato de Botas que sua mãe

contara na infância. Ela, empunhando arco e flecha e mirando as virilhas

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para machucá-lo, a vingança pelo estupro praticado por ele, depois o perdão

e o amor intenso da juventude.

Uma tarde, estando sozinhos no pátio, relembravam:

- Walkíria, lembras de como nada sabias da língua portuguesa? De

como aprendeste depressa?

Ela riu.

- Tive um bom professor!

- É. Foi uma das coisas boas que fiz para ti. Até hoje lembro dos

nossos primeiros encontros. Foi fantástico, não?

- Éééé. Foi. – respondeu, sem muito entusiasmo. – Mas... tu foste

mau.

- É. Eu sei. O estupro. Mas... agora que estás mais velha hás de

entender. Homem tem dessas coisas. Vê uma mulher atraente e fica louco

por ela.

- Mulher alguma vai entender, jamais, Miguel. Isto é animalesco. Falta

de respeito. Não somos bichos, queremos ser mais, dominamos os animais,

queremos imitar Deus.

- Está bem. Está bem. Não vamos discutir mais. Tu também te

vingaste, né? Pensas que aquela fechada foi simples de curar. Sofri bastante

também.

- Merecias. Merecias sofrer como eu sofri.

Tens razão. Mas... vamos esquecer. Já perdemos tanto tempo em

nossas vidas. Tu já me perdoaste que eu sei. Vamos ser felizes!

- Lembras daquela adaga alemã que o teu pai tinha e que foi tirada do

lugar só para me incriminar?

- Ih! Se me lembro! Tu apanhaste um bocado por ela.

- Tenho até hoje uns vergaços das relhadas que recebi.

- Foi horrível!

- Mas tu tiveste a coragem de enfrentar teu pai, o todo-poderoso

Coronel Casares.

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- É. Ali vi o quanto eu te amava.

- Pior foi o ataque à casa grande, no tempo da Revolução, quando

vocês estiveram nos campos de batalha. Até uma onça negra a gente tinha

na jaula, na sala grande. Quando os soldados entraram, ela foi solta, mas foi

pouco. A gente deveria é ter prendido umas dez. E a morte da tua mãe,

depois, naquele descampado, o fim do mundo, sem ninguém por perto.

Os olhos umedeceram da lembrança. Miguel abraçou-a, acariciou os

cabelos dela.

- Passou, meu amor. Passou. Eu também tive os meus pesadelos.

Parece irreal, mas sobrevivi àquela caverna insana.

- É, tens razão. Tudo passou. Temos de olhar para frente, não para

trás, o futuro, nossos filhos, nossos netos. Eles terão vida mais fácil,

certamente. Tomara que não haja mais guerras. Por que matar-se uns aos

outros, se já há tantas dificuldades na vida? A vida é tão frágil. Precisamos é

nos ajudar uns aos outros, como já fazemos na manutenção das colônias.

- Walkíria, não quero mais me separar de ti. Quero ficar aqui, já que

nunca quiseste ir comigo. Nosso filho tomará conta da fazenda que será dele,

na realidade já é. Os netos seguirão a sua sina. Quero viver o resto de minha

vida contigo. Por favor, não me mandes embora.

Walkíria riu.

- Se quiseres ficar, não colocarei empecilho. Fico feliz. – E abraçou-o,

com carinho. - Tenho todos os outros filhos, Miguel, como sabes. Só os

abandonarei, quando morrer.

- Será que eles vão se opor?

- Qual nada! O que eu decidir, está decidido. Não te preocupes. Eles

querem que a mãe seja feliz.

- Mas... e os outros? O Peter?

- O que eu decidir está decidido. Sou a mais velha da família. Ninguém

se oporá. Além do mais, todos te acham simpático. Qualquer pessoa que

venha a mais para a colônia, será bem recebida. Sempre é um braço a mais.

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Miguel abaixou a cabeça e riu.

- No meu caso, é uma carga a mais, pois sou velho e meu braço é

fraco e cansado.

Walkíria também riu.

- Isso é verdade, mas mesmo assim, eles vão gostar, seu bobo!

Horácio preparava-se para seguir sua vida como mascate, mas

também gostava da companhia de todo aquele pessoal amável que

encontrara na Colônia. Um dia, sentado num toco, no terreiro, falou a Esaú,

com convicção:

- Tu encontraste a tua família e queres ficar, é claro. Perco meu

ajudante, infelizmente. Mas eu tenho de voltar a viajar, seguir minha vida,

minha profissão.

Neste instante, seus olhos cruzaram-se com os de Gisela que passava

por ali com um balaio cheio de roupa lavada para estender no varal.

Encantou-se com a visão. Outras vezes antes, já a observara e sentira-se

atraído por aquela mulher tão jovem e com tanta tristeza estampada no

rosto. Pasmo, fitou-a por longo tempo. Esaú percebeu o interesse.

- Vai conversar com ela! É boa mulher. Tem dois filhinhos, é viúva.

Precisa de marido que ajude a criar os rebentos. Quem sabe, assim meu tio

consegue mais uns braços fortes para o trabalho da lavoura. – E sorriu.

Horácio, apesar de muito desinibido com todos, encabulava-se, quando

se tratava de cortejar mulheres. Sentiu-se esquisito. Levantou do toco, olhou

enviesado para Esaú e saiu a caminhar, desengonçado.

- Psiuuu!!!... não me deixes atrapalhado, cara!

Esaú também se levantou e foi cuidar de seus afazeres. Ao ver que o

amigo se afastava, Horácio aproximou-se de Gisela e tentou conversação. A

mulher escutou-o, com atenção.

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Dois dias depois, várias pessoas perceberam que havia interesse

mútuo de aproximação entre o italiano e a viúva Gisela.

As crianças da Colônia brincavam e, muitas, vezes, descuidavam-se.

Num destes dias, esbaldavam-se em brincadeiras no riacho. Quando

cansavam, voltavam, algumas sozinhas. Num destes momentos, Maria das

Dores, voltando sozinha, viu uma grande jararaca no caminho por onde

devia passar. De ambos os lados, o inço crescia alto. Não soube o que fazer.

Subiu num arbusto e esperou alguém vir ajudá-la. Chamava, gritava, mas

parecia que ninguém a ouvia. A cobra levantava a cabeça em direção a ela.

Mariazinha desesperava-se.

- Que faço? Meu Deus! Ela está cada vez mais próxima.

Gritou, chamou o mais alto que podia. Arthur Augusto, que se

banhava, de repente, ouviu os gritos. Chamou os outros, mandou todos

ficarem quietos, quando, então, foram nitidamente ouvidos os brados da

prima.

Saíram do banho e correram ao encontro dos gritos. Quando chegaram

perto e viram o tamanho do bicho, ficaram quase que estáticos. Um

indiozinho foi quem teve a ideia da solução:

- Quem tem uma camisa quentinha, não molhada?

Alguém ofereceu a sua. O bugre jogou a camisa sobre a serpente que

mordeu a isca. Deixou todo o veneno na camisa. Depois, as crianças jogaram

várias pedras sobre a cobra até esmagar-lhe a cabeça. Em seguida, Marichen

foi auxiliada a descer do arbusto.

- Obrigada, amigos. Fiquei apavorada. Achei que ela ia me pegar.

- Não foi desta vez. – respondeu Arthur August.

O incidente, contado em casa, trouxe novamente preocupação. Era

preciso cuidar mais das crianças. Peter só tinha uma filha. Se morresse,

ficaria sem nenhuma. Este pensamento martelava sua mente.

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Catarina também ficou chocada. De repente, começou a pensar que

alguma coisa poderia acontecer ao Miguel. Imagina se ele morre, como fico

diante das crianças? Elas não me perdoariam nunca! Ele, sozinho em Rio

Pardo, como estará? Apesar das malandragens, eu sou a esposa dele. Se

acontecer algo com ele, eu nunca me perdoarei.

Alguns dias passaram-se. Catarina anunciou a volta para a fazenda

Santo Cristo. Os filhos prepararam os apetrechos necessários e a viagem foi

planejada. Catarina percebeu que o senhor Casares parecia pouco

entusiasmado, indiferente. Quando tentava falar com ele, esquivava-se.

Chegou o dia da viagem e as crianças movimentavam-se eufóricas. O

sogro achegou-se à nora e comunicou:

- Catarina, eu fico. Falei com Walkíria e ela, finalmente, aceitou a

minha companhia. Peter também não se opôs. Quer que sejamos felizes.

Tens medo de viajar sozinha?

- É claro que não, senhor Casares. Se este é o seu desejo, só tenho de

apoiar. Está mais do que em tempo de o senhor e a “Mutta” assumirem o

seu relacionamento. Parabéns!

Arthur August interveio:

- Pode deixar, avô. Eu cuido da mãe.

- Acredito. Afinal, já tens doze anos e és um homenzinho.

Peter, que estava próximo, ouvia a conversação. Adiantou-se e falou:

- Vou falar com meus empregados e ver se alguém quer mudar-se

para lá. Se tiver alguém interessado, vocês terão a companhia de mais um

adulto.

Arthur August sentiu-se um pouco magoado. A ele interessara a ideia

de ser o homenzinho da caravana, o responsável. Entretanto, nada falou. Era

mais seguro ter um homem adulto junto a eles.

Dois homens quiseram mudar-se para Rio Pardo. Peter deu-lhes

permissão para viajarem.

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Assim que estiveram prontos, a caravana seguiu viagem. Tatuíra

acompanhou-os até São Leopoldo, depois seguiu até o Seminário para onde

devia levar o que sabia sobre os bugres que visitara.

Catarina sentia grande admiração por ele tão despojado de

materialismo. Quando criança, jamais tinha lhe passado pela cabeça que

aquele bugrezinho seria, um dia, um homem tão consciente de sua

responsabilidade como sacerdote

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Cap. XV

O CASO GUDRUM

O leitor lembra daquela menina de rosto claro, sardas, cabelos

brancos? Por causa dela, Esaú teve de fugir. Gudrum fugiu para Porto Alegre.

Escondeu-se na casa de uma amiga da tia dela. Lembra?

Pois, Gudrum, cheia de saudade da família, resolveu voltar para casa.

Passou primeiro na casa da tia que a recebeu bem. Os filhos desta

rodearam-na, alegres. Fizeram festa. Perguntaram-lhe várias coisas.

Estavam curiosos por demais. A tia abraçou-a.

- Querida, que saudade! Quanto tempo! Como estás? Pareces mais

magra, abatida. A minha amiga te tratou bem?

- Sim. Sim. Estou bem. – mentiu, pois a amiga não a tratara bem.

Tivera de trabalhar muito para conseguir o sustento, além de ouvir os

constantes resmungos da mulher.

- Já foste para a casa dos teus pais?

- Não, ainda não. Preferi vir aqui antes. Gostaria que a senhora fosse

junto comigo. Tenho medo de que não me tratem bem.

- Ah! Isto é possível. Conheço bem meu cunhado, acho que ele vai

descarregar a raiva guardada há tanto tempo. Ele é radical demais. Vou

acompanhá-la, sim. Mas, antes, descanse. Faço um chá para ti. Come estas

broinhas que fiz ontem. Estão bem gostosas. Vou colocar um vestido melhor

e pentear os cabelos. Depois, iremos. Estes trapos que uso agora são só

para trabalhar em casa.

Quando terminou de se ajeitar, saíram. Gudrum, ansiosa, queria muito

ver a mãe e os irmãos. Ao chegar, encontraram o pai em casa. A mãe quis

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recebê-la. Abriu os braços, mas o pai barrou-a grosseiramente. Dirigiu-se a

Gudrum como a um inimigo.

- Tu nunca mais porás os pés aqui. Envergonhou-nos perante toda a

vila e ainda tens coragem de chegar em nossa casa?

A tia interveio.

- Senhor pastor, o senhor deveria perdoá-la. É sua filha.

- Nada disso! Não é mais minha filha. Meus filhos são os outros que me

rodeiam neste momento. Pode ir andando! Na nossa casa não entras mais! E

a senhora, cunhada, não deveria dar abrigo a essa moça que se comportou

como uma vagabunda qualquer.

A voz tinha um tom de raiva, rancor, desprezo que impedia de alguém

dar resposta contrária. A mãe nada disse, mas os olhos umedeceram.

Gudrum afastou-se, chorando. A tia tentava consolá-la.

- Calma, Gudrum. Ele te recebeu mal, porque ficou surpreso. Com o

passar dos dias ele cederá. Até a mim ele ofendeu. Teu pai, às vezes, não

parece um pastor. É fácil pregar a palavra de Deus. Palavras são meras

palavras. Ele não pratica o que prega.

Gudrum choramingava:

- Ele me tratou como um animal. Disse que eu não era mais filha dele.

Horrível! Parece que cometi um crime.

- Calma, menina, calma! Não chores, ele não merece tantas lágrimas.

Gudrum ficou alguns dias na casa da tia. Uma manhã, levantou-se

disposta e comunicou à tia:

- Eu sei para onde vou. Para a Colônia do Esaú. Tenho certeza que não

serei expulsa de lá. Aquela família não tem preconceitos. Vivem juntas todas

as raças.

- Credo, menina! Que ideia! Eles moram longe e tu não estás

acostumada a andar sozinha pelos matos. Aquela colônia é bem distante

daqui. A revolução dos Maragatos e Pica-paus já terminou, mas, há muitos

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bandidos soltos por aí. Sabes que eles degolam seus prisioneiros, né? É

perigoso viajar por estes tempos.

- Tia, eu não tenho medo. Eu sou mulher e eles gostam de degolar os

machos.

-Ah! Isto pe verdade, mas podem te fazer outros males, como estupro,

por exemplo.

- Não tenho medo, já disse. Já que a minha família não me quer mais,

tenho de procurar outra.

- Mas... tu podes ficar aqui. Podes ficar com a minha família.

- Tia, a senhora é muito bondosa, mas eu não quero me aproveitar

disto. A vila toda ficará contra a senhora e sua família, quando souberem que

estou aqui. Essa gente não perdoa. Eles ficam do lado do pastor. Tenho de

me afastar.

A tia emudeceu. Gudrum estava certa. O que ela falava, aconteceria de

fato. Não mais tinha argumentos.

Naqueles tempos, mulher não andava sozinha. Por isso, a tia ofereceu

o filho mais velho para acompanhá-la.

- E se encontrarem outras pessoas no caminho, digam que são irmãos.

Só assim não lhes farão mais perguntas. Tomem cuidado! – aconselhou.

No outro dia, antes do raiar do sol, puseram-se a caminho. A tia deu-

lhes um pão, uma linguiça e um pedaço de goiabada enrolados num

saquinho para que se alimentassem durante a viagem. Foram a pé, pois a

tia, viúva, pobre, não possuía nenhum muar ou outro meio de transporte.

Gudrum levava consigo apenas uns poucos apetrechos que cabiam num

pequeno saco que colocou sobre os ombros.

A caminhada foi longa e cansativa. O que mais os incomodava eram os

mosquitos e as moscas, mutucas e outros insetos. Viviam abanando-se,

batendo as mãos de cá para lá e de lá para cá. Embora magra dos maus

tratos, Gudrum não esmoreceu. O primo acompanhava-a, mais robusto e

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bem alimentado. Sentia-se importante por ser mais jovem e ter de cuidar da

prima mais velha. Não cansava de persuadi-la a mudar de pensamento.

- Quem sabe se eles vão te receber. Talvez também te expulsem. Por

que não voltas e ficas morando conosco? Eu te protegerei.

Gudrum não respondia e seguia seu caminho. No primeiro dia,

encontraram alguns viajantes que pararam e conversaram um pouco.

- Boa-tarde, crianças.

- Boa-tarde.

- Oigaletê, para onde vão os jovens?

- Para a Colônia Teicher. – respondeu o primo.

- Ah! A colônia, onde brancos e negros vivem juntos. Cuidado com

eles. Vocês são parentes deles?

- Sim. – falou rapidamente Gudrum.

- Aaah! Então, boa viagem. – afastou-se o interlocutor, logo que

disseram haver um parentesco.

À noite, dormitaram na forquilha de uma árvore alta. Só os bugios e

os insetos fizeram-lhes companhia. Besouros de todos os tamanhos, de vez

em quando, batiam neles e os acordavam. Sempre o susto era grande.

Pensavam em outros predadores maiores. No entanto era apenas susto.

Pela madrugada, foram acordados pelo concerto matinal das aves.

Gudrum ficou encantada. Como crescera na vila, poucas vezes ouvira a

beleza destes cantos. O primo também adorou.

No segundo dia, seguiram caminho. Os pés doíam. Os rude tamancos

machucavam os pés. A estrada íngreme e pouco amiga dos pés dos

viajantes, enchia-os de bolhas, rachaduras, feridas feitas pelos pedregulhos,

pelos espinhos, galhos e torrões secos. A cada quilômetro andado, mais

difícil tornava-se a caminhada. A estrada diminuía de tamanho, o inço crescia

nas margens. Às vezes, até tomava conta da trilha. Animais selvagens

apareciam com mais frequência.

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Um lagarto grande e grosso esquentava-se ao sol, tomando conta de

toda a trilha.

- Que a gente faz para espantar este bicho e poder passar? –

perguntou o primo.

- Sei lá. Nunca vi um animal destes. Cresci na vila.

- Não vai me dizer que não conheces lagarto?

- Conhecer eu conheço, mas nunca vi um tão de perto.

- Dizem que achar lagarto é bom sinal. Onde tem lagarto não tem

cobra.

- Será verdade?

Neste instante, o bicho correu velozmente ao encontro dos dois e deu

uma rabada que fez plaft contra o chão. Quase atingiu a perna do primo.

Este só teve tempo de saltar para trás. Em seguida, o animal fugiu por entre

os inços da beira da estrada.

- Desgraçado! Quase ele me bate. Se batesse de verdade, poderia até

quebrar a perna.

- Temos de ter muito cuidado. Estamos chegando cada vez mais perto

das matas nativas.

Mais adiante, Gudrum viu um animal que parecia um cão.

- Olha, primo! É um cachorro perdido. Que rabo mais peludo que ele

tem.

- Não é um cachorro, prima! É um lobo! É um animal selvagem.

- Lobo? Animal selvagem? Será que ele come gente?

- Não. Ele se alimenta de ratos e outros animais menores.

- Ah! Então, podemos passar perto dele.

- Se ele deixar...

O lobo-guará afastou-se, assim que percebeu a presença deles.

Em seguida, viram um gordo veado-campeiro. Quando sentiu a

presença de humanos saltou por sobre o capim e fugiu mata a dentro. Eram

graciosos os saltos dele por sobre a grama alta.

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Ao passarem por um córrego, viram ratões do banhado, algumas

capivaras, muitos quero-queros, sapos e rãs de diversos tamanhos e cores.

Os mamíferos fugiam ao vê-los aproximarem-se. De vez em quando, algum

pássaro voava sobre suas cabeças. Aves pequeninas havia muitas.

Papagaios, caturritas, araras, gralhas e pombas povoavam o caminho acima

de suas cabeças. Era um constante espetáculo de cores, gorjeios e asas. Os

jovens deliciavam-se com as novidades. Até esqueciam que estavam

cansados, com pés doloridos e estômago vazio. O pão, a linguiça e a

goiabada tinham comido no dia anterior.

Perto de meio-dia, o céu encobriu-se de nuvens. Pouco depois, a chuva

inundou o espaço. Gudrum e o primo encharcaram-se. As roupas colaram

nos corpos.

- Vamos ficar doentes, se ficarmos muito tempo molhados. Temos de

encontrar abrigo meio logo. – falou o primo.

- Não te preocupes! Estamos próximos. Conheço esta zona. Daqui a

duas horas, chegaremos na Colônia.

- Deus seja louvado! Estou morto de cansado. Estás certa disso? Não

serão quatro horas?

- Ah! Primo, tu és mais jovem e mais fraco que eu?

- Sei lá. Mas ... Será que eles nos recebem bem?

Gudrum não respondeu. Pensou: estou mais cansada que ele, mas não

me queixo.

Pela meia-tarde, chegaram. Os cães receberam-nos com latidos e mau

humor. Alguém, na varanda, mandou-os aquietarem-se. Eram “Oma”

Walkíria e Miguel Casares. O casal já não mais ia à lavoura seguidamente

como os demais. Muitas vezes, ficavam em casa, ocupando-se com tarefas

mais leves. Walkiria chamou os cães e gritou:

- Quem vem lá?

Enxergava e ouvia mal. Os jovens aproximaram-se.

- Sou a Gudrum. E este é meu primo. Lembra de mim, dona Walkíria?

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- Qual Gudrum?

- Gudrum, a filha do pastor.

- Ah! Agora, lembro. Foi a senhorita a culpada de quase termos

perdido o Esaú. Que faz aqui, menina?

Gudrum assustou-se. Será que a “Oma” a enxotaria?... Nada

respondeu.

- E então? Que faz aqui? Sabes que o Esaú sofreu muito por tua

causa?...

Eu também, pensou, mas permaneceu muda. O primo gaguejou:

- A Gudrum também sofreu. Os pais dela expulsaram-na de casa.

- Ah, é? Quanta injustiça! Mas saiam desta chuva! Estão molhados os

dois. Venham para dentro. Vou arrumar uma roupa seca para vocês. Entrem.

Entrem. Depois de trocarem de roupa, conversaremos. Quero saber ao certo

como foi a tua história com o Esaú.

Os dois subiram até a área. Adentraram a casa. Gudrum acompanhou

Walkíria, enquanto Miguel levava o moço para o quarto dos meninos e

emprestou-lhe uma roupa seca. A “Oma” ouviu de Gudrum as peripécias da

fatídica viagem com Esaú e tudo o que se seguiu depois. Ao final,

sentenciou:

- Nesta Colônia não há preconceitos. Todos são aceitos, não importa a

cor, a raça, a religião, etc. Se é do teu desejo, podes ficar aqui. Ninguém irá

te enxotar. É preciso fazer um pouco de justiça neste difícil caso teu e do

Esaú.

- Será que ele vai me aceitar? E o Peter e a Luísa?

- Nem pense nisto, filha. Todos vão te querer bem, certamente. O que

a “Oma” decide, ninguém contesta.

Gudrum abraçou a velha senhora, enquanto seu rosto cobria-se de

lágrimas.

- Tu és a melhor vovó do mundo.

- Chora, netinha, chora. Chorar faz bem para a saúde.

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- Minha família é tão má. Bem, talvez não seja toda a família. É que

meu pai é racista e impõe isto para o resto da turma.

- Que pena! Logo ele que é pastor. Mas... esquece isto menina e te

alegra. Vocês almoçaram?

- Comemos ontem. Minha tia deu um pão, uma linguiça e um pedaço

de goiabada. Foi isto que comemos ontem.

- Então, hoje não comeram ainda?

- Não. Mas não se preocupe, dona Walkíria. A gente não está com

fome.

- Não é o que vejo nos seus olhos. Magrinha do jeito que estás,

precisas te alimentar. Vamos para a cozinha. Faço um chá para ti e teu

primo e esquento alguma coisa para comer. Deve ter sobrado algo do meio-

dia.

Gudrum sentiu-se feliz. Tinha encontrado uma vovó e um vovô para

ela. O resto da tarde ela passou tranquila.

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Cap. VI

CATOLICISMO

Quando Esaú voltou das lides agrícolas e a viu, ficou tenso, nervoso,

encabulado. Inicialmente, detestou-a. Lembrou-se do episódio que fez os

alemães perseguirem-no. Ela era a culpada do sofrimento dele na selva. Ela

que o seduzira para beijá-la.

Peter e os outros receberam-na bem, assim como ao primo.

Quando foi colocado que Gudrum ficaria na Colônia, a felicidade foi

geral, menos de Esaú.

- Como vão aceitá-la entre nós? É a culpada de eu quase ter morrido

na selva. – questionou.

Todos o olharam, perplexos.

- A culpa não foi minha! – defendeu-se a moça, rapidamente, com

vigor. – Também sofri represálias e fui expulsa de casa por duas vezes. Não

tenho para onde ir!

Peter e Luísa cochicharam entre si. Depois, Peter falou:

- Antes de mandar Gudrum embora, Esaú, vocês dois devem

conversar, esclarecer o que houve e o que não houve.

Esaú, a contragosto, aceitou a sugestão. Os dois jovens retiraram-se

para longe dos outros e conversaram. Gudrum explicava:

- Quando cheguei em casa, procurei te defender, mas a mãe me bateu

e trancou-me no quarto. Então, fugi para a casa da minha tia. Sabia que

meu pai seria mais radical que minha mãe. Minha tia me ajudou. Mandou-me

para a casa de uma amiga dela, em Porto Alegre. Acontece que essa senhora

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foi muito má comigo. Escravizou-me, nem comida decente me dava, só

trabalho e mais trabalho.

- É. Nota-se. Estás magrinha.

- Tu também estás mais magro.

- Um dia te conto como foi a sobrevivência na selva. E depois? Conta o

resto.

- Fugi, também, da casa daquela megera. Achei que meu pai me

aceitaria de volta, depois de tanto tempo. Qual nada! Ele me expulsou. Para

ele vale mais o preconceito que a própria filha. Minha tia, apesar de bondosa,

teme a reação dos vizinhos. Vês? Não tenho para onde ir.

O coração de Esaú começou a amolecer. Quanto mais conversavam e

se aproximavam, mais Esaú sentia-se atraído pela moça. Chegou a pensar

como seria bom tê-la embaixo de si como acontecera com aquela negra,

Marialva, lá naquela longínqua fazenda. Fora tão bom! Com Gudrum deveria

ser melhor ainda.

- Podes ficar aqui! Os outros te aceitaram, não serei eu a impedir.

- Obrigada! – E abraçou-o. Um calor intenso abrasou-lhe o corpo.

A convivência diária entre os dois, aos pouco, trouxe de volta a atração

que um sentia pelo outro. Os irmãos menores e outras crianças e

adolescentes brincavam com Esaú:

- Vocês se gostam, não?

- Aaaah! Estes dois! Por que não casam?

- Iiiihhh! Isto vai dar casório.

E outros mexericos. Um dia, Esaú pediu licença à “Mutta”, Peter e aos

pais para casar com Gudrum, o que não desgostou a nenhum dos quatro.

Como a moça não era aceita pelos pais, decidiu-se por ela mesma.

“Mutta” Walkiria achou por bem casar com um pastor. Entretanto, por

aqueles dias passou pela Colônia novamente aquele padre que foi o

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responsável por Tatuíra seguir o sacerdócio. De vez em quando, fazia isso,

desde os tempos em que Tatuíra fora para o convento. A família reunia-se,

quando ele chegava e conversavam. Contavam das dificuldades que

passavam. Pediam conselhos. Pediam para ler a Bíblia e falar sobre Deus. Ele

improvisava uma missa.

Sabedor do desejo de casamento dos jovens e da dificuldade de

encontrar um pastor para a cerimônia, uma vez que a moça já era filha

rejeitada de um pastor, sugeriu:

- E por que não casam católicos? Nada impede. O próprio Tatuíra pode

casar-vos. Que acham?

Esta ideia refulgiu na mente de Esaú como uma estrela brilhante. Tudo

lhe pareceu sorrir. Tatuíra oficiar o seu casamento?! Era lindo só de pensar.

- Mas é muito boa ideia. – afirmou o pai Martin.

- Já estamos bastante afastados da religião, desde o incidente com o

Esaú. – falou Verônika. – Que achas, Peter?

- Claro! Concordo! Acho até mais. Acho que toda esta colônia deve

aderir ao Catolicismo, pois, ultimamente, termos tido mais contato com

católicos que com protestantes. É claro que os pastores protestantes não vão

querer oficiar o casamento, não vão querer ofender o pastor, pai da Gudrum.

Os católicos, na pessoa deste padre tão compreensivo, sempre foram

melhores para conosco.

O padre ficou surpreso, mas gostou da ideia. Humilde como era,

sentiu-se feliz por ser o protagonista da entrada para o Catolicismo de toda

uma Colônia, antes Protestante. Ele seria muito elogiado pela cúpula

católica.

- Claro que vamos dar liberdade religiosa. Só será católico quem

quiser. – afirmou a “Mutta”, temerosa de que alguém não gostasse da ideia.

E foi assim que a Colônia Teicher recebeu o batismo católico de Tatuíra

e Agripino que o acompanhou, além do padre da vila. Alguns permaneceram

na sua crença, mas a maioria seguiu Tatuíra

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No outro dia casaram Esaú e Gudrum, com direito a documentos

vindos da Itália. Também outros casais aproveitaram para casar-se, inclusive

Horácio e Gisela. Foi um dia de muita festa e alegria.

Tatuíra sentia-se feliz e pensava: quando que um indiozinho nascido

na floresta faria uma obra dessas? Obrigado, Senhor, obrigado por me deixar

ser o condutor de toda esta colônia para os Teus braços.

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CAP. XVI

PATRIARCA NEGRO

Um dia, ao voltar de uma vila, depois de algumas compras, Peter

sentiu-se estranhamente cansado. Apesar de descansar por longas horas,

sentiu-se cansado.

Dois dos sobrinhos que o acompanharam, filhos de Martin e Verônika,

sentiam o mesmo. Poucos dias depois, começaram as tosses. Tossiam,

tossiam e pareciam não poder parar de tossir. Enfraqueceram,

emagreceram. Tornaram-se esqueléticos. E quando tossiam, aparecia sangue

no catarro.

Horácio alertou:

- Na França morou um cientista, não sei se ainda é vivo, que

descobriu que na água vivem bichinhos que não vemos a olho nu. O nome

dele é Pasteur. Ele tem um aparelho que pode ver estes bichinhos. E ele

disse que devemos ferver a água, que a água fervida mata estes

animaizinhos que são os que trazem as doenças. Por favor, não tomem água

crua! Fervam! Fervam tudo! Até a roupa de cama. Quem lidar com os

doentes lave bem as mãos. Fervam as vasilhas que usam para dar água e

comida! Fervam os panos de lavar e secar a louça, qualquer pano que usem

para cuidar dos doentes!

Os outros ficaram com medo. Não sabiam se acreditavam no

italiano. Como podem haver bichinhos que não se vê? Estavam céticos,

incrédulos. Seria esta doença uma nova epidemia. Mas qual? De que tipo?

Como curá-la? Isolaram os doentes. Só a “Mutta” e Luísa entravam no

quarto de Peter e os sobrinhos para dar-lhes água, comida e manter a

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higiene. E seguiram as instruções de Horácio, apesar de não crerem neles. O

medo os assustava. Qualquer coisa era melhor que nada.

Depois de algum tempo, descobriram que estavam tuberculosos.

A doença espalhou-se pela Colônia, apesar dos cuidados. Um dos sobrinhos

foi o primeiro a morrer.

Peter percebeu que ele seria o segundo. Um dia, mandou chamar

Esaú.

- Por quê, Peter? – inquiriu Luísa.

- Preciso falar com ele.

Como estava fraco e tossia bastante, Luísa permitiu. Esaú entrou no

quarto, temeroso. Embora ainda sadio, a doença dos outros o afligia.

- Esaú, acho que Deus não demora a me buscar. Por isso, quero me

adiantar e deixar resolvidas certas responsabilidades. Tu és o neto mais

velho do meu pai. A Colônia Teicher não pode continuar sem alguém que a

guie. Eu não tenho filho homem. Por isso, quero que tu sejas o patriarca,

quando eu morrer.

Esaú tomou um susto. Peter falava entrecortado por muita tosse, a

fraqueza estampada no rosto pálido e magro. Parecia um morto falando.

- Mas... eu... preto... como vou dirigir esta turma toda? Por favor, não

me peças isto! É muita responsabilidade!

- Sei que vais conseguir. Tens capacidade para isto. Tens teus pais,

todos os teus irmãos. Tens o italiano que já te ajudou muito. Aprendeste

muita coisa com ele.

- Peter, por favor! Para de falar estas coisas! Tu não vais morrer! Tu

vais ficar bom!

- A vida e a morte só a Deus pertence. Sinto que o meu momento está

próximo. Não creio sair desta. Por favor, digo eu. Aceita o que te proponho!

Não posso passar esta responsabilidade para uma menina como a Marichen.

O Miguel está longe. Tem a sua fazenda. O filho mais velho dele será o

patriarca lá, quando ele morrer, é claro.

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- Que estás a me propor, Peter? Eu não sei fazer o que me pedes.

- Quando meu pai morreu, eu também não sabia.

- Além disso, sou negro. Ninguém nas redondezas vai me aceitar. A

Colônia vai ficar isolada.

- Ah! Isso ela já está. Nós sempre conseguimos sobreviver, apesar das

dificuldades. Há gente preconceituosa, mas também há muita gente boa e

compreensiva. Ultimamente, com a extinção da escravatura, os tempos

melhoraram para os negros. Não temas! A Colônia já cresceu bastante e

tenderá a crescer mais. Um dia será vila, depois cidade, podes crer. Quem

viver, verá. Há muitos braços de teus irmãos, dos peões, do Horácio e das

mulheres.

- Bom, isto é verdade. Só dos meus onze irmãos vivos, depois que

casarem e tiverem filhos, haverá muita gente.

- Então, aceitas?

- Pelo jeito, não me dás outra alternativa.

- Então, vou conversar com os outros.

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CAP. XVII

FILHA BASTARDA

Quando Artur Augusto percebeu que faltavam alguns quilômetros

para chegarem à fazenda Santo Cristo, em Rio Pardo, pediu a um dos peões

para emprestar o cavalo. Eufórico como estava, queria chegar o mais

rapidamente possível. Apesar dos protestos da mãe Catarina, conseguiu

convencer o peão, montou o cavalo e adiantou-se a toda a brida para chegar

antes.

A primeira pessoa que o viu chegar, foi dona Noca. Correu para o

quarto do patrão, onde a filha Mocinha penteava-se para esperar o patrão

que, em breve, voltaria das lides campeiras.

- Depressa, menina! Saia já deste quarto que a patroa vem

chegando!

- O quê????

A menina tomou um susto enorme, pegou seus apetrechos e saiu

correndo para o quarto da mãe.

Artur adentrou a casa como um furacão. Feliz, abraçou Rosário.

- Que saudade da fazenda! Como estou feliz de estar de volta! A mãe

vem logo aí. Como está todo mundo? Onde está o pai?

- Que felicidade, meu filho! Como é bom ver o patrãozinho de volta. –

retribuiu o abraço. - Teu pai está no campo. Daqui a pouco deve estar de

volta.

Viu, então, Noca, parada ao lado de Rosário, com cara esquisita.

Estranhou a presença e perguntou-lhe:

- A senhora também veio fazer um passeio na fazenda?

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A mulher, apesar de ser quase preta, vermelhou e nada respondeu.

Rosário a socorreu:

- Na verdade, patrãozinho, ela está morando aqui. Aconteceram

algumas coisas ruins e o senhor seu pai trouxe ela e a filha para morar aqui

e ajudar nas lides da casa.

A resposta foi satisfatória e o rapaz correu por todos os cômodos, feliz

de estar novamente no lugar que já considerava como seu lar.

Os outros filhos pularam da carroça, antes de ela chegar, apesar dos

protestos da mãe. A correria e alegria foi geral. Cada qual procurou o de que

mais gostava. Um deles buscou o violão que o avô comprara para ele, em

certa ocasião. Já tocava antes da viagem e sentira falta do instrumento na

Colônia. Dedilhou algumas notas que soaram maviosas no casarão.

Outro correu para o chiqueiro, pois tivera licença do avô para criar

porcos e estava curioso para saber como ficaram durante sua ausência.

Uma menina enlevou-se com sua boneca de pano, que fora feita com

carinho pela mãe há tempos atrás. Os menores ficaram na carreta com a

mãe e observavam com curiosidade os acontecimentos.

Rosário e Noca receberam a todos com carinho e festas. Os dois novos

peões dirigiram-se ao galpão. Esperariam o patrão para lhes ajeitar

alojamentos.

Em torno de duas horas passaram-se até que Miguel voltou. Catarina

notou que não parecia contente. Teve a impressão de que estava nervoso,

pouco à vontade. Mas pensou que era pela surpresa.

As crianças abraçaram-no com sofreguidão. A saudade do pai fora

grande.

Quando, finalmente, ficaram a sós, Catarina abraçou-o com carinho.

Miguel fez o mesmo, mas fingia. Na verdade, estava tenso, nervoso.

Procurava, na mente, uma forma de resolver a situação com Mocinha, sem

prejudicar a família.

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No outro dia, para dirimir um pouco a confusão, mandou Noca e

Mocinha para o casebre, onde moravam antes. Mocinha encheu-se de

lágrimas. Catarina interveio:

- Pobre menina, acostumou-se tanto aqui que não quer voltar. Será

que as duas precisam mesmo sair?

- Claro! – comandou Miguel, com voz que não admitia réplicas. – Nós

precisamos do quarto onde elas estão para nossos filhos.

Assim, sem maiores delongas, Mocinha viu-se despejada da casa e

despojada de qualquer direito pelo tempo que amou o patrão.

A moça não se conformava e, de vez em quando, procurava por ele no

campo. Suplicava por mais amor. Humilhava-se, ele montado num belo

cavalo e ela correndo atrás a pé.

- Tu sabias que eu era casado, Mocinha. Não posso abandonar todos os

meus filhos por tua causa.

- Eu te amava. Eu ainda te amo.

- Tens de entender. Eu fiquei fascinado pela tua beleza, mas agora

acabou. Procura um peão para ti. Vai ser melhor para ti e para mim.

- E se eu contar prá tua mulher?

- Ela não vai acreditar. – e afastava-se a galope.

Passaram-se alguns meses. Um dia, Mocinha, no meio da imploração,

gritou:

- Eu estou grávida.

Miguel tomou um choque, mas recompôs-se em seguida:

- Não é meu. Deves ter andado com outros.

O desespero da moça irrompeu em prantos e impropérios:

- Nãããããão!!!!! Nunca tive outro homem! O filho é teu!

- Para de falar bobagens, guria! Não vou assumir filho de ninguém! É

bastardo! É filho-da-macega, como dizia meu pai. – E afastou-se a galope.

A moça quedou sobre seus joelhos e chorou por muito tempo.

A mãe, em casa, consolou-a:

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- Não adianta. Assim, não vais conseguir nada. Eu te avisei. Os patrões

sempre fazem isso. Temos de arrumar alguém que queira te tomar como

companheira, um peãozinho qualquer, um homem solteiro. Quem sabe um

daqueles que chegaram com a patroa.

- Não queeeeero! Não quero homem algum!

- Isto também aconteceu comigo, filha! Mas eu, graças a Deus,

consegui um homem bom que cuidou de mim por muito tempo. Este

sofrimento passa!

- Nãããão, não quero!!! Quero morrer!!! Me deixa!

A moça não se interessou por ninguém e nada. Entrou num mutismo

degradante. Não comia, não dormia, nem água queria tomar. Optou pelo

desânimo e, bem ligeiro, tornou-se depressiva. A beleza foi-se e tornou-se

um farrapo humano, porém o bebê crescia dentro dela.

Dentro de Miguel, depois que Noca lhe contou o fato, crescia um

remorso quase incontrolável. Também se tornou taciturno e triste, mas não

sabia o que fazer, como agir e remediar o mal feito à garota. A família não

poderia saber. Quando podia, mandava algum alimento para as duas

mulheres, alimento que Mocinha desprezava e não comia, tal o sofrimento

emocional pelo qual passava.

O filho Artur, que passou a ser chamado pela pronúncia da língua

portuguesa, demonstrava inteligência e capacidade para entender quase

tudo o que os adultos faziam e percebia mentiras e fingimentos dos adultos.

O adolescente punha, muitas vezes, os adultos em choque, pois queria a

verdade dos fatos, só essa.

Catarina tornou-se mais mãe que esposa. Dedicava-se totalmente aos

filhos. Esquecia-se de dar atenção ao marido. Notou que ele não mais ia a

Rio Pardo. Talvez sentisse falta da companhia do pai. Quando ia, era de dia,

com Arthur, Catarina ou outro filho. Quase sempre, vivia montado na sua

égua predileta a andar pelos campos atrás do gado. Dispensou alguns peões,

pois preferia ele mesmo pontear o gado.

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Um dia, depois do almoço, quando os menores já se tinham retirado,

Rosário falou para os mais velhos da família:

- Vocês lembram daquela moça grávida, a Mocinha? Ela morreu. Não

aguentou o parto. Teve pouca dilatação, a coitadinha. A parteira não

conseguiu salvá-la. Só a bebê viveu.

- Coitadinha! Tão jovem! – lamentou Catarina. – Quem é o pai?

- Ninguém sabe. A pobrezinha não contou. – e olhou, de soslaio, para

Miguel.

Este se ajeitou na cadeira. Catarina mostrou-se solidária:

- Temos de dar um enterro decente para esta pobrezinha. – Miguel

permaneceu calado. Ao que ela prosseguiu: - Não é, Miguel?

- Sim, sim, - assentiu Miguel, temeroso de que alguém descobrisse

alguma coisa ou que Rosário falasse a verdade. Mas as mulheres

permaneceram caladas.

- E a bebê, quem vai criar? – interrogou novamente Catarina.

- A dona Noca mesma.

Dias passaram-se. Noca criava a criança. De vez em quando, vinha até

a fazenda e pedia ajuda financeira. Catarina, piedosa, dava-lhe comestíveis,

roupas, e, às vezes, até algum dinheiro. Tinha pena daquela mulher idosa

que criava uma neta com tantas dificuldades.

Nesses momentos, Miguel sentia-se o último dos homens. O olhar de

Artur Augusto o incriminava. Parecia que o menino o olhava e pensava: “Pai,

o que tu tens a ver com isto?” Não sabia se o filho conhecia a história dele

com Mocinha ou não. Era uma dúvida atroz.

Mandava, então, encilhar sua égua e trotava pelos campos. Curtia

remorso. Por que fora se meter com aquela menina? A paixão é algo

diabólico, pensava. Por causa dessa paixão, machucara a alma da moça e

tivera uma filha fora do casamento. Como se livrar desta culpa? A culpa que

se manifestava de forma concreta na pessoa da criança. O que fazer?

Descuidava, muitas vezes, do trabalho a que se propunha.

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FONTE:

Rheinheimer, Liti Belinha. O fim da eternidade. Gramado, Hortênsias, 2011, 139 p. (Terceiro volume da trilogia O Campanário do tempo).