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O campo lexical da natureza no contexto caiçara Joni Márcio Dorneles Fontella (UNIOESTE) Resumo: Este trabalho é parte da pesquisa de mestrado intitulada “O fandango caiçara do Paraná: uma perspectiva lexical”, na qual o objetivo principal foi analisar os campos lexicais utilizados pelos caiçaras por meio da sua principal forma de expressão cultural, o fandango. Para tanto, apresentamos o contexto histórico, de formação étnica, social e cultural desses sujeitos (PIMENTEL; GRAMANI; CORREA, 2006) e discorremos sobre os conceitos de cultura e identidade (HALL, 2001). O corpus foi composto de 26 músicas contidas no CD “Museu Vivo do Fandango” (2006), das quais coletamos um total de 199 substantivos que foram organizados a partir da teoria dos Campos Lexicais (GENOUVRIER; PEYTARD, 1974; ABBADE, 2011). O procedimento de coleta de dados se deu com o auxílio do programa WordSmith Tools 7.0, do qual utilizamos a ferramenta WordList para a seleção dos substantivos, e Concord para verificar os contextos em que esses lexemas foram utilizados nas músicas. O objetivo desse artigo é apresentar uma parte do campo léxico da “Natureza”. Pelo fato de tradicionalmente viverem em regiões ribeirinhas e terem suas formas de subsistência baseadas na pesca e na agricultura, o campo lexical da natureza é um dos mais frequentes nas letras das músicas caiçaras, apresentando 32 lexemas. Palavras-chave: Caiçara; Fandango; Campos Lexicais. Abstract: The caiçaras from the coast of Paraná State are descendants of the miscegenation between Indians, European immigrants and black people. On their ways of life, these groups always had a strong relationship with the nature, because they live in seaside and seaside areas and their ways of living are based at the fishing and the agriculture. This work is part of the master research entitled “O fandango caiçara do Paraná”: uma perspectiva lexical”, in which the aim was to analyze the lexicon fields used by these groups in their most important cultural expression, the fandango. To do that we show the caiçara historical context (PIMENTEL; GRAMANI; CORREA, 2006) and we talk about the concepts of culture and identity (HALL, 2001). Twenty-six songs from the Museu Vivo do Fandango CD, of which we selected 199 nouns that were organized considering the Lexical Fields Theory (GENOUVRIER; PEYTARD, 1974; ABBADE, 2011), composed the corpus. The program WordSmith Tools 7.0 was used for collecting the data. With its WordList Tool we selected the nouns, and with the Concord Tool we observed the contexts in which the words were applied in the songs. The aim of this article is to present the lexical field of the “Nature”, one of the most recurrent in the song, containing thirty-two words. Keywords: Caiçara; Fandango; Lexical Fields. Introdução As comunidades caiçaras do estado do Paraná se constituíram a partir do convívio entre os índios nativos, imigrantes europeus, especialmente portugueses e espanhóis, e negros. Os caiçaras podem ser encontrados na região litorânea paranaense, nas cidades de Morretes,

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O campo lexical da natureza no contexto caiçara

Joni Márcio Dorneles Fontella (UNIOESTE)

Resumo: Este trabalho é parte da pesquisa de mestrado intitulada “O fandango caiçara do

Paraná: uma perspectiva lexical”, na qual o objetivo principal foi analisar os campos lexicais

utilizados pelos caiçaras por meio da sua principal forma de expressão cultural, o fandango.

Para tanto, apresentamos o contexto histórico, de formação étnica, social e cultural desses

sujeitos (PIMENTEL; GRAMANI; CORREA, 2006) e discorremos sobre os conceitos de

cultura e identidade (HALL, 2001). O corpus foi composto de 26 músicas contidas no CD

“Museu Vivo do Fandango” (2006), das quais coletamos um total de 199 substantivos que

foram organizados a partir da teoria dos Campos Lexicais (GENOUVRIER; PEYTARD, 1974;

ABBADE, 2011). O procedimento de coleta de dados se deu com o auxílio do programa

WordSmith Tools 7.0, do qual utilizamos a ferramenta WordList para a seleção dos

substantivos, e Concord para verificar os contextos em que esses lexemas foram utilizados nas

músicas. O objetivo desse artigo é apresentar uma parte do campo léxico da “Natureza”. Pelo

fato de tradicionalmente viverem em regiões ribeirinhas e terem suas formas de subsistência

baseadas na pesca e na agricultura, o campo lexical da natureza é um dos mais frequentes nas

letras das músicas caiçaras, apresentando 32 lexemas.

Palavras-chave: Caiçara; Fandango; Campos Lexicais.

Abstract: The caiçaras from the coast of Paraná State are descendants of the miscegenation

between Indians, European immigrants and black people. On their ways of life, these groups

always had a strong relationship with the nature, because they live in seaside and seaside areas

and their ways of living are based at the fishing and the agriculture. This work is part of the

master research entitled “O fandango caiçara do Paraná”: uma perspectiva lexical”, in which

the aim was to analyze the lexicon fields used by these groups in their most important cultural

expression, the fandango. To do that we show the caiçara historical context (PIMENTEL;

GRAMANI; CORREA, 2006) and we talk about the concepts of culture and identity (HALL,

2001). Twenty-six songs from the Museu Vivo do Fandango CD, of which we selected 199

nouns that were organized considering the Lexical Fields Theory (GENOUVRIER;

PEYTARD, 1974; ABBADE, 2011), composed the corpus. The program WordSmith Tools

7.0 was used for collecting the data. With its WordList Tool we selected the nouns, and with

the Concord Tool we observed the contexts in which the words were applied in the songs. The

aim of this article is to present the lexical field of the “Nature”, one of the most recurrent in the

song, containing thirty-two words.

Keywords: Caiçara; Fandango; Lexical Fields.

Introdução

As comunidades caiçaras do estado do Paraná se constituíram a partir do convívio entre

os índios nativos, imigrantes europeus, especialmente portugueses e espanhóis, e negros. Os

caiçaras podem ser encontrados na região litorânea paranaense, nas cidades de Morretes,

Guaraqueçaba e Paranaguá, e em ilhas localizadas na Bahia de Paranaguá. Historicamente,

esses indivíduos têm tido suas formas de subsistências baseadas na agricultura e na pesca, e o

núcleo familiar constitui a principal força de trabalho.

As famílias caiçaras tradicionais vivem em pequenos grupos isolados e a forma de

socialização se dá por meio de sua principal expressão cultural, o fandango, gênero

coreográfico-musical trazido para o Brasil pelos imigrantes europeus ainda no século XVI.

Importante destacar também que essa forma de expressão cultural pode ser encontrada em

diferentes regiões do Brasil. No entanto, no litoral norte do estado Paraná, entre as comunidades

caiçaras, novas características foram adicionadas a essa música e dança e, dessa forma, o

fandango passou a ser chamado fandango caiçara.

O presente artigo é parte da pesquisa de mestrado intitulada “O fandango caiçara do

Paraná: uma perspectiva lexical”, na qual analisamos as letras de vinte e seis músicas do

repertório do fandango gravadas no CD “Museu Vivo do Fandango” (PIMENTEL:

GRAMANI; CORRÊA, 2006). O objetivo principal da pesquisa foi verificar quais os campos

lexicais podem ser observados na música caiçara, e quais são os temas mais frequentes. Para

tanto, selecionamos os substantivos das canções e os organizamos em campos léxicos com o

auxílio do programa WordSmith Tools 7.0. Neste trabalho apresentamos uma parte do campo

lexical da Natureza, pois, a partir das análises realizadas na dissertação, percebemos que este é

um dos temas mais frequentes nas músicas presentes no material analisado.

Contudo, para termos uma melhor compreensão a respeito do contexto estudado,

iniciamos com um breve histórico daqueles grupos caiçaras (DIEGUES, 2006; PIMENTEL;

GRAMANI; CORRÊA, 2006), fazendo considerações sobre suas origens e suas formas de

organização sociocultural. Então, tratamos dos conceitos de cultura e identidade (HALL,

2001), relacionando-os com as comunidades em foco. Assim, apresentamos a fundamentação

teórica dos campos lexicais (GENOUVRIER; PEYTARD, 1974; ABBADE, 2011), para, na

sequência, apresentarmos uma parte do campo lexical da Natureza, que foi dividido nos

microcampos da Água, das Aves, do Céu e do Ar, das Flores, dos Outros Animais e da Terra.

As comunidades caiçaras: cultura e identidade

A constituição étnica e história das comunidades caiçaras remete ao momento em que

os portugueses chegaram ao Brasil em meados do século XVI. Naquela época, os

descobridores encontraram, além das riquezas naturais, diversos povos indígenas que

habitavam essas terras.

De acordo com Diegues (2006), a região litorânea onde hoje é o estado do Paraná foi

uma das primeiras a ser habitada pelos Ibéricos. E foi a partir do contato entre esses imigrantes

e as tribos indígenas que surgiram os primeiros caiçaras. Além disso, os negros trazidos para o

trabalho escravo na região viriam, mais tarde, fazer parte da miscigenação constituinte desses

povos. No entanto, a mistura étnica que os caracteriza continuou com o passar do tempo.

Diegues (2006, p.13) afirma que, “a esses grupos humanos vieram se ajuntar outros migrantes

europeus como suíços, franceses, alemães, italianos e também norte-americanos”. Assim,

podemos perceber um pouco da complexidade da configuração étnica e cultural desses grupos

sociais, pois, sua formação sofreu influências de toda essa mistura de raças.

Tradicionalmente, as comunidades caiçaras do Paraná se organizam em pequenos

grupos familiares em regiões ribeirinhas do litoral norte do estado. A pesca e a agricultura são

as suas principais atividades econômicas. Segundo Diegues (2006, p. 15), eles teriam

“desenvolvido um conjunto de práticas materiais e imateriais ligadas ao mesmo tempo ao mar

e a terra”, o que os diferencia dos negros que têm sua cultura baseada apenas na agricultura.

A produção de subsistência, voltada para a pesca e a agricultura, requeria que esses

sujeitos estivessem organizados pelo princípio da cooperação, seja na fabricação de utensílios

para a pesca (redes, remos, embarcações), seja nos momentos de preparo da terra ou da colheita

das plantações. Dessa forma, a prática de mutirões para realizar trabalhos voluntários de ajuda

mútua se tornou uma característica comum dessas comunidades. De acordo com relatos de

sujeitos caiçaras registrados no livro “Museu vivo do fandango” (2006), as famílias vizinhas

se ajudavam de forma voluntária quando alguém precisava realizar um trabalho maior. Então,

como forma de reconhecimento, ao final do dia, a pessoa ajudada retribuía convidando a todos

para uma confraternização. Esta celebração se dava por meio do fandango caiçara, expressão

cultural que envolve música, dança e poesia, que é característico daquelas comunidades.

De acordo com Pimentel, Gramani e Corrêa (2006), uma das principais características

desse gênero na cultura caiçara é o uso de instrumentos musicais não convencionais. Os

principais são a viola fandangueira, a rabeca e o adufe. A rabeca é um instrumento de três,

quatro ou cinco cordas, muito semelhante ao violino, e que é fabricado artesanalmente. O adufe

se assemelha ao pandeiro, e também é artesanal. Esse instrumento é utilizado na parte rítmica

da música. A viola fandangueira, como é geralmente chamada, é um instrumento que possui

uma característica que é de suma importância para o fandango caiçara. Ao invés de possuir dez

cordas como as violas tradicionais, essa possui diferentes configurações com relação ao número

de cordas e afinações. Importante destacar que são os próprios caiçaras quem constroem seus

instrumentos musicais e que as técnicas de fabricação são passadas de geração para geração.

A partir das características observadas, relacionamos as comunidades e o gênero em

foco com algumas noções de cultura frequentemente utilizadas nas ciências sociais. Dessa

forma, percebemos que o fandango caiçara pode ser considerado como uma manifestação da

cultura popular, pois é a expressão de um grupo social minoritário, considerado regional. De

acordo com Chaui (1989, p. 10), “do ponto de vista oficial ou estatal, ‘popular’ costuma

designar o regional, o tradicional e o folclórico”. A autora ainda acrescenta que, seguindo esse

pensamento, as manifestações como a Marujada, a Congada, a Ciranda, o Bumba-meu-Boi,

seriam expressões culturais consideradas populares. Nesta perspectiva, o gênero aqui estudado

se inclui nesta categoria.

A importância da noção de cultura nas sociedades modernas se dá, dentre outros

motivos, pelos reflexos diretos que tem na constituição das identidades. De acordo com Hall

(2001), a identidade de um indivíduo não é estática e imutável, mas sim formada e transformada

continuamente, por meio de processos sociais e históricos. Segundo Woodward (2000), a

construção da identidade é regida em grande parte pelo simbolismo cultural, o qual pode ser

tomado como base de apoio e definição de quem pertence ou não a um grupo identitário

determinado.

O fandango caiçara é a manifestação cultural de um grupo minoritário do estado do

Paraná que passou, e ainda passa, por grandes transformações sociais. Segundo Escosteguy

(2000), a identidade cultural, de forma geral, tem sofrido profundas mudanças decorrentes da

globalização, pois “em um mundo que parece dominado por um repertório cultural global,

novas comunidades e identidades estão sendo constantemente construídas e reconstruídas”

(ESCOSTEGUY, 2000, p. 147). Hall (2001) afirma que o sujeito pós-moderno é agora

composto a partir da relação com as outras pessoas, de diferentes esferas culturais, que mediam

novos valores, sentidos e símbolos, a cultura.

Como visto anteriormente, as famílias caiçaras tradicionais viviam em regiões

ribeirinhas do litoral norte do Paraná. Contudo, nas últimas décadas, a migração do interior

para as cidades, especialmente Morretes, Guaraqueçaba e Paranaguá, tornou-se frequente entre

os jovens caiçaras.

De acordo com Hall (2001), não se trata apenas da identidade cultural, mas de todos os

aspectos identitários, como os linguísticos, de raça, de gênero, dentre outros, que estão sendo

deslocados. Na nova perspectiva de vida nas cidades, esses sujeitos passam a ter de lidar com

os percalços de novas formas relacionamentos e com um mundo de possibilidades

disponibilizadas pelos meios de comunicação. Na opinião dos caiçaras mais velhos, por

exemplo, o contato com equipamentos eletrônicos e novas tecnologias fizeram com que os

jovens perdessem o interesse pelo fandango. Vejamos o que diz o caiçara Antônio Neves a esse

respeito:

Quem enfraqueceu nosso lugar e tudo quanto foi lugares assim, foi o rádio.

Quem é que não queria comprar um radiozinho pra gravar, pra toca uma

música? Aí gravava, aquelas músicas que vinha de fora, foram indo, foram

indo, foram dançando, até que todo mundo acostumou com aquilo ali. Depois

foi o CD, depois já foi tudo. Então o fandango acabou por esse motivo aqui.

Jogam o fandango de lado e ficam só no CD, nas músicas de fora (apud

GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 34).

No entanto, mesmo vivendo em novas realidades que desestabilizaram suas formas de

vida tradicionais, percebemos que os sujeitos caiçaras mantiveram, pelo menos da perspectiva

das letras de músicas, as características do fandango. Podemos fazer tal afirmação

considerando o fato de que dentre as vinte e seis músicas que compõem o corpus de pesquisa

encontram-se músicas tradicionais do repertório caiçara e músicas inéditas. Além disso, as

gerações mais velhas dessas comunidades mantêm o fandango vivo. Mesmo sendo com uma

frequência menor do que no passado, esse gênero coreográfico-musical ainda é praticado com

suas características tradicionais.

Nesta seção tratamos do contexto histórico das comunidades caiçaras e fizemos as

relações entre cultura e identidade com o grupo social em foco. Na sequência, apresentamos a

noção dos campos lexicais, que embasam este artigo, e que foi parte da fundamentação teórica

da dissertação mencionada anteriormente.

A noção dos campos lexicais

A teoria dos campos lexicais compreende uma das diversas formas de se trabalhar com

as palavras. De acordo com Abbade (2011), essa abordagem teve sua origem a partir da teoria

dos campos linguísticos, que têm como um dos principais percursores Jost Trier (1931). Os

objetivos das observações desse teórico eram verificar as questões de ordem conceitual das

palavras. Assim, Trier logo percebe que as palavras formam um conjunto estruturado que

trabalha de modo que uma depende da outra na articulação da linguagem. Dessa maneira,

argumenta Abbade (2011), na medida em que o significado de uma se altera, os significados

das outras palavras vizinhas na cadeia organizada também se modificam.

A partir desta perspectiva de trabalho com as palavras surgiram os campos linguísticos,

onde, portanto, os lexemas são agrupados a partir de seu campo conceitual pelo fato de

compartilharem um ou mais traços semânticos em comum.

Na medida em que as pesquisas linguísticas que adotavam essa abordagem foram se

desenvolvendo, chegou-se à noção de campo lexical. De acordo com Ferreira (2009, p. 39),

este conceito surgiu “em oposição às várias visões do léxico como desprovido de estruturação

ou pouco estruturado”. Segundo Genouvrier e Peytard, campo lexical é:

O conjunto das palavras que a língua agrupa ou inventa para designar os

diferentes aspectos (ou os diferentes traços semânticos) de uma técnica, de

um objeto, de uma noção: campo lexical do “automóvel”, da “aviação”, da

“álgebra”, da “moda”, da “ideia de Deus”, etc. (GENOUVRIER; PEYTARD,

1974, p. 318).

Um exemplo de campo lexical do contexto estudado é o dos instrumentos musicais.

Podemos citar a viola fandangueira, a rabeca e o adufe, que são os tradicionais, além de outros

como pandeiro, triângulo e surdo, que também podem ser utilizados no fandango.

Os campos lexicais são formas de subdivisões que se fazem no léxico. Eles podem ser

aplicados sobre o conjunto de palavras utilizado por algum grupo social determinado, visto que

cada grupo tem sua norma linguística própria. De acordo com Genouvrier e Peytard (1974),

tais subdivisões são realizadas em decorrência dos sentidos veiculados pelas palavras e por

questões de ordem sociocultural. Portanto, os campos léxicos variam na medida em que mudam

os grupos contextos sociais.

Em um país continental como o Brasil, as diferenças culturais são também muito

grandes. Isso resulta em diferentes tipos de experiências, em variações linguísticas, tipos de

expressões próprias de cada estado, e assim por diante. Dessa forma, um campo léxico

determinado pode não ser exatamente igual em diferentes regiões do país. Se analisarmos o

campo lexical dos instrumentos musicais a partir da norma padrão da língua portuguesa, por

exemplo, encontraremos palavras como: guitarra, baixo, violão, piano, bateria, flauta, dentre

outras. Muitas destas palavras, no entanto, não são observadas no campo lexical da música

caiçara. No fandango caiçara não se utiliza baixo e bateria, por exemplo.

Como visto anteriormente, as palavras são agrupadas em grupos de acordo com cada

campo específico. Contudo, diferentes tipos de agrupamentos podem ser feitos. Além disso,

existem casos em que existe a necessidade de se definir um novo referente extralinguístico.

Isso acontece no campo lexical da música caiçara, no qual não se encontram instrumentos

tradicionais, como o piano e a guitarra, mas sim outros típicos daquele contexto. De acordo

com o que foi apresentado na seção anterior, pelo fato das violas de fandango serem fabricadas

pelos próprios membros das comunidades caiçaras, elas possuem formas diferenciadas das

convencionais. Nessa perspectiva, a palavra viola adquire uma nova significação dentro do

contexto caiçara. Além disso, tipos de afinações não tradicionais são usados nessas violas.

Assim, a formação dos acordes1 é diferente dos usuais. Dessa forma, foram inventadas novas

palavras para definir essas novas maneiras de se formar os acordes, aumentando e

diferenciando o campo lexical da música caiçara quando comparado com o da música

tradicional.

A utilização dos campos lexicais na pesquisa linguística que nos propusemos a

desenvolver nos ajudou a analisar o léxico presente na expressão cultural do fandango caiçara,

organizando-os em campos. Dessa maneira, pudemos verificar as principais e as mais

recorrentes temáticas abordadas por essas comunidades por meio de sua música. Na sequência

apresentamos os passos metodológicos da pesquisa.

Metodologia

Como corpus deste artigo, assim como para a pesquisa de mestrado, selecionamos letras

de músicas do fandango caiçara registradas no CD duplo que faz parte do material elaborado a

partir do projeto “Museu vivo do fandango”. Coordenado pela associação cultural Caburé, o

projeto ocorreu durante os anos de 2005 e 2006, e contou com a participação de centenas

membros das comunidades caiçaras do litoral norte do Paraná e litoral sul de São Paulo. No

livro publicado a partir do projeto, há registros da história desses grupos sociais relatadas por

1 Um acorde corresponde à união dos sons de ao menos três notas simultâneas. Uma sequência de acordes forma

a harmonia de uma música. Nos instrumentos de corda, como a viola, a formação de um acorde será determinada

pela localização do braço do instrumento em que os dedos pressionam as cordas.

estudiosos da área e, também, entrevistas com os próprios caiçaras, falando, especialmente,

sobre sua cultura. Como nosso objetivo foi estudar uma manifestação cultural paranaense

selecionamos as músicas do CD 2, no qual estão gravadas as canções deste estado. No CD 1

estão registradas as músicas do estado de São Paulo. Assim, o corpus foi constituído por 26

letras de fandango.

Para a coleta dos dados utilizamos o WordSmith Tools 7.0, uma das ferramentas da

Linguística de Corpus que têm sido amplamente usada em diversas áreas de estudos

linguísticos nas últimas décadas. De acordo com Berber Sardinha (2009), o WordSmith Tools

é um “conjunto de programas integrados (‘suite’) destinado à análise linguística. Mais

especificamente esse software permite fazer análises baseadas na frequência e na co-ocorrência

das palavras em corpora” (BERBER SARDINHA, p. 06, 2009).

O programa possui três ferramentas principais, WordList, Concord e Keywords. Com a

utilização da primeira obtivemos o total de lexemas, 626, e a frequência em que cada um

apareceu no corpus. A segunda permite com que vejamos as concordâncias das palavras.

Assim, pudermos verificar em quais acepções cada um dos lexemas eram utilizados naquela

cultura. Não usamos a ferramenta Keywords para o presente trabalho.

Delimitamos o corpus da seguinte maneira: excluímos as palavras gramaticais, como

artigos, conjunções e preposições, pois estas não retratam a realidade extralinguística. Os

verbos e os adjetivos também foram desconsiderados, uma vez que nessas classes de palavras

foi observado um grande número de variação linguística e de regionalismos. Estas questões

não estavam em nossos objetivos de investigação. Assim, o corpus foi constituído por

substantivos, dos quais consideramos os que apresentaram traços de significados comuns.

Na elaboração dos campos lexicais adotamos os seguintes critérios: 1) os lexemas são

apresentados em ordem alfabética; 2) as palavras são apresentadas em letras maiúsculas e em

negrito, seguidas de suas definições; 3) quando um lexema é utilizado com mais de uma grafia

apresentamos apenas a que corresponde com a norma padrão do Português Brasileiro.

Para as definições dos lexemas apresentados nos campos lexicais procedemos da

seguinte maneira: 1) consultamos dois dicionários gerais, o “Novo Dicionário Aurélio da

Língua Portuguesa” (1999) e o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” (2001); 2)

verificamos se a acepção apresentada no contexto caiçara coincidia com as acepções

encontradas nos dicionários; 3) a partir disso, elaboramos as definições para cada um dos

lexemas de acordo com a cultura estudada. Assim, após cada entrada, com suas devidas

acepções, apresentamos exemplos coletados do corpus, indicando entre parênteses o nome da

canção da qual o trecho foi retirado.

Campo lexical da natureza

Dentre todos os campos lexicais identificados na pesquisa, o da Natureza foi o que

apresentou o maior número de lexemas, 32 no total. Organizamos essas palavras em seis

microcampos: da Água, das Aves, do Céu e do Ar, das Flores, dos Outros Animais e da Terra.

Na sequência apresentamos dois lexemas de cada um desses microcampos, com suas

respectivas definições e exemplos de sua ocorrência no corpus.

Microcampo da Água:

FONTE (s.f) – Extensão pequena de água corrente própria para uso doméstico; nascente, bica;

• “...lá no alto do caminho, feliz meu bem, há uma fonte de beber...” (Feliz)

RIBEIRÃO (s.m) – Extensão de água maior que um regato, mas menor do que um rio.

• “Me pus a chorar saudade, lai, lai, na beira do ribeirão, as águas me responderam, lai,

lai, do que chora coração? ...” (Dandão – Passeia, meu bem, passeia).

Microcampo das Aves:

ANDORINHA (s.f.) – Ave passeriforme hirundinídea, que se alimenta de insetos.

• “...andorinha voou foi embora, lá sentou na linha de fora, deixou os ovos chocando no

ninho...” (Andorinha).

CUITELINHO (s.m.) – Mesmo que beija-flor.

“...como é bom de passear, eu não ando por passeio, ando por te visitar, o meu cuitelinho verde,

lai, lai, ta cansado de avoar...” (Dandão – Passeia, meu bem, passeia).

Microcampo do Céu e do Ar:

CÉU (s.m.) – Espaço indefinido limitado pelo horizonte, onde movem as nuvens.

NUVEM (s.f) – Conjunto visível de partículas de água ou de gelo em suspensão na atmosfera

que dão origem à chuva.

• “...lá no céu anda uma nuvem, lai, lai, dizendo que quer chover, longe de mim tem um

olho, lai, lai, que deseja de ver” (Dandão – Passeia, meu bem, passeia).

Microcampo das Flores:

CRAVO (s.m.) – Flor do craveiro.

• “...viva o cravo e viva a rosa, vem cá, vem cá, que nós hoje se ajuntamo, vem cá, vem

cá, vem cá, morena...” (Dandão – vem cá morena).

ROSA (s.f.) – Flor da roseira.

• “...eu quero te dar uma rosa, vem cá, vem cá, que tenho no coração, vem cá, vem cá,

vem cá, morena...” (Dandão – vem cá morena).

Microcampo dos Outros Animais:

CAVALINHO (s.m.) – Mamífero perissodátilo da família dos equídeos, de grande porte,

cauda e crina longas, cabeça relativamente pequena e orelhas curtas.

• “...quando eu chego no fandango, chego no meu cavalinho, passo a mão no meu cavaco

e toco meu ponteadinho...” (Dandão – quando eu chego no fandango).

JACARÉ (s.m.) – Réptil crocodiliano da família dos aligatorídeos, de focinho largo e chato,

encontrados especialmente nos rios e pântanos.

• “Jacaré levanta, levanta, vem fazer seu canjerê, que aqui não é sua terra, você não pode

viver...” (Jacaré).

Microcampo da Terra:

JARDIM (s.m.) – Parte de um terreno onde se cultivam flores e plantas.

• “...cuitelinho do jardim, vem cá, vem cá, vem cá, morena, foi ele que me ensinou, vem

cá, vem cá, eu me despedir assim...” (Dandão – Vem cá morena).

MATO (s.m.) – Local com vegetação, ou florestas não cultivadas, afastado das cidades.

• “...nesse mato não tem passarinho, quero dar a despedida, despedida vamos dar, oi

larai...” (Andorinha).

Estes foram alguns dos lexemas do campo lexical da Natureza, o qual foi o mais

frequente no corpus analisado, e desempenha papel muito importante no contexto caiçara. As

outras palavras que o compõem, assim como os outros campos lexicais, podem ser vistas nas

análises da pesquisa.

Considerações finais

A partir do que foi observado com o estudo da formação histórica, social e cultural dos

caiçaras, acreditamos que é natural que nas músicas de fandango se aborde a natureza com

bastante frequência. Esses grupos têm na pesca e na agricultura a base de sua subsistência.

Assim, as relações com o mar, os rios, a mata, os animais, dentre outros, fazem parte do dia a

dia desses sujeitos.

Quando nos propomos em analisar as letras de músicas dessa cultura, traçamos como

objetivos específicos verificar quais as temáticas abordadas nessas canções, e quais eram as

mais recorrentes. Este artigo é, portanto, parte das respostas encontradas para aquelas

indagações. Constatamos que a Natureza não é somente o lugar onde esses sujeitos buscam seu

alimento, sua fonte de renda, ela é também uma inspiração, que eles exprimem por meio da sua

principal forma de expressão cultural, o fandango.

Referências

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