O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou...

28
O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” Sylvia Moretzsohn Universidade Federal Fluminense Índice 1 Introdução 1 2 A abrangência da mídia 1 3 A invasão de espaços 3 4 Câmera oculta, transparência engana- dora 7 5 Diante dos marginalizados: a ação da mídia no projeto de exclusão social 8 6 O caso Tim: preliminares 14 7 Sexo, drogas e funk and all 16 8 A mídia vigilante, substituta do Es- tado 21 9 No “memorial dos mártires”: Tim, Herzog e... Baumgarten 23 10“Aqui está Elias Maluco” 24 11Bibliografia 27 1 Introdução O assassinato do repórter Tim Lopes, no iní- cio de junho de 2002, foi desses casos trá- gicos capazes de subitamente pôr em xeque alguns dos fundamentos que orientam a atu- ação da grande imprensa brasileira: de um lado, os limites e os métodos da profissão, envolvendo especialmente o uso da câmera oculta, e de outro o tratamento comumente dispensado às pautas voltadas para o que se poderia chamar genericamente de “margina- lidade social”. Entre jornalistas, porém, à parte raras ini- ciativas questionadoras do uso desse método, o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe- rada reação corporativa, centrada principal- mente num conflituoso debate sobre a segu- rança no exercício da profissão, realizado em seminários e publicações eletrônicas especi- alizadas, com não raras acusações de negli- gência e autoritarismo à Rede Globo, onde o repórter trabalhava. Para o público em geral, o caso prestou-se acima de tudo para reiterar a enorme misti- ficação que esta mesma imprensa promove em torno de si própria, contribuindo especi- almente para sedimentar a imagem da maior rede de televisão do país como defensora – e, no limite, até mesmo a verdadeira expressão – dos valores e direitos da cidadania, eviden- temente vinculados aos sagrados ideais do jornalismo. A classificação do assassinato como um atentado à liberdade de imprensa e a elevação do repórter à condição de már- tir, a ponto de passar a figurar num – como se verá – igualmente mistificador memorial erguido nos EUA para homenagear aqueles que morreram supostamente em nome do di- reito de informar, são aspectos significativos desse embuste. Finalmente, do ponto de vista da cober- tura, o caso seria mais uma expressão da ve- lha dicotomia que a imprensa ajuda a plas-

Transcript of O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou...

Page 1: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”

Sylvia MoretzsohnUniversidade Federal Fluminense

Índice

1 Introdução 12 A abrangência da mídia 13 A invasão de espaços 34 Câmera oculta, transparência engana-

dora 75 Diante dos marginalizados: a ação da

mídia no projeto de exclusão social 86 O caso Tim: preliminares 147 Sexo, drogas efunk and all 168 A mídia vigilante, substituta do Es-

tado 219 No “memorial dos mártires”: Tim,

Herzog e... Baumgarten 2310“Aqui está Elias Maluco” 2411Bibliografia 27

1 Introdução

O assassinato do repórter Tim Lopes, no iní-cio de junho de 2002, foi desses casos trá-gicos capazes de subitamente pôr em xequealguns dos fundamentos que orientam a atu-ação da grande imprensa brasileira: de umlado, os limites e os métodos da profissão,envolvendo especialmente o uso da câmeraoculta, e de outro o tratamento comumentedispensado às pautas voltadas para o que sepoderia chamar genericamente de “margina-lidade social”.

Entre jornalistas, porém, à parte raras ini-ciativas questionadoras do uso desse método,o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso debate sobre a segu-rança no exercício da profissão, realizado emseminários e publicações eletrônicas especi-alizadas, com não raras acusações de negli-gência e autoritarismo à Rede Globo, onde orepórter trabalhava.

Para o público em geral, o caso prestou-seacima de tudo para reiterar a enorme misti-ficação que esta mesma imprensa promoveem torno de si própria, contribuindo especi-almente para sedimentar a imagem da maiorrede de televisão do país como defensora – e,no limite, até mesmo a verdadeira expressão– dos valores e direitos da cidadania, eviden-temente vinculados aos sagrados ideais dojornalismo. A classificação do assassinatocomo um atentado à liberdade de imprensae a elevação do repórter à condição de már-tir, a ponto de passar a figurar num – comose verá – igualmente mistificador memorialerguido nos EUA para homenagear aquelesque morreram supostamente em nome do di-reito de informar, são aspectos significativosdesse embuste.

Finalmente, do ponto de vista da cober-tura, o caso seria mais uma expressão da ve-lha dicotomia que a imprensa ajuda a plas-

Page 2: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

2 Sylvia Moretzsohn

mar em sua pauta cotidiana: a divisão entre“bandidos” e “homens de bem”, entre “eles”e “nós”, no contexto de solidariedade entremídia e sistema penal apontado por Nilo Ba-tista1. Com uma particularidade fundamen-tal, pois nesse caso a imprensa atua explici-tamente como personagem.

2 A abrangência da mídia

Comecemos pela primeira ordem de ques-tões. A discussão sobre os limites do jorna-lismo relaciona-se à discussão sobre os mé-todos e é certamente a mais complicada. Issoporque as definições clássicas de jornalismovão se diluindo nessa era das grandes corpo-rações de comunicação, que se ocupam tantodo que se entende por informação noticiosaquanto de espetáculos e entretenimento. Tal-vez por isso, hoje, se fale menos em im-prensa do que em mídia, esse termo difuso,impreciso e abrangente que implica a apre-ciação de diversas formas de comunicação,desde o noticiário tradicional a shows de va-riedades que investem pesadamente na expo-sição de dramas populares e procuram inter-mediar soluções para eles (ou mesmo apre-sentar as próprias soluções) a título de “pres-tação de serviço”, passando por novelas queabraçam causas “sociais” e são aplaudidaspor certos intelectuais, juristas e pelo própriopoder público como importantes instrumen-tos em defesa dessas causas (desde a “de-núncia social” à sempre incentivada “buscade soluções”), como a campanha em favorda busca de crianças desaparecidas ou, maisrecentemente, a luta contra as drogas. A pro-

1 Nilo Batista. “Mídia e sistema penal no capita-lismo tardio”, inDiscursos Sediciosos – crime, direitoe sociedade, no 12. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2o se-mestre de 2002. p. 253-270.

pósito, está aí a imagem do presidente da Re-pública na capa da edição doGlobode 20 dejunho de 2002, homenageando autora e ato-res da mais recente novela, e por extensão aprópria Rede Globo, pela relevância dos ser-viços prestados.

A Globo, aliás, dedicou um bloco inteirode uma edição de maio do Jornal Nacionalpara demonstrar o comprometimento socialde sua dramaturgia. Para quem consegue ver,é claro o entrelaçamento entre realidade eficção que se estabelece, seja em aspectos daprópria trama (a presença do senador Edu-ardo Suplicy no enterro do senador Caxias,personagem de Carlos Vereza, o angustiado– et pour cause– defensor da reforma agrá-ria em “O Rei do Gado”; a inserção de de-poimentos “da vida real” de ex-viciados cor-tando as cenas conflituosas protagonizadaspelos atores que representavam o papel de vi-ciados em “O Clone”), seja, mais claramenteainda, no caso exemplar em que o noticiárioda morte de uma atriz foi incorporado pelanovela em que ela atuava, enquanto, inver-samente, o Jornal Nacional incorporava ascenas da novela para romancear as informa-ções sobre o crime, numcontinuumem quese embaralhavam o real e o ficcional, mas deextrema eficácia para o resultado (este, muitoreal) que se pretendia: o assassinato de Da-niela Perez, filha da autora da novela, foi ele-mento decisivo para a aprovação de uma am-pliação da Lei de Crimes Hediondos.

Dessa forma, demarcar os limites do jor-nalismo não tem tanta importância assimpara o público, pois o processo de produ-ção de sentido se dá nesse contexto de inter-relação das diversas formas comunicativasque compõem o campo da mídia.

No entanto, discutir os limites do jor-nalismo é algo crucial não só para quem

www.bocc.ubi.pt

Page 3: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 3

exerce a profissão como para quem entendea questão da comunicação como decisivapara qualquer projeto de intervenção social.Mesmo porque, não é difícil verificar comoos postulados clássicos da imprensa comoserviço público se estendem à atividade damídia de maneira geral, e esta não é umainfluência menor: definir os limites do jor-nalismo significa precisar o alcance dessa“prestação de serviço”, o que pode interfe-rir positivamente nas várias outras manifes-tações da mídia. Daí a ressalva acima, paradeixar clara a necessidade de se tomar o jor-nalismo sempre na perspectiva de sua rela-ção com o público, se desejarmos uma dis-cussão conseqüente.

3 A invasão de espaços

Como se sabe, a atividade jornalística é tri-butária do projeto iluminista de “esclare-cer os cidadãos”. Trata-se, portanto, de ta-refa eminentemente política, cujo caráter éfreqüentemente escamoteado através de umainterpretação propositalmente restritiva doprincípio do “dever de informar”, que daíconclui pela necessidade de uma postura im-parcial e distanciada, como se não houvesseintencionalidades no ato de selecionar os fa-tos que se tornarão notícia, ou como se a pró-pria apreensão dos fatos já não fosse tambémuma interpretação2.

O reconhecimento do papel político dojornalismo, porém, obviamente não lhe con-fere o direito de substituir outras institui-ções. Apesar disso, é notório que a imprensavem procurando exercer funções que ultra-

2 Georg Lukács. “O marxismo ortodoxo”, inHis-tória e consciência de classe. Lisboa, Escorpião,1974, p. 20.

passam de longe o seu dever fundamental,assumindo freqüentemente tarefas que cabe-riam à polícia ou à justiça. E essa invasãode espaços pode ser considerada justamentea partir de uma definição cara à imprensa: aqualificação de “quarto poder”, que data doinício do século XIX e lhe confere ostatusde guardiã da sociedade (contra os abusos doEstado), representante do público, voz dosque não têm voz. É certamente sustentadapor essa visão mistificadora – porque enco-bridora dos interesses da empresa jornalís-tica, desde sua constituição, há dois sécu-los, e especialmente agora na era das gran-des corporações – que a imprensa se arrogao direito de penetrar em outras áreas.

Tal invasão busca legitimar a imprensajunto à opinião pública que ela mesma ajudaa formar, com a vantagem de atuar num re-conhecido vácuo (a distância entre o apare-lho judiciário e o homem comum, para ficarapenas no exemplo mais recorrente). VicenteRiccio chama a atenção para o fato de queas críticas usualmente feitas a essa invasãode espaços não consideram justamente a di-ficuldade, nada inocente ou casual, de acessodo homem comum à justiça3, mas peca pornão perceber a mídia como ator do processo:talvez por isso considere que programas po-pulares como o do Ratinho dão,de fato, vozao público, esquecendo dos enquadramentosautoritários próprios a esses programas devariedades, que estão longe de ser um reco-nhecimento dos problemas e reivindicaçõespopulares4.

3 Vicente Riccio. “A lei em tela e a tela da lei –o direito e osreality shows”, in Dados– Revista deCiências Sociais, Rio de Janeiro, Iuperj, vol. 44, no 4,2001, p. 773-805.

4 Cf., a propósito, entre outros, Maria TherezaFraga Rocco. Linguagem autoritária– televisão e

www.bocc.ubi.pt

Page 4: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

4 Sylvia Moretzsohn

Programas que adotam o modelo de umtribunal não são propriamente novidade –recordem-se “O homem do sapato branco”,de Jacintho Filgueiras Jr., entre os anos 60e 70, e seu correlato “Advogado do Diabo”,de Oswaldo Sargentelli, ou “O povo na TV”,de Wilton Franco, entre fins dos 70 e iníciodos 80 –, e não deixam de ser uma formade invadir um lugar reservado, em princí-pio, a outras instâncias decisórias. Mas umaanálise mais ampliada dessa ocupação deespaços não pode ignorar que se trata deuma estratégia empresarial muito bem con-duzida no contexto do neoliberalismo: a re-dução do tamanho do Estado é “compen-sada” pela “responsabilidade social” de “em-presas cidadãs”, de acordo com a formulaçãode uma “nova ética de co-responsabilidade”(entre Estado, empresas e sociedade civil)que mascara conflitos e valoriza indiscrimi-nadamente iniciativas voltadas para “fazer obem”.

Francisco de Oliveira já sintetizou a crí-tica a esse conceito de “empresa cidadã” notempo em que ele ainda não se havia disse-minado, demonstrando, em artigo naFolhade S. Paulo, o absurdo de se investir de sen-tido político algo que é do domínio estrita-mente econômico. Mas o neoliberalismo tra-balha competentemente a polissemia que elepróprio ajuda a dar à palavra “cidadania”, demodo a diluir seu sentido político, para daíprivatizá-lo5. A proliferação de organizaçõesnão-governamentais fundadas por empresas,

persuasão. São Paulo, Brasiliense, 1988, e Maria Te-reza P. da Costa. O programa Gil Gomes – a justiçaem ondas médias. Campinas, Unicamp, 1992.

5 Nilo Batista. “A privatização da cidadania”.Texto apresentado no colóquio “Cidades, cidadania edireitos”. Laboratório Cidade e Poder, Niterói, ICHF,2 de julho de 2002.

destacando o sentido social de sua atividade,é uma demonstração do alcance desse traba-lho permanente de produção de consenso.

Trata-se de uma formulação cujo deta-lhamento evidentemente excede este espaço,mas cabe ressaltar que, entre essas empre-sas, as Organizações Globo se destacam empelo menos três frentes: no campo da edu-cação, com o projeto Amigos da Escola,na assistência social, com o Criança Espe-rança, e na área jurídico-policial, com o pro-grama “Linha Direta”. Fazendo exemplar-mente a propaganda de sua própria inicia-tiva, amparada pelo poder de maior rede detelevisão do país, a Globo vai assim procu-rando consolidar-se como legítima substitutado Estado (isto é, como agente de privatiza-ção do Estado), com muitas vantagens sobreele, pois livre do peso da burocracia, capazde demonstrar eficiência em resultados visí-veis e imediatos.

Detalhemos apenas o que ocorre no campocriminal: como Nilo Batista demonstrouexemplarmente, existe uma solidariedadeentre mídia e sistema penal, absolutamentefuncional ao neoliberalismo6: a sistemáticaprodução da histeria punitiva na maneira es-colhida para a exposição de crimes, casosde corrupção ou incivilidades variadas, maisou menos corriqueiras, adicionando cada vezmais lenha à fogueira inquisitorial daquiloque Loïc Wacquant chamou de Estado penal,a substituir o Estado do bem-estar, incompa-tível com a lógica neoliberal.

Assim, “o novo credo criminológico damídia tem seu núcleo irradiador na própriaidéia de pena”, e é a equação penal (se houvedelito, tem de haver pena) “a lente ideoló-

6 Nilo Batista. “Mídia e sistema penal no capita-lismo tardio”, art. cit.

www.bocc.ubi.pt

Page 5: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 5

gica que se interpõe entre o olhar da mídia ea vida, privada ou pública”.

O discurso criminológico midiático pre-tende constituir-se em instrumento de aná-lise dos conflitos sociais e das instituiçõespúblicas, e procura fundamentar-se numaética simplista (a “ética da paz”) e numahistória ficcional (um passado urbano cor-dial; saudades do que nunca existiu, aquiloque Gizlene Neder chamou de “utopias ur-banas retrógradas”). O maior ganho tá-tico de tal discurso está em poder exercer-se como discurso de lei e ordem com sa-bor “politicamente correto”. (...) A penajá não interessa tanto como inflição de so-frimento ou mesmo fórmula desastrada desolução de conflitos: a pena interessa comorecurso epistemológico, como instrumentode compreensão do mundo. Por outro lado,o desmonte do Estado encontra neste dis-curso uma eficiente picareta, capaz de exi-bir os vícios da burocracia estatal – histori-camente dominada pelas oligarquias nacio-nais – como um problema do próprio Estadoe não das classes sociais que quase sem-pre o ocuparam. Trata-se de procedimentoanálogo à enfática negação de qualquer de-terminismo nos crimes patrimoniais pratica-dos por pobres: a “moralização” do delito éa legítima sucessora de sua “naturalização”positivista, e os caminhos da responsabili-zação penal ficam livres de todo escrúpulo.No reino do individualismo, só o indivíduopode ser responsável por estar na peniten-ciáia.7

Ocorre que esse vínculo entre mídia e sis-tema penal é convenientemente disfarçadoatrás da imagem de “quarto poder” – a im-prensa “abrindo os olhos do Estado para as

7 idem, p. 271.

falcatruas debaixo do seu nariz”, como afir-mouO Globoem editorial de 27 de novem-bro de 2001. Mas, nesse processo de “abriros olhos”, a imprensa mobiliza o sistema pe-nal, instado a dar respostas ao descalabro no-ticiado. Foi assim no famoso caso do seqües-tro do ônibus 174, que ensejou um “PlanoNacional de Segurança”; foi assim tambémna mais ainda famosa reportagem sobre a“Feira das Drogas”, ganhadora do PrêmioEsso de 2001: nada ali era novidade, apenaso rosto de alguns traficantes, que, identifica-dos, acabaram presos – a “satisfação” que apolícia teria de dar à “opinião pública indig-nada”.

A propósito, a série sobre cidadania queo Jornal Nacional exibiu em agosto, sob avinheta “O poder do cidadão”, era apresen-tada explicitamente como “um espaço paraajudar” o público nas eleições que se apro-ximavam, partindo da justa compreensão deque a participação do eleitor não se esgotano momento do voto. Tudo bem dentrodo propósito original de “esclarecer os cida-dãos”. Mas é na forma de abordar o temaque a emissora demonstra os conceitos comos quais trabalha. O episódio mais ilustra-tivo é o segundo, “mobilização e cidadania”,que começa com as imagens do “exército dedonas de casa armadas com pranchas e cane-tas” a fiscalizar preços em supermercados. Orepórter esclarece: “o Movimento das Donasde Casa, que existe há 19 anos, não se limitaa conferir preços. Ele foi essencial para aaprovação da Lei dos Direitos do Consumi-dor”, que, entre tantas coisas, resolveu o pro-blema de Irani Aguilar, compradora de umageladeira que deixou de funcionar três diasdepois.

www.bocc.ubi.pt

Page 6: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

6 Sylvia Moretzsohn

Repórter (caminhando por um corredor depresídio):A lei que deu uma geladeira nova a Iranifoi resultado da união de pessoas que sozi-nhas não teriam força nenhuma. Uma leitem sempre dois propósitos. O primeiro éevitar que um determinado crime seja co-metido. Mas se acontecer, a lei serve paraaplicar ao criminoso uma pena que sirva dereparação às vítimas, que faça justiça e eviteque o mau exemplo se repita.

O repórter fecha a porta da cela com o es-trondo ampliado pelo efeito sonoro. Cortapara a cena seguinte, a história do seqüestroe assassinato, em 1992, de uma menina de 5anos, que teve o corpo carbonizado. Entãose estabelece o vínculo tão caro ao neolibe-ralismo: o sentido da cidadania associado aomercado. O cidadão cioso de seus direitosconsome boas geladeiras e luta pela sua se-gurança. Sempre com o recurso ao sistemapenal, que deve ser severo para trancafiar osdesonestos ou assassinos.

Segue a reportagem. Sobre imagens demultidão, o repórter aplaude: “Foi justa-mente a mobilização popular que levou oCongresso Nacional a mudar a legislaçãoanti-seqüestro. Mobilização que ganhouforça depois de um crime bárbaro”.

Corta para o interior do quarto da menina,hoje ocupado pelas outras duas filhas de Jo-célia Brandão: ursinhos de pelúcia, retratos,“as lembranças”, diz o repórter, “estão portoda parte”.

Repórter (sobre imagens da mulher no Fó-rum, abraçada à novelista Glória Perez):A dor levou Jocélia a se unir a outros paise mães que passaram por situação seme-lhante. Juntos, fizeram uma campanha paraendurecer a lei contra o seqüestro.

(cena de Glória Perez abraçando Jocélia)Jocélia:Na história do país, nunca tinha acontecido.Em três meses e meio, mais ou menos, con-seguimos 1,5 milhão de assinaturas.Repórter (off, sobre cena de repressão a su-postos criminosos deitados no chão com asmãos na cabeça, outros chegando a uma de-legacia e cobrindo o rosto)Hoje quem pratica um seqüestro tem penasmais longas, sem chance de habeas-corpus.(...)Repórter (off, sobre imagem da mulher pas-seando com o marido e os filhos numa pra-cinha):Ao lado dos três filhos, Jocélia tem fé nofuturo. Acha que, com sua luta, ajudou atornar o Brasil mais justo. Com o voto, pre-tende fazer o mesmo.Jocélia:Nós temos um poder em nossas mãos im-pressionante. Quando as pessoas querem,elas conseguem muita coisa.

Clareza maior, impossível: a mobilizaçãopopular torna o país mais justo, e essa justiçasignifica a radicalização punitiva.

Não se trata, porém, apenas de pautar asagências do sistema penal: Batista aponta aprópria “executivização” desse sistema, e dácomo exemplo mais acabado dessa ação oprograma Linha Direta.

O estudo de Kleber Mendonça sobre oprograma já demonstrava a forma pela qual aGlobo se apresentava como instância de ser-viço público, propondo-se a suprir deficiên-cias do sistema penal, oferecendo ao públicouma “linha direta com a cidadania” e pro-pondo “fazer a justiça funcionar como deve-ria”8. Batista, que prefaciou o livro, nota amudança de grau na atuação dos meios de

8 Kleber Mendonça.A punição pela audiência –

www.bocc.ubi.pt

Page 7: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 7

comunicação nesse caso: “estamos fora domodelo convencional dotrial by media: nãose trata aqui de influenciar um tribunal, se-não de realizar diretamente o próprio julga-mento”.

No sábado de verão em que escrevo esteprefácio, noticia-se o linchamento, pelospresos da carceragem policial de Cabo Frio,de Ronaldo Josias de Souza, ocorrido seishoras após sua prisão. O homicídio de queele era acusado, ocorrido ano passado emJoão Pessoa, fora exibido “pelo programaLinha Direta, da Rede Globo, na noite dequinta-feira” (O Dia, 16 fev. 02, p. 8). Selevarmos em conta que o programa terminapor volta de 23h, Linha Direta tem um novorecorde a comemorar: prisão em seis horase linchamento em doze9.

Algo semelhante ocorre quando a mídiadesempenha aparentemente seu papel maisestrito de “meio” eapenastransmite umainformação, expondo imagens gravadas porcircuitos internos de TV. Foi o que ocorreuno caso da babá flagrada batendo na criançade quem ela deveria cuidar, em Goiânia: naedição seguinte à divulgação da cena, os jor-nais publicaram foto da moça tentando esca-par de uma “tesoura” desferida por um rapaz,numa estrada de terra. “Bateu, levou” era otítulo da legenda doGlobo, na capa da edi-ção de 31 de julho de 2002. Na seqüência donoticiário, especialmente televisivo, o explí-cito desagrado na expressão dos locutores aoinformar a pena imposta à babá: prestaçãode serviços comunitários, em vez de puniçãoexemplar atrás das grades.

um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro, Quar-tet/Faperj, 2002, p. 18.

9 Nilo Batista, prefácio a Kleber Mendonça, op.cit., p. 14-15.

Tais são conseqüências a que pode che-gar esse projeto de “fazer justiça” (bateu, le-vou?) que passa por cima de garantias fun-damentais como o direito ao devido processolegal, anulando conquistas históricas resul-tantes das revoluções liberais de fins do sé-culo XVIII, e que fundamentariam a idéiamoderna de cidadania. É justamente a dilui-ção do sentido dessa idéia, nos tempos atu-ais, que permite à mídia justificar sua atua-ção em nome dela. Análises futuras poderãodetalhar os desdobramentos desse termo nodiscurso midiático, para configurar melhor otipo de cidadão que a imprensa diz represen-tar.

4 Câmera oculta, transparênciaenganadora

Uma interpretação muito particular da idéiade “quarto poder” já nos permitiria levara perceber os motivos por que a imprensachama a si o direito de utilizar todo e qual-quer meio, lícito ou não, para penetrar ondequer que seja, em nome do sagrado direito deinformar – ou, o que dá no mesmo, em nomedo direito do público de saber. É um postu-lado que sobrevive apesar de críticas recor-rentes e muito bem fundamentadas (afinal,o “direito de saber” está subordinado a es-colhas definidas pela própria mídia, no con-texto das relações de poder em que ela se in-sere), de modo a parecer natural. Mas vimosaqui mesmo que a tarefa de informar nuncaé inocente – e, no caso, destina-se explici-tamente a “abrir os olhos do Estado”. Seo Estado não funciona, nada mais lógico doque assumir o seu lugar. Em termos de mé-todos, a conseqüência lógica dessa ultrapas-sagem de limites é a legitimação do recurso

www.bocc.ubi.pt

Page 8: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

8 Sylvia Moretzsohn

à câmera oculta, ponto culminante das varia-das estratégias de travestimentos nunca sufi-cientemente discutidos – mesmo porque ha-bitualmente louvados como o requisito de es-perteza característico de todo bom repórter –que marcam a história do jornalismo. Espe-cialmente nesses tempos em que tanto se falade transparência como supremo valor ético,esse recurso parece ainda mais justificado.

O ideal da transparência, porém, é enga-nador. De saída, esconde coisas importantescomo os interesses empresariais dos própriosjornais e das fontes que os alimentam, e oprocesso de seleção das informações que nossão oferecidas. Além disso, sugere a necessi-dade de exposição imediata dos fatos, comose a simples exposição bastasse para esclare-cer o público.

Assim se ocultam as relações de poder quedirecionam o foco dessa câmera, a vascu-lhar determinados ambientes propiciadoresde evidências às vezes fáceis de variados ti-pos de ilegalidades mais ou menos escanda-losas.Determinadosambientes: nunca umareunião reservada da Fiesp ou do Planalto,a não ser que interesses políticos assim oimponham; jamais uma reunião privada naRede Globo.

Tampouco se revela o processo de elabo-ração discursiva: as imagens mostram per-sonagens à vontade, comportando-se “natu-ralmente”, sem as defesas próprias de quemsabe estar sendo entrevistado, e entrevistadopara a televisão. Dessa forma, garantem oespetáculo – a sensação de que penetramosem lugares proibidos e ficamos sabendo decoisas que outros, eventualmente “podero-sos”, gostariam de esconder. Mas essas “evi-dências” são falseadoras, tanto porque eli-dem a existência do jogo de representaçõesinerente às relações sociais (o que a câmera

expõe é visto como um flagrante que surpre-ende algum ilícito, uma prova irrefutável de“verdade”, sem mediações ou interferências)como porque encobrem justamente essas in-terferências contidas na própria mediação: ocomportamento do “repórter sem rosto”, asperguntas que não vão ao ar, o não reveladoestímulo a que a fonte adote atitudes queconfigurarão o ilícito a ser comprovado.

Com uma agravante: a fragilidade jurídicade tais “provas” (mesmo porque freqüente-mente produzidas por um agente provoca-dor) anula os resultados práticos aguardadospelo público (a punição exemplar, o prazerde ver aquele corrupto na cadeia), mas a atu-ação legal acaba sendo mais um argumentode descrédito do Judiciário, bem à maneirados filmes policiais americanos nos quais aexistência da lei é o principal empecilho paraque se faça justiça: afinal, todos “viram”aquele escândalo na televisão. Se o Estadonão toma providências, é porque de fato nãose pode esperar mais nada dele.

5 Diante dos marginalizados: aação da mídia no projeto deexclusão social

Em recente artigo, procuramos demonstrarque a cobertura criminal na grande imprensabaseia-se em fundamentações de cunho po-sitivista e se orienta por uma lógica que seestende à cobertura dos fatos relacionadosàs classes populares, servindo à dissemina-ção do medo e à formulação e ampliação depolíticas cada vez mais repressivas de segu-rança pública. Indicamos também que, em-bora predominante, o discurso repressor nãoé único, mas se completa com outro que apa-rentemente seria o seu contrário, evidenci-

www.bocc.ubi.pt

Page 9: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 9

ando duas formas de se tratar a “questão so-cial” – ora como “caso de polícia”, ora como“caso de política”10.

O foco da análise eram, então, os gran-des jornais e revistas voltados para a classemédia, embora a mesma lógica se apliqueaos chamados jornais populares, com a ób-via mudança de linguagem, adequada ao pú-blico de baixa renda. Nem podia ser dife-rente, pois tais publicações são produzidaspor empresas que representam e defendeminteresses semelhantes, quando não se tratade uma mesma empresa responsável por tí-tulos distintos para públicos diversos, comoacontece comO GloboeExtra.

Não é difícil, portanto, ampliar esse eixode análise para aquilo que chamamos de mí-dia, mesmo porque, no Brasil, os exemplosde publicações ou programas que vão con-tra essa corrente são resultado do esforçode organizações não-governamentais, mo-vimentos comunitários e projetos editoriaisque, embora muito significativos, visam jus-tamente a consolidar sua influência locali-zada. Mas, por isso mesmo, não oferecemqualquer possibilidade de concorrer no mer-cado para, conseqüentemente, apresentarem-se como alternativade fatoao noticiário do-minante, para um público ampliado.

Tratando particularmente da Rede Globo,podemos retomar as premissas relacionadasno início deste artigo e verificar que é ovínculo entre mídia e sistema penal, asso-ciado à estratégia empresarial de legitimar-se como substituta do Estado, que orientao trabalho ali desenvolvido – especialmentejornalístico, mas não só. Como se sabe, a

10 Sylvia Moretzsohn. “Imprensa e criminologia –o papel do jornalismo nas políticas de exclusão so-cial”. Rio de Janeiro, 2002, mimeo.

empresa se empenha em diversas iniciativasapresentadas invariavelmente sob o lema sur-rado do “resgate da cidadania” e da “auto-estima”: além de sustentar ou apoiar projetosnesse sentido, abre generosos espaços paradivulgá-los, no canal aberto ou nos canaispagos, em programas especiais ou nos pró-prios telejornais. Em contrapartida, ao tra-tar das questões criminais, adota o compor-tamento positivista clássico, refletido na con-figuração do “mal” individualizado na figurado bandido ou generalizado para abarcar osmoradores da periferia.

E aí se aplica precisamente a mesma ló-gica dual e complementar que informa a co-bertura dos fatos relativos aos marginaliza-dos, com a especificidade da linguagem au-diovisual: diante do crime, locutores e repór-teres teatralmente indignados com o pontoa que chegamos, ressaltando a “ousadia dosbandidos” e seu “poder paralelo”, alarde-ando a “ausência do Estado” e o conseqüenteabandono dos “cidadãos de bem”, e final-mente estimulando declarações a favor doendurecimento das penas e do aumento àrepressão; diante dos “carentes”, freqüente-mente no mesmo bloco noticioso, o “outrolado”: a possibilidade de redenção através dotrabalho voluntário, configurando aquilo queNilo Batista definiu como discurso de lei eordem com sabor de “politicamente correto”:

Naturalmente, esse discurso admite aliar-sea outros que não lhe reneguem o ponto departida: a modernidade realizou-se plena-mente, suas promessas estão cumpridas, e seo resultado final é decepcionante, tratemosde atenuá-lo pela caridade, pelo voluntari-

www.bocc.ubi.pt

Page 10: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

10 Sylvia Moretzsohn

ado, por campanhas publicitárias; mas lei élei11.

Lei é lei, portanto não há que transigir: se-paremos a sociedade em bandidos e cidadãosde bem e sejamos duros com os criminosos.Não seria surpresa se um criativo estudo so-bre tal comportamento elaborasse, parafrase-ando a obra clássica de Lukács, uma “onto-logia do ser marginal”.

Mas essa dualidade traz outro elementoperverso, que ajuda a plasmar no senso co-mum os estereótipos relativos às classes po-pulares. Pois, além do olhar benevolenteque as apresenta em animadas e ordeiras as-sociações de voluntários, elas só aparecemno noticiário como vítimas de uma tragédiaou como agentes de rebeliões “comandadaspor traficantes”. Assim, os “carentes” orasão enquadrados como cidadãos de bem embusca de um futuro melhor, ora como gentehumilde digna de nossa piedade diante de re-latos pungentes repetindo “perdemos tudo”entre lágrimas – embora não tivessem quasenada –, ora como massa de manobra potenci-almente explosiva e perigosa, perfeitamenteenquadrada nas teorias clássicas da patologiasocial.

São fartos os exemplos de cobertura queenfocam os pobres como perigosos12. Porisso, vale a pena enfatizar o lado do “olharbenevolente”, mesmo porque ele costuma

11 Nilo Batista, “Mídia e sistema penal...”, art. cit,p. 274.

12 Cf., por exemplo, Patrick Champagne. “Lavision médiatique ”, in Pierre Bourdieu (org.), Lamisère du monde, Paris, Seuil, 1993, p. 61-79 ; Kle-ber Mendonça. “A onda do arrastão”, emDiscursosSediciosos – crime, direito e sociedade. Rio de Ja-neiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminolo-gia, ano 4, no 7-8, 1o e 2o semestres de 1999, p. 267-282; Sylvia Moretzsohn, art. cit.

ser louvado como contribuição positiva (ou“pró-ativa”, no jargão da moda): ali estãopobres honestos, ordeiros e trabalhadores,empenhados em melhorar de vida pelo pró-prio esforço, ainda que seus horizontes se-jam sempre limitados às ocupações subalter-nas que lhes foram historicamente reserva-das, fora das quais só há salvação no talentopara a música ou o esporte; então aparecemem ensaios de teatro, dança, capoeira, fute-bol, rodas de chorinho e samba, ou em ofici-nas para trabalhos manuais variados, às ve-zes valorizados pelo que podem proporcio-nar de “criatividade” – e vemos gente sor-ridente usando sucata para fazer artesanatoou confeccionar instrumentos musicais paraprojetos que “afastam o jovem do tráfico”.

“O objetivo é formar bons cidadãos”, diz oresponsável por um desses projetos ao apre-sentador. No palco, jovens pobres do in-terior de São Paulo, estáticos como se po-sassem para uma foto, rígidos como se esti-vessem (e estavam) fora de lugar. SerginhoGroisman “entrevista” um a um (como é seunome? que instrumento é esse?), e cada umvai respondendo e mostrando tonéis, latõesde tinta que se transformaram em instrumen-tos de percussão. O apresentador se deslum-bra: tudo sucata, que beleza... Finalmente,chega ao último entrevistado, um músico jo-vem e bem vestido, um dos instrutores dosmeninos. Ele também diz seu nome, mos-tra seu instrumento (“isso é uma guitarra”) elogo ressalta, entre risos: “e não é sucata”.

A cena foi ao ar em setembro, numa edi-ção do programa “Ação”, da Globo, um dosvários que tratam de iniciativas de volunta-riado em prol da “cidadania”. O objetivo éformar bons cidadãos, ainda que uns possamcomprar guitarras e outros tenham de se con-formar à sucata, embora contem com o apoio

www.bocc.ubi.pt

Page 11: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 11

luxuoso de Naná Vasconcelos e Caetano Ve-loso.

É apenas um entre inúmeros exemplos emque o olhar benevolente da mídia se une aodo voluntário bem intencionado, a partir daconclusão ou da intuição de que iniciativascomo essa afastam o jovem do crime e sãocapazes de promover inclusão social, aindaque pela porta dos fundos. Mas as coisasnão são tão simples assim, como argumentao criminólogo Jock Young, na tradição de es-tudos sociológicos que apontam a desigual-dade e a frustração de expectativas, oriundajustamente daquilo que se pretende promo-ver – uma demanda pormais cidadania-,como causa do crime.

Deste modo, talvez devêssemos falar,mesmo aqui, em déficit relativo: isto é, ospadrões materiais relativos dos indivíduoscomparados uns com os outros, um sentidode desigualdade, de recompensa injusta emrelação ao mérito. Assim, à medida em queos grupos começam progressivamente a rei-vindicar maior igualdade de recompensa ecidadania mais plena, sua privação relativaaumenta e, não havendo nenhuma soluçãocoletiva à vista, ocorrerá criminalidade13.

A ignorância dessa análise, porém, talveznão seja inocente. Pois o olhar benevolente éajustado ao enfoque e aos limites de ação dovoluntário bem intencionado. Se a iniciativanão dá certo, a culpa é de quem não soubeaproveitar a oportunidade, e o benfeitor podeserenamente lavar as mãos.

Além disso, a celebração dos projetos“que afastam os jovens do tráfico” não con-segue resistir à realidade: então a mídia re-

13 Jock Young.A sociedade excludente – exclusãosocial, criminalidade e diferença na modernidade re-cente. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2003, p. 86.

age entre surpresa e indignada à notícia deque o músico Paulo Negueba, um dos ins-trutores do Afro Reggae, grupo famoso porter sido criado como resposta “cidadã” à cha-cina em Vigário Geral, foi ferido com três ti-ros e escapou da morte por milagre duranteuma batida policial na favela. Surpresa sópossível quando se deseja desconhecer o es-tereótipo criminal produzido pelos sistemaspenais, que os suspeitos de sempre carregamno próprio corpo e que nenhum discurso deboas intenções é capaz de apagar.

Não é difícil perceber que o caso ganhoumanchete (a ponto de causar a exoneração docomandante do Bope) porque Negueba é per-cussionista da banda O Rappa, que integra ocircuito marginal-incluído do nosso cenáriomusical. O vínculo é particularmente suges-tivo para o tema “violência”, pois o líder dabanda, Marcelo Yuka, também figurou nasmanchetes ao ser atingido por tiros (ficandoparaplégico em conseqüência disso) quandotentava escapar de um assalto na Tijuca. Ocaso ocorreu dois anos antes, mas mesmo as-sim oGloboatualizou a história, escrevendona capa de sua edição de 11 de agosto: “Ou-tro músico do Rappa é baleado em tiroteio”,como se a banda sofresse de algum tipo demaldição sinistra.

Os olhos fechados para o cotidiano da pe-riferia também deixam alguns pesquisado-res espantados. Como a professora RaquelPaiva, ao ler declaração de José Júnior, outrointegrante do Afro Reggae, à revistaMega-zine(suplemento doGlobovoltado para ado-lescentes), em 13 de julho de 2000: “Sabepor que os jovens entram para o tráfico? Nãoé só pela grana. O lugar mais legal numafavela à noite é a boca-de-fumo. O som émaneiro, a galera é bem vestida...”. Diantedisso, Raquel comenta:

www.bocc.ubi.pt

Page 12: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

12 Sylvia Moretzsohn

É entristecedor constatar que o jornalismoatual não repara no que produz. Como épossível deixar escapar um depoimento des-ses sem realizar uma pauta que realmentetenha a preocupação de mostrar humana-mente esses lugares: mostrar as pessoas queestão ali, e não apenas reproduzindo a “ba-tida” policial. O jornalismo deveria estarpara além, muito além, de ser espaço de re-produção de valores segregacionistas14.

É o típico discurso de boas intenções apli-cado à mídia, travestido de crítica à compe-tência profissional, e que suplementarmenteintroduz uma nova categorização para a im-prensa: o jornalismo distraído, que não re-para no que produz. Desnecessário deter-nosna avaliação desse comentário; importa, sim,ressaltar a força do depoimento de José Jú-nior, para reiterar que a mídia não se pro-põe indagar sobre o cotidiano da periferia:prefere, como certa vez observou Mattelart,“as operações conduzidas em torno do trá-fico de drogas” a “exprimir como essas pes-soas ainda conseguem conservar sua digni-dade, apesar de estarem sujeitas à mais ex-trema violência”15.

Exceções existem, claro, e o fato de se-rem exceções reitera essa lógica, emboracostume ser tomado como indício de “bre-cha” por onde se insinua um discurso crítico.Exemplos são mais comuns no jornalismoimpresso, e se revelam tanto em jornais po-pulares quanto na chamada “imprensa séria”.No primeiro caso, uma amostra significativa

14 Raquel Paiva. “A publicização da ética no es-paço midiatizado”, em Raquel Paiva (org.),Ética, ci-dadania e imprensa. Rio de Janeiro, Mauad, 2002, p.39.

15 Armand Mattelart.Comunicação-mundo – his-tória das técnicas e das estratégias. Petrópolis, Vo-zes, 1994, p. 276.

foi a série de reportagens sobre os chamados“autos de resistência” que oExtra publicoudurante uma semana, a partir de 11 de ju-lho de 1999, e que começou com o título “Acova dos 259 Josés”: na abertura, a reprodu-ção de uma nota curta, “Polícia mata 3 emtiroteio”, expressão clara da banalização daviolência. Imediatamente, o comentário quedemonstraria a mudança de postura do jor-nal: o leitor é alertado para o fato de que édaquela forma que tais assassinatos são noti-ciados, mas que agora estaria diante da ver-dadeira dimensão daquelas mortes, “um si-lencioso massacre contra inocentes” escon-dido “pela desimportância social das mães,pais, irmãos e mulheres de gente pobre e hu-milde” – isto é, o próprio público do jornal.

Tais reportagens foram objeto de uma acu-rada análise de Cláudia Lemos16, que, no en-tanto, não dá a devida importância à vinheta“especial” que marca a série: de fato, estepode ser tomado como um “exemplo de pos-tura crítica doExtra diante da polícia”, masum exemplo que confirma a regra e não re-presenta o esperado divisor de águas para aadoção dessa postura a partir de então. Antese depois da série, os Josés continuam a proli-ferar nos matagais, nas beiras de estrada, nascovas rasas, nos cemitérios clandestinos noalto dos morros. E continuam a ser tratadosdo mesmo jeito pelo jornal.

O público de classe média também é even-tualmente premiado com informações que,por estarem ausentes da cobertura cotidiana,parecem surpreendentes. Assim, na sérieque O Globo publicou entre março e maiode 2001 para traçar os “Retratos do Rio”, a

16 Cláudia Lemos. Seis questões sobre o jorna-lismo: uma leitura da imprensa brasileira nos anos90 a partir de Ítalo Calvino. Tese de doutorado em Li-teratura Comparada. Belo Horizonte, UFMG, 2001.

www.bocc.ubi.pt

Page 13: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 13

partir do Relatório de Desenvolvimento Hu-mano (resultado de um trabalho conjunto doPnud, Ipea e Prefeitura do Rio), os leitorespodem espantar-se com o significado dos da-dos crescentes da violência urbana: “emboraa sensação de insegurança domine toda a po-pulação, a violência é maior nas áreas caren-tes”; “falta polícia” justamente “nos bairrosmais violentos” (21 de abril de 2001). Ne-nhuma surpresa, porém, e dessa lógica o re-pórter Caco Barcellos já dera conta em en-trevista àCaros Amigos, em maio de 1997,comentando a política de segurança do en-tão governador Marcello Alencar “em sinto-nia com o clamor público, da imprensa”:

Veja bem, ele equipou a polícia comonunca, você tem lá Santana com equipa-mento de bordo, tecnologia de ponta, com-putador, o diabo, mas policiando a zona sul,que realmente se tornou hoje supersegura.(...) Está superpoliciado ali, em prejuízo dopoliciamento onde está a maioria da popu-lação, na zona norte. A imprensa tambémse comporta dessa forma, ela não gosta decruzar o Túnel Rebouças.

Para completar o quadro, temos o alardeprovocado pela comparação sistemática doRio de Janeiro com a Colômbia. Compara-ção não só falaciosa, por associar um país emguerra civilde fatohá 40 anos (com a atua-ção das Farc, convenientemente desqualifi-cadas pela associação ao narcotráfico) coma alegada “guerra civil” no Rio, mas por umaspecto essencial para o que argumentamosaqui: a exposição do exacerbado número demortes na cidade oculta a informação de queesses dados referem-se fundamentalmente avítimas da periferia. Como o noticiário co-tidiano destaca sempre as agressões à classe

média, não é preciso muito esforço para ve-rificar os efeitos de produção de pânico ob-tidos a partir desses vínculos:pareceque aviolência chegou a um ponto insustentávelpara nós, que temos os instrumentos para iràs ruas vestidos de branco (ou preto) em pas-seatas clamando por uma paz que se traduzem políticas cada vez mais repressivas con-tra quem nos rouba a tranquilidade.

Exemplo mais claro ainda foi dado peloJornal Nacional de 19 de setembro de 2002,na série de reportagens especiais sobre os“problemas de nossas cidades” inserida navinheta “Eleições 2002 – meio ambiente egrandes cidades”, que naquele dia traçou o“retrato do medo”:

Locutor:...vamos ver como a violência afeta direta-mente a vida dos cidadãos. Sem estatísticasconfiáveis sobre segurança pública ao longoda década de 90, os números dão lugar àsimagens. E elas dizem muito.Repórter (off):Você vai ver um dos piores retratos dagrande cidade.A fala é paralela à cena que começa com acâmera fechando o quadro num espelho re-trovisor de carro e cortando para flashes, aosom de cliques sucessivos de máquina foto-gráfica, documentando um assalto a moto-rista no trânsito parado.Corta para depoimento 1 (mulher negra demeia-idade, aparência humilde, na rua):Mesmo dentro de casa a gente tem medo dascoisas.Repórter (off), sobre um flash do centro deSão Paulo:Mas só na cidade de São Paulo 14 pes-soas foram assassinadas por dia no ano pas-sado17.

17 A impropriedade da adversativa na intervenção

www.bocc.ubi.pt

Page 14: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

14 Sylvia Moretzsohn

Corta para depoimento 2 (mulher loura,mais jovem, de classe média, na rua):Eu, por exemplo, evito sensivelmente sair ànoite com o meu carro.

Nem se diga das incongruências originais:as imagens “dizem muito” mas revelam umassalto, o repórter fala em mortes; as estatís-ticas não são confiáveis, mas, ato contínuo,apresenta-se uma estatística – as 14 mortesdiárias na capital paulista. Confiável ou não,importa perceber que se trata de um dado ge-nérico, que não informa onde tais vítimas sãoproduzidas, nem sua condição social. Pelaseqüência de depoimentos (mulher negra po-bre, mulher branca de classe média), aparen-temente a intenção é insinuar que a violênciaatinge a todos da mesma forma.

Esse desprezo pelo cotidiano das classespopulares só pode reproduzir estereótiposadequados ao sistema penal. Foi o que ocor-reu, mais uma vez, na cobertura do caso TimLopes, cuja relevância se impõe pela impor-tância simbólica da vítima: um jornalista,que automaticamenterepresentaos sagradosvalores do jornalismo. Por isso, associam-se

do repórter pode passar despercebida pelo especta-dor, mas fica evidente na leitura da transcrição do áu-dio. Por que falar em número de assassinatos, assim,sem gancho algum, e ainda por cima iniciando a frasepor um “mas...”? A explicação só aparece para quempôde ver novamente a matéria, cerca de dez dias de-pois, no programa Almanaque, do canal pago GloboNews, que anunciava a repetição de todas as repor-tagens da série sobre eleições e cidadania, agrupadasem blocos temáticos: ali estava um trecho cortado damatéria que foi ao ar no JN, no qual o repórter citavauma estatística informando sobre a redução na taxa dehomicídios, para seguir com a fala sobre o número demortos em São Paulo. “Mas” esta não foi a única alte-ração: nesta e em várias outras matérias houve inclu-são de trechos de entrevistas, alteração de montagem,em suma, apresentou-se uma edição diferente para oque seria uma simples repetição da série.

nesse episódio o discurso clássico de com-bate ao crime, fomentador da histeria puni-tiva e da cultura do medo, à reiteração domito da imprensa como “quarto poder”, emtorno do qual juntaram-se as empresas de co-municação, a Associação Brasileira de Im-prensa e as representações sindicais dos jor-nalistas, em nível local e nacional.

6 O caso Tim: preliminares

A mudança no comando do governo Rio,com a saída de Anthony Garotinho para adisputa das eleições presidenciais, foi mar-cada pelo anúncio de (mais um) plano deemergência para a segurança. Tal foi a man-chete doGlobode 7 de abril, que, como seriaóbvio, dedicaria amplo espaço naquela edi-ção à posse de Benedita da Silva. Dois diasdepois, o jornal noticiava na capa a possibi-lidade de união dos governos estadual e mu-nicipal para o combate ao crime. O assuntovirou manchete no dia 21 de abril, um do-mingo: “Estado e prefeitura iniciam ofensivacontra violência”.

O tema voltou às manchetes no domingoseguinte, com a denúncia do novo governode que os índices da criminalidade teriamsido manipulados pela gestão anterior. Doisdias depois, a notícia do “primeiro teste defogo” da “polícia do PT”, que esteve noComplexo do Alemão, onde dez ônibus ha-viam sido destruídos pelos moradores, emprotesto contra a morte de um menino “numtiroteio entre traficantes e PMs”. “O pró-prio comandante da PM, coronel FranciscoBraz, que esteve na favela para investigar amorte, foi recebido a tiros” (O Globo, 30 deabril de 2002, chamada de capa). No dia 31,o Jornal do Brasilpublicaria o caderno es-pecial “Cidade sitiada”, abrindo foto de um

www.bocc.ubi.pt

Page 15: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 15

soldado num mirante, apontando uma metra-lhadora para o vale urbano, Pão de Açúcar aofundo. O que deixa dúvidas sobre quem estásitiando a cidade: aparentemente a popula-ção é refém do “crime”, mas quem domina acena é um policial armado.

O caderno especial não traz propriamentenovidade, reunindo matérias requentadas so-bre as providências que a classe média vemtomando para proteger-se (inscrevendo-seem cursos de krav-magá, a luta que preparasoldados do exército israelense contra o ter-rorismo, providenciando a blindagem de car-ros e sistemas eletrônicos de vigilância, con-tratando seguranças particulares). O “outrolado” são as “aulas de cidadania” promovi-das por ONGs em favelas, buscando afastaros jovens do crime através do esporte, comdestaque para o projeto “Luta pela paz”, quetem no estímulo ao boxe o gancho para a me-táfora ideal.

Como se vê, nenhuma novidade, a nãoser a própria ênfase no tema, que traduz aidéia de que “ninguém agüenta mais” tantaviolência. Idéia recorrente, como qualquerpesquisa aleatória poderá verificar, tantos fo-ram os episódios, em tão diferentes governos(que a mídia torna tão parecidos), capazesde produzir séries de reportagens sobre o as-sunto. Mas, bem a propósito, uma crônica deCarlos Heitor Cony, em 12 de junho, usava omesmo título para comentar a remissão: aopassar por uma banca de sebos no Largo doMachado, vira uma velhaManchetedos anos70, com uma chamada berrante, em verme-lho e amarelo: “Cidade sitiada”.

Estaria a cidade sitiada há três décadas?Se há tanto tempo ninguém agüenta maistanta violência, e se mesmo assim continu-amos agüentando, que motivos levariam amídia a reiterar suas manchetes? Que mo-

tivos teria essa formidável cozinha jornalís-tica, além da semeadura cotidiana de um pâ-nico difuso para fundamentar o discurso re-pressivo do combate ao crime?

O retorno às preliminares do caso Timpode fornecer mais informações. Na últimaquinzena de maio, o crime e a urgência emcombatê-lo no Rio foi manchete noGlobopraticamente todos os dias, configurando adescrição de uma situação de descalabro quese encaixa na famosa fabricação de “ondas”objeto de estudos acadêmicos e mesmo deeventuais críticas de jornalistas mais quali-ficados18. Situação comparável, para ficar-mos no exemplo mais contundente, ao pe-ríodo que antecedeu a Operação Rio, em1994, com a óbvia diferença dos resultados,de acordo com particularidades da conjun-tura política.

Assim, temos “Bandidos desafiam go-verno e jogam granada em secretaria” (15/5);“Ministério da Justiça manda PF investigaratentado no Rio (16/5); “Governo do Rio jánegocia força-tarefa contra o crime” (17/5);“Benedita aceita força-tarefa mas quer o Riono comando” (18/5, uma edição que traz ma-téria em página interna na qual o prefeito Cé-sar Maia, fotografado conversando com Be-nedita, “defende morte de bandidos para ga-rantir a ordem pública no Rio”).

Pausa para respiração no domingo, dia 19,mas nem tanto, pois a manchete remete aoambiente onde brota a violência: “Cem fa-velas surgiram no Rio em quatro anos”. Nocomeço da semana, a seqüência retomada:“PF defende força-tarefa com comando con-junto” (20/5); “Plano contra o crime prevê o

18 Cf., no primeiro caso, Mark Fishman.Manufac-turing news. Austin, University of Texas Press, 1990;no segundo, Janio de Freitas, “As ondas do Rio”,Fo-lha de S.Paulo, 30 de outubro de 1994.

www.bocc.ubi.pt

Page 16: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

16 Sylvia Moretzsohn

bloqueio de carros em favelas” (21/5); “Go-verno libera recursos para a segurança noRio” (22/5).

No dia 23 a manchete é sobre economia,mas o assunto continua em chamada no altoda primeira página: “Força-tarefa: PF quera participação da prefeitura”. Seguimos atéo fim do mês com o crime em destaque má-ximo: “Governadora anuncia parceria comprefeituras contra o crime” (24/5); “Polí-cia descobre conexão paulista em crimes noRio” (25/5); “Violência esvazia a noite doRio” (26/5); “Força-tarefa faz plano para de-ter violência” (27/5); “Benedita põe mais1.300 policiais nas ruas do Rio” (28/5); “Trá-fico fecha túnel em dia de guerra” (29/5);“PM admite que direito de ir e vir está amea-çado” (30/5); “PM invade morros para imporcessar-fogo ao tráfico” (31/5).

Tudo isso eventualmente editado ao ladode fotos sugestivas: uma menina olhandopela fresta de persianas verticais (como gra-des?) entreabertas para deixar-lhe à vistaapenas pequena parte do rosto, no dia emque se noticiou a “ameaça ao direito de ire vir”; policiais atrás de vidros estilhaçadospelas balas, como se eles mesmos tivessemsido atingidos, no ataque da véspera ao postopolicial de Ramos, noticiado em subtítulo elegenda no dia 17. Fora as habituais fotos depoliciais circulando armados pelos morros,em meio a crianças franzinas e assustadas.

Tudo isso concorrendo com o noticiáriodas vésperas da estréia do Brasil na Copa doMundo.

Foi nessecrescendoque estourou o casoTim.

7 Sexo, drogas efunk and all

Em fins de maio, o repórter Tim Lopes inici-ara a apuração de uma matéria na favela deVila Cruzeiro, na Penha, supostamente aten-dendo a pedido de moradores que, indigna-dos mas temerosos de represálias, teriam te-lefonado para a Rede Globo denunciando arealização de bailes funk com shows de sexoao vivo protagonizados por adolescentes efarto consumo de drogas, sob o patrocíniodos traficantes locais. O repórter teria ido àfavela três vezes. Ao retornar, dia 2 de junho,para documentar o baile com uma microcâ-mera, desapareceu. Seu assassinato, que te-ria sido comandado pelo traficante Elias Ma-luco, só foi confirmado uma semana depois.

Tivesse tido sucesso, a investida alimen-taria a espiral de manchetes que criavam oclima propício a mais uma onda de repres-são social (generalizada aos marginalizados,portanto circunscrita aos morros), a pretextode combate ao tráfico. Com o indispensá-vel condimento moral, aliás orientador de to-das as coberturas sobre o tráfico: pois é maisfácil e funcional encarar o bandido como omalfeitor que desvirtua nossas crianças doque apreender o tráfico em sua lógica econô-mica, demonstrada com especial clareza porRosa del Olmo19.

Impossível, então, não lembrar do escân-dalo da suposta epidemia de gravidez viti-mando adolescentes na “dança do trenzinho”dos bailes funk, denunciada dois anos an-tes por alarmadas autoridades da saúde pú-blica (pois se tratava sobretudo de uma ques-tão de higiene...). Impossível não perceber

19 Cf., por exemplo, “A legislação no contexto dasintervenções globais sobre drogas”, inDiscursos Se-diciosos – crime, direito e sociedade, no 12. Rio deJaneiro, Revan/ICC, 2o semestre de 2002, p. 63-78.

www.bocc.ubi.pt

Page 17: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 17

o efeito de ocultamento que as imagens pro-metidas pela denúncia dos moradores indig-nados provocaria: raro seria o espectador aperguntar-se sobre cenas semelhantes, maiscontundentes até, protagonizadas em festi-nhas de classe média, tão longe vai longea memória do caso Cláudia Lessin. Muitomenos se suspeitaria dos processos seletivospara atores adolescentes em busca do estre-lato midiático. Ou – para retornarmos à ex-tração social dos marginalizados – se indaga-ria dos efeitos de um tal recurso a vasculhara intimidade de uma delegacia.

A rara, talvez isolada crítica sobre o mo-tivo fútil (embora muito funcional ao sis-tema) que expôs o repórter ao perigo e aodesfecho trágico foi feita por Fritz Utzeri,no JB. Primeiro, no artigo “Jornalismo ouvoyeurismo?”, em 9 de junho:

Tim Lopes foi vítima da imprudência quasecriminosa das chefias de jornalismo da TV.Por que se arriscou? Para mostrar imagensde algo sabido, em nome do voyeurismo.Cenas de sexo de adolescentes e consumode drogas em bailesfunk. Isso vale a vidade um repórter? A Globo insiste em confun-dir jornalismo comreality show. O JornalNacionalnoticia a campanha da novela dasoito e oBig Brother como se fossem notí-cias. A novela faz – supostamente – campa-nha contra as drogas (e é elogiada por isso),quando na verdade usa causa nobre parapromover o voyeurismo mais escrachado etécnicas jornalísticas para alavancar oibopede sua dramaturgia.

Depois, em seu artigo seguinte, “Refle-xões”, de 12 de junho:

Se for para investigar o mundo do sexo edroga para mostrar noFantástico, por que

perder tempo com bailes funk, onde todossabem o que rola? Por que não arranjar logoum “repórter investigativo”, de preferênciacom cara de gente fina, equipá-lo com câ-mera oculta e deixá-lo em certas festinhasda Zona Sul, na região serrana ou no litoraldo Rio, ou ainda em São Paulo, Brasília &alhures, reuniões freqüentadas por sociali-tes, políticos, empresários, artistas e mostrarcomo são esses encontros no que diz res-peito a sexo, drogas & rock n’roll? E que talusar essas mesmas microcâmeras em certas“reuniões de negócios” filmadas desse jeito?Ou em certos “encontros políticos”?

Essa questão de fundo delimita o foco dacâmera oculta e obriga à urgente discussãosobre limites e métodos do trabalho da im-prensa. Foi, aliás, o que o próprio Fritz pro-curou fazer, em seu artigo inaugural sobre ocaso Tim, intitulado justamente “Os limitesdo jornalismo” e publicado dia 5 de junho,quando (pelo menos formalmente) ainda ha-via a esperança de que o repórter não tivessesido assassinado.

O uso desses meios tecnológicos moder-nos e miniaturizados facilita denúncias, semqualquer dúvida, mas pode ser também ummodo questionável de exercer a profissão.Além disso, usados indiscriminadamente,acabam sendo um convite à preguiça apura-tiva e ao sensacionalismo voyeurista, alémde desestimular o uso da inteligência, poisao repórter exige-se que seja um bom ator(algo não previsto nos pré-qualificativos re-queridos para o exercício da profissão), ca-paz de portar a câmera que denuncia. Meroinstrumento. (...)Morrem anualmente dezenas de colegui-nhas em guerras, revoluções e acidentes.Faz parte do risco da profissão, mas daí atransformar cada um de nós numa cópia de

www.bocc.ubi.pt

Page 18: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

18 Sylvia Moretzsohn

007 vai uma distância enorme. Nós somostestemunhas, não temos licença para matar enossa atividade só pode ser exercida dentroda ética e da legalidade. Essa noção de quejornalista é jornalista é a única proteção quetemos ao entrar em zonas de conflito parasairmos vivos e contar a nossa história. Senos confundirmos com espiões ou policiaiscom eles seremos confundidos, e nesse casoé melhor mudar logo de profissão. O debateestá aberto.

Caberia lembrar, bem a propósito, quepara o crime de espionagem em tempo deguerra o Cógido Penal Militar prevê pena demorte (art. 366).

Mas, não, Tim não era um espião: era “umcidadão”, conforme o título do texto que odiretor da Central Globo de Jornalismo, Car-los Henrique Schroder, publicou em respostaa Fritz, no dia seguinte, no mesmo JB. “Timdisfarçou-se do que no fundo é: um cidadãocarioca, de bermuda, camiseta e pochete”.

Cidadãos comuns não andam por aí comcâmeras ocultas. Mas Schroder faz poucocaso desse detalhe, tratando-o como “ape-nas um dos recursos que o jornalismo hojepode usar com o avanço tecnológico. Claro,sempre com um indispensável bloquinho denotas. Não foi ela [a microcâmera] que pôsTim Lopes em perigo; descoberto, o bloqui-nho teria sido suficiente para despertar a irados traficantes, que conhecem seus adversá-rios: a sociedade de homens de bem destepaís”.

Tim não era um espião, nem tampouco anossa guerra é uma guerra qualquer:

Os bandidos dos morros do Rio são bárba-ros, criminosos, que têm feito questão cadavez mais freqüentemente de demonstrar oseu sadismo.

Não há nenhuma intenção da Globo em ne-gociar com eles, em respeitá-los, em acre-ditar que eles tenham palavra, honra, mo-ral. São bandidos, facínoras e jamais nego-ciaremos com eles. Pareceu-nos absurda aidéia de a eles nos apresentar como jorna-listas, dizendo: “Estamos aqui para regis-trar os seus crimes; somos apenas observa-dores neutros e gostaríamos da permissãode vocês”. Como não cremos que seja essaa proposta que está sendo sugerida, cabe apergunta: não havendo esta possibilidade,a alternativa seria o nosso silêncio, a nossaomissão, relegar toda essa gama de crimes àsombra?

De novo o foco sobre um determinado as-pecto da vida (ou do desvio) social, agu-çando aquela vigilância sobre os marginali-zados, a quem é sempre mais fácil vigiar por-que “vivem a céu aberto”, ao contrário dasclasses média e alta20; de novo a justificativada utilização de todo e qualquer método deinvestigação. Observações muito instrutivas,aliás, para informar o tipo de fundamenta-ção sociológica ou criminológica que orientaa cobertura específica.

O curioso é que um dos principais argu-mentos contra a violência cometida na cap-tura do repórter, em reiterados protestos dejornalistas e autoridades, foi o desrespeito àliberdade de imprensa. Ora, seja porque estaé uma guerra sem lei, seja, tão-somente, por-que se trata de bandidos (por definição, aque-les que transgridem a lei), como exigir res-peito a postulados clássicos do liberalismoiluminista?

20 Augusto Thompson. “Reforma da polícia – mis-são impossível”, inDiscursos Sediciosos – crime, di-reito e sociedade, no 9-10. Rio de Janeiro, FreitasBastos/ICC, 1o e 2o semestres de 2000, p. 244.

www.bocc.ubi.pt

Page 19: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 19

Também defensor da idéia de que esta é“uma guerra pior do que a guerra” (JB, 5 dejunho), na semana seguinte Eugênio Bucciescreveria sobre “o jornalista, o Estado deDireito e o assassino” (JB, 11 de junho),aceitando “o desafio da reflexão” que “dizrespeito aos métodos aceitáveis na captaçãode informações e também às relações entreas atribuições do repórter e as atribuições dapolícia”. Crítico de mídia com espaço sema-nal em grandes jornais brasileiros e autor deum livro sobre ética21, ele passa a relacionaro que, em tese, seria o comportamento espe-rado de um repórter:

A rigor, a ética do profissional de imprensaexige que ele sempre se identifique comotal e que não adote dissimulações na apu-ração. Quem fala para uma reportagem temo direito de saber que está falando para umareportagem. Quem aparece numa gravaçãoem vídeo que depois será exibida na TV temo direito de saber do que é que está partici-pando. A câmera oculta atropela esse di-reito das fontes. A câmera oculta tapeia asfontes e aqueles que são objeto da repor-tagem. Embora não constitua obrigatoria-mente um crime como a violação de cor-respondência (art. 194 do Código Penal), éuma forma grave de invasão de privacidade.É análoga, em termos éticos, à escuta clan-destina de ligações telefônicas (que tambémé crime). Ou seja: constitui um método quepode até ser empregado por espiões ou de-tetives (numa prática extremamente discu-tível, é verdade), mas nunca por um jorna-lista. A não ser...

...e então ficamos mais ou menos diante21 Bucci, hoje presidente da Radiobrás, assinava

colunas noJB e naFolha de S. Pauloe é autor, entreoutros, deSobre ética e imprensa(São Paulo, Com-panhia das Letras, 2000).

dos direitos assegurados pela Constituiçãoapós o AI-5. Pois temos todas as garantias, anão ser...

A não ser em situações excepcionais. Equais são as situações excepcionais? Cer-tamente não são aquelas em que só o que sepretende é fazer fofoca ou intriga de quintacategoria. São aquelas em que o acesso aosfatos, necessariamente de altíssima relevân-cia pública, é impraticável caso o jornalistase apresente como jornalista. Essas situa-ções excepcionais se apresentam quando osfatos investigados constituem crimes gravesou a premeditação de crimes graves contracidadãos, contra o Estado de Direito ou sim-plesmente contra a ordem, ameaçando di-retamente um grande número de pessoas.Venda de drogas à luz do dia e a céu aberto,por exemplo. Isso não pode ser fotogra-fado por um repórter que, uma vez no lo-cal, anuncie placidamente seus propósitos.E, no entanto, isso é um fato de alta relevân-cia, que o público tem o direito de conhecer.Por isso, o jornalista tem o dever de regis-trar, apurar, investigar e publicar. Ele pre-cisa aparecer ali mais ou menos disfarçado.Não há outro modo de trabalhar.

Assim esclarecidos, devemos depositarnas confiáveis mãos dos jornalistas (e dasempresas para as quais eles trabalham) o po-der de deliberar sobre o que é ou não de in-teresse público.

A melhor contrapartida a esse raciocíniofoi dada por Janio de Freitas, no único artigoque dedicou ao caso, bem a propósito intitu-lado “Tim e os outros” (Folha de S. Paulo,16 de junho de 2002):

Cidades como Rio e S. Paulo estão transfor-madas em depósitos de pobres. Resultadode um processo. Diante do qual, tudo o que

www.bocc.ubi.pt

Page 20: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

20 Sylvia Moretzsohn

a mídia fez e faz são ondas de sensaciona-lismo. É a exploração mercantil-emocionalde um ou outro episódio. As políticas e não-políticas geradoras da degradação ficam in-tocadas. Para rechear o sensacionalismo, afalsa defesa do interesse público escala umculpado, assim proporcionando a conveni-ente guarda a quem tenha real responsabili-dade pela degradação social e pela omissãonas restrições à criminalidade.

Pois “é fora das favelas que está a maiorparcela da responsabilidade pelo aumento in-controlado da violência urbana”.

Sobre o tratamento dado ao “caso Tim”,Janio aponta uma série de mistificações:

Pela pessoa, pelo profissional e pela atroci-dade atordoante de que foi vítima, o repórterTim Lopes justifica toda a emoção emergidado seu desaparecimento. Não se justifica,porém, o sentido dado a grande parte dessaemoção, criador de ficções perigosas comoo surgimento de uma espécie de terror con-tra jornalistas, ameaças à liberdade de im-prensa e risco para a democracia.Em qualquer lugar do mundo, ameaçar a se-gurança de um foco de bandidagem sujeita ariscos, inclusive o de morte. Risco que nãoadvém só da criminalidade instalada nas fa-velas, mas de vários outros gêneros de má-fias, que podem ser de empreiteiros, de poli-ciais (caso do ex-coronel e ex-deputado Hil-debrando Paschoal, que matava com motos-serra no Acre), de bicheiros, a do combus-tível adulterado e, tantas vezes, de políticoscorruptos. (...)A liberdade de imprensa está reprimida,sim, mas não pela bandidagem favelada.Está sempre reprimida por muitos jornalis-tas e certos proprietários de mídia, com suaspráticas diárias de deformação e sonegaçãode informações, por sujeição a interesses

oficiais ou particulares, como por conveni-ências materiais diretas.E de que fronteiras da democracia se trata,ao falar da criminalidade produzida nas fa-velas? Os direitos dos pobres em geral sãomesmo aqueles conferidos pela Constitui-ção?

Para terminar, uma comparação, entre tan-tas possíveis:

O sensacionalismo que se vale da tragédiade um jornalista sério como Tim Lopes émais um momento típico da mídia brasileiraem relação à criminalidade. Tão poucosdias depois do desaparecimento de Tim, umcasal foi também preso, torturado e assassi-nado quando entregava uma cesta de café damanhã no dia dos namorados, nas cercaniasde uma favela no subúrbio carioca ironica-mente chamado Piedade. A jovem e ma-rido que, guarda penitenciário, ocupava-sede um trabalho complementar, seriam me-nos humanos do que jornalistas? A torturae morte de que padeceram seriam menos re-voltantes? Sim, a julgar pela maneira muitodiscreta com que o caso foi tratado na mí-dia do Rio. Talvez para não desconcentrar aexploração do outro caso.

Essa distinção de tratamento fica mais evi-dente na cobertura das buscas pelo corpo deTim, que vão fazendo brotar as atrocidadesde que os pobres, criminosos ou não, são ví-timas cotidianas: primeiro um corpo carbo-nizado, depois a descoberta de um cemitérioclandestino e várias arcadas dentárias. Ape-nas cinco dias depois das buscasO Globo(15de junho, p. 13) abre uma página para alar-dear os possíveis “200 corpos” do “cemité-rio de Elias Maluco”. Uma reportagemes-pecial, pois graves ocorrências como aquelanão alcançam o status de notícia para este

www.bocc.ubi.pt

Page 21: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 21

jornalismo, interessado a servir a seu pú-blico, que, por sua vez, só se interessa pelapobreza quando é assaltado. Daí a hipocrisiaapontada por José Murilo de Carvalho, que,depois de sumariar as raízes extremamenteviolentas de nossa formação social, denun-cia:

A imprensa se mobiliza e a opinião públicase escandaliza com a violência apenas emdois casos: quando ela se manifesta emmassacres que envergonham o país peranteo mundo (Candelária, Carandiru, Eldorado)e quando ela se exerce contra pessoas daelite ou da classe média. (...)Mas é preciso apontar a hipocrisia da rea-ção quando ela se esquece de que a popu-lação pobre é vítima cotidiana e sistemáticade violência, tortura e assassinato. As váriasossadas encontradas nos cemitérios dos tra-ficantes são também de cidadãos brasileiros.São cidadãos brasileiros os milhares de de-saparecidos, torturados, mutilados, mortos,esquartejados. Com suas mortes ninguémse comove22.

Por isso o mini-editorial “Obrigação”, pu-blicado no mesmo dia 18, no alto da página15, cai no pântano das boas (hipócritas?) in-tenções: o jornal conclama o poder público a“vasculhar a área, recolher as ossadas e fazero possível para identificá-las. Não só por-que é o que manda a Justiça; mas por umasimples questão de humanidade”. Mas, seo próprio jornal – a mídia, de forma geral –não se cansa de repetir que o poder públicoé ausente e só funciona se alertado pela im-prensa...

22 José Murilo de Carvalho. “Elias, maluco?”, inOGlobo, 18/6/2002, p. 7.

8 A mídia vigilante, substituta doEstado

O outro aspecto emblemático do caso TimLopes é o sentido de “quarto poder” que aimprensa incorpora, agora radicalizado de-vido à idéia de que “ao calar-se um jorna-lista, cala-se toda a sociedade”. Como a his-tória começou com a situação clássica do ci-dadão desprotegido e descrente do poder pú-blico, que apela à imprensa para ser aten-dido, ficou mais fácil transformar o assas-sinato do jornalista em um atentado à liber-dade de imprensa. Esta foi a abordagem doGlobo no editorial de 10 de junho (“O bomcombate”), quando se noticiou a morte do re-pórter:

...é por esse ângulo que se deve reverenciarTim Lopes, um soldado da cidadania. Aorecorrer à Globo e não à polícia, o moradordo bairro da Penha, com o gesto, simbolizoua incapacidade do poder público de debelara maior crise de segurança enfrentada peloRio em mais de meio milênio de história.Liga-se para uma redação, não para a polí-cia.

O recurso é espantosamente apresen-tado como novidade, e novidade provocadapela propalada “ausência do poder público”.Legitima-se assim a imprensa como substi-tuta de um Estado falido e, ao mesmo tempo,reitera-se o discurso que apela à repressãocrescente contra o “crime”, reificado comosempre.

O

morador agiu corretamente. A distorçãoestá nas circunstâncias vividas pelo Rio deJaneiro e outras grandes cidades brasileiras.Junto com Tim Lopes, foi alvejado o jor-nalismo investigativo. Mas, como destacou

www.bocc.ubi.pt

Page 22: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

22 Sylvia Moretzsohn

editorial divulgado ontem pela TV Globo,“temos certeza de que, mesmo diante desteatentado, a imprensa brasileira não abrirámão do seu papel”. A imprensa não recu-ará, é certo. (...)Mas esta é uma guerra que não pode serganha apenas pela imprensa. Esta é umaguerra de todos – do Estado, da sociedade.Também não é uma guerra do estado e dacidade do Rio de Janeiro. É uma guerra doBrasil.

No dia 6, oJornal do Brasiljá havia tra-tado do tema com enfoque semelhante, numeditorial cujo tom belicoso se evidenciavadesde o título: “A guerra começou”.

O jornalista estava ali porque a polícia nãoestava. Por sua natureza, a colheita de infor-mações em terreno minado é perigosa, masnão impossível. A imprensa já solucionoucrimes – comuns ou de colarinho branco –de que a polícia passou ao largo. Mas nadase compara à impunidade reinante no Rio deJaneiro, onde nem 10% dos crimes de mortesão solucionados. A impunidade é a mãe detodos os crimes que se cometem até mesmoa céu aberto.Só há uma maneira de conviver com estecaso, de péssima repercussão internacional:solucioná-lo, como ponto de partida parauma cruzada maior de enfrentamento da cri-minalidade em seus nichos. A situação aque se chegou é de guerra urbana, e não hámais como recuar.

Assim, a imprensa retoma, agora comopersonagem (mesmo porque aquela fora“uma morte na família”23), a dicotomia entre“bandidos” e “homens de bem” que ajuda asedimentar em sua pauta cotidiana. É o sinal

23 Luiz Garcia. “Somos todos vítimas”, inOGlobo, 10/6/02, p. 14.

para a repercussão de declarações indignadasde autoridades, a começar pelo próprio pre-sidente da República, queO Globopublicouno dia 10:

É mais um crime hediondo. O assassinatodo jornalista Tim Lopes tem, além do mais,uma conotação específica, porque se tratavade um repórter investigativo. É uma tenta-tiva de silenciar a imprensa na questão dadroga. Nós estamos passando de todos os li-mites. É o momento de nos darmos as mãos,tanto os governo federal, estadual e muni-cipal quanto a sociedade, e colocarmos umponto final nessa série de barbaridades queestão ocorrendo. O assassinato desse jorna-lista indigna a todos os brasileiros.

É também o sinal para o lançamento deduas campanhas: de um lado, a série “Ho-mens de bem”, espelho de atuação da Globocomo empresa incentivadora de “cidadania”,na qual o RJ-TV mostra histórias de pes-soas simples que tiram da dor e da adversi-dade as condições para lutar por uma vidamelhor e para agir em prol da comunidade;de outro, a enxurrada de reportagens e arti-gos que desqualificam o sistema judicial eapelam para o recurso à força: o espantodiante de “manobras jurídicas” que “deixa-ram à solta” o assassino de Tim (O Globo,11 de junho), insinuando não só que o di-reito deveria valer apenas para os “cidadãosde bem” como, de modo até ingênuo, quese Elias Maluco estivesse preso o repórternão teria sido executado; o elogio de ElioGaspari (12 de junho) às “Supermax”, peni-tenciárias americanas de segurança máximaapresentadas como solução mágica, e cujaeficácia nunca é confrontada com políticasalternativas de segurança pública, estatistica-mente tão ou mais bem sucedidas nos pró-

www.bocc.ubi.pt

Page 23: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 23

prios EUA – fora o ocultamento de determi-nadas conjunturas que propiciam a reduçãoou o crescimento do crime, jamais conside-radas na análise24; e, no mesmo dia, maisuma vez a criminalização do lazer dos po-bres na chamada de capa, com a perguntaque já embute a resposta: “Funk, voz domorro ou do tráfico?”, apesar da publicação,na mesma edição, de artigo de um represen-tante do grupo Afro Reggae (O Globo, 12 dejunho).

A carga aumenta com o lançamento dapergunta “O Rio está perdendo a guerra con-tra o tráfico?”, que trabalha a velha dicoto-mia da cidade como organismo sadio versuso corpo estranho do crime que a agride e cor-rompe. Este é o título do caderno especialpublicado em 16 de junho, tendo na capa, emprimeiro plano, o cano de um fuzil apontadopara o leitor; mas é a vinheta que, antes e de-pois desse dia, apresenta reportagens sobre o“poder (ou Estado) paralelo” dos traficantes.A do dia 15 de junho é exemplar da desquali-ficação do direito: abaixo da manchete (“Jus-tiça cega até demais”) figuram, de um lado, aestátua da Justiça, e de outro o traficante Cel-sinho da Vila Vintém, preso no mês anterior,sorridente e debochado apesar de algemado.Entre as duas imagens, um bloco de texto,sob o título “Traficantes perigosos conquis-tam benefícios facilmente, até por bom com-portamento” (p. 16).

Em paralelo ao apelo à repressão, edifica-se a imagem do mártir. Valendo-se do su-gestivo nome de batismo do repórter, maté-rias ressaltam seu caráter e sua simplicidade(“Um repórter que se chamava Arcanjo”,O

24 Cf., por exemplo, Loïc Wacquant.Punir os po-bres – a nova gestão da miséria nos Estados Unidos.Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2000.

Globo, 10 de junho), artigos (“Somos todosvítimas”, Luiz Garcia,O Globo, 10 de junho)lembram que ele (como Jesus?) morreu pornós:

Somos todos vítimas. É nesse contexto quedevemos reagir. Preste atenção, prezado lei-tor: Tim morreu porque era um de nós. Masmorreu por sua causa.

Na televisão, a Globo investe na dramatur-gia do Jornal Nacional: atrizes emprestamsuas vozes a relatos emocionados da mãe eda viúva, o locutor William Bonner se es-mera nos editoriais, uma edição do telejor-nal termina com uma homenagem de toda aequipe, reunida no estúdio, vestindo negro,aplaudindo o colega assassinado. O Fantás-tico faz longa reportagem recuperando ima-gens da “Feira das Drogas”, do jornalista noambiente de trabalho e em outras reporta-gens, entrecortadas por depoimentos de au-toridades escandalizadas com o ponto a quechegamos, e compara o “jornalismo investi-gativo” de Tim à cobertura da guerra do Vi-etnã. Na Globo News, sucedem-se progra-mas de debates que já partem de um con-senso sobre a ousadia do poder (ou do Es-tado) paralelo – o que, pelo menos numa oca-sião, chegou a causar constrangimentos aosconvidados, que discordavam daquela abor-dagem. No GNT, outro canal pago da em-presa, reprisam-se em seqüência os docu-mentários “Notícias de uma guerra particu-lar”, sobre o tráfico nas favelas do Rio, e“Morrendo para contar a história”, o casode um fotógrafo de agência morto na Somá-lia ainda muito jovem, um elogio ao repórterque personifica o ideal do jornalismo de nãomedir esforços para “contar a verdade”, masnão faz qualquer ligação entre o seu traba-

www.bocc.ubi.pt

Page 24: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

24 Sylvia Moretzsohn

lho e a empresa que o remunera: é como seambos compartilhassem do ideal.

9 No “memorial dos mártires”:Tim, Herzog e... Baumgarten

A edição de 13 de junho do “Sem Frontei-ras”, da Globo News, sobre o Newseum, o“memorial dos mártires do jornalismo”, vaino mesmo sentido dessa construção de ima-gem. Depois de apresentar casos clássicos deviolência contra jornalistas pelo mundo todo,depois de realizar várias entrevistas com di-ferentes defensores de direitos humanos e decontar (o que seria) a história do memorial,o repórter Jorge Pontual conclui informandoque Tim Lopes terá seu nome imortalizadoao lado de outros mártires do jornalismo. Ecomeça a recitar: Wladimir Herzog... Ale-xandre von Baumgarten...

Baumgarten, assassinado em queima dearquivo em outubro de 1982 porque ame-açava revelar a história do acordo que fir-mara com a “comunidade de informações”na transação que lhe garantiria recursos parareerguer a revistaO Cruzeiroem troca da pu-blicação de matérias de interesse do SNI?Baumgarten, colaborador da ditadura, ummártir do jornalismo?

A surpresa diante da placidez do jorna-lista a recitar aqueles nomes põe em xequetodas as informações daquela reportagem eprovoca uma pesquisa própria sobre históriadesse memorial. Então encontramos um ar-tigo de Argemiro Ferreira publicado no sitedo Observatório da Imprensa em 20 de junhode 2001: “The Freedom Forum – a históriavirada pelo avesso”. A história é a do jorna-lista americano Bill Stewart, que cobria a re-volução sandinista e, ao identificar-se diante

de uma barreira do exército, foi obrigado adeitar-se no chão e, logo após, assassinadoa sangue frio em 1979 por um soldado daGuarda Nacional de Somoza. Segundo Ar-gemiro, num livro financiado pela instituiçãoThe Freedom Forum, Stewart é apresentadocomo “veterano de duas guerras e três rebe-liões”, que cobria “a guerra civil entre tro-pas do governo da Nicarágua e os rebeldesContras” e foi executado por um soldado dogoverno.

Quem lê o texto conclui que o repórter foiexecutado pelos sandinistas. Os Contras,ali citados, não existiam em 1979. Só fo-ram recrutados, armados e financiados pelaespionagem (CIA) dos EUA três ou quatroanos depois, celebrizando-se pelas atrocida-des contra civis na guerra secreta do go-verno Reagan contra o governo sandinistada Nicarágua.

Assim se revelam as intenções do “Fó-rum da Liberdade”, que, segundo o jorna-lista, conta com 1 bilhão de dólares para sus-tentar suas atividades, entre elas o Newseum(Museu da Notícia) e um certo First Amend-ment Center, através dos quais “a organiza-ção arvora-se em juiz da liberdade de expres-são no mundo – sob a ótica americana, favo-rável não ao direito das pessoas à informa-ção, mas ao das corporações de dizer o quequiserem”.

Como o USA Today, The Freedom Fo-rum é uma invenção do magnata Allen H.Neuharth, executivo que usou o título da au-tobiografia (Confessions of a S.O.B.) paraconfirmar a suspeita que se tinha dele – deque é um bom FDP.Eu o vi há uns seis anos, em evento do Fre-edom Forum em Nova York (há centros em

www.bocc.ubi.pt

Page 25: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 25

toda parte, o da América Latina é na Argen-tina). Explicava-se ali o critério para se in-cluir nomes num monumento a jornalistasvítimas do arbítrio. Numa matéria, obser-vei à época que o nome de Vladimir Herzognão aparecia e sugeri que a causa era ideo-lógica. Depois soube que incluíram Herzog– mas junto com outro “mártir da imprensa”brasileira, Alexandre von Baumgarten...

O engodo que aquela edição do “SemFronteiras” ajudou a sacralizar é apenas umexemplo, talvez um dos mais eloqüentes, daenorme mistificação que a mídia fez de simesma no caso Tim.

10 “Aqui está Elias Maluco”

A diluição de conflitos é parte dos projetosde integração nacional que, no Brasil, sãotentados, pelo menos, desde o Estado Novo.Entidades sindicais de jornalistas não costu-mam freqüentar o noticiário, a não ser nacondição de agitadoras (quando de campa-nhas eleitorais radicalizadas, como em 89)ou rés (por exemplo, no episódio que envol-via a obtenção ilegal de registros profissio-nais e aposentadorias, no Rio de Janeiro). Ocaso Tim conseguiu a proeza de unir a mí-dia (leia-se, principalmente, a Rede Globo) aentidades que em outros tempos desafiaram aditadura: ABI, Sindicato dos Jornalistas Pro-fissionais do Município do Rio de Janeiro eFederação Nacional dos Jornalistas.

O Fórum Tim Lopes Nunca Mais, de 5 a9 de agosto, foi o ponto alto de um movi-mento que expressava ao mesmo tempo a in-dignação dos jornalistas e sua incapacidadede enfrentar questões que fugissem ao estritoâmbito corporativo da segurança no trabalho,das responsabilidades dos empregadores e da

relação de poder nas redações. Salvo exce-ções já citadas aqui, não se discutiam mé-todos, limites, enfim, o sentido da atividadeprofissional. O Fórum sintetizou esse qua-dro, a partir mesmo da pergunta que, escritanuma faixa, dominava o auditório do 7o an-dar da ABI, e depois seria transferida para ohall de entrada do prédio: “Onde está EliasMaluco?”. Qualquer perspectiva de discus-são séria já estaria descartada a partir dali,pois, se a questão era saber onde estava o tra-ficante, uma vez que ele aparecesse o assuntoestaria encerrado. Na abertura dos debates, odiscurso da viúva reiterava aquela impossi-bilidade, pois qualquer crítica tenderia a servista como um atentado à memória do com-panheiro morto.

Na cobertura do evento, veiculada emwww.partodeideias.orgsob o título “Mos-trar os dentes e mascar clichês”, Hugo R.C.Souza e Paula Grassini falam da repetiçãode lugares-comuns em torno da idéia de po-der paralelo do tráfico e do estado de guerracivil, do desdém a pontos de vista contrá-rios aos já sacralizados e, muito significa-tivamente, do que chamaram de “tropa dechoque” da Globo na platéia, pronta a rea-gir ao mínimo sinal de crítica ao comporta-mento da empresa. Uma das presenças ilus-tres na audiência foi William Waack, cha-mado à mesa para discutir segurança no tra-balho: na qualidade de ex-correspondenteinternacional responsável pela cobertura deguerras, ele e outros na mesa passaram a fa-lar de detalhes como as características doscoletes à prova de bala que os repórteres de-veriam usar para certas missões. Bem a pro-pósito, a TV Globo, que cobriu todos os diasdo evento, dedicou uma reportagem no Jor-nal Nacional a uma suposta disseminação douso desses coletes para a proteção das pes-

www.bocc.ubi.pt

Page 26: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

26 Sylvia Moretzsohn

soas no cotidiano das grandes cidades. Osentrevistados, claro, eram empresários, sem-pre focalizados do pescoço para baixo. Nãoocorreu aos repórteres indagar sobre o uso decapacetes.

Na manhã de 19 de setembro, 109 dias de-pois do crime, quando já se esgotava o prazoestabelecido pelas autoridades para a cap-tura, a polícia finalmente respondeu à per-gunta que atormentava os jornalistas. Umcartaz escrito rudimentarmente em letras ir-regulares informava: “aqui está Elias Ma-luco”, ao lado da exibição do traficante. Obandido perigoso e sanguinário “que sempreandava armado” foi preso na mesma favelaonde atuava, de bermuda, descalço, sem ca-misa e sem arma, sem um só tiro disparado.

Era quem faltava: o chefe, o mais impor-tante. Os outros haviam sido presos, algunslogo após o crime, outros mais tarde; dois es-tavam mortos, e o Jornal Nacional de 17 desetembro cometeu imperdoável falha ao di-zer que ambos haviam sido assassinados. Fa-lha nossa, corrigida a tempo: um havia mor-rido em troca de tiros com a polícia (o queobviamente exclui a hipótese de homicídio)e o outro se suicidara. Boa noite.

Um estudo mais aprofundado poderá iden-tificar o que teria ocorrido na relação da maisinfluente empresa jornalística brasileira como governo do estado. Uma análise de forapermite perceber a tensão em várias manche-tes, nesse meio tempo: no episódio da des-coberta de uma suposta “central telefônica”em Bangu I, através da qual o traficante Fer-nandinho Beira-Mar era associado a Bin La-den porque teria mandado encomendar ummíssil “como os da Al-Qaeda” (dia 19 de ju-nho); no “atentado com 200 tiros” à sede daprefeitura, que “desafia[va] poderes no Rio”,em reportagem que opunha a fragilidade do

governo estadual e a aparente mobilizaçãoenérgica do prefeito; na própria notícia damorte de um dos traficantes, com a publica-ção da foto que ridicularizava o secretário desegurança, Roberto Aguiar, com seus gestosdesencontrados e seus olhos arregalados (OGlobo, 16 de agosto de 2002); finalmente,em nova rebelião em Bangu I, quando se atri-buiu a Beira-Mar o assassinato de quatro tra-ficantes da facção rival (edições de 12 e 13 desetembro), e se criava a expectativa de inva-são do presídio, fazendo prever uma reediçãodo massacre de Carandiru.

No entanto, essa mesma análise dá contade aplausos inéditos a um governo de opo-sição. Primeiro, no episódio do afastamentodo responsável pelo inquérito que apurava oassassinato, e que ousara comentar em seurelatório a imprudência do repórter – o quemereceu até um suspiro desolado de Wil-liam Bonner (“não, Tim Lopes não morreupela notoriedade, ele queria ajudar uma po-pulação que estava cansada de pedir ajuda àpolícia...”) na leitura do editorial indignadoque fechou o Jornal Nacional de 7 de agosto:a pronta atitude da governadora lhe valeu oelogio explícito na edição seguinte. Depois,na ação que conteve a rebelião em Bangu I.Finalmente, no louvor à operação que pren-deu o principal responsável pelo assassinatode Tim.

O editorial da TV Globo é uma peçaexemplar de adaptação do discurso midiáticoà situação do momento e de reiteração dospostulados aqui apresentados. Por isso valea pena reproduzi-lo na íntegra:

Foram três meses de angústia e medo para apopulação do Rio, desde que o assassinatode Tim Lopes revelou todo o poder para-lelo dos traficantes – numa longa reporta-

www.bocc.ubi.pt

Page 27: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” 27

gem escrita com o próprio sangue do jorna-lista. O que se exigia então era uma políciaeficiente, capaz não somente de prender osculpados como também de conter os altosíndices de violência.

Exigir a prisão dos assassinos de Tim, coma persistência com que todo o Brasil exigiu,não era reivindicar um privilégio. Todo as-sassinato tem de ser punido. Mas a persis-tência foi também o reconhecimento de quequando se mata um jornalista o que se pre-tende é calar toda a sociedade.

A prisão de Elias Maluco foi uma vitória dapolícia que o Brasil deseja: a vitória de umapolícia que entende como legítima a pres-são por resultados, mas que não toma me-didas precipitadas – e quase sempre de efi-cácia duvidosa – apenas para tentar contero clamor popular. A vitória de uma políciaque aceita a crítica como construtiva, e nãocomo fruto de uma luta política, que não há:porque o que todos desejam é a derrota docrime. A vitória de uma polícia que pre-fere investigar em silêncio, usando moder-namente as técnicas de inteligência – e evitamedidas apenas cosméticas – mas de grandeimpacto. Às vezes com o custo da impopu-laridade.

Com Elias Maluco atrás das grades, e tam-bém com a prisão de outros chefes do trá-fico, o governo do estado mostrou que o Riotem uma polícia que, em sua maioria, é ca-paz de acertar. O Rio de Janeiro está, semnenhuma dúvida, de parabéns, e merece co-memorar essa vitória. Mas sem perder devista que a luta apenas começou.

Elias Maluco é somente um numa multidão.É preciso agora continuar a dar sinais cla-ros ao crime de que não haverá trégua. Aluta será contínua, dura e difícil, mas con-tará sempre com o apoio da população. Por-que é sempre bom poder dizer que o crime

não compensa. Que isso não é apenas umditado popular. É uma verdade.

Não há crítica política, embora este sejaum contexto de disputa eleitoral. Quem sabefoi por isso que o presidente do STJ, NilsonNaves, pôde definir, delicada e sentenciosa-mente: “uma vitória das forças do bem sobreas forças do mal”. Quem sabe também foipor isso que, naquele dia de glória, a gover-nadora Benedita da Silva recebeu elogios atéda presidência da República, “por sua atua-ção, com firmeza, na repressão ao crime or-ganizado, dando ao Rio de Janeiro a perspec-tiva de uma melhor segurança”.

Sem dúvida, ali estava muito mais do queElias Maluco.

11 Bibliografia

Publicações acadêmicasBatista, Nilo. “Mídia e sistema penal no

capitalismo tardio”, inDiscursos Sediciosos– crime, direito e sociedade, no 12. Rio deJaneiro, Revan/ICC, 2o semestre de 2002, p.253-270.

___________. “A privatização da cidada-nia”. Texto apresentado no colóquio “Cida-des, cidadania e direitos”. Laboratório Ci-dade e Poder, Niterói, ICHF, 2 de julho de2002.

Champagne, Patrick. “La vision médiati-que”, in Pierre Bourdieu (org.),La misère dumonde. Paris, Seuil, 1993, p. 61-79.

Costa, Maria Tereza P. da. O programaGil Gomes – a justiça em ondas médias.Campinas, Unicamp, 1992.

Fishman, Mark. Manufacturing news.Austin, University of Texas Press, 1990.

Fraga Rocco, Maria Thereza.Linguagem

www.bocc.ubi.pt

Page 28: O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã” · 2010-02-16 · o “caso Tim” provocou sobretudo uma espe-rada reação corporativa, centrada principal-mente num conflituoso

28 Sylvia Moretzsohn

autoritária – televisão e persuasão. SãoPaulo, Brasiliense, 1988.

Lemos, Cláudia. Seis questões sobre ojornalismo: uma leitura da imprensa bra-sileira nos anos 90 a partir de Ítalo Cal-vino. Tese de doutorado em Literatura Com-parada. Belo Horizonte, UFMG, 2001

Lukács, Georg. “O marxismo ortodoxo”,in História e consciência de classe. Lisboa,Escorpião, 1974, p. 20.

Mattelart, Armand.Comunicação-mundo– história das técnicas e das estratégias.Pe-trópolis, Vozes, 1994, p. 276

Mendonça, Kleber. “A onda do arrastão”,em Discursos Sediciosos – crime, direitoe sociedade. Rio de Janeiro, Freitas Bas-tos/Instituto Carioca de Criminologia, ano 4,no 7-8, 1o e 2o semestres de 1999, p. 267-282

_______________.A punição pela audi-ência – um estudo do Linha Direta. Rio deJaneiro, Quartet/Faperj, 2002.

Moretzsohn, Sylvia. “Imprensa e crimino-logia – o papel do jornalismo nas políticas deexclusão social”. Rio de Janeiro, 2002, mi-meo

Olmo, Rosa del. “A legislação no con-texto das intervenções globais sobre drogas”,in Discursos Sediciosos – crime, direito e so-ciedade, no 12. Rio de Janeiro, Revan/ICC,2o semestre de 2002, p. 63-78.

Paiva, Raquel. “A publicização da éticano espaço midiatizado”, em Raquel Paiva(org.), Ética, cidadania e imprensa. Rio deJaneiro, Mauad, 2002, p. 29-40.

Riccio, Vicente. “A lei em tela e a tela dalei – o direito e osreality shows”, in Dados–Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,Iuperj, vol. 44, no 4, 2001, p. 773 a 805.

Thompson, Augusto. “Reforma da polícia– missão impossível”, inDiscursos Sedici-osos – crime, direito e sociedade, no 9-10.

Rio de Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 1o e 2o

semestres de 2000, p. 244Wacquant, Loïc.Punir os pobres – a nova

gestão da miséria nos Estados Unidos. Riode Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2000.

Young, Jock.A sociedade excludente – ex-clusão social, criminalidade e diferença namodernidade recente. Rio de Janeiro, Re-van/ICC, 2003.

Artigos em jornaisBucci, Eugênio. “Uma guerra pior do que

a guerra”, in Jornal do Brasil, 5/6/2002._____________. “O jornalista, o Estado

de Direito e o assassino”, in Jornal do Brasil,11/6/2002.

Carvalho, José Murilo de. “Elias, ma-luco?”, inO Globo, 18/6/2002.

Freitas, Janio de. “As ondas do Rio”,Fo-lha de S.Paulo, 30/10/1994.

_____________. “Tim e os outros”, in Fo-lha de S. Paulo, 16/6/2002.

Garcia, Luiz. “Somos todos vítimas”, inO Globo, 10/6/2002.

Schroder, Carlos Henrique. “Um cida-dão”, inJornal do Brasil, 6/6/2002.

Souza, Hugo R.C. e Paula Grassini.“Mostrar os dentes e mascar clichês”,www.partodeideias.com, 20/8/2002.

Utzeri, Fritz. “Os limites do jornalismo”,in Jornal do Brasil, 5/6/2002.

__________. “Jornalismo ou voyeu-rismo”, in Jornal do Brasil, 9/6/2002 .

__________. “Reflexões”, inJornal doBrasil, 12/6/2002.

www.bocc.ubi.pt