O Ceu Dos Suicidas - Ricardo Lisias

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Obra de Ricardo Lisias

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Ricardo Lsias

    O cu dos suicidas

  • Copyright 2012 by Ricardo LsiasTodos os direitos reservados

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    CapaRetina_78

    Imagem de capaRobert Clare / Getty Images

    RevisoTamara SenderFatima FadelJoana Milli

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    Converso para e-bookAbreus System Ltda.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    L753cLsias, Ricardo

    O cu dos suicidas [recurso eletrnico] / Ricardo Lsias. Rio de Janeiro:Objetiva, 2013.recurso digital

    Formato: ePub

  • Requisitos no sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web178p. ISBN 978-85-7962-200-7 (recurso eletrnico)

    1. Fico brasileira. 2. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    12-8804. CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

  • SumrioCapaFolha de RostoCrditosDedicatriaEpgrafeSou um especialista emQuando era adolescenteH uns dois anosSe eu estiver certoMinha coleo de tampinhasTanta autoindulgncia est meNunca tinha gritado tantoNo conquistei ningumAlm das tampinhasLembro-me, ainda nesse comeoDepois, troquei a folhaO passo seguinteNo sei se hPessoas que fazem investigaesEnto vai tomar noMinha me comeou aDesde que chegueiTenho feito descobertasNa porta da bibliotecaUma vez fiquei curiosoNa primeira instituio ondeNa segunda instituioEm um banco parecidoQuando sa, outra vezNo final da faculdadeTalvez a seriedade noEla no me escreveuAmanheceu um belo diaNo consegui dormir direitoVoltei para So PauloPor enquanto, minha famliaTodo dia, vou paraMuita gente pensa queUm vulto apareceu chorandoA neta se assustouPedi desculpas para oA coleo de taxmetrosDe manh, mais ouAo contrrio da senhoraO Andr sempre gostouNo consegui dormir direito

  • S consegui que aCom a desculpa deQuando voltei, perto daNo consigo estabelecer direitoDo que aconteceu comAlgumas horas depoisMeu rosto ficou muitoEvidentemente, minha me viriaNo aeroporto, comprei umConsegui dormir o voo inteiroComo se afastou paraResolvi andarEu passara apenas trsAcordei com fome noVoltei para o hotelMeu rosto continuava vermelhoDesisti do caf da manhSubi at o quartoQuando o dia clareouRegistrei-me em um hotelCom a promessa deO namorado concordaProcurei a igreja protestanteSa furioso da igrejaTentei trabalhar em umPontual, o psiquiatra veioSa gritando na ruaCompreendo perfeitamente o seuNa farmcia, peguei oAcordei um pouco antesNo meio da noiteO padre, antes de encerrarPedi desculpas ao psiquiatraDe novo, no conseguiVoltei para casa chorandoFui a uma lojaCerto, agora alm deFiz o trajeto daDormi um pouco melhorAcordei no hospitalQuando minha me eAntes de responderO mdico passou aEnquanto o Mdico limpavaOuvi um barulho naOs dois me deixaramBoa noite

  • Para Tales AbSaber,por me ajudar com a verdade.

  • Depois de tudoquem se lembrar de deus?

    Isso bonito, Mateus

    Priscila Figueiredo

  • Sou um especialista em colees, mas doei os meus selos h mais de dez anos. Tenhoapenas um relgio, e dos meus avs herdei uma pequena quantidade de dinheiro e maisnada. No guardo moedas estrangeiras, no tenho caixas de sapato cheias de cartes-postais e no catalogo canecas, maos de cigarro ou chaveiros. Tenho um aviozinho daPan Am, mas uma coleo exigiria, no mnimo, uma pequena frota.

    A deciso de deixar as colees de lado para ser um especialista no foiconsciente. Quando entrei na faculdade, j tinha me desfeito das tampinhas de garrafa eda maior parte dos selos que juntara por alguns anos. Passei o curso de graduao inteirosem pensar em colees. De vez em quando, um professor dizia que os historiadoresadoram o p dos documentos e que ele mesmo j tinha passado muitas horas da vidadebruado sobre colees de todo tipo. Nos cursos de histria da arte, algunscolecionadores sempre eram citados. Mas, alm disso, as colees naquela poca no meinteressavam.

    Nem sempre foi assim: durante a infncia e a adolescncia, cheguei a ter quaseduas mil tampinhas de garrafa. Quanto aos selos, obrigatrios para quase todo mundo quesofre com a obsesso pelo colecionismo, cheguei a organizar belos conjuntos. Tambmreuni tudo o que encontrei sobre o time de futebol que me encantava aos doze anos. Mas,nesse caso, havia apenas paixo, o que jamais pode ser o elemento central da atividade deum colecionador srio.

    Hoje, sequer assisto aos jogos do Brasil na Copa do Mundo.

  • Quando era adolescente, adorava mexer nas minhas tampinhas de garrafa. Todas estavamseparadas segundo o pas de origem e, depois, em grupos menores, a partir da bebida deonde tinham sado. Basicamente, distinguia entre os refrigerantes, mais numerosos, asbebidas alcolicas e gua.

    Meu orgulho era uma srie de tampinhas com caracteres rabes que tinhaarranjado com um parente distante. Tentei entender o que estava escrito em algumas,mas, como no consegui, fui obrigado a abrir uma exceo no catlogo e no pude sequersepar-las por pas. No caso de trs tampinhas japonesas, tambm, at hoje no sei dizerse eram de gua ou de refrigerante. Nunca achei que fossem de cerveja: ganhei o conjuntode um abstmio.

    Chamavam ateno, ainda, vinte e trs tampinhas da ndia. Elas tinham sidopresente de uma tia que, apesar de mal ter sado dos vinte anos, no suportara umadesiluso amorosa e, depois de passar algumas semanas chorando e gritando palavrassem sentido, resolvera procurar a prpria histria em uma pequena cidade a trs horas deNova Dli.

    Eu devia ter por volta de quatorze anos quando ela viajou pela primeira vez. Meuav tentou manter uma espcie de compostura compreensiva e s conseguia repetir queela se arrependeria e logo voltaria para concluir a faculdade de direito. O fato de ele terpago as passagens da filha desiludida um ponto de conflito entre o velho e minha avat hoje. Fazendo as contas agora, acho que a ltima vez que minha tia esteve no Brasilfoi h uns dez anos. At onde sei, atualmente ela mal telefona no Natal.

  • H uns dois anos, tive coragem de perguntar por onde minha tia desiludida andava. Minhaav comeou a chorar, minha me pegou outra colher de arroz, fazendo um gesto dereprovao com o brao esquerdo, e meu tio, sempre competindo com a irm caula,disse cheio de desdm que em algum ponto entre o sul da Rssia, a Monglia e oCazaquisto.

    Ela passa o tempo vagando com um grupo liderado por um monge que se diz areencarnao do esprito que controla o lado afetivo dos seres vivos. No apenas oshumanos. Nesse momento, minha irm quase cuspiu o que estava mastigando, engasgadacom a piada. Eu tinha acabado de estragar o almoo de Pscoa.

    No acho a histria engraada. No acredito no tal monge, claro, mas sempregostei da minha tia. O irmo dela, o engraadinho, incomoda-me um pouco. Quando elavoltou pela primeira vez, creio que em 1990 (no posso dizer a data exata, pois, desde quecomecei a sentir saudades de tudo, perdi um pouco a noo do tempo), fiquei marcadopelo jeito com que me entregou as tampinhas que tinha trazido.

    Para a sua coleo, Ricardo. Eu no consigo esquecer essa frase: para a suacoleo, Ricardo. Ela me passou o pacotinho com o olhar distante. Estvamos todosesperando no aeroporto. Quando a porta se abriu, logo nos avistou, acenou e veiocaminhando bem devagar. Minha av comeou a chorar. Ela abraou um por um. Depois, seeu estiver certo, fui o primeiro a ganhar um presente. Para a sua coleo, Ricardo.

    Para quem adorava andar de bicicleta, e sempre tivera os afetos muito intensos,os gestos dela pareciam vagarosos demais. Fiquei olhando as tampinhas no caminho doaeroporto at a casa do meu av, onde iramos comemorar a visita.

  • Se eu estiver certo, minha tia desiludida voltou ao Brasil depois de oito anos. Jestvamos no finalzinho do sculo. No conseguimos nos ver: a visita coincidiu com umaprova bastante importante dos exames para a ps-graduao. Eu estava concentrado e,quando finalmente voltei para So Paulo, ela j tinha ido embora.

    Jamais esqueci o olhar de desolao da minha me ao me contar que a irm,naquele momento ela prpria uma monja, tinha avisado que o mundo sofreria uma grandecatstrofe, e talvez acabasse na entrada do sculo XXI.

    Ela nunca mais voltou ao Brasil. Afetuosa, deixou-me nessa segunda visita trsoutras tampinhas. Mas eu j estava comeando os estudos para me tornar um especialistae, com a soberba que herdei do meu tio, joguei-as fora. Estudar a origem delas, como fariatodo bom colecionador, sequer passou pela minha cabea.

    Desde que tudo isso comeou, tenho percebido que sentir saudades significa, emalguma parcela, arrepender-se. Fico tentando relembrar uma srie de coisas. Se notivesse jogado as tampinhas fora, por exemplo, a frase da minha tia talvez hoje fizessealgum sentido para mim. Para a sua coleo, Ricardo.

    No tenho mais nenhuma coleo.Semana passada voltei lata de lixo onde joguei uma parte das tampinhas fora,

    justamente os exemplares mais nobres. A outra parte, deixei para o lixeiro na manhseguinte. Eu no tinha esperana de encontr-las: afinal j se passaram quase vinte anos.Acho que isso mesmo: vinte anos. Apenas olhei as pessoas, a estao de metr e osarredores. E infelizmente no encontrei nada que me dissesse respeito.

  • Minha coleo de tampinhas teve um final melanclico. No ms seguinte ao encerramentodo ensino mdio, um pouco antes do Natal, a turma se juntou para uma despedida. Foiuma daquelas reunies em que todo mundo garante que de maneira nenhuma vai perdercontato.

    Tenho vontade de rever meus colegas. Procurei-os em trs redes sociais nainternet, mas, como no tenho certeza dos nomes, no achei ningum.

    Na festa, iniciaramos uma nova fase da vida. Portanto, haveria muita bebidaalcolica. Hoje diferente, mas naquela poca a gente demorava um pouco mais paracomear a beber.

    Como as meninas estariam presentes, pretendamos que a noite trouxesse asexperincias que tnhamos acalentado durante todo o colgio. Por algum motivo,provavelmente resqucio do meu orgulho adolescente, achei que, se levasse as minhastampinhas de garrafa mais especiais, teria vantagem para conquistar uma delas. Era esseo plano: envolv-las com a parte nobre da coleo.

    Hoje acredito que esse orgulho mostra que a minha alma a de umcolecionador. Vou levar as tampinhas, as meninas com certeza ficaro impressionadas eescolherei com qual delas minha sada da adolescncia ser coroada. Eu no tinha a menordvida de que daria certo.

    No funcionou.

  • Tanta autoindulgncia est me incomodando. At o suicdio do meu grande amigo Andr,nunca tive vontade de voltar atrs com nada. Agora, comecei a sentir saudades de tudo.Como no consigo deixar de relembrar uma quantidade enorme de episdios da minha vida, inevitvel que comece a pes-los. Ento, arrependo-me de muitos.

    Quando tudo comeou, minha primeira reao foi sentir dio do Andr. Tenhovergonha de dizer: mal ele tinha sido enterrado, eu o xingava, falando sozinho na rua. Aprimeira crise aconteceu depois que sa da delegacia.

    Precisei fazer alguns esclarecimentos. Pelo que entendi, fui o ltimo conhecidocom quem o Andr fez contato. No tive nenhum problema. Na verdade, fiquei surpresocom a educao dos policiais. Um deles, quando eu j estava saindo, perguntou se conheoo legendrio Manoel Camassa, um delegado que coleciona moedas e material de eleies.Ele tem, inclusive, vrias urnas.

    Depois que me despedi do advogado que tinha contratado por precauo,comecei a sentir alguma falta de ar. Como a vertigem aumentou, sentei-me em umapraa, mas logo um mendigo veio me incomodar. Ele me chamou de choro. Acho que deseu moleque choro. Levantei-me para reagir, mas minha vista escureceu de raiva e elesumiu. Ento, sa gritando. Devo ter xingado todo mundo, mas com certeza foi o Andrquem mais ouviu.

  • Nunca tinha gritado tanto. Trato meus problemas em silncio. Eu os organizo e reorganizona cabea, como se fossem uma coleo, at solucion-los. Com as decises, reajo damesma forma. Um bom exemplo a tal festinha de despedida. Claro que no conseguiterminar o ensino mdio como tinha planejado.

    Levei dez tampinhas. Tomei cuidado para, antes, passar um pano em cada uma.Estava um pouco apreensivo com as japonesas: caso chamassem mais ateno que asoutras, a minha dificuldade para explicar se eram de gua ou refrigerante talvezdiminusse o charme diante das meninas. Sem dizer que, naquele ambiente, seriadesanimador destacar que as tinha ganhado de um abstmio.

    Resolvi que iria comear mostrando as trs tampinhas da antiga Polka, umacerveja produzida a partir dos anos 1940 no sul do Brasil por um descendente de alemes.No final, at onde tinha pesquisado, ela acabou deixando de ser uma marca artesanal parase incorporar a um grande grupo.

    Eu acrescentaria na festa que em vrios lugares do mundo a indstriainternacional de bebidas acabou soterrando pequenos e tradicionais empreendimentos, como bvio prejuzo no sabor. Se conclusse a histria toda com o fato de que o dono da Polkacriou uma espcie de festival da cerveja, com certeza conquistaria algum.

  • No conquistei ningum, claro. Depois de uma hora de festa, todo mundo comeou aficar melanclico e cada vez que eu resolvia abrir o saquinho plstico com as deztampinhas raras, as pessoas diziam que talvez pudssemos nos reunir de novo emfevereiro. Quando o ambiente ameaava ficar carregado demais, contvamos umanovidade.

    Um cara iria ajudar a lojinha do irmo no Canad. Duas meninas tinhamarrumado um emprego com um estilista famoso e eu, o colecionador, estava rachando deestudar para entrar na faculdade de histria.

    Resolvemos ir embora cedo, para a despedida ser mais fcil. No foi, e at hojeno gosto de lembrar.

    Levemente bbado, sentei no metr sozinho e fiquei olhando as dez tampinhasna volta para casa. Para a sua coleo, Ricardo. Por algum motivo, eu j no tinha maisorgulho da minha coleo.

    O trem estava vazio e na minha fantasia o trajeto demorou bastante. Dei aparte nobre da minha coleo de tampinhas para um sujeito que parecia muito triste eestava sentado perto de mim. Talvez algum amigo dele tivesse acabado de se matar.Essas coisas a gente no pergunta.

    No foi isso: com raiva, triste e meio bbado, mas empolgado com as novasperspectivas, cheio de curiosidade pelo que iria acontecer comigo, muito confuso portanto,joguei as tampinhas no lixo da estao de metr perto da minha casa. Elas j no faziamparte da minha vida.

  • Alm das tampinhas, tive uma coleo de selos. Comecei como todo mundo: cortando-osdas cartas que recebamos em casa. Aos poucos, as pessoas comearam a me trazeroutros. Acho que com onze anos ganhei uma quadra de presente de aniversrio. Veioembrulhada em uma embalagem de loja especializada, e a palavra filatelia no papel depresente me comoveu.

    Eram selos do ano de 1983 reproduzindo, com a mesma dimenso mas a partirde imagens muito diferentes, um momento do carnaval brasileiro. No tinham carimbo.Ningum enviara uma carta com eles, o que me deixava um pouco mais tenso aomanipul-los. Lembro-me especialmente de um, talvez o de valor de face mais alto, querepresentava um bloco de rua. Passei horas tentando entender se o rosto das pessoas, topequeno nas fotos dos selos, estava pintado ou se alguma coisa os cobria.

    Foi essa quadra sobre o carnaval que me tornou um colecionador pretensamenteinteressado. Tentei ler tudo o que encontrei sobre a palavra filatelia. Aprendi que coleesprecisam ser organizadas. Minha primeira deciso foi ficar apenas com os selos do Brasil,que j eram a maioria. Guardei tambm um punhado de exemplares dos pases rabes, jque minha famlia tinha vindo para o Brasil fugindo do Lbano. O resto, troquei em umafeirinha.

  • Lembro-me, ainda nesse comeo de coleo, dos pequeninos selos regulares, com valoresde face mais baixos. Esses, juntei aos montes. Uma srie sobre construes histricas,que circulou em 1987, aparecia sem parar nas minhas mos. O de um cruzado com aimagem do pelourinho de Salvador, devo ter acumulado uns cinquenta.

    Eu gostava de um de 1977 comemorando o Ano Mundial do Reumatismo. Nome recordo o valor de face, mas lembro que no havia a indicao da moeda. Nemcruzeiro, nem cruzado. Em 1989, o Brasil vivia o novo cruzado. Consigo me recordar agoraapenas porque me apeguei muito a um selo que comemorava os cem anos da primeirausina hidroeltrica da Amrica do Sul.

    Depois de algum tempo, comecei a guardar os selos em sacos plsticos,dividindo-os ano a ano. Ento, pesquisei a inflao no Brasil, em alguns momentosmarcantes, para uma lista que acompanhava a caixa com os selos. No vou me lembrarde todos os nmeros, mas tenho muita clareza de dois: em 1983, poca da quadra sobre ocarnaval, a inflao chegou a 200%. Cinco anos depois, ultrapassaria os 1.000%.

    Eu ficava fascinado ao colocar os selos na mesa para, pela dcima vez,observar que, se em 1989 a moeda era o novo cruzado, no ano seguinte j tnhamos devolta o cruzeiro. Sinto saudades daquele tempo: caa na minha mo um selo sobre osLions Clubes do Brasil e eu ia correndo pesquisar o que era aquilo.

  • Depois, troquei a folha com dados muito superficiais para fichas individuais sobre cadaano. Como minha coleo contava com muitos selos da dcada de 1980, era inevitvel quea economia aparecesse em primeiro lugar. Alm disso, a marcante variao da moedaexigia explicaes.

    As melhores colees sobre material poltico que observei at hoje comprovamque Jos Sarney e Fernando Collor combinavam com o papel que lhes coube no picadeiroque foi a presidncia do Brasil aps a ditadura. Eu me envergonho de sentir saudadesdaquele tempo.

    Junto com as fichas, tive a ideia de colar os selos em folhas de cartolina.Cortava-as na dimenso de um papel sulfite normal. Ento, prendia os selos compequeninas tiras de folha de seda. A operao durava horas. Depois de voltar da escola,passava tardes inteiras fechado no quarto colando selos nas cartolinas e pesquisandoinformaes para as fichas.

    No me incomodava ficar sozinho. Um colecionador cultiva com muitaintensidade o mundo interior. Depois, mudei bastante. Na faculdade, eu era um daquelescaras sociveis que conversam com todo mundo e no tm dificuldade para fazer amigos.Alguns esto entre os mais importantes da minha vida.

  • Opasso seguinte, antes do final pattico que dei coleo, aconteceu quando ganhei domeu av um classificador. Era um lbum enorme, de capa dura azul, com capacidade paraarmazenar cinco mil selos. Como os sacos plsticos perderiam a funo, minhas fichasacabaram soltas. Resolvi guard-las em uma pasta, mas vejo hoje que com isso talveztenha perdido a empolgao. Era divertido olhar os selos e ver que a moeda brasileiravariava to rpido.

    Por outro lado, com todos juntos em um nico lbum, pude ter uma viso maisgeral da coleo. Como organizei tudo em ordem cronolgica (hbito de colecionadoriniciante), ficava fcil ver os anos mais bem-representados e os que quase no apareciam.Os selos mais antigos eram de 1933 com a imagem de um braso.

    Depois, a coleo saltava para 1950. Da dcada de 1970, lembro-me de ter tidobastante coisa, porque um tio-av jogou na minha mo uma caixa cheia de envelopes.Minha me ficou preocupada com o presente e, antes de me deixar cuidar dos selos,prestou ateno para ver se havia alguma carta esquecida l dentro.

    Meu tio-av tinha retirado todas. Os envelopes vinham do mesmo endereo nacidade de Santos. Os carimbos variavam entre 1971 e 1980, mas a correspondncia maisintensa aconteceu no meio da dcada.

    Foi ele tambm que me deu os selos rabes. Do mesmo jeito, datavam dadcada de 1970, muito embora nesse caso houvesse ao menos trs correspondentes noOriente Mdio. tudo que consigo lembrar.

  • No sei se h alguma ligao entre as cartas que vinham de Santos, as que chegavam doLbano, da Sria e da Arbia Saudita e a preocupao da minha me com o fato de talvezter sobrado alguma coisa nos envelopes. Naquele momento, nada disso me interessava. Eus queria cortar e classificar os selos.

    Durante a diviso do esplio do bisav, esse meu tio-av chegou a sacar umrevlver da poca da Segunda Guerra Mundial, que obviamente no funcionava mais,descontente com dois dos irmos. Ele os acusava de tentar sair com vantagem na heranado velho.

    As crianas o adoravam. Tenho saudades daquele tempo: por duas vezes,reunimos a famlia inteira para comemorar o aniversrio do bisav. Na segunda festa, leveiminha coleo de selos e o tio-av resolveu me passar a caixa com os envelopes.

    Recordando agora, meu av tambm ficou assustado e conferiu para ver se oirmo no estava passando para frente nenhuma carta. Quanto aos envelopes, como iriarasg-los para pegar os selos, no havia problema.

    No tenho como reaver minha coleo, mas retomar essa histria talvez sejauma boa maneira de deixar alguma coisa registrada sobre meu tio-av. Posso escrever umartigo para uma revista de colecionadores. Pela reao que teve poca, acho difcil minhame ajudar, mas ela tem uma prima cujo hobby desenhar a rvore genealgica dafamlia. Com certeza ela deve saber alguma coisa.

  • Pessoas que fazem investigaes para desenhar rvores genealgicas costumam reunirobjetos que interessem histria familiar. Como no so o foco principal, porm, impossvel falar em coleo. Mas h uma afinidade e por isso essa prima aceitou comtoda simpatia me receber.

    Logo que cheguei, ela disse que minha me tinha falado bastante de mim e quesempre acompanhava meus textos na imprensa. Seu guia para colecionadores muitodivertido.

    Ela abriu uma folha enorme com a nossa rvore genealgica. gil, localizou-mena mesma hora na lateral esquerda. Meu tio-av, apontou, estava uns trinta centmetrosacima. O estudo que tinha feito chegava, com toda segurana segundo ela, at o final dosculo XVIII. Antes disso, era tudo especulao. Para conseguir outros dados, elaprecisaria voltar ao Lbano e aos outros pases da regio para um estudo mais minucioso.

    Enquanto pegava um grupo de fotos e outros documentos (o que seria umgerme de coleo) ela me disse que as pessoas com quem fizera contato nos pasesrabes no gostam muito de falar do passado. Aproveitei a chance para perguntar se elasabia por que meu tio-av tinha trocado tantas cartas com um grupo pequeno de pessoasna dcada de 1970. A velhota fechou a cara e, nervosa, disse que no porque meu amigose matou que posso incomodar a memria dos que se foram pela vontade de Deus.

  • Ento vai tomar no cu, sua filha da puta.Cuspi na cara dela mas, com o grito, a desgraada se afastou e acabei atingindo

    a tal rvore genealgica. Na mesma hora, peguei a folha e a rasguei em pelo menos trspedaos. Ela comeou a gritar e tentou tirar o papel das minhas mos.

    No me recordo como sa do apartamento da desgraada. Desde que meugrande amigo se matou, tenho problemas de memria. De repente, na lembrana queconsigo recuperar, vejo-me na rua de novo.

    Estou andando apressado e grito sem parar. Acho que xingava a filha da puta.Lembro-me de atravessar duas ou trs avenidas. A luz do farol se confunde com umletreiro, um pouco mais distante, para causar uma enorme sensao de vertigem.

    Quando estava perto de uma praa, meu telefone celular tocou. Ricardo, vocest a? A desgraada j tinha telefonado para minha me.

    No respondi. Vi um cara gordinho e de cabelo comprido andando perto de mim. Andr eu gritei. Era o Andr. Tentei alcan-lo enquanto gritava. Andr euberrava na calada cheia de gente. Acho que todo mundo olhou.

    Talvez ningum tenha olhado: no consigo lembrar e muito menos escreverdireito. Estou com tontura. Meu estmago embrulhou. No era o Andr e senti outra vezmuita raiva dele.

  • Minha me comeou a me aborrecer, exigindo que eu procurasse ajuda especializada.Resolvi alugar uma casa de fundos perto da repblica onde morvamos no tempo dafaculdade. Inventei um curso qualquer, fechei meu apartamento e vim para c.

    Outro dia cruzei com um dos meus ex-professores. Justamente o que o Andrmais me aconselhou a ficar longe. Tenho vergonha, mas no vou esconder: uma semanaantes de se enforcar, ele foi ao meu apartamento e me contou tudo o que meus antigoscolegas falavam de mim e a boataria sobre os professores. Fiquei incentivando-o a falar,deliciado com as histrias.

    Encontrei tambm o irmo do cara que ficou com a minha coleo de selos. Eleprometeu que mandaria lembranas e contou que meu velho amigo trabalha em umhospital psiquitrico na Esccia.

    Fiquei com saudades do tempo da faculdade. Eu no me preocupava com nada.No sei como conseguia passar o ms com to pouco dinheiro. S a histria meinteressava: ia dos arquivos para o cinema temtico, e acumulava informaes sobreeconomia, biografias e as tendncias da ltima corrente francesa. Do mesmo jeito,contextualizava qualquer coisa e me apaixonava por todo tipo de documento.

  • Desde que cheguei, tenho me repetido que no vim atrs dos rastros do Andr. E nempoderia: no sei onde ele morou pela ltima vez, antes das internaes que culminaram nosuicdio. Algum me disse que a pequenina biblioteca que ele construiu foi vendida para umsebo. O Andr adorava literatura. Visitei os quatro da cidade universitria, mas noencontrei nada.

    Ele dava aulas de histria em um colgio particular aqui na regio. Mas no seiqual e no estou disposto a descobrir. No estou com vontade de fazer contato com aspessoas que poderiam me dizer.

    Tambm no vim atrs da minha prpria histria. No sou a minha tiadesiludida. Mas andei pelo campus. Estou passando um bom tempo na biblioteca dauniversidade e outro dia fui conferir se o cineclube ainda funciona. Por outro lado, novoltei repblica onde passei boa parte do meu curso. Do mesmo jeito, no vou conferirse os restaurantes baratos que frequentvamos ainda existem.

    Mas confesso que tenho medo de no aguentar. Estou incomodado com osacessos de ansiedade que comearam desde que vim para c. Quando surgem, sinto oimpulso de voltar a todos esses lugares. Durante o mais forte, fiquei a trs quarteires davelha repblica e me sentei em um banco, na rua, com muita vontade de chorar.

    Depois voltei para c, envergonhado. Outra sensao incmoda o nervosismo.Talvez eu devesse largar tudo, voltar para So Paulo, pedir desculpas para a velhota darvore genealgica e procurar a tal ajuda especializada.

    Sinto saudades de tudo e isso me irrita.

  • Tenho feito descobertas: quando a gente grita na rua, ningum repara. Nesse ltimoacesso, fiquei nervoso por quase ter ido at minha antiga repblica e, como no conseguichorar, voltei gritando. Agora, no entanto, no culpei nem xinguei o Andr. Para ser sincero,esqueci dele enquanto gritava na rua. Idiota mesmo a velha da rvore genealgica.Tonta, colecionadora de fascculo de banca de jornal.

    Quando voltei, escrevi um e-mail para ela explicando que rvores genealgicasso para colecionadores de quinta categoria. Se a senhora fosse sofisticada, colecionariafotografias ou cartes-postais da famlia. Garanto que a senhora compra caixinha deporcelana no jornaleiro. Uma hora depois, minha me ligou. No atendi. Fui biblioteca dauniversidade atrs de algum livro ou documento que pudesse me esclarecer uma possvelligao entre a cidade de Santos e o Oriente Mdio.

    Estou falando da dcada de 1970, claro. No incio do sculo XX, havia muita. Meubisav veio para o Brasil, partindo do Lbano, em um cargueiro da prpria famlia.Tnhamos um negcio de transporte internacional que faliu durante a crise de 1929. Porisso achei estranha essa troca de cartas mais de quarenta anos depois.

    No encontrei livro algum e ento resolvi escrever para a tonta da rvoregenealgica para perguntar se meu tio-av era terrorista. Uma hora depois, naturalmente,minha me ligou de novo.

  • Na porta da biblioteca, encontrei um dos meus antigos professores. Simptico, ele mereconheceu e me convidou para tomar um caf. Aceitei um pouco contrariado. Eu noqueria ter uma conversa saudosista.

    Sentir saudades de tudo no exatamente saudosismo. Esse ltimo gera aqueledesejo ridculo de ficar relembrando todo tipo de coisa. A reconstruo sempre vemacompanhada de um sorriso frgil.

    No meu caso, sentir saudades de tudo ter vontade de refazer qualquer coisaque retorne minha cabea. Quero minha coleo de selos de volta, por exemplo. Foi umerro ter ouvido as fofocas do Andr. Gritei, nervoso, para ele parar de se cortar. Vou pedirdesculpas para a minha tia.

    Meu professor sabia do Andr e disse, com alguma sinceridade, que lamentavamuito. Era um rapaz divertido falou , eu adorava quando ele dizia ser o ltimo doscavaleiros templrios.

    Houve uma poca em que o Andr resolveu dizer que fazia parte da Ordem dosTemplrios. Ele enfatizava: no uma dessas sociedades secretas de hoje. da IdadeMdia mesmo. A gente ria. Como era muito estudioso, ele pesquisou alguns costumes(acho que sem nenhuma coerncia) e chegou a pratic-los. O que mais chamava atenoera o ritual da corte. De vez em quando, eu o via ajoelhado diante de uma moa,estendendo uma flor e fazendo um juramento. s vezes falhava.

  • Uma vez fiquei curioso com essa histria de templrios e descobri que o Andr eracatlico. Ele no ia missa, e muito menos obedecia aos rituais contemporneos, mascumpria suas obrigaes religiosas por meio de um cdigo particular. Para ele, ocavaleirismo medieval no devia ter sido perdido.

    Foi com essa mesma tica que ele arrumou confuso quando se internou pelasegunda vez. Um certo Bin Laden que tentava controlar os outros internos sempre que asenfermeiras se distraam. Dependendo do transtorno da pessoa, ele me disse, a fragilidade muito grande. Com esses, o Bin Laden deitava e rolava.

    Mas com o Andr no funcionou e os dois trocaram chutes e acabaram isolados.Quando veio para a minha casa e contou essa histria, a gente deu muita risada.

    No consigo lembrar a maneira como ele rezava. Era uma mistura de latim comingls antigo. Pesquisei na biblioteca, mas no achei nada. No localizei tambm nenhumainformao sobre os livros que ele possa ter retirado. E o velho professor no soube medizer se havia algo de especial entre Santos e o Oriente Mdio na dcada de 1970.

    Acabo de ver que a velhota da rvore genealgica aceitou minhas desculpas. Vouter que dizer para a senhora, alm de muito obrigado, que estou quase descobrindo aquilol. E outra coisa: a senhora no passa de uma colecionadora de fascculo de banca dejornal. No quero suas desculpas. E se ele foi terrorista as pessoas precisam saber, suacolecionadora de fascculo de merda.

  • Na primeira instituio onde o Andr esteve, acho que por quinze dias, no consegui passardo porto. Fiz uma sacolinha com um sanduche e algumas frutas e expliquei que estavaindo visitar meu pai, um certo Joo. O vigia olhou espantado e me perguntou qual deles,depois de explicar que os visitantes no poderiam levar comida.

    Nunca existiria um Joo Lsias. Ento, envergonhado, balbuciei Joo da Silva eele, sem esconder a irritao, disse que ali no havia nenhum Joo da Silva. Respondi quena verdade gostaria de conversar com alguns dos internos, j que todo mundo sabe queeles so pessoas muito sozinhas. Ele poderia ficar com o lanche e as frutas.

    O cidado resolveu perguntar se eu era jornalista e, sem outra alternativa, abrio jogo: que h alguns meses (no me lembro quantos), um grande amigo esteve aqui.Queria apenas andar um pouco e ver como ele passava o tempo.

    No recebi autorizao.

  • Na segunda instituio, onde o Andr ficou por trs semanas, minha sorte foi outra. Oporto do estacionamento estava aberto e, no corredor que levava ao primeiro ptio,encontrei uma pequena famlia que pretendia visitar algum. Falei bom-dia sorrindo e ovigia achou que eu estava com eles. L dentro, distanciei-me um pouco, sem perd-los devista.

    um casal na faixa dos cinquenta anos. Os dois usam aquele tipo de roupa quefaz questo de mostrar que depois vo passear no parque. A filha deve ter uns vinte anos.

    Pelos gestos, visitam a me dele. Logo que a encontram, a garota corre paraacariciar os cabelos bem branquinhos da av. No faz com pressa ou obrigao. Quandosair daqui, ela vai a um cineclube. Quem fala alguma coisa pela primeira vez a me.

    Sentada em um banco, embaixo de uma rvore enorme, a senhora continuaolhando o horizonte. Ela usa um vestido azul-claro bem limpo. Os cabelos esto penteadoscom cuidado e a pele lisinha. Ela nunca ser abandonada. Sei o que a menina estpensando: nunca vamos te deixar sozinha, vov.

    Mas ela j est sozinha.S agora percebo a boneca no colo da av. Ela continua olhando o horizonte, mas

    acaricia com o polegar da mo esquerda os cabelos ralos do brinquedo. H tambm umdespertador ao lado dela, no banco. A neta continua falando com a av, enquanto o pai vaiperguntar alguma coisa para uma enfermeira. A resposta bvia. Prefiro sair.

  • Em um banco parecido com o daquela famlia, tento me acalmar. Estou em um ptioenorme, no centro de um conjunto de prdios baixos. Atrs deles, h vrios outros,provavelmente trreos. As rvores esto por todo lado. Avisto, ao lado de um dospavilhes, um pequenino bosque. Por algum motivo, ningum se aventura por ali. H vriosgatos. Um deles passa por mim, mas no aceita uma carcia.

    Mais calmo, noto minha esquerda, a uns cinquenta metros, uma rodinha s dehomens. Com certo ar de cumplicidade, observam o lugar e as pessoas. No centro deles,um barbudo calado parece conduzir as investigaes. Ele tem um rosto enigmtico, entreautoritrio, cnico e impassvel. S pode ser o Bin Laden.

    Compreendo tudo.De novo, comeo a chorar. No consigo resistir. Estou chorando porque o Andr

    se enforcou uma semana depois de ir embora da minha casa. Choro porque falei que naminha frente ele no iria se cortar. Na minha casa, no. Estou chorando nesse hospciochique porque s fico nervoso. Nesse hospcio chique. Fico nervoso e ao mesmo tempo mesinto um fraco. E choro porque no entendi nada. Comecei a chorar no meio de todos elesporque coloquei um apelido no Andr. A gente ria muito. Choro porque a gente ria muito,porque o coloquei para fora de casa e uma semana depois me ligaram para dizer que eletinha se enforcado. O meu amigo estava muito sozinho. O meu amigo se enforcou. Noparo de chorar porque o Andr tinha se enforcado, porque s fico nervoso e porque todomundo diz que quem se mata no vai para o cu.

    No consigo parar de chorar agora.

  • Quando sa, outra vez fiquei com um sentimento estranho: uma espcie de paz eufricame causou taquicardia. No tive pacincia para esperar um nibus e resolvi voltar andando.Acho que estava feliz.

    No bem isso: fiquei alegre. No foi intenso. Tive que parar e pensar umpouco para entender o que estava sentindo. Era a mesma alegria discreta que me invadesempre que encontro uma coleo bem-feita e tenho a chance de dizer isso para o dono.

    Entendi esse sentimento quando visitei a coleo de pesos de papel de ummdico. Eram mais de cem, distribudos com muito bom gosto pelo consultrio. Ele tentoume agradecer mas, como no conseguiu, ficamos os dois ali, realizados um na frente dooutro.

    Agora, eu sentia essa pequena alegria sozinho. Apesar de tudo, tinha gostado dolugar. Era limpo, bem-iluminado, e os funcionrios, atenciosos. Mesmo o Bin Laden estavavestido com certo cuidado e no parecia ser apenas um maluco abandonado. A vov daboneca aparentava alguma dignidade.

    Aquela instituio, conferi depois, aceita pouqussimos convnios mdicos. caro internar-se l. No sei se devia revelar, mas fiquei com orgulho do Andr.

  • No final da faculdade, o Andr adorava se gabar dos timos empregos que conseguia. Aspessoas estavam tentando entrar no mercado de trabalho, e ele sempre aparecia com asmelhores notcias. Ainda no terceiro ano, passou na seleo para ser o monitor de histriado melhor colgio particular da cidade.

    Ele no parava de falar do salrio e da promessa de, no semestre seguinte, jlecionar. Mas os cavaleiros templrios tm muitas habilidades, continuava enquanto agente ria: vou comear a vender chocolate.

    O Andr era muito bom na cozinha. Antes de se enforcar, passou uma semanana minha casa e, na noite em que brigamos, preparou um escondidinho de carne-seca parapedir desculpas.

    Hoje cedo encontrei uma moa que conviveu conosco. Ela tambm se lembravados chocolates do Andr. Ele os vendia muito barato e mesmo assim juntava um bomdinheiro.

    Ela me contou que tinha ido com um grupo de amigos desfazer o apartamentodele. Na poca, no tive coragem. No tenho nenhuma lembrana do Andr.

    A moa disse que ficou com algumas cartas que o nosso amigo escreveu para opresidente Lula, falando das dificuldades de ser deficiente fsico no Brasil. O foco eram osproblemas auditivos. Acho que nunca as enviou.

  • Talvez a seriedade no trabalho tenha sido a maneira que o Andr encontrou paracompensar os problemas psicolgicos. Mesmo a histria dos chocolates, ele levava muitoa srio. No comeo, apenas os amigos comprvamos. Depois, o sucesso foi aumentando eele passou a fornecer para vrios restaurantes, padarias e bares da regio. Agora, produziaquantidades determinadas, tinha controle de tudo e estava investindo em um pequenomaquinrio.

    Ele parou a fabricao quando comeou a ter problemas de nota fiscal etambm depois que um professor, o mesmo que cuidaria do mestrado dele, falou algumabobagem do tipo intelectual no entra na cozinha. Os cavaleiros templrios so muitosensveis, ele me disse naquela noite.

    Eu devia ter percebido.O Andr tratava o problema da surdez que tinha no ouvido direito com o mesmo

    cuidado. Sempre procurava os melhores mdicos, lia muito a respeito e limpava o aparelhotodas as manhs. s vezes, a gente conclua que o comportamento estranho talvez fossepor causa da dificuldade para ouvir. Hoje, acho que ele usava a surdez para encobrir oproblema psicolgico.

    No ltimo ano de vida, resolveu escrever uma srie de cartas ao presidente Lulapara reclamar da situao dos deficientes fsicos no Brasil. Considerava-se um deles eestava reivindicando uma licena para no pagar o transporte pblico. Se conseguisse umacpia dessas cartas, ao menos teria algo dele comigo. Mas a tontinha que ficou com elasprometeu me mandar um e-mail hoje e, at agora noite, nada.

  • Ela no me escreveu. Se for confiar nessa gente, vou continuar sem nada do Andr. O quecusta, desgraada, tirar xerox de dez folhas, sua colecionadora de araque, colecionadora demerda, colecionadora de fascculo. E se voc quer saber, vagabunda, o Andr me contoutudo, fofoqueira, colecionadora de merda.

    Resolvi andar um pouco e, quando voltei, havia uma ligao da minha me notelefone celular. Dessa vez foi coincidncia. A menina sequer se deu ao trabalho de meresponder com alguma malcriao e, antes de dormir, resolvi escrever um segundo e-mailfalando como o Andr costumava trat-la: dona Toda Torta. Pode ficar com as cartas,dona Toda Torta. Toda Torta. Toda Torta.

    Acordei resolvido a ir embora. No vou conseguir nada nessa cidade ridcula.Avisei minha me que voltaria para So Paulo logo depois de pesquisar algumasinformaes sobre um dos colecionadores mais famosos de Campinas. Ela respondeudizendo que eu devia arranjar uma namorada. Estranhei a liberdade.

    H alguns anos os jornais noticiaram a morte de um homem que juntara maisde cinquenta mil tampinhas de garrafa. Como tambm as tinha colecionado, guardei osrecortes. Segundo a viva, ele passava muito tempo com as tampinhas. Quando estavapara morrer, pediu para que o caixo fosse forrado com elas. O epitfio tambm deveriaser escrito com uma colagem de tampinhas. Nesse caso, j no concordo muito: issoindica uma obsesso distante da racionalidade que deve acompanhar as boas colees. Dequalquer forma, para no ir embora sem nada (j que no arrumei nenhuma informaosobre meu tio-av), resolvi visitar o tmulo desse colecionador. Por coincidncia, ele estenterrado no mesmo cemitrio que o Andr.

  • Amanheceu um belo dia. So tpicos dessas cidades horrorosas que no tm nada paraoferecer alm do clima ameno, o cu azul e uma brisa agradvel. Um horror. Lembro-memuito bem desses dias quando fazia faculdade aqui: logo tudo evolua para um frioenorme.

    No consegui dormir direito e, para me acalmar, resolvi caminhar at ocemitrio. Escolhi o trajeto que passa em frente casa de repouso do Bin Laden e entrei.

    Apesar de ainda ser bastante cedo, a senhora j est sentada no banco, com aboneca no colo e o despertador ao lado. gostoso tomar sol essa hora. Ela afaga com amo esquerda os cabelos ralos do beb. De vez em quando, de um jeito quaseimperceptvel, fora um pouco os dedos na cabea do recm-nascido, s para ter certezade que ela est mesmo ali.

    Umas poucas enfermeiras param na frente dela e desejam bom-dia. Ela noresponde. Ser que ouve? A neta acha que sim. Por isso, chega alegre, falando bom-dia ecomo voc est linda, vov.

    A moa se senta ao lado do relgio e comea a acariciar os cabelos da av. Elasabe que estou aqui, a neta pensa, quase falando em voz baixa. Vou sempre vir aqui,vov sussurra.

    Aos poucos, os outros pacientes comeam a sair para o ptio. Em um relance, amenina observa como quase todos tm dificuldade para andar. Depois, volta a atenopara a av. As duas esto de mos dadas. Foi a neta que colocou a mo direita sobre obrao esquerdo da av. As duas vivem, ento, um momento de muita paz. A neta repeteque nunca vai deixar a av sozinha.

    Mas todo mundo l dentro infinitamente solitrio.

  • No consegui dormir direito e achei razovel vir andando. Pensar me acalma. De fato oideal voltar para o meu apartamento. No h nada que me prenda a essa cidade.

    Com o cu abertamente azul, o cemitrio fica ainda mais bonito. Ele formadopor diversas ruas paralelas, divididas por alguns jardins. Alm das flores que os parentestrazem para os tmulos, h canteiros por toda parte. Apesar de tudo, acho o lugar muitosaudvel. Imediatamente depois dessa pequenina paz, um sentimento de medo me invade:ser que nunca vou dormir bem de novo?

    Acabo cruzando com um enterro. Poucas pessoas o acompanham e todas estoem silncio. Conto apenas duas moas chorando discretamente. No encontro nenhumidoso.

    Estou com a impresso de que o mundo comeou a funcionar em voz baixa eem cmera lenta. o que acontece com as pessoas que no conseguem dormir direito.

    Alguns ali acompanham o trabalho do coveiro com uma espcie de resignaono rosto. Reparo que todos esto mais ou menos conformados. Mesmo as duas meninasagora j pararam de chorar.

    Resolvo ir embora e no porto do cemitrio dou-me conta de que no havianenhum tipo de trabalho religioso no enterro. Foi um suicdio. Minha irritao aumenta, noconsigo me controlar e de novo comeo a gritar na rua. Os suicidas sofrem.

    Deus desgraado.

  • Voltei para So Paulo sem ter conseguido nada. A biblioteca da universidade no tinhaqualquer coisa mais reveladora sobre a imigrao dos rabes para o Brasil e, muitomenos, algo que me desse uma pista sobre a correspondncia do meu tio-av.

    A universidade onde me formei e fiz meus estudos de ps-graduao j no mediz nada. O lugar mudou pouco. Quando fui consultar a biblioteca, cruzei com os mesmosprofessores (ou outros parecidos com eles), conversando com alunos que se comportavammais ou menos como a gente.

    Encontrei algumas pessoas da minha poca. Elas engordaram e compraram umacasa. Trabalham por ali at hoje. Perguntaram das minhas coisas, umas poucas disseramque leem os meus textos na imprensa e um conhecido chegou a me falar de uma coleo.Nada de mais.

    Desliguei-me da universidade h alguns anos, mas no posso dizer queabandonei a carreira intelectual. Pelo contrrio, penso em colees o tempo inteiro, doucursos, ofereo consultoria e escrevo textos sobre isso. Mas no tenho sequer umconjunto de cartes-postais.

  • Por enquanto, minha famlia est fingindo que nada aconteceu. Meus irmos, porm, ligamcom mais frequncia e minha me fala comigo com cuidado e apenas sobre assuntoscorriqueiros. como se eu sempre estivesse prestes a ter uma crise.

    Ontem, no jantar informal aps minha palestra em um congresso de filatelia,perguntaram-me se tambm coleciono selos. Respondi que no. E nem qualquer outroobjeto. No hotel, durante a insnia, conclu que no seria mau comear outra coleo.

    Minha fala foi sobre selos com defeitos que, por algum motivo, acabaram muitovaliosos. Planejo h bastante tempo um livro sobre colees como um investimento.

    J tive nas mos um dos vinte e quatro selos que, por um erro, escaparam doembargo de 1980 na Alemanha Ocidental. O governo lanou uma srie para comemorar osjogos olmpicos de Moscou, mas logo depois resolveu participar do boicote dos pasescapitalistas. Os poucos selos que foram enviados valem hoje, acompanhados do carimbo,algo como vinte mil euros. O Andr teria orgulho. Ele adorava coisas caras.

  • Todo dia, vou para a cama com medo de ter insnia. Consigo at perceber os meusbatimentos cardacos sem fazer nenhuma concentrao. Deito-me, cubro todo o corpo, ficoimvel no escuro e meu corao dispara, com medo de no dormir.

    Preciso de um tempo para me acalmar. Depois, se me esticar com o corpovirado para o lado esquerdo e tiver alguma sorte, consigo adormecer. Mas um sono bemleve. Quase um cochilo.

    Noite passada, consegui dormir. Mas o segundo temor, que tambm atrapalhamuito o sono, apareceu: tive um pesadelo. Estava em um cmodo e um vulto chorava. Euo ouvia, mas no conseguia localiz-lo no escuro. L pelas tantas, quando estava prestes achorar tambm, acordei e no adormeci de novo.

    Visitei agora tarde um colecionador de objetos militares. um senhor quepassou a vida acumulando todo tipo de material que pertencera a diversos exrcitos. Tudofica armazenado em um galpo em uma chcara perto de So Paulo. Como est bastantecatico, ele me contratou para organizar os objetos e pensar em uma espcie de catlogo,j que pretende abrir um pequeno museu particular, ou at uma fundao.

    Embora muitos colecionadores passem boa parte da vida contemplandosolitrios seu material, chega um momento em que irresistvel mostr-lo. Sem dizer quequase todos querem deix-lo de herana. Para muitos, o que fizeram de melhor em todaa vida. Mas eu no estava conseguindo me concentrar direito e ento pedi paraconversarmos outro dia.

    A insnia est comeando a atrapalhar o meu trabalho.

  • Muita gente pensa que no dormir causa cansao e fraqueza. A disposio desaparece e acabea acaba mais lenta. verdade, mas o pior a irritao. D raiva. Quase gritei com ocolecionador quando, depois de me mostrar alguns capacetes que pertenceram ao exrcitosovitico durante a Segunda Guerra, ele abriu uma caixa com miniaturas de bombardeirosvendidas em banca de jornal.

    Consegui me controlar, mas foi por pouco. Expliquei, de m vontade, que umacoleo conquista seu valor pelo conjunto. De que adianta ter um capacete usado pelossoldados que defenderam a maior siderrgica de Stalingrado, se ao lado esto algunsfascculos que qualquer um pode conseguir?

    Uma coleo no um mero acmulo, continuei, mas a histria que h por trsde cada um dos itens. Peas vendidas em grande quantidade, como esses fascculos, soesterilizadas. E a histria suja. Os objetos se contaminam em uma batalha. Algumgritou usando-os. O senhor no acha melhor descobrir quem foi esse soldado, porra?

    Depois disso, acabei me contendo. Ele concordou com a cabea e, no final dascontas, prometeu jogar fora tudo ali que fosse fascculo esterilizado.

    No final, simpatizei com ele. um engenheiro de motores aposentado quepassou a vida viajando para uma empresa de transporte martimo. Ele supervisionava amanuteno de transatlnticos. Como ganhava uma pequena fortuna, comeou a comprarobjetos militares. Na verdade, falou envergonhado, ele acha que entre os seusantepassados h um grande general, mas nunca conseguiu saber quem.

  • Um vulto apareceu chorando quando consegui finalmente adormecer. Cheguei mais perto.Ele no se parecia com o Andr, ao menos na poca em que se enforcou. Por causa dosremdios, meu amigo engordou bastante. E o vulto era magro. Acho que tentei falaralguma coisa, mas a imagem no ouvia, ou minha voz estava fraca demais. Ameaceigritar, mas, quando estava tomando flego, acordei.

    Reparei que a madrugada mal tinha comeado. Estou acordando cada dia maiscedo. Puta que pariu. Virei o corpo para o lado e me concentrei. No adiantou: tudo o queconsegui foi escutar meu corao. Fiquei um pouco assustado com a taquicardia.

    Olhei no escuro cada um dos cmodos. Por algum motivo, no tive coragem dechegar perto das janelas. Apurei os ouvidos para distinguir os sons, dentro e fora doapartamento. Passou um carro. Depois, contei um longo tempo em silncio. Encostei naparede prxima ao elevador, mas, enquanto fiquei ali, ningum o chamou.

    Deve ter passado pela minha cabea a hiptese de estarmos todos sozinhos.Nunca tive isso. Depois, senti vontade de chorar, mas prendi a respirao e me aguentei.O esforo me animou e afastei a autocomiserao. Mas no tem jeito: a raiva volta emalguns instantes. Olhei o relgio e liguei o computador.

    Sua besta, estou escrevendo para dizer que no vou trabalhar com a sua coleodesorganizada e tonta. Fica mesmo com esses fascculos. Coloca tudo no bolso das fardasrussas, sua anta. Vou dar uma dica: passa pano molhado nos aviezinhos l da banca dejornal e depois reza para o esprito do seu tatarav generalzinho. Olha, faz uma rvoregenealgica para descobrir o nome dele. Conheo uma velha mula igual a voc que podeajudar, vou te dar o contato dela.

  • Aneta se assustou quando no encontrou a av no banco de sempre, mas logo viu que, poralgum motivo, as enfermeiras a tinham trocado de lugar. Ela est ali, disse com um meiosorriso para o rapaz. Os dois se aproximaram, sem que a senhora os notasse ou deixassede alisar os cabelos da boneca.

    Vim apresentar o meu namorado, v. Por um instante, a garota se sentiuapreensiva, pois queria muito que os dois se dessem bem. O rapaz sorriu, fez um gestocom o brao direito e se aliviou ao perceber que no precisaria falar nada. No conseguiria.Se algum o observasse, notaria seus olhos piscando um pouco mais que o normal e astrs ou quatro tentativas fracassadas de engolir em seco.

    A neta se senta ao lado da av e, logo depois, comea a dizer algo bembaixinho. Como se as duas trocassem algum segredo. O rapaz fica ali, sem saber como secomportar, mas com a certeza de que est no lugar certo. A av s vezes faz brevesmovimentos de cabea, que a neta gostaria muito que fossem aqueles gestos deaprovao com o pescoo.

    Duas enfermeiras passam e no deixam de acenar. Ela uma fofa. No h aliquem pense o contrrio. Um mdico est chegando e percebe, por causa de umasensibilidade que refina h dcadas, o que est acontecendo. Ele d mais alguns passos,mas sente algo mais forte que o compele a participar daquilo. Ento, retorna.

    Como a senhora est bem diz rindo enquanto estende a mo para o rapaz.Depois, cumprimenta a neta e conversa com a velha paciente. O doutor pergunta aquelascoisas de mdico bonzinho. O rapaz se afasta um pouco. O mdico pergunta se a senhoraest feliz com a visita, e ele mesmo responde: Claro que sim. Naquele instante,surge alguma coisa muito especial entre os quatro. Dura muito pouco e no o namorado,mas sim a neta, que discretamente comea a chorar.

  • Pedi desculpas para o colecionador e prometi que, se ele ainda estivesse disposto atrabalhar comigo, em no mximo uma semana eu mandaria um projeto com inmeraspropostas para organizar a coleo dele.

    Antes mesmo de receber a resposta, porm, escrevi outro e-mail ofendendo-o.Minha me tinha acabado de me falar que um engenheiro colecionador de material militarescrevera para a prima da rvore genealgica atrs de dicas para localizar parentesdistantes.

    Algumas horas depois (desde quando tudo isso comeou no estou conseguindomedir o tempo direito), encontrei em um desses fruns na internet um longo texto deleme criticando.

    Respondi imediatamente. Aproveitei para deixar claro que s um grupo deimbecis perderia tanto tempo com aquela anta. Como no conseguiria mesmo dormirdireito, passei o resto da madrugada ofendendo todo mundo na internet.

    Pela manh, naturalmente, me arrependi. Tentei pedir desculpas mas minhaconta tinha sido excluda. Logo cedo o telefone tocou e minha me, com a ingenuidadehabitual, contou toda alegre que achava que a tal prima estava namorando o engenheirodos objetos militares. Pois os dois combinam de verdade, respondi. Logo emendei que iriapara Santos avaliar uma coleo de taxmetros antigos e, ento, aproveitaria para tentarencontrar algo sobre o tio-av dos selos. Se ele tiver sido terrorista, vou descobrir.

    Minha me respondeu que estou irreconhecvel.

  • Acoleo de taxmetros estava bem-organizada. Enquanto me servia caf, o filho docolecionador me contou uma longa histria. Com sono, no consegui gravar muita coisa. Opai morrera havia alguns meses e os quatro irmos tinham resolvido chamar umespecialista para avaliar a coleo. Eles estavam perdidos.

    No sempre que a gente acha esse tipo de bom senso comentei. Voute dar um exemplo: outro dia, fui catalogar um imenso acervo de objetos militares eencontrei, ao lado de uma farda e de alguns capacetes muito valiosos, essas miniaturas debanca de jornal. Como notei que ele no estava entendendo nada, fiz algumas anotaesrpidas sobre o acervo de taxmetros e pedi alguns dias para estudar.

    Dessa vez, evitei o erro de Campinas e fui para um hotel. Alugar outra casa defundos seria um exagero. Quero voltar minha habitual conteno. Como quela hora asbibliotecas j estavam fechadas, tentei dormir um pouco, mas meia-noite eu ainda notinha conseguido nem cochilar.

    A raiva acaba aumentando nessas situaes e voc comea a ter certeza, maisuma vez, de que no vai dormir. Fiquei com um imenso dio do cheiro do mar e, semmuito controle, liguei o computador. Antes de ver um e-mail da minha me falando de umpsiquiatra timo, escrevi para o herdeiro dos taxmetros e avisei que tinha mais o quefazer do que ficar dando um preo para aqueles objetos bobos. E, olha, no precisa ficarpassando pano at brilhar, no, seu amador. S tirar o p j est bom.

  • De manh, mais ou menos certo de que jamais voltaria a dormir, tenso a ponto de sentirvergonha por causa das mos trmulas, ouvindo o corao disparado, sem conseguirrespirar direito portanto, sa correndo do hotel em direo praia. Algumas pessoas dizemque o mar acalma. Mas o cheiro carregado me nauseou. O sol comeou a esquentar meurosto, e de sapato mesmo andei um bom tempo pela areia. Comecei a sentir aquelaumidade estranha nos ps. Cidades porturias no podem ser to movimentadas comotodo mundo diz. Um barco no traz nada de novo, nem o mar. Vi um navio enormeprximo ao horizonte e minha irritao aumentou. Se estivesse a bordo de um, comcerteza nunca dormiria outra vez. Eles balanam demais. Com aquele tamanho todo,respondi para mim mesmo, voc se sente em terra firme. No sei. Dei risada da minhatolice. Deitei quando a areia j tinha invadido meu sapato. Meus ps estavam incomodados,mas no soltei o cadaro. O sol comeou a abrasar meu rosto. Senti um prazer estranho.Nada parecido com essa histria de bronzeado. A praia estava comeando a encher. Oprazer, fui percebendo, tinha algo com a minha situao. Ao contrrio das ltimassemanas, me senti forte naquele momento. Ao mesmo tempo, era incapaz de levantar. Osol estava comeando a me ferir, sobretudo nas orelhas. Mas no consegui entender sedesejava outra coisa. De novo, senti raiva do Andr. Eu devia estar na regio do porto.Eram sirenes o que ouvia, tentei concluir. Resolvi no abrir os olhos. No me lembro sefinalmente consegui dormir. Acho que no, mas no imagino que possa ter acontecidoalguma outra coisa.

  • Ao contrrio da senhora que no larga a boneca e sempre est em um dos bancos do ptiocentral, quando se internou no mesmo lugar o Andr no passou mais de cinco minutossentado. Ele vivia uma ansiedade incontrolvel. Deve ter sido esse um dos primeirosmotivos de conflito com o Bin Laden: esse gordinho no para quieto. O Andr, ao ouvir,reagiu.

    Com certeza, ele tinha notado que a neta no passava trs dias sem visitar aav. O Andr tinha uma espcie de radar para gentilezas. Coisa de cavaleiro templrio,explicou-me uma vez. Dei risada. Acho que ele no ligou, mas depois que tudo aconteceuacabei me arrependendo: nos dias seguintes ao suicdio, muita coisa voltou minhacabea. Lembro-me por exemplo de como ele ficou transtornado ao, sem querer, pisar noaparelho de audio que usava. O conserto foi muito barato, eu repetia toda vez que elevoltava ao assunto.

    No sei se ele conversou com a neta alguma vez. bem possvel, j que nemnos piores momentos deixou de ser galanteador. Nas duas vezes em que a netatestemunhou as enfermeiras tentando fazer a av andar um pouco, o Andr estava perto.Talvez ele tenha se oferecido para ajudar.

    Como no havia ningum responsvel por ele e a internao tinha sidovoluntria, meu amigo desobedeceu aos conselhos do psiquiatra e, depois de algum tempo,resolveu ir embora. Era final da tarde, ventava, e ele andou alguns quilmetros at chegarem casa. De noite, no conseguiu dormir, pensou em muita coisa, bagunou a vida achandoque a estava organizando e na manh seguinte me ligou, bem cedo, pedindo para mevisitar em So Paulo.

  • OAndr sempre gostou das minhas coisas. Quando resolvi fazer ps-graduao sobrecolees, fugindo um pouco das modas historiogrficas da poca, ele defendeu minhaopo. Do mesmo jeito, logo que meus primeiros textos saram na imprensa, meu amigono aceitou a crtica de vulgarizao do trabalho intelectual que comecei a receber eexplicou minha vontade de dialogar com um pblico maior.

    Ele adorava ir s minhas aulas. Quando meus minicursos se popularizaram,sempre pedia um resumo e fazia muito esforo para comparecer a pelo menos umencontro. Segundo as pessoas que limparam o quarto onde a polcia achou o corpo, o Andrno colecionava nada. Vinha para me prestigiar.

    Ao chegar minha casa, estava bastante inquieto. Contou-me da ltimainstituio e da briga com o Bin Laden. No falou da av da boneca. Logo, perguntou dasminhas coisas e sorriu um pouco antes de pedir a data de alguma aula. Mas ele no tinhacomo parar quieto e, de repente, abriu todo o contedo da mochila no cho.

    Finalmente, achou o presente que tinha trazido para mim. Fiquei alarmado coma quantidade de remdios, mas ele me tranquilizou. Est tudo bem. Na verdade disse,olhando-me com alguma profundidade vim proteger voc. No entendi nada e, comoestava ficando tarde, propus que sassemos para comer. Ele falou o jantar inteiro.

    Tenho muita vergonha de dizer: quando fui dormir, tranquei a porta do meuquarto. Senti medo de que ele me fizesse algum mal.

  • No consegui dormir direito. O Andr fez barulho a noite inteira. Como os remdios davammuita sede, ele ia toda hora cozinha e aproveitava para ligar a mquina de caf. Tomoubanho duas vezes e, a certa altura, assistiu televiso e depois mexeu nas estantes. Bemcedo, arrastou alguns mveis da sala e depois saiu. Achei que era a minha oportunidadepara tentar dormir mas, pouco tempo depois, ouvi muito barulho na cozinha. Tive quelevantar.

    Sorrindo, ele disse que preparara algo para o caf da manh. Depois, perguntouda minha namorada. Expliquei que tnhamos terminado algumas semanas antes. Vocno me conta mais nada falou, ensaiando certa amargura.

    Quando sentamos para comer, parecia alegre. No tinha sequer deitado, masisso no o incomodava. Eu estava exausto e irritado. Ele ento disse que tinha algo parame revelar. De novo, estou com vergonha de escrever. Vou dizer algo muito importante:quem gosta e quem no gosta de voc. Alm disso, contou-me o que falam do meutrabalho.

    Fiquei ouvindo com algum prazer.Sem terminar de comer, no entanto, ele levantou, pegou alguns documentos,

    virou o resto do contedo da mochila no colcho onde deveria ter dormido e saiu parareivindicar um passe de deficiente fsico. Por causa dos problemas auditivos, ele noqueria mais pagar conduo.

    Meu grande amigo tinha quebrado a mquina de caf e o filtro de gua. Almdisso, instalara uma campainha estranhssima no computador. Mesmo desligado, a cadaonze minutos a mquina emitia um som agudo, curto mas bem alto.

  • S consegui que a campainha parasse quando tirei o computador da tomada. Ento, achoque dormi um pouco. No sei dizer quanto tempo depois, o Andr bateu na porta rindo: noconsegui o meu passe, mas fiz o almoo.

    Estava bom. Meu amigo sempre foi um timo cozinheiro. Quando j estvamosterminando a sobremesa que me custara um liquidificador quebrado , ele me disseque precisava falar outra coisa muito importante.

    Fiquei com vontade de recusar: no, Andr, no aguento mais. No entanto, denovo me dispus a ouvi-lo. Ele descobrira no YouTube uma pessoa que estaria tentando sepassar por mim. Para no dar muito na vista, o espertinho diz que mora em Londres.

    O que ele est fazendo? Como voc tem o sono pesado, noite ele vem aqui, entra na sala com um

    violo e grava vdeos cantando as msicas que voc adora. O fundo a estante demadeira. Inclusive, ele deixa muito visvel a coleo de selos.

    E por que algum faria isso? Para acabar com a sua reputao, Ricardo. Como canta muito mal, as

    pessoas reconhecem a msica, a sua sala e a coleo de selos, e com certeza acham quevoc enlouqueceu. Garanto que, mesmo que ainda no tenha percebido, voc j perdeualguns clientes. Mas pode deixar, fiz um plano e estou montando guarda noite. Vou teproteger, meu amigo.

    Andr, eu no coleciono selos h muitos anos.

  • Com a desculpa de que precisava trabalhar, sa para a rua. Li um pouco e depois fui aocinema. Dormi o filme inteiro.

    noite, aceitei assistir com ele aos vdeos. De fato, a seleo de msicas dotal Richard de muito bom gosto. Ele se senta em uma mesinha parecida com a que eutenho e interpreta alguns clssicos do rock de um jeito pattico. Atrs h uma estantemuito parecida com a minha. Quem congela a imagem percebe, com algum esforo, umvolume com a palavra stamp escrita mo na lombada.

    Mostrei para o Andr que, apesar da curiosa coincidncia, no existe nenhumachance de aquela ser a minha sala. Alm disso, os livros so todos em ingls. Irritado, eleresmungou que o cara com certeza maquiava a estante noite.

    Sem dar mais corda, respondi que no iria jantar e me tranquei no quarto atrsde algum sossego. Adormeci, mas no por muito tempo: outra vez ele deu a impresso desequer deitar e passou o tempo inteiro fazendo barulho. Nos intervalos, eu cochilavaalarmado. Ser possvel que meu amigo passaria quarenta e oito horas sem pregar osolhos?

    Quando sa do quarto, ele estava tentando arrumar a torneira do filtro. O fornode micro-ondas tambm tinha quebrado. Parece que alm disso havia um defeito nocomputador. Gritei quando vi que os mveis da sala estavam todos fora do lugar.

    Comecei dizendo que no aguentava mais aquela loucura. Tambm o lembreiaos berros de que no colecionava selos. Depois, falei que ele estava tentando chamarateno. Por fim, disse que eu iria voltar na hora do almoo e que ento queria achar meuapartamento em ordem. E tudo consertado. Ele apenas repetia que era meu amigo.

  • Quando voltei, perto da hora do almoo, encontrei a sala do mesmo jeito: toda bagunada.O Andr estava no quarto, sentado no colcho, cortando a pele com um canivete. Lembro-me perfeitamente da lmina acizentada entrando na pele da mo esquerda dele. Fiqueiperplexo por alguns segundos e depois gritei que ele no faria aquilo na minha casa.

    Fui at o interfone, pronto para pedir que o porteiro chamasse a polcia. Mas oAndr se levantou, repetiu duas ou trs vezes que era meu amigo e veio caminhando como canivete nas mos, na minha direo. No consigo lembrar direito. Ou melhor: tenhovergonha.

    Peguei uma cadeira para me proteger. Mais um passo e eu te acerto. Elejogou o canivete no cho e, com os olhos muito vermelhos (eu acho), comeou a falar quenunca me faria mal.

    Devo ter sentido uma leve tontura. Enquanto murmurava alguma coisa, o Andrarrumou a mochila, recolheu tudo e foi embora pela porta da cozinha. No me lembro seele se despediu.

    Fiquei horas louco de raiva. Meu apartamento estava todo quebrado. Eu notrabalhava fazia tempo. Enquanto descobria que no precisaria tirar o telefone do ganchopara dormir (ele o deixara mudo), achei que talvez tivesse perdido o amigo.

    Dormi por muito tempo. At hoje no pego no sono se a porta no estivertrancada.

  • No consigo estabelecer direito o que aconteceu depois. Estava com muita raiva. Devo terdado um jeito para arrumar ao menos uma parte do que ele tinha destrudo. Se no meengano, comecei a dar um curso novo. Pode ser que no.

    Eu andava para cima e para baixo, nervoso e sem saber muito bem o que fazer.Pensava em telefonar para pedir desculpas, mas isso poderia fazer com que ele quisessevoltar ao meu apartamento e destru-lo de novo.

    De algo, jamais vou esquecer: no meio da semana, ele me ligou: Ricardo, voume internar de novo. Fica de olho em tudo.

    No suportei. Fica de olho em qu, pensei em gritar. Fica de olho em qu, meuDeus? Ele repetiu: Vou me internar de novo, Ricardo. Cuida para no acontecer nada.

    Disso tenho certeza.Ento repeti, com a vista escura e cheio de medo de no conseguir ficar em p

    (minhas pernas enfraqueceram), que no aguentava mais.Um dos dois bateu o telefone. Tirei o fio da tomada. No vou conseguir terminar

    este captulo.

  • Do que aconteceu com o Andr nos dias seguintes, sei pouco. Ele tinha me falado algosobre autores de fico que poderiam ilustrar suas aulas de histria. No dei muita bola:gosto de ler, mas prefiro textos tericos. Se no fosse historiador, talvez partisse para afilosofia.

    Ele me contou que estava comeando a ler um certo Roberto Bolao e pediupara irmos a uma livraria. Claro que sim respondi, mas depois esquecemos.

    A polcia, quando invadiu o quarto onde ele vivia, encontrou o corpo enforcado aolado do livro Noturno do Chile, de Roberto Bolao, ainda dentro da sacola da livraria.

    Ningum conviveu com ele nesses ltimos dias. Eu, ao menos, desapareciporque no aguentava mais. E confesso: fiquei com medo.

    Ele alugava um quarto e cozinha para estudantes. Apesar de j ter se formado,ainda vivia sob alguma proteo da universidade. Acredito que tenha sido l dentro quepassou a maior parte do tempo.

    Quando saa rua, no conseguia se comunicar direito com as pessoas. Asintenes dele jamais eram compreendidas. No nada disso, ele se repetia, remoendo. Derepente se animou e saiu para comprar o livro. Na loja tentou conversar com a vendedora,mas ela no entendeu direito. Voltando para casa, o mal-entendido o perturbou muito. Elecolocou o livro na mesa, fez o n com a corda que estava na gaveta da escrivaninha,pendurou-a na viga do telhado, subiu em uma cadeira e se enforcou.

    O meu grande amigo pensava nisso havia muito tempo.

  • Algumas horas depois, o telefone celular dele tocou. A polcia identificou o nmero: era umtelemarketing. Ningum mais o procurou. Ningum se deu conta de que ele tinha sumido.Minhas pernas tremiam quando o meu telefone tocava. Por duas ou trs vezes, nos diasseguintes visita que destruiu meu apartamento, deixei de atender.

    Depois, achei que ele tivesse resolvido me deixar em paz.Ele tinha se enforcado.Quando o cheiro ruim comeou a incomodar as pessoas que moravam perto,

    algum chamou a polcia. No sei quais so os procedimentos quando esse tipo de coisaacontece. Devem ter simplesmente arrombado a porta e encontrado o corpo j enforcadopor vrios dias. O corpo gordo do meu velho amigo Andr.

    A polcia encontrou o corpo e, em cima da mesa, uma sacola de livraria comaquele romance latino-americano. Tentei, mas depois de tudo isso jamais consegui l-lo.

    Nesse mesmo dia, recebi uma ligao. Ricardo, o Andr se enforcou. Ricardo, apolcia achou o corpo do Andr enforcado. J faz alguns dias. Ricardo, o seu amigo.Ricardo, voc, Ricardo, o Andr, Ricardo. Enforcado, Ricardo. O Andr se enforcou, Ricardo.

    Sa andando e cruzei todo o bairro de Pinheiros a p vrias vezes. No sei segritei. Acho que sim: estava com dio. O Andr tinha se revelado o maior filho da puta domundo. Devo ter entrado em uma igreja catlica. Fiquei na rua at de madrugada. Nuncamais dormi.

  • Meu rosto ficou muito vermelho, mas a sensao de queimado que mais incomoda nasorelhas. Na testa tambm desagradvel, porque com o suor a reao imediata esfregaras mos na pele. Di. Depois que acordei na praia desse jeito, demorei algumas horas paraacostumar. Resolvi no entrar na gua. Voltei para o hotel, comi alguma coisa e sa paracomprar uma loo para a pele. A balconista da farmcia insinuou que talvez fosse melhorir ao hospital. Insinuei que talvez fosse melhor ela ir merda.

    Telefonei para o herdeiro dos taxmetros e disse que no cuidaria daquela bosta.Vende para um desmanche, idiota. Eu queria perguntar uma coisa: por que vocs herdeirosquerem sempre vender tudo? Porque vocs herdeiros s pensam em dinheiro.

    Fui direto Fundao Arquivo e Memria de Santos. Pedi mulherzinha que meatendeu todos os registros que pudesse haver sobre a presena de terroristas na cidade.Ento, sua tonta, vou explicar melhor. Meu tio-av trocou cartas, durante toda a dcada de1970, com uma pessoa que vivia em Santos. Desconfio que essas cartas tenham ligaocom o terrorismo. No sei o nome da pessoa, minha senhora. Tambm no sei o endereo.Ento a senhora v tomar no cu.

    Como a maior biblioteca de Santos tambm uma merda, voltei para So Paulo.Ca na besteira de atender o telefone e minha me insistiu em me visitar. Expliquei queno poderamos nos ver porque eu viajaria para o Lbano a trabalho. Ela comeou a chorare eu bati o telefone.

  • Evidentemente, minha me viria at a minha casa. Eu no tinha muito tempo. Junteialgumas trocas de roupa, arranjei material de anotao, deixei instrues com o zelador eem meia hora estava dentro de um txi rumo ao aeroporto. Por sorte, o Lbano permiteque viajantes de diversos pases solicitem o visto no desembarque, no aeroporto deBeirute. Consegui, por causa disso, evitar uma discusso com a minha me queprovavelmente seria muito desagradvel.

    Troquei algum dinheiro no aeroporto e, com o carto de crdito cujo limiteparecia infinito, comprei uma passagem para Frankfurt. Aguardei o embarque indo a cadameia hora olhar meu rosto no espelho do banheiro. s impresso minha ou a vermelhidoparece ter aumentado? Um pouco antes de entrar no avio, achei que estava com febre.

    Mesmo assim, dormi bastante. Quando acordei, estvamos quase chegando.Mais tranquilo, resolvi fazer uma lista do que precisaria providenciar em Frankfurt: a)comprar um guia de turismo do Lbano; b) encontrar um hotel e mandar um e-mailsolicitando uma reserva; c) providenciar a passagem para Beirute; d) telefonar para minhame pedindo desculpas; e) explicar para ela que colecionadores no gostam de esperar eque a oportunidade era muito boa para mim; f) pedir contatos de possveis parentes noLbano; g) pensar em lugares de pesquisa genealgica em Beirute; h) ver se aquele site dediscusso sobre colecionismo continua me agredindo; i) se sim, responder altura; j)conferir a situao do meu rosto; k) se estiver muito grave, pensar em algo para fazer; l)muitos alemes so vermelhos, eles devem portanto estar preparados para isso; m)comprar pasta de dente, pois acho que esqueci.

    Cheguei melhor Alemanha. No me sentia to bem-humorado havia muitotempo.

  • No aeroporto, comprei um guia de turismo do Lbano e um livro de Robert Fisk sobre ahistria do pas dos cedros. S ento, lembrei-me dos conflitos. Corri at o guich depassagens e descobri, aliviado, que o aeroporto de Beirute tinha reaberto alguns mesesantes. Por sorte, havia um voo naquela noite. Teria que esperar apenas doze horas.

    Achei um servio de internet. Claro que havia um e-mail da minha me. Dessavez ela tinha reforado os apelos: at meu irmo que mora na Austrlia me escrevera. Daminha irm mdica, vi duas mensagens. Resolvi no ler nenhuma e respondi para a minhame explicando que tinha sido convidado para assessorar um grupo de filatelistas rabesque se reuniria em Beirute.

    Pedi desculpas por tudo e disse que na volta levaria um presente para a primada rvore genealgica. Aproveitando, se minha me pudesse mandar um ou dois endereosde parentes em Beirute, eu gostaria de visit-los. Tenho sentido falta da minha famlia.

    Mandei um e-mail para um hotel que me pareceu razovel em Beirute. O frumde discusso on-line tinha me esquecido. Meu rosto me pareceu um pouco melhor. Noteique, na Alemanha, ningum reparava no meu problema. Comi alguma coisa e, antes decochilar no aeroporto at o embarque, passei umas boas horas lendo sobre o Lbano.Talvez eu possa comear uma coleo de selos sobre os conflitos do pas. Seria precisoficar atento s referncias indiretas, claro. Colecionadores adoram detalhes.

  • Consegui dormir o voo inteiro. Quando despertei, o avio taxiava no Aeroporto de Beirute.Minha insnia tinha passado. Por causa da excitao, levantei-me antes da hora e leveiuma bronca do comissrio.

    A passagem pelo controle foi tranquila. Brasil e Lbano tm uma relaoamigvel h muito tempo. Expliquei que sou especialista em colees e que tinha vindoatrs de um certo material. Alm disso, minha famlia de origem libanesa e queroconhecer um pouco mais da histria dos meus antepassados. O oficial sorriu e carimboumeu passaporte.

    Tomei um txi do aeroporto direto para o hotel. Achei a cidade melanclica,mas creditei a impresso ao cansao. Depois de me registrar, subi ao quarto, abri a janelae reconheci, a uma distncia no muito grande, a Tent city. uma espcie deacampamento encravado em Beirute onde vivem desabrigados do conflito do OrienteMdio, alguns ativistas e, dizem, membros do Hezbollah. Seria um lugar importante parapesquisar as atividades suspeitas do meu tio-av.

    Mas naquele momento o sono voltou. Olhei as horas e tentei fazer um pouco defora para esperar acordado at anoitecer. Pedi um lanche. O que aconteceu depois noest claro na minha memria. A comida chegou, acho que coloquei a bandeja na mesinhado quarto e peguei no sono. Acordei no dia seguinte com uma gritaria infernal na rua. Seno foi isso, houve alguma confuso no corredor do hotel.

    Comi o lanche para no perder tempo com o caf da manh e sa para conhecerBeirute.

  • Como se afastou para a av no v-la chorando, a neta est a poucos metros do Andr. Agarota cobre o rosto e a delicadeza do gesto chama a ateno do meu amigo. Ele seaproxima e diz, murmurando no mesmo tom com que garantiu que no me faria mal, quetudo vai ficar bem.

    A neta percebe que o Andr compreende a dor que quase lhe tira o equilbrio eapoia o corpo na lateral do dele. Na mesma hora, olha de novo para a av e, como nosuporta, comea ento a chorar sem muito controle. O Andr a ampara e, j que sempresofria com a dor dos outros, tambm no segura as lgrimas, o que a faz no ouvir ospedidos dele: No chora, por favor. A moa continua com o corpo trmulo. Meugrande amigo sente a dor dela e acha que precisa ajud-la.

    S por isso, senhor Deus, o Andr merece ir para o cu.Quando a neta chegou, trs enfermeiras estavam justamente tentando fazer a

    av andar um pouco. Agarrada boneca, ela conseguiu se levantar. Ento, uma enfermeiraexplicou: Vov, coloca um p frente. Mas ela no sabe o que p. Outraenfermeira se agachou e empurrou o p esquerdo da av. A neta, que tinha ido at lporque jamais deixaria a av sozinha, nesse momento encostou o rosto no ombro do Andre os dois colocaram para fora a maior dor do mundo. Atrs, quatro ou cinco internos,todos com uma mania maluca ou alguma coisa errada na cabea, tambm estavamolhando, sem saber se amparavam a neta e o Andr ou ajudavam as enfermeiras com avov. Essas pessoas, senhor Deus, merecem ir para o cu, mesmo que acabem sematando.

  • Resolvi andar. Percorri distrado toda a extenso da rua do hotel. Na cabea, fiz algunsplanos para os dias seguintes. Tambm, como sempre, lembrei-me do Andr: ele adoravaouvir-me contando as minhas viagens. Certa vez, passei horas com ele conversando sobreum colecionador que mantinha, na Amaznia, uma coleo enorme de material relacionado histria dos jogos olmpicos.

    Quando virei esquerda, porm, achei melhor me concentrar na cidade e naspessoas que cruzavam comigo. Os moradores de Beirute pareciam tensos. verdade quetinham acabado de se livrar de mais um conflito. Mesmo assim, eu esperava ao menosum resqucio do cosmopolitismo de que todo mundo falava. Cruzei com alguns jovens umpouco mais animados e cheguei rua dos cafs. Sentei em um deles e a garonete, bonitamas com o rosto carrancudo, atendeu-me sem perguntar de onde eu vinha. Estava ansiosopara dizer que do Brasil. No foi dessa vez.

    Voltei rua, virei duas esquinas e acabei caindo em uma travessa maisestreita. Na parede, identifiquei entre diversas pichaes em rabe o rosto de GemayelBashir. A uns trs metros, reparei que dois rapazes me olhavam. Fiquei com vontade dedizer que sou brasileiro, mas eles responderam de um jeito estranho ao meu aceno eresolvi ento voltar s avenidas maiores. Caminhei mais uma hora e comecei a sentirmuito sono.

  • Eu passara apenas trs horas acordado. No quarto do hotel, tentei continuar lendo o livroque comprara na Alemanha, mas dez minutos depois j tinha adormecido. No sei quantotempo demorei para acordar. Ao despertar, senti o corpo muito pesado e fiquei imvel.Alguma coisa me prendia cama.

    Percebi que estava muito coberto e que o suor tinha empapado o pijama. Tireitoda a roupa e deitei de novo. De olhos fechados, outra vez senti meu corao disparar.Quando os batimentos se acalmaram, dormi. Acordei com o mesmo barulho de antes:algum gritava na rua ou havia uma confuso no corredor do hotel. Forcei os olhos eenxerguei quatro horas e trinta da manh no relgio do quarto. Tomei um banho e liguei ocomputador.

    Minha me se dizia preocupada, mas contente com a minha iniciativa deprocurar nossos parentes. Recomendando que no os importunasse com besteiras, passou-me um e-mail e um nmero de telefone.

    O telefone seria da famlia de um dos irmos do meu bisav. O e-mail era deum arquiteto com o nosso sobrenome e que j tinha feito contato conosco no Brasil algunsanos antes. Ningum conseguiu precisar, muito menos ele, nosso grau de parentesco.Segundo minha me, ele entendia bem ingls. Quanto aos parentes do irmo do meubisav, no sabia de mais nada.

    Escrevi para o arquiteto e procurei algumas informaes sobre o colecionismono Lbano. No encontrei nada de mais, apenas notcias vagas sobre uma feirinhaocasional. Quando o relgio mostrou finalmente o horrio do caf da manh, estava denovo com muito sono.

  • Acordei com fome no meio da tarde. Antes de pedir um lanche, fui olhar os e-mails. Minhairm queria saber como eu estava, minha me mandava outro nmero de telefone e oarquiteto me pedia para procur-lo no celular. Liguei imediatamente e ele, muito simptico,marcou um caf para o final do dia na regio mais animada da cidade.

    Eu no via clima para badalao, mas aceitei. Logo avistei meu parente. Por trsde uma mesa, ele acenou e depois me chamou pelo nome: Ricardo Lsias.

    Levantou-se e veio me abraar. Tentei parecer feliz, mas continuava com muitosono. O jeito foi dizer a verdade: no estou conseguindo ficar acordado direito. Quando merespondeu que superar o fuso mesmo difcil, senti que talvez tivesse na minha frenteum amigo. Contei toda a histria do Andr, inclusive que ele tinha pedido ajuda e eu,assustado, batido o telefone. Senti vontade de chorar e meu parente percebeu. Por isso,pediu gua com acar.

    Mas no estou nervoso expliquei. Desde que cheguei a Beirute, no consigome livrar do sono. Para me distrair, amigvel e compreensivo, resolveu mudar de assuntoe conversar sobre a famlia. Decidi ser direto e falei que descobrira fortes indcios de queum tio-av tinha ligaes, a partir do Brasil, com o terrorismo no Oriente Mdio. Meuparente ficou branco.

    Vim para c esclarecer isso. Voc conhece algum que possa me ajudarnessa questo do terrorismo? Com o brao tremendo, pediu-me o nmero de telefonedo hotel e disse que precisava ir. Volto a fazer contato garantiu.

  • Voltei para o hotel de txi e acabei dormindo de roupa mesmo. Um dos problemas desseestado intenso de sonolncia a baguna nos horrios. No dia seguinte, acordei s depoisdo meio-dia. Se no fosse a fome, talvez continuasse dormindo.

    Um colecionador argentino, com quem de vez em quando converso, enviou-me onome de um grande colecionador de objetos e papis ligados aos conflitos que o Lbanoviveu na dcada de 1980. Professor de histria, eu o encontraria na UniversidadeAmericana de Beirute.

    Procurei o endereo na internet e, de volta rua, com trs ou quatro perguntas,cheguei frente da sala do professor Said Nahid. Ele terminou de atender uma aluna e,curioso, pediu-me para sentar enquanto tentava tirar uma xcara de caf de uma mquinavelha.

    Antes de comear a me falar da coleo, revelou-me que tem muita vontade deconhecer o Brasil. Depois, contou que coleciona de tudo sobre aquele perodo trgico.Talvez os objetos mais valiosos sejam as insgnias dos tantos exrcitos, particulares ouno, que tinham lutado na histria recente do Lbano.

    Gentil, mostrou-me fotos e descreveu outros objetos. Tambm se ofereceu parame apresentar a um grupo de filatelistas que se rene na universidade uma vez por ms.Quando j tnhamos conversado por mais de uma hora e ele manifestou preocupaoquanto vermelhido do meu rosto, achei que era o momento de abrir o jogo: Tenhoquase certeza de que um tio-av meu teve algum tipo de contato com grupos terroristasnos anos 1970. Estou aqui para esclarecer isso e preciso que algum me ajude. Nahiddesistiu da segunda xcara de caf, trancou a sala e prometeu voltar a fazer contatocomigo. Eu no devia mais retornar universidade, porm, pois ali ele s atendia alunos.

  • Meu rosto continuava vermelho, embora a sensao de queimadura tivesse se aliviadodesde que eu desembarcara no Lbano. No banho, coloquei-o embaixo do jato de gua epercebi que a falta de dor se devia ao sono. A pele ainda estava sensvel.

    Apesar de fazer muita fora, no aguentei e dormi. Quando acordei, tive aimpresso de que as horas passavam em cmera lenta: ainda no eram nem seis. Desciat a portaria do hotel e pedi ajuda com os telefones que minha me tinha mandado. Elediscou e me passou o aparelho. Ouvi uns dez toques de chamada e ningum atendeu.

    O segundo nmero, porm, no tocou nem trs vezes e uma voz feminina dissealgo. Identifiquei-me em ingls e a voz continuou falando em rabe. Pedi ajuda para orapaz, mas ele tambm no me compreendia direito. Ento vai tomar no cu falei aotelefone, despedindo-me da minha parente.

    Para no perder a viagem, e sabendo que se voltasse ao quarto inevitavelmentedormiria, resolvi explicar para o garoto que eu tinha vindo ao Lbano investigar a provvelparticipao de um tio-av em grupos terroristas na dcada de 1970. Ser que voc noconhece algum que possa me ajudar?

    Alguma coisa ele entendeu, pois com o lbio inferior levemente trmulo,balbuciou trs palavras e entrou numa sala. Esperei meia hora e, como ele no voltou,percebi que teria que resolver sozinho o problema do terrorismo.

  • Desisti do caf da manh e caminhei umas trs horas. No me lembro de muita coisa. Euestava com muito sono. Passei perto de dois ou trs campos de refugiados e com certezacontornei a Tent city.

    Minha memria comeou a clarear quando dei de cara com os grafites e odesenho do rosto de Gemayel Bashir que tinha visto no primeiro dia. No havia ningum eento cruzei a travessa at chegar a algumas ruazinhas estreitas. No tive coragem debater em nenhuma porta e continuei me embrenhando. De repente, dois rapazes mepararam e, com raiva, perguntaram-me o que eu queria.

    Era uma chance e, como eles pareciam compreender bem o meu ingls, conteitoda a histria do meu tio-av. Preciso conversar com algum que conhea o terrorismona regio.

    Sem mudar a expresso do rosto, os dois me pediram para acompanh-los.Depois de vrias pequenas travessas, cruzamos um porto e camos em um ptio deareia. Entrei em uma sala, depois em outra e por fim me colocaram sentado em umaterceira. Trouxeram gua e achei que tivesse dado sorte.

    Logo voltaram e com alguma violncia colocaram uma algema nos meus braos.Depois, vendaram-me e comearam a gritar algo que o medo j no me deixava entender.Senti o cano de um revlver no lado direito da minha cabea, bem acima da orelha.Contaram at trs e nesse momento meus intestinos se soltaram.

    Ficaram furiosos e me empurraram sem tirar a venda por uns dez minutos.Quando me soltaram, eu estava na travessa de uma grande avenida. A merda tinha ficadopelo caminho, mas minha cala estava suja e minhas pernas, pegajosas. No tinham meroubado. Entrei em um txi e dei o endereo do hotel. Quando o taxista notou o meuestado, j no tinha mais como me colocar para fora do carro, mas fez a corrida inteirame agredindo.

  • Subi at o quarto do hotel com a vista escurecida. Tenho a sensao de que o saguoestava cheio. A viagem de elevador um pesadelo para mim at hoje.

    Deixei as roupas sujas na porta do banheiro e abri o chuveiro. No senti asqueimaduras no meu rosto. O medo tinha deixado minhas pernas fracas e no conseguificar em p. Quando me deitei na banheira, notei que estava gritando.

    Com receio de chamar ateno e de, talvez, ser localizado pelos rapazes dorevlver, fiz um enorme esforo para ficar em silncio, mas consegui apenas chorar umpouco mais baixo. A merda nas minhas pernas estava escorrendo, mas eu no sentianenhum alvio.

    Ainda chorando, veio-me cabea muito do que eu tinha feito junto com o meuamigo. As duas vezes em que ele cheirou cocana comigo por causa de um amor bobo, acasa de massagem onde a gente ia, eu atrs de ningum e ele da Aline, o jeito que ele meabraou depois da defesa de doutorado. Tudo o que ns dois, os grandes amigos, fizemosde bom e de ruim. Eu chorava porque no esquecia a voz do meu amigo pedindo parapassar o fim de semana em casa, depois o rosto dele deformado pelos remdios, meajuda, Ricardo, mas eu estava esgotado, amigo. Eu chorava lembrando as ideias delesobre os templrios, como ele se dizia um grande professor, ele era muito novo e foi parao hospcio, meu grande amigo, mas eu chorava sobretudo porque sozinho, muito sozinhocom a sujeira escorrendo pelo ralo do banheiro de um hotel do Lbano, tinha acabado dedescobrir quem eu sou de verdade: um bosta, deixei meu grande amigo Andr se enforcar.

  • Quando o dia clareou, fui com as malas feitas ao aeroporto. Encontrei uma passagem paraAmsterd, de embarque quase imediato, mas, quando passei o carto de crdito, ovendedor me informou que ele estava bloqueado, provavelmente por causa do limiteestourado. Telefonei para minha me, expliquei que queria voltar antes do previsto para oBrasil e pedi ajuda.

    Claro, filho, mas antes quero te dizer algumas coisas: voc um timo filho,s que se tornou mimado e arrogante. Voc no ouve ningum, Ricardo, atropela todomundo e se sente o dono da verdade. Voc no v o tanto que seus irmos gostam devoc e no ouve nada do que as pessoas dizem. Voc sempre se achou melhor que osoutros, nunca aceitou os prprios limites e quando contrariado age como um moleque.Ningum podia evitar o que aconteceu com seu amigo, Ricardo. Vou dar o dinheiro, mas,quando voc chegar ao Brasil, vai a um psiquiatra e vai respeitar a sua famlia. Agora vocvai virar um adulto e no esse moleque arrogante. E outra coisa: o seu tio-av nunca foiterrorista, Ricardo: ele deixou um filho perdido no Lbano, seu tonto, ele estava tentandoprocur-lo e sofria muito por causa disso. Se voc respeitasse um pouco mais as pessoase esquecesse um minuto o prprio umbigo, compreenderia os sentimentos dos outros.Agora volte para o hotel e me espere depositar o dinheiro da passagem. Amanh voccompra, mas quando chegar vai direto ao mdico.

  • Registrei-me em um hotel diferente. Na minha fantasia, dessa forma os caras do revlverno me encontrariam. Continuava com sono, mas no dormi. Resolvi andar. Depois de trsavenidas, percebi que no conseguia passar mais de dois minutos sem olhar desesperadopara os lados e para trs. E se eles estivessem me perseguindo?

    Reparei que estava em frente a uma igreja e, talvez para me sentir protegido,entrei. O interior era lindo. Quando ainda prestava servio para colecionadores de arte,estudei alguns objetos sacros. Havia coisas de valor ali.

    Sentei-me em um dos bancos mais afastados do plpito e em dois minutos cano sono. Aos poucos, meu co