O Clown - Luís Burnier

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  • 7/24/2019 O Clown - Lus Burnier

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    O Clown*- por Lus Otvio Burnier

    O clown a poesia em ao.

    - Henry Miller

    Segundo Roberto Ruiz, a palavra clownvem de clod, que se liga, etimologicamente, aotermo ingls "campons" e ao seu meio rstico, a terra. Por outro lado,palhaovem doitalianopaglia(palha), material usado no revestimento de colches, porque a primitiva roupadesse cmico era feita do mesmo pano dos colches: um tecido grosso e listrado, e afofadanas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro "colcho"ambulante, protegendo-o das constantes quedas.

    Na verdade palhao e clown so termos distintos para se designar a mesma coisa.Existem, sim, diferenas quanto s linhas de trabalho. Como, por exemplo, os palhaos

    (ou clowns) americanos, que do mais valor gag, ao nmero, idia; para eles, o que oclownvai fazer tem um maior peso.

    Por outro lado, existem aqueles que se preocupam principalmente com o comoopalhao vai realizar seu nmero, no importando tanto o queele vai fazer; assim, so maisvalorizadas a lgica individual do clowne sua personalidade; esse modo de trabalhar umatendncia a um trabalho mais pessoal. Podemos dizer que os clownseuropeus seguem maisessa linha. Tambm existem as diferenas que aparecem em decorrncia do tipo de espao emque o palhao trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema, etc.

    O clownou palhao tem suas razes na baixa comdia grega e romana, com seus tiposcaractersticos, e nas apresentaes da commediadell'arte. Nas festividades religiosas e nasapresentaes populares da Antigidade, havia uma alternncia entre o solene e o grotesco.Esse um fato comum a povos distintos: dos gregos at os aborgines da Nova Guin,

    passando pelos europeus da Idade Mdia ou pelos lamastas do Tibete.Esta combinao do cmico e do trgico acentua a percepo de emoes contrapostas e

    muito peculiar ao clown. Para Shklovski, o clownfaz tudo seriamente. Ele a encarnao dotrgico na vida cotidiana; o homem assumindo sua humanidade e sua fraqueza e, por isso,tornando-se cmico.

    "Os palhaos sempre foram parte integrante do circo. Num espetculo de percia fsica, que

    produz na assistncia uma reao mental - deslumbramento, espanto, admirao e apreenso -

    preciso haver um complemento: um conceito mental que produza no pblico uma reao fsica, ou

    seja, o riso". O clown espanta o medo, esta a sua funo.

    Existem dois tipos clssicos de clowns:o brancoe o augusto.O clown branco aencarnao do patro, o intelectual, a pessoa cerebral. Tradicionalmente, tem rosto branco,vestimenta de lantejoulas (herdada do Arlequim da commediadell'arte), chapu cnico e estsempre pronto a ludibriar seu parceiro em cena. Mais modernamente, ele se apresentade smoking e gravatinha borboleta e chamado decabaretier. No Brasil, conhecido porescada.

    O augusto(no Brasil, tonyou tony-excntrico o bobo, o eterno perdedor, o ingnuo deboa-f, o emocional. Ele est sempre sujeito ao domnio do branco, mas, geralmente, supera-o, fazendo triunfar a pureza sobre a malcia, o bem sobre o mal. Adoum afirma que a relao

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    desses dois tipos de clowns acaba representando cabalmente a sociedade e o sistema, e issoprovoca a identificao do pblico com o menos favorecido, o augusto.

    Os tipos cmicos: elementos de uma generalogia

    Os tipos caractersticos da baixa comdia grega e romana; os bufese bobosda IdadeMdia; os personagens fixos da commediadell'arteitaliana; o palhao circense eo clown possuem uma mesma essncia: colocar em exposio a estupidez do ser humano,relativizando normas e verdades sociais.

    Segundo Bakhtin, a cultura cmica popular da Idade Mdia, principalmente a culturacarnavalesca, possua uma grande diversidade: festas pblicas carnavalescas; ritos e cultoscmicos especiais; os bufes e tolos; gigantes, anes e monstros; palhaos de diversos estilos;a literatura pardica etc. O riso carnavalesco abalava as estruturas do regime feudal, abolia asrelaes hierrquicas, igualava pessoas que provinham de condies sociais distintas. Eracontrrio a toda perpetuao, a toda idia de acabamento e perfeio, mostrando a relatividade

    das verdades e autoridades no poder. Todos so passveis de riso e ningum excludo dele;era a percepo do aspecto jocoso e relativo do mundo.

    Os bufes e bobos, por exemplo, assistiam sempre s funes cerimoniais srias,parodiando seus atos, construindo ao lado do mundo oficial uma vida paralela. Essespersonagens cmicos da cultura popular medieval eram os veculos permanentes econsagrados do princpio carnavalesco na vida cotidiana. Os bufes e bobos no eram atoresque desempenhavam seu papel no palco; ao contrrio, continuavam sendo bufes e bobos emtodas as circunstncias da vida. Encarnavam uma forma especial de vida, simultaneamentereal e irreal,fronteiriaentre a arte e a vida.

    Nos sculos XV e XVI, surgiu a chamada commediadell'arte, ou comdia de mscaras.

    Esta tpica forma de teatro do Renascimento italiano teve, conforme Gassner, uma duplaorigem na arte da mmica que, brotando dos farsistas populares do perodo romano, evoluiuat os atores-jograis ambulantes da Idade Mdia e das comdias formais de Plauto e Terncio.

    A commediadell'arte era baseada num roteiro (canovaccio), que servia como suportepara que os atores improvisassem. Esse roteiro no era um texto estruturado: indicava apenasas entradas e sadas dos atores, os monlogos, os dilogos, episdios burlescos, os cantos edanas. Personagens fixos e situaes codificadas facilitavam o jogo espontneo daimprovisao.

    Esse teatro teve uma grande aceitao na poca, pois era do universo cotidiano dopblico que os atores tiravam a base para sua representao. Fazia descries vivas de tipos

    caractersticos e costumes contemporneos, envoltas em tramas de intriga amorosa. Os velhoseram satirizados como tolos, e interminveis variaes eram indroduzidas no tema da traioe do marido trado.

    Os personagens eram fixos e possuam mscaras prprias, cujas linhas revelavam ocarter pessoal de cada um. Os principais eram: Pantalone, o velho, rico e tolo mercador deVeneza;Dottore, personificao do pedantismo dos intelectuais da poca; Capito Mata-

    Mouros, soldado fanfarro e covarde, metido a valente;Arlecchino,servo esfomeado eatrapalhado;Brighella, servo astuto e briguento; Pulcinella,ora servo, ora patro, de ndolecruel e violenta; OsEnamorados, jovens apaixonados e sensveis. Embora mascarados e

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    tipificados, eram fortemente individualizados quanto fala e dialeto. Geralmente, osintrpretes assumiam um papel por toda a vida.

    Na commediadell'arteapareceram, de certa forma, resqucios da dupla de cmicos,oszanni, servos da commediadell'arte, cuja relao se aperfeioar nos clowns. A eles cabia atarefa de provocar o maior nmero de cenas cmicas, por suas atitudes ambguas e suastrapalhadas e trejeitos. Existiam dois tipos distintos dezanni:o primeiro fazia o pblico rir

    por sua astcia, inteligncia e engenhosidade. De respostas espirituosas, era arguto osuficiente para fazer intrigas, blefar e enganar os patres. J o segundo tipo de criado erainsensato, confuso e tolo. Na prtica, porm, havia uma certa "contaminao" de um pelooutro. O primeirozanni mais conhecido comoBrighella, e o segundo comoArlecchino.

    Pelas caractersticas acima descritas, no difcil relacionar a dupla dezanni duplade clowns, o branco e o augusto.

    A essncia do circo acompanha desde muito o cotidiano do homem. Segundo Ruiz,pesquisadores afirmam que no ano de 70 a.C., em Pompia, j existia um enorme anfiteatrodestinado a exibies de habilidades que posteriormente seriam caracterizadas como

    circenses. Por outro lado, na China, j por volta de 200 a.C. as artes acrobticas seencontravam em desenvolvimento. Nmeros at hoje tradicionais, como o equilbrio sobrecorda bamba, magia, engolir espadas e fogo, j eram conhecidos e praticados, naquela poca,

    pelos chineses.O circo tal como existe em nossa concepo nasceu h pouco tempo. A criao do circo

    moderno se deu em 1768, por Philip Astley, em Londres. Astley, um ex-sargento auxiliar decavalaria, hbil treinador de cavalos, foi o primeiro a descobrir que, se galopasse em crculos,de p sobre o dorso nu do cavalo, teria o equilbrio facilitado pela fora centrfuga. Estavainventado, ento, opicadeiro. Durante 150 anos, os cavalos dominaram os espetculoscircenses, mas pouco a pouco outros artistas se incorporaram trupe.

    J na poca de Philip Astley, exmios cavaleiros realizavam o clebre nmero do"recruta da cavalaria", em que simulavam camponeses simplrios e astutos que, com suasextravagncias, divertiam as platias. Naquela poca tambm surgiu na Inglaterra adupla branco-augusto:no trabalho de dois grandes cavaleiros do sculo XVIII (Saunders eFortinelli), que exploravam os nmeros de "grotesco a cavalo".

    interessante notar que existe maior riqueza na comicidade quando os dois tipos atuamem dupla, pois um serve de contraponto ao outro. Eles so encontrados tanto nos espetculoscircenses da Inglaterra como nos doiszannida commediadell'arte.

    O clowntambm desempenha funo semelhante dos bufes e bobos medievais,quando brinca com as instituies e valores oficiais. Ele, pelos nomes que ostenta, pelas

    roupas que veste, pela maquiagem (deformao do rosto), pelos gestos, falas e traos que ocaracterizam, sugere a falta de compromisso com qualquer estilo de vida, ideal ouinstitucional. um ser ingnuo e ridculo; entretanto, seu descomprometimento e aparenteingenuidade lhe do o poder de zombar de tudo e de todos impunemente. O princpiodesmistificador do riso, presente na cultura popular medieval renascentista, apareceu nocmico circense, fundamentado, basicamente, na figura do palhao.

    Em suas andanas atravs do tempo, o clownocupou diversos espaos: a rua, a praa, afeira, o picadeiro, o palco. Com o advento do cinema, no incio do sculo XX, ele encontrouum novo lugar para continuar revelando humanidade seu lado ridculo e pattico.

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    O primeiro clowndo cinema foi o francs Gabrielle Leuvielle, que tem porpseudnimoMax Linder. Ele dirigia e atuava em seus filmes. Exatamente como os clowns,Max Linder utilizava tudo o que sabia fazer (danar, saltar, montar a cavalo, etc.). Suamotivao era o desejo de fazer um nmero circense, exemplo que ser seguido por todos osseus sucessores at Jerry Lewis. Os argumentos que tinha por tema eram sempre, como nasentradas de clowns, extremamente simples. Eram as sucesses de gags que mantinham ointeresse; o roteiro no passava de um pretexto para a criao de situaes cmicas, assimcomo na commediadell'arte. Max Linder buscou sua inspirao no teatro de vaudeville(teatrocmico musical, apresentado em bares e cabars). E, sobretudo, no circo.

    Os clownsdo cinema retomaram diversas gagsj usadas anteriormente por outroscolegas de cinema ou por clonwsde circo. Chaplin, emEm busca do ouro, na "dana dos

    pequenos pes" se inspirou nos fantoches de barracas de feiras. "Nada mais natural, pois estecostume vem justamente do circo, onde, ao redor das mesmas receitas, brilham os cozinheirosde diferentes gostos".

    Com freqncia, os cmicos do cinema transportavam diretamente para seu veculo um

    trabalho prprio do circo. Todos esses cmicos se formaram nas escolas do circo e do music-hall. Cada um deles era acrobata, danarino, malabarista, cuspidor de fogo, mmico. E

    bastante normal que eles retenham de suas origens tudo o que pode enriquecer esta nova arte:o cinema.

    Como nos clownsdo circo europeu, eles criaram para o cinema tipos originais e nicos -diferentemente do comediante, que deve poder encarnar personagens os maisdiversos. Carlitos o clown de Chaplin, pessoal e nico, no importando se desempenha o

    papel de O grande ditador, do vagabundo de O garoto ou do operrio em Tempos modernos.Do ponto de vista da tcnica do clownutilizada, alguns desses tipos do cinema

    chegaram a um grande nvel de requinte. Dentre eles, destacaria Charles Chaplin, a dupla

    Hardy e Laurel (o Gordo e o Magro), Buster Keaton, Harold Lloyd, Jacques Tati, Jerry Lewis,Mazzaropi, Oscarito, Grande Otelo e outros.

    O clown a exposio do ridculo e das fraquezas de cada um. Logo, ele um tipopessoal e nico. Uma pessoa pode ter tendncias para o clownbranco ou o clown augusto,dependendo de sua personalidade. O clownno representa, ele - o que faz lembrar os bobose os bufes da Idade Mdia. No se trata de umpersonagem, ou seja, uma entidade externa ans, mas da ampliao e dilatao dos aspectos ingnuos, puros e humanos (como nos clods),

    portanto "estpidos", de nosso prprio ser. Franois Fratellini, membro de tradicional famliade clownseuropeus, dizia: "No teatro os comediantes fazem de conta. Ns, os clowns,fazemos as coisas de verdade.".

    O trabalho de criao de um clown extremamente doloroso, pois confronta o artistaconsigo mesmo, colocando mostra os recantos escondidos de sua pessoa; vem da seucarter profundamente humano.

    (*) Este texto corresponde aos 3 primeiros tpicos do captulo 8 (O clowne a improvisao codificada)do livroA arte de ator: da tcnica representao, de Lus Otvio Burnier, editora da Unicamp, Campinas,2001. Para comprar esse livro e conhecer as outras publicaes do Lume visite o site do Grupo.