O Código Desconhecido

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    Uma poética da sugestão no filme Código Desconhecido   de

    Michael Haneke

    Maria Thereza Azevedo

    As imagens ambíguas, a supressão de diálogos, o tempo indeterminado,

    as elipses, os prolongamentos invisíveis na extensão da cena, os silêncios, são

     procedimentos recorrentes na arte cinematográfica.

    Uma vertente da estética audiovisual contemporânea transformou estes

     procedimentos em sistemas de organização, optando por um certo abandono da

    estrutura dramática, modelo tutelar dos filmes dramático-narrativos, em

    detrimento de outras formas que acabam por definir novos paradigmas de

    composição.

     No drama o ponto de partida é sempre uma situação inicial quedesencadeia o conflito para impulsionar a ação dramática que conduz a uma

    solução final. Os elos de ligação entre cenas são fundamentadas por uma

    compreensão lógico-temporal. O sentido apoia-se na história narrada num

    mecanismo de engrenagem das ações que projeta uma só trajetória centrada no

     personagem principal.

    O filme Código desconhecido,(2000) do austríaco Michael Haneke, não

    caminha nesta direção. Sua composição com trajetórias de diversos

     personagens, não tem como princípio de ligação o drama, ou seja, o desenrolar

    de uma ação. As diferentes histórias conectam-se a partir de uma situação

    inicial: um adolescente branco, francês, joga os restos do papel amassado que

    envolvia um sanduíche que acabara de comer numa mulher que pede esmolas

    com as mãos estendidas, sentada no chão de uma avenida em Paris. Este gesto

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    incendeia a indignação de um rapaz negro que o obriga a pedir desculpas à

    mulher. O rapaz resiste, não pede desculpas e a confusão chama a atenção de

     policiais que prendem o negro e a mulher, Maria, uma pedinte romena que está

    ilegalmente no país e acaba sendo deportada. O negro, Amadou, professor de

    crianças surdas-mudas, é preso e tratado como um criminoso. O adolescente

    Jean, cunhado de Anne (Juliette Binoche), sai impune.

    Esta poderia ser uma situação de impulso ao desenrolar da história do

    filme, mas não é. A situação inicial, aqui, não funciona como leit motiv,  para o

    desenvolvimento da ação dramática. Os personagens da situação inicial nos

    conduzem até novas situações, mas distanciadas de uma linha narrativa que dá

    unidade à uma obra dramática. São vários enunciados que se estruturam de

    maneira autônoma, mas articulados por um tema comum. São destinosfracionados, unidos pela intolerância.

    A deportação de Maria nos leva ao Leste Europeu, região onde o

    companheiro de Anne, Georges, trabalha como fotógrafo de guerra. A história

    de Maria , que junta dinheiro das esmolas para enviar à família, não tem

    nenhuma ligação com a história de Georges, a não ser pelo espaço geográfico

    que ambos conhecem, de pontos de vista diferentes.

    Há no filme uma subjetividade formal ordenadora das histórias secretas,

    uma combinação de sistemas que agregam várias fontes.

    Amadou nos conduzirá à sua família: africanos que não falam francês e

    vivem em Paris. O pai é taxista, a irmã surda-muda. Vamos saber sobre estas

     pessoas, mas o que elas dizem e como vivem não é nenhum desenrolar da

    história de Amadou desencadeada pela situação da rua. São fragmentos,

    momentos, situações que reiteram os conteúdos abordados no filme: relações

    humanas, intolerância, racismo, preconceito, incompreensão, indiferença.

    Assim, uma constelação de sentidos formam-se através destes

    fragmentos, cada situação nova reitera a situação anterior.

     Nesta estrutura de histórias desconectadas, mas semelhantes em seus

    conteúdos, ocorrem coisas fora de cena. Aliás, temos a impressão que as

    questões que moveriam o drama não estão na cena, mas fora dela. São ações

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    corriqueiras como: Anne está passando roupas, fora de campo uma criança

    chora. Não sabemos de onde vem o choro. Pode ser de qualquer uma daquelas

    centenas de janelas de apartamentos de uma cidade grande. Anne (Juliette

    Binoche) ouve o choro e se preocupa. A campainha toca, Anne vai atender,

    não há ninguém. Ela apanha um bilhete no chão. Não sabemos o que está

    escrito neste bilhete. Percebemos que Anne lê, mas não sabemos o quê lê. Ela

    sai em busca de quem escreveu o bilhete, uma vizinha? Ninguém se manifesta.

    Este remeter-se para um fora de cena é um procedimento semelhante ao

    usado pelos dramaturgos e encenadores simbolistas, o sugerir sem mostrar.

    Funciona como uma espécie de "espaço vazio" procedimento bastante usado

     pelo cineasta japonês Yasujiro Ozu. Para Noel Burch, "o quadro vazio tem um

    curioso ancestral pré-cinematográfico, um fragmento dramático de Baudelaire,na qual uma parte importante da ação se passa nos bastidores, deixando vazio

    o espaço cênico". 1  Assim, o essencial dramático ocorre por detrás do que é

    visível.

    Temos a impressão que o roteiro do filme Código Desconhecido  é maior

    do que o próprio filme e que a história não contada foi escrita para ser

    suprimida.

    Sabemos um pouco mais desta preocupação de Anne com a criança que

    chora quando ela conversa com Georges sobre isso, enquanto faz compras num

    Supermercado. Só que o assunto não se desenvolve, ele desperta uma outra

    conversa sobre eles com o tema criança, ou seja, uma ação não leva a outra por

    causalidade, mas por associação.

    Em outro momento, Anne está num enterro. Percebemos que a sua

    vizinha também está. Não sabemos de quem é este enterro, o padre sugere na

    sua oração que é de uma criança, não temos certeza, presumimos que é

     possível ser da criança que chorava fora da cena em que Anne passava roupas.

    É uma sugestão.

    1 BURCH, Noel - Práxis do Cinema  - São Paulo: Editora Perspectiva; 1992 pag 45

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    O poeta simbolista Stephanie Mallarmé acreditava que ao denominar um

    objeto, grande parte da sua fruição é suprimida, pois o interessante é

    adivinhar aos poucos.

    Essa potencialidade advinhatória e decifratória desperta no espectador

    leitor uma reflexão sobre o tema abordado. É no espaço vazio que está o

    espaço do outro, na incompletude é que se encontra a história secreta que cada

    um monta.

    Outro exemplo de incompletude é o que se passa com o pai de Jean no

    momento de uma conversa sobre o filho que partiu. Ele se desloca do espaço

    da conversa incômoda para o primeiro plano escuro de um banheiro, não

    acende a luz e não ergue a tampa do vaso. Temos a impressão de que ele,

    sentado no vaso, chora. Mas não estamos certos se isso realmente estáocorrendo. No escuro, a cena é apenas uma sugestão. Ao esconder-se, ele

    expõe a sua ferida. O filme parece comportar-se desta maneira, a de expor

    através do esconder.

     Numa outra cena vemos a herança de Jean, dezenas de bezerros, mortos.

    O pai acaba de matar o último bezerro. A questão do pai com a negação do

    filho é manifestada pelo silêncio. Na realidade, apenas o silêncio e o possível

    choro no banheiro insinuam o que pode estar passando na alma do

     personagem.

    O dramaturgo Maurice Maeterlink considera o silêncio mais eloqüente

    do que as palavras.2  Estes silêncios, acontecimentos fora de cena e

    deslocamento do eixo central narrativo, com blocos de situações, são sistemas

    combinados que se organizam a partir de princípios semelhantes.

    Umberto Eco, ao lembrar dos procedimentos dos simbolistas refere-se a

    eles como horizontes inesperados, como por exemplo o projeto de

    decomponibilidade do livro de Mallarme " (...) o bloco unitário deveria cindir-

     

    2 MAETERLINK apud BEN TL EY , Er ic - O dramaturgo como pensador  .   Rio de Janeiro: Civi l ização

    Brasi leira, 1991 pag 121  

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    se em planos reversíveis e geradores de novas profundidades, através da

    decomposição em blocos menores, por sua vez móveis e decomponíveis."3 

    Os procedimentos de Haneke em Código Desconhecido  são semelhantes

    aos apontados por Eco. A estrutura do drama é a de um bloco unitário. No caso

    do filme, este bloco acaba por cindir-se em planos geradores de novas

     profundidades.

    Assim, ao sair da trilha central e deslocar-se para os espaços de origem

    dos personagens, onde vivem outras pessoas como ele, aprofundando na sua

    cultura e na sua etnia, isso fala mais sobre o personagem, do que ele próprio.

    Estes destinos cindidos pela intolerância não se encontram nunca, a não

    ser pela própria intolerância. E o corpo subjacente, velado e invisível do

    filme, só passa a ter existência ao relacionar-se com outros corpos, os corpos-mentes dos espectadores- interlocutores. Tocado ele se manifesta.

    Ao velar o drama, num jogo de impossibilidades, Michael Haneke em

    Código Desconhecido  acaba por revelar as questões essenciais deste mesmo

    drama, criando um corpo invisível que dialoga e traz à tona detonadores de

    consciência.

    REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador . Rio de Janeiro: Civilização

    Brasileira, 1991.

    BORDWELL, David.  Narration in the fi ction film. USA: University of

    Wisconsin System, 1993

    BURCH, Noel.  Práxis do Cinema - São Paulo: Editora Perspectiva; 1992

    CHARNEY., Leo e SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção d vida

    moderna. São Paulo, Cosac & Naif, 2001.

    ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva -1991.

    3 ECO, Umberto, Obra Aberta  . São Paulo: Perspectiva, 19 91 pag 55

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    HEGEL, G.W. F O si st ema das Ar te s Curso de es té ti ca.   São Paulo: Martins

    Fontes, 1997.

    ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1997.

     _______ “Influências estéticas de Schopenhauer" in: Texto Contexto. São

    Paulo, Perspectiva, 1991.