O colapso inevitável

15
1 O colapso inevitável 1. “Riqueza verdadeira é dormir na própria cama”, diz um adágio do mercado financeiro quando uma grande empresa não resiste a um fracasso retumbante. Parece que, infelizmente, o Brasil não seguiu este conselho ao lidar com suas economias públicas e privadas. Hoje é do conhecimento de todos que o modelo de governo implementado pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados aproxima-se de um iminente colapso. São vários os motivos dessa triste ocorrência: centralização do poder na União Federal; sucateamento do aparato burocrático; aparelhamento ideológico do Estado; corrupção endêmica em setores potencialmente lucrativos para o país, como petróleo e energia; alta incidência de carga tributária para resolver os problemas fiscais de um governo que, em última instância, é incapaz de cortar os gastos públicos motivados justamente pelas razões apontadas acima. Trata-se de um círculo vicioso, e ninguém parece saber se há luz no fim do túnel ou se a luz que se procura não é senão a do trem que vem atropelar-nos de uma vez por todas. Contudo, esses problemas não são originários exclusivamente do modelo político-econômico proposto pelo Partido dos Trabalhadores. Já existiam havia algum tempo, provavelmente desde o Brasil colonial – e apenas foram sedimentados na chamada “Nova República”, iniciada oficialmente com a Constituição de 1988. Portanto, ao comparar os programas de governo dos partidos que se encontram tanto na situação como na oposição, percebemos um fundo comum, uma mesma raiz que impede a resolução de problemas que deveriam ser debatidos sem parar, antes de qualquer atitude terapêutica, para que o colapso não se agravasse ainda mais.

description

Poucos conseguem tirar vantagem de um evento aleatório, caindo na perigosa ilusão de que um país constrói-se com paz e estabilidade quando, na verdade, isso o torna cada vez mais propenso a traumas. A resposta fundamental é aceitar a incerteza como regra máxima.

Transcript of O colapso inevitável

Page 1: O colapso inevitável

1

O colapso inevitável

1.

“Riqueza verdadeira é dormir na própria cama”, diz um adágio do mercado

financeiro quando uma grande empresa não resiste a um fracasso retumbante.

Parece que, infelizmente, o Brasil não seguiu este conselho ao lidar com suas

economias públicas e privadas. Hoje é do conhecimento de todos que o modelo de

governo implementado pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados aproxima-se de

um iminente colapso.

São vários os motivos dessa triste ocorrência: centralização do poder na União

Federal; sucateamento do aparato burocrático; aparelhamento ideológico do Estado;

corrupção endêmica em setores potencialmente lucrativos para o país, como petróleo

e energia; alta incidência de carga tributária para resolver os problemas fiscais de um

governo que, em última instância, é incapaz de cortar os gastos públicos motivados

justamente pelas razões apontadas acima.

Trata-se de um círculo vicioso, e ninguém parece saber se há luz no fim do túnel

ou se a luz que se procura não é senão a do trem que vem atropelar-nos de uma vez

por todas.

Contudo, esses problemas não são originários exclusivamente do modelo

político-econômico proposto pelo Partido dos Trabalhadores. Já existiam havia algum

tempo, provavelmente desde o Brasil colonial – e apenas foram sedimentados na

chamada “Nova República”, iniciada oficialmente com a Constituição de 1988.

Portanto, ao comparar os programas de governo dos partidos que se encontram tanto

na situação como na oposição, percebemos um fundo comum, uma mesma raiz que

impede a resolução de problemas que deveriam ser debatidos sem parar, antes de

qualquer atitude terapêutica, para que o colapso não se agravasse ainda mais.

Page 2: O colapso inevitável

2

Este fundo comum é a fragilidade do Estado brasileiro como um todo. Ela afeta

todos os setores da vida social, a princípio de maneira imperceptível, e depois

prejudica o cotidiano da população de tal forma que é necessário um “instituto

jurídico” (como o impeachment ou a renúncia da pessoa que ocupa o cargo mais alto

da nação) para que o quadro não piore e se transforme enfim numa crise social de

proporções extremas.

Empregamos o termo fragilidade no sentido proposto por Nassim Nicholas

Taleb – escritor libanês naturalizado americano –, especialmente no livro Antifrágil:

coisas que se beneficiam com o caos e também em seu artigo “The Calm Before The

Storm” (A bonança antes da tempestade), publicado na revista Foreign Affairs.1

Para ele, a fragilidade é sempre adversa a um estado de desordem. Ou seja,

qualquer instituição frágil é incapaz de tirar vantagem de um ambiente de incerteza e

confusão. Quando isso ocorre, a instituição fica exposta a eventos imprevisíveis e mostra-

se incapaz de reinventar-se, dominada pelos caprichos do acaso, sobretudo em situações

de alta volatilidade.

Vejamos cinco critérios utilizados para caracterizar um país como “frágil”:

1. Um sistema de governo extremamente centralizado (decisões arbitrárias

que surgem de cima para baixo, ou seja, do centro do poder instituído

para a sociedade civil, sem autêntica representação);

2. Uma economia incapaz de sustentar a diversidade de opções no mercado

(intervencionismo exagerado);

3. Dívida pública excessiva (alto custo com políticas públicas e programas

sociais, sem evidente retorno para o cidadão);

4. Ausência de alternância política (a visão de que qualquer crítico contra o

governo é visto como um “inimigo”, não como um “adversário”); e

1 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. Rio de Janeiro: Best Business, 2014; ver também, do mesmo autor, “The calm before the storm”, publicado na revista Foreign Affairs em janeiro de 2015, disponível no seguinte link: https://www.foreignaffairs.com/articles/ africa/calm-storm. Acessado no dia 4 de fevereiro de 2016.

Page 3: O colapso inevitável

3

5. Um registro histórico de não suportar (ou absorver apenas precariamente)

choques súbitos em suas estruturas políticas (acentuado pela incapacidade

de promover reformas estruturais profundas e não apenas reformas

superficiais).

O Brasil atende precisamente a essas características de fragilidade, por mais

que a nossa elite intelectual, política e financeira o negue. Todos os pontos acima

resumem-se numa única atitude perigosa – facilmente encontrável na maioria dos

brasileiros que tentam comandar os labirintos do poder: não suportar nenhuma

espécie de variação súbita, nenhuma amostra de estresse, nenhum prenúncio de caos.

Poucos conseguem tirar vantagem de um evento aleatório, caindo na perigosa ilusão

de que um país constrói-se com paz e estabilidade quando, na verdade, isso o torna

cada vez mais propenso a traumas. A resposta fundamental é aceitar a incerteza como

regra máxima.

Neste aspecto, são igualmente falhos e incompletos tanto os projetos de governo do

partido no comando do Estado quanto os projetos da oposição que pretende ocupá-lo (caso

ocorra o impedimento ou a renúncia da governante maior da nação). Ambos rumam ao

colapso inevitável justamente porque não querem perceber a fragilidade em que estão

envolvidos.

2.

O grande exemplo deste comportamento perigoso não se encontra num escrito

teórico encomendado pelo Partido dos Trabalhadores – o que seria natural para uma

equipe de intelectuais que preferiu ver a realidade através das suas “paixões políticas”

–, mas no artigo “O ajuste inevitável”, do trio de economistas Mansueto Almeida,

Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, publicado em meados de 2015.2

2 ALMEIDA, Mansueto; LISBOA, Marcos & PESSOA, Samuel. “O ajuste inevitável” – publicado em julho de 2015. O texto está disponível no seguinte link: https://mansueto.files.wordpress.com/2015/07/o-ajuste-inevitc3a1vel-vf_2.pdf. Acessado em 4 de fevereiro de 2016.

Page 4: O colapso inevitável

4

Sem dúvida, trata-se de um texto de inegável precisão técnica e dotado do

desejo sincero de dar um diagnóstico e uma profilaxia que impeçam o

aprofundamento da fragilidade do Estado brasileiro.

O argumento é simples e, ao mesmo tempo, sofisticado, pois mostra as chagas

que nos afligem. Para eles, a crise vivida pelo país não é apenas uma questão de

“ajuste fiscal”, mas um problema que “requer um ajuste mais severo e estrutural”.

Além do “descontrole dos gastos públicos a partir de 2009”, “desde 1991, a despesa

pública tem crescido a uma taxa maior do que a renda nacional”.

Temos também leis trabalhistas e constitucionais – como as que envolvem o

setor da previdência pública – que emperram “o crescimento da economia”. Este

desequilíbrio, explica o artigo, traria um aumento contínuo da carga tributária, que

abocanha grande parte do PIB, gerando rombos permanentes no orçamento da

sociedade civil e prejudicando a criação de empregos e a movimentação de renda da

população – e assim se originaria o esfacelamento constante das contas fiscais.

A descrição acima certamente evidencia os pontos (2) e (3) que caracterizam a

fragilidade do país. Ou seja, o trio consegue ver que a alta carga tributária (uma das mais

elevadas do mundo, cerca de 38% do PIB do país, conforme o gráfico 01) e o excesso de

gastos em políticas públicas (principalmente em programas sociais e na manutenção do

status previdenciário) contribuíram para uma economia que não permite diversidade de

opções no mercado e determina o aumento excessivo da dívida pública.

Como não bastassem os problemas que envolvem a questão previdenciária,

temos também em nosso quadro demográfico “o aumento do número de idosos”.

Apesar de ser compensado, no atual momento, pela “entrada de jovens no mercado

de trabalho”, em breve haverá uma queda nesta compensação, pois o número de

idosos cresce “a uma taxa quatro vezes maior do que a dos adultos, dobrando a sua

participação na população total nos próximos trinta anos”.

Page 5: O colapso inevitável

5

Os problemas apontados no artigo de Mansueto, Lisboa e Pessoa não são

novidade na história brasileira. Como uma erva daninha que parece cultivada pelo

próprio agricultor, ainda que involuntariamente, a carga tributária brasileira tem

crescido, sobretudo nos últimos cinquenta anos. De um lado, essa elevação deve-se à

ampliação da dívida pública e da despesa pública acima do crescimento médio da

receita; de outro, deve-se à instituição de um modelo gratuito de Estado, no qual

todos querem algum serviço público ou algum favor do governo – pois mesmo nos

períodos em que houve diminuição da dívida pública ou dos gastos estatais, não houve

diminuição da taxa de crescimento da tributação.

Evolução da carga tributária – Gráfico 01

Fonte: RFB (Receita Federal do Brasil) – 2013

De resto, o texto também fala do ponto (1) abordado nos critérios de

fragilidade – a admissão de que estamos vivendo num sistema de governo altamente

centralizado, no qual as decisões políticas são feitas sempre “de cima para baixo”, na

inútil tentativa de controlar a sociedade civil. O maior exemplo disso é a interferência

excessiva da União em agências governamentais, em primeiro lugar por meio de leis e

normas burocráticas que impedem o desenvolvimento natural dessas áreas

comerciais; e, em segundo lugar, por meio da nomeação ideológica de pessoas para

postos de comando cujos requisitos técnicos não atendem adequadamente e nos

quais se encontram apenas por “afinidades eletivas”.

13,84(1947) 18,99

(1967-CTN)

22,43(1988)

29,75(1994)

29,41(1995- FH)

29,74(1998-FH2)

31,4(2003-LL)

34,8(2006-LL2)

36,54

0

5

10

15

20

25

30

35

40

1 6 11 16 21 26 31 36 41 46 51 56 61

Page 6: O colapso inevitável

6

Contudo, apesar dos seus acertos, o artigo demonstra a “arrogância

epistêmica” típica dos economistas e dos técnicos que, mesmo com as melhores

intenções, ainda acreditam ver o sistema político de qualquer país como algo estável e

impermeável aos choques que sempre ocorrem quando estamos num mundo repleto

de incerteza e acaso.

Mansueto Almeida, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa são incapazes de ver que,

infelizmente, o Brasil é um país frágil porque sua sociedade como um todo jamais se

preparou historicamente para tirar qualquer vantagem do caos – algo que parece ser

sempre negativo, mas que se anuncia também como algo positivo.

Ao analisar tecnicamente a situação atual do Estado brasileiro, não conseguem

ter imaginação suficiente para vê-lo como um “sistema complexo”, repleto de

conexões surpreendentes e que se mostra ao dia a dia da população como algo

interdependente – provando que não estamos mais naquele domínio da realidade que

acreditamos ser “normal” e sim numa área cinzenta e perigosa que não hesitaríamos

em chamar de “extraordinária”.

Dessa forma, temos de aprofundar o conceito de “fragilidade” com outros dois

termos que passarão a ter grande importância em nosso raciocínio (também extraídos

da obra de Taleb): o Mediocristão e o Extremistão.

Segundo Taleb, o Mediocristão é o domínio onde todos nós vivemos e onde

podemos fazer nossas previsões, e pouco importa se errarmos, porque o erro terá

consequências mínimas na sociedade (Por exemplo: um acidente de trânsito na rua de

sua casa decerto não iniciará um colapso no tráfego de uma metrópole). Já o

Extremistão é o domínio dos grandes sistemas complexos e interdependentes (como é

o caso do Estado brasileiro), onde é impossível ter uma previsão exata, pois qualquer

fato improvável terá um enorme impacto no tecido da sociedade (vejam o que

acontece com o uso excessivo de energia elétrica num dia de calor intenso no verão,

Page 7: O colapso inevitável

7

que causará uma pane no sistema energético e certamente iniciará um blecaute na

cidade).3

Assim, fica evidente, com base nos pontos apresentados, que o tal “ajuste

inevitável” proposto por Mansueto, Lisboa e Pessoa está fadado ao fracasso, pois estes

não perceberam que a crise do Estado brasileiro acontece justamente no domínio do

Extremistão. E mais: não se dão conta de que o crescimento agudo desta crise ocorre

porque eles mesmos estimulam o ambiente de fragilidade que querem consertar.

A razão deste equívoco é simples, mas extremamente sutil: não conseguem

propor revisões profundas às fraturas do Estado brasileiro porque não observam os

efeitos positivos gerados pelas instabilidades nacionais.

3.

O principal problema do modelo de “ajuste” apresentado no texto de

Mansueto Almeida, Marcos Lisboa e Samuel Pessoa – e do qual provavelmente um

futuro governo se apropriará, independentemente do partido que esteja no poder – é

a continuação da fragilidade do Estado brasileiro, por não atacar com vigor o ponto

(1), o da administração centralizada. É essencial compreender isso, pois terá

desdobramentos nos outros tópicos apresentados.

Por mais que se argumente entre juristas, economistas e cientistas políticos

que o Brasil é uma nação “levemente” centralizada em seu sistema de governo

(comparado, por exemplo, a outros países dos BRICs, como a China e a Rússia, ou até

mesmo da América Latina, como a Venezuela), ainda assim é evidente que, no

cotidiano da sociedade civil, as coisas não se passam dessa maneira.

Basta perguntar para qualquer cidadão: ele se sente completamente acuado

quando tem de pagar uma única conta, principalmente a que envolva necessidades 3 TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan: The impact of the highly improbable. London: Penguin, 2007/2010, p. 213-27. Ver também o artigo de VASQUES DA CUNHA, Martim. “A importância de ser um flaneur: uma introdução ao pensamento de Nassim Nicholas Taleb”. In: MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia. São Paulo: IMB, 2016 (no prelo).

Page 8: O colapso inevitável

8

fundamentais para si mesmo e para sua família – como saúde, alimentação, moradia e

educação. Além disso, existem os custos adicionais de lazer, transporte e segurança,

que parecem existir, sobretudo, para acrescentar algum imposto na carga tributária.

Isto impossibilita que o cidadão faça um investimento estável no aprimoramento de

sua personalidade, em especial naquilo que uma sociedade saudável chama de “ócio”,

mas que, na verdade, é o momento que o sujeito tem (ou se permite ter) para pensar

sobre a própria existência.

Além disso, a prática política demonstra que as relações governamentais locais e

regionais não conseguem afastar-se daquilo que podemos chamar de “epicentro

candango do poder”. Seja porque o imbricado sistema de competências normativas faz

com que se verifique uma constante inter-relação entre os polos de poder, seja porque a

dependência econômica dos Estados e Municípios faz com que as ações políticas destes

sejam direcionadas pelo Governo Federal, tal relação fica em evidência pela concentração

das receitas tributárias na União, reforçando assim a decisão centrífuga da política

nacional.

Divisão da arrecadação tributária entre os entes federativos – Gráfico 02

Fonte: RFB (Receita Federal Brasileira) – 2009

66,970,01

30,5328,04

25,38 26,19 25,58

2,57 4,41

0

10

20

30

40

50

60

70

80

1990 1993 1996 1999 2002 2005

União

Estados

Municípios

Page 9: O colapso inevitável

9

Somados à centralização tributária do Estado brasileiro na União, os dados

acima demonstram que, nos últimos anos, apesar da arrecadação dos Municípios ter

crescido 71,59% (crescimento decorrente da ampliação do setor de serviços no Brasil),

a carga tributária da União apresentou um leve crescimento (4,64%), mesmo com as

políticas anticíclicas e das desonerações setoriais impostas – as quais representaram

aproximadamente 5% do PIB no ano de 2014.

Portanto, o argumento da “estabilidade” das instituições democráticas não

convence quem vive no Brasil atual porque elas também estão contaminadas pela

fragilidade do Estado, justamente por encontrarem-se no domínio do Extremistão, no

qual a dependência de um setor está relacionada a outra.

A incapacidade de manter uma segurança mínima quanto à sobrevivência da

própria vida do cidadão prova também que estamos em uma “crise de hierarquia”

(crisis of Degree),4 na qual a sociedade não consegue mais se espelhar na elite que

deveria liderá-la.

O brasileiro sente na pele o Estado falido que não admite para si mesmo sua

falência e, por meio dos seus funcionários e acólitos, achaca a população com

impostos, taxas e outros “tarifaços”; a economia desagrega-se a olhos vistos no bolso

de qualquer trabalhador, independente de classe social (exceto, é claro, aqueles que

estão perto do “epicentro candango”); o governo está perdido e não sabe o que fazer

para manter o mínimo de ordem institucional; e há um clima de insatisfação crescente

que, se não for devidamente canalizada, pode descambar em violência, uma vez que

sempre se buscam experiências catárticas, como as passeatas ou manifestações de

massa que ocorreram em julho de 2013.

Assim, a proposta do artigo de Mansueto, Lisboa e Pessoa é nada mais nada

menos que a manutenção desta “centralização” aparentemente leve, tratando a

fragilidade do Estado como questão meramente técnica e abstrata, na qual tudo seria

4 GIRARD, René. Shakespeare: Teatro da Inveja. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 309-20.

Page 10: O colapso inevitável

10

resolvido com uma “privatização” aqui e outra ali, um novo índice de previdência, uma

diminuição de encargos irrisória, uma melhor eficiência no emprego dos tributos

arrecadados – ou então, em termos de realpolitik, a mudança do critério do

aparelhamento ideológico do Estado pelo critério mais impessoal, mas igualmente

perigoso, da “meritocracia técnica” da administração burocrática.5

No fim, trata-se da continuidade da centralização, oculta na sua “leveza”, e que

prova que a resistência genética desta atitude é algo similar a uma fênix ou a uma

hydra. No caso da hydra, para cada cabeça cortada, nasce outra; no caso da fênix, esta

teima em ressurgir depois de cada tentativa de extinção; e, assim também no caso do

Brasil, pois o verdadeiro problema continua lá, escondido, à espreita do cidadão que

sempre terá medo de enfrentá-lo, mostrando assim o ponto (4) da nossa fragilidade

estatal, que impossibilita uma efetiva alternância de poder, pois o discurso político

altera-se apenas na superfície, jamais na essência.

Tudo isso se comprova quando seguimos na íntegra o raciocínio do artigo, já

que, em nenhum momento do texto, os economistas interessam-se em desmantelar a

complexidade tributária que fundamenta as bases do Estado brasileiro. Isso nos leva a

crer que, seja pela meritocracia, seja pela paixão política, o estímulo de prebendas no

melhor estilo quid pro quo talvez seja a regra geral para fazer não só a política do país,

mas a própria economia – mostrando assim que essa ciência talvez não seja tão

imparcial como pensam seus ardorosos defensores.

A fragilidade demonstrada no núcleo oculto do artigo de Mansueto, Lisboa e

Pessoa é uma praga que demorará a ser extirpada das discussões e do desejo de fazer

uma “reforma” eficaz, se alguém tiver a intenção de reconstruir o Brasil.

Apesar das mudanças que podem acontecer e que estão em jogo, o risco de

colapso não só permanece como pode ser contínuo – ou seja, a menos que haja uma

discussão que encare sem receio o problema da fragilidade do Estado nacional,

5 Sobre os perigos da meritocracia técnica, ver a reflexão sobre o “saber de salvação” em: MERCADANTE, Paulo. A coerência das incertezas. São Paulo: É Realizações, 2001, p. 319-43.

Page 11: O colapso inevitável

11

teremos uma crise atrás da outra, até o momento em que vivenciaremos não o “ajuste

inevitável”, mas o “colapso inevitável”.

4.

Podemos lembrar da atual situação do Brasil quando ouvimos a frase de Mae

West, atriz norte-americana conhecida por não ter papas na língua: “Entre dois males,

sempre escolho aquele que nunca experimentei”.

Não há “terceira via” para o Brasil. Ou ele admite que suas decisões fazem

parte de um domínio em que temos pouco controle – e que, ao contrário do que

imaginamos, isso é algo que pode ser positivo, se tratado com cautela –, ou se deixa

cair na vala comum do mal sempre experimentado porque sempre foi visto (de forma

equivocada, acredita-se) como o mais estável para as nossas instituições.

A sociedade brasileira está tão perdida entre essas escolhas aparentemente

contraditórias, incapaz perceber que a fragilidade do Estado nacional é tão grande, que

começa a aceitar o “ajuste” recomendado por Mansueto, Lisboa e Pessoa como um

remédio definitivo, ignorando que ele agrava ainda mais a indeterminação do

funcionamento do “sistema complexo” em que estamos envolvidos.

A incerteza detectada pelo artigo do trio de economistas já não advém da

própria realidade como a julgamos conhecer, mas de sua incapacidade de escolher

entre um modelo de governo “frágil” e outro modelo que tenta superar essas

perigosas brechas, potencializando assim os defeitos da centralização estatal e não as

qualidades de uma gestão fundamentada no “autogoverno” (self-government) – algo

que o Brasil jamais experimentou em sua história política.

Esta incapacidade de escolha leva ao medo de enfrentar um colapso sistêmico

quando, muitas vezes, isso é absolutamente necessário – e, se não for feito, acentuará

ainda mais a fragilidade do próprio Estado, afetado pela ilusão da falsa estabilidade

Page 12: O colapso inevitável

12

que estimula os governantes, os burocratas e os intelectuais que vivem da “arrogância

epistêmica”.

O medo de “abraçar o caos”, algo fortemente absorvido na cultura brasileira,

impede que a sociedade civil, representada por uma elite que não percebe que

vivemos constantemente no domínio do Extremistão, veja que o “colapso inevitável” é

fundamental para reestabelecer e rediscutir o papel do Estado no modo como

governamos o país. A nossa escolha é entre um paliativo, um “placebo” que parece

melhorar temporariamente as coisas, mas que, a médio ou longo prazo, agrava ainda

mais a doença, e um remédio amargo, porém com efeito duradouro.

Tampouco esta indecisão é nova na história do nosso país. José Júlio Senna

explica-nos que ela sempre existiu para justificar o poder centralizador do Estado,

tornando assim a fragilidade do Brasil algo constante a cada momento em que se

tentava alguma reforma profunda em nossas estruturas políticas. Aconteceu do

mesmo modo na época do Império, quando a mudança de regime para a República

não impediu de continuar a imitação das bases econômicas da escravidão:

Haveria alguma relação entre os fenômenos da escravidão e da estatização? É muito possível que sim. A abolição do trabalho servil provocou forte abalo em toda a sociedade, particularmente no meio agrícola. Logo em seguida surgiu a República, e uma nova Constituição foi promulgada. Como diz Oliveira Vianna, a aristocracia, deslocada da atividade rural, passou a encontrar no Estado um novo apoio, que lhe substituiu a antiga base econômica destruída. [...] O caráter federativo do novo regime [republicano] multiplicava as oportunidades de emprego no setor governamental. Havia agora a União, os Estados e os Municípios [...].

Esse movimento de reorientação da aristocracia rural pode ser encarado como uma parcela remanescente do ônus do regime escravista. Como já se disse, esse regime gera indolência e preconceito contra toda sorte de trabalho, particularmente o trabalho manual. Habituados a viver parasitariamente, explorando o braço escravo, os velhos senhores e seus descendentes só podiam seguir o caminho do emprego público, onde o serviço, além de suave, não lhes parecia degradante. Estava criada a demanda pelos cargos públicos, demanda esta fácil de ser atendida, devido à forte influência política exercida pelos antigos aristocratas. Daí para o processo progredir, não custaria muito. O interesse na manutenção do status quo se multiplica, na mesma proporção em que aumentam os custos políticos de tentar reverter a situação existente. Como se sabe, o Brasil foi um dos últimos países a terminar a escravidão; não será surpresa se formos um dos últimos a pôr fim à

Page 13: O colapso inevitável

13

estatização. Entre nós, a escravidão durou mais de trezentos anos. Quanto à estatização...6

O raciocínio também comprova o ponto (5) dos nossos critérios de fragilidade,

em que se explicita a incapacidade, no registro histórico nacional, de suportar (ou

absorver apenas precariamente) choques súbitos em suas estruturas políticas,

especialmente em marcos de mudança radicais como a abolição da escravidão ou,

para restringir-nos a um período mais recente, a redemocratização do país, durante a

qual muitas das práticas desenvolvimentistas do governo militar repetiram-se

justamente no Estado de Bem-Estar social promovido por seu antípoda ideológico, o

governo do Partido dos Trabalhadores.

Para ocorrer a libertação destes “grilhões de imitação negativa” é preciso,

sobretudo, uma mudança de mentalidade, uma mudança cultural que aceite a existência

da incerteza e do caos como algo que estimule a responsabilidade por nossos atos.

Esconder o fato de que preferimos transferir o risco das nossas escolhas para a fragilidade

inerente de um Estado centralizador e intervencionista só aumenta um comportamento

próximo da “servidão voluntária”, como bem observou Bruno Garschagen:

Um governo intervencionista não apenas constrói uma mentalidade estatista, mas apequena a sociedade. Um sistema político fundamentado na intervenção, no controle de esferas na vida social, política e econômica corrói as normas sociais, contrai o senso de responsabilidade, dilui o sentido de dever, inviabiliza o exercício da fraternidade, desestimula o trabalho das instituições sociais não governamentais e cria uma nova ordem, que é uma armadilha difícil de ser completamente destruída porque “construída pela engenhosidade humana e alimentada com os nossos próprios desejos”. As consequências da atuação do governo transbordam os limites da política e da economia. Influem no comportamento, nos hábitos, nos costumes. Gradualmente, operam uma engenharia social dissimulada, indolor e extremamente eficaz. As pessoas passam a pensar e a agir segundo um código ideológico. Eis a glória do intervencionismo: controlar a sociedade sem precisar de um órgão do governo responsável por persuadir ou coagir os indivíduos a se comportar de acordo com o interesse do governo de turno.7

Esta atitude de “controle consentido” significa fugir do risco, da incerteza e do

caos – e evita nada mais nada menos que o próprio fundamento da política como deve 6 SENNA, José Julio. Os parceiros do rei: herança cultural e desenvolvimento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 183-84. 7 GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015, p. 273.

Page 14: O colapso inevitável

14

ser imaginada com “prudência” aristotélica, justamente aquela virtude que faz a

sociedade navegar com precaução pelas águas turbulentas do mundo que nos rodeia.

Dessa maneira, a inevitabilidade do colapso somente pode ser afastada se

houver uma firme correção das fragilidades institucionais do Brasil, principalmente se

forem compreendidas e efetuadas no domínio instável do Extremistão.

Em primeiro lugar, sobre o “epicentro candango do poder”, a sociedade precisa

rediscutir o papel dos demais entes políticos em face da União Federal. Ela tem de

escolher se quer um Estado descentralizado, cujos polos de poder dissipam os

possíveis equívocos de um ou de alguns governantes (diminuindo-se as fragilidades

inerentes de quem ignora que atua no Extremistão), ou um Estado centralizador que a

mantém refém dos erros e das escolhas de seus representantes políticos e intelectuais.

Além disso, a sociedade precisa rever o pacto federativo tributário a fim de escalonar

melhor as receitas tributárias, para corrigir o frágil sistema de transferência de tributos

e impor responsabilidade aos agentes políticos quanto à instituição de “novas matrizes

econômico-tributárias”, impondo limites prudenciais aos gastos públicos.

É necessário também rever as fragilidades institucionais decorrentes da profusão e

da falta de conexão das legislações, incluindo aí um melhor entendimento das mudanças

“cosméticas” das leituras interpretativas e judiciais dos fatos passíveis de desequilíbrio das

tributações indireta e direta que existem entre a União, os Estados e os Municípios.

Como se tudo isso não fosse suficiente, a sociedade precisa posicionar-se

politicamente quanto ao equivocado regime presidencialista de cooptação que estimula

crises institucionais, corrupção endêmica, falta de responsabilidade dos agentes políticos e

ilegitimidade representativa dos atores políticos frente aos cidadãos que os elegeram.

Assim, o Brasil se vê num momento histórico único em que deve decidir se quer

ficar na fragilidade subdesenvolvida ou se quer aproveitar a inconstância em que se

encontra para descobrir outro tipo de desenvolvimento – algo que um “ajuste

inevitável” jamais terá condição de fazer.

Page 15: O colapso inevitável

15

O colapso é inevitável porque interessa à própria sociedade. Se não houver,

antes de tudo, uma mudança efetiva na discussão do papel do Estado, o que estamos

arriscando é nossa própria sobrevivência – não apenas como sociedade, mas também

individualmente, cada um de nós. Ao escolhermos um eterno passado ou um futuro

glorioso, o Brasil entrará no caminho da ruína completa e sem volta. Quando isso

acontecer, exclusivamente porque não assumimos o risco das nossas

responsabilidades atuais, saberemos então que gostaríamos muito de dormir na nossa

própria cama, porque fomos incapazes de reconhecer o que foi a verdadeira riqueza.

André Luiz Costa-Corrêa (Doutor em Direito – PUC-SP)

Martim Vasques da Cunha (Doutor em Ética e Filosofia Política – USP)

São Paulo, 15 de dezembro de 2015 - 4 de fevereiro de 2016