O Combate Espiritual Do Scupoli

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O combate espiritualPe. Lorenzo Scupoli

CAPTULO I

O que a perfeio crist, o combate para conquist-la; e as quatro coisas necessrias para esse combate.

Minha filha muito amada em Cristo, se voc deseja chegar ao mais alto grau da santidade e de perfeio crist, unindo-se de tal modo a Deus que se torne um mesmo esprito com Ele (1Cor 6,17), que a maior e mais nobre empresa que se pode conceber, convm que saiba primeiramente no que consiste a verdadeira e perfeita vida espiritual.

Por que muitos, por pouco refletirem, crem que a perfeio consiste no rigor da vida, na mortificao da carne, no uso dos cilcios, nas disciplinas, jejuns, viglias e outras obras exteriores. Outros, particularmente as mulheres, quando rezam muitas oraes, ouvem muitas missas, assistem a todos os ofcios divinos e participam das comunhes, crem ter chegado ao mais alto grau da perfeio. Outros ainda, mesmo entre os que vestem hbitos religiosos, se persuadem de que a perfeio consiste unicamente em freqentar o coro, amar a solido e o silncio e no observar estritamente a disciplina regular com seus estatutos e regras. . Assim, alguns pem o fundamento da perfeio evanglica nessas coisas, outros, naquelas; mas o que certo que todos igualmente se enganam, porque essas obras mencionadas no so outra coisa que meios para adquirir a santidade, ou frutos dela e, portanto, no se pode dizer que em tais obras se realizem a perfeio crist e o verdadeiro esprito. So, sem dvida, meios poderosssimos para conquistar a verdadeira perfeio e o verdadeiro esprito, aos que os usam com prudncia e discrio, para tomar fora e vigor contra a prpria malicia e fragilidade; para defender-se dos assaltos e tentaes do nosso inimigo comum e, enfim, para obter da misericrdia divina e os auxlios e socorros que so necessrios a todos que se exercitam nas virtudes e, particularmente, aos iniciantes. So, pois, frutos do Esprito Santo nas pessoas verdadeiramente santas, os castigos do corpo para sujeita-lo ao servio do seu Criador; a vida na solido para fugir de qualquer pequena ofensa ao Senhor e para conversar com os habitantes do cu (Flp 3,20); o atendimento ao culto divino e obras de piedade; orao e meditao da vida e paixo do Nosso Senhor, no por curiosidade ou para satisfazer algum gosto, mas para conhecer cada vez mais a prpria malicia e a divina bondade e a infinita misericrdia e tambm para inflamar cada dia mais o seu corao no amor divino e no desprezo de si, seguindo com a mesma abnegao os passos do Filho de Deus; a freqncia ao santssimo sacramento para glorificar a majestade divina e para se assemelhar a Deus e ganhar fora contra os inimigos.Porm, a algumas almas fracas acontece o contrrio, pois se apiam totalmente em obras exteriores, e isso pode ser uma causa de grande runa e desespero, no porque a prtica de tais obras no seja boa em si (pois so coisas muito santas), mas pela falta de quem as pratica, porm esquece e abandona o corao s inclinaes do demnio oculto. Este, vendo a iluso dos que saem do verdadeiro caminho, no s os deixa continuar com seus exerccios e obras, mas at lhes proporciona praticar com gosto e deleite, para crerem serem eles mesmos muito avanados na vida espiritual, imaginando se encontrarem entre os coros dos Anjos, como almas singularmente escolhidas e privilegiadas, e que sentem Deus dentro de si mesmas. O demnio tambm usa do engano para sugerir-lhes nas oraes alguns pensamentos sublimes, curiosos e agradveis, afim de que se creiam arrebatados ao terceiro cu, como So Paulo, e persuadindo-se de que j no so deste baixo mundo, vivam numa abstrao total de si mesmas e numa profunda alienao de todas aquelas coisas das quais deveriam se ocupar.Em quantos erros e enganos esto envolvidas tais almas miserveis e quo longe esto da perfeio que buscam. Essas pessoas so reconhecveis facilmente por sua vida e costumes porque em todas as coisas querem ser preferidas aos outros, so caprichosas, desobedientes e obstinadas em suas opinies e cegas em suas prprias aes, mas tm sempre os olhos abertos para observar e criticar outras pessoas, e se algum as critica, ainda que levemente, na opinio e estima que tm de si mesmas, ou as quer apartar daquelas devoes costumeiras, se enojam, se turbam e se inquietam muito; e, se Deus, para reduzi-las ao verdadeiro conhecimento de si mesmas e ao caminho da perfeio, envia dificuldades, doenas e perseguio (que so a prova mais certa da fidelidade de seus servos, e que no acontecem sem um querer ou permisso da providncia) ento, descobrem o seu fundo falso, com o interior todo corrodo e gasto por causa da soberba. Pois, qualquer que seja o caso, feliz ou triste, nunca querem se abrigar sob a mo divina, nem ceder sua admirvel providncia para conformarem-se aos seus justos, porm secretos, juzos (Rom 11,33), nem imitar ao Seu Filho santssimo (Flp 2,8) e sujeitarem-se a todas as criaturas, ou amar os seus perseguidores como instrumentos de bondade divina que cooperam para a sua perfeio e salvao eterna.E, por isso, vivem sempre sob o perigo terrvel e bvio de perecer, pois como tm os olhos obscurecidos pelo amor prprio, e o apetite de sempre vangloriar a si mesmos e suas obras externas, se atribuem altos graus de perfeio e, cheias de presuno e orgulho, censuram e condenam os outros. s vezes o orgulho as cega e deslumbra de tal forma que necessria uma graa especial do cu para tir-las da iluso, porque, como demonstrado pela experincia comum, converte-se mais facilmente o pecador pblico do que o injusto que se cobre com o manto da virtude.De todas essas coisas mencionadas, voc, minha filha, pode agora entender claramente que a vida espiritual no nenhum destes exerccios e trabalhos externos, que as outras pessoas costumam confundir com a santidade.Voc deve entender que a santidade no consiste em outra coisa alm do conhecimento da bondade e grandeza de Deus, da nossa nulidade e inclinao a toda espcie de mal; no amor por Ele e na indiferena por ns mesmos; na submisso no s a Ele, mas a toda a criatura por causa dEle; na renuncia de toda a nossa vontade e na total resignao a providencia e no fazer tudo isso simplesmente pela glria de Deus e pelo puro desejo de agrad-lo e porque Ele tem todo o mrito de ser amado e servido por suas criaturas.

Esta a lei do amor que o Esprito Santo gravou no corao dos justos, esta a crucificao do homem interior, este o jugo suave e o peso leve, esta a perfeita obedincia que o Mestre Divino sempre nos ensinou pela palavra e pelo exemplo.Ento, minha filha, se voc aspira no s santidade, mas a perfeio da santidade, deve agir com grande violncia contra si mesma para que possa lutar generosamente e anular os prprios desejos. Mas eu advirto, minha filha, que por esta guerra ser a mais difcil de todas (j que ns mesmos que somos combatidos), tambm a vitria a mais agradvel a Deus e a mais gloriosa ao vencedor.Porque, se com coragem e resoluo, voc mortifica suas paixes, seus apetites e reprime seus desejos desordenados e o menor movimento de sua prpria vontade, ento voc executa um trabalho de maior mrito aos olhos de Deus, do que se mantivesse alguma vontade, mas afligisse e maltratasse o seu corpo com panos speros e a mais dura disciplina; ou jejuasse com mais austeridade e rigor que os anacoretas antigos do deserto; ou que tivesse convertido a Deus milhares de pecadores.Porque, ainda que o Senhor estime mais a converso das almas do que a mortificao dos desejos, voc no deve se preocupar somente com as coisas, que segundo a natureza, paream mais nobres, mas sim ocupar-se naquilo que Deus pede particularmente a voc. E evidente que, a Deus, agrada mais que voc mortifique todas as suas paixes do que, se deixasse uma apenas vivendo no seu corao, se pusesse a buscar feitos maiores.Agora que voc v, fillhinha, no que consiste a perfeio crist e a guerra dura e terrivel contra o amor-prprio que necessria para conquist-la, preciso que guarde quatro coisas, como se fossem armas para sua segurana e para obter a vitria. Que so: a desconfiana de si, a confiana em Deus, os exercicios e oraes. Tratemos de tudo isso com a ajuda de Deus.

CAPITulo IIA desconfiana de si

A desconfiana de si mesma, filhinha, de tal modo necessria neste combate que, sem ela, voc pode ter por certo que no s a vitria almejada s ser perdida, mas tambm ser perdida a batalha contra a menor das paixes. Pois ento, voc deve gravar profundamente no corao essa verdade: Somos naturalmente inclinados a uma falsa estima de ns mesmos, mesmo que no sejamos mais do que nada, nos convencemos que valemos algo e, sem qualquer fundamento, presumimos em vo as nossas foras.Esta falta muito dificil de ser reconhecida e desagrada muito a Deus, que muito nos ama e grava em ns a certissma verdade de que todo bem que fazemos deriva dele, fonte de toda virtude e bem e que, de ns, no pode vir nada, nem mesmo um sentimento de gratido (2Cor 3,5).E, sabendo que esta desconfiana obra da Graa, que dada aos Seus amigos, seja com uma santa inspirao, seja com asperos flagelos, ou com violentas e quase insuperaveis tentaes, ou mesmo com outros meios que no compreendemos, pois Ele quer, da nossa parte, todo o esforo possivel, eu proponho quatro meios com os quais, ajudada com o supremo favor da graa, voc pode conseguir essa santa desconfiana.O primeiro meio que considere voc o quo vil e limitado o seu ser e o quo incapaz de algum bem por mrito prprio para entrar no Reino dos Cus.O segundo que, com fervor e humildade, pea essa virtude ao Senhor, que uma graa Seu. E, para obte-la, voc deve primeiro persuadir a si mesma de que. no s lhe falta, como tambm que a voc sozinha seria impossivel conquistar tal graa. E assim apresentando-se muitas vezes diante da Majestade Divina, deve pedir com uma f reta o que o Senhor, por Sua bondade, poder conceder-lha; e se voc perseverar nessa esperana, por todo o tempo disposto pela providencia, tenha certeza que a alcanar.O terceiro meio buscar o habito de desconfiar de si e dos seus juizos, e ter consciencia da sua forte inclinao ao pecado e dos inumeraveis inimigos que lha rodeiam, que so mais fortes e astutos que voc, que podem se transfigurar em anjos de luz para engana-la e iludi-la no meio do caminho para o cu.O quarto meio aproveitar as prprias quedas no pecado, para ter cada vez mais consciencia da sua fraqueza. De fato, para este fim que Deus permite a sua queda; para que, guiada pela inspirao de uma luz mais clara, aprenda a desprezar a si mesma como um ser limitado e para que deseje ser vista pelos outros como um ser miseravel. Saiba que, sem este desprezo, no haver a desconfiana virtuosa, que tem seu fundamento no conhecimento experimental e na verdadeira humildade.Porque uma coisa certa, aquele que deseja unir-se Luz Suprema Verdade Incriada precisa do conhecimento de si, o qual, a Divina Clemencia, d, aos soberbos e presunosos geralmente atravs de uma falta, a qual imaginam poderem livrar-se, para que ento, frustrados, possam conhecer-se e desconfiarem de si mesmos.O Senhor, porm, geralmente s se serve deste meio to miseravel quando outros mais benignos, como os citados mais acima, no trouxerem o benefcio pretendido pela Sua bondade divina. Ele permite que o homem caia na proporo do seu orgulho, de modo que, onde voc no encontra a menor presuno, como no caso da Virgem Maria, tambm no encontra a menor queda. Ento, quando voc cair, volte seus pensamentos imediatamente para o humilde conhecimento de si mesma e para a orao constante. Pea ao Senhor que lha d a luz verdadeira para obter total desconfiana de si mesma, se no quer cair outra vez no mesmo erro ou num mais grave. CAPTULO III Da confiana em Deus. Ainda que a desconfiana de si seja importante e necessria neste combate, voc no deve se socorrer somente desse meio, pois seria facilmente desarmada e vencida pelos seus inimigos. E por isso necessria a total confiana em Deus, que o autor de todo o bem, e o nico em que se deve esperar a vitria. Por que assim como de ns, que nada somos, no se pode esperar seno quedas, pelas quais devemos sempre desconfiar de nossas foras, em contrapartida, devemos sempre confiar no socorro e assistncia divina para realizar grandes vitrias sobre nossos inimigos; e assim o faremos se estivermos convencidos perfeitamente da nossa fraqueza e com um corao de uma viva e generosa confiana na infinita bondade. So quatro os meios com que poder adquirir essa virtude excelente:O primeiro, pedi-la com humildade ao Senhor.O segundo, considerar e ver com os olhos da f a onipotncia e sabedoria infinitas daquele Ser soberano, a quem nada impossvel (Lc 1,37)ou difcil e que, por pura bondade, e pelo excessivo amor por ns, se deixa pronto e disposto a conceder-nos o que preciso para a vida espiritual, para a inteira vitria de ns mesmos, caso recorramos a seus braos com filial confianaComo possvelque estepastor,doce e gentil, que por33 anos correu atrs da ovelha perdida e sem rumo, com tanto sangue e suor e custas Suas,para traze-las dos despenhadeiros e veredas perigosas para uma caminho santo e seguro: da perdio sade, da ferida ao remdio, da morte vida, no responda? Como possvela estePastor, que vendo como a Sua ovelhinha O busca e O segue com a obediencia dos preceitos, ou ao menos com o desejo sincero( mesmo que imperfeito ou fraco) de o fazer, no voltar os Seus olhos de vida e misericrdia; ou, ao ouvir os seus gemidos, no a colocar amorosomente sobre os Seus ombros, alegrando-se com os anjos do cu pela volta do seu rebanho e pela troca do pasto venenoso e mortal do mundo pelo manjar suave e farto da virtude? Se Ele que, com tanto ardor e diligencia, buscou o dracma do evengelho, que a figura do pecador, como ser possivel que abandone a quem, triste e aflito por no ver o seu pastor, o busca e o chama?Quem persuadir-se- de queDeus, quecontinuamente bate a portado nosso coraocom o desejo de nele entrar,ecomunicar-nose encher-noscomSeus dons, encontrandoa porta aberta, evendo quepedimos,no se dignarde nos concedera graaque pedimos? (Apoc 3,20)O terceiro meio para adquirir essa santa confiana rememorar as verdades e orculos infalveis da Sagrada Escritura, que asseguram que os que esperam e confiam em Deus no cairo jamais em confuso.O quarto e ltimo meio, com que juntamente voc poder adquirir a desconfiana de si e a confiana em Deus, pode ser tentado na resoluo de comear uma boa obra ou o combate a uma paixo. Antes de comear qualquer coisa relembre sempre, por um lado, a sua fraqueza e, por outro, o poder, a sabedoria e bondade infinita de Deus e, tendo como claras essas duas verdades, determine-se a combater generosamente. Com essas armas, unidas orao, voc ser capaz, minha filha, de realizar grandes feitos e vitrias. Mas se voc no observar essa regra, ainda que parea animada de uma verdadeira confiana em Deus, estar enganada, por que to natural ao homem a prpria presena que, insensivelmente, se confundem a confiana que imagina ter em Deus e a confiana que realmente tem em si mesmo.Para livrar-se dessa presuno, minha filha, e trabalhar sempre as duas virtudes que so opostas a este vicio, necessria que a considerao da sua fraqueza ande junto com a da onipotncia divina.

CAPTULO IV Como podemos saber se agimos com confiana em Deus e desconfiana com ns mesmos.

Muitas vezes a alma presunosa acredita ter adquirido a desconfiana de si mesma e a confiana em Deus, mas este um erro que s se conhece bem no momento que se cai no pecado, porque, ento, se a alma se inquieta, se aflige, esmorece e perde a esperana de progredir no caminho da virtude, sinal evidente que ps sua confiana, no em Deus, mas em si mesma, e, se foi grande sua tristeza e desespero, fica claro que confiava muito em si e, pouco em Deus.Porque aquele que desconfia muito de si mesmo e confia muito em Deus, quando comete uma falta, no se perturba ou entristece, pois sabe que sua queda um efeito natural da sua fraqueza e do pouco cuidado que teve em estabelecer a confiana em Deus; mais ainda, com esta experincia ele aprende a desconfiar mais das suas prprias foras e a confiar com a maior humildade em Deus, detestando mais ainda as suas prprias faltas e as paixes desordenadas que a causaram e, ento, com uma dor quieta e pacifica pela ofensa a Deus, volta aos seus exerccios de perfeio e persegue os seus inimigos com maior fora e resoluo do que antes.Seria bom considerar algumas pessoas que se imaginam muito crists, mas que ao cair em alguma falta, se afligem e perturbam excessivamente, muitas vezes e ento, mais pela inquietude que lhes causa seu amor prprio do que por qualquer outro motivo, buscam com impacincia seus pais espirituais, aos quais deveriam recorrer principalmente para lavarem-se dos seus pecados pelo sacramento da Penitencia e fortalecer-se contra suas recadas pelo sacramento da eucaristia e no para se tornarem mais soberbas.

CAPTULO V Do erro de algumas pessoas que tem a pusilanimidade por virtude

tambm uma iluso muito comum considerar como virtude a fraqueza e a inquietude de esprito que se seguem ao cometimento do pecado, porque, ainda que a inquietude que nasce do pecado venha acompanhada de alguma dor legitima, no obstante, ela tambm vem sempre acompanhada de certa presuno e soberba, frutos da confiana que elas tm nas prprias foras.

Geralmente, as almas presunosas que, por julgarem-se seguras na virtude, menosprezam os perigos e tentaes, mas caso venham a cair em algum pecado ou ter alguma experincia de sua fragilidade e misria, se alvoroam e perturbam da sua queda como se fosse uma grande surpresa, e no momento em que elas vem derrubado o seu apoio no qual, em vo, haviam confiado, perdem o animo e, como fracas e pusilnimes, se deixam dominar pela tristeza e desespero.Essa desgraa, minha filha, no sobrevm jamais s almas humildes, que nada presumem de si mesmas, mas se apiam unicamente em Deus, porque quando caem em alguma falta, ainda que sintam grande dor de t-la cometido, no se perturbam, porque conhecem com a luz da verdade iluminante, que a sua queda um efeito natural da sua inconstncia e fraqueza.

CAPTULO VI Outros avisos importantes para adquirir a desconfiana de si mesmo e a confiana em Deus.

Como toda a fora que necessitamos para vencer nossos inimigos depende da confiana em Deus, me parece til passar alguns outros conselhos necessrios para obter a virtude.Primeiramente, minha filha, tenha como verdade certa, que nem com todos os dons e talentos, quer sejam naturais, quer sejam adquiridos, nem com todas as graas, nem com a inteligncia de toda a sagrada escritura, nem com o haver servido a Deus por largo tempo e estar acostumada a servir-Lhe, voc se far capaz de servir vontade divina e de satisfazer as suas obrigaes, ou fazer alguma boa obra, ou vencer alguma tentao, ou sair de algum perigo, ou sofrer alguma cruz, se a mo poderosa de Deus no lha fortificar em cada momento que se apresenta. necessrio que voc, minha filha, grave profundamente essa verdade no seu corao e no passe nenhum dia sem que a tenha meditado ou considerado e, por este meio, poder preservar-se do vicio da presuno e no se atrever a confiar temerariamente na suas prprias foras. No que toca confiana em Deus, voc h de lembrar sempre que muito fcil ao poder dEle vencer a todos os seus inimigos, sejam poucos ou muitos, fortes ou bravos, fracos ou inexperientes. Portanto, mesmo que depois de ter feito grandes esforos para seguir o caminho da virtude e da verdade, a sua alma se encontre cheia de todos os pecados e vcios imaginveis e, alm disso, voc continue percebendo em si uma grande facilidade para inclinar-se ao mal e imperfeio, no deixe, por isso, de confiar em Deus, nem deixe as armas e exerccios espirituais, mas lute sempre generosamente e tenha em mira que os que lutam confiando em Deus nunca perdem esta batalha, pois Deus no abandona os seus soldados. Ento, parta logo para o combate, isso o importante! Os remdios para as feridas so eficazes para os soldados de Deus, que com confiana se aproximam Dele e, quando menos pensam, os inimigos se pem mortos.

CAPTULO VII Do exerccioDo exerccio do intelecto; a necessidade de conserv-lo da ignorncia e da curiosidade.

Se no combate espiritual no tivssemos outras armas alm da desconfiana de ns mesmos e da confiana em Deus, no s no venceramos a ns mesmos como tambm criaramos muitos males. Por isto necessrio o exerccio das nossas potencias, que a terceira arma proposta. Esse exerccio deve ser praticado principalmente sobre a inteligncia e sobre a vontade. Quanto ao intelecto, ele deve ser conservado de duas coisas principalmente.Uma delas a ignorncia, que obscurece e impede o conhecimento da verdade, que seu o seu objeto prprio.Porque, com o exerccio, a inteligncia deve-se fazer lcida e clara para poder discernir o quanto necessrio purificar a alma das paixes desordenadas e orn-la de santidade. Esta luz pode ser adquirida de dois modos. O primeiro e mais importante a orao, pedindo, ao Esprito Santo, a graa da infuso em nossos coraes e isso o Senhor far sempre que pedirmos em verdade e submetermos todos os nossos desejos ao juzo dos nossos confessores e pais espirituais. O segundo o contnuo exerccio de um profundo e leal esforo de ver as coisas como so, se boas ou ms, segundo os ensinamentos do Esprito Santo e no segundo os juzos do mundo. Este esforo, se feito de forma correta, nos faz ver claramente que devemos ter por nada, por vaidade e por mentira todas as coisas que este mundo cego e corrupto amamos e desejamos e que, com vrios modos e meios, procuramos; e que as honras e prazeres terrenos no so outra coisa que vaidade e aflio do espirito; que a injurias e infamias que o mundo nos traz, trazem na verdade glria e paz; que perdoar os inimigos e fazer-lhes o bem magnnimo e um meio de nos assemelharmos a Deus; que vale mais o desprezo do mundo do que dele ser rei; que obedecer mais desprezivel das criaturas por amor a Deus maior que comandar grandes principes; que devemos ter mais em conta o humilde autoconhecimento do que o dominio de todas as ciencias; que vencer os prprios apetites, por pequenos que sejam, merece mais louvores que conquistar muitas cidades (Prov 16,32), derrotar grandes exrcitos, fazer milagres e ressucitar os mortos.

CAPITOLO VIIIAs causas do mau discernimento das coisas.O mtodo para conhecer as coisas como so.

A causa de no discernirmos as coisas de forma clara vem do nosso impeto de v-las sob fortes sentimentos de amor ou dio. E essas paixes obscurecem e prejudicam a retido do intelecto.Voc, minha filha, se no quiser cair nesse engano, cuide de ter sempre sua vontade purificada e livre do desejo desordenado das coisas. E quando algum objeto se apresentar a voc, observe-o sob a luz do intelecto com maturidade e no sob inclinaes de afeto ou oposies de dio.Porque o intelecto, se ignora as paixes, livre e claro e pode conhecer a verdade, perceber o mal oculto sob a aparncia de um falso prazer e o bem coberto pela aparencia de mal.

Mas se a vontade se inclina primeiro a amar ou a odiar as coisas, o intelecto no pode bem conhece-las, porque as paixes as interpem e ofuscam, fazendo-o estimar as coisas de forma errada, e representa-las dessa forma vontade, e ento essa se move ardentemente a amar ou odiar as coisas antes de qualquer considerao das leis da razo e da ordem.

E nessas paixes o intelecto fica cada vez mais obscurecido, e o objeto se apresenta sempre vontade como objeto passivel apenas de amor ou de dio, de tal modo que, se no observada a regra que lha dou, essas duas nobres faculdades humanas, a vontade e o intelecto, caminharo sempre como num vrtice, de trevas para trevas mais profundas e de erros para erros ainda maiores. Portanto, minha filha, guarde-se da paixo desordenada, do afeto excessivo pelas coisas que no foram primeiro examinadas e reconhecidas pela luz do intelecto e mais ainda pela Graa, a orao e a avaliao do seu pai espiritual. Eu entendo isso, talvez, como mais importante que outras coisas, como a prtica algumas obras exteriores, que so boas e santas, mas que justamente por assim serem guardam maior perigo de serem feitas com engano ou indiscrio. Pois pode acontecer que, por alguma circunstancia, aconteam grandes males aos que praticam essas obras santas e louvveis, como sabemos por muitos casos.

CAPITOLO IXUma outra coisa da qual se deve conservar o intelecto para poder conhecer as coisas como so.

A outra coisa da qual se deve conservar o intelecto a curiosidade, porque ocupando-lhe de pensamentos nocivos, vos e impertinentes, nos tornamos incapazes de reconhecer o que melhor para alcanarmos a perfeio. Por isso, voc deve morrer para qualquer interesse das coisas que no so necessrias, mesmo que sejam licitas.Restrinja pois o seu intelecto o quanto pode e ame faze-lo estulto, pois as novidades e vicissitudes do mundo, grandes ou pequenas, devem ser invisiveis e, se algum oferea-las a voc, oponha-se e vire os olhos para outra direo. Se deseja entender as coisas celestes, faa-se sbria e humilde, no querendo saber nada alm da verdade do Cristo crucificado (1Cor 2,2; Gal 6,14; 1Cor 1,23), a sua vida e morte e o que mais ele pedir. Mantenha-se longe de todo o resto e far algo muito agradvel a Deus, que considera queridos aqueles que desejam apenas o suficiente para poder am-Lo e para fazer a Sua vontade. Qualquer coisa alm disso amor prprio, soberba e engano do Demonio.

Se voc seguir essa norma poder escapar de muitas insidias, porque a astuta serpente, ao ver que alguns dos que seguem a vida espiritual( mas no ouvem esses conselhos), tm a vontade firme, procura confundir os seus intelectos, para poder domina-los e ento submeter as suas vontades conjuntamente. Ela o faz incutindo sentimentos altos e extravagantes, que muito impressionam as pessoas de indole curiosa e viva e as que se deixam facilmente levar pela soberba para, com isso, leva-las ao deleite de meditaes, que pensam ser profundissimas, enquanto se esquecem de purificar o prprio corao; e dai, cheias depresuno evaidade,fazem do prprio intelecto um doloe, gradualmente,acostumam--seaconsultarem todas as coisas, apenas o seu prprio juzo, persuadindo-se de queno precisam doconselho oudireodos outros.Esse um grande perigo e tambm dos males mais dificeis de se curar, porque mais perigosa a soberba do intelecto do que a da vontade, pois a soberba da vontade, manifestada no prprio intelecto, pode ser facilmente curada obedecendo ao que deve. Mas e a firme opinio de ter um juizo melhor do que o dos outros, como poder ser sanada? Como se submeter ao juizo de outros aquele que acredita ser o seu o melhor? Se o olhoda alma, que ointelecto,com o qual deveria conhecer-se e purificar-se da soberba, est doente, cego e tambm cheio de soberba, quem poder cur-lo? E se a luzse transforma emtrevas ea regra falha,o que ser do resto?Procure, pois, minha filha, opor-se ao vicio da soberba antes que ele se apodere da sua alma. Acostume-se a sujeitar o seu juzo ao alheio e a amar a simplicidade evanglica com relao s coisas espirituais e ento voc ser mais sabia que Salomo.

CAPITOLO XO exercicio da vontade e o fim ao qual devem se sujeitar todas as aes interiores e exteriores.

Depois dos exercicios que voc deve fazer para purificar o intelecto, necessrio regular a vontade de tal modo que ela renuncie s suas inclinaes e se conforme totalmente vontade divina. E lhe advirto, minha filha, que no basta querer e procurar as coisas de Deus que mais agradam a voc, mas deve-se querer antes agir sempre com o fim de agrada-Lo e glorifica-Lo. Nisto nos purificamos mais, contrastando grandemente com a natureza, pois essa de tal forma inclinada a si mesma que, em qualquer coisa que busque, mesmo nas coisas do espirito, procura o prprio prazer e acomodamento. De fato, quando se apresenta algo que pode ser feito para agradar a Deus, ns, muitas vezes o queremos mais para obter a satisfao de agrada-LO do que simplesmente para agrada-LO e fazer a Sua vontade.Esse engano to sutil quanto a coisa desejada melhor. At mesmo no desejo de unio com Deus podem-se mesclar sentimentos de amor prprio. Porque muitas vezes se procura mais o prprio interesse e bem do que o cumprimento da vontade de Deus, que deve sempre ser amado, desejado e obedecido pela sua prpria glria. Para voc no cair nesse erro, que a muitos desvia do caminho da perfeio e, para acostumar-se a querer e fazer tudo sob o espirito e vontade de Deus e com a pura inteno de honra-Lo(Ele que deve ser o principio e o fim das nossas aes), siga esse caminho: Quando se apresentar alguma ocasio de praticar uma boa obra, no se incline a quer-la sem haver discernido antes o que vaidade e vontade de engrandecer a si mesma, e o que vontade de Deus e o puro desejo seu de agrad-lo. Desse modo, a sua vontade, conformada vontade de Deus, se inclinar a querer o mesmo que Ele e somente para agrad-Lo e para Sua maior glria. Mas voc deve saber que os enganos da natureza so muito sutis e pouco conhecidos, ela, ocultando-se a si mesma, faz parecer que agimos para agradar a Deus, quando na verdade estamos agindo somente pelo interesse e deleite prprios. Para escapar desse engano, s h um remdio: a pureza de corao, que consiste em despir-se do homem velho e vestir-se do novo homem (Col 3,9-10; Ef 4, 22-23): e esse o fim desse Combate.Ento, para conseguir essa pureza, voce deve discernir em todas as suas aes o que so as vontades do homem velho e o que a vontade de Deus, para poder agir com a confiana de quem movido por essa divina vontade. E se no puder em todas as aes, mesmo naquelas mais interiores da alma, sentir a impresso atual desse motivo divino, procure ter, ao menos no corao, a vontade e o desejo puros de agradar somente ao Senhor. Mas, nas aes que se prolongam por algum tempo, no s bom que voc mova a vontade para esse motivo, mas tambm necessrio que esteja atenta a mant-la nesse fim at o ultimo momento. Nessas aes tambm necessrio que voc renove muitas vezes o fervor e conserve a pureza do primeiro momento, seno cair facilmente nos laos do amor prprio, que sempre prefere a criatura ao criador e nos faz mudar de inteno.O servo de Deus, que no presta ateno a esse ponto, comea as suas aes sem outro fim que agradar a Deus, mas, pouco a pouco e sem que o perceba, se deixa levar pela vanglria. Pois comea a ser atrado cada vez mais ao prazer da ao e s honrarias que a acompanham. E quando Deus coloca um impedimento quela ao por meio de uma enfermidade ou adversidade ou por qualquer outro meio, esse servo se turba e inquieta, contra uns e outros e, por vezes, contra o prprio Deus. E ento fica claro que a inteno desse servo no era pura, mas possua uma raiz corrupta. Porque aquele que age com a inteno de agradar somente a Deus, no considera suas preferncias por uma coisa ou outra e, se a ao necessria no lhe agradvel, ele continua contente porque de qualquer modo ele chega ao fim almejado, que no era outra coisa que a Vontade de Deus obedecida. Por isso, milha filha, esteja sempre recolhida em si e atenta para direcionar todas as suas aes para o perfeito fim. E se voc se mover sempre por esta disposio de alma, visando em todas as aes o medo das penas do inferno e a esperana do paraso, e propor a si mesma como ultimo fim o cumprimento da vontade divina, Ele se compadecer de voc e permitir que entre no Seu Reino. muito difcil saber quo forte e eficaz este motivo; pois qualquer ao, mesmo a mais baixa, quando feita unicamente para agradar a Deus, vale mais do que as grandes e vs aes, que no tem esse fim. Portanto, vale muito mais um msero trocado dado a um pobre com a inteno de glorificar a Deus, do que, se tivssemos outro fim, que no este, e nos despojssemos de todos os nossos bens. Esse santo exerccio de fazer tudo com o fim de glorificar a Deus parecer a voc difcil no comeo, mas, com o tempo, ficar mais fcil e agradvel e voc se acostumar a buscar a Deus e desej-lo, com os mais vivos afetos do corao, como seu nico e perfeitssimo bem, que por si mesmo merece que todas as criaturas o busquem, sirvam e amem sobre todas as coisas. E quanto mais voc entrar na considerao profunda do mrito infinito de Deus, mais ardentes e comuns sero esses desejos santos; e, ento, voc se tornar mais solicita e pronta para agir sempre sob o olhar de Deus e por amor a ele. Enfim, para alcanar esse divino ideal, voc deve pedir e rezar insistentemente a Deus, lembrando dos atos do prprio Ser divino, que fez todas as coisas por puro amor e sem nenhum interesse vil. CAPITULO XI Consideraes para inclinar a nossa vontade de Deus. ________________________________________ Para inclinar a sua vontade a querer sempre o que mais honra a Deus, voc deve meditar a sua bondade infinita e como Ele te amou. Na criao, formando do nada um ser que a Sua imagem e semelhana, e criando juntamente todos os outros seres para lha servir (Gen 1,26-28). E tambm na redeno, enviando, no um anjo, mas seu nico filho, para resgatar-nos, no a preo de prata ou ouro, que se corrompem, mas a preo do Seu prprio sangue (1Ped 1,18-19). Alm disso, minha filha, no h momento em que Ele no lha conserve e proteja do furor e inveja do inimigo, ou no interceda por voc, com a Sua divina graa. Isso tudo no uma prova do amor que tem por voc esse imenso e soberano Deus, minha filha? Quem pode compreender o quanto essa Majestade infinita ama esses seres vis e miserveis que somos ns, e o quanto nossa gratido pequena em face de to grande e generoso Senhor? Se os grandes da terra se julgam obrigados a honrar queles que os honram, mesmo os de condio humilde, o quanto devemos honrar o Rei do universo que nos d tantos sinais de amor? E, sobretudo, lembre-se sempre, que essa Majestade infinita merece por si mesma que A amemos e sirvamos puramente para agrad-la.

CAPITULO XIIAs muitas vontades que existem no homem e a guerra que se faz entre elas.

possvel dizer que h duas vontades no homem: uma, a superior, que guiada pela razo, outra, inferior, que segue os impulsos dos sentidos. Mas a vontade guiada pela razo a mais prpria do homem, e dizemos que um homem s quer realmente alguma coisa quando essa vontade superior tambm o quer. Por isso, todo o nosso combate espiritual consiste no fato de que a nossa vontade superior e racional, que est como que entre a vontade divina e a inferior dos sentidos, seja combatido por uma e por outra, porque as duas, a divina e a sensual, procuram, em concorrncia, atra-la e sujeita-la s suas respectivas obedincias. Ento, aqueles que so prisioneiros do pecado, mas buscam corrigir a vida, provam grandes penas e fadigas ao tentarem libertar-se do mundo da carne e dando-se ao amor e servio de Jesus Cristo, pois so muito fortes os golpes que a vontade superior recebe de uma e de outra, e ela no pode resistir-lhes sem muitos trabalhos.Por isso voc no deve presumir ter a verdadeira virtude crist, nem servir a Deus como convm, se no fizer violncia contra si mesma e suportar a pena que padecem os que deixam, no s os grandes prazeres, mas os pequenos, os quais o corao estava apegado com afeto terreno, tambm. E a conseqncia disso que pouqussimos chegam a alcanar os altos graus de perfeio; porque depois de terem sujeitado os maiores vcios, perdem o animo e no querem continuar e fazer violncia aos vcios menores, que vo a cada dia se apoderando dos seus coraes e sujeitando as suas vontades. Entre estes se encontram muitos que, por exemplo, se no roubam os bens do prximo, se afeioam excessivamente aos bens prprios; se no procuram honrarias por meios ilcitos, no deixam de desejar essas mesmas honrarias, e mesmo de busc-las por meios que imaginam lcitos; guardam rigorosamente os jejuns de obrigao, mas no querem mortificar a gula, abstendo-se de refeies sofisticadas; que so castos, mas no deixam de ter certas conversas e praticas do seu gosto, que impedem os exerccios da vida espiritual para a intima unio com Deus. Essas conversas e prticas so perigosas para todo tipo de pessoas, principalmente para as que no temem as suas conseqncias funestas. Convm que voc tenha um cuidado particular em evit-las, porque, do contrrio, voc far todas as suas obras com tibieza de esprito, uma mistura de interesses ocultos, uma v estimao de si mesma alm de um desejo de ser estimada pelo mundo.Pois aqueles que no cuidam de evit-las, no s no progridem no caminho da perfeio, mas retrocedem com grande perigo de cair em antigos vcios, porque no amam nem buscam a verdadeira virtude, nem so gratos pelos bens que o Senhor lhes fez ao livr-los da tirania do demnio; estes, como se encontram cegos e loucos, no conhecem o perigoso estado em que se encontram e por isso vivem numa falsa paz e numa enganosa segurana. E aqui se esconde, minha filha, um engano tanto mais danoso quanto mais velado. Muitos, amando-se em excesso (se que se pode dizer que isso amor), escolhem os exerccios que mais se conformam aos seus gostos, evitando os que se opem aos seus apetites, contra os quais, na verdade, deveriam empenhar todas as suas foras para combater.Por isso, querida filha, lha aconselho e exorto a amar as dificuldades e penas que se apresentam, para vencer a si prpria! Pois, mais certa e segura ser sua vitria quanto maior for o seu amor pela dificuldade, que mostra aos principiantes a virtude da guerra; e quando voc amar as dificuldades e as penas tanto quanto as vitrias e os frutos delas, ento voc conseguir o que busca.

CAPITULO XIIIO modo de combater os impulsos sensuais e as aes que a vontade deve buscar para conquistar o hbito da virtude.

Sempre que a vontade racional for combatida, de um lado, pela vontade inferior, de outro, pela vontade divina, ser necessrio que voc se exercite de muitas maneiras para que esta ltima prevalea vitoriosa. Primeiramente, voc deve se levantar contra os primeiros movimentos do apetite sensvel que forem contrrios razo, para que a vontade superior no consinta com eles.Depois, quando estes movimentos tiverem cessado, voc os excitar de novo, para que possa reprimi-los com maior fora.E mais adiante os chamar para uma terceira batalha para se acostumar a expulsa-los com um soberano menosprezo. Mas lembre-se, minha filha, que estes dois incitamentos no devem ser feitos com os apetites desordenados da carne, dos quais trataremos mais adiante. Enfim, voc deve praticar atos contrrios s suas paixes viciosas; por exemplo, quando se encontrar combatida pelos movimentos da impacincia e, ento, meditar o que se passa no seu interior, ver que esses movimentos nascem e se formam nos apetites e buscam dominar a sua vontade superior. E, ento, voc dever seguir o meu primeiro conselho, fazendo todo o esforo possvel para se opor a esses movimentos, e s sair desta batalha quando o inimigo, vencido e prostrado, estiver sujeito razo. Mas veja, filhinha, a malcia do demnio. Quando este esprito maligno v que resistimos valorosamente s paixes, no s deixa de excit-las em nosso corao, mas as extingue para que no adquiramos consistncia para resistir a elas e para fazer-nos cair depois nos laos da vanglria e da soberba, iludindo-nos com pensamentos de ser grandes soldados que j venceram os inimigos. Por isso, convm que neste caso voc passe ao segundo combate, rememorando e despertando de novo em seu corao os pensamentos que causaram a impacincia; e se eles excitarem algum movimento na sua vontade inferior, reprima-os com mais fora. Mas, pode acontecer que, mesmo depois de grandes esforos para vencer o inimigo, ainda no estejamos seguros nem livres do perigo de sermos vencidos numa terceira batalha; por isso convm que voc entre pela terceira vez na luta contra o vicio que pretende vencer, para que no apenas sinta pelo vicio averso e menosprezo, mas tambm abominao e horror.Em suma, para aperfeioar sua alma com o hbito da virtude, voc deve praticar atos interiores que so diretamente contrrios s suas paixes desordenadas. Por exemplo, para adquirir com perfeio o hbito da pacincia, voc no deve apenas exercitar os trs combates nas vezes em que for desprezada, mas tambm no querer o ato do menosprezo recebido e at no desejar ser menosprezada de novo e pela mesma pessoa e, mais, amar de tal forma que se proponha a receber injurias e humilhaes maiores ainda. A causa da necessidade desses atos contrrios, para a perfeio na virtude, esta: Os outros atos, mesmo sendo muitos e fortes, no so suficientes para extirpar a raiz dos vcios.Portanto (para continuar nesse mesmo exemplo), quando voc for desprezada, ainda que no consinta aos movimentos de impacincia, combatendo com os trs modos que indiquei anteriormente, se no se habituar a amar o desprezo e o oprbrio, no poder livrar-se do vicio da impacincia, que se funda no desejo de ser estimado pelo mundo e na nossa natural inclinao reputao prpria. Enquanto essa viciosa raiz se conservar, estar sempre germinando at que consiga sufocar toda a alma. E por isso, sem os atos contrrios aos vcios no possvel conquistar a verdadeira virtude.Esses atos devem ser freqentes porque, assim como so necessrios muitos pecados para formar um hbito vicioso, tambm so necessrios muitos atos para formar a virtude.Assim, digo mais: para ter um hbito virtuoso so necessrios mais atos bons do que so necessrios atos viciosos para criar um hbito pecaminoso; pois os atos virtuosos no so excitados pela natureza, corrompida pelo pecado, como so os atos pecaminosos. Alm disso, as virtudes que voc deseja adquirir devem ser acompanhadas de alguns atos exteriores, que so conformados aos interiores, como (para continuar no mesmo exemplo) usar de palavras de amor e mansido, e servir quem lha deixou impaciente. E ainda que estes atos, quer sejam exteriores, quer interiores, estejam acompanhados de uma fraqueza de esprito, que parea a voc que os faz contra sua vontade, no deixe de continu-los, porque, ainda que sejam dbeis e fracos, mantero voc firme e constante na batalha, e lha serviro de socorro para alcanar a vitriaEsteja bem atenta e recolhida em si mesma para combater no s as grandes, mas tambm as pequenas paixes, porque estas servem de caminho para aquelas. Pelo descuido de alguns de remover essas paixes do corao, depois de ter removido as maiores, esses se vm, quando menos esperavam, poderosamente assaltados, com muito mais fora do que na primeira vez. Aconselho voc a tambm mortificar a vontade de coisas licitas, mas desnecessrias, porque disso lha viro muitos bens que a tornaro mais disposta a vencer as outras vontades; fazendo-lha forte e esperta na batalha das tentaes, no dando ocasio aos demnios para desvi-la e dando a voc chances para fazer grandes coisas para o Senhor. Filhinha, falo a voc claramente, se seguir esses exerccios santos que lha dou, para vencer a si mesma, lha asseguro que em pouco tempo avanar muito no caminho do esprito, no sendo crist apenas no nome. Mas, seguindo de maneira diversa ou com outros exerccios, mesmo que lha paream excelentes e deleitosos ao seu gosto e lha dem a impresso de estar numa doce conversa com o Senhor, no lha ajudaram a conquistar a virtude e o verdadeiro esprito. O qual (como j disse no primeiro capitulo) no consiste nos exerccios deleitveis natureza, mas nos que crucificam as nossas paixes e desejos desordenados. Dessa maneira, o homem renovado por meio dos hbitos virtude evanglica, vem a unir-se com o seu Criador e Crucificado.No h duvida de que, assim como o hbito vicioso adquirido atravs de muitos e repetidos atos da vontade superior quando cede aos apetites dos sentidos, assim tambm o hbito da virtude evanglica conquistado atravs de uma constante e firme adeso vontade divina, a qual sempre somos chamados. E assim como a vontade no pode ser viciosa, por grandes que sejam os esforos do apetite inferior para corromp-la, se ela no consentir, assim tambm ela no pode ser santa e unir-se a Deus se no cooperar com a graa divina.

CAPITOLO XIVO que se deve fazer quando a vontade superior parece vencida pela vontade inferior e pelo inimigo.

Se parecer a voc que a sua vontade superior no pode vencer a inferior ou os inimigos pelo fato de no sentir nimo o bastante para isso, mesmo assim no desista da batalha. Na verdade, voc deve se considerar vitoriosa por no ter cedido. Pois a nossa vontade superior no necessita da inferior para produzir os seus atos, ela tem sempre a liberdade de no ceder a esses impulsos, por mais fortes que sejam os assaltos. Porque o Criador nos deu um poder tal que, mesmo se todos os sentidos, demnios e criaturas se armassem e conjurassem para sujeitar a sua vontade, assim mesmo ela poderia livremente escolher agir ou no sob esses impulsos e escolher o modo e os fins das suas aes. E mesmo que esses inimigos lha assaltem e combatam com tanta violncia que a sua vontade, quase sufocada, no tenha fora para resistir, voc no deve perder o animo, nem arrojar as armas, mas servir, neste caso, com a sua lngua, dizendo: No cedo a voc, no consinto! assim como dizem os que so oprimidos pelo inimigo e no podem resistir com a ponta da espada, mas o fazem com o pomo dela. E assim como aqueles que cedem um passo para logo voltarem a atacar seus inimigos, matando-os. Assim, voc procurar sempre retirar-se para o conhecimento de si mesma, que no fundo um nada, e se animar de uma generosa confiana em Deus, que tudo pode, para pedir-Lhe resistncia contra as paixes, dizendo: Ajude-me, Senhor; Ajude-me, Meu Deus; Ajude-me, Jesus, Maria, para que eu no ceda s tentaes!. Voc poder tambm, quando o inimigo lha der tempo, fortalecer a vontade recorrendo ao intelecto e fazendo certas consideraes para dar a voc mesma alguma fora contra o inimigo. Por exemplo, se em qualquer perseguio ou outro problema que venha a sofrer, voc se sentir tentada impacincia, a qual sua vontade quase no pode se opor, lha confortar e ajudar a resistir, as seguintes consideraes:Voc deve considerar o quanto merece esse mal, pelas ocasies que deram em suas aes, pois se houver culpa sua, pede a justia e a razo que voc suporte pacientemente as feridas que se deram pelas suas mos. Mas quando no houver culpa sua, volte seus pensamentos para os outros erros que voc cometeu, os quais Deus agora d como castigo para puni-la como devido. E vendo que a misericrdia de Deus converte o castigo que seria aplicado por um longo tempo no purgatrio, ou mesmo eternamente no inferno, por uma muito mais branda e leve como as presentes, voc deve no s resistir a ele, como dar graas por ele. Porm, se lha parece que j faz muita penitencia e que ofendeu pouco a Deus (algo que no nunca totalmente verdadeiro), voc deve pensar que s se entra no Reino dos Cus pela porta estreita das tribulaes (Mat 7, 13-14).E mesmo que possa entrar por outra porta, pela lei do amor voc deveria sempre escolher a das tribulaes, para imitar o Filho de Deus e todos os seus escolhidos por meio das cruzes, espinhos e tribulaes.Mas o que voc deve considerar principalmente, nesta e em qualquer outra ocasio, a vontade de Deus que, pelo amor que tem por voc, se compraz em v-la praticar atos de herosmo e de virtude como prova de fidelidade e generosidade guerreira, em prova do seu amor por Ele. Tenha por certo que quanto mais grave for a perseguio que voc sofre, e mais indigno o autor dela, tanto mais o Senhor amar a sua fidelidade e Constancia vendo que mesmo em meio a todas as aflies voc ama os juzos dEle, que estabelecem a ordem perfeita mesmo na aparncia da desordem.

CAPITOLO XVAlguns conselhos sobre o modo de combater, especialmente contra quem se deve e com quais virtudes deve ser feito este combate.

Voc j viu, filhinha, o modo com que se deve combater para vencer a si mesma e ornar-se de virtudes. Agora bom que voc saiba que para conseguir a vitria mais facilmente e de forma mais rpida, necessrio que combata todos os dias, voltando sempre batalha e renovando o combate, principalmente contra o amor prprio, habituando-se a receber como um caro amigo o desprezo e molstia que o mundo lha d. Pois o descuido com essa batalha torna as vitrias mais difceis, raras, imperfeitas e instveis.Por isso, minha filha, voc deve pelejar com fora de animo, o que facilmente conseguir se pedir a Deus. E ao considerar o dio e grande numero das hostes inimigas, considere juntamente o infinito poder de Deus e o amor que Ele tem por voc, mas tambm que so muitos os anjos do cu e as oraes dos santos que lha assistem e combatem ao seu favor. Considere ainda os exemplos das frgeis mulheres que, com essa confiana em Deus, venceram as potencias e a sabedoria do mundo alm de todas as tentaes da carne e foras do inferno. Por isso tudo voc no deve perder o animo do combate, ainda que a batalha contra esses inimigos seja difcil e dure toda a sua vida e que se veja constantemente ameaada pela runa. De fato, bom que saiba, qualquer que seja a fora dos nossos inimigos, ela veio do poder divino e esta nas mos dele. E Ele dar a vitria com grandes frutos, ainda que demorem toda a vida. Portanto, isso cabe apenas a voc: que combata generosamente e que, no obstante sendo muitas vezes ferida, voc no deve arrojar as armas nem correr em fuga. Enfim, para que voc combata valorosamente, saiba que esta batalha no pode ser evitada e que s h duas opes, combater ou morrer. Por que os inimigos so to fortes e to grandes o dio que eles tm, que no se pode esperar nem paz, nem trgua. CAPITOLO XVIDo modo com que o soldado de Cristo deve se apresentar pela manh.

Ao acordar, a primeira coisa que voc deve fazer abrir os olhos da alma e considerar a si mesma como um campo de batalha; no qual aqueles que no combatem, morrem.Neste campo de batalha esto os seus inimigos, os vcios e paixes desordenadas que tentam venc-la e lev-la a morte. Mas lembre-se que mesmo com o Demnio em pessoa sua frente, voc tem direita Jesus Cristo, como capito, com a sua santssima Me e o seu carssimo Pai, alm do exrcito de anjos e santos comandados por So Miguel arcanjo. Voc deve, nesses momentos, ouvir no fundo do corao a voz do anjo da guarda, que diz:Voc hoje deve combater contra esses e muitos outros inimigos, No deixe o medo dominar seu corao e nem perca o animo, no ceda a eles por temor ou por respeito a alguma coisa, por que Nosso Senhor seu capito e, junto com todo o exrcito dos cus, combater contra todos os seus inimigos, no permitindo que prevaleam contra voc; esteja firme, faa fora e violncia contra si mesma e sofra a pena para vencer-se. Clame ao Senhor, Virgem Maria, aos santos e anjos, do intimo do seu corao e tenha certeza que alcanar a vitria. E Mesmo que seja fraca, cativa dos seus maus hbitos e os seus inimigos sejam muitos e fortes, ainda assim muitssimo mais forte a ajuda de Quem a criou e redimiu. Combata com pureza e no tema as penas e sofrimentos, pois das fadigas, das violncias contra os seus maus hbitos, que nasce a vitria e o grande tesouro com que se compra o Reino dos Cus, para a alma se unir para sempre com Deus. Ento, minha filha, com as armas da desconfiana de si, da confiana em Deus, da orao e dos exerccios, voc deve comear a luta contra o inimigo, isto , aquele vicio dominante, por meio da resistncia e do dio, e tambm pela prtica da virtude contrria a ele, ferindo-o de morte para o prazer do Senhor, que com toda a igreja triunfante, assiste o seu combate. Mais uma vez eu lha digo que no deve fugir do combate, mas sim atender obrigao de servir a Deus, pois ningum foge batalha sem morrer. E digo mais, se voc, como uma rebelde, quiser fugir de Deus e dar-se ao mundo e s delicias da carne, enfrentar combates com tantas e tantas contrariedades que seu corao ser penetrado de uma angustia mortal. Considere, pois, a loucura de sustentar tal fadiga para encontrar no fim mais fadigas e penas, fugindo de um combate passageiro que logo acaba e nos leva eterna felicidade. CAPITOLO XVIIO modo de se combater as paixes e os vcios.

muito importante observar o modo de combater corretamente e no lutar ao acaso e com superficialidade, como fazem muitos insensatos. O modo com que se deve combater os seus inimigos e vcios recolher-se em seu prprio corao e ver claramente, por meio de um diligente exame, quais tipos de pensamentos e afetos reinam em voc, e ento declarar guerra contra eles.E se voc v que outro inimigo mais prximo lha assalta, faa guerra prontamente a ele e quando venc-lo, volte empresa principal.

CAPITOLO XVIIIO modo de resistir aos impulsos imprevisveis das paixes.

Se, no entanto, voc no se sente preparada para resistir aos golpes imprevistos das injurias ou de qualquer outra adversidade, busque acostumar-se, aprendendo a preveni-las e at a desej-las cada vez mais, para esper-las com animo preparado.O modo de preveni-las consiste em, uma vez conhecida a natureza das suas paixes, considerar as pessoas com quem voc se encontrar e os lugares que freqentar, pois assim ser mais fcil prevenir as suas reaes diante dessas ocasies, mas se alguma contrariedade imprevista ocorrer, alm da resistncia oferecida pelo seu preparo para as situaes previstas, voc poder utilizar-se desse outro conselho.Ao comear a sentir os primeiros ataques da injuria ou de outra dificuldade, coloque-se em guarda, vigilante, e eleve o seu corao at Deus, considerando a Sua bondade e o amor com que Ele manda essas mesmas adversidades para que, atravs delas, voc seja purificada e busque aproximar-se mais ainda dEle. Ao perceber em si mesma algum sinal de covardia diante de uma contrariedade, voc deve dizer a si mesma: Por que voc renega a sua cruz, que no foi dada por um qualquer, mas pelo seu Pai do Cu?. E ento se volte para a sua cruz e a abrace com a maior alegria possvel, e diga: , cruz preparada pela providencia antes da minha existncia! , cruz amvel pelo amor do Crucificado! Crave-se em mim, que j sou livre e posso dar-me a quem me redimiu!E se no comeo voc se sentir vencida pelas paixes, no conseguindo elevar-se at Deus e sentindo-se ferida, procure fazer o mais rpido possvel o que eu lha digo, como se no estivesse ferida; ainda que o remdio mais eficaz contra esses ataques imprevistos seja eliminar as suas causas.Por exemplo, se na falta de algo pelo qual voc tem apego, sua paz perdida, o caminho mais seguro para solucionar esse problema eliminar esse apego. E se a perturbao no procede de uma coisa, mas de uma pessoa que lha desagrada, voc deve esforar-se para v-la com amor, pois ela tambm uma criatura formada das mos de Deus e, como voc, redimida pelo sangue de Cristo. E se voc conseguir am-la estar mais prxima do Senhor, pois Ele ama a todos

CAPITOLO XIXO modo de combater os apetites da carne.

Contra este apetite voc deve lutar de modo particular, diferentemente de todos os outros. Para combat-lo como convm, voc deve distinguir trs tempos: o momento anterior tentao, o da prpria tentao e o posterior a ela.Antes da tentao, a batalha deve ser feita contra as suas causas. Antes de tudo, voc deve lutar, no atacando o inimigo, mas fugindo de todas as ocasies e pessoas que possam constituir para voc um perigo. E se isso se tornar impossvel, enfrente-as com uma atitude modesta e sria, usando palavras graves e um ar severo, porm familiar e afvel.No confie apenas no no ter ainda experimentado ou sentido por muitos anos os estmulos da carne, pois esse vicio faz em uma hora o que deixou de fazer por muitos anos e sabe criar, mesmo que ocultamente, suas tramas, de modo que fere mais profundamente e causa danos mais irremediveis conforme mais inofensivo e menos suspeitoso se mostre.E a experincia demonstra que o perigo tanto maior quando as ocasies se apresentam sobre o contexto de coisas licitas, por razes de parentesco ou deveres de oficio; de fato, o freqente e imprudente trato que se mescla ao venenoso deleite dos sentidos vai corrompendo at o fundo da alma e obscurecendo passo a passo a razo, de modo que se consideram pequenas algumas coisas perigosas como um olhar terno, palavras doces trocadas e o prazer da conversao; e assim, de concesso em concesso, acabam-se as coisas em desastre ou em tentaes dolorosas e difceis de superar.Insisto que voc deve fugir, pois no pode confiar em si mesma, ainda que tenha uma vontade forte e decidida ou que esteja resolvida e disposta a morrer antes de ofender a Deus. O calor do fogo dos vcios seca, pouco a pouco, a gua da sua boa vontade e, quando voc menos pensar, estar de tal maneira que no respeitar nem parentes nem amigos, no temer a Deus, no se importar com a honra ou com a vida e nem com todas as penas do inferno. Fuja! Fuja! Se no quiser ser surpreendida, capturada e morta.Voc tambm deve fugir do cio e vigiar atentamente, ocupando-se das coisas convenientes aos seus afazeres.No se esquea de sempre obedecer a seus superiores, sem oferecer resistncia, realizando com solicitude aquilo que lha imporem, pondo um interesse especial nas coisas que deixarem voc humilhada e que so mais contrrias s suas inclinaes.Tambm no se permita um juzo temerrio sobre o seu prximo, e menos ainda com relao a esse apetite. Se ficar claro que o seu prximo caiu nesse vicio, compadea-se dele e no o deprecie ou humilhe, mas procure tirar dessa situao um sentido de humildade e conhecimento maior de si mesma, sabendo que voc p e nada, aproxime-se mais de Deus com a orao e mais do que nunca das ocasies que lha oferecem perigo. Por que, se voc julga e deprecia os outros, mais do que certo que Deus lha corrija, fazendo com que caia na mesma falha para que, convencida da sua soberba, voc se humilhe e corrija ambos os defeitos.Outra coisa que voc deve saber que, ao se encontrar em meio aos consolos e afetos espirituais, voc deve evitar qualquer sentimentos de v complacncia por si mesma, ou pensando que seus inimigos no lha faro mais guerra, por temerem ou depreciarem voc; caso contrrio sua queda ser rpida e certa.No momento da tentao voc deve discernir se a causa interna ou externa. Entendendo por causa exterior a curiosidade dos olhos e dos ouvidos, o extremo cuidado com os vestidos ou as confianas e confidencias que incitam a esse vicio. O remdio nesses casos a sinceridade e a modstia, no querendo ver nem ouvir nada que leve voc ao mal: fugir o grande remdio, como eu disse.A causa interior procede da vitalidade do corpo ou dos pensamentos na mente, que se originam dos nossos maus hbitos ou de sugestes do demnio. A sensualidade do corpo se mortifica com disciplinas, cilcios, viglias e outras austeridades, dentro dos limites da discrio e obedincia. Com relao aos pensamentos, venham de onde for, tm por remdio o seguinte: ocupar-se dos exerccios adequados ao prprio estado, na orao e meditao.Com relao orao, faa-a dessa maneira: ao se dar conta no s da presena de maus pensamentos, mas da mera insinuao deles, concentre seus pensamentos no Cristo dizendo: Meu Jesus, doce Cristo, venha depressa e no deixe que eu caia nas mos do meu inimigo!. E abraando a cruz na qual pende o seu Senhor, beije as chagas dos Seus santos ps, dizendo com fervor: , adorveis chagas, santas e castas, firam agora este pobre e impuro corao e salvem-me do perigo de ofend-las. Quando as tentaes dos prazeres da carne lha perseguirem, no me parece bom que voc medite certos pontos, recomendados por muitos livros como se fossem remdios a essa tentao, por exemplo, a meditao da baixeza dessa tentao, sua insaciabilidade, os desgostos e amarguras que a acompanham, os perigos de perder os bens, a vida ou a honra e coisas semelhantes. Pois essas meditaes nem sempre ajudam a vencer a tentao, mas podem aumentar as dificuldades, pois se o intelecto, por uma parte, deseja esses pensamentos, por outra oferece ocasio e perigo de deleitar-nos neles e consentir no prazer. Por isso o melhor remdio consiste em fugir dele, e inclusive de tudo que o recorde para ns, ainda que seja contrrio a ele. por isso que quando sua meditao for orientada para esse fim, deve centrar-se na vida e paixo de Jesus Cristo; e, mesmo se durante essa meditao, os maus pensamentos continuarem a atorment-la, no se assuste e nem deixe de meditar ou de enfrentar esses pensamentos diretamente; siga firmemente a sua meditao com a maior intensidade possvel, passando por esses pensamentos como se no fossem seus, pois esse o melhor modo de fazer-lhes frente.Voc deve terminar a meditao com esse pedido: Por Sua Paixo e inefvel bondade, livre-me dos meus inimigos, meu criador e libertador. Mas faa esse pedido sem dirigir a sua ateno ao inimigo, porque s a lembrana dele j um perigo. Alm disso, no tente deliberar se consentiu ou no com a tentao, porque, por baixo da aparncia de bem, esta uma tentativa do diabo de tirar-nos a paz e fazer-nos pusilnimes e desconfiados para nos tornar complacentes com ns mesmos. Por isso, se voc tiver certeza de no ter consentido nessas tentaes, basta dar uma breve explicao ao seu pai espiritual, ficando tranqila com o que ele disser, sem voltar a pensar mais no ocorrido. Mas exponha a ele com sinceridade qualquer pensamento, sem que lha impeam a vergonha ou o respeito humano; pois se necessitamos da humildade para vencer todos os nossos inimigos, com muito mais razo necessitamos dela pra vencer esse em especifico, j que este quase sempre um castigo nossa soberba.Quando o momento da tentao tiver passado, ainda que voc se sinta livre e resguardada, esforce-se para manter os objetos que a causaram o mais longe possvel da sua ateno, ainda que o desejo de virtude ou de qualquer outro bem a induzam a agir de maneira diversa, pois isso se trata de uma armadilha do demnio para nos precipitar para as trevas atravs de falsas luzes.

CAPITOLO XXO modo de combater a negligencia.

Para no cair na miservel escravido da negligencia, vicio que no s nos atrasa no caminho da perfeio, mas nos deixa nas mos dos nossos inimigos, voc deve evitar toda curiosidade, apego ou ocupao que no convm ao seu estado; tambm deve esforar-se para responder com prontido s boas inspiraes ou s ordens dos seus superiores, atuando no tempo e do modo que eles desejarem.Esforce-se para realizar imediatamente o que lha mandaram fazer, pois a primeira hesitao provoca a segunda, a segunda arrasta a terceira e assim sucessivamente, de modo que os sentidos cedem mais facilmente aos impulsos depois de j terem experimentado os prazeres numa primeira vez. por isso que a resistncia aos impulsos se torna mais pesada medida que repetimos os atos pecaminosos. Ento, esse vicio se forma a partir dessa reao lenta e pesada, que aumenta pouco a pouco, e cria o hbito da negligencia. E esse hbito toma tais propores que, quando percebemos, nos faz tomar propsitos de sermos mais solcitos e diligentes, pela vergonha com que ficamos de ns mesmos. Essa negligencia se alastra e alcana tudo, infectando no s a nossa vontade, fazendo com que qualquer trabalho a aborrea, mas tambm cegando a inteligncia, para que no veja quo vs e precrias se tornam as coisas, que deveriam ser feitas agora, quando deixadas para o futuro. Tambm no basta realizar com prontido o que deve ser feito, mas se deve fazer conforme o tempo que a natureza e qualidade da coisa exigem, com grande diligencia para que ela se torne perfeita.Pois fazer a coisa antes do seu tempo e conclu-las precipitadamente e de forma ruim, para poder descansar, no diligencia, mas a negligencia mesma.Esse grande mal ocorre por no considerarmos o valor da boa obra, realizada ao seu tempo e com o animo decidido a fazer frente ao cansao e dificuldade, que o maior desafio que a negligencia apresenta aos principiantes.Considere e reflita que at mesmo uma elevao da mente at Deus ou uma s genuflexo feita em Sua honra, vale mais do que todos os tesouros do mundo; que sempre que fazemos violncia em ns mesmos e a nossas ms inclinaes, os anjos nos trazem do Cu uma coroa de glria. Saiba tambm que as graas concedidas aos negligentes sempre so mal aproveitadas, enquanto que os diligentes sempre as aproveitam ao mximo. Se, no comeo, voc no suficientemente forte para buscar generosamente as dificuldades, voc deve faz-las parecer menores do que parecem aos negligentes. Suponha que para alcanar a virtude sejam necessrios muitos e repetidos atos e um duro esforo e que os inimigos que voc tem de vencer sejam muitos e fortes, ento, voc deve realizar essas aes como se tivesse pouco a fazer e como se elas fossem durar pouco para, ento, poder atacar seus inimigos um a um, como se no houvesse outros e com a confiana em Deus para saber que voc mais forte que todos eles. Se voc agir assim, a negligencia ceder pouco a pouco e voc encontrar a virtude.Tambm isso se aplica orao. Se o seu exerccio requer uma hora de orao e isso parece demasiado para a sua negligencia, comece como se ela fosse durar um quarto do tempo, e assim passe para o outro quarto, e para outro mais at o fim. Porm, se no segundo ou terceiro quarto voc sentir uma grande dificuldade, deixe o exerccio e no se canse excessivamente, mas depois de um pequeno tempo volte a ele.O mesmo mtodo serve para as nossas aes exteriores, quando se trata de fazer algo que parea muito difcil para a sua negligencia e que turbe a sua paz, nesses casos voc deve come-los tranquilamente e com deciso por uma delas, como se no tivesse mais nada para fazer e assim voc conseguir realizar todas elas com diligencia e com um esforo muito menor do que parecia sua negligencia.Se voc no agir assim, as dificuldades parecero to grandes que o vicio da negligencia prevalecer sobre voc, pois o cansao e a dificuldade, inerentes s aes virtuosas, lha deixaram ansiosa e inquieta em todos os momentos. Pois, ento voc ser atormentada constantemente pelos seus inimigos e t-los- a sua volta, gerando toda a espcie de mal, de modo que, mesmo nos momentos tranqilos, voc estar angustiada. Fique sabendo que o vicio da negligencia possui um secreto veneno. Ele roe e enfraquece a virtude, transformando-a em uma madeira roda pelo cupim, fazendo com que adquiramos hbitos cada vez mais viciosos, desgastando de forma imperceptvel o centro da nossa vida espiritual e permitindo ao demnio que atue livremente.Por isso, o que voc deve fazer pr-se em guarda, com a orao e boas aes; e no deixe para tecer o traje das bodas no dia em que deveria lev-lo para sair ao encontro do esposo; lembre-se tambm que quem lha promete a manh no promete a tarde, e quem lha d a tarde no assegura a noite. Aproveite, ento, todos os momentos do dia segundo o querer de Deus, como se no dispusesse de mais tempo, pois de cada um desses momentos voc h de prestar rigorosa conta.Por fim, lembre-se de considerar perdido o dia em, apesar de ter realizado muitas coisas, no tenha obtido repetidas vitrias contras as suas ms inclinaes e contra a sua prpria vontade, ou que no tenha dado graas muitas vezes ao Senhor por Seus favores, especialmente pela sua Paixo redentora, e pelo suave e paternal castigo que Ele concede ao faz-la digna do inestimvel tesouro de uma tribulao. Capitulo XXIO modo de governar os sentidos exteriores e utiliz-los como meios para a contemplao de Deus.

Para governar bem e fazer bom uso dos sentidos exteriores necessria uma continua ateno e um prolongado exerccio, pois o apetite, que quer se fazer senhor da nossa vontade, est excessivamente inclinado a buscar os prazeres e consolaes e, ao no consegui-los por si mesmo, se serve dos sentidos exteriores como seu fossem seus soldados, a fim de conseguir os seus objetos, cujas imagens se imprimem na alma para atra-la at si. Disso nasce o prazer que, dada a afinidade entre a alma e a carne, se espalha por todos os sentimentos capazes de tal deleite. De onde se segue que, tanto a alma quanto o corpo, sofrem um comum contgio que corrompe todo o ser. Esse o mal. Mas este o remdio: Procure no deixar seus sentimentos irem livres para onde quer que queiram e no se sirva nunca deles, se o que os movem um prazer e no um bom fim, ou a utilidade e a necessidade. Se, por descuido seu, eles se tornarem muito distantes, obrigue-os a retroceder e governe-os de modo que deixem de ser tristes escravos de vs consolaes e possam tirar proveito de cada um dos objetos para o bem da alma, no admitindo outros objetos que no possam elev-la do conhecimento das coisas criadas para a contemplao das grandezas de Deus, que poder ser feita da seguinte maneira.Quando algum objeto se apresentar a qualquer dos seus sentidos exteriores, separe da coisa criada o bem do esprito que h nela e pense que por si mesma ela nada tem do que captam os seus sentidos, mas que tudo que ela vem de Deus, que com Seu Esprito confere existncia, bondade e beleza e qualquer outra coisa que nela se encontre. Depois, alegre-se pelo fato de que seu Senhor seja causa e principio de tantas e to diversas perfeies das coisas, e que ele mesmo as possui eminentemente, no sendo essas mesmas coisas mais do que simples reflexos das perfeies dEle.Se voc se surpreender na contemplao das coisas nobres, tente reduzir com o seu pensamento essa criatura ao nada que ela , e ento fixe o olhar no supremo Criador que a esta deu o ser a ela e a mantm de forma to bela; e deleitando-se nele somente, diga: , ser de Deus, desejvel sobre todas as coisas! Que alegria que Voc seja o principio supremo de todo o ser criado!. E ao contemplar as arvores, plantas e coisas semelhantes lembre-se que a vida que elas tem no vem de si mesmas, mas do esprito invisvel, que o nico pleno de vida, e ento voc poder dizer: Esta a verdadeira vida na qual, por qual e para qual vivem e crescem todas as coisas! Que imensa alegria invade o meu corao!. O mesmo deve ser feito na contemplao dos animais; voc deve elevar sua mente a Deus, que lhes d sentido e movimento, dizendo: Causa das coisas que move tudo e que em si mesmo imvel, como me alegram sua estabilidade e firmeza!.E se a beleza das criaturas a seduz, separe o que v do que esprito e invisvel, ento, considere que tudo o que belo e irradia provm do esprito invisvel, causa da beleza exterior e da plenitude de gozo: Estas so rios da fonte eterna; so gotas do infinito mar de todo o bem. Que gozo pensar na eterna e imensa beleza que origem e causa de toda a beleza criada!.E quando descobrir em outro ser alguma bondade, sabedoria, justia e outras virtudes, voc pode fazer a separao que lha ensinei, e poder dizer a Deus: inesgotvel tesouro de virtudes! Quanto me alegro que s de Voc provenha todo o bem e, que frente s suas perfeies, tudo seja um nada! Graas, Senhor, por estes e por todos os bens concedidos ao meu prximo. Recorde-se, Senhor, da minha grande pobreza e necessidade de virtudes da pessoa X.Quando se dispuser a fazer alguma obra, pense que Deus a causa primeira daquela ao e que voc no nada mais do que um instrumento vivo em Sua mo; e, ento, elevando o seu pensamento at Deus, deve dizer: Supremo Senhor de tudo, que alegria imensa sinto ao no poder fazer nada sem Voc; e me sinto feliz que seja Voc o autor primeiro e principal de todas as coisas!.Quando estiver deleitando-se com uma comida ou bebida, considere que o gosto e sabor agradvel vm de Deus; e, deleitando apenas nEle, diga: Alegre-se, minha alma, pois como fora de Deus no h alegria verdadeira, s nEle poder deleitar-se ao deleitar as coisas (Flp 4,4)..E se tiver prazer ao sentir um aroma agradvel, no fique apenas com esse gosto, mas pense no Senhor, em Quem esse perfume tem origem, e diga, sentindo-se profundamente confortada: Eis, Senhor, que assim como me alegro que toda suavidade proceda de Voc, assim minha alma, nua e despojada de todo o prazer terreno, seja para Voc um agradvel perfume.Se voc ouvir uma harmonia de sons e cantos, eleve sua alma at Deus e diga: Meu Senhor e meu Deus, que deleite ter Suas infinitas perfeies no s juntas numa harmonia celestial, mas tambm junto com os anjos, com os cus e com todas as criaturas, executando um maravilhoso concerto!.

Capitulo XXIIComo as coisas sensveis podem nos ajudar na meditao do Verbo encarnado e no mistrio de sua vida e paixo.

Acima, eu mostrei como podemos, a partir das coisas sensveis, elevar nossa mente at a contemplao de Deus. Agora aprenda um modo de a partir dessas mesmas coisas para meditar o Verbo Encarnado, considerando os sagrados mistrios da Sua vida e paixo.Todas as coisas do universo podem servir a esse fim, se voc consider-las em Deus, que a causa primeira e nica e que compartilha parte do seu Ser, beleza e grandeza com elas.Ento, voc deve considerar quo grande e imensa a Sua bondade, pois, sendo o nico principio de tudo, ainda assim quis rebaixar-se tanto que se fez homem, e foi castigado e morto pelos homens, permitindo que eles se armassem contra Ele para crucific-lO.So muitas as coisas que pem sobre os olhos da mente esses santos mistrios: armas, cordas, aoites colunas, espinhos, cravos, martelos e outras coisas que foram instrumentos da paixo.Uma pobre habitao pode nos lembrar do estbulo e prespio do Senhor. A chuva evoca aquela gota de sangue divino que, no Horto, regou a terra a partir do Seu santssimo corpo. As pedras nos recordam as que no momento da Sua morte se racharam. A terra nos faz sentir o tremor que se experimentou aquele dia; e o Sol, as trevas que o obscureceram (Mat 27,51; Mc 15,38; Luc 23,44) ; e ao ver as guas, recordaremos daquela que brotou das suas costelas (Jo 19,29); e assim com tantas outras coisas semelhantes.Ao provar o vinho ou outra bebida, recorde o vinagre e o fel que deram ao Senhor; se for deleitar a suavidade dos aromas, pense no fedor dos corpos mortos que Ele sentiu no Calvrio; ao vestir-se, lembre-se do Verbo Eterno, que se vestiu de carnes humanas para que possamos nos vestir com a divindade; ao desnudar-se, pense no Cristo nu para ser aoitado e cravado na cruz por voc; e, ao ouvir vozes e gritos, recorde-se daquelas abominveis vozes: Crufica-O! Crucifica-O! (Jo 19,6), que estremeceram os Seus ouvidos; e, cada vez que oua tocar o relgio, recorde-se daquele angustioso palpitar do corao que sentiu Jesus, quando no Horto comeou a sentir o terror ante a paixo e a morte que se avizinhavam; ou pense que ouve os secos golpes com que Lhe cravaram na cruz.Em toda ocasio que sentir tristeza ou se apresentarem sofrimentos, prprios ou alheios, recorde-se que no so nada se comparados com as indizveis angustias que transpassaram e atormentaram o corpo e a alma do seu Senhor.

Capitulo XXIIIOutro modo de governar nossos sentidos conforme as diversas situaes que se apresentam.

Acabamos de ver como se eleva o conhecimento das coisas sensveis at as coisas de Deus e aos mistrios do Verbo Encarnado. Mencionarei agora outros meios de relembrar temas para a meditao para que, sendo muitos e diferentes os gostos das almas, tenham tambm muitos e variados manjares. Isso pode ser proveitoso no s s pessoas sensveis, mas tambm para as mais perspicazes e as que esto mais adiantadas na vida espiritual, pois o esprito no est igualmente disposto para as mais altas especulaes.No tenha medo de enredar-se em to grande variedade de coisas, com a condio de que se ajuste regra e discrio e ao conselho alheio, que voc deve seguir com humildade e confiana no s nesta, mas em todas as advertncias que lha darei.Ao contemplar a infinidade de coisas agradveis e preciosas que existem na terra, voc deve consider-las vis e desprezveis se comparadas com as riquezas celestes. Aspire ardentemente a essas, desprezando o mundo. Olhando o Sol, pense que sua alma mais bela e brilhante quando est em graa com o Criador, do contrrio, considere-a mais obscura e abominvel que as trevas do inferno. Elevando os olhos ao cu que a envolve, penetre com os olhos da alma mais acima e permanea com o pensamento ali, no lugar que tem preparado como morada eterna eternamente feliz, se voc vive honradamente na terra. Ao escutar os assobios dos pssaros ou outros cantos, eleve sua mente aos cantos do paraso, onde ressoa uma interminvel Aleluia, e ento pea ao Senhor que faa de voc digna de estar sempre junta aos espritos celestiais.Quando voc perceber que tomou gosto pela beleza de uma criatura, concentre seu intelecto na idia de que por trs dela se esconde a serpente infernal, sempre se emboscando para mat-la ou para lha fazer qualquer mal. Voc deve, ento, dizer a ela: Esta ai, maldita serpente, pronta a me devorar. E assim voc deve dirigir-se a Deus: Bendito seja, meu Deus, que descobriu o meu inimigo e me livrou da sua enganosa face. E, pelas chagas do Cristo crucificado, fuja imediatamente da seduo, fixando nelas a sua mente e considerando o que sofreu o Senhor em Sua carne para livr-la do pecado e fazer-lha odiosos os prazeres da carne. Mas h outro modo de escapar dessa perigosa seduo, que aprofundar a idia de como ser aquele objeto que tanto deseja depois da morte.Ao caminhar, recorde-se a cada passo que voc se aproxima da morte. Ao ver os pssaros voarem e o correr da gua, pense com que velocidade corre sua vida at o fim. Quando o vendaval ruge ou quando o relampeia ou troa, imagine-se tremendo no dia do juzo e, rezando a Deus, pea que Ele lha conceda a graa para preparar-se para aquele dia.Na infinidade de coisas que podem acontecer a voc, exercite-se assim.Por exemplo, quando voc se sente oprimida por alguma dor ou melancolia, ou sofre calor ou frio, ou qualquer outra coisa, eleve sua mente at a vontade de Deus que, por seu bem, quis que em tal tempo e em tal medida experimentasse esses desgostos. Assim, contente pelo amor que Deus lha mostra e pela oportunidade de servir no que mais O agrada, voc deve dizer, no corao: Esta se cumprindo a vontade de Deus, que desde a eternidade disps com amor que eu suporte agora esse contratempo. Que por isso seja sempre louvado o meu Senhor!. E, se na sua mente, aflora algo bom, dirija-se a Deus em seguida e reconhea que vem Dele e agradea.Quando estiver lendo, faa como se visse o Senhor por baixo dessas palavras e receba-as como se viessem da Sua prpria boca.Se voc estiver contemplando a santa cruz, pense que o estandarte do seu exrcito: se o perde de vista, poder cair nas mos de cruis inimigos; se o segue, chegar ao cu com um glorioso botim.Ao ver a querida imagem da Virgem Maria, levante o corao Rainha dos cus e d graas a ela por estar sempre aberta vontade de Deus, por haver engendrado, amamentado e alimentado o redentor do mundo e por sempre nos ajudar com favores no nosso combate espiritual.As imagens dos santos devem representar para voc todos esses campees que, lutando valorosamente, lha abriram o caminho. Avanando por esse caminho, voc tambm ser coroada de glrias eternas com eles. E quando voc ver alguma igreja deve lembrar que a sua alma o templo de Deus e que, sendo Sua casa, voc tem de ment-la limpa e brilhante.Em qualquer dos trs toques do ngelus, voc pode fazer estas breves consideraes, antes de cada uma das deliciosas invocaes que se devem fazer. Ao primeiro toque, d graas a Deus pela Ajuda que enviou do Cu terra para a nossa salvao. Ao segundo toque, alegre-se com a Virgem Maria pela sua grandeza, grandeza a qual foi elevada pela sua profundssima humildade. Ao terceiro toque, junto com a veneranda Me e o anjo Gabriel, o menino que acabou de ser concebido. No se esquea de inclinar levemente a cabea a cada toque, e um pouco mais profundamente no ultimo.Estas consideraes, distribudas segundo os trs toques, servem para todos os tempos. As seguintes so prprias para a tarde, a manh e o meio dia e se referem paixo do Senhor, pois nosso dever recordar os padecimentos que Nossa Senhora sustentou por causa da Paixo. Seriamos ingratos se no o fizssemos.Ao entardecer, invoque as angustia da Virgem pura ante o suor de sangue, a priso no Horto e as dores ocultas do seu bendito Filho durante aquela noite. Ao amanhecer, acompanhe ela nos sentimentos e aflies dEle diante da apresentao a Pilatos e a Herodes, pela sentena de morte e por ter de levar a cruz nas costas. Ao meio dia, coloque seu pensamento na espada de dor que atravessou o corao da Sua desconsolada me pela crucificao e morte do Senhor e pela cruel lana atravessada nas Suas costelas.Voc pode fazer essas meditaes das dores da Virgem Maria desde a tarde de quinta-feira at o meio dia de sbado, e as outras nos outros dias. Isso depender da sua particular devoo e das oportunidades que lha oferecero as circunstancias exteriores .Para resumir, enfim, a maneira com que voc deve governar os seus sentidos estar desperta, para que em qualquer acontecimento, voc se veja movida e atrada no pelo apego ou dio das coisas, mas apenas pela vontade de Deus, abraando ou aborrecendo-se somente com os que Deus quer com que voc se aborrea.Mas eu a advirto que no propus esses modos de governar os sentidos para que se preocupe com eles, pois o importante que tenha a mente recolhida em Deus, que quer de voc a vitria sobre seus inimigos e paixes, atravs da prtica das virtudes. Eu ensinei essas coisas somente para que voc saiba governar-se nas ocasies quando lha fizerem falta outros meios. Mas voc deve ter cuidado, pois esses exerccios, ainda que bons em si mesmos, podem levar ao amor prprio, confuso e a tentaes do demnio.

Capitulo XXIVO modo de governar a lngua.

A lngua do homem tem grande necessidade de ser regulada e mantida a freio, porque possui uma grande inclinao a correr e discorrer sobre o que mais deleita os nossos sentidos. O falar de mais geralmente tem sua raiz na soberba, com a qual, convencidos de saber muito e convencidos de nossas idias, nos esforamos vrias vezes para gravar na mente dos outros, colocando-nos como professores, com quem os outros tm de aprender.No se pode dizer com poucas palavras os danos que acarretam o falar demasiado. A loquacidade a me da negligencia, cheia de ignorncia e puerilidade, porta da distrao, provedora da mentira e inibidora da devoo e do fervor. O muito falar da foras s paixes viciosas e logo a lngua se sente cada vez mais tentada a continuar no seu falar indiscreto. No prolongue suas falas em prolixos raciocnios com quem lha escuta com desgosto, afim de no molestar essa pessoa, e faa o mesmo com quem gosta de escut-la, para no exceder os limites da modstia.Evite falar com nfase e com gritos, pois as duas coisas so indcios de presuno e vaidade. No fale nunca de si mesma, nem das suas coisas, nem dos seus, se no obrigada pela necessidade; e, se tal o caso, faa com a maior brevidade e conciso possvel. E quando parecer a voc que algum fala demasiado, no a julgue desfavoravelmente, mas tambm no a imite, ainda que suas palavras sejam de humilhao e auto-acusaro. Tampouco voc deve falar do seu prximo ou de suas coisas, se no para elogi-lo quando a ocasio requeira.De Deus, se deve falar com gosto, especialmente da sua bondade e amor. Porm fale com o temor de quem no pode se equivocar e prefira escutar com ateno quando o outro fala, conservando as palavras dele no fundo do seu corao. De outros temas, deixe que s o som repercuta nos seus ouvidos, enquanto eleva a mente ao Senhor. E quando se v obrigada a escutar o que falam para poder responder, no deixe de dirigir um olhar ao Cu, onde habita Deus, admirando Sua grandeza, que no deixa de amar a sua pequenez (Lc 1,48).Examine bem as coisas que o corao lha dita, antes que passem para a lngua, e voc perceber que prefervel que muitas delas no saiam. Alm disso, das muitas coisas que voc cr ser convenientes dizer, seria melhor deix-las sepultadas no silencio. E isso voc descobrir depois de passado o momento de diz-las.Voc deve saber tambm que o silencio uma grande fortaleza na batalha espiritual e uma garantia segura de vitria. O silencio amigo de quem desconfia de si mesmo e confia em Deus, guardio da autentica orao e uma magnfica ajuda no exerccio das virtudes.Para acostumar-se a ficar calada, voc deve considerar os danos e perigos da loquacidade e as grandes vantagens do silencio. Tome amor por esta virtude, cale-se oportunamente mesmo quando no seria mal falar, pois isso no gera prejuzos a voc e aos outros. Fazendo isso voc no ter por companheiros os homens, mas sim os anjos, santos e o Deus mesmo. Finalmente, lembre-se do constante combate que voc tem em mos e do quanto falta para alcanar a perfeio nessa virtude, isso lha dar fora para evitar o imoderado falar.

Capitulo XXVPara combater o inimigo, o soldado de Cristo deve escapar da inquietude e turbao do corao.

Quando se perde a paz do corao, deve-se fazer de tudo para recuper-la, e no nada no mundo que valha a pena de perder essa paz. Na verdade, devemos nos condoer dos nossos pecados, mas esse deve ser um arrependimento cheio de paz, como eu j disse mais de uma vez. E ento, sem perder a serenidade, com o sentimento de caridade, voc deve ter compaixo de qualquer pecador e at chorar interiormente por ele, mas livre de qualquer perturbao da alma.Enquanto que com os outros acontecimentos graves e dolorosos, como enfermidades, feridas, mortes, pestes, guerras, incndios e outros males semelhantes que as pessoas do mundo temem mais do que tudo, podem ser para ns, ajudados pela divina graa, algo desejado e digno de agradecimento, por ser uma reparao aos maus e uma ocasio para praticar virtude, para os bons. So estes os motivos porque Deus Nosso Senhor os permite, de modo que se fossemos dceis a Sua vontade, passaramos serenos e imperturbveis pelas amarguras desta vida. Convena-se de que qualquer inquietude nossa Lhe desagrada pois, qualquer que seja a sua origem, sempre acompanhada de imperfeio e sempre procede do amor prprio.Por isso, bom que voc esteja sempre em guarda para que, sempre que haja algo que possa perturb-la ou faz-la perder a paz, voc tenha sempre em mos as armas necessrias para se defender e possa considerar que esses males no so, no fundo, verdadeiros males, nem podem tirar-nos os bens verdadeiros, ainda que parea que sim.Tenha em mente que Deus ordena e permite tudo para os fins expostos ou para outros que no conhecemos, mas que so, sem dvida, muito santos e justos. Ento, ao manter a alma tranqila em qualquer acontecimento, por adverso que seja, voc far um grande bem.Tenho de dizer, alm disso, que enquanto o seu corao se encontra desassossegado, fica exposto a todo tipo de ataques dos inimigos e, nessa situao, ns somos incapazes de discernir o caminho correto e seguro das virtudes.Nosso inimigo, que odeia visceralmente esta paz, lugar onde habita o esprito santo para fazer as Suas maravilhas, se esfora para nos derrubar por baixo de bandeiras amigas, servindo-se de diversos desejos aparentemente bons. Mas podemos discernir a bondade desse desejo, pois se ele turba a nossa paz, no algo bom. Se voc quer evitar o desastre, deve evitar que o desejo abra as portas do seu corao, sem antes apresent-lo a Deus, livre de todo prejuzo e vontade, confessando a sua cegueira e ignorncia e pedindo-Lhe com insistncia que Lha permita ver com Sua luz se provm dEle ou do inimigo. Alm disso, recorra sempre ao conselho do seu pai espiritual.Ainda que o desejo provenha de Deus, procure mortificar a sua excessiva vivacidade, pois suas aes, antecedidas dessas mortificaes, agradaram muito ao Senhor. Assim, afugentando de si os maus desejos e no realizando os bons sem antes haver reprimido os estmulos naturais, voc manter a paz e resguardar a fortaleza do seu corao.E se voc quer mant-la numa paz total, deve defend-la inclusive de algumas repreenses prprias. Pois muitas vezes um truque do demnio, fazer com que nos acusemos de alguma coisa, para parecer que essa acusao veio de Deus. Para discernir isso, voc deve se perguntar se essas repreenses humilham voc e a tornam mais diligente na prtica do bem e se no lha tiram a confiana em Deus, nesses casos voc pode receb-las como graa de Deus. Mas se elas a confundem e a tornam mais pusilnime e negligente com o bem, tenha por certo que procedem do inimigo; nesses casos no ligue para elas e siga com os seus exerccios.Mas como, alm de tudo o que eu disse, a inquietude do nosso corao nasce das contrariedades que nos sucedem; para defender-se dos seus ataques voc deve fazer duas coisas:Ver e observar a quem so contrrios esses acontecimentos, se ao esprito ou ao amor prprio e aos prprios caprichos. Se forem contrrios a estes, voc no deve cham-los de contrariedades, mas sim de favores e graas de Deus, e receb-los com o corao alegre e agradecido. Se forem contrrias ao esprito, nem por isso voc deve perder a paz no corao, como veremos mais adiante.Voc tambm deve elevar a sua mente at Deus, aceitando tudo, com olhos fechados, o que a mo de Deus prover, como algo pleno de bens que voc, no momento, no capaz de perceber.

Capitulo XXVIO que devemos fazer quando somos feridos.

Quando voc se sentir ferida por ter cado em algum pecado pela sua debilidade ou pela sua malicia, no desanime e nem se inquiete por isso. Dirija-se imediatamente a Deus e diga: Eis aqui, meu Senhor, como me comportei segundo a minha natureza, de mim no se pode esperar mais que tropeos. Depois dedique um tempo a humilhar-se aos seus prprios olhos, doa-se pela ofensa feita ao Senhor e mova-se com desdm pelas paixes que lha causaram tropeo. E depois continue: No teria parado por aqui, meu Senhor, se no tivesse sido socorrida pela sua bondade. Depois, de graas ao Senhor e ame-O mais do que nunca, admirando a Sua bondade, j que ainda que voc O tenha ofendido, Ele guardou voc em Suas mos para que no caia de novo.E com uma confiana imensa em sua divina misericrdia, diga: Aja, Senhor, segundo o que Voc , perdoando-me e no permitindo que jamais eu me separe ou me afaste e nem Lhe ofenda!. Feito isso, no fique pensando se Deus a perdoou ou no, pois isso soberba, desassossego, perda de paz e um truque do demnio sob a aparncia de bons pretextos. Abandone-se, pois, s compassivas mos de Deus e continue os seus exerccios como se nunca tivesse cado. E se voltar a cair vrias vezes ao longo do dia, e se sente ferida no combate, faa o que eu digo, com a mesma confiana, na segunda, na terceira vez e inclusive na ultima mais do que na primeira; e, depreciando-se cada vez mais a si mesma e odiando cada vez mais o pecado, esforce-se para agir de maneira mais prudente.Essa pratica desagrada muito ao demnio, porque ele sabe bem como agrada a Deus ver derrotado