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Universidade do Vale do Itajaí Centro de Educação Superior de São José Curso de Relações Internacionais O conceito de Estado nas Relações Internacionais: da crítica de Fred Halliday à perspectiva de Pierre Bourdieu Artigo científico apresentado à banca examinadora do curso de Relações Internacionais como parte das exigências para a obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais, pela Universidade do Vale do Itajaí. Orientador: Prof. MSc. Paulo Jonas Grando Amanda Carolina da Silva São José, dezembro de 2008.

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Universidade do Vale do Itajaí Centro de Educação Superior de São José Curso de Relações Internacionais

O conceito de Estado nas Relações Internacionais: da crítica de

Fred Halliday à perspectiva de Pierre Bourdieu

Artigo científico apresentado à banca examinadora do curso de Relações Internacionais como parte das exigências para a obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais, pela Universidade do Vale do Itajaí.

Orientador: Prof. MSc. Paulo Jonas Grando

Amanda Carolina da Silva

São José, dezembro de 2008.

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Resumo

O presente artigo discute o conceito de Estado nas Relações Internacionais (RI) e, sobre este assunto, introduz a perspectiva de Pierre Bourdieu. Constatam-se vários problemas nas teorias vigentes que, agregados às peculiaridades desta área específica das ciências sociais, fazem das RI uma disciplina essencialmente pluri-teórica. Não existe um paradigma hegemônico, e pode-se dizer que as teorias vigentes costumam ser excessivamente generalistas, ou excessivamente reducionistas. Visando contribuir na discussão, este artigo opta por explorar uma teoria relativamente jovem para este âmbito – a teoria construtivista – na perspectiva de Pierre Bourdieu. O pressuposto utilizado é o de que o conceito de Estado utilizado nas teorias tradicionais das RI negligencia fatores importantes e, por isso, merece uma análise teórica mais criteriosa, e de que, também, teorias alternativas às tradicionais precisam ser exploradas. A perspectiva de Pierre Bourdieu pode contribuir para as RI na medida em que representa uma perspectiva diferente sobre antigos problemas desta área, pois este autor argumenta que as teorias estão em uma luta pela posse do poder simbólico do campo, e algo análogo ocorre com as relações que os atores/agentes produzem no sistema internacional. As idéias deste autor contribuem para compreender e explicar o campo – no qual os atores ou agentes entabulam relações – que, no mercado de bens simbólicos, são produzidas para dominar e/ou se colocar em posição favorável em diferentes contextos e/ou questões. Por esta perspectiva é possível, também, analisar a articulação dos agentes das RI para a manutenção de um sistema de violência simbólica imperceptível e, por isto, eficiente, para produzir significados, valores e cursos de ação.

Palavras chave: Estado; Conceito; Relações Internacionais

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Abstract

The present article discusses the concept of State in International Relations (IR) and, on this issue, introduces Pierre Bourdieu’s perspective. Several problems are observed in the existing theories which, aggregated to the peculiarities of this specific area of social sciences, make the IR an essentially multi-theoretical subject. There is not a hegemonic paradigm, and we could say that the existing theories use to be excessively generalist or too reductionist. Aiming to contribute for such discussion, this article chooses exploring a relatively young theory for this context — the constructivist theory – under Pierre Bourdieu’s view. The assumption used here is the one where the concept of State used in the traditional IR theories neglects important factors and, for this reason, it deserves a more careful theoretical analysis; and also, that alternative theories to the traditional ones need to be explored. Pierre Bourdieu’s perspective can contribute to the IR, since it represents a different perspective on old problems of this area, as this author argues that the theories are in a strugle for the possession of the symbolic power of the field, and something similar happens to the relations that the actors/agents create in the international system. This author’s ideas help understanding and explaining the field, in which the actors or agents hold relations, which are produced in the market of symbolic goods to master and/or be put in a strong position in different contexts and/or issues. By this perspective it is also possible to analyze the articulation of the agents of IR for the maintenance of a symbolic violence system, imperceptible and so efficient, to produce meanings, values and courses of action. Key words: State; Concept; International Relations

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O conceito de Estado nas Relações Internacionais: da crítica de Fred Halliday à perspectiva de Pierre Bourdieu

Amanda Carolina da Silva

Sumário: Introdução; Considerações acerca do conceito de Estado e seu uso nas Relações Internacionais: uma breve ilustração teórica; O conceito de Estado sob a perspectiva realista; O conceito de Estado sob a perspectiva idealista; O Estado marxista nas Relações Internacionais; A deficiência teórica para interpretar o Estado no campo das RI: a crítica de Fred Halliday; A insuficiência do conceito de Estado; A necessidade de avançar na conceituação de Estado; A perspectiva de Pierre Bourdieu para pensar o Estado nas RI; O construtivismo de Pierre Bourdieu; A contribuição de Pierre Bourdieu para o conceito de Estado nas RI; Considerações finais; Referências bibliográficas. Introdução

O presente artigo tem como objeto de pesquisa o conceito de Estado utilizado nas

RI, e o discute a partir da contribuição de Pierre Bourdieu1. Tal estudo implica,

primeiramente, em analisar os conceitos advindos das teorias vigentes e, neste sentido, a

crítica de Fred Halliday auxilia na observação das insuficiências conceituais. É fato que o

conceito de Estado sempre esteve presente nos debates acadêmicos e, na busca por

melhorar seu potencial explicativo, várias teorias foram produzidas. Algumas destas

conquistaram destaque nas RI, como as teorias realista, idealista, marxista,

interdependentista e, atualmente, a construtivista. Nota-se que o conceito de Estado é

disputado por uma série de correntes teóricas, pois, afinal: “O Estado é o ator proeminente

na política mundial, e as Relações Internacionais são, principalmente, as interações entre

Estados” (JACKSON, SORENSEN, 2003).

Devido à importância do Estado e à relevância deste debate conceitual para entender

e prever sua articulação no cenário internacional, é necessário um conceito que coadune a

abstração proveniente da teoria e ainda seja satisfatório para interpretar os fenômenos do

plano concreto. Neste sentido, Fred Halliday (2007) constata que as RI, como todas as

ciências sociais, são influenciadas por três círculos concêntricos: a) mudança no debate

dentro da disciplina; b) impacto do desenvolvimento mundial; e c) influência de novas

idéias na área das ciências sociais. Um conceito de Estado funcional deve ser flexível para

dar conta destes aspectos e, também, deve-se ter clareza de que as RI sofrem influência das 1 A autora agradece ao Dr. Christian G. Caubet e à Msc. Alessandra Marchioni P. da Cunha, pelas sugestões de leitura e todas as frutíferas discussões durante o grupo de estudos.

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disputas interparadigmáticas, embora o meio científico tente omiti-las por medo de perder o

prestígio intelectual.

Este artigo parte do pressuposto de que o conceito de Estado utilizado nas RI é

insuficiente, devido a uma série de problemas, como os de orientação ideológica, ou

àqueles ligados à perspectiva funcionalista. Por isso, buscar perspectivas advindas de outras

áreas das ciências humanas (neste caso da sociologia) pode agregar mais esclarecimento

sobre o Estado para ser apreendido pela própria disciplina de RI. Neste sentido, a tentativa

de utilizar as idéias de Pierre Bourdieu para se pensar o Estado nas RI representa uma

alternativa que pretende contribuir para entender a pluralidade de sentidos deste conceito.

Para discutir o conceito de Estado, segundo a perspectiva adotada, o artigo está

dividido em três partes. Na primeira observa-se o conceito de Estado fornecido pelo

realismo, marxismo e idealismo, e aponta suas principais contribuições para entender este

ator no campo das RI; a segunda seção procura demonstrar as deficiências do conceito,

segundo a crítica de Fred Halliday; na terceira parte, são utilizadas as críticas do conceito

de Estado apontadas por Halliday para refletir sobre a perspectiva de Pierre Bourdieu, a fim

de apontar como este último autor pode contribuir para identificar novos sentidos para o

conceito de Estado no campo das RI, sendo este o objetivo central do artigo.

1. Considerações acerca do conceito de Estado e seu uso nas Relações Internacionais: uma breve ilustração teórica

Nas RI, tanto o conceito como a instituição Estado, sendo este um ator fundamental,

são extremamente importantes. O âmbito internacional é composto por vários sujeitos e,

neste artigo, entende-se que sujeito é “entidade jurídica que goza de direitos e deveres

internacionais e possui a capacidade de exercê-los” (ACCIOLY, 2002, p. 81). Sobre o

colocado, conclui-se que os principais sujeitos das RI são: o Estado e as Organizações

Internacionais, sendo que o segundo tem personalidade jurídica derivada do primeiro.

Sendo o Estado tão importante para as RI, se não é possível definir teoricamente de forma

coerente quem ou o que é o Estado na disciplina, como teorizar acerca da sua atuação no

sistema internacional?

Fred Halliday coloca que as RI são, basicamente, os resultados da interação entre

Estados, relações não-estatais e a operação do sistema — composto pelas relações entre

Estado e sociedade — e que todas as teorias existentes deveriam abordar estas relações.

Decorrente da evolução da disciplina, um largo debate acerca da pluralidade de teorias e de

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conceitos de Estado é evidenciado nesta área. A priori, isto acontece porque várias

perspectivas ideologicamente orientadas são uma tendência de todas as áreas das ciências

sociais e, sendo perspectivas ideológicas, eventualmente se convertem no que é conhecido

como “senso comum teórico”, consistente em uma visão que, mesmo teórica, não

demonstra nada além de uma perspectiva parcial e cientificamente comprometida a respeito

de determinado objeto que, neste caso, é o Estado. Por conseqüência, sejam os conceitos

marxista, realista ou idealista, ao serem aplicados ao caso prático, não servem totalmente

para descrever determinados fenômenos relacionados com a atuação do Estado, isso por

somente observarem os fenômenos sob determinada perspectiva teórica e/ou ideológica.

1.2 O conceito de Estado sob a perspectiva realista

A teoria realista tem sua origem na filosofia política de Tucidites, Maquiavel e

Hobbes, entre outros — o chamado realismo clássico — a partir das idéias centrais de

contrato social, razão de Estado e de equilíbrio de poder. No campo das RI, o “realismo

político” de Hans J. Morgenthau é um exemplo da influência desta escola. A visão realista

é Estado-cêntrica: o Estado é o ator proeminente no âmbito internacional e, na busca pela

sua soberania e independência, o desejo pelo poder tende a permear as ações dos Estados

no cenário internacional.

As premissas básicas do realismo político de Hans Morgenthau são importantes para

traçar o conceito de Estado realista: 1. A sociedade é regida por leis naturais, independentes

da vontade humana, o realismo considera estas leis para desenvolver uma teoria racional; 2.

Os interesses são definidos em termos de poder, sendo este o objeto que motiva as relações

entre os Estados, e criam a universalização do conceito de interesse; 3. As ações do Estado

são produto de interesses, que se modificam segundo cada momento histórico; 4. Os

princípios morais cotidianos não podem ser aplicados aos atos dos Estados (em sua forma

abstrata), por isso a moral não pode constituir obstáculo para ações políticas; 5. As

aspirações morais de uma nação em particular não se identificam com os preceitos morais

universais; 6. A autonomia da esfera política, é sustentada somente por fatores políticos

(MORGENTHAU, 2003, p. 3 - 28).

Estes preceitos básicos compõem a perspectiva de Morgenthau e representam a

construção da teoria realista nas RI. Em contrapartida, os realistas discordam entre si sobre

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os preceitos realistas, o que implica em uma disputa para definir a perspectiva mais

apropriada desta teoria, ou seja, a interpretação que será aceita pela comunidade científica.

A respeito desta perspectiva, Raymond Aron, em sua obra Paz e Guerra entre as

Nações, tece uma série de críticas ao realismo político de Morgenthau. Estas críticas se

concentram, principalmente, nas idéias centrais de poder e interesse nacional como sendo

únicos objetos racionais que definem a atuação dos Estados. Neste sentido, Aron observa a

seguinte afirmação de Morgenthau: “Como a aspiração ao poder é o elemento característico

da política internacional, como de qualquer modalidade da política, a política internacional

é necessariamente política de poder” (apud, ARON, 2002, p. 723). Do exposto, a

observação de Aron é de que, para Morgenthau, a política internacional perde sua

originalidade, pois, se interna e externamente o Estado é movido pelo poder, Aron

argumenta com a seguinte pergunta: por que a guerra não desaparece do cenário

internacional como ocorre internamente?

A diferença de Aron e Morgenthau é essencialmente relacionada à perspectiva

distinta que os dois possuem a respeito do papel do poder para os Estados nas RI. Para

Morgenthau o desejo pelo poder (ou potência), bem como o interesse nacional, são os

elementos que motivam a atuação do Estado nas RI. Em contrapartida, para Aron o poder é

elemento básico para se alcançar qualquer empreendimento em qualquer meio, ou seja, este

é apenas a maneira de se alcançar “algo” que depende da necessidade de cada Estado. Ele

considera a diversidade de interesses e, conseqüentemente, de estratégias e diplomacia

praticadas, e ilustra esta idéia na seguinte frase: “As diferenças de grau são tais que basta

um Napoleão ou um Hitler para que o curso da história altere-se em favor de circunstâncias

revolucionárias” (ARON, 2002, p. 724). Neste sentido, para Aron, resumir todos os

interesses dos Estados em um único (o poder), seria simplista.

Aron (op. Cit, p. 713) ainda ilustra que “[se] a soberania autêntica pode ser definida

pelo direito efetivo de recorrer às armas, só o Estado poderoso é autenticamente soberano e,

portanto, um Estado genuíno.” Isso demonstra que, para o realismo, o poder e a força são os

principais mecanismos para se garantir a soberania e, neste sentido, todo Estado almeja ser

uma “grande potência”. A percepção do exercício do poder como meio de sobreviver no

ambiente internacional, está vinculada à possibilidade de todos os Estados participarem das

RI de forma soberana, tendo, em tese, os mesmos direitos que os atores mais poderosos.

Em última análise, Aron ilustra que, quando um realista se converte em um formulador

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teórico, é necessário definir todas as noções rigorosamente. E, neste sentido, ele observa

que Morgenthau deixa ainda algumas dúvidas.

O Estado realista, enquanto ator central, busca autonomia política na esfera

internacional, e atua para modificar ou manter políticas de status quo sendo que, para isto,

necessita de poder para viabilizar seus interesses. As ações do Estado são políticas e têm

um fim político, e para isso precisam ser racionais. Neste sentido, moral, crenças e

preferências ideológicas, bem como as leis naturais (ou paixões humanas), não podem

permear as ações deste Estado. Este Estado racional observa, principalmente, seu

compromisso com a segurança e o bem-estar da nação, pois atuar nas RI de forma

satisfatória (tendo em vista produzir benefícios para a nação), implica em garantir a

soberania deste ator a todo custo; é por isso que a guerra é um meio de atuação, na esfera

internacional, a ser considerado, bem como as alianças, com vistas a proporcionar

equilíbrio de poder. O Estado realista não é a favor ou contra a guerra, mas considera que o

âmbito internacional é naturalmente anárquico, devido à divergência de interesses dos

atores.

Através dos preceitos contidos na teoria realista, é possível definir um Estado que se

orienta por este viés, como um ator central do sistema internacional, que prioriza povo,

território, poder e soberania. Este ator ainda considera que o cenário internacional é dotado

de certa anarquia, pela falta de um órgão capaz de controlar a conduta dos atores, onde

existem objetos de desejo que despertam o interesse geral. Isso resulta em um clima de

desconfiança, que é levado em consideração na atuação do Estado. E, devido a isso, este

ator traçará estratégias no sentido de acumular poder, pois este elemento é necessário para

obter êxito em suas relações externas. Para tal fim, as alianças são uma via a ser

considerada, bem como a guerra. É fato que, por vezes, o uso de força beligerante será a

alternativa utilizada e, neste caso, cada Estado considera, principalmente, a potencialidade

bélica, econômica e tecnológica. Para ilustrar o Estado realista no plano concreto, destaca-

se como exemplo o período do governo norte-americano em que Theodore Roosevelt foi

chefe de Estado (1901- 1909). Conhecido por sua política do Big Stick2 e pela construção

do canal do Panamá, nestes dois pontos de sua gestão observa-se claramente a orientação

realista, com o propósito específico de viabilizar a acumulação de poder para assegurar o

expansionismo norte-americano.

2 “Big Stick” significa: “grande porrete”. Esta expressão caracterizou o estilo de diplomacia utilizado por Theodore Roosevelt.

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1.3 O conceito de Estado sob a perspectiva idealista

O idealismo moderno tem sua base de existência fundada no idealismo clássico, nas

idéias de Thomas More, Emmanuel Kant e Rousseau. As premissas básicas que regem o

idealismo no campo das RI compõem a chamada “bíblia idealista” de Woodrow Wilson3,

pois ele foi o principal precursor destas idéias. Estas premissas, segundo Gilberto Sarfati

(2007), são as seguintes: 1. Extinção da chamada “diplomacia secreta”; 2. Livre navegação

em tempos de paz e guerra; 3. Livre acesso aos mercados (suspensão de barreiras); 4.

Desarmamento, tanto quanto possível; 5. Resolução dos problemas das colônias, bem como

respeito aos colonizados; 6. Re-estabelecimento de territórios ocupados; 7. Independência

dos territórios; 8. Criação de uma sociedade das nações que patrocine a independência e

segurança dos povos (SARFATI, 2005). Os pontos propostos pelo presidente norte-

americano Wilson serviram como a primeira possibilidade concreta para os Estados

atuarem no cenário internacional de forma cooperativa.

Norman Angell (2002) demonstra outro ponto de vista idealista, destinado a analisar

a possibilidade de se extinguir a guerra nas RI. A obra citada é rica em argumentos e

motivos plausíveis para isso. Em A Grande Ilusão, o autor demonstra que a guerra é

antieconômica e, portanto, os Estados deveriam se concentrar no comércio e em fomentar a

democracia. A visão de Angell ilustra que o recurso à guerra se converte em seleção

natural:

[...] o campeão da virilidade não tarda em evocar a lei do conflito. Os ensinamentos do século XIX sobre a evolução da vida no planeta contribuem para apoiar essa filosofia da luta pela vida. A sobrevivência dos mais capazes, a extinção dos mais fracos, a lei de que toda vida consciente e inconsciente é marcada pela luta, - tudo isso desfila diante dos nossos olhos. O sacrifício imposto pelos armamentos é o preço pago pelas nações por sua segurança e seu poder político (ANGELL, 2002, p. 4).

A presente afirmação serve como uma crítica ao realismo. Atenta para a postura das

potências no cenário internacional e, neste caso específico, ele está se referindo à Inglaterra

do século XIX. É fato que as armas são preceito básico para garantir a segurança, e a guerra

traz ganho para uma das partes. Mas, em Angell, sobre esta idéia de ganho (mesmo que

momentâneo) se encontra a seguinte analogia: “[naturalmente], não se pode negar que um

roubo traz vantagens materiais para o ladrão. O que dizemos é que, se os meliantes 3 Woodrow Wilson foi presidente dos Estados Unidos no período entre 1912 – 1921.

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dedicassem ao trabalho honrado o tempo e a energia que devotam a roubar-se mutuamente,

seu ganho efetivo mais que compensaria o butim ocasional” (ANGELL, 2002, p. 6). Nesta

colocação Engell demonstra que todo o empenho humano e econômico utilizado para

promover guerras, poderia ser utilizado em outras áreas (para desenvolver a indústria, por

exemplo) e seria mais vantajoso, resultando em maiores ganhos para todos os envolvidos.

Em virtude destes preceitos, é possível definir o Estado idealista como um ator

transparente, que tem por objetivo a promoção da paz e da liberdade dos povos, bem como

a independência dos territórios. O objetivo deste Estado não é o acúmulo de poder, mas sim

a coexistência pacífica dos atores, com vias a incrementar o ganho (capital) através da

promoção do comércio e do intercâmbio cultural entre os povos. Neste sentido, a visão de

Wilson sobre uma Sociedade das Nações é a representação da conduta de um Estado

idealista, contrastando com o viés da política externa adotado até então. Este contraste é

ilustrado por Henry Kissinger em uma passagem da obra Diplomacia:

Aos veteranos endurecidos da diplomacia européia baseada no equilíbrio de poder, as opiniões de Wilson sobre os fundamentos morais da política externa pareciam estranhas, até hipócritas. No entanto, o wilsonismo sobreviveu, enquanto a história ignorou as reservas dos seus contemporâneos. Wilson foi o criador da idéia de uma organização universal, a Sociedade das Nações, que manteria a paz através da segurança coletiva em vez de alianças (KISSINGER, 2007, p. 22).

A passagem citada reflete o antagonismo da política externa realista (com base no

equilíbrio de poder) ao viés idealista de Wilson. A incorporação das premissas idealistas

pela política externa norte-americana, eventualmente, não seria suave, isto por que Wilson

tinha em mente outros propósitos. Ele acreditava, ao contrário de Theodore Roosevelt, que

a América teria o papel de disseminar estes princípios. Neste sentido Kissinger constata, a

respeito da perspectiva de Wilson, que a difusão da democracia seria a única forma de

garantir a pacificação mundial e, ainda, os Estados deveriam se sujeitar aos julgamentos de

forma equivalente ao indivíduo (seguindo os mesmos princípios éticos), e o interesse

nacional seria a criação de um sistema de direito universal.

A orientação idealista cria uma figura de Estado que se contrapõe a do tipo realista.

Os preceitos desta teoria geram um Estado que coexiste e atua, juntamente com outros

atores, no âmbito internacional, em virtude de seus interesses. Neste sentido, a promoção da

democracia torna-se importante para prevenir novos conflitos. Isso ocorre porque um

governo que emerge da vontade popular e exerce o poder em seu nome não tende a se

aventurar em conflitos sem que a opinião pública chancele tal opção. O Estado idealista

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tem como forma de abordagem a cooperação política e econômica, sendo que atua para

resolver conflitos e produzir colaboração entre os Estados com base na boa-fé para o

cumprimento dos pactos. As idéias e práticas idealistas durante o governo Norte Americano

de Wilson (1912 - 1921) fazem deste período um exemplo concreto de Estado idealista.

1.4 O Estado marxista nas Relações Internacionais

Somente a partir de 1960 é que o Estado se torna um objeto de investigação

pertinente para os marxistas das RI. Isso se deve, principalmente, ao empobrecimento desta

corrente teórica provocado, em partes, pelo predomínio do viés stalinista. O conceito

marxista de Estado, em voga nos últimos anos, difere da idéia básica de Marx e Engels,

onde o Estado teria determinada autonomia. Contudo, para Marx o Estado se explica mais

pela sua função: organização política para assegurar o domínio dos capitalistas sobre os

demais membros da sociedade, e arbitrar divergências entre os próprios capitalistas.

A dificuldade prática de aplicar o conceito marxista de Estado foi parcialmente

resolvida por Gramsci, que fez importante contribuição para se pensar o Estado marxista.

Na sua exposição, o Estado seria a idéia de que “a dominação da classe dominante não se

realiza apenas pela coerção, mas é obtida pelo consentimento” (BOTTOMORE, 1983, p.

136). Por gerar consentimento, o Estado tem um papel determinante, e isto demonstra a

autonomia deste ator. Em contrapartida, a tarefa de se obter o consentimento da massa pode

se contrapor, eventualmente, às prerrogativas necessárias para a acumulação do capital.

Outro ponto importante da idéia de Gramsci é ilustrado por Mezzaroba (2005). Este

autor coloca a hegemonia como condição primeira para se obter poder. Sendo assim, o

referido autor ilustra que: “[...] um determinado grupo só conquistará a supremacia sobre

outro grupo, na medida em que conquistar a direção e o poder. O grupo pode ficar

hegemônico mesmo antes de conquistar o poder, para isso basta que consiga difundir entre

todos os seus membros a sua identidade política e cultural” (MEZZAROBA, 2005, p. 9).

Assim, sob a perspectiva de Gramsci, conclui-se que, para um grupo ascender ao poder,

este deve ser hegemônico. Mas, para se manter no poder, é preciso ser dirigente, para que o

grupo continue coeso em sua ideologia. Entretanto, a impossibilidade de manter este grupo

no poder, acarretará em uma crise — que se apresenta como uma revolução — que levará

outro grupo hegemônico a ascender ao poder.

Por outro lado, na definição apontada por Bottomore, o Estado seria “a instituição

que, acima de todas as outras, tem como função assegurar e conservar a dominação e a

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exploração de classe”. Bottomore extraiu esta idéia do manifesto comunista de Marx e

Engels, onde aqueles autores descrevem o Estado como um comitê de apreciação dos

assuntos pertinentes à burguesia. Isso se deve ao fato de que, em uma sociedade capitalista,

o Estado deve assegurar a acumulação e a reprodução do capital.

Jackson e Sorensen (2006) colocam que, ao se trabalhar o conceito de Estado

marxista, primeiramente deve se ter em conta que esta corrente substitui as interações dos

Estados pelas relações de classe e, também, que política e economia estão interligadas. O

marxismo é materialista porque as sociedades se concentram em torno dos meios que

permitem a sobrevivência do indivíduo. Por conseguinte, a produção está na base

explicativa de todas as atividades humanas, inclusive das relações políticas interestatais.

Para os marxistas a economia capitalista opera segundo a lógica da luta de classes, ou seja,

a partir dos conflitos (re)distributivos que se dão entre a burguesia e o proletariado. Como

o contexto material determina o comportamento social, a vitória da burguesia capturou o

Estado para servir aos seus interesses de classe. Mas, com o avanço da luta de classes, na

qual os trabalhadores conseguiram se organizar na forma de sindicatos e pela via do voto

eleitoral, o Estado foi sendo obrigado a contrabalancear os interesses destas duas classes.

Neste sentido, Hunt & Sherman (2005) observam que, no capitalismo, o Estado atua

em benefício da classe dominante para assegurar seu domínio sobre o restante da sociedade

e arbitrar divergências entre os próprios capitalistas, as quais acontecem numa sociedade

baseada na competição. Como os capitalistas são a classe dominante, eles conseguiram

definir as normas que regulamentam a competência do trabalho e do capital, e mais, cabe ao

Estado atuar a serviço das empresas capitalistas, edificando obras e inúmeras atividades que

não oferecem possibilidade de lucro. Ao agir assim, os governos subsidiam, ou seja, usam

os recursos da sociedade para beneficiar o bom andamento dos negócios.

2. A deficiência teórica para interpretar o Estado no campo das RI: a crítica de Fred Halliday

No campo das RI, como ilustrado na sessão anterior, constata-se a existência de

várias teorias. Estas, eventualmente, estão em disputa pela posse do paradigma deste

âmbito. Tal situação é passível de ser uma força ou fraqueza das RI, pois Tomas Kuhn4

observa que, em determinado período, a comunidade científica tende a assumir um dado

4 Tomas Kuhn, filósofo da ciência, que em sua conhecida obra, Estrutura das Revoluções Científicas, apresenta a idéia de paradigma, para a ciência normal.

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paradigma para resolver determinado problema. Quando não confirmada sua existência, ele

ilustra que “[na] ausência de algum paradigma ou algum candidato a paradigma, todos os

fatos que possivelmente pertencem ao desenvolvimento de determinada ciência têm a

probabilidade de parecerem igualmente relevantes” (KUHN, 2006, p. 35).

Através deste aspecto da idéia de Kuhn, é possível perceber que nenhuma corrente

teórica pertencente ao campo das RI é suficientemente forte para ser vista como um

paradigma hegemônico. Em contrapartida, as múltiplas perspectivas advindas das teorias

podem ser complementares, cientificamente válidas e, igualmente relevantes. Sob esta

perspectiva, a quantidade de teorias de RI em nada compromete o desenvolvimento

científico desta área do conhecimento. Cabe salientar que nas ciências sociais as diferentes

perspectivas de análise para o mesmo objeto são extremamente importantes para o processo

de construção científica, e as questões de fato, valor, racionalidade e interpretação das RI

são as mesmas de todas as ciências sociais.

Neste sentido, Fred Halliday observa que a quantidade de teorias nas RI é a própria

força desta área. Entretanto, a grande dificuldade é acompanhar o cenário internacional

enquanto ambiente em constante mudança. Diz o autor citado que a “dificuldade é que a

própria pressão das questões internacionais e a demanda para sua análise e comentários

podem agir não só como um estimulante e um regulador do pensamento, mas também

como um desvio [...]” (HALLIDAY, 2007, p. 19). Para o autor, a principal resultante deste

desvio consiste na perda de independência e de perspectiva histórica e conceitual das RI,

enquanto disciplina acadêmica.

Além da possibilidade de desvio com relação aos temas, ainda encontram-se outros

fatores. Um deles é proveniente da invisibilidade teórica5 do próprio termo (Relações

Internacionais) enquanto designação exclusiva para nomear o que se passa com os

governos, e não com suas nações (que nem sempre coincidem). Desta forma, molda-se um

tipo de teoria que representa o resultado das relações de dois tipos de Estados; em

conseqüência, todas as outras relações que podem corresponder às relações da nação não

são incorporadas ao termo. Isso coloca as RI à margem de todo um passado histórico e

cultural de relacionamento dos povos. E ainda, enquanto disciplina acadêmica, RI é

relativamente jovem, o que implica que ainda há um longo percurso de discussão conceitual

sobre o seu objeto. Neste sentido, esta sessão observa a crítica de Fred Halliday a respeito

5 Halliday utiliza este termo para ilustrar o fato de o “internacional” ter uma definição teórica dúbia e, por isso, aqueles dedicados à vida acadêmica têm maior possibilidade de visualizar o que de fato significa RI.

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dos conceitos de Estado existentes nas RI, a fim de verificar seus argumentos, deficiências

e contribuições.

2.1. A insuficiência do conceito de Estado das RI

É fato que existem problemas acerca do conceito de Estado nas RI. Isto se deve,

também, ao fato de pouco se discutir a respeito deste ator nas últimas três décadas, pois os

teóricos pressupõem que todos sabem o que é o Estado. Neste sentido Fred Halliday

apresenta três motivos que impedem o desenvolvimento de um conceito de Estado nas RI.

O primeiro deles é com relação às disputas teóricas, sendo que os teóricos têm suas

perspectivas particulares; eles eventualmente falam como adeptos de determinada teoria,

que se coloca em conflito com outra, pelo direito de dizer a verdade sobre as RI. Isso

confere dificuldade com relação à obtenção de um consenso teórico, ao ponto que as teorias

se percebem como ameaça ao seu status de paradigma. Outro fator de discordância está

relacionado ao lugar do Estado, seu grau de autonomia, poder e importância nas RI, e é fato

que as teorias sustentam posições divergentes sobre este tema. Contudo o terceiro motivo

está relacionado à definição de Estado utilizada pelos pesquisadores das RI, na medida em

que, eventualmente, os teóricos reduzem ou aumentam a importância do Estado sem defini-

lo, ou ainda, trabalham com conceitos de teoria política antiga, que não são reconhecidos

pelas RI.

Devido a estes impasses, Fred Halliday pontua que nas RI consideram como dada

uma determinada definição de Estado: o que se pode classificar de totalidade nacional-

territorial (op. cit, p. 91). Os realistas aceitam amplamente a definição de Estado como

totalidade nacional-territorial, e do ponto de vista empírico pode-se verificar que esta

afirmação é verdadeira enquanto definição estritamente geográfica, mas, sobre o Estado,

enquanto ator das RI, pode-se dizer o mesmo? Sobre isto Halliday ilustra que, aceito este

conceito, por definição, a questão dos atores não-estatais tem prejuízo. Contudo, deve-se

perguntar, não se o conceito fornece base para explicação, mas, se a explicação a respeito

do seu objeto é adequada. E, por isso, traçar um conceito de Estado para as RI pressupõe,

primeiramente, observar este ator como membro atuante de um sistema, capaz de produzir

e influenciar sua própria realidade e a dos outros atores.

Na teoria marxista o conceito de Estado se tornou mais restrito representando,

basicamente, um conjunto de instituições coercitivas e administrativas, advindas da luta de

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classes6. Nota-se, neste conceito que o ator não teria autonomia fora das relações de poder

engendradas pela luta de classes. O mesmo ocorre também com os realistas, cujo conceito

repercute o equilíbrio de poder derivado da situação que o contexto internacional apresenta

em dado momento histórico. Mas Halliday apresenta uma perspectiva interessante, ao

identificar que estes geralmente fazem uma confusão com relação ao Estado geral/total (que

é o território) e o Estado enquanto instituição. Decorrente disso, ele coloca que:

[...] quando os críticos do marxismo dizem que ele é uma forma de realismo por ser estado-cêntrico isso mistura os dois conceitos de Estado: os marxistas usam o termo “Estado” de uma forma muito diferente da realista. O resultado é o domínio do conceito de totalidade, porque a própria definição envolvida impede outras áreas de investigação teórica. Isto é o que um paradigma deve fazer: os realistas defendem e podem fazê-lo, que as questões e dados identificados como relevantes por outros paradigmas são relativamente insignificantes (HALLIDAY, 2007, p. 94).

A ilustração do presente autor demonstra o conflito dentro das RI pela posse do

paradigma. Ao observarem umas às outras, as teorias iluminam determinada face do objeto

e escurecem outras, buscando se sobrepor, em prol da perspectiva teórica que assumem

como verdade. Este fato compromete o processo de construção científica, pois, se um viés

teórico está comprometido com a crença em determinado viés teórico não pode estar

comprometido com a ciência7.

Com relação a este problema, Halliday (2007) coloca que existem alguns fortes

paradoxos a influenciar a construção teórica. O primeiro ponto é que, um conceito para uso

nas RI (principalmente da disciplina) deve preocupar-se em interpretar a realidade deste

âmbito e o conceito sociológico é considerado abstrato demais. Em contrapartida, a visão

sociológica permite observar vários aspectos importantes da conjuntura internacional, como

a efetividade da dimensão internacional. Deve-se ainda, ter em conta, que o conceito não

pode ser mera conveniência, pois a ele está vinculada uma série de implicações, como

demonstrar que os Estados são iguais na condição de participantes do cenário internacional.

Outro problema interpretativo identificado por Halliday é a confusão entre Estado e

governo, “isto é, entre o conjunto do aparato administrativo e o pessoal executivo formal

6 Nas páginas 92 e 93 de Repensando as Relações Internacionais, Fred Halliday discute essa idéia com propriedade. 7 Os gregos lutavam para criar uma idéia de Estado que estivesse livre do mito — a razão de Estado — ver Platão, a República. No Estado moderno Maquiavel trará em sua obra a originalidade do Estado laico. Os registros históricos mostram que os intelectuais, em sua busca por uma idéia de Estado, sempre tiveram como barreira a ser superada as crenças, mitologias e ideologias. Ver também Gilberto Dupas, Atores e poderes na nova ordem global, publicada pela UNESP em 2005.

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em oposição do controle supremo” (op. cit. p. 95); tal aparato representa a sociedade total.

Este aspecto remete-se à incorporação do representante do país, bem como suas ações no

cenário internacional. É possível visualizar isso a respeito dos conflitos entre dois Estados,

que são promovidos pelo governo do chefe de Estado. Entende-se que dois Estados

entraram em guerra — por exemplo, guerra Irã e Iraque — quando, na verdade, os

governos daqueles Estados são os reais promotores do conflito.

Outra diferença que deve ser percebida é sobre a idéia de Estado-Nação nascido da

revolução francesa. Constituído em abstração de determinada unidade de povo, território e

vontade, este Estado-Nação não se encaixa inteiramente no mundo moderno. Percebe-se a

existência de Estados que não possuem homogeneidade étnica, e tampouco representam a

vontade dos seus nacionais. Na mesma medida se observam nações sem Estados, como os

curdos, palestinos e ciganos, entre outros. E ainda, com relação à representatividade do

Estado, vale lembrar que, o sufrágio — que é condição para a representação no Estado

democrático — somente se instituiu mais amplamente após a Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, atualmente não se tem certeza se as eleições são a representação legítima da

vontade do povo8. Sendo assim, as teorias devem observar que Estado e nação são

diferentes e, deixar de observar esta peculiaridade, consiste em negligenciar um aspecto

determinante que, conseqüentemente, levará à construção de uma teoria falha em sua

aplicação mais básica, que é percebida, inclusive, pelas Organizações Internacionais9.

O último tema, relevante para esta discussão, relativo à ambigüidade dos teóricos,

ilustrado por Halliday, provém da sociologia histórica. É a suposição de que todos os

Estados são, antes de tudo, soberanos. Pressupor soberania impossibilita a análise do

aparato coercitivo interno e, além de tudo, nega que o Estado pode estar sujeito a pressões

externas que, eventualmente, afetam sua soberania. Sobre isso, o autor citado ilustra que

“[a] premissa de vários trabalhos de relações internacionais é a de que o Estado é soberano

ao controlar efetivamente o território e a população sobre seu governo. Entretanto, esto é

uma simplificação empírica, mesmo para o mais eficiente dos Estados. Ela impede a análise

de como o controle é exercido e desenvolvido” (HALLIDAY, 2003, p. 97). Devido a isso,

não se pode confirmar que todos os Estados existentes são soberanos, pois, para tanto, é

preciso verificar se tal aparato é capaz de promover a soberania.

8 A OEA realiza, na maioria dos Estados membros, programas de observação das eleições, para garantir que a população não seja coibida por um partido ou candidato, o que demonstra que este é um problema existente. 9 Especificamente com relação a esta diferença de Estado e Nação, nota-se nos tribunais penais da ONU para a ex-Iugoslávia, e no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, que os Estados respondem por crimes que cometem contra seus nacionais.

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Logo, o essencial das observações de Halliday sobre o conceito de Estado é que

existem aspectos abstratos e concretos imensuráveis sobre este ator, que, por vezes, são

negligenciados pelas teorias dominantes das RI. Isso ocorre porque as várias teorias

compartilham esta área com o propósito de tornar determinada teoria um paradigma. É fato

que o Estado merece especial atenção, principalmente por que as RI devem criar teorias que

se sustentem no plano concreto. Em contrapartida, para evitar estes contratempos, os

teóricos se utilizam, excessivamente, das generalizações como uma solução.

2.2 A necessidade de avançar na conceituação de Estado

O conceito de Estado enquanto abstração teórica e funcionalmente concreta

escapou aos teóricos das RI. Foram observados, ao longo das duas primeiras sessões, os

principais conceitos propostos pelas principais teorias vigentes, e utilizadas, em especial,

pelo mundo acadêmico. Uma perspectiva esclarecedora a respeito das expectativas

científicas para uma teoria das RI é ilustrada por Kenneth Waltz. A esse respeito, o referido

autor coloca que:

[...] teorias são combinações de afirmações descritivas e teóricas. As afirmações teóricas são elementos não factuais de uma teoria. Não são introduzidas livre ou caprichosamente. Não são introduzidas de maneira antiga e medieval como ficções inventadas para salvar uma teoria. São introduzidas apenas quando tornam a explicação possível. O valor de uma noção teórica é julgado pela utilidade da teoria de que faz parte. As noções teóricas permitem-nos entender os dados; os dados limitam a liberdade com que as noções teóricas são inventadas (WALTZ, 2002, p. 25).

Assim, sob a perspectiva de Waltz, ao observar as teorias é possível identificar o

viés teórico sob o qual o Estado se orienta em determinado momento. Por exemplo, se ele

se articula mais com a ONU e opta por ações pacifistas, se adapta ao modelo idealista (ou

empreende ações desta natureza); por outro lado, se determinado Estado tem primazia sobre

a defesa do status quo e/ou está focado em defender interesses nacionais de segurança e

despreza alguns preceitos morais, em virtude de suas investidas na seara internacional, ele

se aproxima do viés realista. Desta forma, nota-se que tais teorias são, quando muito,

modelos ideais a serem utilizados como fórmulas para explicar e generalizar, e raramente

podem ser utilizadas para prever as ações dos Estados (isoladamente), ou as

movimentações do próprio âmbito internacional. Assim, pode-se dizer que as teorias

existentes são corretas, mas é conveniente se questionar se o Estado é só isso: um modelo

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retirado de uma miscelânea de textos canônicos, nutrido por pontos de vista que objetivam

a utilização contínua de determinada teoria no meio acadêmico.

Em oposição à idéia de Halliday, Waltz acredita que a pluralidade de teorias é

prejudicial às RI, porém, com uma peculiaridade, pois ele reconhece a possibilidade das

teorias serem fracas ou contraditórias:

A fraqueza das teorias cria a incerteza dos significados mesmo dentro de uma única teoria. Em relações internacionais, quer pelas teorias serem contraditórias ou fracas, a discussão e a argumentação sobre muitos assuntos importantes — a proximidade da interdependência nacional, a estabilidade de configurações particulares de poder, a utilidade da força — tornam-se difíceis ou inúteis por que os participantes estão a falar sobre coisas diferentes ao usarem os mesmos termos (WALTZ, 2002, p. 26).

Esta visão explica como o conceito de Estado escapou dos teóricos das RI. Isto se

torna mais evidente quando se tem em conta a existência de vários conceitos utilizados pela

disciplina, que são relativamente fracos ou contraditórios. Mas, por outro lado, isto também

fornece uma diretriz importante para o pesquisador, que deve estar atento ao investigar as

teorias vigentes. Entretanto, como pesquisadores participantes, os teóricos e suas teorias

não atuam de forma isolada: cada qual produz uma visão particular e restrita, mas que

influencia seus pares.

Este drama, ilustrado por Waltz — mesmo que refletido através da perspectiva

racionalista do presente autor — emerge, também, na abordagem construtivista. Esta

corrente teórica passa a influenciar as RI em meados da década de 90, e prioriza a inter-

relação entre os agentes que são construtores das suas realidades, e também dos seus

símbolos10 e significados, a todo momento. Isto ocorre porque, na medida em que o

campo11 (estrutura) influencia a interpretação e a atuação dos agentes, estes produzem

interferências no campo que desejam compreender e explicar. Assim, os próprios teóricos

são produzidos, tanto quanto os fenômenos que eles tentam explicar, pois eles estão dentro

do próprio campo das RI. Neste sentido, a abordagem de Antonio Ramalho da Rocha

(2002) é esclarecedora para demonstrar esta idéia:

[...] com efeito, ao investigar esses fenômenos através dos prismas teóricos vigentes no campo das Relações Internacionais, os analistas atribuem-lhes significado peculiar. Os tipos de problemas que se constroem, as interpretações

10 Bourdieu, em O poder simbólico define os símbolos como instrumentos de integração social, enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, que tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social. 11 O construtivismo entende que o chamado “campo” é o lugar (abstrato) onde coexistem os agentes, como por exemplo, o campo da ciência política.

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que se produzem, o vocabulário utilizado para conferir sentido à realidade internacional, tudo isso contribui para construir o campo das Relações Internacionais como tal e desempenha papel tão relevante quanto o que se atribui aos fenômenos — presentes na realidade propriamente dita — a que se referem os discursos científicos utilizados pelos analistas das relações internacionais (ROCHA, 2002, p. 28).

Os aspectos colocados por Rocha ressaltam a idéia demonstrada anteriormente, ou

seja, a de se levar em consideração que o teórico é um agente do campo, que influencia e é

influenciado. É importante que isso esteja claro, pois um conceito de Estado sob a

perspectiva construtivista deve considerar o agente que, em determinada medida, é um

produtor do campo. Ao abordar o debate corrente das RI, entre racionalistas e

construtivistas, Rocha (op. cit.) destaca a prática das RI de optar sempre por aquelas

caixinhas rotuladas de conceitos, e a resistência em se adotar um viés construtivista. A

discussão a seguir tem em seu fundamento esta possibilidade: a construção de um conceito

de Estado proveniente da perspectiva do autor construtivista Pierre Bourdieu.

3. A perspectiva de Pierre Bourdieu para pensar o Estado nas RI

Nesta sessão se discutem as idéias de Pierre Bourdieu para se construir um conceito

de Estado passível de ser utilizado nas RI. Inicialmente, é importante fazer a ressalva de

que o viés construtivista não está, de fato, incorporado nas RI de maneira equivalente ao

realismo ou idealismo. Primeiramente, salienta-se que o construtivismo introduz a idéia de

campo como um espaço abstrato de coexistência entre os “agentes”, que se torna

consistente em uma dada estrutura. Estes agentes também podem ser entendidos como uma

substituição da noção clássica de ator internacional, e são assim denominados porque

agem, modificando e redefinindo o campo em que se encontram inseridos, pois, em suas

mútuas e múltiplas interações nas questões internacionais, eles produzem comportamentos,

regras, e criam ou modificam instituições.

Segundo Rocha, estas interações não podem ser ignoradas, “já que depende[m] dos

elementos que conferem significado às interações humanas (ou conforme o nível de análise

em que trabalhamos, às organizações e Estados). Em função das intenções desses agentes,

determinados comportamentos adquirem, no contexto em que ocorrem, significados

específicos, constituídos em sua referência a essas estruturas intangíveis [...]” (ROCHA,

2002, p.45) . Dos elementos colocados pelo autor, observa-se que é necessário analisar não

somente a existência dos agentes, mas também as relações que eles desenvolvem entre si e

com o próprio campo, pois destas relações emergem as práticas do campo.

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Sob a perspectiva construtivista podemos definir o âmbito internacional e o Estado

da seguinte maneira: o campo é o próprio âmbito internacional, onde as relações concretas

e abstratas ocorrem. Estas relações ocorrem somente entre seus agentes, e os efeitos destas

relações são o que, de fato, pode-se observar no campo. Os agentes são todos aqueles que

influenciam ou podem influenciar o campo pela interação, através da criação de práticas,

rotinas, instituições ou significados para atribuir ao campo. Desta forma, são alguns dos

agentes das RI as OI’s, ONG’s, indivíduos, empresas (inter/multi/transnacionais),

interpretações dos teóricos, os Estados. Sendo os Estados e as OI’s agentes do campo, o que

se pode observar é o resultado das relações entre eles12.

Pierre Bourdieu atribui ao construtivismo significados e conceitos advindos de sua

própria perspectiva investigativa. Tal fato não é exclusividade de Bourdieu pois, como

observado no realismo, idealismo e marxismo, os teóricos discordam ou corroboram entre

si, na medida em que criam significados e conceitos provenientes de suas reflexões e

pesquisas, mesmo sendo adeptos de uma mesma teoria, como é o caso de Aron e

Morgenthau. Contudo, dado que a contribuição de Bourdieu para este artigo é central,

apresenta-se a seguir a perspectiva deste autor.

3.1 O construtivismo de Pierre Bourdieu

Antes de avaliar as possibilidades de criação de um conceito de Estado para as RI,

sob a perspectiva de Pierre Bourdieu, é necessário apresentar algumas peculiaridades que

fazem do construtivismo, sob a perspectiva deste autor, uma possibilidade diferente a ser

explorada pelas RI. Para Bourdieu os conceitos de habitus e capital simbólico, bem como

de um mercado produtor de bens simbólicos, se articulam em um campo específico

percebido por Bourdieu que, por sua vez, é regido por um “poder simbólico”.

Como já apontado, observar as RI através da perspectiva construtivista, consiste em

tratar o âmbito internacional como campo. A este campo abstrato de coexistência dos

agentes — participantes do referido campo — Bourdieu atribuirá uma natureza competitiva

(mas não anárquica) pois, para ele, os agentes estão em disputa por um objeto que é o

poder simbólico. Nas palavras do referido autor, este poder é explicado da seguinte forma:

[...] num estado do campo em que se vê o poder por toda parte, como em outros tempos não se queira reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos

12 A quebra de um acordo sobre direitos humanos é o resultado da relação entre os agentes, e é o que de fato pode-se observar, pois somente se têm aceso ao objeto quando se é um agente do campo.

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dentro, não é inútil lembrar que — sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de «círculo cujo centro está em toda parte e em parte alguma» — é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 2007, p. 7).

A explicação de Bourdieu revela um aspecto importante para se compreender a

essência desta idéia. Primeiramente, é preciso ter clareza de que este “poder” tem sua

eficácia, na medida em que é invisível e mobilizador (gerador de consenso), na medida em

que é exercido sobre o que lhe está sujeito (dominado), o qual cede a quem o exerce

(dominante) um crédito, uma fides13. Desta maneira, eventualmente, o que se pode perceber

são seus efeitos, sendo esta peculiaridade uma condicionante para a sua existência e

eficácia. É ainda, segundo Bourdieu, um poder de construir sentidos e significados pelos

enunciados (que estabelecem determinada ordem gnoseológica14), de fazer ver e crer e, por

isso, confirmar e transformar a visão e a ação dos agentes sobre o mundo, logo, o próprio

mundo. Este poder quase mágico permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela

força, devido ao seu efeito específico de mobilização, que somente se exerce se for

reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário15. Sendo assim, o poder simbólico é

exercido não por um sistema, mas pela relação determinada entre os que o exercem e os

que a ele estão sujeitos, “na estrutura do campo onde se produz e reproduz a crença”

(BOURDIEU, 2007, p.15).

O poder simbólico é o que, de fato, está em disputa no campo, visto como um

espaço próprio das lutas simbólicas. Para Bourdieu, a noção...

[...] de campo tinha em vista explicar: na realidade, as lutas que têm lugar no campo intelectual têm o poder simbólico como coisa em jogo, quer dizer, o que está em jogo é o poder sobre um uso particular de uma categoria particular de sinais e, deste modo, sobre o sentido do mundo natural e social. Trata-se de um equívoco demasiado grosseiro a respeito de um ponto demasiado evidente para não ser de certo modo interessado, logo, estratégico [...] (BOURDIEU, 2007, p. 72).

Sendo assim, o campo de Bourdieu é um ambiente violento (de violência

simbólica), onde se desenrolam as lutas entre os agentes e as visões de mundo dos agentes

serão confrontadas. Nas RI seria possível concluir que o campo é anárquico. Mas, isso de

13 Fides: fé. 14 Sobre a ordem gnoseológica, Bourdieu está se referindo a o sentido imediato do mundo, ou seja, aquilo que Durkheim chama de conformismo lógico. 15 Nas páginas 14 e 15 de O poder simbólico Bourdieu tratará desta idéia.

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fato não ocorre porque se pressupõe a existência do habitus que é, com efeito, “princípio

gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de

classificação (principium divisionis) de tais práticas” (BOURDIEU, 2007, p. 162). Sendo

assim, pode-se entender o habitus como uma rotina, hierarquia e o protocolo dos agentes.

Cada agente somente poderá entrar neste campo se for capaz de agir conforme o habitus

que é, também, consistente com a produção histórica16 e, por isso, constituído em

conhecimento adquirido e também em um haver: estrutura estruturante e estruturada17,

mais propriamente entendido como sentido do jogo, onde o agente “não tem que raciocinar

para se orientar e se situar racionalmente em um espaço” (BOURDIEU, 2007, p. 62).

A idéia de habitus de Bourdieu gera uma possível incoerência com relação à figura

do agente, e tal problemática levou o autor a se apoiar em Weber para demonstrar que é

possível a coexistência dos agentes em um campo regido pelo habitus. Isso pode ser

evidenciado através da seguinte afirmação, “os agentes sociais obedecem à regra quando o

interesse em obedecer a ela suplanta o interesse em desobedecer a ela” (BOURDIEU, 2004,

p. 96). Esta idéia ainda serve para imaginar as rupturas, conflitos, e quebra de tratados, e os

resultados atribuídos a estas ações pois, na medida em que o habitus indica práticas

previsíveis, também indica a penalidade para uma transgressão. Então, se os agentes têm

em vista algo que se sobrepõe à contínua reprodução do habitus instituído, tem-se um

conflito (luta simbólica), que no âmbito internacional se observará (no plano concreto) por

discussões diplomáticas, assembléias e/ou conflitos armados — que podem representar a

coerção e/ou a sanção — mesmo que pelo uso da força. Neste sentido, Bourdieu lembra

que:

[q]uanto mais a situação for carregada de violência em potencial, mais haverá necessidade de se adotar certas formalidades, mais a conduta livremente confiada às improvisações do habitus cederá lugar à conduta expressamente regulada por um ritual metodicamente instituído e mesmo codificado. Basta pensar na linguagem diplomática ou nas regras protocolares que regem as precedências e conveniências nas situações oficiais (op. cit. 2004, p. 98).

Neste sentido, quanto mais ritualística for a linguagem ou as necessidades que

competem à determinada situação, maior é a violência que ela esconde. Tais encenações

fazem parte de um habitus que pertence aos campos específicos e é operado pelos agentes

16 Nas páginas 96 á100 de Coisas ditas Bourdieu vai discutir esta idéia. 17 Nas definições de Bourdieu apresentadas em A economia das trocas simbólicas: estrutura estruturante constitui um acordo que possibilita construir quanto ao sentido dos signos e do mundo; e a estrutura estruturada é passível de uma análise estrutural.

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daquele campo que tem esta possibilidade: estes são aqueles que têm uma quantidade de

capital econômico ou simbólico maior, que os capacitam vencer as lutas simbólicas.

Está claro que Bourdieu possui percepções particulares a respeito do campo, ora,

pois, este é consistente com um campo de poder simbólico, cuja existência em relação a

um habitus está subentendida. Neste sentido, Bourdieu percebe a existência de um mercado

específico que trata da “autonomização progressiva do sistema de relações de produção,

circulação e consumo de bens simbólicos” (BOURDIEU, 2007 p. 99). Este mercado é o

que o presente autor convencionou nomear de mercado de bens simbólicos, onde são

negociados os capitais simbólicos que são “uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de

capital, físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais, cujas categorias

de percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-

lhes valor” (BOURDIEU, 1996, p. 107).

Contudo, o valor dos bens18 não se pode, a priori, ser quantificado pelo

investigador, pois eles dependem das relações às quais estão expostos. Sendo assim, ao

utilizarmos a perspectiva advinda do construtivismo de Bourdieu, é possível observar um

campo regido pela violência simbólica, cuja posse está em disputa pelos agentes, que

coexistem orientados por um habitus, e este habitus estrutura e está estruturado seguindo a

lógica de um mercado de bens simbólicos.

Cabe ainda explicar o que, de fato, é a violência simbólica. Esta é a capacidade de

produzir e instituir símbolos; é violência porque, através do símbolo, o detentor deste poder

conseguirá manter a ordem pacificamente e o status das estruturas hierárquicas, semelhante

à dominação produzida pelo uso da força. Os agentes desejam obter o monopólio da

violência simbólica, pois isso permite manter uma posição favorável a fim de dominar o

campo onde este agente será o principal portador da verdade. Um agente que tem a

possibilidade de impor a violência simbólica pode ter a posse do verdadeiro paradigma do

campo, isto é, deter o poder de instituir uma visão, impor divisões, fazer crer e fazer ver a

todos os outros agentes. Para explicar esta situação pode-se utilizar a imagem de uma sala

de aula, onde o professor tem o poder de instituir a violência simbólica: ele transmitirá a

matéria e esta não escapará a sua perspectiva; aos alunos (que não têm a possibilidade de

promover a violência simbólica), restará captar e reproduzir esta perspectiva.

18 Bourdieu se refere em “Coisas Ditas”, a títulos de nobreza (autênticos títulos de propriedade simbólica) que representa uma espécie de capital simbólico que fornece vantagens de reconhecimento ao portador, que irá utilizá-lo nas lutas simbólicas.

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Ainda, do construtivismo de Pierre Bourdieu, é importante aprofundar a idéia de

poder simbólico e sua aplicação no cenário internacional. Isto é importante para se refletir

sobre o conceito de Estado e, sob esta perspectiva, analisar as possibilidades de se entender

a conjuntura internacional.

3. 2 A contribuição de Pierre Bourdieu para o conceito de Estado nas RI.

No campo das RI as múltiplas teorias19 e os seus teóricos lutam pela posse da

violência simbólica, ou seja, o desejo de ser o paradigma hegemônico. Se existisse uma

teoria hegemônica, esta teria o monopólio adquirido de dizer a verdade daquele campo,

através de textos canônicos. É preciso ter clareza que aceitar qualquer viés construtivista

como perspectiva para observar o cenário internacional (abstrato ou concreto), a priori

elimina a possibilidade de se estabelecer uma teoria que seja o paradigma deste campo, isto

porque, seguindo este viés, a percepção da realidade é construída a todo o momento. De

fato, é impossível ter uma única teoria para as RI, mas é notável a presença de algumas

mais aceitas que outras pela comunidade científica. Sobre o campo em que as teorias

coexistem, é possível identificar um habitus, que representa as regras e os costumes da

comunidade científica e a divisão do trabalho dos agentes. Bourdieu esclarece isso em A

Distinção. Diz ele que “a divisão em classes operada pela ciência conduz à raiz comum das

práticas classificáveis produzidas pelos agentes e dos julgamentos classificatórios emitidos

por eles sobre as práticas dos outros ou suas próprias práticas” (BOURDIEU, 2007, p. 162).

Por isso, cada um dos agentes — que neste caso são os teóricos — produtores de

bens simbólicos, produz e procura impor sua perspectiva a respeito do campo, e seu

discurso transmitirá exatamente sua posição no campo ou o desejo de ocupar determinado

lugar. Mesmo que não exista uma teoria hegemônica que permita compreender, explicar e

aplicar procedimentos sobre um dado problema, ainda existe um habitus entre os agentes,

que concederá a estrutura hierárquica do campo, e esta hierarquia tende a determinar os

procedimentos para a manutenção da ordem do próprio campo e, também, definir as ações

que serão produzidas em face das diferentes situações, em função da localização dos

agentes no campo. Por este motivo é que, eventualmente, tem-se a impressão de que os

teóricos são mais comprometidos com a teoria a que são adeptos do que, pura e

19 Antes de observar o Estado é preciso observar o campo que ele está inserido, no campo das RI, os teóricos e teorias produzidas por eles devem ser percebidos como agentes que influenciam o referido campo, pode-se perceber a influencia destes através da fundamentação teórica que permeia os discursos dos chefes de Estado, e tais discursos influenciam a realidade.

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simplesmente, pela busca do conhecimento sobre as RI ou seus agentes, porque o viés

teórico é o que define a posição do agente dentro do campo de produção científica.

Contudo, ainda é preciso apontar a possibilidade de um conceito de Estado para as

RI, que deriva das idéias de Pierre Bourdieu. Na obra Razões Práticas, ele traçou uma

genealogia do Estado. Sua abordagem consiste em observá-lo no plano interno, dentro do

território. Neste sentido, o Estado é estrutura estruturada para promover a dominação, uma

instituição que concentra vários tipos de capital simbólico, tal como demonstrado abaixo:

[...] o Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, concentração que, enquanto tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, com o poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus detentores. A concentração de diferentes tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores). Segue-se que a construção do Estado está em pé de igualdade com a construção do campo do poder, entendido como espaço do jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução (BOURDIEU, 1996, p. 99).

A passagem citada demonstra a posição hierárquica do Estado, e Bourdieu confirma

também esta idéia no livro O poder simbólico ao afirmar que o Estado é produtor legítimo

da violência simbólica. O Estado ainda pode combinar a violência simbólica com outros

elementos coercitivos, como o uso da força. Enquanto instituição histórica e mitológica

detém o monopólio absoluto da violência simbólica, produzida por ele e pelos outros

agentes dos campos internos (mídia, o campo da educação e o campo jurídico). Isso é

explícito com relação aos veículos de informação. Basta lembrar do período da ditadura

militar no Brasil, da condição vigente nos países socialistas, ou ainda, no caso dos países

capitalistas ocidentais, do poder que os anunciantes exercem sobre a mídia20.

Bourdieu percebe, ao pesquisar as palavras que dão origem às instituições, que o

Estado, como sujeito histórico, é capaz de originar e realizar seus próprios fins (diz-se: “o

Estado Francês decide”). Para viabilizar isto, ele é envolvido por uma mitologia, ou figura

alegórica que, segundo Bourdieu, atua como: “[...] operador mecânico de finalidade, Deus

(ou Diabolus) in machina, «o Aparelho», máquina divina ou infernal, consoante o humor

20 Bourdieu tratará dos veículos de comunicação como produtores de violência simbólica utilizados pelas corporações e pelo Estado em Sobre a televisão, 1997.

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ideológico, bom ou mau funcionalismo, está preparado para funcionar como Deus ex

machina, «asilo da ignorância»” (BOURDIEU, 2007, p. 75).

O Estado, enquanto detentor do monopólio da produção simbólica legítima, dentro

de dado território, logo, do conjunto da população dentro dele, tem por objetivo produzir e

impor categorias de pensamento. Para Bourdieu isto é possível porque o Estado encarna

tanto a objetividade (violência física e sansões) quanto a subjetividade (o imaginário, o

interesse nacional). Este aspecto permite a reprodução alienada dos símbolos que

proporcionam a manutenção da estrutura e produzem instituições e homens de Estado.

Neste sentido, o chefe de Estado é possuído pela própria herança do Estado. Esta

determinará o que é politicamente dizível, não sendo possível distinguir o que é proveniente

da herança e do herdeiro. Este fato, independente do tipo de teoria utilizada para conceituar

o Estado, é capaz de alterar a condição de produtor simbólico pois, com a necessidade de

manutenção das estruturas hierárquicas, surge a necessidade de um habitus, onde se

reconhece um mercado de bens simbólicos21. Por exemplo, o Estado marxista será um

Estado de classes que, para ascenderem ao poder, precisam ser hegemônicas. Assim, ao

ascender ao poder, esta classe instituirá a violência simbólica para manter-se no poder22.

Contudo, outras classes questionarão esta hegemonia e, para tanto, precisarão construir

discursos, argumentos e ações concretas que produzam rupturas para viabilizar a captura do

Estado e, com ele, o poder de definir novos sentidos através da instituição da violência

física e simbólica. Sobre isto, Bourdieu (1996) colocará que o Estado “nascente” deve

afirmar sua força física, no exterior, em relação aos outros Estados, até pela guerra, e no

interior, pelo domínio sobre os contra-poder e classes dominadas. Porem, esta ação não

funciona sem concentrar um capital simbólico, que conceda ao Estado seu reconhecimento

como território unitário e unificado pela submissão às mesmas obrigações de legitimidade.

O Estado, como agente internacional, também é capaz de criar significados, relações

e símbolos que influenciam o próprio campo. No campo das RI o Estado é um agente que

procura implementar bens simbólicos para todos os agentes. Para isto, ele se utiliza dos

bens adquiridos nas lutas pela posse de violência simbólica, enquanto princípio de visão e

21 O próprio marxismo considera que, para uma classe se manter no poder precisa manter o grupo ideológico coeso (ver seção do marxismo deste artigo). 22 Em 1965 milhares de estudantes da Hungria saíram às ruas para protestar contra as atrocidades cometidas pela URSS. Eles exibiam bandeiras húngaras com buracos no centro (onde antes havia o símbolo do regime da URSS), demonstrando que a Hungria não compactuava dos ideais russos.

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di-visão23 dele próprio e dos outros agentes. Ou, como ele mesmo diz: “regere sacra, de

fixar as regras que trazem à existência aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de

pré-dizer no sentido de chamar ao ser” (BOURDIEU, 2007, p. 114).

A todo momento os Estados buscam alcançar o monopólio da violência simbólica,

mas existe um habitus que rege suas relações, o que pressupõe um protocolo de atuação. A

atual guerra contra o terrorismo, criada pelos Estados Unidos em virtude do ataque a

símbolos concretos de poder — o World Trade Center e o Pentágono — implicou na

formulação do capital simbólico “terrorista”. A guerra contra o terror serviu para mobilizar

os agentes em um processo de convencimento, logo, de alienação, e isso implicou na luta

simbólica para impor consensos a respeito de uma crença: a visão e representação do

terrorista. Esta ação justificou o ato seguinte: a intervenção armada no Afeganistão, no

Iraque, e também para nomear determinados países como terroristas ou como “eixo do mal”

(princípio da di-visão). Por fim, produziu-se o capital simbólico e, com sucesso, foi imposta

a violência simbólica. Esse instrumento é necessário por que no campo internacional “o

agente”, Estados Unidos, procurou manter uma dada “ordem” segundo seus interesses.

Sob o construtivismo de Pierre Bourdieu, o Estado pode ser definido como um

agente muito especial, que constrói sua própria realidade a todo o momento. Assim,

enquanto instituição histórica (internamente), o Estado se constitui como detentor legítimo

do monopólio do poder simbólico, podendo ainda combiná-lo com outros elementos (como

as sanções e benefícios). Para construir uma realidade que possa ser apreendida por todos

eles, o Estado estará em constante disputa pelo poder simbólico, a fim de produzir, nomear

e criar signos. Este poder simbólico é mais visível nos discursos produzidos pelo Estado,

pois, para impor a violência simbólica no campo internacional, o Estado é um agente que

age sob uma hierarquia semelhante a de todos os outros agentes deste campo.

O Estado, enquanto agente do campo internacional, é uma estrutura estruturante e

estruturada, ou seja, é estruturado segundo um habitus particular e adquirido. Neste sentido,

todos os Estados são iguais, enquanto agentes internacionais, mas enquanto produtores de

bens simbólicos (capazes de impor a violência simbólica) são diferentes. Isso resulta de seu

passado histórico, do capital simbólico adquirido em lutas simbólicas passadas, e por isso,

sua percepção e capacidade de atuação é relativa. Por outro lado, cada Estado será

estruturado pelo habitus próprio deste campo. Os costumes e princípios historicamente

23 O princípio de di-visão, ao qual Bourdieu se refere, é o da divisão legítima do mundo social (de representação e classificação) que é ato de autoridade que circunscreve as fronteiras naturais.

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construídos neste campo pressupõem que o Estado deve agir segundo regras como a pacta

sunt servanda, que neste caso não é um principio, mas uma condição24 determinada por e

para cada agente.

O construtivismo de Pierre Bourdieu admitirá que este Estado “poderá” respeitar os

tratados e costumes (que constituem o corpo de textos canônicos do habitus), e além de

serem seguidos também são construídos a todo o momento pelos agentes, mesmo que a

possibilidade de descumprimento deste habitus também seja admitida, mesmo que sob pena

de ser sancionado. Sendo assim, o Estado primeiramente seguirá o habitus, mas somente

enquanto o interesse de segui-lo se sobrepor a um outro interesse. É fato que este viés deixa

o Estado extremamente livre, o Estado não é moral, nem amoral, e também não é o governo

de uma classe. O Estado é um agente que, para estar em posição favorável no jogo

internacional, precisa jogar conforme as regras desse jogo.

É isto, entre outras possibilidades, que a perspectiva de Pierre Bourdieu possibilita

esclarecer ao considerar o poder do discurso25 dos Estados, como um tipo de violência

simbólica, destinado à impor princípios de visão e di-visão ao grupo. Por fim, a perspectiva

de Bourdieu ainda esclarece que não é possível a admissão de uma teoria que seja o

paradigma hegemônico e eterno do campo da RI, e que esta seja capaz de definir o Estado

com a perfeição necessária. Isto é importante porque este agente é produtor simbólico e

instituição histórica capaz de construir símbolos e significados, criar e defender a sua

própria verdade, a sua justiça e ainda colocar sua própria criação em constante

transformação. É, em suma, uma instituição estruturada e estruturante, que detém capital

simbólico capaz de criar regras, valores e procedimentos conforme suas necessidades

históricas e conjunturais.

24 Isso ocorre porque o Estado é um agente, ele poderá escolher em seguir o habitus ou se algo for maior do que respeita-lo, isso também é admitido, e totalmente aceitável. 25 Neste sentido, o discurso está fundamentado na objetividade do grupo a que ele se dirige, ou seja, no reconhecimento e na crença que lhe é conferida pelos membros.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo, como ressaltado, tem como problema central a insuficiência teórica do

conceito de Estado utilizado nas RI. Durante a explanação procurou-se demonstrar que as

teorias atuais observam o Estado do seu prisma analítico e ideológico e, com isso, não

conseguem dar conta da complexidade concreta dos fenômenos. Este fator, juntamente com

a quantidade de teorias que têm a pretensão de ser um paradigma, resulta das disputas entre

os teóricos da disciplina. Neste processo, cada teoria define e interpreta este ator/agente

conforme as premissas que lhe dão sustentação analítica e explicativa.

A crítica de Halliday permitiu evidenciar as lutas interparadigmáticas provenientes

das teorias, que se refletem neste conceito. Isto provocou uma estagnação teórica sobre o

Estado, pois não se tem consenso sobre o sentido do conceito de Estado que as RI utilizam.

Com a incerteza teórica e a dificuldade de se produzir um conceito de Estado flexível para

esta área, o oportunismo do conceito realista, que concebe o Estado como uma totalidade

político-territorial, ganhou espaço.

Percebe-se que as teorias estão trabalhando isoladamente, afunilando suas

perspectivas para um pequeno pedaço do objeto, como se fossem produtores de pequenas

peças que, se unidas, formariam a verdadeira teoria. Na busca por um conceito que suporte

toda a complexidade do Estado nas RI, optou-se por utilizar a perspectiva sociológica

(construtivista) de Pierre Bourdieu. É fato que para alguns teóricos o construtivismo é

considerado basicamente uma metateoria, ou corrente vazia, pois a realidade está sempre

sendo construída. Mesmo por esta abordagem, foi possível apontar a possibilidade de

construção de um conceito alternativo de Estado. Contudo, isto implica em observar que

este agente se comporta como uma estrutura estruturada e estruturante, ou seja, é resultado

de contextos, e que produz novos sentidos e realidades porque é capaz de definir, impor e

instituir a violência simbólica.

A perspectiva de Pierre Bourdieu permitiu traçar uma visão de Estado para as RI

que encontra sua confirmação no plano concreto. Conferir ao Estado o status de principal

agente do campo internacional e admitir que ele esteja em constante mudança, é

compreender que este agente adapta-se e modifica a realidade do campo, conforme os

agentes e a estrutura atuem sobre ele. Esta perspectiva pode ser aplicada no plano concreto

com um caso atual: crise econômica norte-americana. Até à emergência desta crise o

Estado deveria atuar e produzir poder simbólico segundo as premissas neoliberais. Com a

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emergência da crise imobiliária, financeira e agora econômica, passou-se a recomendar

“receitas” keynesianas. Desta forma é possível evidenciar que os discursos de apoio ou de

crítica à atuação deste agente, na medida em que são aceitos ou rejeitados — estão em uma

luta simbólica — produzem mudanças no cenário e ações concretas, como as que estão

acontecendo na atuação dos Estados Unidos e países desenvolvidos, em relação às medidas

para tratar desta crise.

Do exposto, pode-se apontar que a perspectiva de Pierre Bourdieu permite pensar o

Estado como um agente, produtor simbólico — dentro de um mercado de bens simbólicos

— que, ao agir, impõe a violência simbólica. A produção de símbolos é notável, e estes

seguem sua vocação (validar um interesse e provocar alienação). A noção de habitus de

Bourdieu, utilizada para descrever tanto a atuação do Estado como a estrutura do campo,

elimina a priori, a possibilidade de anarquia total, mas não a possibilidade de ruptura dos

acordos.

Portanto, a conclusão possível é a de que a perspectiva de Bourdieu apresenta uma

alternativa consistente para se compreender o Estado nas RI. Esta alternativa complementa

as outras perspectivas. Por exemplo, na medida em que o realismo considera a soberania

dos Estados no cenário internacional, na busca de seus interesses nacionais, esta perspectiva

deixa de considerar a influência que a estrutura e os outros agentes estatais exercem sobre

ele, neste processo. O idealismo, ao acreditar que o comércio e a democracia eliminam a

guerra do cenário internacional, porque aumentam os vínculos pelo intercâmbio e controle

popular sobre o exercício do poder, representa uma possibilidade teórica que não foi

efetuada no plano concreto, pois mesmo promovendo o comércio e a democracia as nações

entram em guerra e o próprio contato gerado no processo cria nacionalismos e xenofobias:

possíveis fatores geradores de conflitos. Por fim, o marxismo ao acreditar que o Estado é

uma instituição promovida pela burguesia para atender seus interesses no plano nacional,

esquece que o Estado é também uma estrutura que permite a interação e os reclames de

atores nacionais que detém outro tipo de poder: o do voto ou mesmo o de não obedecer a

regras impostas que não incorporem um mínimo de justiça e reciprocidade. Sob a

perspectiva de Bourdieu, o Estado também é um agente estruturador que produz regras e

cursos de ação que, eventualmente, não atende interesses apenas de classe.

Bourdieu ajuda a superar estes problemas com a idéia de um habitus produzido

pelos agentes que regulam este campo e que, por vezes, os agentes que tem maior capital

simbólico investido nas lutas simbólicas podem alterar este habitus e instituir outros. Neste

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sentido as teorias de RI devem ser entendidas como tendências ou respostas a problemas

típicos de um dado contexto.

Na medida em que, o construtivismo de Bourdieu cede instrumentos de reflexão

para por em causa o objeto, este não pode estar alheio ao campo, pois isso seria negar que

este sofre pressões. Observando este aspecto, as teorias podem ser reavaliadas e

construídas. Em contrapartida, não se pode dizer que Bourdieu fornece uma teoria para as

RI, a priori porque Bourdieu se preocupou em fornecer instrumentos para reflexão sobre as

teorias e os objetos tratados por estas, ou seja, uma metateoria. Talvez seja justamente essa

a sua riqueza. As limitações de Bourdieu para as RI consistem no fato que Bourdieu não

coloca um ponto final na discussão, primeiro porque a natureza de agente não permite isso

e, mesmo que os Estados ocupem uma classe de agentes todo seu capital cultural,

econômico e simbólico precisa ser avaliado nas diferentes situações que se apresentam no

campo, logo seu relativismo e o nível de abstração do poder simbólico é um caminho para

se tentar compreender melhor as diferentes realidades.

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