O Conceito de Spleen Entre a Melancolia e o Tédio

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    Isabela C. Rossi – 117262 - Estudo Dirigido I

    Pretendo, neste estudo, analisar o conceito de Spleen, com vistas ao ciclo de poemasSpleen et Idéal da obra Fleurs du Mal do poeta Baudelaire, o diferenciando dos

    conceitos de melancolia e tédio na obra de Benjamin. Para a escrita desta análiseapreenderemos outras constelações que são expressão da temporalidade e o homemmoderno, a saber: experiência e vivência. No âmbito desta apreensão“temporal”,encontramos o spleen como um diagnóstico de uma crise da percepção, ou, de umadeterioração da sensibilidade na época moderna como consequente da temporalidadedestruidora a qual marca o período.

    Sobre o conceito de Spleen

    A questão da temporalidade (entre a melancolia e o tédio)

    Na obra das Passagens , na seção a qual Benjamin reserva ao Tédio, um dos

    fragmentos parece indicar ao leitor um caminho: ver os dois sentidos detemps emfrancês. Em nota, com isso, refere-se o pensador, ao tempo atmosférico e ao tempo

    cronológico. A princípio, o distanciamento existente entre esses dois tempos, indicauma distinção entre os conceitos de experiência e vivência na obra de Benjamin (e,

    neste caso, na leitura que Benjamin empreende da lírica baudelairiana). Em umacorrelação, esta afirmação significa que o tempo cronológico vincula-se à experiência, eo atmosférico, é o tempo próprio da vivência.

    Entretanto, o que significa a temporalidade ser própria às constelações referidas?Inicialmente, ao fato de que a percepção humana é condicionada historicamente e, dessemodo, está sujeita aos impactos que a temporalidade da época vivida defere. Assim, a

    percepção humana, ou, sua sensibilidade em relação à própria experiência (ou àvivência), pode não sofrer grandes alterações como também estar sujeita a umatemporalidade destruidora.

    Benjamin, em diversos ensaios, como Experiência e Pobreza e emO Narrador , por exemplo, atesta uma crise da percepção, ao tratar de uma crise da experiência. Talcrise, dentre as causas, destaca-se a emergência de uma sociedade mercadológica quetransforma as relações de troca próprias da tradição – próprias à comunidade onde se

    pratica a escuta e a narração – em troca de mercadorias. A experiência, então, éempobrecida em detrimento de um progresso em curso. Este, por sua vez, é

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    empreendido no âmbito de uma temporalidade na qual já não há espaços para o tempoque a tradição carrega, a saber, o de uma experiência plena que se constitui no presenteconjugando-se ao passado. Desse modo, a temporalidade da era mercadológica e daintensificação dos fenômenos urbanos, própria da modernidade – um universofantasmagórico onde tramitam autômatos - destitui a experiência de seu sentido pleno ea elege ao seu empobrecimento, tornando-a mera vivência.

    O tempo, na modernidade, sofre uma desqualificação. Isto significa que tal não émais o da construção, capaz de estabelecer uma relação entre presente e passado1,característica da experiência em seu sentido forte. Mas, fala-se de uma temporalidade própria da modernidade, a saber, de um tempo que se autoconsome. Um tempo vazio e

    destruidor. Nesse âmbito, é na tese 13 sobreos conceitos de história que Benjamin, aonos diagnosticar a pobreza da experiência do tempo presente, afere um pressuposto:

    “A ideia de um progresso da história da humanidade na história éinseparável da ideia de sua marcha no interior de umtempo vazio ehomogêneo . A crítica do progresso tem como pressuposto a crítica daideia dessa marcha.” 2 (grifo meu)

    O vazio e o homogêneo grifados na tese designam a temporalidade da vivência.Tempo mesmo referente ao contexto de recalque social que se segue a 1848 e ao golpe

    de estado de 1851, no qual o indivíduo moderno está imerso num cotidiano banal tal oque Baudelaire – ao assumir a figura do espadachim e abrir um clarão na multidão de

    homens modernos que parece empreender uma marcha como automatos - com sua produção poética oporá resistência. Próprio desse cotidiano é o tédio (taedium vitae ), ou

    índice de participação no “ sono coletivo” 3, como indica Benjamin nas Passagens . Emoutras imagens de seu pensamento, é o tédio “ o pássaro onírico que choca os ovos da

    experiência” 4.

    A relação entre tédio, experiência e o universo dos sonhos e do sono, é explicadaa partir da própria crise dessa mesma experiência: o fenômeno da intensificação da

    urbanização e a própria movimentação das grandes massas conduziu ao fim os espaçosem que os ninhos daqueles pássaros poderiam ser construídos, o que significa afirmar

    1 Como escreve Benjamin emSobre alguns temas em Baudelaire : “Onde há experiência, no sentido próprio do termo, determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, comos do passado coletivo”. ( Cf. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 32).2

    Cf. Teses sobre o conceito da história, p. 229.3 Cf. Passagens, TÉDIO E ETERNO RETORNO, [D 3, 7].4 Cf. O Narrador, p. 62.

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    que levou ao fim a possibilidade da experiência da construção [desses mesmos ninhos].Uma vez não existir mais ninhos, esvai-se a possibilidade de estabelecer um contatocom a tradição, ou, do presente relacionar-se com o passado e“ perde-se com isso o domde escutar e desaparece a comunidade dos que escutam” 5.

    O esfacelamento da experiência justifica-se à medida que ao desaparecer acomunidade de ouvintes já não há matéria comum (experienciada ) a ser trocada e, com

    isso, um anterior “ estado de descontração” 6 no qual se encontravam os ouvintes,necessário à assimilação e incorporação do ouvido, torna-se cada vez mais raro.

    A raridade de tal estado de descontração decorre do fato de que, namodernidade, em decorrência de sua estrutura fantasmagórica produzida pelafetichização das relações, o que Benjamin denomina como experiência dochoc , torna-se

    norma: ocorre uma naturalização do estado psíquico e corpóreo7 dos indivíduos à própria vivência cotidiana, de tal modo que o indivíduo, em seu meio, estáconstantemente em alerta, para aparar os impactos que a ele são deferidos: na multidão,enquanto caminha, na fábrica, enquanto opera. Isto significa, inicialmente, reafirmar suacondição de autômatos e diagnosticar uma crise da percepção espelhada pela crise daexperiência. Isto, pois ochoc , de acordo com Gatti:

    designa um momento em que a memória e a experiência enfraquecemem face da transformação da percepção cotidiana, ou seja, nomomento em que o choque passa a ser a forma dominante pela qual oseventos exteriores atingem a percepção humana.8

    A alteração da estrutura da percepção é vislumbrada por Benjamin a partir damudança da estrutura da poesia lírica na modernidade e de seu declínio. Entretanto, aotratar de tal mudança, Benjamin toma referencial como referencial um lírica acontrapelo: a poesia de Baudelaire. Para o pensador, o poeta francês é o único que, -

    5 Cf. O Narrador, p. 62.6 Cf. O Narrador, p. 62.7 Benjamin disserta, emSobre Alguns temas em Baudelaire , a partir da leitura de Para além do princípiodo prazer de Freud, que, na modernidade, há um “espelhamento” ao sistema percepção -consciência emrelação à vivência e experiência. Tudo aquilo que, ao ser impactado, é diretamente aparado pelaconsciência, torna-se mera vivência. Por outro lado, quando a consciência não age como um redutor deimpactos, é possível, no sistema psíquico, existirem traços mnemônicos. Nesse âmbito é que Benjaminescreve que: “o consciente surge em lugar de um vestígio mnemônico”. O problema consistiria justamente no fato de que o sistema psíquico estaria protegido pela consciência, deixando o corpo emestado de alerta, de maneira que nada do que foi experienciado torna-se um desses traços da memória

    presentes no inconsciente. Toda experiência – traumática ou não – é, então, captada e logo dissolvida pelaconsciência.8 Cf. GATTI, Memória e distanciamento na teoria da experiência de Walter Benjamin, p. 77.

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    como nos indica o título de uma de suas coletâneas de textos -no “auge docapitalismo”, ainda é um lírico, cuja atuação estabelece, ao lançar-se na multidão em busca de uma presa poética, sua condição de homem moderno e, ao mesmo tempo, visaaproximar-se de seu leitor como seu semelhante (“Hipócrita leitor, meu semelhante, meuirmão”, escreve Baudelaire em Au lecteur , poema que inaugura Fleurs du Mal).

    A eleição que Benjamin faz da obra de Baudelaire, Fleurs du Mal, como oúltimo texto de poesia lírica a alcançar ressonância europeia, é realizada em vista daconstatação, pelo próprio Benjamin, de que o poeta foi irredutível em sua missão9, asaber: aparar oschocs que a experiência moderna defere. Trata-se, pois, da tomada de posição, pelo poeta, em vista da emancipação das vivências. Para tal, destaca-se, do

    conjunto de poemas de Fleurs du Mal, o cicloSpleen et Idéal .

    Por conseguinte, destaca-se, precisamente, o palco no qual o“spleen” impõeresistência às condições que o capitalismo emergente cria e desponta comoempobrecimento da experiência. Seja tal a perda do pertencimento às formascomunitárias de convívio, por um lado e, por outro, o sujeito melancólico a vaguearentre os laços fetichizados do convívio social: uma vez que a ele, numa época cuja percepção espaço-temporal sofreu um profundo abalo, a acedia o conduz a tão somente

    meditar e, como um grübler 10, a cavar túmulos, vislumbrar a morte ao vivenciar amorbidez de seu tempo.

    Nesse âmbito, é que o spleen se diferencia da melancolia e do tédio, emboratodos sejam característicos do empobrecimento da experiência. Por um lado amelancolia afirma a inação do homem moderno e o tédio, por outro, emboracaracterístico de uma predisposição em observar o desenrolar das construções que aexperiência empreende ao longo do tempo (os ninhos dos pássaros que o progressolevou ao fim), define também os entraves dessa mesma experiência, uma vez ser ele,expressão, por excelência, do tempo da espera.

    Em Parque Central , de acordo com Benjamin,“o fermento novo e decisivo que, ao penetrar notaedium vitae , o transforma em spleen, é a auto-alienação” 11. Isto significa que,

    9 Cf. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 55.10 De acordo com nota de Jeanne Marie Gagnebin ao livro Tradução e Melancolia de Suzana K. Lajes, o“grübler melancólico é o sujeito ocupado com a grüblen”, ou seja, o sonhar, meditar, matutar. Mas ummeditar sem fundo, estritamente ligado à morte (Cf. LAGES, op. cit., p. 14). 11 Cf. Parque Central, p. 153.

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    amortecido pela experiência do choc, para o indivíduo moderno é normalizada também,sem a ciência do mesmo, a própria pobreza da experiência. Auto-alienação e spleen: a banalização da experiência e a tentativa de emancipação do banal. O sentimento decatástrofe em permanência que caracteriza o spleen, e sua alegoria, cuja imagem

    oferecida é a de uma “ inquietação entorpecida” 12, ao sinalizarem a crise da arte (a produção poética, aqui eleita como exemplo) e da política no século XIX são decisivose característicos à posição que o indivíduo “spleenático” firma, a saber, a posição deresistência.

    Ao compreendermos, então, o spleen como uma armadura à experiência dochoc, forjado entre a acedia melancólica e uma percepção do tempo aguçada de modo

    sobrenatural13

    , é possível afirmar e assimilar a imagem de que“a reflexão de Benjamin émuito mais palco de uma luta entre impulsos metafísicos e melancólicos e a consciência aguda

    de sua patente insuficiência para transformar o presente histórico” 14, como escreve Jeanne-Marie Gagnebin.

    Entretanto, tal patente insuficiência frente à transformação, é que institui ospleen como determinante não só na produção poética do poeta Baudelaire, comotambém, em meados do século XIX, no contexto de quadros parisienses empoeirados

    por um tédio mortal – tal seja o de um desencantamento do mundo – é ponto deeminência (ou predisposição para a emancipação) à reconstituição da experiência. Esta,nesse momento, parece nos encarar em sua forte acepção, em vista à emancipação dasvivências. Assim, em contrapartida ao vazio temporal, do spleen, encarna-se a

    inquietação cuja base e antíteseestão numa outra “face” (se assim podemos definir) que junto do spleen completa o ciclo de poemas ao qual nos referimos, a saber, o Ideal .

    A relação de dependência entre Spleen e Ideal, no sentido de que juntosrealizam a crítica das condições adversas de vida no século XIX, está, inicialmente,forjada naquilo que fundamenta a produção de Baudelaire, e que por sua vez, confere bases ao nascimento de sua poesia. Nesse âmbito, escreve Benjamin:

    O fundamento decisivo da produção de Baudelaire é uma relação detensão em que, nele, se liga uma sensibilidade extremamente elevada auma contemplação extremamente concentrada. Teoricamente, essarelação se reflete na doutrina dascorrespondances e na doutrina da

    12

    Cf. Parque Central, p. 159.13 Cf. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 50.14 Cf. LAGES, op. cit., p. 17.

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    alegoria. Baudelaire nunca fez a menor tentativa de estabelecer umarelação qualquer entre essas duas especulações. A sua poesia nasce dacooperação dessas duas tendências nele encarnadas15.

    A cooperação sugerida por Benjamin, ou, a relação entre a doutrina das

    correspondances e da alegoria, são indicativos, novamente, de que spleen e ideal,embora opostos, digladiam contra um mesmo inimigo: a temporalidade destruidora. Nocaso da doutrina dascorrespondances , o Ideal é apreendido em defesa da rememoraçãode uma experiência realizada em uma vida anterior (como o poema La vie antérieure );na alegoria, por sua vez, o spleen põeà mostra a “experiência morta” que se autointitula“vivência” 16, uma vez que a consciência temporal da modernidade vislumbra a imagemde um universo em ruínas. Como na alegoria barroca, o spleen indica o progredir de um

    declínio, uma destruição da harmonia e unidade eleitas como substância poética noIdeal.

    Spleen e ideal, neste âmbito, ao se revoltarem contra a temporalidadecaracterística da modernidade, realizam cada um a crítica do outro: o spleen ao tempo pleno do Ideal, e este, à negatividade daquele. Entretanto, é essa mesma reciprocidadecrítica que estabelece a união entre ambos e permite apontar desvios críticos aoempobrecimento da experiência, no intento de buscar vias para a realização de uma

    nova forma de experiência.

    A atividade rememorativa do Ideal busca constituir a experiência em seu sentidoforte, tal qual o indicamos no início dessa dissertação, a saber: a da troca, a da narrativa.E, numa maior dimensão, à que diz respeito à constituição de uma comunidade. Arememoração, neste sentido, é, pois, uma necessidade para àquele que se lança contra oschocs deferidos pela experiência moderna.

    No entanto, a rememoração somente é possível no âmbito de uma temporalidadeque não extirpe do indivíduo a capacidade do contato com o outro, ou seja, do indivíduoque, nas condições de vida de uma sociedade mercadológica não tenha se investidonuma experiência automatizada. O que significa dizer que os chocs deferidos pelatemporalidade destruidora, aqui reiterada, tenham imposto a inação no seio das relaçõesentre os homens em detrimento da anterior capacidade de compartilhar, em outrostermos, realizar coletivamente a experiência. Como nos indica o próprio Benjamin, ao

    15 Cf. Parque Central, p. 166.16 Cf. Parque Central, p. 171.

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    afirmar que “onde há experiência, no sentido estrito do termo, entram em conjunção, namemória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” 17.

    A doutrina das correspondances, no âmbito de conjunção de elementos do

    passado individual ao coletivo, apontaria ao que diz respeito - emSobre alguns temasem Baudelaire - à época das festividades, dos cultos, espaços em que se realizava oencontro entre presente individual e passado coletivo, na memória. O que atribui valoraos dias festivos é, pois, o encontro comla vie antérieure , uma vez serem constituintesda doutrina as datas da lembrança - independente de sua conotação enquanto datashistóricas - como nos desenham as duas últimas estrofes de A vida anterior :

    Ali foi que vivi entre volúpias calmas,

    Em pleno azul, irmão das vagas, dos fulgores

    E dos escravos nus, impregnados de odores,

    Que a fronte me abanavam com as suas palmas,

    E cujo único intento era o de aprofundar

    O oculto mal que me fazia definhar.18

    Ao mesmo tempo em que os versos evocam uma aproximação com temposimemoriais, na tentativa de reconstituição da experiência, eles já nos indicam, emespecial na última estrofe, o declínio da época vivida, ou, o atrofiamento da experiênciaentão perdida.

    O cerne da relação entre Spleen e Ideal encontra referência, então, namanutenção de dados de uma experiência que se inviabilizou19, a partir do diálogo

    entre as correspondances e a vida anterior; de modo que em consonância, o spleen

    constitui-se, então, em relação à vida anterior, como atestado de uma profundaconsciência histórica do momento de crise.

    Outras considerações - Spleen : o olhar pós-aurático do jetztzeit

    17

    Cf. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 34.18 Cf. BAUDELAIRE, op. cit., p. 143.19 Cf. GATTI, O ideal de Baudelaire por Walter Benjamin.

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    Esse diagnóstico temporal do spleen firma posição contra o tempo vazio ehomogêneo próprio da modernidade, referenciado na já citada tese 13Sobre o Conceitode História , a qual, por sua vez, afirma que tal temporalidade é inseparável da ideia deum progresso da humanidade. Em contrapelo, o spleen, ao firmar posição crítica daideia de uma marcha do progresso vai ao encontro da defesa de uma temporalidade“saturada de ‘agoras’ ” 20 ( jetztzeit ), tal como é definida pela tese 14.

    Uma crítica ao progresso em detrimento do tempo de agora ( jetztzeit ) encontrar-se-ia no centro do spleen à medida que este acusa a necessidade de progresso que aestrutura mercadológica da sociedade moderna encarna. Isto, pois, é tal essa necessidadea responsável por deflagrar uma crise na percepção do indivíduo moderno, a qual é

    expressa numa deterioração do próprio olhar deste mesmo indivíduo, a saber: a perda daaura i.

    Em Parque Central, Benjamin escreve a definição de “ aura como projeção na

    natureza de uma experiência social entre os seres humanos: o olhar é retribuído” 21. Ao nosreferenciarmos, portanto, ao contexto de perda daquela experiência a qual a doutrina das

    correspondances evoca, podemos apreender o conceito de aura, neste momento, comodependente das experiências somente possíveis no âmbito de uma comunidade, na qual

    a correspondência do olhar, ou, sua retribuição é substância daquela experiência.Retribuir o olhar, essencialmente consiste, em comunicar-se com o outro cujaexperiência é partilhada, em outros termos: aquele que olha espera que o olhar sejaretribuído.

    A vivência, então, ao ser própria de uma temporalidade desqualificada e, dessemodo, não constituir-se como um tempo da espera, desqualifica também o olhar. Ou,destitui-lhe a capacidade de correspondência, uma vez ser a percepção, no interior davivência, fragilizada pela intensidade dos chocs. Isto, pois o indivíduo vive emdeterminado estado de alerta que a tensão produzida pelo meio em que vive o obriga aestar preparado para aparar quaisquer que sejam os impactos exteriores que o atingem.

    Seu olhar, desse modo, é como que posto em estado de alerta para garantir ao indivíduoque não sofra o trauma por nenhum choc.

    20 Cf. Teses sobre o conceito de história, p. 229.21 Cf. Parque Central , p. 161.

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    O olhar aurático, da experiência em seu sentido forte, é transformado em umolhar nu, pós-aurático que caracteriza o tempo da vivência. A partir deste olhar, ohomem moderno não vislumbra a capacidade de receber e retribuir o olhar. Dele, apenasvê o mundo em ruínas, imagens alegóricas, e por isso mesmo, reflete sobre o vazio da própria temporalidade. É o olhar do spleenático, do poeta Baudelaire. Talvez, atémesmo do próprio Benjamin, e, se assim o for, falamos de um olhar colérico, que selança à crítica da ideia da marcha do progresso e dirige-se, nas palavras de Habermas,“contra um reformismo sem alegria, cuja sensibilidade há muito está embotada, tornando-se

    capaz de perceber a diferença entre a reprodução aperfeiçoada da vida e uma vida plena, ou pelo

    menos não malograda” 22.

    Referência Bibliográfica

    BENJAMIN , Walter. Passagens . Tradução por Irene Aron e Cleonice Paes BarretoMourão. Org. de Willi Bolle, colaboração Olgária Mattos. Belo Horizonte; São Paulo,SP: UFMG: Imprensa Oficial do Estado, 2007.(ver: D Tédio e eterno retorno; J:

    Baudelaire) .

    _________________.Parque Centr al in Charles Baudelaire: um lírico no auge docapitalismo . Tradução por Jose Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista.

    _________________.O Narr ador in ColeçãoOs Pensadores . Tradução por ModestoCarone. Abril Cultural: São Paulo, 1974.

    _________________.Sobre alguns temas em Baudelai re in ColeçãoOs Pensadores .Tradução por Edson Araújo Cabral e José Benedito de Oliveira Damião. Abril Cultural:São Paulo, 1974.

    _________________.Sobre o conceito da histór ia in Obras Escolhidas vol. I: Magia eTécnica, Arte e Política . Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense: SãoPaulo, 1987.

    BAUDELAIRE , Charles. As Flores do Mal . Tradução por Ivan Junqueira. NovaFronteira: Rio de Janeiro, 1985.

    22 Cf. HABERMAS, op. cit., p. 204.

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    GATTI , Luciano Ferreira.M emória e distanciamento na teori a da exper iência deWalter Benjamin . Campinas, SP: 2002.

    ______________________.O ideal de Baudelair e por Walter Benjamin . Revista

    Scielo: São Paulo, 2008. Online: http://www.scielo.br/pdf/trans/v31n1/v31n1a07.pdf

    LAGES , Suzana Kampff.Walter Benjami n: Tr adução e M elancol ia . USP: São Paulo,2002.

    i Neste estudo, ainda não nos concentraremos na definição da perda da aura, tal como ela foi tratada porWalter Benjamin em seu ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica , mas apenas noâmbito da alteração da estrutura da sensibilidade que o conceito de vivência introduz, tratado no ensaioSobre alguns temas em Baudelaire . Entretanto, devemos notar que a alteração da estrutura da percepçãotratada pelo último ensaio é anterior a própria crise da aura deflagrada pelo desenvolvimento da técnica.Enquanto no primeiro ensaio Benjamin detém-se ao fenômeno da fotografia e do cinema (início do séculoXX), no segundo, já trata da degeneração que o progresso do capitalismo engendrou. Essas alterações naconcepção do conceito de aura ocorrem entre 1935 e 1939 devido, em especial, pela troca decorrespondências com Adorno, e discussões sobre“A Paris do Segundo Império”. A “aura” aquiconsiderada adquire um sentido posterior ao modo como é tratada no primeiro ensaio: a perda da aura nãosignificava mais a condição de emancipação, no campo das artes, de uma massa participante de certa

    experiência – tal o cinema – possibilitado pelo uso da técnica. A aura, nesta breve análise, remete àexperiência cultual dos tempos imemoriais das Correspondances; ela está contraposta ao progresso àmedida que, no spleen, é diagnóstico da crise da percepção deflagrada a partir daquele.