o Conde Italiano Ermanno Stradelli - Um Mestre Do Nheengatu No Século Xx

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  • O CONDE ITALIANO ERMANNO STRADELLI: UM MESTRE DO NHEENGATU NO SCULO XX

    Ermanno Stradelli nasceu de uma antiga famlia de nobres da cidade de Borgo Val di Taro

    (atualmente na provncia de Parma, Itlia), em 8 de dezembro de 1852. Seu pai, Francesco Stradelli, recebeu o ttulo nobilirquico de conde pouco antes do nascimento do primognito Ermanno. A juventude de Ermanno Stradelli bem descrita por Cmara Cascudo:

    Ermanno vivo, impetuoso, impulsivo, muito comunicativo. Completou os estudos ginasiais no colgio de Santa Catarina, em Pisa. Suas leituras prediletas so as narraes de viagens, que lhe evocavam mistrios, a valentia fsica, o estupor das florestas virgens, dos desertos silenciosos, dos ndios incompreensveis, dos animais fabulosos".

    Estudou Direito em Pisa, estudos interrompidos pouco antes da partida para a Amaznia.

    Completa o curso somente em 1886, com a tese de formatura em Direito Internacional, com um ttulo significativo "Se le nazioni civili abbiano o no il diritto di appropriarsi dei territori occupati da popoli Barbari".

    Em 25 de abril de 1878 Ermanno Stradelli pede para dividir a herana do pai. Tem o desejo de partir. Inicialmente pensa na frica, mas depois opta pela Amrica Latina. Depois de um ano, em 9 de abril de 1879, parte do porto de Bordeaux, na Frana, para o Brasil. Tinha 27 anos. Chega a Belm, depois prossegue para Manaus, para onde embarca no final de julho.

    A sua primeira atividade foi a de fotgrafo. Instalou-se no centro de Manaus. Passa a frequentar os missionrios franciscanos italianos, buscando saber como poderia relacionar-se com os indgenas. Durante a primeira viagem de explorao, em outubro de 1879, perde todo o seu equipamento geogrfico e fotogrfico num naufrgio.

    Comea a se interessar logo pela lngua geral das populaes da bacia amaznica, o nheengatu. Em julho de 1880, navegando pelo Rio Amazonas, conhece o Conde Alessandro Sabatini, que o inicia no estudo daquela lngua.

    Em 1881 visita a zona do Rio Uaups, que era objeto de estudo do grupo de pesquisadores de Manaus ligados ao botnico Barbosa Rodrigues. Maximiliano Jos Roberto, filho de um ndio Manao e de uma ndia Tariana, nos anos posteriores recolher para Stradelli a verso original da lenda de Jurupari. O texto ser depois publicado no boletim da Real Sociedade Geogrfica Italiana.

    Em 1883 vai ao rio Madeira e se fixa depois em Itacoatiara para curar-se de malria, que havia contrado naquela poca. Ali reorganiza a primeiras palavras recolhidas para o seu Vocabulrio.

    Em 14 de fevereiro de 1884 est em Manaus, onde coloca a primeira pedra para a construo do teatro Amazonas, na condio de representante da firma Rossi e irmos, que tinha ganhado a primeira concorrncia para a construo do teatro.

  • Em 29 de maro de 1884, parte como fotgrafo com Barbosa Rodrigues para uma expedio de pacificao dos ndios Crichanas. Stradelli e Barbosa Rodrigues sobem o rio Jauaperi. Retornam a Manaus em 16 de abril do mesmo ano.

    Em agosto de 1884 Stradelli volta Itlia, onde concluiu, entre 1885 e 1886, o curso universitrio de jurisprudncia em Pisa. Em 1886 est em Gnova, onde faz prtica forense junto ao escritrio do advogado Orsini. No mesmo ano apresenta ao VI Congresso Internacional dos Americanistas de Turim os desenhos dos petrglifos recolhidos no Uaups. Em janeiro de 1887 escreve para a Sociedade Geogrfica, comunicando a sua iminente partida para o Brasil. Em fevereiro de 1887, parte para a Amaznia do porto de Marselha.

    Stradelli passou 45 anos no Brasil. Viveu os momentos dourados do ciclo da borracha, assistiu a todos os fatos importantes que acompanharam aquelas dcadas na Amaznia. Seus ltimos anos, porm, foram muito tristes: contraiu lepra, o que o fez ser esquecido pelas elites da poca. Passou seus ltimos trs anos de vida no leprosrio Umirizal, perto de Manaus, totalmente abandonado e pobre. Morreu em 21 de maro de 1926.

    Publicou as seguintes obras:

    1876, Una gita a Rocca d'Olgisio, Tipografia V. Porta, Piacenza 1877, Tempo sciupato, Tipografia Marchesotti 1885, La confederazione dei Tamoi (traduo do portugus da obra de Gonalves de Magalhes),

    Tipografia V. Porta, Piacenza 1890, Il Vaupes e gli Vaupes. Bollettino della Societ Geografica Italiana, 3 srie, vol. 3, pp. 425-453. 1898, Ajuricaba, poema publicado no jornal "O Correio do Purus" 1900, Due legende amazzoniche, Tipografia V. Porta, Piacenza 1900, Pitiapo, editor desconhecido 1910, Vocabulrios de linguas faladas no Rio Branco, in Relatrio Geral do Congresso Cientfico

    Latino-Americano. Vol. VI, Rio de Janeiro. 1928, Vocabulrio Nheengatu-Portugus e Portugus-Nheengatu, Revista do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro.

    Em 1920, Stradelli escrevia as seguintes palavras sobre o nheengatu (publicadas no Vocabulrio Nheengatu-Portugus e Portugus-Nheengatu):

    O Nheengatu e o Guarani [...] tm de comum no s uma infinidade de palavras e razes, mas a construo e feio da frase. A assero no minha. Simpson, no prefcio sua Gramtica de Lngua Geral (1867), accentua o fato de que, ao tempo da guerra do Paraguai, os caboclos do Par e os tapuios do Amazonas se entendiam com relativa facilidade com os paraguaios. A mesma cousa me relata o meu finado amigo, general Dionysio de Castro Cerqueira, ento membro da Comisso de Limites entre o Brasil e a Venezuela, que gostava de entreter as longas horas de acampamento, relatando fatos e episdios da guerra, em que tinha tido a sua primeira promoo.

    Nheengatu, Boa Lngua, o nome que lhe do tanto no Par como no Amazonas os que a falam tradicionalmente como lngua dos seus maiores, aprendida dos lbios maternos. Lngua geral o nome que lhe dado pelos civilizados, que no a falam ou a aprenderam por necessidade, como o meio mais cmodo de entender os filhos do lugar e ser entendido por eles ou pelos semicivilizados, a cujo contato se veem obrigados na labuta diria da vida.

    Abstrao feita de algumas tribos indgenas, que se conservam meio arredias da nossa civilizao e que falam a lngua geral, como a lngua que aprenderam para entrar em relao com os filhos do lugar, donde saem para communicar com o branco, hoje em dia, tanto no Par como no Amazonas, certo no h ningum que, embora de uma instruo rudimentar, ignore o portugus e no o fale mais ou menos corretamente. Em muitos lugares, todavia, deste imenso interior amaznico, alm das tribos que se vm aproximando com maior ou menor relutncia da civilizao, o nheengatu ainda hoje falado, como lngua preferida, por ser a dos avs, da porta da sala para dentro, e de uso corrente entre os filhos do lugar. O portugus ainda, para muitos, a Cariua Nheenga a lngua do branco. E, se j no a lngua do inimigo conquistador, a lngua do estrangeiro, ou, quando menos, a lngua do patro, a lngua alheia. Falar o nheengatu, pois, em

  • muitos casos, uma vantagem para granjear a confiana e, em muitos outros, se torna uma necessidade para todos quantos, comerciantes ou no, pelo seu gnero de ocupao, se encontram em contato direto com o elemento indgena, que ainda preponderante em muitos lugares do nosso interior. Eu pessoalmente, se fosse necessrio, posso atestar isso mesmo.

    (...) A opinio de que a Lngua Geral criao dos jesutas, embora quando cheguei ao

    Amazonas, uns quarenta anos atrs, fosse opinio corrente, basta enunci-la, para confut-la. No se carece ser gramtico nem fillogo para saber que as lnguas so manifestaes vivas e naturais, que surgem necessria e espontaneamente onde h homens reunidos em sociedade. Criao inconsciente da multido annima, no se inventa e menos se impe. Produto espontneo de afinidades tnicas, de aptides psquicas e morais dos grupos que as falam, influenciadas pelo meio, os usos, os costumes, as condies de lugar como pelo grau de civilizao alcanado, as lnguas so organismos vivos que, como outro vivente qualquer, nascem, crescem e se desenvolvem para culminar numa florescncia vigorosa ou estiolar e morrer, seguindo-as fases por que passam os povos a que pertencem.

    O que parece ter podido dar corpo a to estranha crena foi, talvez, o fato de terem sido os jesutas os primeiros e, por muito tempo, os nicos a recolher e disciplinar a lngua em gramticas e vocabulrios, assim como de t-la introduzido aqui no Norte como a lingua com que os missionrios se entendiam com os nefitos, chegando a ensin-la em suas misses de preferncia ao portugus, levados a isso no tanto pelo intuito de subtrair suas misses influncia dos colo-nos, como pela maior facilidade que encontravam para faz-la aprender aos indgenas que conseguiam aldear. As afinidades tnicas facilitaram a tarefa, como foram elas que determinaram a escolha, que a impuseram e que, retiradas as misses, permitiram que a lngua no se extinguisse, pelo que continuou a viver em todos aqueles lugares, que, por serem afastados dos centros populosos e, pelo excesso do elemento indgena, se conservaram como que refratrios, se no hostis, ao elemento portugus, pouco numeroso, alis, em todo o interior da Amaznia para reagir e impor-se neste terreno. A rea em que a lngua geral ainda hoje falada, tanto no Par, como no Amazonas, parece confirmar a hiptese. Com efeito,ela desapareceu em todos aqueles lugares em que o elemento portugus, ou melhor, o elemento brasileiro policiado se tornou verdadeiramente preponderante, assim como no falada naqueles rios aos quais as misses jesuticas nunca chegaram. As misses sucessivas, menos metdicas, nada organizaram de duradouro.