O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida · crença verdadeira justificada adquiriu muitos...

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Luís Estevinha Rodrigues O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA ACADEMICA 1 Luís Estevinha Rodrigues O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida ISBN: 978-989-8553-23-2

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Luís Estevinha Rodrigues

O Conhecimento como Crença

Verdadeira Garantida

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

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ISBN: 978-989-8553-23-2

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida

AUTOR: Luís Estevinha Rodrigues

COLECÇÃO ONLINE: Academica 1

EDITOR: ©Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Autor, 2013. Este livro ou partes dele não poderão ser reproduzidos sob qualquer forma, mesmo electrónica, sem explícita autorização do Editor e do Autor

CAPA: Carla Meneses Simões. Detalhe de “A Queda”, Michelangelo, Capela Sistina, 1535

ISBN: 978-989-8553-23-2

APOIO:

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LUÍS ESTEVINHA RODRIGUES

O CONHECIMENTO

COMO

CRENÇA VERDADEIRA GARANTIDA

Centro de Filosofia

da Universidade de Lisboa

2013

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Índice

Tabela de figuras............................................................................................................ 2

Prefácio .......................................................................................................................... 3

Citações .......................................................................................................................... 5

Introdução ...................................................................................................................... 6

PRIMEIRA PARTE ....................................................................................................................... 10 1. Notas Introdutórias Sobre a Definição Tradicional do Conhecimento ................. 11

2. Teorias Inaugurais Pós-Gettier ................................................................................ 32

3. Justificacionismo ...................................................................................................... 50

Primeiro Interlúdio ................................................................................................... 80

4. Não-justificacionismo ............................................................................................ 103

5. Outras teorias ........................................................................................................ 126

SEGUNDA PARTE .................................................................................................................... 150 6. Rumo a um modelo da garantia epistémica ........................................................ 151

Segundo interlúdio ................................................................................................. 225

7. Um argumento ...................................................................................................... 229

Bibliografia Primária ...................................................................................................... a

Bibliografia Secundária ................................................................................................... f

Manuais de apoio ........................................................................................................... f

Webgrafia e imagens ...................................................................................................... f

Índice remissivo .............................................................................................................. I

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Tabela de figuras

Figura 1 ______________________________________________________________________________ 139

Figura 2 ______________________________________________________________________________ 141

Figura 3 ______________________________________________________________________________ 143

Figura 4 ______________________________________________________________________________ 143

Figura 5 ______________________________________________________________________________ 168

Figura 6 ______________________________________________________________________________ 170

Figura 7 ______________________________________________________________________________ 171

Figura 8 ______________________________________________________________________________ 213

Figura 9 ______________________________________________________________________________ 214

Figura 10 _____________________________________________________________________________ 215

Figura 11 _____________________________________________________________________________ 215

Figura 12 _____________________________________________________________________________ 216

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Prefácio

É um lugar-comum dizer que um trabalho académico está em constante

reformulação e parece sempre incompleto aos olhos de quem o produz. O presente caso

não é diferente, bem pelo contrário. Volvidos dois anos da apresentação da tese exposta

neste livro, e apôs cuidada releitura, fica-me a impressão de que ela contém várias

imprecisões descritivas e argumentativas. Por outro lado, parece-me também agora

evidente que várias críticas à sua estrutura podem ser lançadas com inteira justiça, em

especial no que se refere à dispersão de tópicos abordados em torno do tema central: a

natureza do conhecimento. Esta dispersão resultou dos desideratos de infalsicabilidade e

exaustividade da tese defendida. A materialização destes desideratos era obviamente, vejo

agora, um sonho impossível de realizar.

Não obstante, o trabalho concretiza, por um lado, uma investigação séria e

genuinamente própria em torno de um problema filosófico relevante, exibindo, por outro

lado, uma proposta de solução bem definida para esse problema. No que diz respeito a

esta última, compete dizer que as intuições e ideias que estiveram na sua génese tiveram

continuidade em três artigos publicados em revistas da especialidade com boa cotação.

Não sendo este facto suficiente para aferir em definitivo o mérito dessa proposta, ele é no

entanto indiciador da sua plausibilidade.

Crucialmente, defendi na tese que o processo pelo qual é possível determinar as

condições necessárias e suficientes para uma crença ser um estado epistémico

maximamente positivo e, logo, ser conhecimento, deve ter lugar na (1) compreensão do

que faz uma crença ser um estado de ignorância, e que só depois de concretizada essa

determinação é possível (2) inverter as condições suficientes para a ignorância em

condições necessárias—e suficientes—para haver conhecimento. A plausibilidade do

sistema assenta, defendi eu, na intuição de que é mais fácil determinar o que faz com que

uma crença não seja conhecimento do que determinar o que faz dela conhecimento. Nunca

o tendo dito explicitamente na primeira versão do trabalho, vejo agora com clareza que a

minha intuição era (e ainda é) a de que o conceito de ignorância é explicativamente mais

primitivo que o conceito de conhecimento, simplesmente porque é mais fácil de

estabelecer o que é ignorar algo do que estabelecer o que é conhecer algo. Era essa

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primitividade explicativa da ignorância que permitiria, no meu entender, explicar melhor o

fenómeno do conhecimento. Claro que a execução de (1) revelou-se muito mais fácil e

plausível do que a execução de (2). O problema com (2) é que, embora as condições

inversas das condições suficientes para a ignorância se apresentem, na generalidade, como

condições necessárias para o conhecimento, não parece ser satisfatório supor que a

efetivação do conjunto destas últimas seja suficiente para haver conhecimento. O

problema não está pois (mais uma vez, como é hábito surgir na literatura) na demonstração

da necessidade dessas condições, mas sim na demonstração da sua suficiência conjunta.

O trabalho agora editado em livro contém algumas alterações relativamente à

versão de tese de doutoramento que lhe está na origem, a qual foi submetida em 2010 na

Universidade de Lisboa, onde foi aprovada com distinção e louvor por um júri de filósofos

nacionais e internacionais. Corrigiram-se algumas gralhas. O número de secções

disponibilizadas no índice foi também agora reduzido em nome da parcimónia estrutural.

A disposição gráfica foi alterada de modo a facilitar a leitura. Todas estas alterações são

contudo acessórias, não introduzindo qualquer mudança s ubstancial à estrutura geral da

obra ou ao seu conteúdo teórico.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Adriana Silva Graça, minha dedicada orientadora, tudo o que

fez por mim. Sem ela a confusão teria sido muito maior e o resultado final por certo muito

mais pobre. Agradeço também ao júri a suas pertinentes interrogações e sugestões.

Agradeço igualmente à Fundação para a Ciência e Tecnologia e ao Centro de Filosofia da

Universidade de Lisboa, que me apoiaram a vários níveis.

Desejo também agradecer aos meus pais, que tudo fizeram para que eu pudesse

alcançar o meu sonho de estudar e fazer filosofia. Agradeço à Vera, minha mulher, que me

deu o apoio e o alento necessários, estando incondicionalmente ao meu lado em todos os

momentos. Agradeço, por último, à Cloé. Por nascer, ela deu-me a motivação de que eu

necessitava para percorrer a distância que ainda faltava para a meta.

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Citações

áà o s i iaàhu a aàfoiàfeitaàpa aàpa tilha àideias.àQue àdize ,àaài te fa eàhu a aàdo utilizador foi criada pela evolução, quer biológica q uer cultural, e surgiu em resposta a uma inovação comportamental: a actividade de comunicar crenças e planos e de trocar ideias. Isto transformou muitos cérebros em muitas mentes e a distribuição de autoria tornada possível por esta interconectividade é não somente a fonte da nossa enorme vantagem tecnológica sobre o resto da natureza como da nossa moralidade (Dennett 2003: 270)

H à uitoà ueàdoisàp o le asà ueàdize à espeito ao conhecimento humano me têm intrigado. O primeiro é o de explicar como é que podemos saber tanto a partir de uma evidência tão limitada. O segundo é o de explicar como podemos saber tão pou oàaàpa ti àdeàta taàe id ia (Chomsky 1986: 15)

áà sa edo iaà o sisteà u aà sóà oisa,à e à o he e ,à o à juízoà e dadeiro, como todasàasà oisasàs oàgo e adasàat a sàdeàtudo. à(Fr. 41, Diógenes Laércio ix, 1)

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Introdução

A célebre falsificação por Edmund Gettier (1963) da chamada Definição Tradicional

do Conhecimento (doravante abreviada para DTC) deu origem a um problema no seio da

epistemologia contemporânea que teve repercussões por todo o espectro filosófico. Esse

é o chamado Problema de Gettier, o qual é também por vezes referido como o Problema

da Quarta Condição. Como veremos, a ideia de que o conhecimento não pode ser apenas

crença verdadeira justificada adquiriu muitos adeptos desde essa altura. A consciência do

problema deu origem a sucessivas tentativas de análise do conhecimento, análises que se

propunham corrigir, refinar ou mesmo substituir a análise submetida pela DTC. Na

sequência das sucessivas falsificações a que foram sujeitas essas novas análises, a ideia de

não ser possível encontrar uma análise do conhecimento foi recrutando partidários um

pouco por todo o lado. Da nossa perspectiva, o resultado desta abundância de análises e

falsificações acabou por não ser o melhor, pois as dificuldades para se perceber quais são

as condições necessárias e suficientes para alguém ter conhecimento, ao invés de serem

mitigadas, agravaram-se substancialmente na sequência da discussão, continuando o

problema aparentemente por solucionar.

O objectivo deste trabalho é apresentar uma resposta alternativa quer às usuais

respostas analíticas ao Problema de Gettier quer às respostas que demitem liminarmente

a possibilidade de uma análise. Por um lado, o nosso ob jectivo não passa certamente por

submeter qualquer análise do conhecimento. Não desejamos também defender ou sequer

melhorar qualquer uma das análises que foram sendo submetidas e falsificadas no período

pós-Gettier. Por outro lado, também não desejamos abraçar as mais recentes e

conceituadas teorias sobre a impossibilidade de se encontrar uma análise do conceito de

conhecimento. Desejamos pois seguir por uma terceira via. O nosso objectivo passa por

apresentar uma elucidação do fenómeno do conhecimento proposicional que não consiste

numa análise, mas que não descura o que de melhor foi proposto por várias tentativas de

análise. Crucialmente, preocupa-nos o processo de satisfação de condições por via do qual

uma atitude de crença numa proposição verdadeira se torna excelente do ponto de vista

epistémico. Pensamos e defendemos que a excelência epistémica de uma crença deriva do

facto de estar epistemicamente garantida, no sentido em que a satisfação de um conjunto

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de condições permite à crença ser apropriada e infalsificavelmente verdadeira, quer dizer,

no sentido em que a faz ser um estado epistémico maximamente positivo. No final do

trabalho propomos um argumento, provisional e não dogmático, para apoiar a ideia de que

este estado de crença epistemicamente excelente e o estado de conhecimento são o

mesmo estado.

Dividimos o trabalho em duas partes, cada uma contendo várias secções e

subsecções. Cada uma das partes inclui também dois interlúdios, nos quais se discutem

tópicos colaterais ao tópico principal mas que, como o leitor certamente concordará depois

de os ler, não podem deixar de ser abordados.

Na primeira parte, secções 1.1. a 1.6., introduzimos a maquinaria elementar para a

compreensão e subsequente tratamento do problema que nos ocupa. As secções 1.7. e

1.8. introduzem aspectos históricos, quanto a nós fundamentais, para haver uma boa

compreensão do problema. As secções 1.9. e 1.10. introduzem o problema propriamente

dito. As secções 1.11. e 1.12. remetem para a motivação para solucionar o problema e para

algumas posturas teóricas adoptadas em função do mesmo. Nas secções 2.1. a 2.6.

inspeccionamos e discutimos algumas das primeiras e mais proeminentes tentativas

encetadas para solucionar o problema, entre as quais se encontram, por exemplo, as

tentativas de Brian Skyrms ou de Peter Unger. Já as secções incluídas na secção 3 são

dedicadas a um conjunto de três correntes de pensamento que visam ou visaram

aprimorar a noção de justificação (a qual está no âmago do problema por nós discutido).

Entre outras, serão visitadas as teorias da justificação de Alvin Goldman, Earl Conee &

Richard Feldman e Richard Foley. Nessa sequência, o Primeiro Interlúdio versa sobre os

tópicos da estrutura e da origem da justificação epistémica. São revistas as posições

clássicas e algumas das discussões cruciais no interior desse tópico. A secção 4 marca uma

viragem de perspectiva e contém secções dedicadas a teorias do conhecimento que não

recorrem à noção de justificação, algumas das quais usam conceitos modais para erigir

análises do conhecimento, enquanto outras propõem definições do conhecimento tendo

por base concepções naturalistas do mesmo e da sua origem. Nesta secção visitaremos,

também entre outras, as perspectivas de Robert Nozick e de Ernest Sosa. Por último, a

secção 5 é votada a inspeccionar teorias do conhecimento que, julgamos nós, pela sua

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natureza peculiar, não se encaixam em nenhum dos grupos anteriormente estudados de

teorias. Nesta linha, dedicamos a secção 5.2. a uma teoria que sugere uma definição do

conhecimento que, também em nossa opinião, compila o que de melhor é oferecido pelas

teorias modais e naturalistas inspeccionadas na secção 4. Trata-se da teoria híbrida de

Duncan Pritchard. A secção 5.3., na qual nos deteremos um pouco mais do que nas outras,

é dedicada a estudar uma recente e conceituada teoria, da autoria de Timothy Williamson,

segundo a qual o conhecimento nem é decomponível nem é, por isso mesmo, susceptível

de ser analisado.

A conclusão geral da primeira parte do trabalho é a de que nenhuma das teorias aí

descritas oferece, só por si, uma solução completamente satisfatória para o problema em

discussão. Mais especificamente, concluiremos também no final desta primeira parte que

nenhuma das análises inspeccionadas é satisfatória, uma vez que, por terem contra-

exemplos, são todas falsas (ou não são sequer análises).

Na segunda parte submetemos a nossa proposta de solução do problema.

Começamos, na secção 6.1., por formular elucidações do fenómeno de um estado

epistémico positivo, as quais aceitaremos condicionalmente enquanto hipóteses de

trabalho, até submetermos a nossa defesa da sua plausibil idade. Depois, na secção 6.2,

introduzimos aquelas que nos parecem ser as principais intuições constantes na literatura

a propósito das condições necessárias e suficientes para ocorrer um estado epistémico

maximamente positivo. Fazemo-lo com o intuito de mostrar, no final da segunda parte,

que a nossa solução acomoda bem todas essas intuições, o que quanto a nós contribui para

mostrar a sua plausibilidade, bem como para dar a essa solução alguma vantagem teórica

face às suas concorrentes. Posto isto, viramo-nos para a perspectiva de William Alston

sobre quais são os principais desideratos epistémicos. Discutimo-los e convertemo-los em

condições. Essa revisão vai ter lugar nas secções 6.3.1/2/3. Não convencidos pelo resultado

final a que chegámos no decorrer dessa inspecção, em termos da suficiência das condições

sugeridas por Alston, propomos na secção 6.4 uma mudança de metodologia, face ao que

é habitual, no que respeita à identificação das condições necessárias e suficientes para

ocorrer um estado epistémico maximamente positivo. Como primeiro passo de

implementação dessa metodologia, tentamos na secção 6.5. identificar estados de crença

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que sejam candidatos plausíveis ao estatuto de estado epistémico maximamente positivo.

Assumindo que encontrámos esses candidatos, tentamos a partir deles propor nas secções

6.6.1/2 critérios para a identificação das condições necessárias e suficientes para a

ocorrência desses estados. As secções seguintes, 6.7. e 6.8., são reservadas para essa

tarefa, e na secção 6.9. antecipamos algumas objecções ao método que usámos,

respondendo-lhes. O segundo interlúdio remete-nos para a discussão de uma escolha que

o nosso sistema parece forcar-nos a fazer, a escolha entre particularismo e metodismo.

Acabamos por fazer essa escolha (escolhendo o particularismo), tratando, depois disso, na

última secção, a 7, de submeter um argumento a favor da ideia de que estados epistémicos

maximamente positivos, tal como os elucidámos, são afinal estados de conhecimento.

Finalizamos com uma breve conclusão.

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PRIMEIRA PARTE

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1. Notas Introdutórias Sobre a Definição Tradicional do Conhecimento

1.1. Resumo

A segunda metade do século XX viu ressurgir o interesse por uma definição precisa

do conhecimento. O objectivo desta secção é oferecer uma introdução ao tema. Começo

por introduzir algumas noções básicas de análise, de definição, de conhecimento

proposicional,àdeà e ça,àdeà e dadeàeàdeà te ei aà o diç o .àUso-as depois para aclarar o

que está em jogo quando se fala de uma definição/análise tradicional do conhecimento.

Faço-o passando em revista aqueles que me parecem ser os acontecimentos filosóficos

que mais diretamente contribuíram para a estruturação da definição/análise tradicional,

dando depois especial relevo aos argumentos de Edmund Gettier que conduziram,

segundo muitos, à falsificação da referida definição. Finalizo a secção com uma tipologia

resumida das respostas ao chamado Problema de Gettier, preparando dessa forma o

terreno para efectuar uma digressão e uma discussão substancial de algumas dessas

respostas.

1.2. Análises

Algumas definições são sustentadas por análises. Distinguem-se actualmente três

tipos fundamentais de análise: a análise decomposicional, a análise regressiva, e a análise

transformativa (Beaney 2009). Avanço de seguida um breve esclarecimento sobre cada

tipo.

Uma análise decomposicional visa a explicitação de um conceito por via da

decomposição desse conceito em conceitos mais primitivos, mais claros e mais

compreensíveis. Por exemplo, explicitar e definir o conceito de luz usando os conceitos de

onda e de partícula é ensaiar uma análise decomposicional do conceito de luz. Supondo

que os conceitos de onda e de partícula, o analisans, são mais primitivos e mais claros que

o conceito de luz, o analisandum, e supondo também que a extensão conjunta dos

conceitos que constituem o analisans é, necessariamente, a mesma que a do conceito que

constitui o analisandum, quer dizer, tudo o cai sob o domínio do conceito a definir cai

também sob o domínio dos conceitos que definem esse conceito, então uma análise

decomposicional do conceito de luz em termos dos conceitos de partícula e de onda é o

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mínimo exigível para que se possa avançar uma definição para o conceito de luz. Grosso

modo, a definição teria portanto o seguinte formato:

Algo X é luz se, e somente se, é uma partícula, uma onda, ou ambas.

A bicondicional material na definição sinaliza uma equivalê ncia necessária das

extensões dos conceitos que ocupam ambos os lados dessa bicondicional, o que se afigura

como o mínimo para que a análise possa obter.1

Uma análise regressiva (ou redutiva) consiste em proceder-se retroactivamente até

se encontrar os princípios, teoremas ou causas fundamentais daquilo que se deseja definir

ou explicar. A demonstração, definição ou explicação são depois alcançadas por via de um

processo de síntese que consiste em assumir-se esses princípios, teoremas ou causas

fundamentais, e proceder-se progressivamente até se alcançar essa demonstração,

definição ou explicação. Por exemplo, a explicitação clássica do conceito de Número

Natural é tornada possível por uma análise regressiva da noção de número em termos de

certos axiomas e princípios: os Axiomas de Peano e os Princípios de Igualdade e de

Sucessor. A explicitação do conceito é depois obtida por um processo de síntese construído

a partir desses axiomas e princípios.

O terceiro tipo de análise é a chamada análise transformativa ou interpretativa, por

vezes também chamada análise lógica, semântica ou linguística. Grosso modo, oferecer

uma análise transformativa de um conceito, proposição, frase, etc., é transformá-lo nos

seus componentes linguísticos, sintácticos, semânticos, lógicos, etc., e defini-lo à luz dos

mesmos. Nesta acepção, analisar transformativamente aàp oposiç oà Todosàosàho e sà

s oà o tais à ,àpo àexe plo,àtransformar esta proposição nos seus constituintes lógicos

identificados pela Lógica de Predicados (de primeira ordem). À luz desta lógica, o resultado

daàa liseàse àpo ta toàalgoàdoàg e oà Pa aàtodoàoà x, se x é homem então x à o tal à

[em símbolos: x (Hx →àDx)].

1 A equivalência extensional é alegadamente apenas uma das condições necessárias para que uma análise

decomposicional seja completamente bem-sucedida. Outras condições são que a bicondicional seja analítica e a priori.

(Devo em especial o esclarecimento deste importante ponto ao professor João Branquinho, o qual agradeço). Não me irei

deter nesta discussão porque, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, a implementação da tese central deste

trabalho não depende da pressuposição de uma qualquer análise decomposicional do conceito de conhecimento.

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A literatura trata por norma as análises dos conceitos de conhecimento, de

justificação e de garantia como análises decomposicionais. Como se verá adiante, uma

análise decomposicional do conhecimento falha se o seu analisans não satisfaz o seu

analisandum, quer dizer, quando não existe no mínimo uma equivalência extensional

necessária entre analisans e analisandum, ou o primeiro é viciosamente circular, por

conter e usar o último.

Importa nesta fase avaliar uma notável objecção à possibilidade de análise do

conceito de conhecimento (aplicando-se aparentemente o problema a qualquer análise de

qualquer conceito). Trata-se do chamado Paradoxo da Análise, uma extensão natural do

Paradoxo da Investigação identificado por Platão no Ménon (71b, 79c e 80d). Uma

interpretação possível do paradoxo é a seguinte: se, por um lado, não se sabe de antemão

e pré-investigação o que é o objecto da investigação, então a investigação torna-se

impossível, porque não se sabe o que é o alvo da investigação e, portanto, não há forma

de se descobrir se a investigação acerca dessa coisa é ou não bem-sucedida; se, por outro

lado, se sabe de antemão e pré-investigação o que é o objecto da investigação, então esta

torna-se redundante, uma vez que nesse caso o objectivo é alcançado antes mesmo de

essa investigação ocorrer. Segue-se, aparentemente, que qualquer tentativa de

investigação está condenada ao fracasso, uma vez que ou é impossível ou é desnecessária.

Algo de semelhante pode ser insinuado acerca de qualquer tentativa de análise: ou não

pode ser bem-sucedida pelo simples facto de não se conseguir detectar quando é que é

esse sucesso ocorre, ou é redundante, na medida em que o sujeito da análise já está

encontrado antes de se efectuar a análise.

Uma proposta usual de solução para o problema passa por sugerir que quem enceta

uma investigação ou uma análise dispõe à partida de suficiente informação para identificar

correctamente o alvo da sua investigação ou análise, isto apesar de não ter à partida uma

definição completa e acabada dessa coisa. Se isto estiver minimamente correcto, então é

possível encetar uma investigação ou uma análise sobre o que quer que seja, desde que

quem o faça disponha de alguma informação de base que permita direccionar essa

investigação e enquadrar essa análise. Ora, se há coisa que os epistemólogos do século XX

e XXI possuem em abundância é informação—teorias, definições, noções, argumentos,

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etc.,—sobre a natureza do conhecimento. Seria implausível que dois mil e quinhentos anos

de investigação filosófica incidente sobre estes tópicos não tivessem produzido resultados

minimamente plausíveis. Pode-se portanto rejeitar com alguma segurança o Paradoxo da

Análise (Sorensen 2009), uma vez que existe muito e bom material que permite, a quem o

deseja, identificar satisfatoriamente um conceito pré-teórico de conhecimento, um

conceito que se estabelece como objecto e alvo de investigação filosófica.

1.3. Definições

Sugeri acima que uma análise decomposicional do conceito x em termos dos

conceitos w, z, y visa obter uma definição de x. Mas qual é o tipo de definição que se

procura obter por via de uma análise decomposicional?

Lite atu aà e e teàespe ializadaà oàtópi oà defi iç o à efe eà iosàtiposàpossí eisà

de definição, discutindo-os (Gupta 2009). Os mais comuns são: definição real, definição

nominal, definição ostensiva, definição descritiva, definição estipulativa, definição

extensionalmente adequada, definição intensionalmente adequada, definição explicativa

(informativa), definição circular e definição não-circular. Como em quase tudo em filosofia,

as próprias definições destes tipos de definição são alvo de debate, mas podemos ensaiar

definições mínimas para elas e usá-las condicionalmente. Assim, costuma supor-se que

uma definição real de x visa apresentar a coisa x via o que é essencial a x (a água é H20), e

que uma definição nominal de x visa captar a coisa x via as propriedades de x (a água é um

líquido incolor). A distinção nem sempre é clara, muito menos pacífica. Uma definição de

x é ostensiva quando o objecto x é apresentado por exibição directa de x. Uma definição

de x é descritiva quando o objecto x é apresentado descritivamente. Uma definição de x é

estipulativa sempre que a explicação do que x é resulte de uma estipulação. Uma definição

é extensionalmente adequada sempre que a extensão dos conceitos do definiendum e do

definiens for a mesma. Uma definição é intensionalmente adequada sempre que as

expressões no definiendum e no definiens tenham o mesmo significado (a mesma

intensão). Uma definição de x é explicativa desde que o definiens acrescente informação á

informação disponibilizada pelo definiendum. Uma definição de x é não-circular desde que,

sendo x o definiendum, x não faça parte do definiens. Como se verá, alguns filósofos

defendem que há definições viciosamente circulares e definições virtuosamente circulares.

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O critério, se há critério, nem sempre é de fácil apreensão, pelo que opto por uma avaliação

caso a caso das propriedades de vício ou de virtude da circularidade de uma definição.

Os epistemólogos concordam geralmente que uma definição do conhecimento

deve ser no mínimo extensionalmente adequada e informativa, não podendo ser

viciosamente circular (Lehrer 1974: 7-9).

1.4. Conhecimento proposicional ou factual

Uma definição do conhecimento é obviamente sobre o conhecimento. Mas que

tipo de conhecimento? A literatura do último século distingue por norma dois tipos gerais

de conhecimento: o proposicional (knowing-that) e o não-proposicional ou de habilidade

(knowing-how). A diferença normalmente apontada é, grosso modo, a seguinte. O

conhecimento proposicional é o conhecimento de uma proposição ou de um facto, o

conhecimento não-proposicional envolve uma habilidade ou uma competência, sendo

geralmente apontado como um tipo de conhecimento que não envolve necessariamente

uma crença numa proposição. A autoria da distinção é por norma apontada a Gilbert Ryle

(Stanley & Williamson 2004: 411-444). Depois de imputarem a autoria da distinção a

Gilbert Ryle (Ibidem 412, nota 4) e a David Lewis (Ibidem 411, nota 2), Stanley e Williamson

defendem que o todo o conhecimento não-proposicional é redutível a conhecimento

proposicional—ou que todo o conhecimento é proposicional ( Ibidem 417 e ss). A tese de

Stanley e Williamson não tem qualquer impacto na presente tese. Se, por um lado, todo o

conhecimento e proposicional, então a presente tese é sobre todo o conhecimento. Se,

por outro lado, algum conhecimento é não-proposicional , então a presente tese, uma vez

que é sobre o conhecimento que envolve uma proposição, deixa de fora essa parte do

conhecimento que não envolve uma proposição.

Se o conhecimento proposicional implica que a proposição conhecida é verdadeira,

supondo, como supõem por exemplo alguns defensores da teoria da verdade como

correspondência, que uma proposição implica um facto no mundo que torna a proposição

verdadeira, segue-se alegadamente que o conhecimento proposicional é não apenas o

conhecimento de proposições verdadeiras mas também o conhecimento dos factos que

tornam essas proposições verdadeiras. O conhecimento proposicional é por isso também

por conotado com o conhecimento factual.

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Existe também quem faça a distinção entre conhecimento de uma proposição e

conhecimento de um objecto ou de uma coisa. A distinção parece ter origem em Bertrand

Russell. Hintikka (1996: 251-275) faz uma defesa da distinção usando lógica epistémica.

Esta discussão não se inclui no âmbito deste trabalho, n em nos parece ser crucial para o

seu bom desenvolvimento, e portanto não vai ser mais tida em consideração

A literatura refere vários subtipos de conhecimento proposicional. Conhecimento

comum, conhecimento científico, conhecimento técnico, conhecimento a priori,

conhecimento a posteriori, conhecimento por descrição, conhecimento perceptual, entre

outros. Não é de todo fácil estabelecer uma tipologia exaustiva e maximamente explicativa

de todos os subtipos de conhecimento proposicional. Por exemplo, há quem distinga

´ o he i e to/sa e à ue…`à Knowing-that) ou conhecimento descritivo, de

´conhecimento/saber por que` (Knowing-why), ou conhecimento explicativo (Kim 1994:51-

69). Igualmente difícil é perceber as fronteiras e as zonas de intersecção. Mas não nos

devemos afligir em demasia com esta diversidade. Importa reter que sempre que se falar

de conhecimento nesta primeira secção estar-se-á a falar de conhecimento proposicional,

conhecimento de proposições verdadeiras, independentemente do tipo de conhecimento

específico para que remete o tipo de proposição conhecida.

1.5. Crença

Todas ou quase todas as análises do conhecimento contemporâneas pressupõem

que o conhecimento implica no mínimo a crença proposic ional. A seguinte implicação

define uma condição necessária para o conhecimento:

i) Se S sabe que p, então S acredita que p.

Há contudo casos que parecem disputar a necessidade desta condição. Trata-se de

casos em que, prima facie, a antecedente de i é verdadeira e a sua consequente falsa. O

caso mais paradigmático de disputa da condição de crença na l iteratura é talvez o caso do

aluno que acerta na resposta à questão do teste sem todavia acreditar nessa resposta.

Suponha-se que um aluno responde correctamente numa prova escrita de História

de Portugal que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. Aparentemente, o

aluno não acredita que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal porque, também

aparentemente, não se recorda do que estava escrito sobre o assunto no seu manual

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escolar de História. Podemos supor que ele se recorda que D. Afonso Henriques foi um dos

reis de Portugal, mas que não se recorda que ele foi o primeiro rei de Portugal. Ainda assim,

continuamos a supor, ele decide arriscar e a sua resposta está correcta, uma vez que D.

Afonso Henriques foi de facto o primeiro rei de Portugal. Esta correcção da resposta pode

levar-nos a considerar a hipótese de ele saber que D. Afonso Henriques foi de facto o

primeiro rei de Portugal mesmo sem acreditar (i.e., sem ter uma crença) nessa proposição.

Contudo, por outro lado, não parece ser razoável atribuir conhecimento ao aluno que se

encontra nesta situação, pois ele acertou na resposta por mero acaso e, como veremos

adiante com algum detalhe, isso colide com a forte intuição de que não há conhecimento

quando um agente acerta acidentalmente na verdade.

A ortodoxia é a de que não há conhecimento sem haver concomitantemente

crença, sendo relativamente consensual que há crença sem haver conhecimento. Timothy

Williamson (2000: 42), por exemplo, crê que não estarem disponíveis contra-exemplos

para a tese da necessidade da crença.2 Para ele, à falta de evidência em sentido contrário,

só há conhecimento se houver crença. Há no entanto quem não concorde com esta

perspectiva (Radford 1970: 1-11). Correndo o risco de sermos obrigados a rever a nossa

posição se confrontados no futuro com informação suplementar, assumimos que

Williamson et al estão correctos no que diz respeito à necessidade de haver crença para

haver conhecimento.

No que respeita à definição de crença, utilizarei aquela que me parece mais comum

no seio da discussão epistemológica contemporânea (que não necessariamente a mais

comum noutras áreas da filosofia e das ciências, como por exemplo na filosofia da mente

ou nas ciências da cognição). Opto portanto pela defini ção clássica segundo a qual crenças

são essencialmente atitudes proposicionais. Quer dizer, é uma crença é uma disposição

que um agente tem para aceitar uma proposição como sendo verdadeira. Nesta acepção

minimalista e sobejamente restritiva, uma crença é simplesmente uma atitude de adesão

a uma proposição (Russell 1918).3

2 Williamson remete o exemplo do aluno para outros filósofos. Não é contudo fácil perceber a origem exacta do

caso.

3 O sentido de “crença” que usamos não se deve confundir com o sentido religioso, científico, político, ideológico,

etc., de “crença”. Trata-se de um sentido que se deseja o mais possível neutro.

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Esta definição bastante rude não toma nota da diferença entre crença numa

proposição, por um lado, e aceitação de uma proposição, por outro. A distinção é sugerida

por Cohen (1993: 4). O seu ponto é o de que uma crença pode ser descrita como uma

disposição de um agente S relativamente a uma proposição p, embora essa disposição não

implique que S aceite p no sentido de usar p como premissa ou como ponto de partida

para uma acção. Este tipo de eventos exige, ainda segundo ele, mais do que uma crença

em p; exige uma inequívoca aceitação de p. Alguém pode por exemplo não aceitar uma

proposição e no entanto crer nessa proposição. S pode recusar-se a aceitar que o cão está

doente porque não deseja perdê-lo; mas pode, apesar disso, acreditar que o cão está

doente ao ter evidência nesse sentido (o seu veterinário disse que o cão está de facto

doente). Esta distinção não é contudo essencial para os propósitos deste trabalho. Nele

supomos que há por parte de S uma aceitação de que p sempre que S acredita que p.

1.6. Verdade

Todas as definições/análises antigas ou contemporâneas do conhecimento

pressupõem que o conhecimento implica a verdade da proposição conhecida. Se essas

definições estiverem correctas, a seguinte condicional tem de ser verdadeira

ii) Se S sabe que p, então p

Nesta acepção (há por certo muitas outras) rudimentar, a verdade não é algo

relativo ao foro interno do agente. Consideramos que a propriedade que uma proposição

tem de ser verdadeira não é algo que seja produzido pela mente de um agente. A verdade

tem de ser aqui entendida como uma condição independente da mente, uma condição

externa: o que é verdade é o que é o caso, não o que o agente pensa ser o caso ou o que a

sua mente constrói como sendo o caso.

A definição de verdade que iremos adoptar é a seguinte: uma proposição é

verdadeira, ou pelo menos contingentemente verdadeira, desde que corresponda a um

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facto no mundo actual.4/5 Claro que esta definição não é muito informativa e levanta

dificuldades. Por exemplo, que tipo de facto sustenta a verdade de uma proposição

u i e salàafi ati aà o oà Todosàosàho e sàs oà o tais ?àHa e à es oàtalàfa toà oàdeà

todos os homens serem mortais)? A questão não vai ser aqui respondida. A nossa definição

rude de verdade cumpre um único objectivo: prevenir a possibilidade de haver

conhecimento de proposições falsas. Com isto não queremos dizer que não se possa saber

que uma determinada proposição é falsa. Queremos somente dizer que uma proposição

falsa não pode ser objecto de conhecimento.

1.7. A Terceira Condição Necessária

Alguns filósofos contemporâneos atribuem a Platão o mérito de ter inaugurado a

investigação sobre a natureza das condições necessárias e suficientes para haver

conhecimento (Cf. Chisholm 1966: 5-6, e Audi 2003: 220). Surgem com efeito no Ménon e

no Teeteto bons indicadores que Platão tinha em mente indagar a natureza dessas

condições.6 Por exemplo, no Ménon

“ó ates—Portanto, para uma pessoa que está no estado de ignorância, acerca de

coisas que não sabe, existem, dentro dela, opiniões verdadeiras acerca daquilo que ignora?

Ménon—Pa e eà ueàsi (Platão, Ménon 85c)

Esta passagem parece supor que o conhecimento depende da satisfação de pelo

menos duas condições (vide também Sofista 260 b-c). A primeira é a de que o agente (neste

caso o jovem escravo) tenha uma opinião (doxa). A segunda é a de que essa opinião seja

verdadeira. Esta concepção recebe apoio no final do diálogo, quando Platão acrescenta

uma terceira condição necessária para haver conhecimento.

4 Muito embora a definição vá de encontro às nossas preferências no que concerne a uma teoria da verdade—teoria

da verdade como correspondência—, não nos é contudo possível fazer uma defesa substancial da referida teoria neste

trabalho. Devemos por isso estar preparados para rever as nossas preferências.

5 De acordo com a semântica dos mundos possíveis, uma proposição é contingentemente verdadeira se, e só se, há

pelo menos um mundo possível no qual é falsa. Esta restrição é necessária para evitar que o conhecimento seja apenas

conhecimento de verdades necessárias.

Sobre as diversas teorias da verdade disponíveis e respectivos problemas, ver Blackburn & Simmons, 1999: 1-28.

6 Para uma defesa mais elaborada da tese que Platão sustentou uma definição tripartida do conhecimento vide Fine

1979: 369.

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“ó ates— … à Estou-me a referir às opiniões verdadeiras. Na verdade, estas,

durante todo o tempo em que permanecem em nós, operam uma bela riqueza e tudo

quanto é bom. Mas elas não aguentam ficar muito tempo e fogem da alma humana, de

modo que são dignas de pouco valor, enquanto uma pessoa as não prender, por raciocínio

expli ati o (Platão, Ménon 98a)

Trata-se pois de assentar a opinião verdadeira em algo mais. Algo que possa de

algum modo garantir que a verdade não escapa ao agente. Algo que possa garantir ao

agente que a sua opinião é de facto verdadeira. Segundo se depreende, o que permite essa

garantia é a explicação racional.

Já no Teeteto, Platão contempla ainda mais explicitamente a hipótese de a opinião

verdadeira ter de ser acompanhada de modo a obter o estatuto de conhecimento.

Teeteto—Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e ouvi

alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião

a e teàdeàexpli aç oàseàe o t aà à a ge àdoàsa e (Platão, Teeteto 201c-d)

Ouàseja…

“ó ates— … à ua doàalgu à hegaà àopinião verdadeira sobre alguma coisa, sem

explicação, a sua alma encontra-se na verdade a respeito disso, mas não a conhece. Com

efeito, aquele que não for capaz de dar e receber uma explicação sobre algo ignora-o. Por

sua vez, se chegou a uma explicação, não só isso lhe veio a ser possível, como além disso

te à o pleta e teàoàsa e (Platão, Teeteto 202 c)

Este enunciado deixa claro que Platão via com bons olhos uma definição do

conhecimento que contivesse no mínimo três condições separadamente necessárias e

conjuntamente suficientes para haver conhecimento. São elas:

i) Que o agente tenha uma opinião;

ii) Que essa opinião seja verdadeira;

iii) Que o agente consiga explicar (sustentar, justificar) racionalmente essa opinião.

Mas Platão também estava ciente das dificuldades que se deparam a quem deseja

propor uma definição do conhecimento simultaneamente informativa e livre de

p o le as.à Depoisà deà lo gaà i estigaç o,à eà i satisfeitoà o à aà sua à p opostaà deà u aà

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terceira condição, Sócrates reconhece que nenhuma das definições do conhecimento

inspeccionadas por ele e por Teeteto é inteiramente satisfatória. Conclui então, com uma

boa dose de cepticismo envolvida nessa conclusão, que nenhuma das hipóteses

investigadas até esse momento da investigação consegue dar conta da natureza do

conhecimento. Eis a passagem relevante:

“ó ates—Por conseguinte, Teeteto, o saber não será sensação, nem opinião

verdadeira,à e àexpli aç oàa o pa hadaàdeàopi i oà e dadei a (Platão, Teeteto 210 a-

b)

O cepticismo é compreensível dada a dificuldade do problema. E apesar do

aparente auto-reconhecido falhanço de Platão em fornecer uma definição plausível e

convincente, é presumivelmente desde a altura em que ele encetou a tentativa que a

interpretação canónica acerca da natureza do conhecimento passa por uma definição

decomponível em elementos mais primitivos.

Não tendo sido completamente esquecida ou abandonada, a ideia de que o

conhecimento implica opinião ou crença verdadeira reavivou-se apenas no final do século

XIX e no começo do século XX.7 Bertrand Russell (1912) foi certamente dos primeiros a

recuperá-la no século XX. Russell alega explicitamente que a conjunção de crença e

verdade pode não ser suficiente para haver conhecimento. Segundo diz, casos há em que

alguém acredita na verdade acidentalmente ou com base em falsidades, o que impede que

esses casos possam ser realmente creditados como casos de conhecimento. Crucialmente,

Russell questiona-se sobre o que faz a diferença entre mera crença verdadeira e

conhecimento. Embora não ofereça uma análise do conceito de conhecimento em sentido

estrito, Russell parece inclinar-se para a ideia de que este é um género de opinião ou crença

com elevada probabilidade de ser verdadeira. Esta ideia leva-o contudo a concluir, algo

cepticamente, que não devemos colocar grandes esperanças em adquirir uma definição

precisa do conhecimento, uma vez que tal definição implicaria que a vagueza associada à

7 Embora seja um facto raramente mencionado, a concepção de que o conhecimento é crença subjectivamente e

objectivamente verdadeira encontra-se na principal obra de Kant (1997: B 850 e B 851).

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noção de probabilidade pudesse ser evitada, algo que Russell pensa ser bastante difícil de

alcançar.8

Só no entanto na segunda metade do século XX floresce realmente o interesse por

uma definição do conhecimento apoiada por uma análise decomposicional do conceito de

conhecimento. Subsistem poucas dúvidas sobre o facto de a discussão contemporânea à

volta da definição/análise do conhecimento se ter iniciado com o célebre artigo de Edmund

Gettier (1963: 121-123), artigo no qual a chamada Definição Tradicional do C onhecimento

é, conforme consensualmente reconhecido, falsificada. Curiosamente, e a confiar em Alvin

Plantinga (1993a: 7),àasàexp essõesà Defi iç oàT adi io alàdoàCo he i e to àeà á liseà

T ipa tidaà doà Co he i e to à sóà pa e e à te à sidoà u hadasà após o artigo de Gettier.9

Existem contudo análises tripartidas e quadripartidas do conhecimento anteriores a esse

artigo, sendo as mais salientes provavelmente as que são mencionadas no próprio artigo,

as de Carl Lewis (1946: 9), Alfred Ayer (1956), Roderick Chisholm (1957: 16).

Tal como Platão e Russell, Lewis preocupa-se em diferenciar o conhecimento da

mera crença verdadeira. Da sua perspectiva, o conhecimento não só tem de ser crença

verdadeira como tem também de ser crença verdadeira justificada.

Tal como Platão, Russell e Lewis, Ayer também está preocupado em diferenciar o

conhecimento de mera crença verdadeira. Grosso modo, Ayer defende que o que

estabelece a diferença entre um agente ter uma crença verdadeira que não é

conhecimento e ter uma crença verdadeira que é conhecimento é o facto de esse agente

ter o direito a ter a certeza que aquilo em que acredita é verdade.

A preocupação de Chisholm é similar em muitos aspectos à de Lewis e Ayer. Para

Chisholm, o que faz com que uma crença verdadeira seja conhecimento é o facto de o

agente da crença ter evidência suficiente para a verdade daquilo que é alvo da sua atitude

de crença.10

1.8. A Definição Tradicional Tripartida do Conhecimento

8 Russell rejeita neste lugar que a probabilidade de a verdade de uma opinião possa ser dada pela coerência dessa

opinião com as crenças pertencentes a um sistema coerente de crenças, uma vez que há sistemas coerentes de crenças

falsas.

9 A expressão “Definição Tradicional do Conhecimento” surge explicitamente em Skyrms 1967: 373.

10 A definição é posteriormente refinada em Chisholm 1966: 5 ss.

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Foram acima descritas cinco propostas de definição/análise do conhecimento, são

elas:

Platão: Conhecimento é i) opinião, ii) verdadeira, iii) acompanhada de explicação racional;

Russell: Conhecimento é i) crença, ii) muito provavelmente verdadeira;

Lewis: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) justificada;

Ayer: Conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) acompanhada de certeza, porque iv) o agente da crença tem legitimidade epistémica suficiente para ter a certeza;

Chisholm: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) evidencialmente sustentada.11

Gettier supõe, no seu artigo, que as definições de Ayer e Chisholm são equivalentes

à definição de Lewis. A definição discutida e posteriormente rejeitada por Gettier,

correntemente chamada Definição Tradicional do Conhecimento (DTC), é portanto a

seguinte:

DTC: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) justificada.

Quer dizer,

i) S acredita que p;

ii) p;

iii) A crença de S que p está justificada.

A DTC assenta numa análise decomposicional do conceito de conhecimento, uma

vez que o conceito analisado, o conceito de conhecimento, é decomposto em conceitos

aparentemente mais primitivos, mais claros e mais explicativos que esse conceito. Trata-

se de uma análise tripartida do conhecimento uma vez que a análise estabelece três

condições separadamente necessárias e conjuntamente suficientes para que haja

conhecimento.12 A DTC congrega portanto três teses sobre a necessidade de cada condição

11 Adoptamos aqui a formulação que surge em Chisholm (1977: 102).

12 Existem diversas análises tripartidas ou quadripartidas do conhecimento, ou seja, análises que propõem três ou

quatro condições necessárias e suficientes, mas existe apenas uma definição/análise tradicional do conhecimento.

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com uma tese sobre a suficiência conjunta das três condições. Cada uma destas quatro

teses pode ser, e geralmente é, alvo de discussão.13

1.9. Contra-exemplos originais à DTC

A DTC falha se pelo menos uma das quatro teses supracitadas falhar. Podemos por

exemplo supor, tal como fizemos acima de forma condicional, que a tese da necessidade

da crença para haver conhecimento é falsa. Se fosse este o caso, então a DTC seria falsa.

Já para falsificar a tese da necessidade da crença seria necessário apresentar um caso em

que o agente tivesse conhecimento que p sem ter concomitantemente a crença que p. Para

falsificar a tese necessidade da verdade que p, teríamos de divisar um caso em que o

agente tivesse conhecimento que p sem ser verdade que p (talvez a mais rejeitada das

hipóteses de falsificação). E para falsificar a tese da necessidade da justificação da crença,

teríamos se apresentar um caso no qual o agente soubesse que p mas em que a crença do

agente que p não estivesse justificada.

Gettier não rejeita nenhuma das teses da necessidade. O que rejeita no seu artigo

é apenas a tese da suficiência conjunta das três condições. O seu ponto é simplesmente

que a tese da suficiência tem contra-exemplos e que, por conseguinte, a DTC não pode

estar em ordem. Segundo esta perspectiva, há casos em que um agente S tem uma crença

verdadeira justificada que p e ainda assim não tem conhecimento que p. Os contra-

exemplos originais sugeridos por Gettier no seu artigo introduzem dois casos em que,

plausivelmente, isto acontece. Revisito de seguida o segundo contra-exemplo para ilustrar

o ponto.

Suponha-se que Smith possui no momento t evidência para acreditar

justificadamente que

(a) Jones tem um Ford.

Suponha-se também que Smith não tem qualquer forma em t de saber onde possa

estar o seu amigo Brown. Apesar disso, Smith infere a partir de (a) as seguintes proposições

b) Jones tem um Ford ou Brown está em Boston;

c) Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona;

13 Sobre as três teorias da necessidade vide Audi (2003: 220 ss). Sobre eventuais problemas que podem assolar as

três teses da necessidade vide, por exemplo, Steup (2008).

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d) Jones tem um Ford ou Brown está em Brest-Litovsk.

Por um acaso fortuito, mas sem que Smith possua qualquer evidência nesse

sentido, Brown está de facto em Barcelona nesse momento, e, portanto, c é verdadeira.14

E Smith possui evidência para acreditar justificadamente que c é verdadeira, uma vez que

possui evidência para acreditar justificadamente que a é verdadeira. Sendo assim, Smith

acredita justificadamente que c é verdadeira e c é de facto verdadeira. Contudo, diz Gettier,

nestas circunstâncias não pode ser atribuído a Smith conhecimento de c. Não pode, pois a

crença de crença Smith acerta de forma acidental na verdade de c. Este é então,

alegadamente, um caso em que um agente tem uma crença verdadeira justificada que não

é conhecimento.

Embora possam existir variações, os contra-exemplos de Gettier e outros similares

que designaremos tipo-Gettier partilham uma mesma estrutura:

1) S tem uma crença, C, que p;

2) A evidência que S tem para C não é suficiente para estabelecer a verdade de p, uma vez que p é falsa, mas essa evidência é suficiente para justificar C;

3) S infere q a partir de p e forma a crença justificada, C*, que q nessa base inferencial;

4) C* é verdadeira, uma vez que q é verdadeira;

5) S tem uma crença verdadeira e justificada, C*, que q;

6) C* não é conhecimento, uma vez que S acredita acidentalmente na verdade de q; não é a justificação de C* que estabelece a ligação entre essa crença e a verdade de q, e portanto não basta S ter uma crença verdadeira e justificada para ter conhecimento.

Agora, o ponto 2 depende da aceitação de que há crenças justificadas falsas. Ter

evidência para r pode ser suficiente para justificar a crença que r, mas pode não ser

suficiente para estabelecer a verdade de r. Por outro lado, o ponto 3 depende do princípio,

nem sempre pacífico (ao qual voltaremos na secção 4.2.2), segundo o qual a justificação se

transmite através de implicação lógica (Gettier 1963: 121). O ponto 4 assenta na ideia que

se podem formar crenças verdadeiras a partir de crenças falsas. Estes podem constituir-se

14 (c) é uma disjunção. A lógica proposicional elementar diz-nos que uma disjunção só é falsa no caso de ambos

os disjuntos serem falsos.

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como problemas para os contra-exemplos avançados por Gettier, mas outros contra-

exemplos do mesmo tipo conseguem evitar as críticas e as objecções movidas aos contra-

exemplos originais.

1.10. Outros contra-exemplos à DTC

Sem prejuízo da sua eficácia na falsificação da DTC, os contra-exemplos

apresentados por Gettier não são talvez os mais intuitivos. Sofrem também, além disso, de

alguns problemas estruturais. O debate sobre a sua eficácia, a forma de os contornar, e

sobre novas propostas de definição do conhecimento trouxe outros contra-exemplos que,

para além de mais acessíveis e mais intuitivos, parecem evitar algumas objecções

inicialmente a levantadas aos originais. Como dissemos acima, alguns desses contra-

exemplos não dependem, por exemplo, do facto de haver crenças justificadas falsas a

partir das quais se infere crenças verdadeiras ou do próprio princípio do fecho (para a

justificação).

Seguem-se agora mais quatro contra-exemplos à DTC. O objectivo da exposição é

diversificar a amostra de contra-exemplos disponíveis à referida definição e preparar o

terreno para introduzir mais a fundo o debate do chamado Problema de Gettier, por vezes

designado por Problema da Quarta Condição, uma vez que parece haver uma quarta

condição necessária para haver conhecimento.

Keith Lehrer (1974: 18-19) sugere uma variante mais intuitiva do segundo contra-

exemplo de Gettier. Esta variante, a que vamos chamar Nogot (na linha do que surge na

literatura), tem o mérito de simplificar o segundo caso de Gettier, evitando em especial a

introdução de uma disjunção arbitrária.

Suponha-se que Smith possui evidência para acreditar justificadamente que um seu

aluno tem um Ferrari. A crença de Smith está justificada porque Smith costuma ver Nogot,

um seu aluno, a conduzir um Ferrari, além de Nogot ter dito a Smith que tinha um Ferrari,

etc. Contudo, não é de todo verdade que Nogot seja proprietário de um Ferrari, isto apesar

de toda a evidência aduzida nesse sentido. Porém, um outro aluno de Smith, Havit, é de

facto proprietário de um Ferrari, embora Smith não possua qualquer evidência nesse

sentido. Temos então que a crença de Smith que um seu aluno tem um Ferrari é

verdadeira, porque Havit tem realmente um Ferrari, e está justificada, porque Smith tem

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evidência suficiente para acreditar justificadamente que um seu aluno (que Smith julga ser

Nogot) tem um Ferrari. As três condições estabelecidas pela DTC são portanto satisfeitas,

mas não pode ser creditado conhecimento a Smith acerca de um seu aluno ter um Ferrari.

Tal como acontece no segundo contra-exemplo de Gettier, existe um desfasamento óbvio

entre a evidência que justifica a crença de Smith e o facto que torna essa crença verdadeira.

Dito de outro modo, Smith tem evidência para acreditar justificadamente na proposição

u à euàalu oàte àu àFe a i àpo ueàte àe id iaàpa aàa edita àjustifi ada e teà aà

proposiç oà Nogotàte àu àFe a i à p oposiç oàfalsa ,à oàpo ueàte haàe id iaàpa aà

a edita àjustifi ada e teà aàp oposiç oà Ha itàte àu àFe a i à p oposiç oà e dadei a).

Sendo assim, aceita-se que Smith tenha uma crença justifi adaà aàp oposiç oà te hoàu à

alu oà ueàte àu àFe a i ,à asà oàseà editaà o he i e toàaà“ ith,àpoisà o p ee de-

se que a justificação que Smith tem para a sua crença nessa proposição não é a correcta.

Tendo como objectivo de mostrar que o conhecimento não pode ser meramente

crença verdadeira, Bertrand Russell imagina a seguinte situação, a que vamos chamar

Broken-clock (1948: 170).15 Suponha-se que S olha para um relógio que marca 12h00 no

exacto momento em que são 12h00. O relógio está contudo avariado. Sem que S possa

sabê-lo, o relógio avariou no dia anterior e parou exactamente às 12h00. Vinte e quatro

horas depois, o relógio marca 12h00 no momento exacto em que S olha para ele. Não

possuindo qualquer razão para pensar que o relógio está avariado e parado, S forma a

crença de que são 12h00 com base na indicação dada pelos ponteiros do relógio. Como

são realmente 12h00, a crença é verdadeira. E uma vez que o relógio marca 12h00 e S não

sabe que o relógio está avariado, a crença de S de que são 12h00 está justificada. Sendo

assim, a crença de S é verdadeira e está justificada. Uma vez mais, porém, não pode ser

creditado a S—nesse momento e nessas circunstâncias—conhecimento acerca da hora

correcta. Algo mais seria necessário para que S tivesse esse conhecimento. Seria

necessário, em particular, que a justificação que S possui para a sua crença verdadeira fosse

suficiente para estabelecer a ligação entre essa crença e o facto de serem 12h00, o que

não acontece, uma vez que não é a justificação mas sim o acaso que estabelece essa

ligação. Essa ligação entre crença e verdade é também neste caso meramente acidental.

15 O caso que agora apresento tem algumas diferenças em relação ao original.

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Tal como descrito, o caso dispensa o princípio do fecho para a justificação, uma vez

que S não faz qualquer inferência, limitando-se a constatar as horas ao olhar para os

ponteiros do relógio.

Roderick Chisholm (1977: 105) propõe um caso, a que vamos chamar Sheep, que

transporta os contra-exemplos para a província da percepção.

Suponha-se que S acredita que está uma ovelha na encosta porque ao olhar para a

dita encosta vê um animal que lhe parece ser uma ovelha. Mas esse animal é afinal um cão;

digamos, um cão tão semelhante a uma ovelha que levou S a confundi-lo por uma, sem no

entanto se dar conta da sua confusão. Contudo, por mero acaso, há realmente uma ovelha

na encosta, embora S não a consiga ver, uma vez que, por estar atrás de uma rocha, se

encontra fora do campo visual de S. Assim, S tem uma crença verdadeira e justificada de

que está uma ovelha na encosta. A crença é verdadeira porque está de facto uma ovelha

na encosta, e está justificada porque a evidência (perceptual) que S possui justifica a sua

crença. Apesar disso, diz Chisholm, não é possível creditar a S conhecimento de que está

uma ovelha na encosta. Não é possível pois, uma vez mais, a justificação de S não

estabelece a ligação apropriada entre a crença na proposição e o facto descrito por essa

proposição. S tem realmente evidência para justificar a sua crença, pois vê um animal

muito similar a uma ovelha, mas essa evidência não é a evidência necessária e suficiente

para que S possa saber que está uma ovelha na encosta. Essa evidência teria de ser, no

mínimo, a experiência visual da ovelha que está na encosta.

Alvin Goldman (1976: 773) discute um célebre contra-exemplo, que designaremos

por Barney, à DTC e à teoria habitualmente designada por fiabilismo (a qual voltaremos na

secção 3.5.1) Este é por norma visto como um contra-exemplo muito especial, ao introduzir

circunstâncias de acidentalidade incomuns, mesmo tendo como medida os elevados

padrões de acidentalidade apresentados pelos habituais contra-exemplos tipo-Gettier.

Suponha-se que, ao passear pelo campo, S se depara com um número considerável

de imitações de celeiros. Estas imitações são da perspectiva visual de S indistinguíveis de

celeiros reais. Encaixado no meio das imitações de celeiros está no entanto um celeiro. Ao

olhar para esse celeiro, S forma naturalmente crença de que está a ver um celeiro (ou de

que o edifício que vê é um celeiro, ou que está ali um celeiro). S tem portanto uma crença

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verdadeira (é verdade que o edifício é um celeiro) e justificada (por S ter evidência visual

nesse sentido). É todavia difícil creditar conhecimento a S de que está ali um celeiro. Esta

é a intuição que guia muitos epistemólogos quando se recusam a atribuir esse

conhecimento a S nestas circunstâncias muito particulares.

Ao contrário dos casos anteriores, o problema aqui não parece residir num

desfasamento entre a evidência disponível para S e a verdade da proposição de que é alvo

a crença de S. Com efeito, parece que S dispõe de toda a evidência de que necessita para

sustentar a sua crença, quer em quantidade quer em qualidade. Todavia a sua crença

poderia facilmente ter sido falsa. Para tal bastaria que S tivesse olhado para uma das

muitas imitações de celeiro disponíveis no seu campo visual ao invés de olhar para o

celeiro. Esta fragilidade introduzida por circunstâncias muito especiais de acidentalidade

faz com que a crença de S não possa ser reconhecida como conhecimento.

1.11. Porquê tentar uma solução para os contra-exemplos de Gettier?

Esta primeira amostra de contra-exemplos apenas levanta ligeiramente o véu sobre

a real dimensão do problema.16 Como veremos nas secções seguintes, algumas reações ao

Problema de Gettier deram origem a novos e sofisticados contra-exemplos, a que se

seguiram novas tentativas de reparar a DTC, novas soluções e novos contra-exemplos.

Parece-nos que esta espiral nunca foi realmente parada, constituindo-se com um nó górdio

da epistemologia contemporânea.

Face à proliferação de soluções propostas para o Problema de Gettier e quando

confrontados com a espiral, alguns filósofos argumentaram contra o projecto de solucionar

o referido problema. No essencial, e na nossa interpretação, o ponto destes filósofos é o

de que não faz sentido procurar uma definição apropriada para o conhecimento desde que

esteja disponível uma definição apropriada para a justi ficação, uma definição que seja

suficientemente explicativa ao ponto de dar conta de um vasto número de sucessos

cognitivos.

No lado oposto da barricada, outros filósofos apresentaram argumentos contra

esses argumentos e a favor da necessidade de solucionar o Problema de Gettier e de

encontrar uma definição apropriada do conhecimento. Earl Conee é um destes filósofos.

16 Uma referência explícita ao Problema da Quarta Condição pode ser encontrada em Pollock (1986: 9).

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Contra as perspectivas de Michael Williams e David Kaplan, em especial contra a de Kaplan,

segundo as quais uma resolução do Problema de Gettier ou é um projecto espúrio, uma

vez que é uma vã tentativa de responder ao cepticismo epistemológico (Williams), ou é

inútil, uma vez que nem dá, nem pode vir a dar, conta daquelas que devem ser as

finalidades da investigação racional e correcta (Kaplan), Conee escreve o seguinte:

áà atu ezaà daà o e taà i estigaç oà depe deà daà fi alidadeà daà i estigaç o.à áà

finalidade da pura investigação racional não é ter uma crença verdadeira justificada. É ter

conhecimento. Assim, quem meramente faz o que é necessário para ter uma crença

justificada pode não ter o que realmenteàp o u a (Conee 1988: 55)

Segundo julgamos ter percebido da passagem, importa resolver o Problema de

Gettier porque o principal desideratum epistémico e epistemológico é o conhecimento,

não a crença verdadeira justificada. Se o mais importante do ponto de vista compreensão

dos fenómenos epistémicos fosse elucidar a natureza da justificação (epistémica), então

empenharmo-nos numa cruzada pela correcta definição do conhecimento iria afigurar-se

como uma iniciativa desprovida de sentido, uma vez que compreender o que é a

justificação epistémica (ou a crença verdadeira justificada) seria suficiente para satisfazer

a nossa curiosidade sobre o principal desideratum epistemológico. Assumindo que a

compreensão do que é a justificação epistémica não é suficiente para a compreensão dos

mais importantes fins da cognição, uma vez que o fim último e mais importante da

cognição é o próprio conhecimento, impõe-se continuar a investigação sobre a natureza

deste último.

Esta valoração do conhecimento face à justificação não é contudo pacífica. Por

exemplo, Pollock diz o seguinte:

A teoria do conhecimento é uma tentativa de responder à questão ´como sabes ue…?`,à asà estaà à u aà uest oà so eà como sabemos algo, e não sobre o

conhecimento per se. Ao perguntarmos como é uma pessoa sabe algo estamos habitualmente a perguntar o que sustenta a sua crença. Queremos saber o que justifica essa pessoa a ter essa crença. Assim, tradicionalmente a epistemologia debruçou-se mais sobre a justificação epistémica do que sobre o conhecimento. A epistemologia deveria ser chamada ´Doxalogia`(Pollock 1986: 7)

Tanto Conee como Pollock parecem ter boas razões a apoiar as suas preferências.

Não cremos todavia que essas razões produzam uma vantagem assinalável para qualquer

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das partes, embora nos inclinemos ligeiramente para a perspectiva de Conee, porque a

ideia de que o conhecimento é o fim último da cognição e da investigação racional, e, logo,

o que de mais relevante há a ser explicado no interior da epistemologia, é algo que se nos

apresenta como bastante intuitivo.

O restante do presente trabalho de alguma forma alinha com as duas perspectivas,

pois daremos especial relevância a uma solução para o problema de Gettier que contemple

uma explicação do processo (de satisfação de condições) pelo qual uma crença chega a

estar epistemicamente garantida a ponto de ser conhecimento.

1.12. Reações aos contra-exemplos de Gettier

Submete-se agora, em jeito de preparação das restantes secções desta primeira

parte, uma tipologia simplificada das principais reações ao artigo de Gettier. Segundo nos

parece, estas reações podem ser dispostas em três categorias mutuamente exclusivas e

conjuntamente exaustivas. Na primeira categoria inserem-se todas aquelas reações que se

propõem recuperar a DTC, por norma adicionando uma quarta condição que complementa

a condição de justificação. Na segunda categoria inserem-se todas aquelas reações que

propõem uma nova definição com base numa análise tripartida, quadripartida ou n-

partida, que substitui completamente a condição de justificação por outra ou outras

condições (Compare-se com Williams 2001: 29). Na terceira categoria incluem-se aquelas

reações que rejeitam que o conhecimento possa ser definido por via de uma análise, não

sendo contudo essa rejeição impeditiva de ser avançada uma elucidação do conceito de

conhecimento.

A duas primeiras correntes, que no fundo se estabelecem como as bases do

programa analítico de que falávamos acima, dominaram a investigação filosófica durante

cerca de quatro décadas. Esse domínio foi recentemente desafiado por Timothy

Williamson (2000: 42), ao defender a impossibilidade de uma análise simultaneamente

não-circular e informativa do conceito de conhecimento. Como veremos na secção 5.3., a

sua perspectiva é a de que qualquer analisans do conceito de conhecimento inclui o

analisandum, i.e., inclui o próprio conceito de conhecimento, o que torna, ainda segundo

ele, viciosamente circular qualquer tentativa de definir o conhecimento por via de uma

análise. Como também veremos, esta linha de argumentação tem vindo a ser contestada.

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Mas por ora vamos centrar a nossa atenção nas duas primeiras correntes e nas mais

salientes propostas que lhe dão vida.

2. Teorias Inaugurais Pós-Gettier

2.1. Resumo

Esta parte do trabalho é dedicada a algumas das primeiras tentativas para

solucionar o Problema de Gettier. As teorias que nasceram dessas tentativas procuraram

fundamentalmente corrigir a DTC. Fizeram-no ora sugerindo uma definição revista,

embora na mesma linha da original, ora sugerindo uma definição que tendia a romper com

a terceira condição da DTC.

Mesmo usando uma tipologia simplificada, situar e reunir com precisão estas

tentativas iniciais num determinado grupo de teorias é uma tarefa difícil, uma vez que é

igualmente difícil identificar os aspectos comuns às diferentes propostas de solução por

elas apresentadas. Sendo assim, optámos por seguir um esquema de apresentação e de

comentário dessas propostas de solução que assenta fundamentalmente em dois critérios:

o cronológico e o da relevância (de cada proposta para as discussões que se lhe seguiram).

O objectivo a cumprir nesta secção passa por identificar os problemas de que

padecem essas propostas de solução, problemas que aparentemente condenaram essas

soluções ao fracasso.

Sobre esta consideração, há a dizer que ela não é de todo um exclusivo do corrente

trabalho, surgindo, como veremos, directa ou indiretamente defendida na literatura.

Todavia, pela parte que nos toca, não nos podemos contudo dar ao luxo de a assumir

tacitamente. Dedicamo-nos pois de seguida a tentar entender que razões se encontram na

sua origem, bem como se essas razões obtêm ou não.

2.2. A teoria da ausência de falsas razões

A teoria sobre a qual agora me debruço surge por vezes na literatura (Huemer 2002)

como sendo a primeira resposta ao artigo de Gettier. Segundo Michael Clark (1963: 46-48),

o autor dessa resposta, o conhecimento é crença verdadeira justificada, em que a

justificação da crença deve ser compreendida como justificação total ou completa, na

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medida em que não deriva de qualquer falsidade (no false lemma).17 Desta perspectiva, o

conhecimento ocorre aquando da satisfação das três condições estipuladas pela DTC e da

satisfação de uma quarta condição.

A ideia de Clark é prima facie atraente. Considere-se o conjunto de fundamentos

ou razões no qual assenta uma determinada crença. Se esses fundamentos forem

verdadeiros, quer dizer, se forem proposições verdadeiras, então a crença está totalmente

justificada, sendo portanto conhecimento. O ponto é não existirem falsidades na cadeia de

fundamentos que contribuem para justificar a crença. Evita-se deste modo o problema de

a justificação de uma crença numa proposição verdadeira poder assentar na evidência que

o agente da crença tem ou possa ter para uma proposição falsa.

À luz da solução de Clark, os contra-exemplos de Gettier não colhem, uma vez que

esses contra-exemplos mostram casos de crenças justificadas cuja justificação assenta em

alicerces falsos.

Da forma como vemos a solução, a quarta condição sugerida por Clark levanta,

infelizmente, pelo menos dois problemas.18 O primeiro diz respeito à putativa suficiência

adquirida pela versão revista da DTC de Clark quando complementada por essa condição.

O segundo diz respeito à forma como poderemos fazer atribuições correctas de

conhecimento no caso da quarta condição estar em ordem. Por causa da sua importância

para a definição sugerida por Clark, estes problemas merecem ser tratados em separado.

O primeiro problema. Suponha-se que uma crença de S numa proposição

verdadeira p assenta apenas em razões verdadeiras. Por exemplo, suponha-se que S

acredita que o João foi à biblioteca em todos os dias úte is de 2009, e que aàp oposiç oà oà

Jo oàfoià à i liote aàe àtodosàosàdiasàúteisàdeà 9 à à e dadei a.àPode osàsupo àai daà

que, além de ser verdadeira, essa proposição assenta em evidência sólida, por exemplo,

que a Sara e o Pedro, pessoas cujo testemunho é geralmente fiável e verdadeiro, disseram

a S ter visto o João na biblioteca em todos os dias úteis de 2009. Tendo em atenção os

17 Uma discussão desta e de outras repostas iniciais surge em Lycan (2006: 148-168), que acaba por defender uma

versão melhorada da teoria de Clark.

18 A versão melhorada da teoria de Clark sugerida por Lycan esbarra aparentemente em contra-exemplos do tipo

Barney, forçando o próprio Lycan a admitir que, no caso Barney e similares, o agente da crença tem conhecimento, o que

milita contra as nossas melhores intuições acerca da falta de conhecimento por parte desses agentes nesses casos.

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testemunhos da Sara e do Pedro, a crença de S está justificada e assenta apenas em

verdades. Este é portanto um caso em que são satisfeitas todas as condições introduzidas

pela definição de Clark, pois...

i) S tem uma crença,

ii) verdadeira,

iii) justificada,

iv) formada apenas com base em verdades.

Mas suponha-se agora que a Sara e o Pedro confundiram o João por outro aluno

extremamente parecido com o João, o Diogo, que acontece ser irmão gémeo do João, e

que, tal como o João, foi também à biblioteca todos os dias úteis de 2009. Mais, para além

de terem visto o Diogo, eles viram também o João na biblioteca em todos os dias úteis de

2009, embora, sem que eles se tivessem apercebido, o João tenha usado sempre uma

cabeleira e uma barba postiças que o tornou irreconhecível aos seus olhos. O testemunho

da Sara e do Pedro é por isso verdadeiro, pois é um facto que o João foi de facto à biblioteca

todos os dias úteis de 2009 e eles viram lá o João, mas não é possível atribuir conhecimento

a S nestas condições, uma vez que o testemunho da Sara e do Pedro, embora verdadeiro

(pois eles viram de facto o João), não se refere ao João mas sim ao Diogo. Neste caso, S

acredita numa proposição que está plenamente justificada—segundo a definição de Clark

de plenamente justificada—, mas não se pode atribuir conhecimento a S acerca do João

ter estado na biblioteca. Isto revela que a definição corrigida de Clark falha em fornecer as

condições necessárias e suficientes para que alguém possa saber que p.

O segundo problema. Suponha-se agora que ao contrário do que é sugerido pelo

exemplo anterior, o João nem tem um irmão gémeo, nem usou cabeleira e barba postiças

sempre que foi à biblioteca em 2009. Neste caso evitar-se-ia a objecção anteriormente

aduzida e poder-se-ia afirmar que S sabe o João foi à biblioteca em todos os dias de 2009,

uma vez que a crença de S estaria plenamente justificada e, além disso, todos os

fundamentos nos quais a crença assenta seriam os apropriados, por serem verdadeiros (e

não há erro). Mas isto levanta um problema adicional, que é o de como se conseguiria

avaliar que todos os fundamentos seriam os apropriados, e, portanto, de como se poderia

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fazer uma atribuição correcta de conhecimento a S. Parece que uma tal tarefa exigiria uma

avaliação exaustiva dos fundamentos, dos fundamentos dos fundamentos, dos

fundamentos dos fundamentos dos fundamentos, etc.

Este é o venerável problema do regresso da cadeia dos fundamentos ou das

justificações, um problema que não é abordado por Clark (e ao qual voltaremos no

Primeiro Interlúdio). Mesmo considerando que a análise de Clark é viável do ponto de vista

da elucidação do conceito de conhecimento, o que não parece ser o caso, impõe-se com

alguma naturalidade a ideia de que uma definição saída de ssa análise não seria

confirmável, uma vez que, havendo um regresso infinito na cadeia de fundamentos, não

haveria forma de se confirmar se todos os fundamentos seriam (ou não) verdadeiros (pelo

menos para muitas proposições alvo de crença com uma etiologia complexa). Embora este

seja aparentemente um problema para todas as teorias da justificação, ele parece afectar

negativa e irremediavelmente a solução de Clark, uma vez que esta parece depender

excessivamente de poder ser oferecida uma elucidação de quais seriam, numa dada

situação de avaliação e atribuição de conhecimento, os fundamentos verdadeiros de uma

crença.

2.3. A Teoria da Causalidade

2.3.1. A Teoria Causal de Goldman

As teorias causais do conhecimento visam eliminar os desfasamentos típicos entre

a crença e o facto descrito pela proposição que é alvo de crenças, e que se encontram no

cerne dos casos Gettier. As teorias causais do conhecimento propõem, grosso modo, que

S sabe que p desde que...

i) S acredite em p,

ii) seja (ou venha a ser) o caso que p,

iii) a crença de S que p esteja numa relação causal apropriada com o facto descrito por p.

Por exemplo, se S sabe que Barack Obama é o quadragésimo quarto presidente dos

EUA, então...

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i) S acredita que Barack Obama é o quadragésimo quarto presidente dos EUA.,

ii) Barack Obama é de facto o quadragésimo quarto presidente dos EUA,

iii) O facto de Obama ser o quadragésimo quarto presidente dos EUA é a causa (ou uma das causas) da crença de S que Barack Obama é o quadragésimo quarto presidente dos EUA.

Alvin Goldman (1967: 369) é um dos pioneiros da condição iii da teoria da

causalidade.19 Para ele não é possível atribuir conhecimento aos agentes nos casos Gettier

porque o que acontece nesses casos é que o facto que torna verdadeira a proposição que

é alvo da crença dos agentes não está numa relação causal apropriada com essa mesma

crença. Por exemplo, no segundo contra-exemplo de Gettier, a crença de Smith de que

Brown está em Barcelona não está numa relação causal com o facto de Brown estar em

Barcelona, pois o facto de Brown estar em Barcelona não é a razão pela qual Smith acredita

que Brown está em Barcelona. Não é portanto esse facto que está na origem, i.e., que é a

causa (eficiente, para usar o velho jargão aristotélico), da crença de Smith, e Goldman julga

que essa falha explica por que razão não é possível neste caso creditar conhecimento a

Smith sobre o paradeiro de Brown.

Entendida à guisa de Goldman e de outros famosos epistemólogos, uma ligação

causal apropriada entre o facto e a crença tende a eliminar a possibilidade de essa crença

ser acidentalmente verdadeira, tornando-a um candidato plausível a conhecimento.20

19 A formulação de Goldman dispensa as condições (i) e (ii) uma vez que a condição (iii) pressupõe que o agente

tem uma crença numa proposição verdadeira (pois descreve um facto). Optei por uma exposição tradicional da teoria em

forma de três condições apenas para manter o figurino habitual deste tipo de definições/análises.

O Goldman da teoria causal é o “primeiro” Goldman. Como se verá aquando da discussão do fiabilismo, o

“segundo” Goldman considera a sua teoria causal insuficiente para explicar o fenómeno do conhecimento proposicional.

Como se verá também, o fiabilismo aproveita contudo a ideia de que a memória, a percepção e sistemas de inferência são

processos causais apropriados para a formação de crenças que são conhecimento (Cf. 369)

20 Goldman argumenta no mesmo lugar que a definição/análise de Clark falha por duas razões. A primeira, da qual

já forneci também um exemplo, é a de que uma crença pode assentar apenas em verdades e ainda assim não poder ser

creditado conhecimento em virtude de os factos que estão na origem dessas verdades (dos fundamentos) não estarem

causalmente ligados à crença de modo apropriado (cf. 366). A segunda é que a definição de Clark é demasiado forte, uma

vez que há casos em que nem todos os fundamentos de uma crença são verdadeiros e ainda assim pode ser creditado

conhecimento a um agente (cf. 367-369). Goldman não exige portanto que todos os fundamentos de uma crença sejam

verdadeiros, apenas que os necessários sejam verdadeiros.

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Goldman alega no entanto que o facto descrito pela proposição que é alvo da

crença não tem de ser forçosamente a causa directa da crença, isto para antecipar o

problema que o conhecimento acerca do futuro (ou do conhecimento matemático)

poderia constituir para a sua teoria causal, Goldman ( Ibidem: 364-365) configura a

condição iii de modo a poder incluir aqueles casos em que alguém sabe aparentemente

algo acerca do futuro, mas em que o acontecimento na base da proposição que é alvo de

crença ainda não teve lugar. Suponha-se, por exemplo, que se credita conhecimento a S

sobre um acontecimento no seu futuro, digamos, que S sabe que estará no Rossio na

próxima quarta-feira. Se a teoria causal estivesse em ordem, então o acontecimento no

futuro de S teria de alguma forma de ser a causa, ou pelo menos uma das causas, da crença

de S no presente (sobre esse mesmo acontecimento futuro). A suposição de que

acontecimentos no futuro podem ser a causa de acontecimentos no presente é todavia

pouco plausível, uma vez que, alegadamente, algo que ainda não aconteceu não pode ser

a causa de algo que já aconteceu—eventos no futuro não podem causar eventos no

presente.21

Ora, como Goldman deseja preservar a ideia de que é possível ter conhecimento

acerca do futuro e deseja também preservar a teoria causal, propõe que a crença de S

pertence a uma rede causal na qual a intenção que S tem no domingo de estar no Rossio

na quarta-feira seguinte (ao domingo no qual S teve essa intenção) é tanto uma das causas

da crença de S de que estará no Rossio na quarta-feira como uma das causas da ida e

posterior estada de S ao Rossio nessa mesma quarta-feira.

Fica porém a ideia que esta objecção, uma objecção que é levantada por Goldman

à sua própria teoria causal, nunca parece ter sido convincentemente solucionada, por ele

ou por qualquer outro filósofo. Uma solução relativamente simples para o problema passa

por supor e aceitar que não há conhecimento (de proposições contingentes, pelo menos)

21 Esta teoria metafísica pode não ser de todo pacífica. Talvez algumas teorias possam afirmar que eventos futuros

podem realmente ser a causa de eventos no presente; como, por exemplo, a tempestade que se avizinha no futuro (ou que

foi prevista pelos meteorologistas) poder ser a causa da minha crença de que devo proteger a minha casa o melhor possível.

Mas esta crença não é causada pelo facto (futuro) de haver uma tempestade, mas pela possibilidade forte de vir a ocorrer

essa tempestade. Não há portanto aparentemente neste caso um sentido legítimo em que se possa dizer que a tempestade

futura é a causa da minha crença de que devo proteger a minha casa contra uma tempestade.

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acerca do futuro, algo que daria mais alguma viabilidade à teoria. Mas Goldman não opta

por esta linha de defesa. Mantém essa possibilidade em aberto no seu artigo, sujeitando

portanto a condição (iii) ao escrutínio de contra-exemplos que pressupõem a possibilidade

de haver esse conhecimento.

Considere-se, por exemplo, o seguinte caso que julgamos paradigmático da não

necessidade da satisfação da condição iii para haver conhecimento. Suponha-se que um

astrofísico prevê, com base em observação científica fidedigna, que uma determinada

estrela vai tornar-se numa supernova num futuro próximo. Com base na sua observação,

o cientista forma a crença de que essa estrela vai tornar-se supernova, o que passado

algum tempo acaba por acontecer e, logo, acaba por servir de confirmação dessa previsão

e dessa crença. Afigura-se natural conceder-se que o astrofísico sabe, à data da sua

previsão e da sua crença, antes de ocorrer a supernova, que a estrela se vai tornar numa

supernova. Todavia não há qualquer ligação causal entre a previsão do astrofísico que a

estrela se iria tornar uma supernova e o facto da estrela se tornar uma supernova. Esses

dois eventos não pertencem à mesma rede causal, uma vez que nem a previsão poderia

causar a supernova, o que é evidente, nem a supernova poderia causar a previsão, pois a

supernova não tinha ainda ocorrido à altura da previsão, e para uma coisa ser a causa de

outra tem pelo menos de ocorrer antes ou, quanto muito, ao mesmo tempo.

Se, tal como aceite por muitos pensadores, as melhores previsões científicas têm o

estatuto de conhecimento científico, e se o conhecimento científico é uma subespécie de

conhecimento proposicional, então pode haver conhecimento sem que seja

concomitantemente necessário que a crença que constitui esse conhecimento seja

causada pelo facto que torna verdadeira a proposição (contingente) alvo da crença.

Outros subtipos de conhecimento proposicional que cau sam dificuldades à teoria

causal são o conhecimento matemático e o conhecimento moral. O que o subscritor da

teoria causal tem de ser capaz de demonstrar é que género de factos estão na origem, quer

dizer, são a causa, das crenças em proposições matemáticas e morais. Não nos podendo

alongar na discussão do tópico, fica a ideia de que a ident ificação e delimitação dos

referidos factos não é uma tarefa fácil, o que parece constituir motivo de preocupação

acrescida para o defensor da referida teoria.

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2.3.2. A Teoria Causal de Skyrms

A segunda teoria causal que desejo revisitar na linha de discussão do Problema de

Gettier é da responsabilidade de Brian Skyrms (1967: 373-389). Embora menos discutida

que a de Goldman, a teoria de Skyrms adiciona duas condições à teoria causal do

conhecimento tal como descrita acima (Ibidem: 386-387).22 A primeira é a condição de que

a crença tenha realmente origem no facto descrito pela proposição que é alvo da crença,

e não apenas que o agente tenha algum género de evidência para sustentar uma eventual

relação causal entre facto e crença, não existindo todavia essa relação (Ibidem: 384). A

segunda é a de que exista uma implicação forte, mas não demasiado forte a ponto de

excluir alguns casos claros de conhecimento, entre a evidência disponível para p e o facto

descrito por p, em símbolos, e→p. Teço de seguida breves comentários a estas duas

condições.

A primeira condição de Skyrms elimina claramente o conhecimento do futuro. A

condição deixa de fora casos que são aceites como casos claros de conhecimento, como

por exemplo o conhecimento do astrofísico agora (em t) de que uma estrela irá (em t à

tornar-se numa supernova.

A segunda condição exige um tratamento mais detalhado. A perspectiva de Skyrms

é a seguinte. Suponha-se que, ao ver um homem decapitado (Fa), S forma crença que esse

homem está morto (Ga). Todavia, sem que S possua qualquer evidência nesse sentido, o

homem decapitado não morreu devido a ter sido decapitado, mas sim devido a ter sofrido

um ataque cardíaco (Ha). A decapitação aconteceu post-mortem e foi da autoria de um

lunático que, ao ver o homem deitado e indefeso, decapitou o infeliz já depois de este estar

morto. S forma portanto a crença que o homem morreu com base Fa e não com base em

Ha. Como a teoria causal exige que a crença de S de que o homem decapitado está morto

tivesse sido causada por Ha (a causa da morte) e não por Fa (a putativa causa da morte),

22 Skyrms está preocupado não apenas com conhecimento não-básico mas também com conhecimento básico.

Conhecimento básico é, segundo ele (e muitos outros), conhecimento que não assenta em qualquer crença ou proposição,

mas tão-somente em experiências (fundamentalmente da ordem da percepção). De uma determinada perspectiva, ele pensa

que as condições necessárias para que ocorra este último tipo de conhecimento (não-derivativo) são mais finas do que as

condições necessárias para que ocorra conhecimento não-básico, construindo e oferecendo portanto uma definição que

considera esta exigência suplementar.

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segue-se que, aparentemente, não pode ser creditado conhecimento a S acerca do facto

de o homem decapitado estar morto (Ga), o que se afigura como um absurdo, uma vez que

Fa é causa mais do que suficiente para Ga, mesmo não o tendo sido dessa vez, por ter sido

Ha essa causa. Skyrms conclui que a condição necessária para S saber que Ga, ou seja,

Fa→Ga, e à ueà aà o o iaà deà → à i di aà u aà elaç oà deà ausalidadeà eà oà u aà

condicional material, é demasiado exigente; pois, tal como formulada, simpliciter, demite

este caso como um caso de conhecimento, uma demissão se apresenta como implausível.

Para resolver o problema, Skyrms propõe uma outra leitura da condição de

causalidade, uma leitura que envolve modalidade. Simplificando, mesmo que Fa não

tivesse sido a causa de Ga na situação descrita pelo exemplo, e portanto não fosse a

evidência correcta para a crença de S nesse contexto, uma vez que nesse contexto a

condicional Fa→Ga àfalsaà u àse tidoàdeà falsa à ueàte àdeàse àto adoà o àu àg oà

de sal), Fa poderia ter sido verdadeira e contaria como evidência, desde que a sua

contrafactual o t apositi aàta ào ti esse.à“e doà “eàoàho e àfoiàde apitadoàentão

oà ho e à te à deà esta à o to à aà o di io alà ueà pode iaà satisfaze à aà o diç oà deà

causalidade (de evidência causal), então a contrafactual contrapositiva desta condicional,

“eàoàho e à oàesti esseà o to,àe t oàaàsuaà a eçaà oàte iaàsidoà o tada ,àta ém

tem de obter.23 Este é o critério sugerido por Skyrms para a condição de relevância das

causas para fins de evidência, em que a ideia de relevância estipulada pela condição se

refere à relevância das causas da evidência para crenças que são conhecimento. Segundo

este critério, Fa estabelece-se como causa relevante da evidência que S possui para Ga

porque □~Ga→~Fa obtém (por ser plausivelmente uma necessidade física: pessoas

decapitadas têm de estar mortas).24

Tal como estabelecida, a condição parece ter um problema difícil de contornar.

Trata-se do problema da identificação das causas relevantes em contextos de causa e

23 Skyrms assume que quer a condicional quer a contrafactual obtêm em função de estabelecerem necessidades

nómicas.

24 Alguém pode supor que não se trata realmente de uma necessidade física, uma vez que há mundos possíveis nos

quais uma pessoa decapitada sobrevive à custa de maquinaria, artefactos sofisticados, etc. Embora não admitamos essa

possibilidade, podemos concordar que ela é plausível. Sendo assim, resta-nos alterar o exemplo para uma necessidade

física (e conceptual) indisputável, uma escolha que deixo ao critério dos especialistas.

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efeito em que as partes não envolvem necessidades, sejam elas físicas, metafísicas ou

conceptuais, mas apenas contingências. Considere-se, por comparação com o caso

descrito por Skyrms, a seguinte relação de causa e efeito: Se Barack Obama ganhou as

eleições presidenciais em 2008 (Ba), então é o quadragésimo quarto presidente dos EUA

(Pa). Pelo critério de relevância da evidência, Ba é causa de evidência relevante para Pa,

desde que □~Pa→~Ba. Mas constata-se com alguma facilidade que esta relação de

causalidade não obtém, pois podemos facilmente divisar um mundo possível no qual

Barack Obama não é o quadragésimo quarto presidente dos EUA mas, ainda assim, ganhou

as eleições presidenciais em 2008. Em símbolos, a seguinte relação de causalidade é

possível: ◊Ba ^ ~Pa. Imagine-se, por exemplo, um mundo no qual Barack Obama ganhou

as eleições mas nunca chegou a ser investido (por ter sido assassinado antes, por ter

renunciado ao cargo, etc). O que isto nos revela é que a aplicação com sucesso da condição

de relevância sugerida por Skyrms fica aparentemente confinada a um número restrito de

casos, os que envolvem necessidades. Casos que envolvem contingência tornam o critério

obsoleto.

2.4. A teoria da não-acidentalidade

Entre as primeiras e mais salientes reações à falsificação da DTC no artigo de Gettier

encontram-se algumas teorias que visam estabelecer uma ou mais condições que tornem

impossível que o vínculo entre a crença de um agente e a verdade da proposição que é alvo

dessa crença seja meramente acidental. Como se pode constatar na secção anterior, as

teorias causais propõem geralmente que esse vínculo seja de natureza causal. Uma

alternativa aos problemas geralmente associados às teorias causais passa por instituir uma

exigência de não-acidentalidade, entre crença e verdade, como uma condição necessária

para o conhecimento. Peter Unger (1968: 157-170) oferece-nos uma dessas tentativas ao

sugerir que o conhecimento (factual) pode ser analisado da seguinte forma:

àPa aà ual ue àp oposiç oàp, alguém sabe que p [no momento t] se, e só se, não

é de modo algum acidental [em t] que essa pessoa esteja correcta acerca de ser o caso que

p. (Ibidem: 158)

Parafraseando a análise, obtemos: S sabe que p, no momento t, se, e só se, em t

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i) S acredita em p,

ii) é o caso que p,

iii) S está não-acidentalmente correcto que p.

Inspeccionamos de seguida alguns aspectos da definição/análise de Unger que nos

parecem cruciais.

O primeiro aspecto diz também espeitoà à a epç oà deà o-acidentalmente

o e to àsuge idaàpo àU ge . Nesta acepção, não é necessário S ter a certeza (psicológica)

que p para poder estar não-acidentalmente correcto que p. S estar não-acidentalmente

correcto é, por assim dizer, uma condição externa (à mente de S). S acerta na verdade de

p e esse acerto não é de todo acidental. Isto não implica contudo que a condição i não

esteja presente ou possa ser dispensada da definição/análise de Unger. Apesar de não ser

uma condição totalmente explícita nesta definição, ela surge na primeira definição

avançada por Unger, e noutros lugares do texto (Ibidem: 163).

O segundo aspecto a esclarecer tem que ver com o tipo de não-acidentalidade

indicada pela condição iii. No sentido ungeriano, trata-se de não-acidentalidade do vínculo

entre a aceitação de S da verdade do facto descrito por p e o próprio facto. Esse vínculo

não pode ser acidental, como o é em inúmeros casos Gettier. Segundo Unger (Ibidem: 159-

160), tudo o que origina ou está na base do vínculo pode ser acidental, mas o vínculo não.

O terceiro aspecto refere-se à pretensão de Unger de que a sua definição/análise

dispensa várias condições consideradas necessárias por outras definições/análises, em

particular a condição sugerida por Ayer, segundo a qual S sabe que p desde que S tenha o

direito a ter certeza que p, bem como a condição sugerida por Chisholm, segundo a qual S

sabe que p desde que tenha evidência adequada para p. A rejeição de Unger destas duas

condições, em especial a de Chisholm, é crucial porque, segundo me parece, e segundo irei

defender, põe em causa a viabilidade da própria definição/análise de Unger. Esta

pretensão merece portanto um tratamento mais detalhado, algo que iremos fazer de

seguida.

Unger utiliza um caso-exemplo para ilustrar que estas condições falham. Podemos

designá-lo por exemplo da bola de cristal, o qual tem a seguinte estrutura (Ibidem:163-

164).

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a) S tem uma bola de cristal que, sem que S compreenda como ou porquê, dá sempre a S indicações correctas sobre qualquer tópico/facto, i.e., revela a verdade a S.

b) Devido a ter sido ensinado desde tenra idade a confiar nos resultados apresentados pela referida bola, S nunca se preocupou em verificar por que razão lhe dá ela esses mesmos resultados, aceitando-os e acreditando neles apenas por ter sido ensinado pela sua família desde tenra idade a aceitá-los e a acreditar neles, isto apesar de S ter adquirido, ao longo da sua vida, evidência para a crença falsa de que a bola de cristal apenas lhe pode dar falsidades, crença essa que S ignora propositadamente, dando crédito apenas ao que aprendeu com a sua família.

c) Em virtude de (a) e (b) e, mais em geral, em virtude da sua atitude pouco razoável do ponto de vista epistémico, S nem tem evidência adequada para acreditar em p, nem tem o direito a estar certo que p.

d) Uma vez que a bola de cristal é um instrumento fiável para chegar à verdade, e uma vez que o vínculo entre as crenças de S e os factos indicados pela bola não é acidental, S tem conhecimento acerca daquilo que a bola de cristal lhe apresenta como sendo o caso.

e) Uma vez que as crenças que S tem com base nas indicações fornecidas pela sua bola de cristal são conhecimento, apesar de S não ter evidência adequada ou direito a estar certo, segue-se que ter evidência adequada e ter o direito a estar certo não são, portanto, condições necessárias para S ter conhecimento.

Alguma coisa parece-nos menos bem com este argumento. Fica-nos a ideia de que

em virtude do que a, b e c estabelecem, d tem de ser falsa, o que, por conseguinte, faz com

que e seja no mínimo implausível.

A objecção que desejo submeter ao exemplo da bola de cristal é de que S está

realmente acidentalmente correcto acerca dos factos indicados pela bola de cristal, e que

portanto o exemplo nem apresenta um caso de conhecimento segundo a própria definição

de Unger, nem revela que a principal condição constante nessa definição, a condição de

não-acidentalidade, dispensa as condições de evidência, justificação e certeza

(epistémica).

Vejamos. Parece-nos que, no referido exemplo, S está acidentalmente correcto, na

ú i aà a epç oà possí elà deà a ide talidadeà epist i a ,à istoà si ples e teà po ueà aà

relação entre a verdade da informação fornecida pela bola de cristal e os factos por ela

descritos é acidental, e não, tal como propõe Unger, não-acidental.

Para ver que assim é, examinemos o seguinte caso. Dr. H é um médico que, ao

realizar uma cirurgia delicada, é acometido por uma súbita amnésia, perdendo três quartos

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das suas memórias, incluindo todas as suas memórias de como proceder naquela cirurgia

particular. Suponha-se também que, como o Dr. H é simultaneamente teimoso e muito

pouco escrupuloso, decide não dar conta da sua perda de capacidades aos outros

presentes na sala de operações. Felizmente para o paciente, um dos assistentes do Dr. H,

o Dr. Z, levou uma cábula descritiva desses mesmos procedimentos para a sala de

operações. Em dificuldade, o Dr. H opta por seguir os procedimentos indicados na cábula

do Dr. Z, acreditando neles e na sua eficácia justamente por serem da autoria do Dr. Z,

pessoa que o Dr. H (com base nas memórias que ainda possui) tem por fiável nestas

matérias, uma vez que o Dr. H sabe que o Dr. Z nunca falhou anteriormente. Como é óbvio,

por causa da sua amnésia, o Dr. H não faz a menor ideia de como esses procedimentos

estão relacionados com certos factos médicos, em especial os factos médicos relevantes

para a cirurgia que decorre naquele momento. Tudo parece no entanto estar, e dar, certo.

Todavia, e sem que o Dr. H tenha forma de o saber, desta feita o Dr. Z inventou os

procedimentos! O vínculo entre a crença do Dr. H e os factos médicos descritos pela cábula

do Dr. Z é neste caso puramente acidental, uma vez que a cábula também está

acidentalmente correcta. Substitua-se agora o Dr. H pelo agente de Unger e a bola de cristal

do referido agente pela cábula do Dr. Z. Temos que o agente está acidentalmente correcto

em ambos os casos, uma vez que o vínculo entre a informação correcta, porque verdadeira,

fornecida por instrumentos fiáveis (a bola de cristal e a cábula do Dr. Z), e os factos a que

se refere essa informação é também ela acidental.

Resta-nos agora tentar perceber se a satisfação da condição de não-acidentalidade

da definição ungeriana é per se suficiente para que haja conhecimento. Se nos for possível

divisar pelo menos um caso no qual a exigência de não-acidentalidade ungeriana é

satisfeita mas no qual não há conhecimento, então teremos um caso que falsifica essa

mesma definição.

Suponha-se que, com base em toda a sua experiência médica, Dr. H diagnostica a

doença Ʊ a um seu paciente R. O Dr. H avança esse diagnóstico com base nos sintomas

evidenciados por R, sintomas que, sem que o Dr. H o saiba, são em tudo idênticos aos que

R teria no caso de ter a doença Ɯ (digamos, uma doença descoberta recentemente). Ao

receber os exames médicos de R necessários para despistar a doença Ʊ, resultados que

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o fi a à ueà‘àte àƱ,à o stitui do-se aparentemente dessa forma como a evidência

e ess iaàpa aàoàD .àHàa edita à ueà‘àte àƱ,àesteàpassaàaàa edita à ueà‘àte àƱ.àCo tudo,à

sem que o Dr. H se aperceba, o cabeçalho do relatório indica que aqueles são os resultados

daàdespistage àdeàƜ,à oàosà esultadosàdaàdespistage àdeàƱ.àá o te eà ueàoàt i oà

laboratorial equivocou-se ao escrever no cabeçalho os resultados da despistagem, isto por

osà esultadosàdaàdespistage àdeàƱàeàdeàƜàse e àe àtudoà iguais,à te doàes itoà ueàseà

t ata aàdaàdespistage àdeàƜàeà oàdeàƱ.àN oàfosseàoàD .àHàdist aídoàeàti esseàto adoà

atenção ao cabeçalho, teria recusado os resultados da despistagem, apesar de serem os

resultados correctos! Como não o fez, o Dr. H possui não-acidentalmente os resultados

o e tosàpa aàa edita à ueàoàseuàpa ie teà‘àte àƱ,à asà oàpossuiàaàe id iaàade uada

para apoiar esse desfecho.

Temos assim que, com base na evidência disponibilizada pelo relatório de exame,

i) O Dr. H acredita que R tem Ʊ,

ii) É verdade que R tem Ʊ,

iii) O Dr. H está não-acidentalmente correcto acerca de R ter Ʊ.

Note-se que é legítimo dizer-se que iii obtém neste caso porque a evidência técnica

disponibilizada pelo relatório é, num certo sentido, a evidência necessária para o Dr. H

fo a à o e ta e teàaàsuaà e çaàdeà ueà‘àte àƱ.àápesa àdissoà oà àpossí elà edita àaà

Dr. H conheci e toà a e aà deà ‘à te à Ʊ,à poisà ele não cumpriu todos os seus deveres

epistémicos, e.g., verificar toda informação recebida como evidência, não detendo, por

conseguinte, a evidência adequada pa aàa edita à ueà‘àte àƱ.à

A definição de Unger não apresenta portanto as condições conjuntamente

suficientes para alguém saber que p. Não obstante, parece-nos que a exigência de não-

acidentalidade é uma exigência razoável. Mas uma solução para o problema da não-

acidentalidade parece exigir outros ingredientes que não apenas aqueles que constam na

análise de Unger.25 Adiante tentarei mostrar de que forma algumas teorias que recorrem

à modalidade epistémica se propõem refinar a ideia da não-acidentalidade.

25 Neste trabalho serão ainda descritas outras concepções de não-acidentalidade e condições anti-sorte epistémica.

Uma concepção recente de não-acidentalidade claramente inspirada na ideia de Unger surge em Howard-Snyder, D;

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2.5. A teoria da infalibilidade

Uma das mais relevantes tentativas de solução do Problema da Quarta condição no

período imediatamente seguinte ao problema ter sido colocado por Gettier é da autoria

de Keith Lehrer e Thomas Paxson (doravante L&P), que no seu célebre artigo (1969/2002:

454-464) sugerem uma definição/análise que se apoia no conceito de infalibilidade da

justificação.26 Discuto de seguida a proposta de L&P, tentando no decorrer do processo de

exposição realçar as suas principais vantagens e desvantagens.

Segundo L&P, nem a satisfação da condição iii da DTC, nem a satisfação da eventual

o diç oàiii*,à “àest àtotalmente justificado em acreditar em p , uma espécie de condição

iii melhorada (vide a solução de Clark na secção 2.2.), implicam que o que é sujeito da

crença seja verdade, ou que seja verdade e constitua conhecimento. A justificação pode

pois ser falível.

A noção de falibilidade da justificação não é um exclusivo d e Gettier, sendo

geralmente aceite, por vezes de forma tácita e não argumentada. Essa noção assenta na

quiçá venerável ideia de que alguém pode estar justificado (como veremos adiante,

situacional ou doxasticamente justificado) em acreditar que p e ainda assim essa

justificação não providenciar a S nem verdade de p nem o conhecimento de p.27 A exigência

de infalibilidade da justificação avançada pela definição/anál ise de L&P visa corrigir este

problema, fortalecendo o conceito de justificação ao ponto de, à luz desse conceito, não

ser possível haver crenças falsas justificadas ou crenças verdadeiras justificadas que não

são conhecimento (não básico). A definição/análise de L&P tem o seguinte figurino:

Howard-Snyder, F., Feit (2003: 309). Esta concepção inclui já outros elementos que incorporam uma única condição,

nomeadamente a da garantia epistémica, sendo esta uma condição que irei tentar descrever mais adiante.

26A definição/análise oferecida pelos autores refere-se ao conhecimento não-básico, quer dizer (assumindo

condicionalmente que a distinção é válida), aquele tipo de conhecimento de uma proposição que depende de outras

proposições, e não apenas de experiências não mediadas por proposições.

A proposta é também uma forma de justificacionismo, tal como o iremos circunscrever na secção 3. Optámos por

introduzi-la nesta altura por razões que se prendem com a sequência temporal das soluções ao Problema de Gettier.

27 Esta concepção pressupõe obviamente um sentido forte para “justificação”.

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Definição 1—infalibilidade da justificação:

“àte à o he i e toà o-básico que h se, e só se,

i) h é verdadeira,

ii) S acredita que h, e

iii) há uma proposição p que justifica completamente S em acreditar que h, e não há qualquer proposição q que derrote esta justificação. (Ibidem: 465-466)

L&P oferecem uma explicação da condição iii em termos de falibilidade. A ideia é

perceber o que é suficiente para uma justificação ser derrotada e, portanto, o que é

suficiente para uma justificação ser falível. L&P movem assim provisoriamente o eixo da

análise do conceito de justificação total para o conceito de justificação falível, extraindo

depois no final do exercício o conceito de justificação infalível por oposição ao conceito de

justificação falível.

Crucialmente, a ideia subjacente à noção de falibilidade da justificação é seguinte:

há uma proposição verdadeira q que, sendo considerada falsa por S, e estando S

completamente justificado em acreditar que é falsa, derrota a proposição p que poderia

justificar totalmente a crença de S em h, isto porque a conjunção de p e q não justifica

totalmente S em acreditar em h. A formulação de falibilidade da justificação submetida por

L&P é portanto a seguinte:

Definição 2—falibilidade da justificação:

“eàp justifica totalmente S em acreditar em h, esta justificação só é derrotada por q se, e só se,

a) q é verdadeira,

b) S está totalmente justificado em acreditar que q é falsa, e

c) a conjunção de p e q não justifica totalmente S em acreditar em h. (Ibidem 467)28

A conjunção destas condições intenta fortalecer o conceito de justificação ao ponto

de garantir infalivelmente que uma crença assim justificada, segundo os parâmetros

28 L&P introduzem depois mais uma condição para resolver o problema de conjunções de proposições não-

relacionadas:

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introduzidos por esse conceito, não possa ser falsa ou não possa deixar de ser

conhecimento. Note-se, contudo, que b e c implicam circularidade explicativa, uma vez que

recorrem à noção de justificação total e, por conseguinte, à noção de justificação infalível.

Dito de outro modo, para que b e c possam obter, é necessário que a Definição 1 seja

aplicável. A plausibilidade dessa definição depende tod avia da obtenção da Definição 2,

onde surgem b e c. Temos assim um problema de circularidade explicativa. O problema

pode porventura não ser letal para a definição de infalibil idade desde que a circularidade

não seja viciosa, mas não se revela fácil mostrar que isso é o caso mantendo as formulações

originais submetidas por L&P.

Por outro lado, a exigência nestes parâmetros de uma justificação completa ou

infalível parece ser demasiado forte, uma vez que parece haver casos de conhecimento

nos quais a justificação disponível para a crença de S é falível, no sentido descrito pela

Definição 2. Discuto de seguida uma situação hipotética indiciadora do que sugerimos. 29

Suponha-se que, com base na sua vasta experiência e capacidade de diagnóstico, o

Dr. H acredita justificadamente na proposição que h) ‘à sof eà daà doe ça Ʊ ,à aà ualà à

verdadeira. A crença do Dr. H que h é justificada por p) ‘àap ese taàtodosàosàsi aisàdeàƱ .à

Por ser um médico responsável, o Dr. H pede um exame de diagnóstico laboratorial para

o fi a à ueà‘àte àdeàfa toàƱ.àOà esultadoàdoàexa eà à o tudoà egativo, revelando que

a proposição q) ‘à oàap ese taàtodosàosàsi aisàdeàƱ à à e dadei a.30 Mas o Dr. H está

totalmente justificado em acreditar que q é falsa, pois sabe que o técnico laboratorial que

deveria ter tratado de fazer o exame nunca no passado procedeu para que esse tipo de

exame desse os resultados correctos. Porém, o Dr. H está equivocado, uma vez que desta

feita o resultado do exame é o correcto, independentemente da incúria habitual do

“iv) se c é uma consequência lógica de q de maneira a que a conjunção de c e q não justifica totalmente S em

acreditar em h, então S está completamente justificado em acreditar que c é falsa.” (Ibidem: 468).

Podemos no entanto dispensar esta restrição adicional uma vez que a nossa crítica à definição de L&P não parece

depender do alvo da restrição.

29 Ernest Sosa (1970: 62-63) levanta também várias objecções à Definição 1.

30 Note-se que um exame laboratorial pode dar os resultados certos e ainda assim não demonstrar que alguém sofre

de uma determinada doença. Uma dose razoável de falibilidade não está excluída. Daí ser possível o resultado indicar que

alguém não sofre de uma doença quando isso é afinal o caso.

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técnico. Temos assim que todas as condições de falibilidade (introduzidas por L&P) da

justificação da crença do Dr. H na proposição verdadeira que h são satisfeitas, pois...

a àáàp oposiç oàq é verdadeira.

àO Dr. H está completamente justificado em acreditar que q é falsa.

àáà o ju ç oàdeàp e q não justifica totalmente o Dr. H a acreditar que h.

Pode ser alegado que para b obter não poderia haver uma proposição na qual o Dr.

H acreditasse e que tornasse falível a justificação que ele tem para acreditar que r) à à

falsa”. Pode ser alegado que essa proposição é s) osà esultadosàdoàexa eàdeàdiag ósti oà

est oàa ide tal e teà o e tos .àMasà oàseà islu aà o oà àoàD .àHàa edita iaà ueàs

sem possuir alguma indicação nesse sentido. Nestas circunstâncias, do facto de existir tal

proposição verdadeira não se segue que o Dr. H acredite nela. Se não acredita que s, então

forteriori não acredita justificadamente que s. Como tal, b obtém.

Uma vez que reconhecemos ao Dr. H uma vasta experiência médica e uma ímpar

capacidade de diagnóstico de doenças a partir de sintomas exibidos pelos pacientes, temos

também uma intuição muito forte de que ele sabe realmente que h. Contra isto pode ser

objetado que nem a sua vasta experiência, nem a sua capacidade médica, dão conta da

evidência necessária para ele saber que h. Pode inclusive ser argumentado que saber que

h de a daàu à í elàdeàe id iaà uitoàp e isoàeà o plexo,àu aà ezà ueàƱàpode ser uma

doença com elevado grau de complexidade, exigindo para a sua detecção perícias e

despistage sà ta à uitoà o plexas.à Co ede osà oà po toà seà Ʊà fo à u aà destasà

doe ças,à asà istoà oàafe taàaà ossaàp ete s o,àpoisà astaà su stitui osà Ʊ àpo àu aà

simples gripe (das estirpes mais comuns) para vermos que todos os dias milhares de

médicos sabem que um determinado paciente sofre de gripe sem que, para o saberem,

tenham de recorrer a exames laboratoriais complexos. Isto permite-nos atribuir

conhecimento a esses médicos sem grandes receios ou dúvidas acerca da correcção dessas

atribuições.

2.6. Síntese

Se há algo que a exposição das teorias iniciais e dos seus problemas nos mostra é

que é difícil encontrar um equilíbrio perfeito. Algumas definições/análises parecem ser

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demasiado fracas, não dando por isso conta do que é necessário para que alguém possa

ter conhecimento, ao passo que outras parecem ser demasiado fortes, excluindo por isso

mesmo casos aceites como casos de conhecimento. O que se apresenta como crucial é por

conseguinte não apenas a exaustividade mas também o equilíbrio. Uma definição/análise

completa e satisfatória deve aparentemente conseguir dar conta do que é necessário e

suficiente para todos os casos de conhecimento, incluindo talvez aqueles que estão numa

zona cinzenta, mas que nos inclinamos intuitivamente a aceitar como casos de

conhecimento.

3. Justificacionismo

3.1. Resumo

O justificacionismo é geralmente concebido de duas formas: ora é concebido como

a teoria de que a justificação é necessária para o conhecimento, ora é concebido como a

teoria de que a justificação é necessária e suficiente para o conhecimento. A distinção nem

sempre surge explicitamente delineada na literatura. No que diz respeito à presente

exposição, a linha será traçada aquando da apresentação de cada espécimen de

justificacionismo discutido.

Considerando a extensa discussão que geraram na literatura, é possível afirmar com

alguma segurança que existem três grandes tipos ou géneros de justificacionismo. São eles

o evidencialismo, o fiabilismo, e o deontologismo. Com o seria de esperar, cada um destes

tipos encerra subtipos. Também neste caso não é fácil delinear as linhas de fronteira que

separam os diferentes territórios, nem no que diz respeito aos tipos mais gerais, nem no

que diz respeito aos subtipos. Não parece sequer ser possível encarar esses territórios

como absolutamente estanques, a não ser quando as teorias a que correspondem esses

territórios propõem hipóteses inconsistentes entre si, o que é raro acontecer. Discuto de

seguida aquelas que me parecem ser as amostras mais representativas e bem-sucedidas

de cada tipo de justificacionismo. O objectivo é detectar os pontos fortes e fracos dessas

teorias, tentando assim perceber se algum tipo de justificacionismo consegue por si só

solucionar o problema central tratado neste trabalho.

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51

Oàte oà justifi aç o àte à i doàaàse àusadoàat àa uiàdeà odoàalgoài p e iso.àÉà

chegado o momento de rectificar essa imprecisão.31 A literatura mostra que o termo

adquiriu diversos sentidos e interpretações ao longo do tempo, servindo frequentemente

para denotar diferentes coisas. Estão todavia actualmente disponíveis distinções

conceptuais fundamentais que permitem evitar a perplexidade e a confusão. Segue-se uma

descrição breve dessas distinções.

. .àOà ueàde otaàaàexp ess oà justifi aç o ?

No contexto filosófi oàeàepiste ológi o,àoàte oà justifi aç o à àge al e teàusadoà

para referir uma de quatro coisas. Ou serve para referir uma propriedade, a propriedade

da justificação, ou um estado, o estado de algo—por norma um agente ou uma crença—

estar justificado, ou um processo, o processo de justificação, ou ainda aquilo que justifica

ou providencia a justificação—a evidência, as razões, os fundamentos, etc.32 Não existindo

uma directriz doutrinal sobre como proceder em Teoria da Justificação, constata-se no

entanto que os filósofos tendem a explicar a propriedade da justificação e,

consequentemente, o estado de justificação, explicando o processo de justificação que

leva ao surgimento da propriedade e do estado. A explicação do processo de justificação

contém obviamente uma explicação sobre aquilo que justif ica. Por exemplo, Pryor (2005:

181-182) dá especial relevância à justificação enquanto aquilo ( justification-maker) que

legitima a crença de um agente, tornando mais apropriada a atitude de adesão de um

agente a uma proposição do que uma eventual atitude de não adesão a essa proposição.

Este é o sentido mais habitual e menos ambicioso do termo, mais também o que gera mais

problemas, uma vez que não nos compromete nem com a verdade nem com o

conhecimento—o que pode tornar a propriedade pouco interessante ou mesmo inócua. A

justificação é neste caso entendida como algo falível, o que não deixa de ser uma fraqueza.

3.3. Tipos de justificação

A mais primitiva distinção entre tipos de justificação é porventura a que é

estabelecida entre justificação epistémica e justificação não-epistémica. Embora intuitiva,

31 Principalmente nas subsecções (1.7.) “A terceira condição necessária” e (1.8.) “A Definição Tradicional

Tripartida do Conhecimento”. Mas a imprecisão foi propositada, uma vez que só agora estou em condições de introduzir e

discutir convenientemente o tópico.

32 As três primeiras distinções surgem explicitamente em Audi 2003: 2 ss.

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esta distinção não é contudo fácil de estabelecer. Os filósofos parecem concordar que o

permite estabelecer a diferença entre os dois tipos de justificação é, grosso modo, o facto

de a justificação epistémica ser aquele tipo de justificação que contribui activamente para

elevar a probabilidade de a proposição acreditada ser verdadeira e ser conhecimento, não

sendo isso o caso se a justificação não for epistémica. Tome-se como exemplo o famoso

caso do doente que acredita optimisticamente que vai melhorar, dispondo assim, num

certo sentido, de uma justificação para a sua crença de que vai melhorar, embora essa

justificação não possa, ceteris paribus, contribuir para elevar a probabilidade de verdade

da sua crença (Fumerton 2002: 205). Segundo este critério de probabilidade, este não é

um caso de justificação epistémica, isto considerando que a justificação da crença em nada

contribui para a aumentar a probabilidade da mesma ser verdadeira.

Tendo em conta alguma literatura, um critério para diferenciar a justificação

epistémica da não-epistémica assenta no facto de, respectivamente, alguém ter ou não

razões que podem aumentar a probabilidade de a crença ser verdadeira. Gilbert Harman

dá o mote, propondo a seguinte condição necessária para uma razão ser epistémica:33

RA— ‘àsóà àu aà az oàepist i a para a crença que p se a probabilidade de p dado R é maior do que a probabilidade de p dado não-‘ . (Harman 1999: 17)

Esta definição não se afigura contudo totalmente satisfatória. Suponha-se que um

agente tem duas péssimas razões para acreditar que p, sendo que a primeira razão eleva

quase insignificantemente a probabilidade de a crença ser verdadeira relativamente à

segunda, que não eleva absolutamente nada.34 Será que nestas circunstâncias a primeira

razão é epistémica só pelo facto de satisfazer RA? Sem nos queremos comprometer mais

do que o necessário com esta posição, parece-nos que RA não fornece as condições

suficientes para uma razão ser epistémica. Não fornece, pois outras condições, e.g., que a

razão seja uma proposição verdadeira, têm de ser satisfeitas por exigência da ordem da

eficácia epistémica. Apesar deste (e talvez de outros problemas) com RA, iremos usá-la

provisionalmente como ponto de partida e ponto de referência.

33 Harman remete a autoria da distinção entre razões epistémicas e não-epistémicas para Richard Foley.

34 Nelson (2002: 274) argumenta contra uma concepção probabilista da justificação dizendo que esta última pode

aumentar indefinidamente, enquanto a probabilidade de verdade de uma crença não, o que faz delas coisas diferentes.

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Uma outra distinção sobejamente referida na literatura (e.g., Lowy 1978: 106) é a

distinção entre a justificação de uma crença e a justificação de um agente. No primeiro

caso, a justificação é uma propriedade de um agente, enquanto no segundo é uma

propriedade de uma crença.

Embora possam existir excepções, um agente estará justificado em acreditar que p

desde que tenha uma crença justificada que p, pois a justificação da sua crença torna-se,

por assim dizer, uma justificação para si próprio. O inverso pode todavia não ser o caso,

pois um agente pode estar justificado em acreditar que p e não ter uma crença justificada

em p, isto pela simples razão de não ter essa crença. Esta possibilidade remete para a

distinção entre justificação situacional ou proposicional, e justificação dóxastica (cf. Audi

1993: 275; Fumerton 2002: 206). Alguém pode estar na posse dos justificantes necessários

e suficientes para poder acreditar justificadamente que p, não acreditando todavia

justificadamente que p pela simples razão de não ter formado a crença que p. Já

justificação doxástica envolve sempre a presença de uma crença numa proposição. Por

exemplo, um agente pode estar situacionalmente justificado em acreditar que

(13409+34567)x3=143928 por razões matemáticas elementares, embora não esteja

doxasticamente justificado em acreditar nessa proposição, simplesmente porque não tem

uma crença nela (nunca lhe ocorreu).

Uma vez que um agente só pode estar doxasticamente justificado em acreditar que

p caso disponha de razões, evidência, etc. (justificantes que aumentem a probabilidade de

verdade da proposição acreditada) para sustentar a sua crença que p, segue-se que é

necessário que esse agente esteja situacionalmente justificado em acreditar que p para

poder estar doxasticamente justificado em acreditar em p. Contudo, o facto de um agente

estar situacionalmente justificado em acreditar que p não é suficiente para um agente estar

doxasticamente justificado em acreditar que p, uma vez que, como se viu acima, é possível

um agente estar situacionalmente justificado em acreditar que p sem estar

doxasticamente justificado em acreditar que p. Por outro lado ainda, S estar

doxasticamente justificado em acreditar em p é suficiente, embora não necessário, para S

estar situacionalmente justificado em acreditar em p.

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Robert Audi (1993: 275-276) propõe ainda uma outra distinção, talvez um pouco

mais fina. Trata-se da distinção entre justificação proposicional e justificação estrutural. O

primeiro tipo de justificação ocorre quando existe uma justificação para uma proposição

mas as razões que geram essa justificação não estão na posse de um qualquer agente. Por

exemplo, é provável que haja uma justificação forte para a proposição de que existe vida

inteligente extraterrestre, mas a verdade é que, a julgar pela informação disponível sobre

a matéria, ninguém possui essa justificação. Por outro lado, o que Audi chama de

justificação estrutural poderia também ser chamado de justificação potencial. Grosso

modo, S tem uma justificação estrutural para uma crença que p desde que pudesse aceder

a dados, razões, etc., que, presentes no seu sistema cognitivo, e ainda que inoperacionais

num determinado momento, pudessem justificar a crença de S que p.

A literatura estabelece ainda outras importantes distinções sobre as quais não nos

iremos pronunciar exaustivamente, por exemplo, a distinção entre justificação de uma

crença e justificação de uma proposição (Conee 1992: 667)35, justificação a priori e

justificação a posteriori (Russell 2008), entre justificação sincrónica e justificação

diacrónica (Swinburne 2001, passim), ou ainda entre justificação internalista e justificação

externalista (tópico a visitar no Primeiro Interlúdio).

3.4. Evidencialismo

Na secção 3.1. afirmei que o justificacionismo se manifesta através de três

subespécies dominantes. A presente secção é dedicada a discutir as principais propostas

de uma dessas subespécies: o evidencialismo.

A literatura especializada das últimas quatro décadas apresenta bastantes amostras

e manifestações de evidencialismo, pelo que seria talvez um erro pensarmos que a defesa

do evidencialismo está apenas a cargo de um conjunto muito restrito de autores,

nomeadamente Roderick Chisholm, Earl Conee ou Richard Feldman. Note-se, por exemplo,

uma das primeiras análises do conhecimento sugerida por Ernest Sosa.

35 Segundo Conee, a justificação que permite a ligação entre crença e a verdade é do segundo tipo, sendo o primeiro

tipo justificação-Gettier (ou similar), que não garante essa ligação.

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“àsa eà ueàp se, e só se,

i) p é verdadeira;

ii) S acredita que p;

iii) p é evidente para S; e

iv) há um conjunto de proposições tal que a) esse conjunto de proposições torna p evidente para S, e b) esse conjunto não inclui um subconjunto de proposições que são epistemicamente deficientes com relação a S e a p (Sosa 1970: 63)

Com o intuito de superar os habituais problemas levantados por acertos das crenças

na verdade por mero acaso, algo que refere como sendo o princípio da feliz coincidência,

Peter Klein defende uma análise do conhecimento que inclui também uma forte

componente evidencialista. Segundo essa análise,

“àsa eà ueàp se, e só se,

i) p é verdadeira;

ii) S acredita que p em t¹;

iii) p é evidente para S em t¹;

iv) Não existe uma proposição verdadeira tal que, se essa proposição fosse evidente para S em t¹, p deixa iaàdeàse àe ide teàpa aà“ (Klein 1971: 475)

Tendo em vista sugerir uma quarta condição, uma condição de invencibilidade da

justificação que lhe permitisse corrigir os habituais problemas da justificação gettierizada,

Marshall Swain oferece, na mesma veia que Sosa e Klein, a seguinte análise

eminentemente evidencialista do conhecimento.

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K à– S tem conhecimento não-básico que p se, e só se,

(i) p é verdadeira;

(ii) S acredita que p;

(iii) a justificação que S tem para p torna p evidente para S;

(iv) não há qualquer contra-evidência q tal que q derrota a justificação que S tem para p (Swain 1972: 292)

Estas análises revelam que o evidencialismo pode ser concebido ou como uma

teoria da justificação ou como uma teoria do conhecimento. Alguns filósofos pensam que

alguém ter a evidência apropriada para a verdade de uma proposição é quanto basta para

ter justificação forte para essa proposição.

Dou de seguida alguma atenção ao evidencialismo clássico de Roderick Chisholm

enquanto teoria da justificação e do conhecimento. Depois exponho e discuto alguns

aspectos cruciais do mais contemporâneo evidencialismo de Earl Conee e Richard Feldman,

que no essencial é uma teoria apenas da justificação.

3.4.1. Evidencialismo chisholmiano

Na sua segunda Teoria do Conhecimento, Chisholm diz o seguinte:

Podeà afi a -se que a teoria do conhecimento tem como principal assunto a justificação das crenças, ou mais exactamente, a justificação do acreditar (Chisholm 1977: 5)

Chisholm preocupa-se em discernir o que pode dar a alguém o direito em acreditar,

ou de não acreditar, numa determinada proposição (ou suspender o juízo qualquer sobre

a verdade ou a falsidade dessa proposição). O que confere esse direito é para Chisholm a

justificação.36

A resposta de Chisholm para a questão de se saber o que confere a um agente o

direito de acreditar ou de rejeitar uma proposição é intuitiva: agentes racionais e

epistemicamente responsáveis regem as suas atitudes de aceitação, de rejeição, ou de

suspensão da aceitação ou da rejeição de uma crença numa proposição em função dos

indícios ou sinais que tornam evidente a verdade ou a falsidade dessa proposição. Quer

36 Daí Chisholm ser também apontado como um dos precursores do deontologismo contemporâneo (Cf. Plantinga

1992: 49).

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dizer, os agentes racionais e epistemicamente responsáveis regem as suas atitudes de

aceitação, de rejeição ou de suspensão de uma proposição em função da evidência de que

dispõem para essa proposição. No essencial, um comportamento epistémico responsável

resulta do modo como o agente forma ou ajusta a sua crença à evidência de que dispõe.

Mas quando é que a verdade de uma proposição se torna evidente para um agente

ao ponto de esse agente ter conhecimento? A resposta encontrada por Chisholm para esta

questão é pautada pelo desejo de obter um compromisso entre a dúvida razoável e a

certeza absoluta. Grosso modo, uma proposição é evidente para um agente desde que os

indicadores ou sinais que o agente possui para a verdade dessa proposição permitam que

a verdade dessa proposição esteja acima da dúvida razoável, não sendo contudo exigível

que esses indicadores ou sinais confiram ao agente (uma irrealista) certeza absoluta acerca

dessa verdade. Por conseguinte, uma proposição é evidente para um agente desde que

esteja inserida no território que medeia a dúvida razoável e certeza absoluta (Chisholm

1977: 10-12).

Importa salientar que uma porção significativa do evidencialismo chisholmiano

assenta na ideia de que um agente só possui suficiente evidência para acreditar

justificadamente numa proposição p se não dispuser, conscientemente, de qualquer razão

que o faça duvidar da verdade de p, por um lado, e na ideia de que algumas proposições

de que estamos conscientes tendem a confirmar e a justificar o que pensamos saber e

pensamos percepcionar, por outro (Chisholm 1977: 85-86). A exigência desta segurança

epistémica, uma segurança presumivelmente assente em eventos e factores pertencentes

à vida mental do agente, impõe um fardo pesado ao evidencialismo preconizado por

Chisholm, nomeadamente no que respeita ao vulgarmente muito criticado requisito

internalista da justificação. A tomar em consideração algumas vozes críticas, este é um

problema que nunca foi solucionado de forma convincente ou definitiva.

O evidencialismo chisholmiano destaca-se pela forma como se propõe resolver o

Problema de Gettier. Segundo a análise do conhecimento de Chisholm apresentada na

secção 1.7., temos que o conhecimento é...

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i) crença,

ii) verdadeira,

iii) evidencialmente sustentada.

Ora, segundo Chisholm, a expressão e ide ial e teà suste tada à podeà se à

su stituídaàpelaàexp ess oà justifi ada .àOà elhoàp o le aàdaàfalsidadeàdeàalgu asà e çasà

evidencialmente justificadas teima em persistir.

Tendo em vista a eliminação desta incómoda possibilidade, algo que milita

activamente contra qualquer teoria da justificação que admita a falibilidade da evidência

e da própria justificação, Chisholm propõe uma análise do conhecimento revista. Essa

análise é a seguinte:

“àsa eà ueàh =df:

S aceita h;

h é verdadeira;

e h é não-defi ie te e teàe ide teàpa aà“ (Chisholm 1977: 110)37

Na base da definição encontra-se o desiderato de eliminar a evidência deficiente

que pode servir de sustentáculo epistemicamente inadequado para uma crença. Uma vez

que os contra-exemplos de Gettier e similares assentam em casos em que as proposições

que se constituem como evidência podem ser falsas ou tornar evidentes proposições

falsas, Chisholm sugere que a condição iii deve eliminar essa possibilidade.

Por exemplo, no segundo contra-exemplo de Gettier à DTC, algumas proposições

tornam evidente a proposição falsa Jo esà t à u à Fo d ,à aà ual,à aià a a a à po à

t a s iti àessaà justifi aç o pa aàaàp oposiç oà Jo esàt àu àFo dàouàB o àest àe à

Ba elo aà ,à ujaà e dadeà oà àga a tidaàpelaàjustifi aç oà ueà“ ithàte àpa aàoàp i ei oà

disjunto mas à custa de o segundo ser acidentalmente verdadeiro. A condição iii da

definição de Chisholm visa essencialmente corrigir esse problema ao impedir que a

37 Chisholm (1982: 46) discute directamente a sua solução evidencialista para o Problema de Gettier. Ele reafirma

a ideia de que a evidência para a justificação conducente ao conhecimento não pode ser deficiente, no sentido de

“deficiente” aqui exposto.

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e id ia àdispo í elà pa aà aàp oposiç oà Jo esà t à u à Fo d àpossaà ealmente contar

como evidência.

Mas suponha-se agora, na linha do que alguns filósofos (e.g., Goldman 2009)

actualmente sugerem, que nem toda a evidência que serve para justificar uma proposição

é ela própria proposicional, quer dizer, nem toda a evidência é constituída por proposições.

Se assim for, segue-se que a condição de h ser não-deficientemente evidente para S não é

aplicável em alguns casos, uma vez que a referida condição depende do eventual facto de

toda a evidência ser proposicional, e se isso não for o caso, haverá casos de conhecimento

em que a condição não se aplica—o que torna a definição/análise de Chisholm, tal como

formulada, demasiado exigente.

Mesmo suponho que análise de Chisholm possa não ser imu ne a contra-exemplos

ou a outros problemas, permanece a ideia de que o tipo de justificação que conduz à

verdade e ao conhecimento exige que o agente tenha evidência, não num sentido liberal

deà e id ia à ueài luiàe id iaà i ade uada,à asàsi àoàtipoà e toàdeàe id ia.àEstaà

ideia é tacitamente aceite por muitos filósofos, sendo explicitamente adoptada e

rigorosamente desenvolvida por outros. Também nós nutrimos alguma predilecção por

ela, algo que se tornará claro na segunda parte do nosso trabalho.

3.4.2. Evidencialismo de Conee e Feldman

Entre as mais destacadas formas de evidencialismo contemporâneo contam-se as

sustentadas Earl Conee e Richard Feldman, por um lado, e a de Timothy Williamson, por

outro. Uma vez que a teoria do conhecimento de Williamson será alvo de especial atenção

mais adiante, coloco agora o foco na teoria de Conee e Feldman (doravante C&F).

No capítulo 4 de Evidencialism, C&F definem do seguinte modo uma atitude

epistemicamente justificada:

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EJà– Uma atitude doxástica D para com uma proposição p está epistemicamente justificada para S em t se e só se S ter D se ajusta à evidência que S tem para p em t. (Conee & Feldman 2004: 83)38

Tal como C&F fazem questão de sublinhar, EJ é por eles oferecida como uma

elucidação da natureza da justificação epistémica, uma elucidação que se sustenta apenas

na noção de evidência e de ajuste da atitude de crença, de descrença ou de suspensão da

crença, à evidência disponível para o agente. Todavia, como os próprios C&F reconhecem,

a noção de ajuste da atitude à evidência é algo vaga, sujeita a várias interpretações e, como

tal, susceptível de levantar dificuldades. Para contornar ou colmatar este problema, C&F

oferecem outra definição. Esta (ES) diz fundamentalmente que...

...existe uma relação de superveniência que enquadra justificação e evidência, sendo que a primeira é superveniente em relação à segunda. (Ibidem: 101)

Descodificando e complementando a definição, isto significa basicamente que o

grau de justificação de uma crença varia consoante o nível quantitativo e qualitativo de

evidência disponível para o agente dessa crença. Se o nível de evidência for elevado, o grau

de justificação também o será. Se o nível de evidência for baixo, o grau de evidência

também o será, etc.

C&F discutem três objecções ao núcleo da sua teoria, especialmente a EJ,

rejeitando-as. Para aferiremos da plausibilidade do evidencialismo enquanto teoria da

justificação, vamos agora rever essas objecções e as réplicas de C&F.

A primeira objecção vale-se da possibilidade de determinadas crenças não

resultarem da vontade dos agentes, quer dizer, da possibilidade de ser involuntárias.

Supondo que isso pode ser o caso, parece então que alguns agentes podem ter as suas

crenças justificadas muito embora não satisfaçam a condição imposta por EJ de ajustarem

a sua crença numa proposição à evidência que possuem para essa proposição (Ibidem: 85-

86).

Réplica. C&F argumentam que um agente pode ter involuntariamente uma crença

em p e ainda assim essa crença em p resultar da evidência que esse agente possui para p.

38 De notar que o ensaio original data de 1985 (Philosophical Studies 48). Mas, uma vez que C&F publicaram o

ensaio de novo em 2004, mantendo aí o essencial do que sugeriram na primeira versão, é possível designar de

contemporâneo o evidencialismo descrito neste ensaio.

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O exemplo que dão é de alguma forma esclarecedor. Se ao entrar para uma sala iluminada

por luz artificial, um agente passa a crer, ainda que involuntariamente, que as luzes nessa

sala estão ligadas, então a crença resulta da evidência que o agente tem para crer que as

luzes nessa sala estão ligadas, e portanto a cláusula de ajuste da crença à evidência

preconizada por EJ é satisfeita.

Parece contudo existir um problema com esta réplica. Esse problema tem a ver com

a intenção do agente. EJ parece impor que o agente ajuste intencionalmente a crença em

p à evidência que tem para acreditar que p. E se S não ajusta intencionalmente a sua crença

de que as luzes estão ligadas à sua evidência, então talvez o espírito de EJ não seja

completamente satisfeito.

A segunda objecção que C&F discutem prende-se com o pesado fardo que EJ parece

impor às capacidades cognitivas dos agentes humanos. Uma vez que em virtude das

limitações cognitivas próprias dos agentes, tem de existir um desfasamento entre a

evidência disponível para os agentes e a quantidade (e qualidade) de crenças que esses

agentes conseguem desenvolver, parece seguir-se que algumas crenças que estariam

justificadas segundo os parâmetros de EJ não podem sequer ter lugar. Se não podem ter

lugar, então, a forteriori, não são crenças justificadas. Quer dizer, como as limitações

cognitivas do agente tornam impossível que ele tenha todas as crenças que se ajustariam

à evidência para si disponível, parece seguir-se que algo tem de estar menos bem com EJ,

pois a definição indica que o agente teria de ter essas crenças justificadas por dispor da

evidência de que dispõe.

Réplica. C&F pensam que mesmo que em certos casos um agente não consiga

ajustar a sua crença à sua evidência, pelo facto de as suas capacidades cognitivas não lhe

permitirem formar essa crença, ela estaria ainda assim justificada, segundo os parâmetros

de EJ, caso as capacidades cognitivas do agente lhe permitissem ir além das suas limitações

naturais, quer dizer, se o agente pudesse desenvolver a referida crença. No fundo, C&F

alegam que a incapacidade para produzir um número ilimitado de crenças não inviabiliza

que essas crenças estivessem justificadas em razão da evidência disponível, segundo o que

é avançado por EJ, caso as capacidades cognitivas dos agentes o tivessem permitido.

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A terceira objecção que C&F discutem prende-se com a possibilidade de alguém

dispor de evidência para ter uma crença mas essa evidência não ser a indicada (por várias

razões) para sustentar satisfatoriamente a crença. Se fosse esse o caso, haveria situações

nas quais o agente ajustaria a sua crença que p à sua evidência para p, mas ainda assim

essa crença não poderia contar como justificada, o que tornaria EJ falsa.

Réplica. C&F (Ibidem:93) valem-se da noção da adequação dos

fundamentos/razões que constituem a evidência de um agente para responder a esta

objecção. Embora usando uma análise diferente, a definição de crença bem-fundada

oferecida por C&F recupera muito do espírito da definição sugerida por Chisholm. No

essencial, um agente não pode ter uma crença bem-fundada se desenvolve essa crença

com base em evidência deficiente. Este complemento para EJ revela-se não apenas

plausível mas também necessário para uma teoria da justificação que assenta na noção de

evidência suficiente para uma justificação epistémica de elevada qualidade. Aliás, a

exigência de que o agente tem de ter evidência necessária e suficiente do ponto de vista

quantitativo e qualitativo para ter justificação de elevada qualidade—no sentido em que

essa justificação é condutiva, primeiro, de forma correcta à verdade e, segundo, ao

conhecimento—reúne geralmente o consenso dos epistemólogos. Por isso a cláusula ou

condição de não-deficiência da evidência é também bastante consensual, pois a sua

satisfação é um primeiro passo para o agente ter aquele tipo de justificação que pode

explicar o que é necessário para resolver casos Gettier, casos de quase-conhecimento, etc.

(Ibidem: 105).39

3.4.3. Problemas do evidencialismo de Conee e Feldman

Além das dificuldades típicas do evidencialismo identi ficadas e respondidas por

C&F, a literatura aponta ainda outras duas dificuldades que nos parecem cruciais e que

têm por isso de ser discutidas (Ibidem: 296). Ambas estão relacionadas com o modo como

o evidencialismo concebe o que C&F chamam justificação-de-nível-de-conhecimento

(knowledge-level justification), quer dizer, justificação conducente ao conhecimento. A

39 Contra Alston et al, Feldman (2005: 95-96) também defende a ideia de que é por vezes necessário um agente ter

evidência, de segunda ordem, acerca da fiabilidade do seu processo de cognição para poder estar justificado. Como teremos

ensejo de defender na secção 6.7., também julgamos que ter evidência ou conhecimento de segunda ordem sobre a verdade

da crença ou do processo que a gerou é por vezes necessário para um agente estar num estado epistémico positivo

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primeira dificuldade diz respeito à qualidade e quantid ade de evidência necessária e

suficiente para que um agente possua justificação deste tipo, enquanto a segunda diz

respeito à necessidade, reconhecida por C&F, de uma quarta condição, uma condição não

evidencialista, para resolver o Problema de Gettier (Ibidem: 299).

Sobre a primeira dificuldade. C&F acolhem a ideia de que a justificação-de-nível-de-

conhecimento ocorre desde que a evidência, cujo standard C&F comparam ao standard da

prova forense, que está na origem dessa justificação assente em três eixos:

i) Que o agente tenha fortes razões para acreditar no que acredita,

ii) Que o agente não tenha pelo menos uma razão não-vencida para duvidar daquilo em que acredita,

iii) Que o agente não tenha pelo menos uma razão não-vencida para acreditar que a evidência para aquilo em que acredita não é fiável (no sentido epistémico de fi el .

C&F sustentam que a satisfação destes três parâmetros permite um tipo de

justificação que se encontra entre as fronteiras da dúvida razoável e da certeza, concebida

enquanto certeza matemática.40 Contudo, C&F admitem a possibilidade destas três

condições serem satisfeitas e ainda assim a justificação resultante dessa satisfação ser

falível, quer dizer, a satisfação dos três parâmetros pode conduzir, ipso facto, à justificação

de crenças falsas, e, por conseguinte, não garantir conhecimento.

Esta parece-nos uma dificuldade grave para esta teoria da evidência e da

justificação epistémica de C&F, isto considerando que a finalidade última de qualquer

teoria da evidência e da justificação epistémica passa, parece-nos, por explicar de forma

apropriada o modo como evidência qualitativa e quantitativa suficiente está na origem de

justificação conducente ao conhecimento.

C&F acabam por confessar que não conseguem por exemplo dizer quão fortes têm

de ser as razões indiciadas por i para que a evidência resultante dessas razões gere

justificação-de-nível-de-conhecimento. Se o evidencialismo de C&F não consegue

responder a esta questão, qual será a vantagem que detém face aos seus concorrentes

directos, em especial sobre o fiabilismo de Goldman?

40 Um equilíbrio que Chisholm já tinha sugerido na sua segunda Teoria do Conhecimento.

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A segunda dificuldade está na dependência da primeira. C&F sustentam que os

standards para a justificação evidencialista podem ser falíveis, tornando dessa forma a

própria justificação falível. Tal como sugerem, a justificação assim concebida pode não

excluir a possibilidade de falsidade da crença ou evitar que a crença acerte na verdade por

mero acaso. E, sendo assim, C&F assumem que a condição de justificação preconizada pelo

evidencialismo tem de ser complementada por uma quarta condição que determine de

que modo a evidência é necessária e suficiente para que uma crença tenha justificação-de-

nível-de-conhecimento, evitando portanto acertar acidentalmente na verdade.

Resumindo, na medida em que EJ e ES autorizam a falibilidade da justificação, o

evidencialismo de C&F não fornece uma resposta cabal para solucionar o Problema de

Gettier.41

3.5. Fiabilismo

3.5.1. O fiabilismo de processos de Goldman

Esta secção é dedicada a inspeccionar alguns dos principais aspectos, méritos e

problemas da teoria da justificação que mais rivaliza com o evidencialismo. Essa teoria, ou

grupo de teorias, é o fiabilismo. Algumas manifestações de fiabilismo (e.g. Armstrong 1973)

tendem a ser apenas teorias sobre o conhecimento, remetendo o problema da justificação

para outro patamar de discussão, ou mesmo recusando fazer a sua discussão. No que se

segue, irei debruçar-me sobre o fiabilismo de Alvin Goldman, o qual começou por ser uma

teoria sobre a justificação epistémica.

Naàp i ei aàpa teàdeà Whatà isà JustifiedàBelief? (original 1976), Goldman (2000:

340-353) preocupa-se em argumentar contra várias teorias da justificação. Mais

exactamente, Goldman rejeita teorias da justificação cuja definição implica o uso de um

termo epistémico na antecedente. Por exemplo, Goldman rejeita teoria da justificação de

Chisholm porque, entre outras coisas, a definição (condição-de-base) que dá corpo a essa

teoria contém na antecedente um termo de natureza epist i a,àoàte oà auto-evidente .à

41 Tem de se reafirmar, fazendo-se justiça às intenções de C&F, que o evidencialismo não é uma teoria vocacionada

para solucionar o Problema de Gettier. Ainda assim, na medida em que é um teoria que pretende definir as condições

necessárias e suficientes para haver justificação conducente ao conhecimento, deixa por explicar que algo crucial para que

a justificação seja completamente eficaz desse ponto de vista.

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65

A seguinte definição evidencialista da justificação não é pois satisfatória na perspectiva de

Goldman.

“eà“àa editaà ueàp em t e p é auto-evidente, então a crença de S que p em t está

justifi ada (Ibidem: 341)

A necessidade apontada por Goldman de não existirem termos de natureza

epistémica na antecedente de uma definição da justificação prende-se com o facto de essa

explicação ter de ser não-circular. Uma tal definição não deve pois conter expressões de

teo àepist i oà aàa te ede te,àexp essõesà o oàpo àexe ploà te à azõesàpa a... ,à te à

fundamentos pa a... ,à se à e dadeà ue... ,àet .

Uma outra razão que leva Goldman a rejeitar as determinadas teorias da

justificação é o facto de as condições-de-base descritas por essas teorias não precaverem

a possibilidade de uma crença poder resultar de um processo de formação de crenças

deficiente, algo que, ainda segundo ele, fomenta a possibilidade de existirem contra-

exemplos eficazes a essas teorias. Goldman propõe-se encontrar uma condição-de-base

que não sofra desse problema. A sua solução passa por supor que crenças

epistemicamente justificadas têm de ser crenças que derivam de processos não-deficientes

de formação de crenças ou, dito à guisa de Goldman, processos fiáveis de formação de

crenças.

Para Goldman (Ibidem 345), processos deficientes e não-fiáveis de formação de

crenças são todos aqueles processos que tendem a produzir um elevado número de

crenças falsas. Goldman aponta alguns desses processos: raciocínio confuso ou pouco

claro, palpites, generalizações precipitadas, etc. Na outra face da moeda, processos fiáveis

são processos que tendem a produzir um elevado número de crenças verdadeiras (algo

susceptível de ser verificado estatisticamente), por exemplo, raciocínio válido ou

percepção.

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Nestaàa epç oàdeà o-fiabilidade àeà fia ilidade ,àaà o-fiabilidade e a fiabilidade

são propriedades dos processos de formação de crenças, não das próprias crenças, nem

dos agentes das crenças.42

Tendo em mente a possibilidade de a justificação poder ser definição em termos da

fiabilidade dos processos, Goldman sugere a seguinte condição-de-base:

à “eàe à t a crença de S que p resulta de um processo fiável de formação de

crenças, então a crença de S que p est àjustifi ada (Ibidem: 347)

Contudo, no entender de Goldman, algumas precisões têm de ser feitas a (5), por

exemplo, que a justificação não requer um nível (impossível) de fiabilidade que origine

sempre crenças verdadeiras, i.e., um nível infalível de fiabilidade, bastando, ainda no se u

entender, que os processos sejam suficientemente fiáveis, no sentido em que a sua

aplicação/ocorrência produz um elevado número de crenças verdadeiras e um baixo

número de crenças falsas. Crucialmente, Goldman sustenta que uma crença está justificada

desde que tenha sido bem-formada, em que isto significa que a crença resultou de um

... à o ju toàdeàope açõesà ognitivas suficientemente fi eis (Idem)43

Ser um conjunto de procedimentos suficientemente fiável não implica porém a

infalibilidade desse mesmo conjunto.

Embora esta exigência de infalibilidade da fiabilidade dos processos seja rejeitada

por Goldman, este introduz desde logo algumas modificações na sua definição de base de

modo evitar problemas que se prendem fundamentalmente com a) a necessidade de

acesso dos agentes à fiabilidade dos processos dos quais resultam as suas crenças, isto para

terem o estatuto de justificadas, e com b) a necessidade de reduzir a possibilidade de haver

crenças contraditórias resultantes de processos igualmente fiáveis. No que diz respeito ao

ponto a, Goldman considera que a exigência que estipula é não apenas falsa como também

42 Por exemplo, para uma versão de fiabilismo que privilegia a fiabilidade dos agentes face à fiabilidade dos

processos, ver Greco (1999: 273-296). Ver especialmente a partir da p. 284. Voltarei a este texto quando discutir os

problemas apontados ao fiabilismo de processos.

43 O itálico é nosso. A concepção surge também perfeitamente delineada noutro famoso texto de Goldman.

“Numa determinada concepção [a de justificação forte], uma crença justificada é (grosso modo) uma crença

correctamente formada (ou sustentada) a partir de métodos, processos ou procedimentos apropriados e adequados”

(Goldman 1988: 52).

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desnecessária.44 No que ao ponto b diz respeito, Goldman propõe a seguinte condição-de-

base:

“eàaà e çaàdeà“àdeà ueàp em t resulta de um processo cognitivo fiável, e se não há

para S qualquer processo fiável ou condicionalmente fiável que, no caso de ter sido usado

por S em conjunção com os processos fiáveis que de facto usou, tivesse resultado na

descrença de S de que p em t, então a crença de S de que p em t est àjustifi ada. (Goldman

2000: 351)

Apesar de Goldman introduzir algumas restrições a esta condição de base, ela é,

quando complementada pela condição (5), o cerne do fiabilismo de processos primitivo.

Em função das objecções que foram sendo levantadas ao fiabilismo de processos,

Goldman foi obrigado a rever substancialmente a sua teoria. Revisito de seguida duas

dessas objecções. A primeira objecção, conhecida por Objecção da Generalidade, está

talvez ainda hoje por solucionar de modo completamente satisfatório.45 A segunda, a

resposta de Goldman à chamada Objecção da Não-necessidade parece levantar mais

problemas para a teoria do que aqueles que esta última consegue resolver.

Por razões de economia, descrevo e discuto apenas a duas objecções que me

parecem ser as mais importantes. Não obstante, existe uma outra conhecida objecção ao

fiabilismo genérico, o Swamping Problem, que merece ser brevemente vistoriada. Grosso

modo, o problema pode ser resumido da seguinte forma. Uma vez que a crença verdadeira

é um valor epistemológico (quase) absoluto, e uma vez que fiabilismo genérico é a teoria

que depende da ideia de que o objectivo da cognição é obter crenças verdadeiras (o maior

número possível), parece seguir-se que não há diferença de valor entre ter uma crença

verdadeira simpliciter e ter uma crença verdadeira que seja o resultado de algum tipo de

fiabilidade de processos, de agentes, etc. Do ponto de vista do valor, parece que uma

crença verdadeira já é suficientemente valiosa apenas por ser verdadeira, o que parece

imputar ao fiabilista o ónus de mostrar por que razão é uma crença verdadeira fiável mais

44 Tal como parecem indicar certos casos de justificação de crenças de animais superiores e de jovens adultos. Vide

Goldman 2000: 350.

45 Um resumo dos cinco principais problemas que afectam o fiabilismo e das principais respostas a esses problemas

pode ser encontrado em Goldman 2009.

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valiosa que uma crença verdadeira simpliciter. Como sugere Ernest Sosa (2007), usando

uma interessante analogia, é como tentar mostrar por que razão seria melhor um

determinado café, que já de si é bom, só pelo facto de ter uma determinada origem.

3.5.2. A Objecção da Generalidade

A objecção da generalidade (Goldman 2000: 345), (doravante OG), é por vezes

também conhecida por Problema da Especificação (Audi 2003: 231). A objecção assenta na

seguinte ideia. Supondo, como supõe o fiabilismo, que uma crença está justificada desde

que o processo causal particular (token) que lhe deu origem é fiável, e supondo também

que a fiabilidade deste processo particular depende da fiabilidade de múltiplos processos

causais genéricos (type), torna-se difícil ou mesmo impossível determinar qual o processo

ou quais processos genéricos (type) que conferem ao processo particular (token) a

fiabilidade exigível para cada caso de formação de crença justificada.

Eis uma descodificação possível para o problema. 46 A questão é a seguinte: Quais

as circunstâncias exactas que fazem com que um processo de formação de crenças seja

fiável, e possa assim ser declarado fiável ao ponto de conferir justificação às crenças que

dele resultam? Por exemplo, em que circunstâncias pode o acto visual de percepcionar

uma águia na escarpa constituir um processo fiável para a produção, sustentação, e

justificação da crença de que está uma águia na escarpa? Bem, pode talvez sê-lo desde que

recolha a sua fiabilidade de um ou mais processos genéricos (type) fiáveis de formação e

sustentação de crenças. Mas qual ou quais processos genéricos concorrem

suficientemente para essa possibilidade? Existem múltiplos processos genéricos (type),

quer no aspecto físico quer no aspecto mental e/ou psicológico, cuja fiabilidade, digamos,

genérica, parece ser necessária para a fiabilidade, digamos, particular, do processo

particular. Mas como determinar, seio da multiplicidade de processos genéricos, quais os

necessários e conjuntamente suficientes para conferir essa fiabilidade ao processo

particular? É pois um problema de especificação que é neste ponto introduzido pelo crítico

do fiabilismo. Trata-se da especificação dos processos genéricos que contribuem

46 Grosso modo, esta descodificação é a que aparece em Conee & Feldman 2004: 136-137. Uma resposta fiabilista

ao problema da especificação ou da generalidade aparece em Comensanã 2006.

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suficientemente para fiabilidade de um processo particular de formação e sustentação de

uma crença.

Uma análise exaustiva dos meandros da OG e das respostas que obteve não parece

ser necessária para mostrar que a objecção não foi ainda convincentemente refutada, uma

vez que o próprio Goldman, na qualidade de comentador da sua própria teoria, considera

que ainda não foi apresentada uma resposta satisfatória para a referida objecção

(Goldman 2009). A OG levanta um problema para o fiabilismo de processos que parece

estar ainda por resolver.

3.5.3. A Objecção da Não-necessidade

Suponha-se que a OG não obtém. Segue-se daí que o fiabilismo tal como descrito

não tem mais problemas? Não. A objecção da não-necessidade (ONN) deixa o fiabilismo

em maus lençóis.

Imagine-se uma realidade alternativa (um mundo possível) no qual as crenças dos

agentes cognitivos resultam aparentemente do mesmo género de processos fiáveis de

formação de crenças partir dos quais resultam as crenças dos agentes cognitivos do mundo

actual, por exemplo, determinados exercícios da capacidade percepcionar, determinados

episódios de memória, de inferência, etc. Não obstante, nesse mundo alternativo os

agentes são enganados por um demónio, algo ou alguém que os faz crer apenas em

falsidades, fazendo-os simultaneamente crer que essas falsidades são afinal verdades. É

razoável supor que as cre çasà dosà age tesà doà u doà de o izado à est oà prima facie

justificadas, isto porque essas crenças parecem resultar (da perspectiva dos agentes nesse

mundo) de processos de formação de crenças que (em circunstâncias normais, não

de o izadas àp oduze àu àelevado número de crenças verdadeiras e um baixo número

de crenças falsas. No entanto, apesar de justificadas, essas crenças não resultam de

processos fiáveis de formação de crenças, mas sim da actividade do demónio (que não é

de todo fiável), e, por conseguinte, essas crenças não derivam a sua justificação da

fiabilidade dos processos, seguindo-se portanto que esta última não é uma condição

necessária para a justificação (Cf. Cohen 1984: 280 ss).

Goldman usa duas distinções para estabelecer a sua resposta a esta objecção. A

primeira (1988: 52 ss) é a distinção entre duas formas ou concepções de justificação: a

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justificação forte, por um lado, e a justificação fraca, por outro. A segunda (1992: 155-175)

é a distinção entre crenças que resultam de processos virtuosos de formação de crenças,

por um lado, e crenças que resultam de processos corrompidos (vicious) de formação de

crenças, por outro.

Quanto à primeira distinção, importa reter que a justificação só é forte se derivar

de processos, métodos ou procedimentos fiáveis de e para a formação de crenças. Crença

plenamente justificada é, neste sentido avançado por Goldman, crença bem-formada a

partir de processos, métodos e procedimentos fiáveis, isto no sentido habitual de

fia ilidade à ueà te hoà i doà aà des e e ,à u à se tidoà ueà implica que dos processos,

métodos ou procedimentos fiáveis resulte um elevado número de crenças verdadeiras.

Este sentido de justificação forte pressupõe pois uma ligação estreita entre crença e

verdade.

Já o mesmo não acontece com a justificação fraca. Goldman sustenta que uma

crença pode estar justificada, ainda que debilmente justificada, mesmo considerando que

essa crença não tem origem em processos fiáveis de formação de crença. A crença está

justificada porque, apesar de não ter origem num processo ou método fiável, ainda assim

não é possível culpabilizar o agente por a ter. A noção de justificação fraca assenta pois na

noção de não-culpabilidade. Por exemplo, quando alguém usa um processo de raciocínio

ferido de invalidade para chegar a uma determinada conclusão e, não se dando conta desse

vício, passa a acreditar nessa conclusão. Ou então quando alguém que desconhece que a

superfície da terra é curva vê um navio a afastar-se no horizonte e forma a crença de que

o barco está a afundar-se lentamente. Ambas são situações em que o agente não pode ser

culpabilizado por acreditar no que acredita, e a sua crença assenta em algo que a justifica,

a inferência viciada, no primeiro caso, e o acto de percepção enganador, no segundo.

Feita esta distinção, Goldman sugere que ela é crucial para explicar o que realmente

se passa com os agentes cognitivos doà u doà de o izado .àEàoà ueàseàpassaà à ueàessesà

agentes têm a suas crenças justificadas, mas apenas fracamente justificadas. Eles não

podem ser culpabilizados por terem formado essas crenças com base no que julgam ser

processos fiáveis de formação de crenças, mas que afinal não são fiáveis, seja porque esses

processos foram manipulados pelo demónio, seja porque o demónio fez os agentes pensar

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que esses processos tiveram lugar quando isso não foi o caso. Este tipo de justificação fraca

não estabelece, ainda segundo Goldman, uma ligação entre as crenças dos agentes e a

verdade, e portanto não satisfaz um requisito essencial, um requisito que, ainda segundo

Goldman, só pode ser satisfeito pela justificação no seu sentido forte, tal como é por ele

concebida e descrita. Portanto Goldman concede a Cohen et al que as crenças dos agentes

no mundo demonizado estão de alguma forma justificadas, embora não conceda que estão

apropriadamente justificadas.

A moral que Goldman retira é a de que a objecção do mundo demonizado não

mostra que a fiabilidade dos processo cognitivos não é uma condição necessária para a

justificação simpliciter, mas somente que não é uma condição necessária para aquele tipo

de justificação fraca (e, como veremos, de carácter internalista) que não garante um

número significativo de crenças verdadeiras.

Apesar de aparentemente eficaz, esta resposta à ONN não anula outros problemas

mais recentes apontados ao fiabilismo, nomeadamente o Problema do Bootstrapping

(Vogel 2009: 602-623) e o Problema do Conhecimento Fácil (Cohen 2002: 309-329), os

quais não irei discutir aqui.

3.6. Deontologismo

Para finalizar a inspecção das principais propostas no in terior do justificacionismo,

importa agora tratar daquele género de teorias que porventura melhor representa o

conceito de justificação epistémica lato sensu, e que é habitual designar-se em

epistemologia por deontologismo ou concepção deontológica da justificação (Alston 1985:

57-89). Outras designações para o deontologismo surgem amiúde na literatura,

nomeadamente, concepção normativa da justificação e/ou responsabilismo (Cf. Greco

1990: 246).

O deontologismo assenta em duas ideias basilares que por vezes surgem indistintas

na literatura. A primeira é a de que um agente cognitivo tudo deve fazer para obter a

verdade e evitar a falsidade, e/ou o erro.47 A segunda é a de que um agente cognitivo deve

reger a sua atitude de aceitação ou de rejeição de uma proposição em função,

47 Esta ideia surge recorrentemente imputada a William James na literatura. É por exemplo o que faz Chisholm

(1977: 14), que remete a descrição da ideia para James (1911: 17).

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respectivamente, da verdade ou da falsidade dessa proposição. Esta última ideia impõe o

chamado Requisito Intelectual.48

Segue-se uma descrição das raízes e das propriedades que marcam o

deontologismo. No final da secção são apresentados e discutidos alguns dos problemas

desta forma particular de justificacionismo.

3.6.1. Deontologismo clássico

Talvez a mais lúcida análise sobre as origens do deontologismo em epistemologia

seja a que nos é oferecida por Alvin Plantinga (1992: 43-77).49 Plantinga introduz o que

apelida de Internalismo Clássico, discutindo a sua relação com o que está aparentemente

na sua origem: a noção de responsabilidade epistémica (Ibidem: 49 ss). Esta noção e as

exigências que a acompanham são no essencial atribuídas por Plantinga a René Descartes,

John Locke e Roderick Chisholm. Crucialmente, Plantinga considera que as noções de dever

e de responsabilidade epistémica são transversais a bastantes teorias da justificação, em

particular às teorias destes três filósofos.

Grosso modo, tal como é descrita por Plantinga, esta noção de responsabilidade

epistémica assenta em duas condições-de-base. Essas condições são que…

a) o agente ajuste a sua atitude de crença numa determinada proposição p à evidência que tem para p 50

e que...

b) o agente faça tudo em seu poder para acreditar apenas em verdades, evitando portanto, na medida das suas possibilidades, acreditar em falsidades.

As presentes condições referem-se, claro está, a deveres epistémicos que têm de

ser observados pelos agentes cognitivos. Como sugere Plantinga, a condição a recolhe

muito da sua força na ideia de Descartes segundo a qual um agente só deve aceitar p se

conseguir conceber clara e distintamente p como verdadeira. Como S só pode

racionalmente conceber p como verdadeira se tiver evidência para p, parece seguir-se com

48 Outras traduções possíveis são O Preceito Intelectual ou A Condição Intelectual.

49 Ver também Fumerton (2001).

50 O que é obviamente uma condição geralmente subscrita pelos defensores do evidencialismo, e daí o

evidencialismo, o internalismo e o deontologismo andarem geralmente de mãos dadas.

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alguma naturalidade que a versão contemporânea de “à o segueà o e e à la aà eà

distintamente que p ao ponto de aceitar racionalmente p o oà e dadei a à te à

plausi el e teà deà se à “à te à e id iaà sufi ie teà pa aà a eita à a io al e teà p como

e dadei a .à I agi e-se que S não satisfaz este requisito e que decide acreditar em

proposições para as quais não dispõe de qualquer evidência. Se assim for, dificilmente se

pode afirmar que S faz o que deve para alcançar a verdade e evitar a falsidade (e/ou o

erro), violando dessa forma a condição b, ficando o seu comportamento epistémico aquém

do que é aceitável, o que é a perspectiva de Locke sobre o dever epistémico (Ibidem: 51).51

Plantinga também imputa a Descartes, a Locke e a Chisholm a tese de que um

agente cognitivo só é digno de louvor e isento de culpa no caso de satisfazer as referidas

condições. As suas crenças serão portanto justas (num certo sentido liberal do termo),

vindo dessa forma a adquirir o estatuto de crenças justificadas.

A concepção clássica de justificação é portanto uma concepção

deontológica/normativa, no sentido em que impõe regras e deveres, gerais ou específicos,

que têm de ser observados pelos agentes cognitivos para que estejam epistemicamente

justificados em acreditar no que acreditam.

3.6.2. Deveres: epistémicos vs não-epistémicos e objectivos vs subjectivos

Começamos por voltar a uma importante distinção que já tínhamos alinhavado

(vide secção 3.3.) e que nos surge explicitamente delineada por William Alston (1988: 258

ss) quando nos oferece a sua principal abordagem à concepção deontológica da

justificação. Trata-se da diferença entre justificação deontológica epistémica e justificação

deontológica não-epistémica (e.g., moral ou prudencial). Grosso modo, para Alston, a

diferença assenta no facto de a primeira resultar do respeito e da obediência que o agente

cognitivo presta a regras ou normas epistémicas, enquanto a segunda resulta do respeito

e da obediência que o agente moral presta a regras ou normas não-epistémicas (e.g.,

princípios morais ou prudenciais). Uma vez que a concepção deontológica pressupõe que

as crenças dos agentes só estão justificadas na medida em que estes agentes satisfazem

certos deveres epistémicos, importa perceber o que diferencia os deveres epistémicos dos

deveres não-epistémicos.

51 Plantinga remete a posição de Locke para uma famosa passagem do Ensaio sobre o Entendimento Humano.

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Richard Feldman, por exemplo, defende (2002: 373) que para um dever ser

epistémico não basta estar relacionado com a forma como um agente aceita ou rejeita uma

proposição, pois há atitudes de aceitação (ou de rejeição) de uma proposição

cognitivamente louváveis (ou cognitivamente reprováveis), e há atitudes de aceitação (ou

de rejeição) de uma proposição moralmente louváveis (ou moralmente reprováveis).52

Nesta linha, ele propõe um critério teleológico para distinguir entre deveres epistémicos e

deveres não-epistémicos. Segundo este critério, um dever epistémico é um dever que o

agente tem de cumprir de modo a conseguir satisfazer um telos epistémico (e.g., a

e dade àouài tele tualà desdeà ueà i tele tual àsejaàe p egueà o àalgu asà est ições ,à

enquanto um dever não-epistémico é um dever que o agente tem de cumprir de modo a

satisfazer um telos moral (e.g., praticar uma boa acção).

À luz do critério de Feldman, a definição de Alston de justificação deontológica

compreende-se melhor. Alston sugere que...

“àest àJᵈ [deontologicamente justificado] em acreditar que p se, e somente se, S não viola qualquer dever epistémico ao acreditar que p (Alston 1985: 59)

Esta definição apresenta-se bastante intuitiva quando mantida no nível de

generalidade estipulado pelas condições a e b, mas torna-se informativamente insuficiente

quando a exigência de detalhe aumenta. Suponha-se que, no momento t, S acredita que a

lua possui água (L). S acredita que L com base na evidência que tem no momento t para

acreditar que L. Pode ainda supor-se que a evidência que S possui para acreditar em L

confere a L uma elevada probabilidade objectiva de ser verdadeira (embora, podemos

também supor, uma probabilidade de L=<1). Uma vez que, neste caso, S satisfaz

claramente a e b, não é possível culpabilizar S pelo seu comportamento epistémico. S fez

objectivamente o que devia para poder acreditar justificadamente em L, pois

aparentemente satisfez os seus deveres epistémicos no que respeita a L. S só acredita que

L é verdadeira porque dispõe de boa evidência para a verdade de L, e, portanto, nada mais

faz do que ajustar (não intencionalmente, podemos supor) a sua crença à sua (boa)

52 Outras distinções importantes entre deveres epistémicos são apontadas neste lugar, por exemplo, a distinção

entre o dever de acreditar apenas na verdade e o dever de tentar acreditar apenas na verdade. Estas distinções não me

parecem todavia cruciais para uma defesa da concepção deontológica da justificação, e portanto não voltarei a elas.

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evidência para a verdade de L. Alston sugere que, nestas circunstâncias, a crença de S que

L está objectivamente justificada. Um agente cognitivo S tem uma crença objectivamente

justificada em p desde que S tenha evidência adequada para p e ajuste a sua crença a essa

evidência.

Suponha-se todavia que S dispõe de motivos para acreditar que L mas que esses

motivos não se constituem realmente como boas razões, razões objectivamente boas, para

a verdade de L. Por exemplo, suponha-se que S leu num jornal pseudo-científico, no qual

são apenas publicadas falsidades, que foi descoberta água na lua aquando da alunagem da

Apolo XI, no ano de 1969. Suponha-se que S ajusta a sua crença a esses dados

pseudocientíficos apenas porque desconhece que o jornal só publica falsidades. Na medida

em que estes dados de algum modo sustentam a crença de S (ou estão na base da sua

formação), é legítimo pensar-se que esta crença está de algum modo justificada, embora

esteja justificada por más razões. E, podemos ainda supor, uma vez que S acredita que

esses dados se constituem realmente como evidência para L (embora como fraca

evidência, percebemos nós enquanto observadores privilegiados), e não dispondo S de

evidência para acreditar na falsidade de L, a sua atitude de acreditar que L não é

deontologicamente censurável. Pode pois dizer-se que esta crença de S está justificada,

subjectivamente justificada, pois está justificada da perspectiva do agente—embora não

esteja justificada por boa evidência, quer dizer, objectivamente justificada.

Alston defende que a justificação subjectiva não pode ter o estatuto de justificação

epistémica, uma vez que existe geralmente um conflito entre o facto de a evidência não

ser adequada para a verdade do que é acreditado e o facto de o agente supor o contrário.

O exemplo que demos revela com efeito que algumas razões que não se constituem como

e id ia,à oàse tidoà o je ti o àdeàe id ia,àpode à oàe ta toàle a àoàage teàaàa edita à

justificadamente, embora indevidamente do ponto de vista objectivo, numa proposição

verdadeira. A justificação não será neste caso epistémica, pois o que a torna justificação

não conduz o agente à verdade (apesar de a sua crença assim justificada ser verdadeira).

3.6.3. Justificação, racionalidade e responsabilidade

Definir a justificação epistémica usando a ideia de responsabilidade epistémica via

racionalidade é uma proposta alternativa ao evidencialismo tout court de Conee e Feldman

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e ao fiabilismo de Goldman. A perspectiva tem sido defendida por Richard Foley (2005:

313-326) e pode rotular-se como sendo em certa medida um subproduto do

deontologismo. Foley recomenda, por um lado, uma teoria da justificação que não esteja

condicionada pela exigência de a justificação ser conducente ao conhecimento. O ponto é

que uma vez abandonada esta exigência é possível encontrar uma definição mais

completa, plausível e bem-sucedida do que é a justificação em termos de racionalidade.

Por outro lado, Foley sustenta também que certas considerações de ordem

pragmática condicionam a forma como um agente cognitivo adquire justificação para as

suas crenças. Sugere, por exemplo, que a recolha de evidência e subsequente deliberação

por parte de um agente cognitivo sobre se é ou não racional aceitar um determinado tópico

depende de considerações de ordem pragmática (Ibidem: 321). O ponto geral é portanto

que a justificação epistémica, seja ela suficiente ou não para alcançar a verdade e o

conhecimento, depende da racionalidade que é empregue por um agente cognitivo na

procura pela satisfação de determinados meios e fins epistémicos. Segundo o próprio Foley

próprio, esta concepção está mais virada para a noção vulgar de justificação enquanto

crença responsável do que propriamente para noções mais exigentes de justificação

desenhadas para resolver casos gettierizados. Concordamos.

A concepção responsabilista da justificação sugerida por Foley assenta em duas

condições-de-base (Ibidem: 322). A primeira diz basicamente que um agente cognitivo S só

tem uma crença justificada (Cj) que p se S tiver uma outra crença racional (C*) sobre o seu

aceitável comportamento epistémico com relação a p. Ainda segundo Foley, S só terá C*

desde que, tudo considerado, S despendeu uma aceitável quantidade de tempo e energia

a recolher e considerar evidência para p.

A segunda condição-de-base diz basicamente que S forma de maneira não

negligente a crença que p e sustenta de uma forma não negligente essa crença desde que

S não tenha sido irracional em acreditar que p e em sustentar essa crença. Segundo Foley,

estas duas condições de base completam-se no sentido de sustentarem um conceito de

justificação enquanto comportamento epistémico responsável. Mas estas condições

parecem ter problemas.

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O primeiro problema é identificado pelo próprio Foley .à áà exp ess oà ... à tudo

considerado, S dependeu uma aceitável quantidade de tempo e energia a recolher e

considerar evidência para p àle a taàoàp o le aàdeàseàpe e e à ualàoà it rio a usar para

a alia à oà ueà de eà i lui à tudoà o side ado à e à adaà asoà deà e ça,à istoà po ueà

diferentes tipos de crença parecem impor diferentes exigências. É portanto uma espécie

de problema da generalidade (vide a secção sobre o fiabilismo) que se levanta aqui.

Foley defende a sua concepção responsabilista da justif icação deste problema ao

supor que crenças com objectos diversos exigem também diferentes níveis de actuação

epistémica responsável por parte dos agentes. Por exemplo, uma crença numa proposição

que expõe uma determinada hipótese científica parece exigir por parte do agente um

elevado nível de responsabilidade epistémica (e.g., que o agente seja minucioso na recolha

e consideração de evidência), ao contrário de crenças em proposições mais vulgares,

crenças que não parecem exigir que o agente se aplique com grande grau de minúcia e

precisão na descoberta da verdade. Mas isto parece tornar o critério para se aferir o grau

de minúcia, precisão e responsabilidade empregue pelo agente demasiado geral, vago e

elástico. O problema, que não irei perseguir aqui, é o de como estabelecer as fronteiras, os

limites e as quantidades necessárias para se poder qualificar uma crença como responsável

e, portanto, justificada.

O segundo problema com a primeira condição-de-base (a mais relevante para o que

me ocupa neste trabalho) prende-se com a exigência de S ter uma meta-crença, C*, sobre

o seu aceitável comportamento epistémico com relação a p. A propósito desta exigência,

Nicholas Wolterstorff (2005: 342) defende que um agente pode gerar a sua crença C* de

modo irresponsável, correndo-se portanto o risco de essa irresponsabilidade transmitir-se

para a crença de primeira ordem para a qual a crença de segunda ordem visa contribuir em

termos de justificação. Mas o problema parece ser ainda mais grave se se considerar que

para que possa surtir algum efeito e instanciar alguma credibilidade da perspectiva do

agente e de quem avalia as crenças do agente, a crença de segunda ordem deve ela própria

estar justificada. Isso parece todavia exigir que o agente tenha uma crença C** sobre o

facto de ter chegado responsavelmente à sua crença C*. É então fácil de perceber onde

pode incidir a crítica à condição-de-base. Se o agente tem de ter crenças de segunda ordem

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sobre o modo responsável como forma e sustenta uma crença de primeira ordem, então

(se a crença de segunda ordem for encarada ela própria como uma crença de primeira

ordem) existe o perigo de um regresso.

O problema parece residir na acumulação de exigências de responsabilidade. As

questões que parecem resultar daqui são as seguintes:

1) Onde termina a exigência de responsabilidade epistémica?

2) O que é necessário e suficiente em termos de responsabilidade epistémica para uma crença de primeira ordem estar justificada?

3) O que é necessário e suficiente em termos de responsabilidade epistémica para uma crença de primeira ordem estar justificada de modo conducente à verdade e ao conhecimento?

Apesar de oferecer no seu artigo algumas respostas para as questões 1 e 2, Foley

deixa a questão 3 por responder. Deixa-a por responder porque, como o próprio Foley faz

questão de salientar, a sua concepção racionalista e responsabilista da justificação não visa

responder-lhe. Foley não está preocupado com uma teoria de uma condição (a que Foley,

no trilho de Plantinga, chama garantia) que seja invariavelmente necessária e suficiente

para alcançar a verdade e o conhecimento, podendo portanto aparentemente esquivar-se

a responder a essa questão. Como o modo de justificação visado pela DTC e outras

definições/análises do conhecimento que usam a condição de justificação é justamente o

odoà o du e teà à e dade ,àaà o epç oàde justificação oferecida por Foley não pode

ser eleita como explicativa desse fenómeno, isto na medida em que não reclama

estabelecer ou descrever as condições necessárias e suficientes para essa propriedade.

3.6.4. Um problema clássico do deontologismo: dever implica poder

Talvez o maior perigo para o deontologismo enquanto teoria da justificação

epistémica esteja sediado na crítica segundo a qual algumas crenças podem estar

justificadas mesmo que o agente não seja epistemicamente responsável (ou irresponsável)

ao formar essas crenças. Trata-se no fundo de admitir que a responsabilidade epistémica

de um agente não é uma condição necessária para que esse agente tenha crenças

justificadas.

A crítica pressupõe o venerável princípio segundo o qual o exercício do dever implica

o poder de exercer o dever. A capacidade para formar responsavelmente uma crença

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implica ter o poder para formar responsavelmente uma crença (Cf. Alston 1988: 259;

Feldman 2001). Mas, plausivelmente, casos há em que o agente não controla o modo como

forma as suas crenças. Quem olha para uma montanha verdejante não consegue evitar a

crença de que vê uma montanha verdejante. Quem vê um automóvel a vir na sua direcção

a alta velocidade não consegue evitar a crença de que vem um automóvel na sua direcção,

etc. Ora, supondo que os agentes não conseguem controlar, espontânea e

voluntariamente, algumas das suas crenças, e supondo também que essas crenças estão

justificadas (e.g., por boa evidência perceptual), parece seguir-se que a responsabilidade

epistémica dos agentes pouco ou nada tem a ver com essa justificação. Sendo assim, a

responsabilidade epistémica pode ser dispensada em certos casos de crença justificada,

algo que a impede ser uma condição (universalmente) necessária para a justificação.

O voluntarismo doxástico simples é a teoria segundo a qual os agentes conseguem

controlar a maneira como formam as suas crenças. O invonlutarismo doxástico simples é a

teoria contraditória desta. A tendência entre defensores de formas moderadas ou

mitigadas de deontologismo ou de responsabilismo é a de defender formas também elas

moderadas de voluntarismo doxástico. Alston, por exemplo, defende que os agentes

cognitivos conseguem controlar, ainda que de forma indirecta, acreditar ou não acreditar

(justificadamente). Alston argumenta (Ibidem: 277) a favor do controlo indirecto da

formação de crenças por parte de um agente.53 No essencial, a sua perspectiva é a de que

o agente tem controlo à distância das crenças por via de uma cadeia causal. Desta

perspectiva, o agente pode ser responsável no que toca ao seu comportamento

epist i o,àai daà ueà u aàa epç oà aisàf a aàdeà espo s el .

Já Carl Ginet (2001) emprega outra táctica para defender o voluntarismo. O seu

ponto, o qual sustenta com vários exemplos, é o de que um agente S controla

voluntariamente a formação da sua crença que p—i.e., decide acreditar que p—se...

a) S espera que p,

e se...

53 Ver Audi (2001) para uma estratégia semelhante. Ele sustenta que há uma diferença entre as causas de uma

crença, que são controláveis pelo agente, e o acto de crer, que nem sempre o é.

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b) S decide apostar em p (desenvolver uma acção com base no pressuposto da verdade de p) com base na expectativa descrita em a,

e se...

c) ao esperar e apostar que p, tal como definido por a e b, S não espera nem aposta que não-p.

Porém, ainda que aceitável, esta perspectiva não exclui casos de crença em que,

alegadamente, o agente nem espera que p, nem aposta que p, e ainda assim não pode

evitar ter a crença que p. Ginet reconhece essa possibilidade, sendo o mais razoável supor

que algumas dessas crenças involuntárias estão no entanto justificadas. Segue-se portanto

que a perspectiva de Ginet não tem como consequência que a responsabilidade epistémica

seja uma condição necessária para a justificação epistémica.

Com algumas restrições aqui e ali, todas as perspectivas voluntaristas parecem

permitir o mesmo tipo de conclusão, a saber, que a responsabilidade epistémica não é uma

condição necessária para a justificação. Uma alternativa plausível é supor que a

responsabilidade epistémica é necessária para a justificação num conjunto alargado de

casos, casos em que o agente tem algum tipo de controlo sobre a formação as suas crenças

ou sobre o tratamento e uso dos fundamentos das suas crenças. Esta não é talvez uma

solução que agrade aos defensores do deontologismo, mas parece ser a mais plausível e a

que melhor preserva o espírito da concepção, uma vez que preserva parte do requisito

deontológico, permitindo que seja aplicável em casos nos quais a natureza da proposição

acreditada não pode dispensar a observação de princípios epistémicos.

Primeiro Interlúdio

Resumo

O problema da justificação epistémica ocupa um especial lugar de destaque na

epistemologia pós-Gettier. A variedade de teorias disponíveis sobre que género de

propriedade/condição é a justificação, bem como do que depende, atesta essa realidade.

Considerando este facto, faz algum sentido que se lhe dispense um pouco mais de atenção.

Este interlúdio é dedicado a duas discussões quase sempre associadas ao tema da

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justificação epistémica. Trata-se do problema da estrutura da justificação, por um lado, e

o problema da origem da justificação, por outro.

a) A Estrutura da Justificação Epistémica: Fundacionismo, Coerentismo ou Outro

Modelo?

—O modelo fundacionista de Bonjour

Na linha de outros filósofos, Lawrence Bonjour preocupa-se em perceber como

podem os agentes ter crenças básicas justificadas, quer dizer, como podem ter crenças que

sirvam de fundação ao edifício de crenças que alegadamente constitui o conhecimento. A

solução de Bonjour é fundacionista. 54

Bonjour tem algumas preferências filosóficas na base da sua teoria

fundacionista/internalista da justificação. A primeira é a de que a noção de verdade como

correspondência é a melhor alternativa para dar conta da relação entre estados de coisas

no mundo e a conceptualização desses estados de coisas. Ele considera a adopção desta

teoria indispensável porque é a que melhor dá conta da ligação e t eàu à i te io àdoà

age teà oà ualàsu ge àosà o teúdosà o eptuais/ og iti osàeàu à exte io àdoàage te,à

onde estão alegadamente as coisasà ueà o espo de àaàessesà o teúdos.à

A segunda ideia de Bonjour consiste em evitar o uso do conceito de conhecimento

para explicar o de justificação epistémica (e inversamente), pois para tal seria forçoso que

se pudesse indicar de antemão o grau/nível de justificação necessário para a ocorrência de

conhecimento. À falta de compreensão desse grau ideal, não é sensato tentar definir o

conceito de conhecimento usando o conceito de justif icação (ou o inverso). Bonjour aponta

o Problema de Gettier e as indefinições que dele resultam como exemplos paradigmáticos

desta dificuldade.

O terceiro ponto consiste na exclusão de crenças em proposições analíticas e/ou

necessárias do campo de investigação estabelecido por Bonjour. O que se encontra em

jogo são crenças em proposições contingentes, cuja justificação depende da experiência.

54 Uma descrição elucidativa do problema das crenças básicas justificadas surge em Bonjour (2002: 193-219).

Como veremos, a solução de Bonjour surge explicitamente delineada em Bonjour & Sosa (2003). Bonjour abraçou primeiro

o coerentismo, tendo posteriormente revisto a sua posição, tornando-se um adepto do fundacionismo.

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Posto isto, Bonjour questiona-se sobre onde começa a justificação.55 Suponha-se

que S possui uma crença sobre um determinado estado de coisas no mundo, uma crença

empírica, possuindo também uma boa justificação para essa crença, digamos, dispõe de

boas razões para pensar que aquilo em que acredita é o caso. Mas como justifica S a sua

crença de que essas são boas razões? Irá provavelmente fazê-lo recorrendo a novas razões

que possam apoiar as primeiras, e assim sucessivamente, gerando-se dessa forma uma

sequência de razões e, logo, de justificações. Onde acaba (ou começa, dependendo do

sentido que se queira adoptar) essa sequência? Indagar onde acaba (ou começa) essa

sequência é indagar pelas razões e justificações primitivas, básicas ou fundacionais.

Bonjour apresenta aquelas que são no seu entender as três vias disponíveis para

este solucionar este problema. Supondo que a sequência acima referida é constituída por

crenças justificadas, parece-se seguir-se que ou

a) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença para a qual não existe qualquer razão e/ou justificação disponíve l;

ou…

b) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença que é justificada por uma qualquer crença pertencente à própria sequência;

ou…

c) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença que consegue autojustificar-se.

Como Bonjour pensa que a e b levam ao cepticismo, rejeita essas hipóteses e

defende c. Não obstante, Bonjour também reconhece problemas a c, sendo o principal

perceber o que faz com que essas crenças se autojustifiquem.

Bonjour opta pela resposta clássica: muitas crenças com origem na percepção estão

autojustificadas, sendo portanto fundacionais. Estão autoju stificadas na medida em que a

apreensão do conteúdo da crença por parte do agente realiza-se de modo directo (ou

55 Para um argumento céptico a este propósito, ver Oakley (1976: 222-223). Ver especialmente 228 para uma fuga

de Oakley ao cepticismo radical, mantendo-o ao nível da possibilidade da justificação das crenças.

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quase directo). Dito de outro modo, há por parte do agente uma espécie de acto cognitivo

de segunda ordem que consiste na apreensão directa do conteúdo.

O problema que aflige esta perspectiva é contudo, como próprio Bonjour indica, o

de se perceber qual a natureza deste acto cognitivo de segunda ordem. Qual a natureza

deste acto suplementar de apreensão? E o agente apreende exactamente o quê? A

formulação do problema é a seguinte:

Hipótese 1 – O acto de apreensão possui conteúdo proposicional, jud icativo e/ou assertivo, por via do qual é possível justificar uma crença.

Se esta hipótese obtém, o conteúdo proposicional nela referido tem de estar

justificado de modo a poder desempenhar o seu papel de justificante. Ou em alternativa...

Hipótese 2 – O acto de apreensão não possui o referido conteúdo proposicional, sendo não-proposicional e/ou não judicativo por natureza.

E portanto, não havendo conteúdo, não há necessidade de uma ulterior

justificação. Mas se for este o caso, fica por explicar a natureza não-proposicional do

processo pelo qual esse acto de apreensão permite a uma crença autojustificar-se.

Um exemplo. Suponha-se que S acredita que está a chover (C1). Esta crença é um

acto mental de S.56 Dir-se-ia pois que este acto mental é de primeira ordem, uma vez que

reporta diretamente a um estado de coisas no mundo. Supondo agora que a H1 está

correcta, S teria de acreditar que estou a ter a crença de que está a chover lá fora (C2) para

poder estar consciente do conteúdo de C1. Assim, C2 constituir-se-ia como um acto mental

de segunda ordem, o tal acto suplementar acima referido, que se reportaria não ao estado

de coisas no mundo a que se reporta C1 mas sim ao conteúdo de C1. Mas este acto mental

seria assim uma crença numa proposição, o que retiraria a C1 o estatuto de crença

autojustificada, pois necessitaria de uma justificação, C2, que por sua necessitaria de uma

justificação, etc. Portanto, para Bonjour, H1 não está em ordem.

56 Esta crença que apresento como exemplo pode ser catalogada como aquilo que Bonjour chama uma occurrent

belief. A tradução para português é espinhosa; a definição ainda mais. Uma occurent belief parece ser uma crença que

ocorre na mente e possui conteúdo conceptual identificável. É o caso da que apresento. Bonjour diferencia este tipo de

crenças do tipo de crenças que derivam única e exclusivamente da experiência sensorial, que, segundo ele, reportam

directamente a estados de coisas físicos no mundo. O problema está em discernir a fronteira entre crenças sobre o mundo

com conteúdo puramente conceptual e crenças sobre o mundo com conteúdo puramente sensorial.

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Mas H2 também é um problema. Se o acto de apreensão não possui conteúdo

proposicional, então não se constitui aparentemente como uma razão que possa justificar

uma crença, pois uma razão é algo eminentemente proposicional. Qual pois a alternativa?

Tendo ainda C1 como referência, Bonjour argumenta que a consciência do

conteúdo de C1 por parte do agente da crença está, por assim dizer, auto-embutida (built-

in) na própria crença: o conteúdo proposicional de C1 é constitutivo da própria crença. A

consciência do conteúdo de C1 não é exterior ao próprio conteúdo de C1, quer dizer, a

consciência do conteúdo de C1 é intrínseca à própria crença.

Bonjour avança também a possibilidade desta autoconsciência do conteúdo ser

i falí el.àMasà i falí el à oàde ota neste caso que a proposição é verdadeira. A palavra

indica simplesmente que a consciência que tenho desse conteúdo não pode deixar de ser

e dadei aà usa doàu àse tidoà uitoàlatoàdeà e dadei a ,à ue àdize ,à oàpodeàdeixa à

de ser o caso que o agente tem consciência do conteúdo específico e constitutivo do seu

estado mental.

É portanto esta propriedade, a saber, a infalibilidade da consciência do conteúdo

(proposicional) da crença, que lhe permite ser uma crença autojustificada e, logo,

fundacional. Se esta solução estiver em ordem, não é necessário existir uma crença de

segunda ordem para justificar cada crença fundacional de primeira ordem. Para haver

autojustificação, quer dizer, justificação de carácter fundacional, não é necessário haver

uma crença de segunda ordem que justifique o conteúdo dessa crença. Se fosse esse o

caso, argumenta Bonjour, teria que existir ainda uma crença de terceira ordem cujo

conteúdo permitisse ao agente justificar o conteúdo dessa crença de segunda ordem, e

assim sucessivamente. Daqui resultaria um óbvio e indesejável regresso na cadeia de

justificações. Essa não é portanto uma opção viável do ponto de vista do fundacionista,

pois este regresso conduziria ao cepticismo, uma vez que ficaria por se perceber onde

assenta em última instancia qualquer justificação.

A primeira consideração a tecer relativamente à solução de Bonjour, é a de que a

de não nos parece económica do ponto de vista explicativo. Com efeito, a solução postula

a existência de uma consciência infalível do conteúdo (proposicional) de crenças, mas

demonstrar a existência deste tipo de consciência não se afigura uma tarefa fácil.

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Um outro problema que parece afectar a solução de Bonjour é que ela nunca

consegue fugir completamente a uma certa ambiguidade explicativa. Para analisar esta

ambiguidade, revisitamos agora uma tipologia de candidatos a crenças fundacionais da

autoria de Jonathan Dancy. Segundo Dancy, crenças fundacionais podem ser:

[ ]à e ças que são justificadas por outra coisa sem ser crenças;

[2] crenças que se justificam a elas próprias;

[3] crenças que não necessitam de justificação . (Dancy 1985: 85)

Repare-se que, a ser correcta esta tipologia, a solução de Bonjour para o problema

do regresso oscila entre 1 e 2. Com efeito, a solução de Bonjour prevê que as crenças

fundacionais são crenças que autojustificam, por um lado, e, por outro, estão justificadas

por algo que não a própria crença: a consciência infalível e directa do conteúdo

proposicional. Se as três hipóteses forem mutuamente exclusivas, o que parece ser o caso,

então o facto de a solução de Bonjour oscilar entre as duas primeiras parece torná-la

ambígua.

—O modelo naturalista/externalista de Sosa

Ernest Sosa (Bonjour & Sosa 2003: 99 ss) submete uma solução alternativa à de

Bonjour no que respeita à estrutura da justificação. Descrevemo-la de seguida,

adicionando-lhe também o nosso comentário.

Começamos por introduzir as principais razões que Sosa aponta para reclamar a

indispensabilidade da justificação epistémica para haver conhecimento, isto é, os motivos

pelos quais, segundo ele, a justificação se estabelece como uma condição necessária para

que aquilo em que um agente acredita se possa constituir como conhecimento. Sosa

começa por nos dar exemplos do que não serve para justificar as crenças de um agente.

Por exemplo, não parece razoável atribuir o estatuto de conhecimento a uma crença

acidentalmente verdadeira acerca dos números de uma lotaria. Estes são casos em que o

agente não dispõe alegadamente de razões epistémicas para apoiar a sua crença. Quando

se indaga pelas razões que levam um agente a formar uma crença nos números de uma

lotaria encontra-se por norma apenas superstição, algo que não pode contar como razões

epistémicas e, logo, não pode contar como justificação epistémica.

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Por outro lado, Sosa desmonta a concepção segundo a qual para uma crença se

constituir como conhecimento é suficiente o agente acreditar que p e ser verdade que p.

Sosa argumenta, recorrendo a uma analogia interessante (à qual voltaremos na secção

4.3.2.), que tal como no tiro-ao-alvo (com arco), um tiro que acerte no centro do alvo por

mera sorte não deve ser, nem pode ser, considerado um bom tiro. É um facto que o

resultado final de um tiro que acerte no centro do alvo é o melhor e o mais desejado, mas

esse resultado não é alcançado graças ao mérito e à perícia do arqueiro, mas sim a factores

acidentais (e.g., a força do vento que começou a soprar). Isto revela que o conhecimento

não pode ocorrer apenas graças à satisfação das condições de crença e de verdade da

proposição acreditada.

Tendo assentido que um agente só tem conhecimento se tiver justificação

epistémica, Sosa dedica-se a perceber que condições permitem a um agente acreditar

justificadamente que p. Uma vez mais a ideia é perceber que estrutura deve ter a

justificação, ou que estrutura deve presidir às relações de justificação.

Sosa começa por criticar e rejeitar a solução coerentista para o problema da

justificação. Esta solução assenta na possibilidade de a jus tificação de uma crença derivar

do facto de essa crença pertencer a um conjunto de crenças coerentes. Um dos problemas

apontado para esta concepção, um que já tinha sido apontado por Russell e que agora é

adoptado por Sosa, é o de que há conjuntos coerentes de crenças tais que as crenças que

os constituem não se referem a quaisquer estados de coisas no mundo (e.g., ficções

literárias ou conjuntos de crenças coerentes aceites por pessoas com problemas mentais),

podendo pois, apesar de coerentes, ser todas falsas. Se o conhecimento implica verdade e

se a justificação coerentista pode dar origem a crenças falsas ou a conjuntos de crenças

falsas, então este tipo de justificação não é suficiente para haver conhecimento.

Tendo afastado a hipótese do coerentismo conseguir dar conta do que é necessário

para haver justificação de qualidade, quer dizer, justificação conducente ao conhecimento,

Sosa apresenta e discute a resposta do fundacionista. Neste particular, a crítica de Sosa ao

fundacionismo clássico incide sobre a noção tradicional de justificação fundacional

avançada por Descartes ou Leibniz. Segundo esta noção, algo aceite como uma espécie de

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Santo Graal pelos fundacionistas clássicos, sejam racionalistas ou empiristas57, a

justificação epistémica depende em larga medida do acesso privilegiado, etc., a algo que é

dado, seja por introspecção, intuição racional ou percepção directa.58 Sosa pensa que esta

noção clássica de justificação não é satisfatória. 59

A ideia de que sobre o fundacionismo clássico também recai o ónus de explicar que

tipo de consciência (awareness) da experiência, experiência-consciente-notada ((N)oticing

(A)wareness) ou experiência-consciente-simples ((E)xperiencing-(A)wareness), permite ao

agente aceder ao dado na base de uma justificação de carácter directo para as crenças

fundacionais, pode ser colada a Sosa. Se, por um lado, o acesso ocorre graças à NA, então,

argumenta ele, a justificação nem pode ser directa nem pode ser imediata, uma vez que a

57 Sosa aborda estas duas ramificações do fundacionismo na secção 6.7., pp. 115-118. São explicadas nestas

páginas as diferentes possibilidades de fundação defendidas por essas duas ramificações: no caso do racionalismo, uma

(qualquer) axiomática, assente na intuição racional, da qual sairia por dedução todo o edifício do conhecimento; no caso

do empirismo, a experiência sensorial que, coadjuvada por processos dedutivos e indutivos, forneceria as bases onde

assentaria o conhecimento empírico. São também expostos resumidamente por Sosa neste lugar alguns componentes de

algumas variantes híbridas, ou independentes, destas formas mais elementares de fundacionismo, e.g., o fenomenalismo e

o empirismo liberal, bem como algumas razões por que parecem ser isoladamente insuficientes para dar conta do que

poderá eventualmente estar na base da justificação e do conhecimento.

58 A natureza do “Dado” (The Given) é discutida na epistemologia contemporânea. O Dado é alegadamente uma

entidade não-verbal e elementar, derivada, por assim dizer, de episódios mentais de experiência consciente. O dado é, nesta

acepção, primitivo, não-inferido, auto-sustentado, servindo portanto como base ou ponto inamovível de sustentação

daquilo que contribui para justificar crenças empíricas. Sobre esta ideia de dado imediato da experiência consciente, algo

a que o agente dessa experiência acede directamente, incide uma famosa crítica apresentada por Wilfrid Sellars (2000,

original 1956). Sellars argumenta nesse artigo que o reconhecimento daquilo que permitiria considerar crenças

observacionais—do tipo “Isto é verde”—como crenças fundacionais, habitualmente consideradas fundacionais por não

dependerem precisamente de qualquer inferência ou de qualquer outra coisa senão o que é dado na experiência consciente,

e.g., um dado-dos-sentidos, a percepção, sense-qualia ou outras entidades mentais, depende, afinal, de uma concepção

prévia do significado de “isto”, “verde” e outros componentes da proposição; além de depender também daquilo que

permitiria aceitar e reconhecer previamente esse mesmo significado: uma espécie de reconhecimento prévio do próprio

Dado, de como se articula e de como contribui para a sustentação das referidas crenças fundacionais. A crítica do dado é,

portanto, basicamente uma crítica à ideia de que o que justifica as crenças básicas é um conjunto de episódios não-verbais,

que não resultam de qualquer inferência, e que, assim, fornecem directa e imediatamente ao agente aquilo que é necessário

e suficiente para ele ter as suas crenças básicas vindicadas.

59 Do mesmo modo, são rejeitados quer o infinitismo quer o cepticismo, alternativas naturais ao fundacionismo. O

infinitismo epistemológico é a teoria segundo a qual há um regresso infinito na cadeia de crenças e justificações; não

havendo portanto, segundo esta perspectiva, crenças fundacionais justificadas para sustentar o edifício do conhecimento.

O cepticismo global é, por sua vez, a teoria de que ou o conhecimento não é possível ou, o que vai dar ao mesmo, não é

possível saber se é possível.

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NA parece ser um tipo de experiência que depende já do agente fazer algumas inferências.

O ponto é o de que o agente tem de fazer inferências básicas isolar e notar

conscientemente uma porção do que experiencia conscientemente. Se isto for o caso, o

que resulta da NA não pode ser de todo o dado primitivo, não-proposicional e não inferido.

E se, por outro lado, o acesso ocorre graças à EA, surgem então, segundo Sosa, ou

redundâncias—pois tudo na experiência consciente de um agente seria fundacional—ou

buracos (gaps) entre a EA e a NA que não facilitam em nada a explicação do que pode

contar como dado imediato da experiência consciente.60

O problema não parece ficar por aqui. O próximo passo de Sosa consiste em mostrar

que dos vários tipos de conteúdos primários disponíve is, apenas os de conteúdo muito

insuficiente satisfazem a exigência de fornecer o dado fundacional. Para vincar este ponto,

Sosa identifica três tipos de conteúdos primários oriundos da experiência, três tipos de

dado, que poderiam eventualmente estar na base da justificação das crenças ditas

fundacionais. Esses conteúdos são: i) conteúdos indexicais; ii) conteúdos fenomenais; iii)

conteúdos que comportam a descrição de propriedades matemáticas e geométricas

simples. Sosa encontra problemas em todos eles.

i) Conteúdos indexicais.àQua doàu àage teàa editaà ueà isto àassi àfi aà

na posse de um conteúdo que indexicaliza aquilo que é referido por esse próprio

conteúdo. Porém, esse tipo de conteúdo indexicalizante é, na perspectiva de Sosa, muito

60 Um destes gaps é apresentado pelo problema da Galinha dos Pontos, problema esse levantado por Roderick

Chisholm e no qual Sosa se apoia para mostrar o seu ponto. O problema é, grosso modo, o seguinte: podemos notar

imediatamente, por via da nossa experiência (sensorial), que uma linha – relativamente simples – de cinco pontos dispostos

em sequência possui, de facto, cinco pontos e que é uma sequência. Há pois neste caso uma espécie de concordância entre

a EA e a NA no que respeita ao dado de que há uma linha-sequência e de que é constituída por cinco pontos, i.e.,

experienciamos conscientemente que tem cinco pontos e notamos conscientemente que tem cinco pontos, em simultâneo.

Até aqui tudo bem para o fundacionalista, pois o dado experienciado está de acordo com, por assim dizer, o dado notado.

O problema começa quando, por exemplo, deparamos com uma imagem cujos múltiplos pontos, suponhamos, quarenta e

oito, formam uma representação de uma galinha. Nesta situação, a EA fornece de imediato uma representação de uma

galinha constituída por n pontos. Mas a NA não nos fornece de imediato quantos pontos ao certo formam a representação

da galinha, o que é indicador de uma falha, ou buraco, entre o que é imediata e directamente fornecido pela EA e o que é

mediata e indirectamente fornecido pela NA. O exemplo parece então mostrar que há muito pouco que possa contar como

dado imediato e directo da, e na, nossa experiência consciente. O que está realmente em causa éque a complexidade

fornecida por uma grande parte da nossa experiência consciente milita contra a ideia de um dado primitivo, não-verbal,

directo e, logo, com as propriedades necessárias para se tornar fundacional. Sosa 2003: 121.

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insuficiente, tendo muito pouco substrato que possa contribuir eficazmente no sentido de

justificar crenças básicas. Pensar que uma sequência de cinco pontos em linha é assim não

parece contribuir de forma decisiva para justificação da crença de que uma sequência de

cinco pontos em linha é de facto uma sequência de cinco pontos em linha. O problema

com o substrato fornecido por estes conteúdos de conteúdo indexical é então o de que

esseà o teúdoà ei ulaà uitoà pou aà i fo aç o ,à oà esulta doà po à o segui teà oà

objectivo de fornecer aquilo que é necessário para vindicar crenças que o fundacionista

julga serem fundacionais.

ii) Conteúdos fenomenais. Conteúdos deste tipo já parecem ter, quantitativa e

qualitativamente, mais substrato do que os anteriores. São portanto um pouco mais

i fo ati os à ueà osà deà tipoà i, distinguindo-se deles principalmente por permitirem

indicar, identificar, discriminar e reconhecer os constituintes referenciados pelos

conteúdos proposicionais de crenças básicas (Sosa 2003: 125-126). Permitem, por

exemplo, a um agente que vê uma linha horizontal de cinco pontos desenhada num pape l

identificar, discriminar e reconhecer no conteúdo dessa experiência consciente

(perceptual) uma sequência ou uma configuração específica, quer dizer, algo que se

apresenta com uma determinada forma, estando disposto de uma determinada maneira e

dispondo, portanto, de certas características fenomenais que podem talvez ser

representadas num conteúdo proposicional mínimo. Não obstante, para Sosa esta

capacidade de discriminação e de reconhecimento providenciada pelo conteúdo

fenomenal de uma experiência sensorial ainda não permite de per se ao agente ter um

grau de definição ou informação suficiente para dar conta de importantes propriedades

das coisas que se dão à experiência consciente. O que é dado pelo conteúdo fenomenal da

experiência não é portanto suficiente para justificar crenças fundacionais.

iii) Conteúdos matemáticos/geométricos simples. Sosa sugere por último que

alguns conteúdos matemáticos e geométricos simples podem sustentar algumas crenças

empíricas fundacionais.61 Crençasà o oàa edita à ueà estaà àu aàli haàdeàcinco pontos

61 Sosa não está a falar de crenças com conteúdo proposicional matemático ou geométrico abstracto, crenças do

género de S acredita que “2 + 2 = 4”. O que está aqui em causa são crenças com conteúdo empírico, crenças que incluem

e discriminam simultaneamente nesse conteúdo propriedades matemáticas ou geométricas, crenças do género de S acredita

que se acrescentar duas laranjas a duas laranjas fica com quatro laranjas.

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dispostosà u aà se u ia à ouà o oà aà ep ese taç oà daà gali haà ueà estouà aà e à à

formada por quarenta e oito po tos àpa e e àesta àautojustifi adasài ediata e teàpeloà

seu conteúdo matemático, dado na e pela experiência. Parece, todavia, que dificilmente

estes conteúdos que identificam características matemáticas e geométricas podem aspirar

a serem fundacionais no sentido descrito e pretendido pelos fundacionistas. O problema é

que a partir de um determinado grau de complexidade das propriedades descritas por

estes conteúdos não é possível haver um acesso directo, não-inferencial, etc (Ibidem: 127-

129).

A posição de Sosa quanto à eficácia do dado posto à disposição por estes três tipos

de conteúdos oscila. Ele crê, por um lado, que esses conteúdos são insuficientes da maior

parte das vezes para justificar crenças fundacionais, mas julga, por outro, mas que o

fundacionismo encontra nesses conteúdos uma explicação prima facie consistente para o

que pode ser o dado fundacional. O fundacionismo encontra aí alguma sustentação p orque

esses conteúdos parecem viabilizar funções cognitivas mínimas como identificar formatos,

reconhecer configurações, distinguir padrões, etc. Na outra face da moeda, contra o

fundacionismo trabalha o problema de que esses conteúdos não parecem ser de per se

suficientes para cumprir funções de justificação.

Rejeitando de algum modo o fundacionismo clássico, Sosa deixa contudo perceber

a sua predilecção por uma forma peculiar de fundacionismo (externalista). O seu apelo a

esta forma de fundacionismo recolhe apoio na distinção feita pelo próprio fundacionista

entre conteúdos justificantes básicos e conteúdos justificantes não-básicos. É-nos sugerido

que esta distinção depende de alguma forma do correcto exercício das capacidades

cognitivas do agente. Eis a ideia:

álgu asà a a te ísti asà i t í se asà dosà ossosà pe sa e tosà s oà at i uí eisàdiretamente a eles, ou seja, fundacionalmente, enquanto outras só o são por meio de inferências e cálculos. Como é que o fundacionista pode especificar que características pertencem a que lado dessa bifurcação? É difícil ver como pode isso ser feito sem apelarmos a virtudes cognitivas localizadas no sujeito. Por exemplo, a atribuição de uma característica a uma experiência ou a um pensamento só está tal ezàjustifi adaà ua doàde i aàdeàp o essosà i tuososàeàfi eis. (Idem)

Nesta linha, Sosa defende (Ibidem: 137) ainda que uma condição necessária para

ocorrer conhecimento empírico é existir uma espécie de conexão causal e/ou contrafactual

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entre o que é dado na experiência consciente e os conteúdos proposicionais das crenças

empíricas fundacionais. Grosso modo, três condições devem de ser satisfeitas para que

haja, primeiro, justificação fundacional e, segundo, conhecimento empírico assente nessa

justificação. Essas condições são as seguintes:

Que o conteúdo da experiência consciente (o dado) ide tifi ue à o e ta e teàasà

propriedades daquilo a que essa experiência se refere;

Que o conteúdo proposicional da crença que identifica e discrimina essas

propriedades o faça correctamente;

Que haja concordância entre os conteúdos referidos nas duas condições anteriores.

A satisfação destas condições permite alegadamente que haja justificação

fundacional para crenças com conteúdos proposicionais pouco complexos, mas não para

crenças com conteúdos sobejamente complexos (e.g., a crença cujo conteúdo

proposicional inclui uma representação, complexa, de uma galinha constituída por

quarenta e oito pontos).

Assim, uma crença empírica estará fundacionalmente justificada se forem

satisfeitas as seguintes condições: (Ibidem: 138)

Que a crença tenha um conteúdo proposicional pouco complexo, dado pela experiência de forma directa e não mediada;

Que esse conteúdo seja um conteúdo epistemicamente seguro, na medida em que o seu processo de criação seja fiável e permita ao agente aderir a ele sem reservas;

Que esse conteúdo seja fiável por derivar do exercício de uma ou mais virtudes cognitivas do agente.

Esta perspectiva naturalista/externalista de Sosa da justificação fundacional62

apresenta-se como uma alternativa quer ao fundacionismo clássico de Descartes, Leibniz

e Locke, quer ao fundacionismo neo-clássico de Chisholm e Bonjour. A seguir veremos

como estes estão ligados ao internalismo.

b) Internalismo ou externalismo?

62 Esta perspectiva será desenvolvida mais à frente na secção 4.3.2., onde será feita a exposição da sua teoria da

aptidão epistémica de uma crença.

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O internalismo pode ser visto como uma teoria sobre a origem da justificação ou

sobre a origem do conhecimento. Na versão aqui discutida é a primeira.

Enquanto teoria da justificação, o internalismo preconiza que esta depende de

factores internos ao agente ou, o que vai dar quase ao mesmo, depende de algo na vida

mental do agente. Parece haver pelo menos duas leituras possíveis para esta ideia. A

primeira é a de que o internalismo preconiza condições necessárias para o agente ter uma

crença justificada; a segunda é a de que o internalismo preconiza condições necessárias e

suficientes para o agente ter uma crença justificada. A primeira leitura remete para um

internalismo moderado, já a segunda leitura remete para um internalismo ambicioso

(Alston 2001: 102).

O internalismo também é por vezes definido por oposição à teoria rival: o

externalismo. Nesta versão, o externalismo é a teoria que nega que a justificação seja algo

exclusivamente do foro interno do agente.

Estas distinções não bastam contudo para circunscrever as fronteiras do

internalismo. Elas apenas identificam o núcleo de uma corrente de pensamento com

contornos nem sempre bem definidos. É por isso que começamos por esclarecer que

família ou famílias de teorias da justificação melhor enquadram o internalismo.

Recorremos a Goldman para nos ajudar nesta taxonomia. Ele afirma ser possível

distinguir duas famílias abrangentes de teorias da justif icação: i) as descritivas e ii) as

regulativas (Goldman 2001: 37). As teorias do tipo i descrevem propriedades de crenças,

já teorias do tipo ii impõem propriedades a crenças.

Goldman entende que o internalismo é uma teoria da família ii, uma vez que muitas

formas de internalismo prescrevem princípios de decisão pelos quais se devem regular as

atitudes doxásticas dos agentes. Estes são portanto, segundo Goldman, de princípios de

decisão doxástica (PDD). Desta perspectiva normativa, se os PDD correctos forem

respeitados, as atitudes de crença estarão justificadas.

Goldman defende que não é possível encontrar um PDD satisfatório de carácter

internalista, pois qualquer PDD internalista estipula con dições demasiadamente exigentes,

condições quase sempre impossíveis de satisfazer. Algo que ainda segundo Goldman

também impede que a satisfação de qualquer PDD internalista seja suficiente no sentido

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de haver justificação é o facto de qualquer PDD internalista só ser satisfeito desde que

algumas condições externalistas o sejam. Goldman acaba por concluir que a versão

internalista da justificação não é suficiente para explicar a propriedade da justificação.

Alguns dos principais defensores do internalismo vêem contudo o problema por

outro prisma. Para esses, o internalismo descreve correctamente que condições têm de

ser satisfeitas para que uma crença esteja justificada. Como exemplo dessa corrente de

pensamento, eis uma definição submetida por Conne & Feldman

Def1— ... àOài te alis o não é mais do que uma teoria geral sobre a localização dos factores determinantes para a justificação epist i a (Conee & Feldman 2004: 80)

Numa outra definição, da autoria de Mathias Steup, aparecem elementos

descritivos e normativos, bem como duas estirpes de internalismo:

Def 2— Deàa o doà o àosàdefe so esàdoài te alis o, as coisas que fazem com que as crenças estejam ou não justificadas—vamos chamar-lhes factores-J—têm de ser internas do ponto de vista da mente. Como é que deve ser entendida esta internalidade? De acordo com uma forma de responder a esta questão, os factores-j têm de possuir um estatuto epistémico privilegiado: têm de ser reconhecíveis debaixo de reflexão. De acordo com uma resposta alternativa, apenas estados mentais podem constituir-se como factores-J. Os externalistas negam que os factores-Jàte ha àdeào ede e àaàesteà e uisito . (Steup 2005: 251)

A distinção conceptual sugerida por Steup parece-nos crucial para distinção entre

subtipos de internalismo. Há quem defenda que basta os factores-J pertencerem à vida

mental do agente para haver justificação, mesmo que o agente não possua um acesso

reflexivo a eles, e há quem defenda que os factores-j têm de ser reconhecíveis sob reflexão.

Podemos chamar a estas estirpes, respectivamente, mentalismo e reflexionismo.63 Como

é óbvio, o reflexionismo implica o mentalismo, pois reconhecimento por reflexão dos

factores-j é um acontecimento da vida mental de um agente. Contudo, não é verdade que

o mentalismo implique o reflexionismo, uma vez que há plausivelmente factores-j mentais

que não exigem reconhecimento por reflexão (e.g., certos conteúdos mentais originários

da percepção).

63 Devo a designação da primeira estirpe a Conee e Feldman, como adiante se verá aquando da exposição das

estirpes de internalismo que estes filósofos identificam.

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A literatura mostra que estas duas estirpes de internalismo não são exaustivas. Por

exemplo, Sosa considera que há duas estirpes clássicas de internalismo: a cartesiana e a

chisholmiana. Eis as definições que oferece para cada uma delas:

Def3— I te alis oà a tesia o:à aà justifi aç o apenas requer correcção de pensamento por parte do agente: se uma pessoa acredita em algo apropriadamente com base na correcção do seu pensamento, então essa pessoa está justificada em acreditar no que acredita—em que a correcção do pensamento é uma questão do foro interno da mente dessa pessoa, não dependendo do ambiente (...) Def4—Internalismo chisholmiano: a tese de que temos acesso privilegiado ao estatuto epistémico das nossas crenças (ou pelo menos ao seu estatuto justificacional) por via deà eflex o (Sosa 2003: 144-145).

Esta interpretação que Sosa faz do internalismo cartesiano pode ser chamada de

correcionismo, uma vez que o que é segundo ela necessário e suficiente para justificar uma

crença é justamente que a justificação resulte da correcção de pensamento do agente,

obviamente uma característica interna do agente. A definição congrega aparentemente as

dimensões descritiva e prescritiva do internalismo, constituindo-se como um subtipo de

mentalismo.

Já a interpretação que Sosa nos apresenta da estirpe chisholmiana de internalismo

impõe exigências mais fortes. Desta feita é necessário que o agente consiga determinar,

por reflexão, o estatuto epistémico da sua própria crença, algo que pressupõe a satisfação

das condições estabelecidas pelo mentalismo, pelo reflexionismo e pelo próprio

correcionismo. Vamos chamar reflexionismo-forte a esta estirpe de internalismo para o

diferenciar do reflexionismo apresentado anteriormente na Def2.

As definições não se ficam contudo por aqui. Conee & Feldman identificam outra

estirpe na definição que se segue:

Def5— Oà ueài e osà ha a à a essi ilis o àsuste taà ueàaàjustifi aç o epistémica da crença de uma pessoa é determinada por coisas a que a pessoa tem algum tipo espe ífi oàdeàa essoà[ o s ie te] (Conee & Feldman 2004: 55)

Num certo sentido, a versão preferencial de internalismo desenvolvida e defendida

por C&F é o evidencialismo (vide secção 3.4.) Segundo eles, o evidencialismo determina

que as crenças justificadas de um agente resultam da evidência de que dispõe esse agente,

sendo a evidência (neste sentido) algo proeminentemente mental. Uma actualização da

ideia é-nos proposta por Feldman:

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Def6— ... àU ài te alistaàdefe deà ueàu aàpessoaàest àjustifi adaàe àa edita ànuma proposição em função de razões e evidência, sendo que estas razões e esta evidência são coisas internas, em sentido est ito (Feldman 2005: 275)

Salvaguardando a forte possibilidade de existirem mais estirpes de internalismo a

que não podemos fazer justiça nesta peça, passo a mencionar duas mais, para finalizar a

lista. Trata-se do perspectivismo e do responsabilismo.

Comece-se pelo perspectivismo. Numa tentativa circunscrever informativamente o

internalismo, Dancy afirma o seguinte:

Def7— áà a a te izaç oàstandard do internalismo é a ideia de que a justificação só pode ser alcançada desde que se recorra a elementos que são internos [i.e., que pertencem] à perspectiva doàage te (Dancy 1992: 93)

Na mesma linha de caracterização, William Alston atribui ao trabalho de Alvin

Goldman a descrição da seguinte estirpe de internalismo:

Def8— “óàoà ueàseàe o t aàde t oàdaà pe spe ti a àdoàsujeitoàpodeàdete i a àaàjustificação deàu aà e ça (Alston 2001: 70)

Uma outra definição estruturalmente similar é avançada por Lawrence Bonjour

(segundo alguns comentadores, o fundador do perspectivismo):

Def9— áà sugest oà fu da e talà doà i te alis o (...) é a de que as questões epistémicas surgem e têm de ser tratadas a partir da perspectiva cognitiva da primeira pessoa de um indivíduo, apelando somente para as coisas que são a essí eisàaàesseài di íduoàaàpa ti àdessaàpe spe ti a (Bonjour 2002: 222)

Por fim, uma breve referência ao responsabilismo. Não há uma definição

completamente explícita de responsabilismo na literatura. Todavia, como vimos acima (cf.

Secção 3.6.), certas concepções deontológicas da justificação implicam a tese de que um

agente só pode consumar os seus deveres epistémicos na medida em que consegue aceder

ao conteúdo desses deveres, compreender qual deve ser o comportamento epistémico

correcto, agindo depois em conformidade com esses deveres no sentido de justificar as

suas crenças. Na medida em que o responsabilismo postula que a crença (fortemente)

justificada é aquela crença que se ajusta à (boa) evidência disponível para o agente, e

considerando que a evidência é algo mental, então o responsabilismo é uma forma de

internalismo.

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Sobressai do exercício de listagem de definições de internalismo agora terminado

que todas estas estirpes de internalismo são diferentes manifestações de uma mesma

corrente de pensamento, uma corrente que tem por base a ideia de que a justificação é

superveniente em relação a diversos factores da vida mental do agente: acesso consciente,

reflexão, intencionalidade, etc. Parece-nos, porém, que está longe de existir um consenso

acerca da disposição, necessidade e da eficácia desses factores. Esta seria já por si uma boa

razão para desconfiar do alcance do internalismo enquanto teoria da origem da

justificação, mas outras objecções há que cumprem talvez melhor esta tarefa de

desacreditar a teoria (supondo que há uma única teoria e que é possível desacreditá-la

convincentemente). Passo de seguida em revista algumas dessas objecções.

A parlance filosófica sobre os méritos e deméritos do internalismo costuma

identificar dois géneros de objecção. É por um lado habitual encontrarem-se objecções que

realçam os problemas e as fraquezas das chamadas condições internas. É por outro lado

habitual encontrarem-se objecções que se valem mais dos méritos da teoria rival (ou

correntes rivais de teorias), o externalismo, do que propriamente dos deméritos do

internalismo. Vão de seguida ser apresentadas amostras (julgamos que significativas) dos

dois géneros de objecção.

A primeira objecção a considerar é a conhecida objecção da ausência de

sofisticação. Esta objecção disputa a necessidade de factores-j internos para haver

justificação. O argumento (Bonjour 2002: 224) que está na base da objecção tem a seguinte

estrutura:64

1. Se ter acesso consciente e reflexivo a factores-j mentais é uma condição necessária para haver justificação, então criaturas mentalmente pouco sofisticadas não têm crenças justificadas;

Contudo,

2. Pelo menos algumas crenças de criaturas mentalmente pouco sofisticadas estão justificadas;

Portanto (por modus tollens),

64 O argumento é formulado por Bonjour, mas não é por ele subscrito.

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3. O acesso consciente e reflexivo a factores-j mentais não é uma condição necessária para a justificação.

As estirpes visadas são claramente o acessibilismo e os dois reflexionismos. Note-

se que o peso da demonstração cai principalmente sobre 2, parecendo que a sua verdade

depende da verdade da conclusão, o que é aliás o que o detractor do argumento

certamente dirá, ou seja, que a premissa incorre numa petitio principi. Já o proponente do

argumento dirá que a premissa é plausível, dando como exemplo casos de crianças ou

animais superiores que têm crenças justificadas. Parece estabelecer-se neste ponto um

impasse que não é aparentemente ultrapassável apenas por inspecção filosófica. Perceber

se 2 é ou não verdadeira é algo que talvez só possa ser decidido usando dados empíricos

resultantes de experiências controladas, algo que de certa forma exigiria que se pré-

esta ele esseàu àdete i adoàse tidoàpa aà justifi aç o .àà

Alvin Goldman (2001) coloca duas objecções de outro tipo ao mentalismo.65 As

objecções questionam a pretensão internalista de que o acesso reflexivo ou introspectivo

a factores-j mentais seja suficiente para haver justificação. Goldman recusa esta suficiência

principalmente com base em dois argumentos. Trata-se do argumento das crenças

armazenadas (ou das crenças não-ocorrentes), por um lado, e o argumento da evidência

esquecida, por outro.

Goldman (Ibidem: 212) pensa que o problema das crenças armazenadas é um

problema para o que designa por internalismo forte. Segundo ele, o internalismo forte

pressupõe que só os factores-j acedidos por um agente num dado momento t podem

contribuir para justificar uma crença que S tenha em t. Mas Goldman pede-nos para

considerarmos, por exemplo, a crença armazenada e não-ocorrente que S tem em t sobre

o número do seu bilhete de identidade. Embora armazenada em t e embora os factores-j

que a justificam não sejam acedidos por S em t, essa crença está justificada em t. Para

Goldman isto é sugestivo de que a justificação da crença de S em t não depende do que

pertence à vida mental de S em t.

Diz Goldman que o internalista pode tentar minorar os danos sugerindo que não é

necessário o agente ter acesso em t aos factores-j que poderiam justificar a sua crença que

65 Goldman (2001). Existem outras objecções do mesmo género colocadas por Goldman e outros filósofos.

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p para ter essa crença justificada em t. Grosso modo, bastaria que tivesse tido acesso aos

factores-j ou que de alguma maneira eles estejam preservados na mente do agente.

Goldman designa esta variante por internalismo fraco. No entanto, ainda segundo ele,

também esta hipótese sofre de graves problemas. Imagine-se o caso de alguém que

formou em t, com base em boa evidência, a crença de que o primeiro Rei de Portugal se

chamava Afonso Henriques. Entretanto, num momento t1 posterior a t, essa pessoa acabou

por esquecer toda a evidência que poderia justificar essa sua crença. Não parece haver

portanto nestas circunstâncias qualquer factor na mente de S que possa servir de

justificante para a sua crença em t1.

Porém, em desfavor da posição de Goldman, importa salientar que também não

parece ser legítimo atribuir a essa crença o estatuto de injustificada. Há uma forte intuição

por detrás da ideia de que essa crença está justificada pela evidência que S teve em

tempos. Se tal for correcto, fica em aberto a possibilidade de a crença estar justificada sem

que haja acesso imediato a qualquer factor-j.

C&F (2004: 61) respondem a estas objecções de Goldman. No que respeita ao

problema das crenças armazenadas, sugerem duas hipóteses: ou apenas podem estar

justificadas crenças no modo ocorrente, ou estas crenças podem ser justificadas por

material mental não-ocorrente.

A réplica de C&F ao problema da evidência esquecida introduz duas propriedades

cuja identificação não é de todo fácil. Por um lado, é sugerido que uma impressão vívida

do que justificava (a evidência) uma crença num determinado momento pré-esquecimento

pode justificar essa crença num determinado momento pós-esquecimento. Por outro lado,

é sugerido que um sentimento de confiança de que a crença esteve em tempos justificada

pode, num momento em que a evidência foi esquecida, contribuir para essa crença ter ou

manter o estatuto de crença justificada.

C&F sugerem também (2004: 69) que nem toda a evidência que pode servir para

justificar uma crença tem de estar presente à consciência. Sugerem pois que alguma da

evidência necessária para justificar uma crença para a qual a evidência original foi

esquecida poderia ser uma espécie de evidência indirecta. Por exemplo, o agente que

esqueceu a evidência que sustenta a sua crença que D. Afonso Henriques foi o primeiro Rei

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de Portugal poderia ter como evidência indirecta saber que D. João I não foi o primeiro Rei

de Portugal.

Sem nos comprometermos com um lado nesta contenda, parece-nos que os

argumentos de C&F não colhem com a lisura pretendida pelos seus proponentes. Com

efeito, no que concerne ao problema das crenças armazenadas, a ideia de que só crenças

ocorrentes estão justificadas parece-nos descabida. Se assim fosse, teríamos de admitir

que todas as nossas crenças não-ocorrentes estariam injustificadas, o que se afigura

absurdo. Por outro lado, não é transparente o mecanismo pelo qual material mental não-

ocorrente pode justificar crenças armazenadas. Mesmo que houvesse tal mecanismo ou

processo (e não estamos a sugerir que não possa haver), teria de ser explicado em que

medida o processo de justificação continuaria a ser interno, no sentido pretendido pelo

internalista, não havendo apenas a concorrência de coisas como o acesso aos justificantes,

a reflexão, etc.

A posição de C&F em relação ao problema da evidência esquecida também corre o

is oàdeà olapsa àseàpe sa osà ueàosàte osà i p ess o àeà se ti e to às oàde asiadoà

vagos para poderem ser suficientemente esclarecedores. O que é ter-se uma impressão ou

um sentimento de que já se teve evidência para acreditar que p? Mais, que grau de

intensidade têm de ter essas impressões e sentimentos para poderem justificar

epistemicamente as crenças de um agente? Sem serem talvez decisivos, estes problemas

fazem-nos pensar que algo está menos bem com as respostas de C&F.

Passamos agora a uma objecção realça os deméritos do internalismo ao

alegadamente mostrar que o internalismo pressupõe condições externas. No essencial, a

objecção põe em causa o argumento que sustenta o responsabilismo. Segundo John Greco,

o autor da objecção, esse argumento tem a seguinte estrutura:

.àU aà e çaàdeà“à ueàp só está epistemicamente justificada se foi formada de um modo epistemicamente responsável.

2. A responsabilidade epistémica é inteiramente uma questão de factores que são internos à perspectiva de S.

Portanto,

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100

3. A justificação epistémica é inteiramente uma questão de factores que são internos àpe spe ti aàdeà“.à po à àeà . (Greco 2005: 260)

Greco alega que 2 é falsa. Segundo afirma, um comportamento epistémico

responsável exige mais do que apenas a satisfação de requisitos internos (no sentido até

agora descrito), o que abona a favor da hipótese de que esta estripe de internalismo

assenta em condições externas, sendo por isso auto-refutante. Para mostrar o ponto,

Greco procede por exemplos. Eis o primeiro.

Exe ploà .àáàMa iaàa editaà ueàoàDea àMa ti à àitalia o.àElaàa editaà istoàpo ueàparece lembrar-se que isso é o caso e não tem actualmente razões para duvidar da sua crença. Mas suponha-se agora que Maria formou essa crença de forma leviana e irresponsável. Ela formou a crença há muitos anos com base no testemunho da sua mãe, alguém que acredita que todos os bons actores são italianos. Maria sabia nessa altura que a sua mãe não era fiável nestas matérias, percebendo também que não e aà a io alàa eita àoàteste u hoàdaà e . (Ibidem)

Greco extrai deste exemplo que a história e, mais em geral, a etiologia de uma

crença são factores importantes para a formação responsável de crenças. Ora, como estes

dois factores não são internos, nada tendo a ver com a vida mental dos agentes, sendo por

isso externos, segue-se que a premissa 2 do argumento responsabilista, uma premissa que

atribui o ónus da formação responsável de crenças exclusivamente a factores internos, tem

de ser falsa.66 Por consequência, pensa Greco, Esta forma de internalismo tem de ser falsa.

Ainda segundo Greco, isto arrasta consequências menos boas para a tese

internalista segundo a qual dois agentes que sejam internamente iguais—do ponto de vista

das razões e da evidência de que dispõem—também serão iguais do ponto de vista da

justificação.67 Tome-se o caso da Maria e da Maria*. Ambas acreditam que Barack Obama

é norte-americano. Se ambas são internamente iguais em t—novamente do ponto de vista

das razões e da evidência de que dispõem—, e se a etiologia da crença da Maria mostra

que esta não está a ser epistemicamente responsável em ter essa crença, enquanto a

etiologia da crença da Maria* mostra que esta está a ser responsável em ter essa crença,

66 O exemplo aqui apresentado tenta ser uma compilação dos três exemplos apresentados por Greco no seu texto.

O argumento aparece também na p. 266 numa formulação mais sofisticada com a qual se sugere que nenhuma avaliação

relevante dos justificantes de uma crença pode dispensar aspectos externalistas. Mas como para discutir o ponto principal

da objecção de Greco não é necessário desenvolver a exposição do tópico, não farei esta discussão.

67 Esta tese é um aprimoramento da tese da superveniência de C&F cuja formulação foi dada na secção 3.4.3.

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então não são iguais do ponto de vista da justificação, i ndependentemente de serem

internamente iguais.68 Claro que o defensor da tese da superveniência apela para a ideia

de que as duas Marias não estão iguais do ponto de vista interno, pois, alegam, a evidência

que possuem é diferente. Dirão que a Maria* tem boa evidência, assente numa boa

etiologia da crença, enquanto a Maria tem má evidência, assente numa má etiologia da

crença. Mas a verdade é que a evidência é a mesma nos dois casos, apenas a forma como

foi recolhida é que é diferente. Isto milita contra a réplica do internalista.

Juan Comênsana adopta uma linha de argumentação similar contra o mentalismo

de C&F. Comênsana começa por identificar o que, segundo ele, apregoa o mentalismo:

Mentalismo—Todos os factos que contribuem para a justificação de uma atitude doxástica de um sujeito S para com uma proposição p são estados mentais de S à(Comesaña 2005: 59)

Assim definido, o mentalismo é uma forma ambiciosa de internalismo. Comesaña

opta por situar a fasquia do internalismo no nível mais al to. Um claro indício dessa opção

é o uso da quantificação universal na definição. Se todos os factos que podem contribuir

para a justificação ou para a suportar são internos, então a justificação é apenas do foro

interno do agente.

Ao colocar a fasquia neste nível quase olímpico, Comesaña prossegue a sua

refutação do mentalismo com o seguinte argumento:

1. Se o mentalismo é verdadeiro, então todos os factos de suporte são mentais;

2. Nem todos os factos de suporte são mentais.

Portanto,

3. O mentalismo não é verdadeiro. (Ibidem)

Estes factos de suporte são para Comensaña factos que podem contribuir para o

estatuto de justificação de uma crença (factores-j, por exemplo).69 Segundo ele, certas

68 O exemplo é meu, não de Greco.

69 O tipo de justificação a que Comesaña se refere é justificação prima facie: justificação para a crença c de S na

proposição p no momento t que pode vir a ser anulada no momento t*, posterior a t, pelo aparecimento em t* de dados que

permitam essa anulação. Comensaña (2005: 73, nota 5).

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relações de dependência que existem entre uma crença e a evidência que serve para a

justificar constituem-se como factos extra-mentais que contribuem para a justificação

dessa crença. Para Comesaña isto mostra que a premissa 2 do seu argumento é verdadeira

e que, portanto, a conclusão de que o mentalismo é falso é verdadeira.

Enquanto defensor do internalismo, Feldman tenta contornar este tipo de

objecção. Usa duas estratégias para o fazer. A primeira passa por distinguir entre diferentes

se tidosà oàte oà justifi aç o .àáàsegu daàpassaàpo à aixa àaàfas uiaàdoài te alis o.à

Feldman (2005: 274) distingue entre os sentidos internalista e externalista de

justifi aç o .à Noà P i ei oà sentido, o internalista, a justificação é essencialmente uma

questão de o agente aceder a razões e ter suficiente evidência para acreditar. No segundo

sentido, o do externalista, condições externas (e condições internas) têm de ser satisfeitas

para que haja justificação. Segundo ele, os dois sentidos pertencem a esferas diferentes,

sendo possível compreender os dois à luz de diferentes exigências. Para o defensor do

sentido internalista, é crucial o agente ter boas razões e evidência para ter crenças

justificadas. Mas como por vezes ter justificação com base em boas razões e evidência não

basta para alguém ter conhecimento—o que é sobejamente revelado pelos contra-

exemplos tipo Gettier—, o defensor do sentido externalista supõe que certas condições

externas têm de ser satisfeitas para que a justificação seja conducente ao conhecimento.

Feldman sugere que o defensor do sentido internalista pode aceitar esta exigência

externalista e ainda assim manter a sua pretensão de que a justificação é no essencial uma

questão do foro interno do agente. Desta perspectiva, a justificação depende crucialmente

de factores internos, enquanto o conhecimento depende de haver justificação concebida

internalisticamente e da satisfação de certas condições externas (Ibidem: 276).

Independentemente do sucesso ou insucesso das respostas de Feldman às

objecções que são movidas ao internalismo, parece-me claro que este tem uma

desvantagem crucial relativamente ao seu rival externalismo. O internalismo tem

evidentes dificuldades em lidar com a questão de como é que a justificação pode ser

suficiente ao ponto de gerar conhecimento. Se, como o próprio Feldman (Ibidem)

reconhece, o que é interno (e.g., possuir boas razões, ter evidência, etc.) pode não ser

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suficiente para um agente ter conhecimento70, torna-se então notório que o internalismo

fica numa espécie de desvantagem explicativa perante teorias externalistas da justificação

que têm poder explicativo acerca desse aspecto crucial. Não é pois inocente a separação

que Feldman faz dos dois sentidos de justificação. É q ue essa distinção minora essa

desvantagem. Infelizmente para o internalista, o externalista parece dispor de melhores

instrumentos conceptuais para lidar com o problema de como é que a justificação pode

ser conducente ao conhecimento. Repare-se que o externalista não nega que o que é

interno desempenha um papel epistémico importante, mas nega que a justificação do

calibre necessário para que haja conhecimento dependa fundamentalmente desses

aspectos internos, dispondo depois de melhores e mais completas explicações (de carácter

externalista) de como é que esses factores internos podem, em conjunção com factores

externos, fazer com que a justificação leve ao conhecimento. Ao ter de conceder esta

virtude teórica ao externalismo, o defensor do internalismo terá de reconhecer que a sua

teoria fica debilitada e em desvantagem face à sua rival.

4. Não-justificacionismo

4.1. Resumo

Prestamos agora atenção a um conjunto de teorias que não recorre à noção de

justificação para preencher o espaço da terceira (ou quarta) condição necessária numa

definição/análise do conhecimento. Este conjunto pode talvez ser subdividido no

subconjunto das teorias modais do conhecimento, por um lado, e no subconjunto das

teorias naturalistas do conhecimento, por outro.71 Descrevemos de seguida aqueles que

são porventura os mais discutidos espécimes de cada família. No final da secção fazemos

um balanço do que foi discutido, finalizando com a ideia de que dificilmente esses

representantes ou as famílias de teorias que representam conseguem por si só solucionar

o problema que nos ocupa nesta primeira parte, e que é, relembramos, que condição ou

70 Partilhado com Steup (2001).

71 Estes dois subconjuntos podem não ser exaustivos.

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condições devem ocupar o lugar da terceira (ou quarta) condição numa definição

suficientemente explicativa do fenómeno do conhecimento proposicional.

4.2. Teorias modais do conhecimento

4.2.1. A Teoria das Razões Conclusivas

A estratégia de trocar a condições de justificação por condições que envolvem

modalidade cumpre plausivelmente dois propósitos. O primeiro passa por evitar ou

superar as habituais restrições do internalismo epistémico e do psicologismo cognitivo. O

segundo passa por propor uma teoria que consiga dar conta do vínculo necessariamente

não-acidental entre a crença de um agente numa proposição p e a verdade dessa mesma

proposição.

Fred Dretske (2000: 3 e 17) apresenta uma definição de conhecimento que se

enquadra nesta moldura. A definição estabelece, em primeiro lugar, que S só sabe que p

se tiver razões conclusivas, R, para p.72 Na acepção considerada por Dretske, se R é uma

razão conclusiva para p, então não seria o caso que R se não fosse o caso que p. Dito de

outro modo, R é uma razão conclusiva para p se, e somente se, não é possível que R e não-

p.

R ↔à¬à◊ R ^ ¬p)

(Ibidem: 13)

Isso porém não chega para S saber que p, uma vez que pode não haver uma crença

que p por parte de S, mesmo tendo S razões conclusivas para p. Para saber que p, S terá de

acreditar que p com base nessas razões conclusivas. Tendo isto em mente, Dretske

diferencia razões conclusivas lógicas de razões conclusivas empíricas. A componente lógica

é dada pela fórmula acima indicada, enquanto a componente empírica é dada pela

seguinte definição:

72 O texto é originalmente de 1971. Segundo Dretske, o termo “razões” não remete necessariamente nesta acepção

para algo que resulta de um processo de inferência. Razões são fundamentos e nada há no texto supracitado que aponte

para a ideia de que só proposições podem ser razões conclusivas (Cf. p. 20).

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i) R é uma razão conclusiva (lógica) para p;

ii) S acredita que p com base em R;

iii) S sabe que R é o caso ou R é um estado experiencial de S. (Ibidem)

Note-seà ueà “à sa eà ue... à o o eà e à iii, mas Dretske nota que apesar disso a

definição não é circular, pois é possível usar i, ii e iii para, recursivamente, eliminar a

o o iaà deà “à sa eà ue... à daà defi iç o.73 Dretske não especifica contudo de que

a ei aà aà apli aç oà e u si aà dasà t sà o diçõesà pe iteà hega à aà R é um estado

expe ie ialàdeà“ àdes a ta doà “àsa eà ueàR àoà aso .

Um problema que afecta a generalidade das concepções do conhecimento que

propõem condições modais ou contrafactuais prende-se com a exigência, aparentemente

não satisfeita por essas concepções, de que o sucesso cognitivo de um agente num caso

particular de crença não se fique a dever apenas à sensibilidade (definida modalmente)

dessa crença à verdade da proposição acreditada. A análise de Dreske não parece constituir

excepção. Suponha-se que S forma invariavelmente uma crença verdadeira acerca da

temperatura que está numa determinada sala com base na indicação fornecida por um

termómetro que se encontra nessa mesma sala. Não há qualquer hipótese de S ter crenças

falsas acerca da temperatura da sala. Apesar de avariado, o termómetro indica invariável

e correctamente a temperatura ambiente, isto graças à intervenção de alguém que, tendo

acesso a um termómetro em perfeitas condições de funcionamento, mas escondido de S,

faz com que essa indicação coincida com a temperatura da sala. Olhando para a descrição,

fica a ideia de que a análise de Dretske é satisfeita nestas circunstâncias. S tem razões

conclusivas para acreditar que está uma determinada temperatura na sala—pois se não

fosse o caso de estar essa temperatura na sala, S não teria essas razões—e S acredita,

porque R é um estado experiencial de S, que está essa temperatura na sala. Todas as

condições são portanto satisfeitas. Mas será que é possível atribuir a S conhecimento

acerca da temperatura que está na sala? Não. Seria estranho atribuir conhecimento a S

nestas circunstâncias. A atribuição de conhecimento não é correcta porque o vínculo entre

a crença de S de que está uma determinada temperatura na sala e o facto de estar essa

73 Dretske diz o seguinte: Habilitamo-nos a ter conhecimento quando temos razões conclusivas para acreditar; mas

não precisamos adicionalmente de saber que temos razões conclusivas” Dretske (2000: 23).

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temperatura na sala é meramente acidental (embora o vínculo seja causal), não podendo

por isso ser creditado ao trabalho epistémico de S, o que impede que S tenha

conhecimento.

Pode ser objetado que pelo menos uma parte do sucesso cognitivo de S (ao acertar

na verdade) se deve ao seu trabalho epistémico. Seja. Mas isto não invalida que o acerto

na verdade seja creditável ao agente. Se se desse o caso de a pessoa que altera as

indicações do termómetro avariado não alterar essas indicações, as crenças de S seriam

falsas e S não teria portanto razões conclusivas para acreditar na temperatura indicada

pelo termómetro. Mas S continuaria a ter as mesmas crenças nessas circunstâncias, pois

desconhece que o termómetro está avariado. O que isto revela é que o mérito cognitivo

das crenças verdadeiras formadas por S acerca da temperatura da sala quando a indicação

dada pelo termómetro avariado é manipulada pela pessoa que tem o termómetro a

funcionar correctamente não é atribuível ao labor cognitivo de S mas sim as circunstâncias

ambientais estranhas a esse labor.74

4.2.2. A Teoria Condicional do Conhecimento

Robert Nozick sugere uma análise do conceito de conhecimento que partilha a ideia

de sensibilidade com a definição sugerida por Dretske. Como vimos, para Dretske são as

razões que suportam a crença que têm de ser sensíveis à verdade. Se fosse falso que p,

então S não possuiria razões conclusivas para p. Dito de outro modo, as razões para p (ou

para acreditar que p) só são conclusivas no mundo actual se rastreiam a verdade em todos

os mundos nomologicamente possíveis.75 Já para Nozick é a própria crença que tem de ser

sensível à verdade ao longo de todos os mundos nomologicamente possíveis. Portanto, é

a crença que p tem de rastrear a verdade de p. Assim, para Nozick, S sabe que p se, e só se,

as seguintes condições são satisfeitas (Nozick 1999: 156-179):76

74 A objecção, da autoria de Duncan Pritchard, vai ser desenvolvida na secção 5.2.

75 A restrição é imposta pelo próprio. Cf. Dretske (2000: 16).

76 Originalmente 1981, 172-179. Usarei a paginação de 1999.

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i) p;

ii) S acredita que p;

iii) Se não fosse verdade que p, S não acreditaria que p;

iv) Se fosse verdade p, então S acreditaria que p.77/78

Esta análise parece dar conta de alguns casos Gettier. Parece resolver, por exemplo,

o caso Sheep (ver. 1.10.) A crença de S de que está uma ovelha na encosta, apesar de

verdadeira, não é conhecimento, pois S continuaria a acreditar que está uma ovelha na

encosta (porque confunde o cão com por uma ovelha) mesmo se não fosse o caso de estar

uma ovelha na encosta. Não há conhecimento neste caso porque, segundo a definição, a

condição (iii) não é satisfeita.

Mas outros casos há que revelam as fragilidades da análise. Por exemplo, Sosa

imagina um caso em que alguém que reside num andar localizado no topo de um prédio

introduz um saco de lixo no canal usado para enviar o li xo para o depósito do lixo localizado

no andar térreo do referido prédio.79 Sosa sugere que, em circunstâncias normais, o saco

desce até ao depósito e que a crença da pessoa (a ter formado essa crença) de que o saco

chegou ao depósito é não apenas verdadeira como está de alguma forma garantida pelo

facto de o saco ter alcançado o depósito em múltiplas ocasiões passadas (garantida com

base numa indução, portanto). O ponto de Sosa é que este é um caso de conhecimento,

mas não um caso em que iii seja satisfeita, uma vez que quem enviou o saco continuaria a

acreditar que este teria alcançado o depósito mesmo no caso de ele não alcançar o

depósito, isto por, digamos, existir alguma deficiência momentânea do canal, intervenção

esporádica para manutenção do canal, etc. O ponto de Sosa é portanto que concepção de

Nozick exclui casos de conhecimento como este e não pode por isso estar completamente

correcta.

77 Klein (2009) remete uma extensiva discussão da análise de Nozick para Luper-foy (1987). Essa discussão não

pode ser desenvolvida neste trabalho. Iremos pois centrar a nossa atenção naquelas que nos parecem ser as principais

consequências dessa análise.

78 Nozick (1999: 152, nota 13) alega que a condição (iv) não torna as condições (i) e (ii) redundantes, nem

conversamente. O ponto é que a condicional contrafactual em (iv) indica algo mais forte do que S acredita com verdade

que p, pois indica que (i) e (ii) obtêm nos mundos possíveis mais próximos do mundo actual.

79 Sosa (1999).

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A Teoria Condicional do Conhecimento80 parece realmente criar problemas tão ou

ainda mais graves do que aqueles que aparentemente soluciona. Nozick é o primeiro

indicar aquele que parece ser o maior problema da sua análise, um problema que,

independentemente dos seus esforços, parece estar ainda por resolver de forma

satisfatória.

Suponha-se que S é um cérebro numa cuba (CNC).81 Suponha-se também que

dispõe da mesma informação, em quantidade e qualidade, da que disporia caso não fosse

um CNC, quer dizer, se S estivesse na nossa (aparentemente normal) condição de seres

humanos (que não são cérebros em cubas). Uma vez que S não consegue distinguir o

cenário em que é um CNC do cenário em que não o é, se S fosse um CNC, não acreditaria

que o era. A condição iii não é satisfeita nestas circunstâncias, pois se não fosse verdade

que S não é um CNC, S acreditaria que não é um CNC. Se a análise de Nozick estiver

correcta, S não pode saber que não é um CNC, pois duas condições necessárias para o

conhecimento não são, nem podem ser, satisfeitas.82

O céptico pode valer-se deste resultado aparentemente indesejável e concluir que,

se S não pode saber que não é um CNC, então também não pode saber muitas das coisas

comuns que dá geralmente por garantidas, como por exemplo que conduz um automóvel,

que come um biscoito ou que escreve num computador. Nozick morde a isca e o anzol

quando confrontado com este argumento céptico. Ele prefere salvaguardar a sua

análise/definição, hipotecando no entanto no processo a possibilidade de haver muito do

conhecimento comum que habitualmente damos por certo. No entanto, como Nozick não

é um céptico e deseja salvaguardar a possibilidade de conhecimento em geral, avança uma

solução que lhe permite alegadamente rejeitar o argumento do céptico e preservar a sua

80 Por vezes também chamada Truth-Tracking Theory.

81 Esta hipótese céptica é extensivamente discutida na literatura contemporânea. Um marco dessa discussão aparece

em Putnam (1981), reimpresso em De Rose & Warfield (1999: 27-42). Muito ao de leve, e segundo uma certa interpretação,

Putnam rejeita o argumento céptico com base na ideia de que se o céptico estiver correcto na sua pretensão de que somos

cérebros em tanques a quem são fornecidas todo do tipo de ilusões acerca daquilo que é dado normalmente por garantido

(e.g., que há relva e que é verde), então dificilmente as expressões no argumento do céptico podem referir o que quer que

seja, caso em que a falha de referência nos autoriza a ignorar o próprio argumento (e infelizmente tudo o resto).

82 Nozick (1999: 167) reconhece explicitamente este resultado.

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análise/definição. Esta solução é porém onerosa do pont o de vista teórico, uma vez que

gera outros problemas tão ou mais graves do que aqueles que soluciona.

A solução de Nozick passa por rejeitar uma premissa fundamental do argumento

céptico, uma premissa sem a qual o argumento não pode ser posto de pé. Essa premissa é

o Princípio do Fecho para o Conhecimento e a subsequente ideia de que o conhecimento

é fechado sob implicação. Segundo este princípio, se S sabe que p, e se S sabe que p implica

que q, então S sabe que q.83 Por exemplo, se S sabe que está no lugar X, e se S sabe que

estar no lugar X implica que não seja um CNC, então S sabe que não é um CNC. Todavia,

segundo Nozick et al, o céptico usa o princípio no sentido contrário: se S não pode saber

que não é um CNC, então S também não pode saber que está no lugar X, isto porque S não

saber que não é um CNC tem como consequência que não possa saber que está no lugar X

(pois pode ser um CNC e estar iludido acerca da sua localização espácio-temporal). Nozick

(1999: 170) rejeita porém o referido princípio com base na ideia de que a transição por ele

enunciada falha. Supondo que S sabe que está no lugar X, e supondo também que S sabe

que estar no lugar X implica não ser um CNC, parece seguir-se com naturalidade que S sabe

que não é um CNC. Mas Nozick não concorda com este diagnóstico, pois crê que S não tem

forma de saber que não é um CNC, uma vez que se S fosse um CNC continuaria a acreditar

que não o era. Estas e outras considerações levam Nozick a pensar que o Princípio do Fecho

falha. Apesar de S saber que está no lugar X, e apesar de saber que estar no lugar X implica

não ser um CNC, S não pode saber que não é um CNC—pois, uma vez mais, se fosse um

CNC, não acreditaria que o era.

Esta rejeição do princípio do fecho, uma rejeição que visa salvaguardar a condição

iii, parece originar um novo argumento céptico. Com efeito, o céptico pode alegar que o

bloqueio do princípio parece ter como consequência que não se possa aumentar o

conhecimento comum por via de inferências. O bloqueio do princípio parec e por exemplo

83 Este princípio não deve ser confundido com o Princípio do Fecho para a Justificação mencionado acima (secção

1.9.) aquando da descrição dos contra-exemplos de Gettier.

Assume-se regra geral na literatura que a implicação céptica , se assim se lhe pode chamar, se fica a dever ao facto

de a situação de alguém que é um CNC ser opaca do ponto de vista epistémico para essa pessoa, justamente por força dessa

pessoa se encontrar nessas circunstâncias. O termo “implica” tem pois de ser interpretado aqui com um grão de sal e não

como se referisse uma implicação lógica estrita. Aliás, o próprio Nozick não usa uma condicional material para a relação

de implicação “S sabe que p implica que q”.

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bloquear a possibilidade de se transitar do conhecimento de que há zebras na jaula no Zoo

de Lisboa para o conhecimento de que os animais na jaula das zebras no Zoo de Lisboa não

são mulas pintadas (como zebras, para parecerem zebras). A questão que o céptico pode

levantar é esta: por que motivo haveria o princípio do fecho de autorizar esta transição

entre conhecimento comum (e.g., se sei que os animais são zebras, então sei que não são

mulas pintadas) e não autorizar a transição entre conhecimento comum e conhecimento

extraordinário (e.g., sei que estou no Zoo de Lisboa, sei que não sou um CNC). A verdade é

que parece ser suficiente haver pelo menos um caso em que o princípio falha para se

duvidar da sua aplicabilidade em todos os casos. Parece portanto que a concepção de

Nozick salva a possibilidade de haver conhecimento ao hipotecar a possibilidade de ampliar

inferencialmente o conhecimento, o que é um resultado indesejável.84

Dretske (2005: 13-26) rejeita este diagnóstico. Opõe-lhe a ideia de que a rejeição

do princípio pode salvar muito do conhecimento comum. O ponto é que o cepticismo pode

ser confinado se o âmbito do princípio for limitado. Crucialmente, Dretske pensa que o

princípio é, se assim se pode dizer, epistemicamente inválido. Por exemplo, S pode saber

que há biscoitos na caixa de biscoitos (porque vê esses biscoitos na caixa) e saber que haver

biscoitos na caixa implica que haja um mundo físico/mate rial (onde esses biscoitos têm de

estar), mas ainda assim não saber que existe um mundo físico/material. Apesar de esta nos

parecer uma pretensão estranha, ela acaba por fazer algum sentido se, como Dretske

parece defender, a aplicação do princípio não serve per se para demonstrar a existência do

mundo físico/material, uma vez que a aplicação do princípio não é suficiente para remover

84 Segundo De Rose, a satisfação da definição de Nozick pode dar azo ao aparecimento das chamadas conjunções

abomináveis. Uma conjunção abominável é uma conjunção do tipo “Eu sei que tenho mãos mas não sei que não sou um

cérebro numa cuba”. Cf. De Rose (1995: 200). As conjunções abomináveis recolocam a discussão no centro do velho

problema mooreano. O contextualismo de De Rose e de outros visa suplantar o problema levantado por estas conjunções,

por um lado, e o argumento céptico, por outro. Claro que o contextualismo é também alvo de muitas objecções, não

reunindo o agrado e o acolhimento de muitos filósofos. Uma discussão do contextualismo de De Rose (Cf. 1999b para uma

defesa e 2000 para uma comparação com o invariantismo e mais defesa), sai no entanto fora do âmbito deste trabalho, pois

a sua relação com tema central é suficientemente indirecta para justificar essa saída. Versões clássicas e moderadas de

contextualismo podem ser encontradas em Stine 1999: 145-155 (uma das primeiras respostas ao problema de se saber o

que pode contar como alternativa relevante à verdade de uma proposição e de uma crença com aspirações a ser

conhecimento); e em Lewis (1999: 220-239)—(uma tentativa de evitar o cepticismo ao circunscrever as condições que

podem ditar a relevância ou irrelevância de uma alternativa).

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da equação alternativas relevantes à possibilidade da existência de um mundo

físico/material. Remover, por exemplo, a alternativa de que um génio tenha criado na

mente de S a ilusão de um mundo físico/material no qual se encontra e, entre muitas

outras coisas, uma caixa (ilusória) com biscoitos (ilusó rios). Tal como Nozick, Dretske

reclama que a aplicação indiscriminada do princípio trabalha a favor do céptico: caso se

conceda que o princípio é indiscriminadamente aplicável , então, uma vez que certas

alternativas cépticas não podem ser falsificadas—uma vez que não há aparentemente uma

forma eficaz de as falsificar definitivamente—, parece seguir-se que não é possível garantir

que há conhecimento comum. A solução é, sugere ainda Dreskte (Ibidem: 23),

circunscrever o âmbito do princípio apenas às transições entre excertos de conhecimento

comum, rejeitando porém as transições entre o conhecimento comum e as consequências

extrordinárias (e.g., existe um mundo físico/material) do conhecimento comum. Se assim

for, as possibilidades de haver conhecimento comum e de aumentar o conhecimento

comum serão preservadas.

Embora prima facie atractivas, as soluções de Nozick e Dretske parecem gerar

outros problemas. John Hawthorne identifica um que irei aqui expor a título de exemplo

com o intuito de mostrar que as análises/definições que sobrevivem à custa da rejeição ou

restrição do Princípio do Fecho matam o paciente (o conhecimento) com a terapêutica que

propõem para o salvar (a rejeição do princípio em certos casos). Basicamente, Hawthorne

acusa a solução de Dretske de violar o muito intuitivo princípio da distibuição:

Dist i uiç o:à“eà o he e osàu aà o ju ç oà p e q, então desde que consigamos deduzir p de p e q ficamos em condições de saber que p (Hawthorne 2005:31)

Por exemplo, se sabemos que a relva é verde e que a neve é branca, podemos

deduzir que a relva é verde, ficando a saber que a relva é verde. A solução de Dretske não

viola o princípio neste caso, pois nada de extraordinário é sabido, mas fica com ónus de

explicar por que razão o princípio é aplicável neste caso e não quando há transições entre

o conhecimento comum e o conhecimento extraordinário. O que torna o princípio aplicável

num caso e não no outro?

4.2.3. A Teoria da Segurança Epistémica

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112

A condição de segurança epistémica é por vezes apresentada como uma alternativa

às condições de sensibilidade epistémica, sendo também vista como uma resposta ao

cepticismo radical (Pritchard 2007: 277-297). Havendo várias versões da condição

disponíveis, vou centrar-me por ora naquela que é porventura a mais discutida, da autoria

de Sosa.

A motivação de Sosa (1999:143) para apresentar a condição de segurança, em

formato modal, é a de resolver a velha problemática mooreana.85 Viu-se acima como a

condição iii não era satisfeita no caso de S ser um CNC. Se não fosse verdade que S não é

um CNC (quer dizer, se o fosse), S acreditaria ainda assim que não é um CNC, e, portanto,

segundo Nozick, não sendo satisfeita a condição iii, S não poderia saber que não é um CNC.

S não acreditaria que é um CNC por não conseguir distinguir, por percepção ou inferência,

a má situação, de engano massivo ou de ilusão massiva, da boa situação, o caso em que

não há ilusão ou engano (Cf. Williamson 2000: 164-183).

Eis a formulação do problema sugerida por Sosa (1999) .à“e doà ueàH= “ouàu àCNCà

sem mãos massivamente enganado por uma ilusão elaborada àeàO= Te hoàago aàduasà

os ,àoàa gu e toà pti oàdaàig o ia (AI) pode ser estabelecido do seguinte modo:

1) Não sei que não-H (não é possível saber-se que não-H);

2) Se 1, então (via Princípio do Fecho para o Conhecimento) não posso saber que O.

C: Não sei que O.86

Sosa identifica então três posições-chave a respeito do AI:

85 O texto clássico que dá a origem ao famoso problema encontra-se em Moore (1939: 273-300).

86 A mesma formulação surge em diversos lugares, por exemplo, em De Rose (1999: 3).

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113

a) A céptica: 1, 2, C

b) A de Nozick e de outros (Dretske incluído, certamente): 1, ~2, ~C

c) A de Moore: 2, ~C, ~1. (Sosa 1999: 144)87

Acaba por rejeitar a e b, propondo-se defender c. A sua defesa assenta na

introdução da chamada Condição de Segurança Epistémica (CSE):

CSE— Cha e-se a uma crença de S que p segu a àseàeàsóàseà“àa editasseà ueàp se p fosse o caso (ou em alternativa, a crença de S que p à segu a àseàeàsóàseà“à oàacreditasse que p sem que p fosse o caso; ou melhor ainda, embora talvez não sendo uma questão de necessidade estrita, S não teria facilmente acreditado que p se não fosse o caso que p . (Sosa 1999: 142)

A CSE é para Sosa não apenas diferente da condição iii de Nozick, como também

lida com o AI de forma mais eficaz que esta última. Resumidamente, o que Sosa reclama é

que se a crença C de S que O é segura no sentido descrito pela CSE, então O no caso de C—

ou, pelo menos, O nos mundos possíveis mais próximos do actual se C no m undo actual.

Aplicando ao Problema de Moore, obtém-se o seguinte resultado: se a crença de S

de que tem mãos é segura, então se S tem essa a crença no mundo actual, S tem mãos no

mundo actual e nos mundos possíveis mais próximos do m undo actual. Sosa defende que

esta condição de segurança pode ajudar a garantir, primeiro, a premissa fulcral de Moore

segundo a qual temos mãos e, segundo, servir de base, via dedução (pela aplicação do

princípio do fecho) para rejeitar a premissa 1 do AI—o que era proibido pela condição iii

de Nozick.

A CSE não é contudo isenta de críticas. Uma das principais (a qual visitaremos com

mais pormenor na secção 5.2.), prende-se com o facto de não ser uma condição cuja

satisfação (conjuntamente com a condição de verdade) seja suficiente para haver

conhecimento.

4.3. Teorias naturalistas do conhecimento

Em epistemologia há uma corrente naturalista, se assim se lhe pode chamar, que

sustenta que o alcançar de um qualquer sucesso epistémico (conhecimento, justificação,

87 De notar que a formulação de Moore do AI utiliza o clássico cenário do sonho e não o mais recente cenário do

cérebro no tanque.

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114

garantia, verdade, etc.) por parte de um agente depende do exercício das suas capacidades

cognitivas naturais (Cf. Kim 1988: 381 ss).88/89 A definição é rude. Não obstante, como se

verá, fornece as bases necessárias para se apresentar as duas teorias constantes nesta

secção. Trata-se da teoria naturalista da garantia epistémica, de Alvin Plantinga, e da teoria

semi-naturalista da aptidão epistémica de uma crença, de Ernest Sosa.

4.3.1. Garantia Epistémica

Plantinga lança uma forte crítica às várias concepções deontológicas/internalistas

da justificação. Após rejeitar diversas possibilidades (coerentistas, bayesanas, etc.) sobre

natureza da garantia epistémica, sugere no final de Warrant (1993a: 211)90, a sua própria

perspectiva sobre o que é essa propriedade que, segundo ele, em quantidade suficiente

epistemiza uma crença a ponto de ser conhecimento.

A teoria da garantia de Plantinga assenta no pressuposto, naturalista, de que os

sucessos epistémicos de um agente dependem no essencial do correcto funcionamento e

correcto exercício das capacidades cognitivas de um agente. As capacidades cognitivas,

vistas à guisa de Plantinga, tal como aqui descritas, têm de ser encaradas como um

conjunto de virtudes físicas e intelectuais. Greco e Turri (2010) oferecem uma taxonomia

das virtudes intelectuais, colocando de um lado as virtudes que são manifestamente

faculdades cognitivas (percepção, intuição, memória), as quais são privilegiadas pelos

defensores do fiabilismo naturalista, colocando no outro virtudes aparentemente não-

naturais, como por exemplo a responsabilidade epistémica ou a consciência moral

(aplicada aos deveres epistémicos).

Segundo esta concepção, um agente terá, por exemplo, uma crença garantida de

que está uma ovelha na encosta desde que a sua capacidade de visão, ao funcionar

correctamente, lhe permita ver que está de facto uma ovelha na encosta; tal como o

88 A distinção incide fundamentalmente sobre os conceitos de justificação normativa, por exemplo, de Descartes,

e justificação naturalizada, mas estendeu-se mais recentemente, como se verá pela inspecção da teoria de Plantinga, para

os conceitos de garantia, virtudes e aptidão epistémicas.

89 Uma distinção relacionada surge em Sartwell (1992: 168). A diferença é entre a questão ‘O que é o

conhecimento’, pertencente, segundo o autor, à epistemologia descritiva , e a questão ‘Como se chega ao conhecimento”,

pertencente, ainda segundo esse autor, à epistemologia normativa .

90 A ideia central já havia contudo sido avançada em Plantinga (1988: 32)

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correcto funcionamento de um coração permite que o sangue seja correctamente

bombeado e disperso para todo o corpo humano.

Porém, Plantinga (1993b) também pensa que o correcto exercício das capacidades

cognitivas de um agente pode não ser suficiente para que esse agente tenha crenças

garantidas. Outras condições têm de obter para que haja garantia. Uma dessas condições

é, por assim dizer, teleológica. Crucialmente, as capacidades cognitivas de um agente têm

de ser o resultado de um bom plano ou desígnio, divino ou evolucionário, que lhes permita

um correcto funcionamento, isto num ambiente para o qual foram planeadas ou

desenhadas (Cf. 1993b: 22). Este bom funcionamento das capacidades cognitivas é

e su el àpeloàele adoàg auàdeà fia ilidade que essas capacidades patenteiam, bem

como pelo elevado número de crenças verdadeiras que produzem.

Mas a satisfação das condições acima descritas pode ainda revelar-se insuficiente

para que haja garantia epistémica, tal como é pensada por Plantinga. Como o próprio

sugere, é possível divisar casos em que o agente se encontra num ambiente epistémico

hostil, o que o impede de ter crenças garantidas. Por exemplo, em cenários radicais que

des e e àu àa ie teàepist i oà a ipulado àpo àu àp oduto àsiste ti oàdeàilusões,à

sendo que, nesse ambiente, o agente está sistematicamente iludido acerca do que pensa

ver. Nesse ambiente não há portanto garantia epistémica.

Sintetizando a perspectiva de Plantinga, há duas condições necessárias (e

presumivelmente suficientes) para haver garantia epistémica. São as seguintes:

A) Há um plano ou desenho (evolucionista ou divino) que resulta em capacidades cognitivas dos agentes (humanos).

B) As capacidades cognitivas naturais de um agente são exercidas eficazmente em ambientes propícios a esse exercício (i.e., ambientes para os quais as capacidades foram desenhadas ou planeadas).

Segundo o seu proponente, estas são condições cuja satisfação tende a produzir

apenas crenças verdadeiras. Crenças que exibem a propriedade de estarem garantidas,

esteàse tidoàdeà ga a tia ,às oà o he i e to.à

Um primeiro problema com esta concepção prende-se com o que cai sob o conceito

de conhecimento. Há, presumivelmente, vários conceitos de conhecimento, sendo difícil

reconhecer antecipadamente qual o conceito que é visado pela concepção. O conceito

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usado por Plantinga é aparentemente um conceito naturalista. Mas esta concepção

naturalista do conhecimento é quase sempre omissa no que respeita à necessidade de, por

exemplo, o agente ter um comportamento epistémico responsável para poder ter

conhecimento. Pressupõe-se que basta este exercer correctamente as suas capacidades

naturais de cognição para ter crenças garantidas que são conhecimento. Mas podem

divisar-se casos em que, apesar de haver um correcto funcionamento dessas capacidades,

o agente não tem conhecimento porque não tem uma atitude epistémica responsável.

Considere-se, por exemplo, o caso de alguém que vê um oásis no meio do deserto. Segundo

a concepção naturalista do conhecimento, basta essa pessoa ter a sua capacidade de visão

a funcionar em perfeitas condições para saber que o que vê é um oásis. Contudo, se essa

pessoa não afastar a hipótese da sua capacidade de visão estar em más condições de

funcionamento, afastando também de caminho a hipótese de estar iludido a respeito da

presença de um oásis, não será possível atribuir-lhe conhecimento. Uma condição

necessária não é satisfeita: que o agente confirme que os resultados do exercício da sua

capacidade de visão estão em ordem. Essa condição apela por sua vez para um

comportamento epistémico responsável, sendo que este impõe um requisito

deontológico. Requisitos deontológicos não são habitualm ente contemplados por

concepções naturalistas do conhecimento. Pode portanto ser alegado que concepções

naturalistas do conhecimento apenas explicam parte do conceito de conhecimento; ou,

em alternativa, um conceito particular de conhecimento.

O segundo problema que afecta a concepção de Plantinga tem a ver com o

Problema de Gettier. Plantinga inclina-se para a ideia de que a sua concepção da garantia,

tal como estabelecida pelos pontos A e B acima, dá conta da generalidade dos problemas

levantados por casos Gettier. Há casos Gettier quando, por exemplo, alguma coisa falha no

ambiente epistémico em que está inserido um agente, o que impede que as suas crenças

estejam garantidas a ponto de serem conhecimento. Segundo ele (1993b: 34), os casos

originais de Gettier revelam que a crença de Smith não está garantida porque o facto de

essas crenças acertarem na verdade fica a dever-se a elementos estranhos (e.g.

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acidentalidade) presentes no ambiente epistémico no qual surgem, algo que contribui para

aà poluiç oà og iti aàa ie tal .91

Plantinga apresenta uma outra abordagem interessante ao Problema de Gettier.

Trata-se da ideia de que os contra-exemplos tipo-Gettier, pelo menos uma razoável

amostra, colhem porque o desenho (ou o plano) não criou (ou desenvolveu) as capacidades

cognitivas dos agentes humanos tendo como fim a produção de crenças verdadeiras.

Segundo esta perspectiva, o processo evolutivo (se se for adepto da Teoria da Evolução

darwiniana) ou Deus (se se for adepto de uma perspectiva religiosa) teriam formado estas

capacidades tendo em atenção não apenas objectivos cognitivos mas o sucesso evolutivo,

se assim se pode dizer, de um agente cognitivo humano. Como esse sucesso depende de

outros factores que não apenas a produção de crença verdadeiras ou de crenças

verdadeiras que são conhecimento, segue-se que os casos de Gettier e similares devem-se

a essa ausência propositada de infalibilidade das capacidades cognitivas de um agente. Por

exemplo (um exemplo que não é da autoria de Plantinga), a crença falsa de que uma vara

está torta quando imersa na água é aparentemente necessária para que um indivíduo da

espécie humana aja com alguma prudência quando perto de lagos ou rios. Parece existir

nestas situações uma espécie de compromisso entre o conhecimento e a utilidade. No

essencial, a ideia é a de que o agente teria menos vantagens do pronto de vista

evolutivo/prático se o desenho ou plano tivesse projectado as capacidades cognitivas de

uma agente para a infalibilidade, em vez de as estabelecer de modo a permitir a sua

falibilidade e, portanto, de modo a estabelecer um género de equilíbrio benéfico para o

agente. É esta falibilidade consentida que, no entender de Plantinga (Ibidem: 38), permite

o surgimento de casos Gettier, casos de ilusão massiva, etc. Trata-se de algo negativo do

ponto de vista da cognição, mas que pode conferir vantagens do ponto de vista da

preservação do indivíduo e da evolução da espécie.

Ainda uma outra ideia interessante de Plantinga (Ibidem: 43) prende-se com a

quantidade de condições necessárias para haver garantia. É por ele defendido que em

certas situações um agente não tem de saber ou que estar garantido acerca das razões que

tem para acreditar que a sua crença é fiável, garantida ou conhecimento, enquanto

91 Ver (1993b: 35-36) para o caso do ranger australiano.

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noutros casos parece haver essa exigência. Este é um sinal de que as condições necessárias

para haver garantia epistémica podem variar de caso para caso.

A literatura oferece um conjunto significativo de objecções à teoria naturalista da

garantia de Plantinga, à qual se junta um conjunto significativo de respostas.92 É-nos

impossível dissecar todas as objecções e respectivas respostas. Por essa razão,

seleccionamos e discutimos neste lugar aquela que nos parece ser a objecção mais

interessante e mais bem-sucedida relacionada com o Problema de Gettier. Essa objecção

é da autoria de Linda Zagzebski (1994).93 O seu ponto óbvio é que é possível divisar casos

em que um agente tem uma crença e dadei aà eà ga a tida,à oà se tidoà deà ga a tida à

avançado por Plantinga, e ainda assim não tem conhecimento.

O argumento de Zagzebski assenta num forte pressuposto. Qualquer proponente

de uma definição/análise do conhecimento tem de se debater com a eventualidade de a

terceira (quarta, etc.) condição não conseguir anular o habitual hiato entre crença e

verdade, um hiato explorado por todos os contra-exemplos tipo-Gettier. Ainda segundo

Zagzebski, a teoria de Plantinga autoriza que uma crença possa estar suficientemente

garantida, segundo os preceitos considerados necessários pela teoria (em particular do

ponto de vista da fiabilidade das capacidades cognitivas d o agente e do seu correcto

exercício um ambiente epistémico propício), e ainda assim ser falsa.

Zagzebski (1994: 69) expõe um modus operandi para elaborar um contra-exemplo

a qualquer definição/análise do conhecimento com o formato tradicional. Esse

procedimento é o seguinte:

Passo 1—Imagine-se um caso em que uma (terceira, quarta, etc.) condição (e.g., justificação, garantia) cuja satisfação em circunstâncias epistémicas normais se revelasse suficiente para que a crença fosse verdadeira (ou que a crença acertasse

92 Um debate de algumas das principais objecções à teoria de Plantinga feito pelo próprio pode ser encontrado em

Plantinga (1995: 427-464). São debatidas objecções de Alston, Ginet, Steup, Swinburne e Taylor.

93 Zagzebski é uma das defensoras contemporâneas da ideia de virtudes epistémicas. Uma apresentação histórica

concisa da chamada epistemologia das virtudes e seus derivados pode ser encontrada em Fairweather & Zagzesky (2001:

3-14). A ideia de virtude cognitiva aparece amplamente explicada neste e noutros lugares, como por exemplo em Greco

(1993: 414 ss). A autoria da noção de virtude cognitiva é atribuída por diversos filósofos e comentadores a Aristóteles, que

a terá presumivelmente introduzido no De Anima, principalmente a partir de 424b 25.

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na verdade da proposição), mas um caso em que a crença é prima facie falsa devido a circunstâncias epistémicas anormais (e.g., má sorte epistémica);

Passo 2—Mostre-se depois que a crença é afinal verdadeira, e que ser verdadeira nada tem a ver com a satisfação da condição descrita em (1), mas que se deve também a circunstâncias epistémicas anormais (e.g., boa sorte epistémica, o que faz com que a crença acerte acidentalmente na verdade da proposição acreditada);

Passo 3—Conclua-se que a crença não pode ser conhecimento apesar de haver satisfação da condição descrita em (1), uma satisfação que em circunstâncias epistémicas normais permitiria que essa crença fosse conhecimento, mas que não se revela suficiente em circunstâncias epistémicas anormais, nomeadamente em circunstâncias de acidentalidade epistémica, e que portanto a definição/análise do conhecimento que contém essa condição tem contra-exemplos.

Eis um dos dois alegados contra-exemplos de Zagzebski à teoria de Plantinga que

tem por base este modus operandi. (Passo 1) Suponha-se que, sob circunstâncias

ambientais propícias para a formação de uma crença verdadeira (e.g., nível de

luminosidade correcto, raciocínio correcto, etc.) e no perfeito exercício das suas

capacidades cognitivas (que tiveram origem num bom plano ou desenho, tal como é

suposto por Plantinga), Maria forma a crença de que o homem na sua sala é o seu marido.

Ora, segundo a concepção da garantia de Plantinga, a crença de Maria está

suficientemente garantida a ponto de ser conhecimento. Infelizmente a crença não é

(prima facie) verdadeira porque, acidentalmente o homem que Maria vê na sala é o irmão

do seu marido, pessoa fisionomicamente idêntica ao seu marido e que, tanto quanto Maria

pode afirmar, não está no país de momento. Portanto, apesar de garantida à guisa

Plantinga a crença de Maria não pode ser conhecimento. Não o é porque uma condição

necessária para o ser não é satisfeita: a condição da verdade. (Passo 2) Suponha-se porém

que o marido de Maria está de facto na sala, embora fora do alcance visual de Maria. Sendo

assim, a crença de Maria de que o seu marido está na sala é no fim de contas (ultima facie)

verdadeira. Como a crença já estava garantida em virtude do correcto funcionamento e

exercício das capacidades cognitivas de Maria num ambiente propício a esse exercício, etc.,

segue-se que Maria tem uma crença verdadeira e garantida de que o seu marido está na

sala. (Passo 3) Todavia é óbvio que a crença de Maria não pode ser conhecimento, pois

apesar de ser verdadeira e estar garantida à guisa de Plantinga, o facto de a crença acertar

na verdade não se deve ao desempenho cognitivo de Maria, mas sim à sorte.

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Plantinga (1997: 144 ss) adiciona uma nova condição necessária à sua definição de

modo a evitar este alegado contra-exemplo. Trata-se no essencial da exigência de que se

uma crença é prima facie falsa então a garantia que possui não pode ser suficiente para

gerar conhecimento.94 Evita-se deste modo a possibilidade de um grau de garantia

aparentemente suficiente para gerar conhecimento poder resultar afinal numa crença

falsa, bloqueando-se desta forma o primeiro passo do contra-exemplo. Este epiciclo

permite aparentemente resolver o problema, embora o faça aparentemente a expensas

de uma desagradável estipulação. Com efeito, torna-se difícil perceber de que modo é

possível aferir com exactidão que grau de garantia plantingiana é suficiente para cada caso

de crença verdadeira ser conhecimento, excepto pressupondo de antemão que esse grau

é de facto suficiente para esse efeito.

Mesmo considerando a possibilidade de a concepção de Plantinga tal como

formulada e posteriormente corrigida pelo próprio ter contra-exemplos ou outros

problemas, tal não significa que tal definição é inútil do ponto de vista da elucidação do

fenómeno do conhecimento. Com efeito, parece-nos que existem aspectos desta

concepção que são muito aproveitáveis e têm lugar numa outra concepção mais

abrangente da garantia epistémica.

4.3.2. Aptidão Epistémica de uma Crença

Ernest Sosa é actualmente tido como um defensor das ideias de aptidão cognitiva

de uma crença e de crença segura. Esta última já recolheu acima alguma da nossa atenção

(aquando da discussão da condição de segurança, secção 4.2.3). É agora chegado o

momento de inspeccionar a primeira.

O objectivo de Sosa ao propor o requerimento de aptidão epistémica de uma crença

passa por resolver alguns dos puzzles cépticos tradicionais. A proposta deixa entender que

o objectivo será cumprido no caso de se conseguir definir correctamente dois tipos de

conhecimento: o conhecimento animal e o conhecimento reflexivo (Cf. Sosa 2007 passim).

Não se trata portanto aparentemente de uma concepção do conhecimento que tenha

como primeiro objectivo solucionar o Problema de Gettier. A concepção é por isso de

94 Uma crítica das tentativas de Plantinga para emendar a sua concepção de garantia de modo a acomodar os

problemas que lhe foram sendo levantados surge em Crisp (2000: 42-50).

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alguma forma marginal ao tópico deste trabalho. Todavia, na medida em que essa

concepção propõe justamente a aptidão de uma crença verdadeira enquanto condição

suficiente para dois tipos de conhecimento, tipos de conhecimento que têm uma

componente proposicional, uma inspecção à própria concepção e à natureza das condições

que preconiza faz todo o sentido.

A concepção sosiana diz primeiramente que uma crença é precisa quando atinge a

verdade da proposição, e que essa crença é competente quando essa precisão resulta de

uma capacidade ou habilidade cognitiva do agente (ou a mani festa).

Uma crença pode contudo ser precisa sem ser competente. Tal acontece, por

exemplo, em muitos dos casos acima estudados que estão na base de contra-exemplos a

diversas definições do conhecimento. Num número considerável destes casos, o facto de

a crença alcançar a verdade da proposição acreditada não se deve de modo algum ao

exercício de uma ou mais capacidades cognitivas de um agente, mas sim a um qualquer

factor de acidentalidade presente no ambiente epistémico, um factor que, por assim dizer,

contamina esse ambiente.

A julgar por esta concepção, será suficiente que essa crença seja precisa e

competente para ser bem-sucedida do ponto de vista cognitivo. Porém, uma crença pode

ser precisa e competente sem que seja simultaneamente bem-sucedida no sentido

descrito. É possível divisar casos em que a crença é precisa, por alcançar a verdade, que

são também casos em que há um exercício efectivo das capacidades cognitivas do agente

que vai no sentido de alcançar a verdade, o que faz com que sejam casos em que há

competência, mas que ainda assim são casos em não há conhecimento. Trata-se de casos

nos quais o sucesso epistémico ( i.e., alcançar a verdade) não se deve à competência do

agente, apesar de esta se efectivar, mas que se deve, mais uma vez, a um qualquer factor

de acidentalidade contido no ambiente.

Sosa usa uma analogia feliz para elucidar este ponto (a analogia corre sob o

pressuposto que tiros e crenças são performances que partilham características comuns).

Suponha-se que um arqueiro (um agente) visa o centro de um alvo (a verdade) exercendo

todas as suas capacidades naturais e técnicas (capacidades/habilidades cognitivas). O seu

objectivo é obviamente atingir o centro do alvo com o seu tiro/seta (a crença do agente).

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Suponha-se que, no exercício das suas competências naturais e técnicas, o arqueiro

consegue avaliar correctamente as condições de vento, a distância, a força necessária para

alcançar o alvo, e, de um modo geral, tudo o resto que é suposto ser avaliado para—em

circunstâncias normais—o tiro ser bem-sucedido. Suponha-se ainda que o arqueiro teria

de facto atingido o alvo com o seu tiro/seta caso as circunstâncias em que ocorre o tiro

fossem normais. Suponha-se por fim que, num primeiro momento após o arqueiro soltar

a seta, a intervenção de um génio imensamente poderoso, digamos, poderoso ao ponto

de conseguir controlar as brisas no ambiente físico onde está o arqueiro, faz com que a

seta se desvie do percurso originalmente previsto por este último, apenas para, num

segundo momento e por capricho, voltar a desviá-la na direcção do centro do alvo, o qual

acaba por atingir. Ora, este é ipso facto um caso em que o tiro resulta do exercício de todas

as capacidades naturais e técnicas de tiro do arqueiro, mas ainda assim um caso em que o

sucesso não se fica a dever a esse exercício mas sim à intervenção caprichosa do demónio.

Assim, não é a competência do arqueiro que é a causa do sucesso do seu tiro, e esse

sucesso não pode prima facie ser creditado ao arqueiro.

Uma crença epistemicamente apta é uma crença em que a competência do agente

é a causa da precisão epistémica da crença. A crença será precisa, ou seja, alcançará a

verdade (ou será verdadeira) porque resulta do exercício das capacidades cognitivas do

agente. A relação entre competência do agente e a precisão da sua crença deve pois ser

de ordem causal: as capacidades cognitivas do agente, ou o seu exercício, têm de ser a

causa pela qual a sua crença é precisa.

Sosa (2007: 78-81) defi eà o he i e toà a i al como crença apta.

Co he i e toà eflexi o à à defi idoà o oà e çaà aptaà so eà e çaà apta.à Eisà asà

fo alizaçõesà si asà deà o he i e toà a i al à eà deà o he i e toà eflexi o

disponibilizadas por Sosa: 95

(CA)—“àte à o he i e toà a i al que p se e só se S tem uma crença verdadeira e apta que p;

e…

95 CA espelha aquela que é geralmente designada por intuição da habilidade (cognitiva).

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(CS)—“àte à o he i e toà eflexi o à ueàq relativamente à sua crença apta que p (i.e., relativamente ao seu conhecimento animal de p) se e só se S tem uma crença apta que q sobre a sua crença apta que p.

CA estabelece alegadamente as condições necessárias e suficientes para o

o he i e toà a i al . Basicamente, o ponto de Sosa é que CA fornece essa suficiência

desde que a aptidão descrita seja exercida em condições normais. Para decifrar esta

pretensão e verificar a sua plausibilidade há agora que deslocar o foco do problema

novamente para a ideia de crença segura.

Como vimos acima, Sosa estabelece as condições sob as quais uma crença pode ser

considerada segura. Numa fórmula mais simples, temos que...

...uma crença que p é segura se, e só se, não poderia ter sido facilmente falsa,

e à ueà oà pode iaà te à sidoà fa il e teà falsa à de eà te à u aà leitu aà odalà doà

género...

aà e çaà à e dadei aà oà u doàa tual e nos mundos possíveis mais próximos do mundo actual a crença continua a se à e dadei a . (Ibidem: 24)

Um mundo possível próximo do actual é, nesta acepção, um mundo possível em

tudo igual ao actual excepto, por exemplo, na existência de um génio enganador que altera

a direcção das setas de um arqueiro ou faz com que um agente tenha uma crença

verdadeira por mera sorte.

Voltando agora explicitação das condições de normalidade sob as quais uma crença

pode ser considerada apta e, logo, segundo CA, conhecimento, Sosa distingue entre...

i àfa to esàpo à ausaàdosà uais as circunstâncias poderiam facilmente não ter sido normais, sem que essas circunstâncias sejam ipso facto a o ais à

e...

ii àfa to esà ueài pede àipso facto aà o alidadeàdasà i u st ias . (Ibidem: 82)

Ainda segundo Sosa, uma vez que apenas os factores do tipo descrito por ii

impedem que a precisão da crença se fique a dever à competência do agente, na ausência

desses factores as crenças podem ser aptas sem serem seguras. A segurança epistémica

não é então, neste sentido, uma condição necessária para a aptidão epistémica e, portanto,

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não é uma condição necessária para o conhecimento (animal). Pouco importa, desta

perspectiva, que as circunstâncias pudessem ter sido facilmente manipuladas de modo a

que a causa da precisão de uma crença não se tivesse ficado a dever à competência do

agente mas um qualquer factor espúrio (de acidentalidade ou outro) presente no

ambiente. Crença epistemicamente apta não tem de ser crença epistemicamente segura.

Co he i e toà a i al à e ue àfu da e tal e teà ueàhajaà o pet iaà og iti aàdeàu à

agente, competência exercida em condições normais, quer dizer, em que as condições

normais do seu exercício não sejam adulteradas.

A CA recolhe algumas críticas. Duncan Pritchard, por exemplo, pensa que a

definição não estabelece as condições necessárias e suficientes para o conhecimento

porque não contempla a satisfação da condição de segurança epistémica. O argumento de

Pritchard assenta em dois casos que, alegadamente, são contra-exemplos a CA. O primeiro

é o caso Barney (apresentado na secção 1.10); o segundo é o caso do bom-testemunho

(que Pritchard designa por caso Jenny) e que ainda teremos de introduzir (Pritchard: 2008

por publicar). Vamos por partes.

Segundo Pritchard, Barney não pode ser considerado um caso de conhecimento.

Apesar de a crença ser verdadeira (o que vê é de facto um celeiro e não uma das muitas

imitações) e ser o resultado do exercício das suas capacidades cognitivas (o exercício em

boas condições da sua capacidade de visão), o facto de haver demasiada sorte ambiental

envolvida impede, intuitivamente, que seja creditada como conhecimento. A grande

quantidade de imitações de celeiros disponíveis nesse campo e o facto de haver apenas

um celeiro faz com que a crença pudesse facilmente ter sido falsa. A crença não é pois

epistemicamente segura no sentido que temos vindo a ver, quer dizer, a crença é falsa em

pelo menos alguns dos mundos possíveis relevantes mais próximos do mundo actual, pois

nesses mundos o agente vê uma imitação de celeiro em vez de ver um celeiro. Se Pritchard

estiver correcto acerca desta avaliação, o correcto exercício das capacidades cognitivas por

parte de um agente não é suficiente pa aàesseàage teàte à o he i e toà a i al , o que

faz com que CA falhe.

Uma réplica ao argumento de Pritchard pode passar pela ideia de que Barney é um

afinal um caso de conhecimento, mas o ponto não é de fácil demonstração. Barney é

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claramente um caso de fronteira, em que a fronteira tem contornos pouco definidos. Há,

por um lado, uma intuição forte de que o caso não parece estar suficientemente fora do

núcleo de casos que estaríamos dispostos a admitir como casos paradigmáticos de

conhecimento a ponto de podermos recusar com certeza apodíctica que não é realmente

um caso de conhecimento (Cf. Lycan 2006); mas, por outro lado, há uma intuição forte a

favor da ideia de que as circunstâncias de acidentalidade descritas pelo caso impedem que

seja um caso em que há conhecimento.

Dado que concede que Barney é um caso polémico que opõe diferentes opiniões,

resultantes de também diferentes intuições, não podendo por isso ser apontado como um

caso que apresente uma demonstração conclusiva contra a suficiência de CA, Pritchard

propõe um outro contra-exemplo a esta definição, uma definição que considera ser o

corolário de uma epistemologia forte das virtudes.96 Trata-se do caso Jenny, o qual tem o

seguinte formato:

Jenny— Jenny chega de comboio a uma cidade que não lhe é de todo familiar e, ao descer do comboio, pergunta à primeira pessoa que encontra o caminho para ir para um determinado sítio nessa cidade. A pessoa a quem Jenny perguntou direcções é de facto conhecedora da área e, prestavelmente, dá a Jenny as informações necessárias. Acreditando no que lhe foi dito por essa pessoa, Jenny segue o seu a i hoàat àaoàseuàdesti o. (Pritchard 2008a)97

Alegadamente, o caso Jenny mostra que CA falha porque apesar Jenny adquirir

conhecimento, por ter recebido boas e fiáveis informações, as suas capacidades cognitivas

não desempenham um papel crucial na formação da sua crença. Pritchard concede que

Jenny usa as suas capacidades cognitivas no presente caso, mas não concede que o sucesso

cognitivo da crença de Jenny (ou de Jenny) se fique a dever a esse exercício. Esse sucesso

deve-se, ainda segundo ele, ao facto de o informador ser fiável e providenciar um bom

testemunho a Jenny, que apenas é, por assi àdize ,à oaà e epto a àdessaài fo aç o.

96 Segundo Pritchard, a diferença entre uma epistemologia forte e uma epistemologia fraca das virtudes parece

estar no facto de a primeira impor que exista uma relação causal forte entre o exercício das capacidades cognitivas de um

agente e a sua crença, enquanto segunda propõe apenas que o habitual “porque” na expressão “acredita porque...” seja

apenas de ordem explicativa, mas não necessariamente causal. Os meandros desta discussão não são todavia cruciais para

o presente ponto.

97 O exemplo original é da autoria de Jennifer LAckey.

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Da perspectiva de Pritchard, o caso Jenny mostra que CA é uma definição

demasiado forte, pois é uma definição que exclui casos de sucesso cognitivo, casos que são

presumivelmente casos de conhecimento, apenas porque a exigência do exercício activo

de capacidades cognitivas não é satisfeita.

Se, por outro lado, como quer Pritchard, o caso Barney mostra que CA é uma

definição demasiado fraca, então CA está aparentemente no meio de uma tensão: se for

tornada mais forte, cada vez menos conseguirá dar conta de casos do mesmo tipo do caso

Jenny, mas se for tornada mais fraca cada vez menos conseguirá dar conta de casos do

mesmo tipo do caso Barney. Se Pritchard estiver correcto, afigura-se remota a

possibilidade de CA conseguir dar conta das condições necessárias e suficientes para o

conhecimento.

5. Outras teorias

5.1. Resumo

Nesta secção revisitamos teorias que, em virtude das suas características

peculiares, aparentemente não se encaixam em nenhuma das famílias de teorias que

visitámos até este momento. Focamos em especial duas teorias. A primeira insere-se de

certo modo na linha tradicional de pensamento que priv ilegia a possibilidade de uma

análise do conhecimento, mas supera essa linha ao sugerir uma solução que alegadamente

capta o melhor daquilo que é recomendado por duas epistemologias: a epistemologia

modal e a epistemologia naturalista. Nos antípodas desta concepção, apresentamos a

teoria que inaugura o que parece ser uma nova perspectiva em epistemologia. Trata-se da

teoria segundo a qual o conceito de conhecimento não é analisável.

5.2. Uma epistemologia das virtudes e da segurança

Viu-se que os contra-exemplos à DTC (e a outras definições que se lhes seguiram)

introduzem situações em que o facto de uma crença acertar na verdade se fica a dever a

uma boa dose de acaso. Viu-se igualmente que a principal consequência da presença de

acidentalidade epistémica, se assim se lhe pode chamar, é fazer com que o conhecimento

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seja impossível nessas circunstâncias. Esta consequência é explicitamente reconhecida. Por

exemplo, Lehrer e Paxson dizem:

Talà o oà Ed u dàGettie mostrou, é possível encontrar exemplos em que uma frase/proposição falsa p implica uma proposição [verdadeira] h, justificando S em acreditar em h, de tal forma que, embora S acredite correctamente em h, o facto de acreditar correctamente se fica a dever à sorte [ao acaso]. (Lehrer & Paxson 2002: 465)

Confrontados com esta possibilidade, alguns filósofo s pensam que a melhor forma

de lidar com o problema do acaso epistémico é justamente propor uma

definição/análise/explicitação do conhecimento que conte nha uma ou mais condições que

permitam erradicar esse acaso (ver 4.2.). Segundo essas definições, crenças que acertam

na verdade por mero acaso não podem ter o estatuto de conhecimento. Pritchard é um

dos principais defensores de uma definição do conhecimento que contenha condições que

possam prevenir e excluir a possibilidade de haver sorte epistémica a contaminar o

ambiente no qual uma crença é conhecimento.

U aà fo aàdeàeli i a àaà so teàepist i aàdaà ossaà teo iaàdoà o he i e to—e portanto de evitar os contra-exemplos de Gettier—passa (...) por identificar uma condição epistémica externa que assegure que a crença verdadeira de um agente não possa por ele ser adquirida graças à intervenção da sorte epistémica. Mais especificamente, precisamos de identificar uma condição externa que permita não apenas que as condições epistémicas relevantes sejam satisfeitas mas que assegure também que a crença em questão rastreie a verdade ao longo dos mundos possíveis relevantes mais próximos do mundo actual, isto de modo a garantir que a sorte epist i aà oàsejaà apazàdeài te i . (Pritchard 2005: 151)

Tendo em mente o objectivo de encontrar uma condição anti-sorte epistémica

satisfatória, Pritchard começa por avançar uma definição modal de sorte (simpliciter) ou

de evento resultante do acaso (Lucky Event, LE), usando para esse efeito a já habitual

semântica dos mundos possíveis.

LE—Um evento é o resultado de sorte se e somente se esse evento ocorre no mundo actual mas não ocorre numa ampla classe de mundos possíveis próximos do actual nos quais as condições iniciais relevantes para a ocorrência desse evento essesà u dosàs oàasà es asà ueàasàdoà u doàa tual . (Pritchard 2007)

Depois de colocar LE, Pritchard aplica-a à noção de crença, extraindo a seguinte

definição de crença verdadeira resultante de sorte (Lucky True Belief, LTB):

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LTB—Uma crença verdadeira resulta do acaso se e somente se há uma ampla classe mundos possíveis próximos do mundo actual nos quais S c ontinua a acreditar na proposição-alvo, sendo as condições de base relevantes de formação da crença nesses mundos as mesmas que no mundo actual, e no entanto a crença é falsa nesses u dos. (Ibidem)

Posto isto, Pritchard sugere a seguinte condição anti-sorte (CAS):

Cá“—A crença verdadeira de S não é o resultado de sorte se e somente se não há uma ampla classe de mundos possíveis próximos do actual nos quais S continua a acreditar na proposição-alvo, sendo as condições de base relevantes de formação da crença nesses mundos as mesmas que no mundo actual, e no entanto a crença é falsaà essesà u dos . (Ibidem)

Dois pontos parecem sobressair desta apresentação sequencial de definições. Por

um lado, e tal como o próprio Pritchard sugere, a CAS assemelha-se bastante à condição

de segurança epistémica (CSE) sugerida por Sosa. Na definição de Pritchard, o princípio da

segurança epistémica de uma crença tem originalmente o seguinte formato:

“egu a ça—Um agente S tem uma crença segura numa proposição contingentemente verdadeira p =df: na maior parte dos mundos possíveis mais próximos do mundo actual nos quais S acredita que p, p à e dadei a. (Pritchard 2008b)

Aliás, a duas condições CSE e CAS como que se fundem na mais recente versão do

princípio de segurança (PS) sugerido por Pritchard, um princípio que tem por objectivo

solucionar alguns problemas apontados às primeiras formulações. Numa primeira

formulação,

P“—A crença de S é segura se S a continua a ter na maior parte dos mundos possíveis mais próximos do mundo actual nos quais S form a essa crença da mesma forma que o faz no mundo actual, e se em todos os mundos possíveis muito próximos do mundo actual nos quais S continua a formar a sua crença d a mesma forma que o faz no u doàa tual,àessaà e çaà o ti uaàaàse à e dadei a. (Pritchard 2009: 33-45)

E numa formulação simplificada muito próxima de CA,

PS—Se S sabe que p, então a crença verdadeira de S que p não poderia facilmente ter sido falsa. (Pritchard 2007)

Por outro lado, tal como já havíamos visto, dificilmente o PS consegue estabelecer

uma condição suficiente para o conhecimento. Esta contingência é reconhecida por

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Pritchard (Ibidem), o qual alega que sendo a satisfação do PS suficiente para haver

conhecimento em alguns casos, outros há em que isso não acontece.

O PS não é com efeito isento de crítica. Pritchard (2007) considera e recusa uma

objecção ao princípio da autoria de Christoph Kelp. 98 Este imagina um caso (Working-clock)

em que um agente tem a crença verdadeira de que são 8:22 com base na indicação dada

por um relógio extremamente fiável, embora um relógio que poderia ter sido facilmente

manipulado—com o óbvio intuito de enganar o agente—por um demónio para marcar

8:22. Todavia, uma vez que o demónio sabe que o agente vai formar a crença de que são

8:22 sem que seja necessária a sua intervenção, decide nada fazer para alterar o rumo dos

acontecimentos. O agente acaba pois por acreditar que são 8:22 (sendo 8:22) com base na

indicação fornecida relógio. Kelp afirma que pode ser creditado conhecimento ao agente

neste caso, mas que é um caso no qual o PS não obtém. Não obtém, porque nos mundos

possíveis muito próximos do mundo actual, mundos nos quais o agente forma a crença do

mesmo modo que no mundo actual (simplesmente olhando para o relógio fiável), mas nos

quais o demónio decide intervir para fazer o relógio marcar falsamente 8:22 (quando não

são realmente 8:22), a crença do agente é falsa. No fundo, Kelp sugere que apesar de poder

ter sido facilmente falsa, esta crença é conhecimento. O PS falha, pois reclama que crenças

que poderiam facilmente ter sido falsas não podem ser conhecimento.

Pritchard defende o PS desta objecção de Kelp apelando para a distinção entre um

acto de cognição bem-sucedido e um acto de conhecimento. Para Pritchard, a crença do

agente (no mundo actual) é um acto do primeiro tipo, mas não pode ser considerado um

acto do segundo tipo, uma vez que um acto do segundo tipo exclui a possibilidade de sorte

epistémica (activa ou ambiental), enquanto o primeiro é compatível com essa sorte.

Pritchard avança como exemplo o caso do arqueiro de Sosa. Argumentavelmente, apesar

de exercer a sua competência, e apesar de o tiro ser bem-sucedido, não é possível creditar

esse sucesso à competência do agente. Como tal, defende Pritchard (e Sosa), o tiro não é

bem-sucedido porque competente. Quer dizer, a competência do arqueiro não é a causa

eficiente do sucesso do seu tiro, e portanto dificilmente se pode atribuir ao arqueiro o

mérito desse sucesso. Estabelecendo o paralelo com o caso do agente imaginado por Kelp,

98 Ibidem.

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nas circunstâncias epistémicas adversas em que esse agente se encontra (o demónio está

à espreita e pronto a intervir) dificilmente é atribuível a esse agente o mérito de ter

acertado na hora correcta, isto apesar de esse agente usar os seus atributos cognitivos de

forma competente, de o relógio ser fiável, etc. Segundo Pritchard, parece pois seguir-se

que, na ausência desse mérito por parte do agente de Kelp, não pode ser-lhe creditado

conhecimento, embora lhe possa ser creditado um acto cognitivo bem-sucedido.

Sendo ou não a resposta de Prichard eficaz contra a objecção de Kelp, o certo é que

o primeiro acaba por não aceitar que a satisfação do PS (ou de uma qualquer condição anti-

sorte) é per se suficiente para haver conhecimento. Pritchard recorre a um caso, que

designa por Temp, para marcar a sua posição.

Temp—Temp forma a crença verdadeira de está uma determinada temperatura na sua sala ao olhar para o termómetro que marca correctamente a temperatura ambiente na sua sala. O termómetro sempre foi fiável no passado e sempre marcou a temperatura certa. Contudo, sem que Temp se possa aperceber, o termómetro avariou e só indica a temperatura correcta da sala de cada vez que Temp o consulta porque alguém faz coincidir os valores que o termómetro marca com a temperatura ambiente. (Pritchard 2009)

Este é, alegadamente, um caso em que o agente não pode ter conhecimento acerca

da temperatura na sala, apesar de a sua crença ser segura, no sentido estipulado pelo PS

(Ibidem, nota 16).

Outro caso de uma crença segura, no sentido preconizado pelo CA de Sosa e pelo

PS de Pritchard, e que não parece ser conhecimento, é o caso Alvin (originalmente da

autoria de Plantinga e que alteramos aqui um pouco para melhor compreensão do leitor).

Alvin é alguém que tem uma lesão cerebral que afecta de forma muito negativa as suas

capacidades cognitivas (percepção, memória, capacidade de realizar inferências, etc). Essa

lesão fá-lo crer numa proposição verdadeira no mundo actual e nos mundos possíveis mais

próximos do actual. Sendo assim, a crença de Alvin é epistemicamente segura. Infelizmente

para Alvin e para os defensores do PS e da CSE, o sucesso cognitivo (se assim se pode

chamar) de Alvin sob estas condições não pode ser considerado conhecimento, uma vez

que não se deve ao exercício de capacidades cognitivas (que alvin não tem), e portanto

esse exercício é muito presumivelmente uma condição necessária para que alguém possa

ter conhecimento.

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Se Pritchard estiver correcto, os princípios que sustentam, respectivamente, as

definições de conhecimento originárias da epistemologia naturalizada de Plantinga, Sosa,

etc., e as definições de conhecimento originárias da epistemologia modal de Sosa e do

próprio Pritchard99, não são isoladamente suficientes para dar conta de uma definição do

plausível do conhecimento. Pritchard pensa que é possível superar as insuficiências de

ambas as epistemologias, contando que se retenham as intuições básicas que sustentam

as condições que estão na base dessas epistemologias: a intuição de que o conhecimento

não pode ser crença acidentalmente verdadeira e a intuição de que o conhecimento tem

de algum modo resultar das capacidades cognitivas do agente. Desejando conservar estas

duas intuições, Pritchard propõe a seguinte definição, que irei apelidar de Solução Híbrida

(SH):

SH— S sabe que p se e só se a crença verdadeira e segura de S que p é o produto das capacidades cognitivas relevantes de S (tal que o sucesso cognitivo seguro de S é significativamente atribuível à actividade cognitiva de S) . (Pritchard 2008a)

Pritchard defende que SH dá conta da panóplia de casos que afectam ora a

epistemologia das virtudes cognitivas ora a epistemologia modal. Em acréscimo,

argumenta, dá conta dos casos tipo Gettier, acomodando assim num único local uma

solução compreensiva e eficiente.

Creio que apesar de a SH ir no bom caminho no que respeita ao desiderato de

oferecer uma definição completa do conhecimento, ainda assim não é imune a problemas.

No que se segue proponho o que me parecem ser alguns desses problemas.

Devemos, em primeiro lugar, sugerir identificar o princípio na base da nossa crítica.

Este princípio, sobejamente usado na literatura, atesta algo que nos parece bastante

plausível, mas sobre o qual é necessário lançar luz. O princípio pode ser formulado da

seguinte forma:

99 Note-se que Pritchard é um adepto do chamado projecto analítico, defendendo a possibilidade do conceito de

conhecimento poder ser analisado em conceitos mais primitivos e mais esclarecedores do que esse conceito.

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Princípio da falsificação (PF)—Se é possível divisar um caso de conhecimento que não exija a satisfação de uma condição descrita como necessária por uma definição do conhecimento, então essa definição é falsa.

Considerando o PF e a SH, temos que, por PF, se for possível divisar um caso claro

de conhecimento no qual uma das condições tidas por necessárias em SH é afinal

desnecessária, então a SH é falsa. Apresento o que me parecem ser dois casos de

conhecimento que não exigem a satisfação, à vez, de uma condição estabelecida por SH.

Suponha-se que ao viajar de carro por uma estrada a caminho de Edimburgo, S vê

um sinal indicativo da distância a que está dessa cidad e. Esse sinal indica que falta 20 milhas

para lá chegar e está colocado de facto a 20 milhas. Com base no que vê em circunstâncias

normais, quer dizer, usando as suas capacidades de cognição num ambiente propício a esse

exercício, S forma naturalmente a crença verdadeira de que está a 20 milhas de Edimburgo.

Acontece, porém, que o sinal foi colocado naquele local por alguém que nunca coloca os

sinais no local certo. Invariavelmente, ora os coloca a mais ou a menos de uma milha da

distância correcta. Noutras circunstâncias, pois, o sinal estaria colocado à distância errada,

o que faria com que a crença de S fosse falsa.

Estamos na presença de um caso claro de conhecimento, pois não há

aparentemente forma de negar a forte intuição de que nestas circunstâncias S sabe que

está a 20 milhas de Edimburgo. Porém, este é também um caso no qual a crença não é

segura (tal como estabelecido pelo PS), pois poderia muito facilmente ter sido falsa. Para

tal bastaria que a pessoa que coloca os sinais tivesse seguido o seu modus operandi

habitual. Segue-se que a segurança epistémica, tal como estabelecida pelo PS, não é uma

condição necessária para o conhecimento, e portanto, considerando o PF, a SH é falsa.

Suponha-se que S se encontra numa situação igual à do exemplo anterior, excepto

no que respeita a dois aspectos. A primeira diferença é que o sinal foi colocado por alguém

que cumpre escrupulosamente as regras de colocação de sinais indicativos das distâncias,

e portanto, ceteris paribus, a haver crença por parte de S de que está a 20 milhas de

Edimburgo, será uma crença segura, uma vez que nos mundos possíveis mais próximos do

mundo actual a crença continua a ser verdadeira. A segunda diferença é que, desta feita,

uma luz intensa que incide sobre o sinal impede S de ver a distância correcta por ele

indicada. Tal facto impede S de formar a crença de que está a 20 milhas de Edimburgo com

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base nas suas aptidões cognitivas (a sua boa visão, o seu bom discernimento, etc.). Por

sorte, S vai acompanhado de outra pessoa, uma pessoa que S sabe ser fiável e conhecedora

do local, e que, ao reconhecer o local onde está o sinal, diz a S que está a 20 milhas de

Edimburgo. S forma a crença verdadeira e segura de que está a 20 milhas de Edimburgo

com base nesse testemunho e, muito plausivelmente, fica a saber que está a 20 milhas de

Edimburgo. Contudo, e tal como no caso Jenny, o sucesso cognitivo seguro de S não é

significativamente atribuível à actividade cognitiva de S, e portanto, uma vez mais, uma

condição estabelecida por SH não tem de ser satisfeita para haver conhecimento. Extrai-se

novamente que a SH é falsa.

5.3. A Teoria da Não-analisibilidade

A suposição de que o conceito de conhecimento é susceptível de análise foi

recentemente desafiada por Timothy Williamson (2000).100 Esta é a teoria da não-

analisibilidade do conhecimento (TNA). Ela vem opor-se a uma longa tradição na

epistemologia contemporânea que, como vimos, privilegia a possibilidade de esse conceito

ser analisado em termos conceitos aparentemente mais primitivos e claros. Esta secção é

dedicada a inspeccionar a TNA bem como algumas réplicas.

Williamson oferece pelo menos três argumentos para sustentar a sua rejeição do

projecto analítico, que designa por programa reducionista. O primeiro argumento procura

estabelecer a conclusão de que o conceito de conhecimento e o conceito de crença

verdadeira + X não podem ser o mesmo conceito (independentemente do que possa tomar

o lugar de X na fórmula). O segundo argumento visa estabelecer que qualquer análise do

conceito de conhecimento ou é, ou terá de ser, viciosamente circular. O terceiro

argumento, que se apoia nas conclusões dos dois primeiros e na inspecção do percurso

histórico do problema, procura estabelecer a baixa probabilidade de ser encontrada uma

análise do conceito de conhecimento.

Passamos a inspeccionar o primeiro argumento a favor da TNA. Williamson pensa

que o conhecimento é um estado mental, um estado semelhante, mas não igual, aos

estados mentais factivos de ver, de acreditar (na verdade) ou de recordar. Sendo o

conhecimento um estado mental, segue-se que o conceito de conhecimento é um conceito

100 Vide também Haddock & Millar & Pritchard 2010: capítulo 5, Jackson 2002: 517 e Harman 2002: 420.

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de algo que é mental (Ibidem: 27). Trata-se, pois, para usar a expressão de Williamson, de

um conceito mental. Já o estado de acreditar na verdade, quer dizer, o estado em que um

agente está sempre que acredita numa proposição verdadeira, não é, segundo Williamson,

um estado mental. Não o é porque é um estado constituído por uma componente mental,

o estado mental de acreditar, e uma componente não-mental, a verdade da proposição

que é alvo de crença. O conceito de acreditar na verdade, ou de crença verdadeira, não

pode pois ser um conceito de algo estritamente mental, não podendo ser portanto um

conceito mental tal como o é o conceito de conhecimento. O conceito de acreditar na

verdade é, visto deste prisma, um conceito não-mental. Basicamente, Williamson pensa

que...

álgoà ueàest àe aixadoà oà eioàdeàdoisàestadosà e taisà oàte àdeàse àu àestadoàmental (Ibidem)

Se o conceito de conhecimento é um conceito mental e o conceito de crença

verdadeira é um conceito não-mental, segue-se que não podem ter a mesma extensão.

Uma vez que não há uma equivalência de extensões dos conceitos, pois o que cai sob a

extensão de um conceito é sempre diferente do que cai sob a extensão do outro, então

não é expectável encontrar satisfatória uma análise do conhecimento (Ibidem: 30).

Considere-se agora novamente a fórmula standard de uma análise do conceito de

conhecimento:

Conhecimento é crença verdadeira + X

Co oà i osà so eja e teà a i a,à X à podeà se à su stituídoà po à diversas

condições/propriedades justificação (deontológica, infal ível, evidencial, etc,), a da

fiabilidade (genérica, de processos, da justificação, etc), a do princípio de segurança

epistémica, a da aptidão de uma crença, a da garantia plantingiana, e por aí em diante. O

leque de oferta é vasto e diversificado (como vimos também, conjuntos de condições

podem tomar o lugar de X). Agora, se o argumento de Williamson estiver em ordem, é

indiferente queà o dições/p op iedadesàto a àoàluga àdeà X à u aà ual ue àte tati aà

de análise. É indiferente porque qualquer que seja a condição/propriedade que tome o

lugar de X nessa análise, a extensão do conceito no analisandum e a extensão do conceito

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no analisans ja aisàpode oàse àe ui ale tes.àLogo,à ual ue àfó ulaà fe hada à ueàte haà

por base a fórmula standard a e ta àse àfalsa.

Quassim Cassam (2009) critica activamente este argumento de Williamson, ao qual

se refere como o argumento dos dois conceitos distintos . A sua crítica bifurca-se. Cassam

focaliza-se no problema do conceito, por um lado, e no problema do estado, por outro.

Quanto ao problema do conceito, a crítica de Cassam desenvolve-se a partir de um

paralelo que estabelece entre o conceito de conhecer e o conceito de solteiro. Suponha-se

que o conceito conhecer é do mesmo tipo que o conceito solteiro. Suponha-se também

que procedemos para uma análise do conceito solteiro usando em conjunção os conceitos

casado e o conceito homem. Temos então a seguinte análise:

Um solteiro é um homem não-casado.

Cassam alega que se a avaliação que Williamson faz acerca da impossibilidade de

se analisar o conceito de conhecimento estiver correcta, então análises como um solteiro

é um homem não-casado também não podem obter. Não podem, porque o conceito

marital solteiro não pode ser conceptualmente analisado usando uma conjunção de

conceitos que contém como componentes um conceito pertencente à classe dos conceitos

maritais, (não)casado, e um conceito que não pertence a essa classe, homem.

O paralelo estabelecido por Cassam visa mostrar que se não estamos preparados

para rejeitar análises deste género, análises que se apresentam como bastante intuitivas,

com base na ideia de que um conceito, como o conceito de solteiro, não pode ser analisado

em componentes que pertencem a classes de coisas diferentes (casado e homem), então

também não deveríamos rejeitar a possibilidade de uma análise do conceito de

conhecimento em termos de componentes que pertencem a classes de coisas diferentes

(a classe das coisas mentais: crença; e a classe de coisas não-mentais: verdade, justificação,

etc). Dado que Cassam pensa que o primeiro argumento de Williamson não exclui à partida

análises como um solteiro é um homem não casado, pensa também que esse argumento

não exclui a possibilidade de uma análise como o conheci mento é crença verdadeira + X.

Apesar de o esforço de Cassam ser meritório, devemos questionar se é de facto

bem-sucedido. O problema é que talvez seja possível aceitar-se a análise do conceito

solteiro sem ter de se aceitar simultaneamente a análise do conceito conhecer. A primeira

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análise aparece na forma de uma proposição analítica, a qual é verdadeira apenas à custa

do significado dos seus constituintes, estabelecendo também uma necessidade

conceptual.101 Já a segunda análise não parece estabelecer nenhuma das anteriores. Com

efeito,àaà e dadeàdaàp oposiç oà oà o he i e toà à e çaà e dadei a +àX à e à ueà aisà

u aà ezà X àpodeà to a à iosà alo es à oàapa e taàpode à se àesta ele idaà ape asà à

custa dos termos envolvidos nessa proposição. Por conseguinte, a proposição não pode ser

analítica. E, por outro lado, não se vê como poderia ser essa proposição uma necessidade

o eptual,à oà es oàse tidoàe à ueàs oà e essidadesà o eptuais,àpo àexe plo,à u à

solteiro é um homem não- asado àouà aà guaà àH2O . Se esta avaliação for correcta, o

paralelo acima descrito e, logo, a objecção de Cassam ao primeiro argumento de

Williamson correm o perigo de se desmoronar.

Damos agora a nossa atenção à perspectiva de Cassam sobre o problema do

estado. O peso da sua crítica neste particular recai sobre a pretensão de Williamson

segundo a qual o conhecimento não é um híbrido metafísi co. Cassam explora a intuição de

que se o conhecimento é uma atitude factiva, no sentido descrito por Williamson, então

essa atitude terá de ser mais do que um estado mental, uma vez que inclui também uma

componente não-mental. Cassam não apresenta porém razões substanciais para suportar

esta intuição. A sua crítica incide sobre a postura teórica de Williamson, reclamando que

não é a mais correcta, ao assumir a posição por defeito, isto é, ao assumir que o

conhecimento é de facto um estado mental com as características que alega ter, e que para

prová-lo basta mostrar que as posições contrárias estão de alguma forma equivocadas. Tal

como admitido pelo próprio Cassam, não cremos que isto seja por si só suficiente para

rejeitarmos perspectiva de Williamson sobre o problema do estado, a qual merece um

pouco mais de inspecção.

Segundo Williamson (Ibidem: 49-51), o internalista (genérico)102 assenta a sua

pretensão de que o conhecimento é factorizável, em componentes mentais e não-mentais,

porque não é um estado mental. Para se compreender o argumento que Williamson atribui

101 Aliás, o próprio Williamson refere-se ao conceito de solteiro como uma excepção à habitual dificuldade em se

encontrar um conceito analisável, não como um protótipo dessa possibilidade. Cf. Williamson (2000: 31).

102 O internalismo referido aqui é uma teoria sobre estados mentais, não a teoria epistemológica sobre a origem da

justificação (ou do conhecimento) que visitámos no primeiro interlúdio.

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137

ao internalista, há que rever sucintamente a maquinaria conceptual que o primeiro avança

para circunscrever estados e condições.

Uma condição restrita (narrow) é uma condição tal que se essa condição obtém no

caso a em que um agente está determinada configuração física interna, então obtém no

caso b em que um agente está exactamente na mesma configuração física. Por exemplo,

seà aà o diç oà C à ...sa eà ueà p... obtém no caso a para S quando este está numa

determinada configuração física, então C também obtém no caso b em que um agente está

exactamente na mesma condição física que S está em a. Nesta acepção, condições restritas

são condições supervenientes em relação ao estado físico interno dos agentes (Ibidem: 51

ss).103 C será uma condição estendida (broad) se não for restrita.

Uma condição ambiental (environmental) é uma condição tal que se essa condição

obtém no caso a em que o ambiente tem uma determinada configuração (física, externa

relativamente ao agente e à sua mente), então também obtém no caso b em que o

ambiente está na exactamente mesma configuração. Nesta acepção, condições ambientais

são condições supervenientes em relação ao estado físico do ambiente.

A condição C é uma condição compósita (composite) se, e só se, é a combinação de

uma condição restrita, interna, e de uma condição ambiental, externa. A condição C é

primária (prime) se, e só se, não é compósita (Ibidem: 65-67).104

Às condições restritas, estendidas, compósitas e primárias correspondem estados,

estados que adoptam a mesma designação que essas condições.

Agora, Williamson chama internalismo à teoria segundo a qual estados mentais são

estados/condições restritos, quer dizer, estados mentais são estados supervenientes

apenas em relação ao estado físico interno de um agente. Tendo em conta esta

interpretação, o internalismo recusa que o conhecimento seja um estado/condição

mental, uma vez que recusa que seja um estado/condição restrito.

Na base desta recusa está a ideia, incontroversa, também segundo Williamson

(Ibidem: 55), de que é possível divisar casos em que o agente está exactamente na mesma

configuração física em a e b, mas C obtém em a e não em b. Esses são casos nos quais o

103 Casos são, neste sentido, mundos possíveis centrados no agente.

104. Para uma caracterização alternativa de condição primária, Cf. Brueckner (2002: 97-202).

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138

estado interno dos agentes é o mesmo, mas em que o agente no caso a sabe que p e o

agente no caso b não sabe que p. Por exemplo, no caso a, o agente está num determinado

estado físico interno e sabe que está um ecrã de computador à sua frente porque (além de

ter o seu sistema cognitivo em perfeitas condições de funcionamento) vê um ecrã de

computador à sua frente, o qual é a origem da sua percepção. No caso b, o agente está

exactamente no mesmo estado físico que o agente em a mas, vítima de uma ilusão massiva

(induzida por cientista, máquina, génio, etc.) não vê um ecrã à sua frente, simplesmente

porque não existe tal ecrã, apenas a ilusão de que existe. Por conseguinte, S sabe que está

um ecrã à sua frente no caso a mas não no caso b. Conclui-se então que C, tal como definida

acima, terá de ser uma condição estendida, uma vez que não é superveniente apenas em

relação ao estado físico interno de um agente.

Williamson pensa contudo que a pretensão internalista segundo a qual o estado

de conhecimento não é um estado mental, sendo por isso factorizável em factores mentais

e extra-mentais, está equivocada. Com efeito, Williamson argumenta que o conhecimento

é, simultaneamente, um estado mental, um estado/condição estendido e um

estado/condição primário. Uma revisão dos seus argumentos a favor desta perspectiva não

cai porém no âmbito deste trabalho. Desejamos apenas salientar que parece existir alguma

tensão entre a ideia de que o conhecimento é um estado/condição estendido e a ideia de

que é um estado/condição primário.

Com efeito, parece-nos, a ideia de um estado condição/estendido acomoda prima

facie melhor a ideia de que esse estado/condição é um estado/condição compósito do que

propriamente a ideia de que é um estado/condição primário. Dizemos isto porque não

conseguimos vislumbrar uma maneira consistente de fugir ao problema de que se C é uma

condição estendida, dependendo não apenas do estado físico do agente, mas também de

factores externos a esse estado físico, então também depende de algum modo do

ambiente. A estar correcta, esta perspectiva obriga a que C seja uma condição compósita

e não primária. Se o for, então o estado/condição C é decomponível/factorizável em

elementos internos e externos. Por conseguinte, supondo ainda que esse é o caso, o

conceito de conhecimento poderia ser analisado em conceitos (relativos a componentes)

internos e externos do estado de conhecimento.

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139

Colocando-nos por momentos na pele do defensor do programa analítico (da qual

iremos sair no final da secção), podemos talvez retomar a estratégia de mostrar que há

uma incongruência na ideia de Williamson segundo a qual o conhecimento é um estado

mental puro, no sentido em que não é factorizável em componentes mentais e extra-

mentais. Apresentamos de seguida um gráfico (vide Figura 1) que esquematiza as relações

conceptuais e metafísicas definidas por Williamson que temos vindo a referir até este

momento.

Figura 1

Note-se que a principal razão que leva Williamson (Ibidem: 27) a propor que o

estado de crença verdadeira não é um estado mental é o alegado facto de esse estado não

ser puramente mental, uma vez que depende de um elemento não-mental: a condição da

verdade. Este diagnóstico é todavia rejeitado no que respeita ao estado do conhecimento

e ao estado de crença simpliciter, pois, alegadamente, esses estados não admitem

elementos extra-mentais.

Este diagnóstico parece contudo ser contra-intuitivo. Uma forma rude mas

porventura eficiente de avaliar o conflito de intuições é a seguinte. Suponha-se que...

(1) Se um estado é puramente mental, então esse estado não inclui elementos extra-mentais.

(2) O estado de crença verdadeira inclui elementos extra-mentais.

Portanto, por 1, 2 e Modus Tollens, segue-seà ue…à

Orientação

Metafísica

Conceptual

Conhecimento

Estado mental

Conceito mental

Crença verdadeira

Estado não-mental

Conceito não-mental

Crença simpliciter

Estado mental

Conceito mental

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140

(3) O estado de crença verdadeira não é um estado puramente mental.

Esta interpretação parece acomodar a perspectiva de Williamson. Suponha-se

então agora que...

(4) O estado de conhecer é um estado puramente mental.

Por 1, 4 e Modus Ponens, segue-se que

(5) O estado de conhecer não inclui elementos extra-mentais.

Contudo, também para Williamson,

(6) O estado de conhecer é uma atitude proposicional factiva.

Ora,

(7) Atitudes proposicionais factivas incluem elementos extra-mentais: uma proposição—supondo que proposições são entidades extra-mentais—e a verdade de uma proposição.

Portanto, por 4, 5, 6, 7 e introdução da conjunção obtém-se que...

(8) O estado de conhecer é um estado puramente mental (por 4) e uma atitude proposicional factiva (por 6), não incluindo (por 5) e incluindo (por 7) elementos extra-mentais.

Estamos a pensar em 8 quando nos colocamos na pele do defensor do projecto

analítico e sugerimos que há um conflito de intuições na posição segundo a qual o

estado/condição conhecimento é simultaneamente compósito e primário. Talvez o

defensor do projecto analítico não tenha aqui suficiente s bases para reclamar que existe

uma contradição formal, mas talvez tenha bases para sugerir que há intuições

contraditórias a operar entre 1 e 8.

Assumindo contudo, algo ambiciosamente, é certo, que o defensor do projecto

analítico tem uma reductio ad absurdum entre mãos, segue-se que pelo menos uma

premissa de 1 a 7 tem de ser falsa. Ora, uma vez que 6 e 7 são premissas relativamente

pacíficas, e uma vez que 2 e 3 não parecem ser diretamente influentes para o

estabelecimento de 8, segue-se que 1, 4 e 5 se apresentam como as melhores candidatas

a serem falsas. Agora, não parece ser preciso determinar com exactidão qual de entre estas

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premissas é falsa (a haver apenas uma falsa) para se compreender que, seja ela qual for,

há um problema com a ideia de que o conhecimento é um estado puramente mental, no

sentido em que é um estado que não inclui condições extra-mentais.

Se a premissa falsa for a 1, então não se seguirá do facto de um estado ser

puramente mental que esse estado não inclua elementos extra-mentais. Se assim for, não

é por incluir elementos extra-mentais que o conhecimento deixará de ser um estado

puramente mental. Mas, no reverso da medalha, também não será por incluir elementos

extra-mentais que o estado de acreditar com verdade deixará de ser um estado puramente

mental. E se ambos forem estados puramente mentais, menor será a probabilidade de

existir uma discrepância entre as extensões dos conceitos, o que abona a favor da hipótese

de que esse conceito pode ser analisado à guisa tradicional.

No caso de 4 ou 5 serem falsas, o defensor do projecto analítico poderá reclamar

que por o conhecimento não ser um estado puramente mental, 4, ou por incluir condições

extra-mentais, 5, não fica por isso bloqueada a possibi lidade de análise e respectiva

decomposição do seu conceito em condições mentais e extra-mentais.

Nada parece haver intuitivamente de errado com a hipótese segundo a qual

estados mentais incluem elementos não-mentais. O esquema mais intuitivo para o

defensor do projecto analítico parece portanto ser o descrito pela seguinte figura.

Figura 2

Note-se que mesmo o estado de crença simpliciter, a haver um tal estado, parece

admitir elementos extra-mentais, e.g., proposições. Isto contribui para a plausibilidade da

Orientação

Metafísica

Agregação

Conceptual

Conhecimento

Estado mental

elementos extra-mentais

Conceito não-puramente

mental

Crença verdadeira

Estado mental

elementos extra-mentais

Conceito não-puramente

mental

Crença simpliciter

Estado mental

elementos extra-mentais

Conceito não-puramente

mental

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142

ideia de que uma larga maioria, ou mesmo todas as atitudes proposicionais, factivas ou

não, incluem componentes mentais e extra-mentais. Esta não é contudo uma hipótese que

possamos demonstrar aqui. Entregamo-la por isso desde já ao defensor do projecto

analítico, para fazer dela o que achar por bem.

Mesmo supondo que o defensor do projecto analítico consegue de algum modo

mitigar a força do primeiro argumento de Williamson a favor da TNA, isso não significa que

o assunto esteja resolvido. Com efeito, o segundo argumento de Williamson contra a

possibilidade de análise coloca problemas igualmente complicados para o projecto de

análise do conceito de conhecimento. Este segundo argumento visa estabelecer que

qualquer análise do conceito de conhecimento é viciosamente circular e, por conseguinte,

desinteressante.

Viu-se que Williamson aceita que o conhecimento que p implica que o agente tenha

uma crença verdadeira que p. O conhecimento implica crença verdadeira uma vez que, tal

como sugerido pelo próprio Williamson ( Ibidem: 34), é a mais inclusiva das atitudes

proposicionais factivas.105 Apesar da sua relutância para com o projecto analítico, também

Williamson formula (Ibidem: 34) classicamente a implicação do conhecimento para a

crença verdadeira: se S sabe que p, então S tem de ter uma crença que p e tem de ser

verdade que p (Ibidem: 8-10 e 41-44). Parece pois, uma vez mais, que uma decomposição

informativa do conceito de conhecimento em é de algum modo possível. Williamson

discorda contudo deste diagnóstico, pois pensa que qualquer análise do conceito de

o he i e toà usa doà aà fó ulaà o he i e toà à e çaà e dadei aà +àX à a a aàpo àdeà

alguma forma conter o próprio conceito de conhecimento no analisans, sendo portanto

viciosamente circular. O argumento procede por analogia, eis a passagem relevante:

“eà Gà [aà e ça]à à e ess iaà pa aà Fà [oà o he i e to],à oà te à deà ha e à u aàcondição suplementar H [e.g., a justificação], definível independentemente de F, tal que a conjunção de G e H é necessária e suficiente para F. Ser colorido, por exemplo, é necessário para ser vermelho, mas se procuramos uma outra condição que em conjunção com ser colorido seja necessária e suficiente para ser vermelho, apenas

105 Trata-se alegadamente da mais inclusiva das atitudes factivas porque basta ter uma qualquer atitude factiva, por

exemplo, ver que p ou recordar que p, para a ter.

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143

e o t a osà o diçõesà defi í eisà e à te osà deà e elho :à se à e elho,à se àa e elhadoàseà olo ido. (Ibidem: 32)

Para facilitar a sua compreensão, a analogia pode ser esquematizada do seguinte

modo:

Figura 3

Figura 4

O esquema revela que o analisans de alguma maneira inclui e contém o analisadum

em ambos os casos, e há portanto, também em ambos os casos, uma circularidade na

análise. Williamson pensa que esta circularidade impede que as análises sejam

informativas e, por conseguinte, impede que sejam interessantes.106

106 Williamson descarta também a possibilidade de uma concepção disjuntiva de crença em termos de

conhecimento e opinião. Segundo ele, não podemos usar os termos “opinião” e “conhecimento” sem estamos a usar

simultaneamente o conceito de crença. Por consequência, também aqui existe circularidade explicativa. (Cf. 2000: 44-45).

Analisandum

Conhecimento

Analisans

Crença

Verdade

Justificação

Conhecimento

Analisandum

Vermelho

Analisans

Colorido

Avermelhado

Vermelho

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144

Cassam não concorda com este resultado. Segundo ele (2009), esta analogia não

obtém porque os analisanda em cada extremo da analogia, respectivamente, o conceito

de conhecimento e o conceito vermelho, pertencem a diferentes classes de conceitos.

Cassam vale-se da clássica distinção lockeana entre ideias simples e complexas para

estabelecer a sua posição. Para ele, os conceitos de vermelho e de conhecimento assentam

em diferentes tipos de ideias, tendo por isso diferentes estruturas, propriedades e

comportamentos sob análise. Enquanto ao conceito de vermelho corresponde, por assim

dizer, uma ideia simples (grosso modo, uma ideia adquirida com base apenas na sensação),

ao conceito de conhecimento corresponde uma ideia complexa (grosso modo, uma ideia

adquirida não apenas com base na sensação mas também na reflexão). Daqui segue-se

alegadamente que, por um lado, o conceito de vermelho não é susceptível de análise por

ser, digamos assim, um conceito simples, e, por outro lado, o conceito conhecimento é

susceptível de análise, uma vez que é, digamos assim também, um conceito complexo.

Mais uma vez, a estratégia de Cassam pode contudo não ser a melhor. Com efeito,

apesar de aparentemente mostrar que esta analogia não colhe, uma vez que emprega

conceitos susceptíveis de serem identificados com ideias simples e complexas, é difícil

perceber se é possível aplicá-la a outras analogias sugeridas por Williamson que empregam

apenas conceitos susceptíveis de serem identificados com ideias complexas, como por

exemplo o conceito de paternidade. Isto parece inviabilizar o sucesso da objecção.

Talvez as dificuldades levantadas pelo segundo argumento não sejam

absolutamente fatais para o projecto analítico. O defensor deste projecto pode talvez

tentar negar que todas as tentativas de análise do conceito de conhecimento sejam

circulares. Alternativamente, pode também tentar defender que, sendo essas tentativas

de análise circulares, pelo menos algumas (e.g., Sosa 1974: 394) são virtuosamente

circulares, na medida em que são suficientemente informativas ao ponto de poderem ser

consideradas interessantes do ponto de vista filosófico.

Uma forma que o defensor do projecto analítico tem de sustentar qualquer um

destes pontos é procedendo por exemplos. Se ele conseguir apresentar pelo menos um

exemplo de uma análise não-circular e informativa, então terá mostrado que algo está

menos bem com a acusação de circularidade viciosa feita por Williamson. E se conseguir

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145

apresentar pelo menos um exemplo de uma análise circular mas informativa, então terá

mostrado que há análises circulares do conceito de conhecimento que podem ser

interessantes.107 O que vamos fazer de seguida é pormo-nos condicionalmente na pele do

defensor do projecto analítico, tentando apoiar o melhor possível o seu ponto.

A teoria causal de Goldman apresenta o que parece ser uma análise não-circular e

informativa do conceito de conhecimento (vide acima secção 2.3.1.) Parece que essa teoria

apresenta uma análise informativa uma vez que é difícil aceitar que o conceito de

conhecimento esteja contido no seguinte analisans:

... à àoà asoà ueàp, e a crença de S que p está numa relação causal apropriada com o facto descrito por p

O conceito de conhecimento não está aparentemente incluído na noção de

verdade, pois pode ser verdade que p sem que se saiba que p, o que, para usar uma

et fo a,àti aàoà o eitoàdeà o he i e toàdaà esfe a àdoà o eitoàdeà e dade.àPo ta to,à

o conceito de conhecimento não está incluído, por assim dizer, na condição ´é o caso que

p`. Por outro lado, não se vislumbra que papel desempenha o conceito de conhecimento

oà i te io àdaà o diç oà´aà e çaàdeà“à ueàp está numa relação causal apropriada com o

facto descrito por p`. Nada há na condição que seja eminentemente do foro epistémico ou

que, directa ou indiretamente, remeta para o conceito de conhecimento. Portanto,

estamos aparentemente na presença de uma análise do conceito de conhecimento que

não contém o analisandum no analisans. Para ajudar, a análise é claramente informativa,

pois introduz uma condição necessária para todos ou quase todos os casos que estaríamos

dispostos a rotular como casos de conhecimento. Se assim for, esta proposta constitui-se

plausivelmente como um contra-exemplo à pretensão de que não há análises

simultaneamente não-circulares, informativas, e por isso interessantes, do conceito de

conhecimento.

Há, contudo, um problema que bloqueia de imediato esta pretensão. É que,

informativa ou não, a proposta falha em fornecer as condições suficientes para o

107 Assumo pois sem discussão prévia, embora também condicionalmente, que o que faz a diferença entre um

círculo explicativo vicioso e um círculo explicativo virtuoso é o facto de este último ser informativo, enquanto o primeiro

não.

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146

conhecimento e, por conseguinte, não se trata de uma análise. A fortiori, uma proposta

que não é uma análise não pode ser uma análise informativa, isto independentemente de

essa proposta ser de alguma forma informativa no que concerne a algumas condições

necessárias para haver conhecimento. O defensor do projecto analítico não pode pois

seguir por este trilho.

Williamson antecipa a tentativa de salvar o projecto analítico recorrendo a

propostas que são aproximações sofisticadas a uma análise do conceito de conhecimento .

Também esta possibilidade é por ele rejeitada. O seu ponto (Ibidem: 4 passim) é

justamente que pode haver muitas propostas suficientemente rebuscadas ao ponto de

estarem muito próximas de serem uma análise, sem no entanto haver realmente uma que

o seja.108 Esta é uma hipótese que, a ser correcta, remete imediatamente o projecto

analítico para o arquivo morto.

Uma outra forma de encarar o problema é supor que há várias formas de elucidar

o conceito e o fenómeno do conhecimento em função do que é circunstancialmente

necessário e suficiente para haver conhecimento. Com efeito, aceita-se geralmente que

diversas pseudo-análises, quer dizer, tentativas de análise que foram sendo falsificadas e

foram tombando quando passadas pelo crivo de contra-exemplos, lançam luz sobre, pelo

menos, algumas condições necessárias para haver conhecimento. Essas elucidações,

vamos chamar-lhes assim, embora não fossem análises, seriam dessa forma propostas

interessantes do ponto de vista filosófico, pois seriam de algum modo informativas. Esta é

uma via que desejamos explorar na segunda parte deste trabalho.

Note-se que, não sendo uma análise, a própria elucidação que Williamson dá do

conceito de conhecimento também usa conceitos (Cf. Goldman 2009). Por exemplo, o

conceito de estado, o conceito de atitude, o conceito de proposição, o conceito de

factividade, o conceito inclusividade, etc. Apesar de rejeitar o projecto analítico,

Williamson mantém aparentemente o desiderato de esclarecer o conceito de

conhecimento usando conceitos mais primitivos (ou tão primitivos), mais claros (ou tão

claros) e mais informativos (ou tão informativos) do que esse conceito.

108 Principalmente a analogia entre círculos e triângulos, por um lado, e o conceito de conhecimento e análises do

conceito de conhecimento, por outro.

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Dito isto, voltamo-nos agora para a segunda hipótese que propusemos estar ao

alcance do defensor do projecto analítico. Trata-se da hipótese segundo a qual há análises

circulares mas informativas do conceito de conhecimento. O defensor do projecto analítico

pode talvez apontar a análise do conhecimento de Pritchard como um caso que confirma

esta hipótese. Recordando a referida análise, temos que...

Solução Híbrida (SH)—S sabe que p se e só se a crença verdadeira e segura de S que p é o produto das capacidades cognitivas relevantes de S (tal que o sucesso cognitivo seguro de S é significativamente atribuível à actividade cognitiva de S)

Sob inspecção, é crível que o conceito de conhecimento esteja de algum modo

incluído no analisans desta tentativa de análise. Note-se que esse conceito parece

desempenhar um papel importante na formulação do princípio de segurança que está na

base da condição de segurança contida na análise. Recordando o PS:

PS—Se S sabe que p, então a crença verdadeira de S que p não poderia facilmente ter sido falsa. (vide acima secção 5).

Éà otó ioà ueàaà o diç oà e çaà e dadei aàeà segura de S que p” em SH assenta

no PS, sendo também evidente que o conceito de conhecimento está de algum modo

previamente incluído do PS. Presumivelmente, pois, a tentativa de análise na base da SH é

circular.109 Segue-se todavia daqui que o analisans sugerido por Pritchard não acrescenta

qualquer informação relevante acerca do analisandum? Não vemos como. O analisans usa

de facto o conceito (ou a noção) de conhecimento, mas ao fazê-lo consegue sem dúvida

acrescentar informação relevante, as noções de segurança e de virtude epistémica, noções

que servem para lançar luz sobre o conceito e o fenómeno do conhecimento. Neste

sentido, a SH não apresenta um círculo vicioso mas sim de um círculo virtuoso. Pode ser

alegado nesta base que a tentativa de análise é, neste sentido, não só uma análise, como

uma análise interessante.

Mas, mais uma vez, supondo, como supusemos acima (secção 5.2.) que a SH é falsa,

então não pode ser uma análise, pois a tentativa de análise que lhe subjaz não é bem-

sucedida. Sendo falsas, tentativas de análise não são realmente análises, por mais

109 O mesmo parece aplicar-se à outra parte da SH que preconiza que o conhecimento tem de ser o resultado de

virtudes cognitivas. Esta última expressão parece já pressupor o conceito de conhecimento.

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148

informativas que possam ser. Aos olhos do crítico do projecto analítico, essas tentativas

constituem-se, quanto muito, como decomposições imprecisas, incompletas, falsas, ou

todas as anteriores, do conceito de conhecimento. Segundo esta exigência imposta pela

a epç oà o e io alà deà a liseà o eptual ,à oà seà e o t aà dispo í elà ual ue à

análise do conceito de conhecimento, porquanto todas decomposições (as putativas

análises) sugeridas até este momento são falsas.110

Tanto quanto podemos perceber, há duas formas de o defensor do projecto

analítico responder a esta objecção. A primeira é contrariar a acepção convencional de

análise acima referida. A estratégia passaria pois por arregimentar forças contra essa

acepção e argumentar a favor de uma acepção mais fraca deà a lise à ueà pudesseà

a o oda àaà i tuiç oàa alíti a àdoàdefe so àdoàp oje toàa alíti o.àáà segu daà forma de

responder passa por contornar o problema, concedendo ao crítico do projecto analít ico o

ponto de que estas tentativas de análise não são realmente análises, mas mostrando que,

apesar de incompletas e imprecisas, podem ser utilizadas para lançar luz sobre o conceito

de conhecimento. Esta segunda resposta tem a vantagem de não ir contra o sentido

t adi io alàdeà a lise ,à asà a egaàoàó usàdeà ost a àe à ueà edidaàs oàpe ti e tesàeà

interessantes as elucidações que não são análises.

Centramo-nos agora no terceiro argumento que Williamson levanta contra o

projecto analítico. Basicamente, o argumento usa as conclusões dos dois primeiros

argumentos como premissas, às quais acrescenta uma premissa de carácter histórico, a

constatação de que nenhuma tentativa de análise foi, até à data, bem-sucedida.

Não iremos medir forças com este argumento. Tal como Goldman (2009) et al, não

cremos que a conjunção dos três argumentos seja de per se suficiente para se poder

p o la a à oà fi à daà episte ologiaà doà a tiga e te à o oà lheà ha aàGold a ,à u aà

epistemologia que assenta ou no projecto analítico ou nas intuições que lhe subjazem.

Noutra frente, Lycan (2006) pensa que o Problema de Gettier continua a necessitar

de uma resposta mesmo que não seja possível encontrar uma análise para o

conhecimento. O ponto de Lycan é o de que há que explicar por que razão inúmeros casos

de crença verdadeira justificada são (consensualmente) casos de conhecimento e outros

110 Devo o esclarecimento deste ponto ao Professor João Branquinho.

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não o são. No nosso entender, Lycan chama a atenção para um importante ponto. Esse

ponto é o de que a DTC apresenta as condições necessárias e suficientes para múltiplos

asosà deà “à sa eà ueà p ,à e o aà oà pa aà todas. A questão relevante que parece daí

resultar é: o que faz com que essas condições sejam suficientes para esses casos e não para

outros?

A resposta de Williamson (2000: 184 ss) para este problema é bem conhecida. Para

ele, casos de crença verdadeira justificada que são conhecimento são todos aqueles casos

em que a justificação advém do facto de o agente ter suficiente evidência, sendo que essa

evidência só pode ser conhecimento. Assim, o conceito de crença verdadeira justificada

não é conceptualmente anterior ao conceito de conhecimento, mas sim o contrário. É este

que explicita aquele, e não, como era tradicionalmente suposto, aquele que explicita este.

Claro que, ao apresentar esta concepção, Williamson compromete-se de alguma forma

com a ideia de que várias condições têm de ser satisfeitas para que um agente tenha

evidência, nomeadamente que a evidência confira à crença um elevado grau de

probabilidade de ser verdadeira, que seja fiável, etc. Se considerarmos que a estas e outras

condições correspondem conceitos, diríamos que a concepção de Williamson incorre no

risco de cair na armadilha que o seu autor montou para o projecto de análise.

Pensamos que há pelo menos três formas de defender a intuição que sustenta o

projecto analítico. A primeira, e talvez mais eficaz, passa muito provavelmente por

submeter uma análise bem-sucedida do conceito de conhecimento. A segunda passa por

mostrar que os argumentos de Williamson não colhem. A terceira passa por mostrar que

é possível usar as intuições que subjazem ao projecto analítico para elucidar o conceito e

o fenómeno do conhecimento, sem no entanto submeter uma análise. Tentaremos esta

terceira via na segunda parte do presente trabalho.

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SEGUNDA PARTE

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151

Resumo da segunda parte

O objectivo da segunda parte do trabalho é ensaiar, enquanto hipótese de trabalho

e tanto quanto para nós possível, uma elucidação das condições necessárias e suficientes

para ocorrer um estado maximamente positivo do ponto de vista epistémico, o qual

tentaremos identificar com o estado de conhecimento proposicional.

6. Rumo a um modelo da garantia epistémica

6.1. Uma hipótese de trabalho

A primeira parte do trabalho revelou uma amostra significativa de tentativas

falhadas de análise do conceito de conhecimento (proposicional). Tal amostra levou-nos à

conclusão de que encontrar uma análise deste conceito (supondo que é possível encontrar

essa análise) não é de todo uma tarefa fácil. Deixando desde já espaço para quem desejar

prosseguir o projecto analítico, vamos por ora pô-lo de parte. Não desejamos pois

apresentar uma análise do conhecimento nesta segunda parte do nosso trabalho. Mas isso

não é porém impeditivo de apresentarmos uma elucidação do fenómeno. A elucidação que

propomos como hipótese de trabalho e que iremos defender é a seguinte:

CON—Um estado X de S é conhecimento de que p se S tem uma crença que p excelente do ponto de vista epistémico.

Note-se que não submetemos CON como uma análise ou uma definição. A

elucidação não é uma análise, pois, se o fosse, o conceito no definiendum não ocorreria,

como ocorre, no definiens. Com efeito, o conceito de conhecimento está incluído na

exp ess oà epist i o ,àu aà ezà ueàaàexp ess oà epistêmê à ἐπιστήμη), quase sempre

t aduzidaàpa aà sa e àouà o he i e to ,àest à aào ige àdesseà o eito (Cf. Santos 2005,

nota 6, e Parry 2008). Não obstante, tentaremos mostrar que a elucidação, tal como a

concebemos, é informativa, o que, a ser o caso, lhe confere algum valor filosófico.

Feito este reparo, importa- osà ago aà expli ita à aà oç oàdeà e çaà ex ele teàdoà

po toàdeà istaàepist i o .àáà ossaàp opostaàdeàelu idaç o é a seguinte:

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152

EXC—Uma crença que p é excelente do ponto de vista epistémico se for um estado epistémico maximamente positivo.111

Esta explicitação também não pretende ser uma análise, exactamente pelas

mesmas razões que aduzimos para CON. Mas, mais uma vez, pensamos ser possível usar a

noção no explanans para lançar luz sobre a noção no explanandum, sendo por isso a

elucidação informativa e, por conseguinte, filosoficamente interessante.

Importa-nos pois agora esclarecer a noção de estado epistémico maximamente

positivo (doravante abreviado para EEMP). Pensamos que um estado de crença que p é

maximamente positivo do ponto de vista epistémico se...

EEMP

i) Há um agente S, tal que S tem uma atitude de aceitação, i.e., de crença, da proposição p;

ii) A crença que p de S descrita em i está epistemicamente garantida;

iii) A garantia, tal como descrita em ii, faz com que a crença de S que p descrita em i seja apropriadamente verdadeira e (ultima facie) infalsificável.

Mais uma vez chamamos a atenção para o facto de, pelos mesmos motivos

apontados para CON e EXC, não oferecermos EEMP como uma análise. Por outro lado, não

reclamamos que estas três formas de elucidar o fenómeno do conhecimento proposicional

são as únicas ou sequer as melhores formas de o fazer. Admitimos, sem reserva, a

possibilidade de existirem muitas formas alternativas e mais bem-sucedidas de elucidar a

natureza do fenómeno.

Desejamos ainda introduzir uma consideração preliminar a respeito destas

condições. Prende-seà o à oà odoà o oà e te de osà osà te osà epist i o a ,

episte i a e te ,àet .àOà íti oàpodeàte ta àde iti àasàelu idaçõesàa i aàap ese tadasà

com o argumento de que estamos a usar os termos no sentido habitual, quer dizer, no

sentido de conhecimento, o que implicaria uma óbvia circularidade explicativa. Mas a

verdade é que não desejamos fazer tal paráfrase. Deixaremos de fora o sentido de

111 A noção de excelência aqui empregue inspira-se claramente na venerável noção acarinhada por Aristóteles e

outros filósofos. Reconhecidamente, este identificava dois tipos de excelências, as éticas e as teóricas, as quais seriam

disposições dignas de louvor. Vide Aristóteles, Ética a Nicómaco, 2004, Livro I, 1103 a1. Adaptamos aqui a noção e

aplicamo-la não a pessoas mas a coisas, neste caso, a estados de crença.

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153

epist i o à ueàp i ilegiaàaàha itualà oç oàdeà o he i e toàeàda e osàespe ialà ele oà

aoà se tidoà ueà p i ilegiaà aà oç oà deà ap op iada e teà e dadei o .à áà p i ei aà oç oà

implica a segunda, mas a segunda não implica a primeira. Esse facto incute-nos a obrigação

de apresentarmos uma teoria das condições necessárias e suficientes para um estado de

crença que p estar numa relação apropriada com a verdade de p. Como vimos na

elucidação que demos de um EEMP, designaremos por garantia epistémica a propriedade

que possibilita e potencia essa relação.112 As próximas secções são dedicadas a explicitar a

natureza de um estado de crença garantida de tal modo que, não apenas a crença atinge

apropriadamente a verdade de p, como é infalsificável. Um tal estado é, da nossa

perspectiva, um estado de crença epistemicamente garantida ou, alternativamente, um

EEMP.

6.2. Intuições e condições

Quase sempre os aspectos relevantes da história de um problema revelam ser o

ponto de partida privilegiado para se iniciar uma investigação sobre esse problema.

Pensamos que o nosso caso não foge à regra. Assim, julgamos ser possível descrever um

conjunto de intuições, cinco, para sermos mais exactos, que nem sempre conviveram bem

na história, distante e recente, de tentativas encetadas no sentido de elucidar a natureza

de um EEMP. A primeira parte deste trabalho, no qual fizemos uma retrospectiva histórica

do referido problema, identificou genericamente algumas dessas intuições. No sentido de

preparar o terreno para introduzir a nossa proposta, é agora chegado o momento de as

identificar com outro grau de pormenor.

A primeira intuição, pouco polémica, mas ainda assim longe de ser consensual, é a

de que há um conjunto de condições que têm de ser satisfeitas (condições necessárias)

para que ocorra um EEMP. Vamos chamar Intuição da Necessidade das Condições a esta

intuição.

112 A manobra poderia ajudar-nos a cimentar a ideia de que CON, EXC e EEMP são realmente análises, uma vez

que o uso de “epistémico” que nelas fazemos não se refere ao conhecimento. Mas isso iria comprometer-nos com a

possibilidade de se poder analisar o conceito de conhecimento, o que não desejamos fazer pelas razões apontadas

anteriormente.

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154

A segunda intuição, mais polémica que a primeira, mas que ainda assim reúne

bastantes adeptos, indica que a satisfação de um conjunto de condições é suficiente para

que ocorra um EEMP. Vamos chamar Intuição da Suficiência das Condições a esta intuição.

A terceira intuição é a de que um EEMP é no fim de contas um estado de crença

verdadeira que, por exibir uma determinada propriedade que se revela crucial do ponto

de vista epistémico, além da propriedade de ser verdadeira, se distingue das crenças

meramente verdadeiras que não exibem essa propriedade. Como vimos, esta intuição

remonta aos filósofos gregos clássicos, em especial a Platão (Cf. secção 1.7.) Vamos chamar

Intuição da Terceira Condição a esta intuição.

A quarta intuição é a de que tem de existir uma ligação adequada entre a crença

de que p e a verdade de que p, sem o que não poderá ocorrer um EEMP. Faz pois

aparentemente todo o sentido apelidar esta intuição de Intuição da Ligação Adequada.

A quinta intuição, talvez menos explícita e menos clara na literatura, mas ainda

assim perfeitamente identificável na mesma, é a de que só haverá a satisfação da condição

que permite essa ligação apropriada entre crença e verdade, geralmente a condição

identificada pela Intuição da Terceira Condição (e.g., justificação, garantia, etc), no caso de

serem satisfeitas outras condições. Não sendo uma tarefa fácil nomear esta condição,

optamos por chamá-la Intuição das Subcondições.

Uma inspecção da literatura como a que fizemos na primeira parte mostra que, de

uma forma ou de outra, algumas destas intuições, ou mesmo todas, estiveram na origem

do próprio projecto analítico. Infelizmente para os epistemólogos, porém, essas intuições

parecem estar na base de outras que lhes são contrárias ou contraditórias, como por

exemplo as intuições de Williamson acerca da não-analisibi lidade do conceito (e do estado)

de conhecimento. Senão vejamos. A verdade é que Williamson não rejeita a Intuição da

Necessidade das Condições, pois considera, explicitamente, diga-se, que a condição de

crença e a condição de verdade são condições necessárias para haver conhecimento.

Apesar disso, na medida em que rejeita a possibilidade de uma análise do conceito de

conhecimento em termos das condições de crença, de verdade e outras, pode dizer-se que

demite de forma categórica a Intuição da Suficiência. Curiosamente, porém, Williamson

não demite nem a Intuição da Ligação Adequada nem a Intuição das Subcondições, pois a

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155

sua concepção fiabilista e probabilista da justificação, da evidência e do conhecimento

indicam uma tendência para pensar que deve existir uma ligação adequada entre a crença

e a verdade (isto independentemente de Williamson formular ou não o problema desta

maneira), por um lado, e que essa ligação só obtém no caso de serem satisfeitas algumas

subcondições, por outro. Parece-nos que se há uma ilação a extrair deste exame à relação

existente entre a posição teórica de Williamson e as intuições que referimos é a de que

uma teoria que aceite algumas intuições e rejeite outras incorre, por melhor que seja essa

teoria do ponto de vista conceptual e argumentativo, em resultados aparentemente

contra-intuitivos. Daqui extraímos que ou se deve tentar acomodar todas estas intuições

no interior de uma única concepção, ou então, alternativamente, rejeitá-las a todas sem

excepção. Como rejeitá-las a todas é, face à força dessas intuições, uma manobra pouco

prudente do ponto de vista filosófico, a melhor opção p arece ser acomodá-las numa única

concepção.

Ensaiaremos de seguida uma tentativa de mostrar como podem todas estas

intuições ser acomodadas numa única concepção de EEMP. O primeiro episódio desta

tentativa passa por identificar, via inspecção da literatura, aqueles que são aparentemente

os desideratos epistémicos fundamentais. O ponto do exercício é justamente verificar que

condições têm de obter no sentido de acomodar a Intuição das Subcondições e a Intuição

da Ligação Adequada. Faremos isto como o auxílio de critérios que introduziremos na

devida altura. Com base nos resultados obtidos, construímos e apresentamos depois um

modelo do processo de satisfação de condições que está na origem de uma crença

epistemicamente garantida. Com isso pretendemos acomodar a Intuição da Terceira

Condição, que no nosso caso será, como é óbvio, a condição da garantia epistémica. Como

o leitor terá oportunidade de constatar, a acomodação das intuições da Necessidade e da

Suficiência despontará naturalmente do enunciado.

6.3. Desideratos Epistémicos

6.3.1. É a justificação um desiderato epistémico legítimo?

Na linha do que é defendido por Williamson, William Alston (2005) abraça a ideia

de que o projecto analítico tradicional está de alguma forma esgotado (Ibidem: 11-21

passim). Alston é especialmente crítico no que respeita à tentativa de tornar clara a noção

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156

de justificação epistémica. Tal como Plantinga, Alston inspecciona um conjunto alargado

de propostas sobre a natureza da justificação, propostas que vêem nesta propriedade um

desiderato epistémico fundamental. Em todas encontra problemas.113

Alston propõe-se também distinguir entre o grupo das concepções deontológicas

da justificação e o grupo das concepções da justificação que é conducente à verdade. A

distinção assenta na ideia de que a justificação meramente deontológica não tem

necessariamente que ser condutiva à verdade (como também já vimos acima, na secção

. . à Éà possí elà u à age teà te à e çasà deo tologi a e te à justifi adasà asà falsas.à Po à

conseguinte, a justificação dessas crenças não pode ser conducente à verdade. Assim,

segundo a perspectiva asltoniana, a justificação deontológica e a justificação conducente

à verdade podem ocupar esferas conceptuais distintas, tendo na sua raiz desideratos

epistémicos também distintos.

Alston elenca alguns dos desideratos identificados pelas teorias justificacionistas.

Ei-los. Acessibilidade cognitiva às razões, à evidência e aos fundamentos que podem

justificar uma crença (segundo Alston, condição necessária mas não suficiente para a

justificação); conhecimento de segunda ordem sobre o status justificacional da própria

crença (também condição necessária mas não suficiente para a justificação); defesa bem-

sucedida do status epistémico da crença (igualmente uma condição necessária mas não

suficiente para a justificação); fiabilidade do processo de formação da crença

(aparentemente também, uma condição necessária mas não suficiente para a justificação);

coerência com outras crenças no interior de um sistema coerente de crenças (mais uma

vez, condição necessária mas não suficiente para a justificação); a crença deve resultar do

exercício de virtudes cognitivas do agente (outra condição também necessária mas não

suficiente para a justificação); racionalidade, exercida por reflexão sobre a evidência

disponível para o agente (alegadamente, apenas condição necessária). (Ibidem: 19-20)

Posto isto, Alston recomenda que se abandone a fútil demanda por uma noção

correcta e maximamente inclusiva da justificação epistémica. O pedido sustenta-se no

argumento que do facto de haver uma pluralidade de perspectivas incompatíveis sobre a

113 Muitos dos quais já foram identificados e discutidos na primeira parte deste trabalho, em especial na secção 3.

Não iremos portanto reincidir nessa discussão.

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157

noção de justificação se segue que há uma elevada probabilidade de se estar à procura de

uma propriedade fantasma, no sentido de não poder ser capturada por uma única noção

ou expressão.

Não estamos porém totalmente convencidos de que a principal premissa deste

argumento seja verdadeira. Com efeito, não parece ser um dado adquirido que as

diferentes perspectivas sobre a justificação e sobre os desideratos que lhe estão

subjacentes são incompatíveis.114 É verdade que restam poucas dúvidas sobre o facto de

haver diferentes perspectivas sobre a justificação que têm por base também diferentes

desideratos. Mas só isso não chega para mostrar que são essas perspectivas são

incompatíveis. Da diferença não se segue a incompatibilidade. Pode perguntar-se, por

exemplo, qual é o tipo de incompatibilidade aqui acti va. Trata-se talvez de

incompatibilidade lógica? Não vemos como. Não parece haver qualquer tipo de

incompatibilidade lógica entre, por exemplo, o fiabilismo e o evidencialismo. O mesmo

pode ser dito a propósito de outros pares e trios de teorias da justificação, a não ser que

Alston tenha em mente a reivindicação de suficiência que cada uma destas teorias faz

incidir sobre as propriedades que considera necessárias para haver justificação. Mas este

problema é facilmente eliminável eliminando a pretensão de suficiência ou aceitando que

essa suficiência só pode ser alcançada em conjunto com a satisfação de outras condições.

Se isto for correcto, a premissa da incompatibilidade hiperboliza aparentemente um

problema que ou não existe ou, a existir, tem solução.

Alston considera e demite outras razões que poderiam levar-nos a pensar que é

vantajoso do ponto de vista da epistemologia (e não só) preservar a demanda por tal

propriedade. Entre elas está a pretensão de muitos filósofos de que a justificação é uma

propriedade valiosa do ponto de vista epistémico. Esta é uma pretensão afastada por

Alston principalmente com base na ideia de que, sendo o principal desiderato epistémico

ter-se crenças verdadeiras, e sendo a justificação habitualmente concedida como uma

propriedade que não pode caucionar a verdade das crenças—uma vez que é vulgarmente

aceite que há crenças falsas justificadas—, e supondo adicionalmente que há crenças

114 Por exemplo, Oakley (1988: 278) parece pensar que a noção de justificação compreende diversos desideratos

epistémicos, e que o engano pode estar em supor que apenas um deles satisfaz essa noção.

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158

verdadeiras mas injustificadas, segue-se que a justificação não parece ser uma propriedade

valiosa do ponto de vista epistémico.

Claro que esta demissão do valor epistémico da justificação assenta desde logo

numa concepção fraca da justificação epistémica, segundo a qual pode haver crenças

justificadas falsas ou crenças verdadeiras injustificadas. Trata-se pois de desvalorizar e de

demitir uma propriedade epistémica com base numa ideia preconcebida acerca da

falibilidade dessa propriedade. Defensores de uma concepção forte da justificação

rejeitariam por certo essa avaliação. Não nos iremos contudo deter mais neste problema.

6.3.2. Desideratos epistémicos e não-epistémicos

Uma ideia interessante de Alston é certamente a de que as funções primárias da

cognição são, por razões de ordem prática, a aquisição, o uso e a retenção de crenças

verdadeiras—e não a aquisição de crenças justificadas. Segundo o própr io, isto apresenta-

se-nos como evidente. A aquisição de crenças verdadeiras é o objectivo primário da

cognição, sendo a obtenção da verdade o principal desiderato epistémico). (Cf. Ibidem: 24).

A ideia é por certo agradável, mas pensamos que pode ser disputada com sucesso.

Para tal basta pensarmos em alguém que só adquire crenças verdadeiras, por assim dizer,

gettierizadas. Suponha-se que um demónio faz com que S tenha apenas crenças

verdadeiras deste género. De cada vez que S forma uma crença, ela não pode deixar de ser

verdadeira por acção do demónio. Contudo, sem que disso se possa aperceber (pois o

demónio impede-o), S forma as suas crenças sempre com base em razões inapropriadas,

pseudo-evidência, pseudo-fundamentos, etc. Nestas circunstâncias, S não está

massivamente enganado em relação à verdade das proposições nas quais acredita, mas

está massivamente enganado em relação à correcção epistémica das suas crenças. Se

exacto, o que isto revela é que a função primária da cognição não pode ser a aquisição de

crenças verdadeiras. O que o nosso exemplo mostra é que não basta as crenças serem

verdadeiras para serem valiosas e, logo, o objectivo primário da cognição não pode ser a

aquisição de crenças verdadeiras, mas sim a aquisição de crenças verdadeiras valiosas.115

115 O problema do valor do conhecimento e das crenças verdadeiras, bem como da diferença entre ambas, é

tortuoso. Uma incursão profunda pelo mesmo não está no âmbito deste trabalho.

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159

O valor das crenças verdadeiras não residirá no facto de serem verdadeiras mas sim no

facto de serem apropriadamente verdadeiras. Da nossa perspectiva, este último é um

desiderato epistémico fundamental, um desiderato ao qual voltaremos mais adiante.

De salientar agora que Alston quer submeter uma epistemologia das crenças, não

do conhecimento (Ibidem: 40, nota 1). Esta epistemologia visa fundamentalmente

al ula à oà alo à dasà e çasà deà u à age teà e à fu ç oà dasà suasà a a te ísti as.à

Sinteticamente, uma crença é epistemicamente valiosa se satisfaz determinados

desideratos epistémicos. Alston elenca estes desideratos, organizando-os em grupos

hierarquicamente dispostos segundo um critério de importância para o desiderato

fundamental, o da verdade, e segundo um critério de semelhança de propriedades desses

desideratos. O resultado é o seguinte.

Desiderato do Grupo I

Verdade.

Principalmente pelas razões acima apontadas e porque é recomendável para haver

justificação, mesmo não sendo uma condição necessária e suficiente para que haja

justificação.

Desideratos do Grupo II

(desideratos cuja satisfação é diretamente conducente à verdade)

1. O agente tem evidência adequada para a sua crença (C).

2. C é suportada por evidência adequada.

3. C foi formada a partir de um processo de formação de crenças suficientemente fiável.

4. C foi formada com base no correcto funcionamento das propriedades cognitivas de S.

5. C foi formada com base no exercício de uma virtude intelectual.

Antes de descrevermos os desideratos que segundo Alston não pertencem ao

Grupo II, importa desde já reflectir sobre esta lista e questionar se estará completa.

Considerando a listagem de desideratos epistémicos constantes na primeira parte, pelo

menos dois parecem estar omissos na descrição de Alston. O primeiro é a exigência de

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haver uma relação causal entre o facto que torna p verdadeira e a crença que p. O segundo

é que a crença seja segura, isto de modo a satisfazer o desiderato não-acidentalidade

(extensivamente tratados nas secções 4.3.2. e 5.2.) Repare-se que estes desideratos, qua

condições, são de extrema importância do ponto de vista da avaliação epistémica de uma

crença. É na realidade difícil de descortinar em que medida poderia ser feita uma avaliação

positiva de uma crença se essa crença não estivesse causalmente ligada ao facto que torna

a crença verdadeira.116 E é difícil de ver em que medida poderia ser feita uma avaliação

positiva de uma crença se essa crença fosse acidentalmente verdadeira, no sentido que

temos vindo a descrever. A ausência destes desideratos na lista alstoniana revela

aparentemente lacunas nessa mesma lista.117

Passamos agora ao terceiro conjunto de desideratos apontado por Alston.

Desideratos do Grupo III.

(Desideratos cuja satisfação é tida como favorável para a formação e discriminação

de crenças verdadeiras)

6. S tem um alto grau de acesso cognitivo à evidência para C.

7. S tem conhecimento de segunda ordem, ou crença bem-fundamentada, que C tem um status epistémico positivo e/ou que isto ou aquilo é respons ável por isso.

8. S pode fazer uma defesa bem-sucedida da probabilidade de C ser verdadeira.

Estes desideratos estipulam meta-condições. Alston alega que a sua satisfação não

contribui diretamente para tornar as crenças verdadeiras, mas reconhece-lhes (Ibidem: 43-

45) algu à pode àepist i o, no sentido em que a sua satisfação conduz indiretamente à

verdade.

116 Mesmo supondo que conteúdos proposicionais com teor matemático ou éticos (entre outros) constituem um

problema para a concepção causal, uma vez que há alegadamente proposições cujo facto que lhe subjaz é de difícil

identificação, existem muitas outras crenças em que é exigível essa ligação causal e o facto é facilmente identificável (e.g.

proposições acerca de objectos físicos), pelo menos da perspectiva do senso comum.

117 Alston refere-se esporadicamente a estes desideratos, mas não os inclui na sua lista. Cf. Ibidem:84 para uma

referência explícita, á qual voltaremos, à importância do que causa uma crença. Como veremos de seguida, os desideratos

deontológicos contêm também uma referência à história causal da crença tendo por base as obrigações intelectuais do

agente, mas a noção de causalidade a que nos referimos agora ultrapassa em muito esse sentido estrito de “causa”. Cf. 91

para uma referência cruzada ao desiderato da não-acidentalidade).

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161

Não iremos disputar a distinção alstoniana entre desideratos cuja satisfação é

diretamente conducente à verdade e desideratos cuja satisfação é indiretamente

conducente à verdade. Apenas desejamos tecer alguns comentários acerca do que parece

motivar a distinção.

Segundo nos parece, tal como indicado por Alston, a satisfação de 6 não tem

necessariamente como consequência a verdade de uma crença. Este parece ser aliás o

problema que afecta as concepções clássicas da evidência, como a de Chisholm (vide

secção 3.4.1.), que parecem reclamar que esse acesso é suficiente para garantir a verdade

de uma crença.

O mesmo não pode talvez ser dito do desiderato 7. Com efeito, se tomarmos em

consideração a definição canónica de conhecimento, a qual implica a factividade, a

satisfação de 7 parece ter necessariamente como consequência a verdade de uma crença

acerca da qual há conhecimento acerca do seu estado epistémico positivo, uma vez que

este estado implica por sua vez a verdade da crença. Dito de outro modo, conhecimento

de que uma crença é verdadeira implica a verdade dessa crença. Se tal for o caso, podemos

então talvez sugerir que 7 pertence afinal ao grupo II, isto em vez de pertencer ao grupo

III. Tal não é contudo aceite por Alston, o qual pensa que a satisfação deste desiderato não

é conducente à verdade da mesma forma que, por exemplo, a satisfação de 2 no grupo II

o é. Resumidamente, enquanto a satisfação de 2 é, por assim dizer, diretamente

responsável pela verdade de uma crença, já a satisfação de 7 e 8 de algum modo contribui

indiretamente para a verdade de crença, mas não é a razão imediata dessa verdade.

Noutro registo, Alston rejeita que os chamados desideratos deontológicos

pertençam à classe dos desideratos cuja satisfação é conducente à verdade. Eis os

desideratos tal como identificados por Alston:

Desideratos do Grupo IV.

(Desideratos deontológicos, não necessariamente conducentes à verdade)

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9. C é tida permissivelmente.

10. C é formada e tida responsavelmente.

11. A história causal de C não contém violações de obrigações intelectuais.

Grosso modo, a rejeição liminar por parte de Alston de que estes desideratos

pertencem aos grupos II ou III tem por base a ideia de que a sua satisfação não é crucial

para a criação de um vínculo entre crença e verdade. Por outras palavras, um grande

número de crenças que satisfazem, separada ou conjuntamente, 9, 10 e 11, são falsas.

Duas coisas têm de ser ditas acerca da escolha de Alston em não incluir os

desideratos do grupo IV nos grupos II e III. Importa, em primeiro lugar, ver que a satisfação

isolada de qualquer desiderato pertencente a um destes dois últimos grupos não parece

garantir que uma crença seja verdadeira—vimos alguns exemplos na primeira parte. Alston

alega no entanto que a satisfação dos desideratos dos grupos II e III, ao contrário da

satisfação dos desideratos do Grupo IV, dá origem a uma taxa (ou frequência) elevada de

crenças verdadeiras, bem como a uma taxa (ou frequência) reduzida de crenças falsas. Mas

estes parece ser um critério algoàdifusoàpa aàdisti gui àdeside atosà ligados à à e dadeàeà

deside atosà desligados àdaà e dade.àEà ueà it ioàpode iaàse àesse?àTal ezàu à it ioàdeà

quantidade? Talvez o problema possa ser resolvido supondo-se, por exemplo, que a

satisfação de um desiderato é, directa ou indiretamente, conducente à verdade desde que

essa satisfação tenha como resultado mais de metade de crenças verdadeiras numa

amostra constante de crenças. Mas como se verifica isto? Qual é a amostra indicada? Que

tipo de crenças tornaria a experiência bem-sucedida?

Por outro lado, julgamos que mesmo não sendo a satisfação destes desideratos

deontológicos diretamente conducente à verdade, daí não se segue que a satisfação das

condições que resultam desses desideratos não é importante no sentido de garantir a

verdade de uma crença. Aliás, o próprio Alston tem uma perspectiva sobre o alcance do

desiderato 11 que pode contribuir para consolidar esta ideia. Segundo ele, a seguinte é

uma interpretação possível desse desiderato:

á.à“à ài tele tual e teà o de elàpo àa edita à ueàp se, e somente se, tivesse S cumprido todas as suas obrigações intelectuais, então o acesso de S a

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163

considerações relevantes, ou os hábitos ou tendências de formação de crenças de S, ter-se-iam se alterado de modo a que S não tivesse acreditado que p. (Ibidem: 77)

O ponto de Alston é que 11A identifica um desiderato intelectual genuíno, no

sentido em que o que é prescrito é eminentemente bom do ponto de vista das práticas

intelectuais e cognitivas de S. Apesar de Alston aceitar que a satisfação deste desiderato é

recomendável tendo em vista fins de cognição, não aceita porém que estejamos perante

um desiderato epistémico,à e à ueà epist i o à sig ifi aà ueà aà suaà satisfaç oà sejaà

conducente à verdade. Alston apresenta casos que alegadamente mostram essa realidade.

Não os iremos discutir, nem precisamos de o fazer para demonstrar o nosso próprio ponto.

Esse ponto é o de que 11A introduz uma condição necessária para pelo menos alguns casos

de EEMP.

Procuramos pois um caso em que a satisfação do desiderato em 11A leve o agente

a ter uma crença verdadeira, e a não satisfação desse desiderato leve o agente a ter uma

crença falsa. Procuramos portanto um caso em o facto de um agente ser intelectualmente

responsável, tal como descrito por 11A, faça a diferença entre a verdade e a falsidade, no

sentido em que ser intelectualmente responsável faça o agente ter um crença verdadeira

e evitar uma crença falsa.

Suponha-se então que o Dr. H recebeu um diagnóstico que indica que o seu

paciente P sofre de ɸ. Com base no que leu no relatório de diagnóstico, o Dr. H passa a

acreditar que P sofre de ɸ. Contudo o diagnóstico está incorrecto, pois, por esquecimento,

o Dr. K, o médico que realizou os exames de diagnóstico a P, não realizou um exame crucial

para a despistagem dessa patologia. Sendo assim, a crença do Dr. H de que P sofre de ɸ é

falsa. Contudo, tendo uma atitude claramente responsável do ponto de vista da satisfação

dos seus deveres intelectuais, o Dr. H lê o diagnóstico mas desconfia do resultado, pois

desconfia da capacidade médica do Dr. K. Convencido da fals idade do resultado, o Dr. H

pede um novo diagnóstico, desta feita ao Dr. L, o qual lhe entrega um diagnóstico correcto

que indica que P não sofre de ɸ. Com base nesse resultado (o acesso a considerações

relevantes), o Dr. H passa a acreditar que P não sofre de ɸ. Por ser intelectualmente

responsável, tal como preconizado por 11A, o Dr. H deixa portanto de acreditar numa

falsidade e passa a acreditar numa verdade. O corolário é que a satisfação do desiderato

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164

em 11A conduz à verdade em pelo menos um caso. A tese de que 11A não é um desiderato

cuja satisfação é conducente à verdade é, por conseguinte, falsa.

Para finalizar listagem de desideratos submetida por Alston, debruçamo-nos agora

sobre o que ele pensa serem as propriedades de sistemas de crenças mais desejáveis do

ponto de vista dos fins da cognição.

Grupo V. Desideratos que se referem a sistemas de crenças.

12. Explicação.

13. Compreensão.

14. Coerência.

15. Sistematicidade.118

Os desideratos 12 e 13 referem-se, respectivamente, ao desejável poder explicativo

que um conjunto de crenças tem de ter e ao bom nível de compreensão (do agente ou

agentes) que deve gerar. O desiderato 14 refere-se obviamente à coerência que deve ser

exibida por um sistema de crenças. Já o desiderato da sistematicidade é mais intrincado e

menos claro. Trata-se, aparentemente, da exigência de que um conjunto de crença possua

uma estrutura organizada segundo um critério lógico, racional ou que pelo menos

manifeste algum grau de inteligência e organização.119

Também estes desideratos são vistos por Alston como não pertencendo ao lote de

desideratos cuja satisfação é diretamente conducente à verdade. Alston submete como

exemplo o alegado facto de uma crença poder ser coerente com um sistema de crenças,

por sua vez também coerente, sem que haja por isso verdade envolvida. Usando o

conhecido argumento contra a necessidade da coerência para o conhecimento, basta

pensar em alguém que tem um conjunto fechado e coerente de crenças num conjunto de

proposições pertencentes apenas ao foro ficcional.120 De acordo. Mas não é a coerência de

118 A palavra não faz parte do vocabulário português. Apresento-a porque é a melhor aproximação que me ocorre

para denotar a ideia que lhe dá origem.

119 Esta é a ideia que retiro da leitura de Schwitzgebel (2008).

Ver em especial o ponto 1.1.1. Não abraço contudo incondicionalmente esta interpretação e deixo obviamente

espaço para interpretações alternativas.

120 Compare-se com Russell, Sosa et al.

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165

um sistema de crenças desejável do ponto de vista da cognição? Parece-nos que, mesmo

que não seja necessária para haver crenças verdadeiras, é porém desejável que haja

coerência entre crenças que visam o estatuto de EEMP.

Suponha-se que S, um paleontólogo, encontra provas f ísicas plausíveis por exemplo

para a teoria de que existiu um determinado tipo de hominídeo. Apesar de plausíveis, essas

provas não são conclusivas. Sem ter hipóteses de confirmação da sua teoria apenas com

base nessas provas, S submete-as ao crivo de investigadores especializados no campo da

genética. Suponha-se ainda que estes investigadores encontram evidência que corrobora

aàhipóteseàdeà“àa e aàdaàexist iaàdeàu à o o àho i ídeo.àDitoàdeàout oà odo,àessaà

evidência descoberta pelos geneticistas é consistente com a suposição teórica de S de que

houve em tempos um determinado tipo de hominídeo, havendo portanto coerência entre

a crença que S forma com base nas suas razões/provas e as crenças desenvolvidas pelos

outros investigadores acerca do material genético que analisaram. Vamos ainda supor que

não existe outra forma de corroborar a hipótese de S. O que este caso mostra é que

dificilmente poderíamos atribuir a S um EEMP acerca da existência passada de uma

determinada estirpe de hominídeo caso a crença (vamos supor, verdadeira) de S nessa

proposição não fosse coerente com as crenças (manifestamente verdadeiras) dos seus

colegas geneticistas.

Considerando o que inspeccionámos até este momento, não podemos evitar a ideia

de que as crenças podem gozar de dois estatutos epistémicos muito positivos. Por um lado,

que as crenças sejam verdadeiras. Por outro lado, que sejam conhecimento. Segundo

Alston, o primeiro estatuto é alcançado graças à satisfação, total ou parcial, dos

desideratos/condições pertencentes aos grupos II, III e V. Pela parte que nos toca, o

alcançar do segundo estatuto requer mais do que apenas a satisfação de

desideratos/condições conducentes à verdade. Requer adicionalmente a satisfação de

alguns desideratos/condições que fazem com que a crença seja verdadeira de modo

apropriado. A distinção entre estatutos pode auxiliar-nos a enquadrar o que está na base

das intuições mencionadas na secção anterior. Já lá iremos. Por ora vamos verificar qual é

na opinião de Alston o mais importante desiderato do grupo II. O objectivo do exercício é

perceber que género de hierarquia pode haver entre desideratos conducentes à verdade.

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166

Daí partiremos para um primeiro esboço da nossa própria hierarquização de

desideratos/condições, tendo como horizonte aquele estatuto epistémico positivo das

crenças a que habitualmente se dá o nome de conhecimento.

À semelhança de outros epistemólogos, Alston elege o desiderato 2 como o mais

basilar e importante (Ibidem: 82). Para que uma crença goze de um estatuto epistémico

positivo do ponto de vista da sua verdade, terá, inter alia, de assentar em fundamentos

adequados. Fundamentos adequados constituem evidência, sendo esta adequada na

medida em que confere a uma crença uma elevada probabilidade de ser verdadeira

(Ibidem: 112).121 Neste sentido, a condição estabelecida pelo desiderato descrito por 2 é

parasitária e prioritária em relação às condições estabelecidas por 1, 3, 4 e 5. Não basta

um agente ter evidência adequada para uma crença (condição/desiderato 1), nem que a

crença C seja formada a partir de um processo de formação de crenças suficientemente

fiável (condição/desiderato 3), nem que a crença seja formada com base no correcto

funcionamento das propriedades cognitivas de S (condição/desiderato 4), nem que tenha

sido formada com base no exercício de uma virtude intelectual (condição/desiderato 5).

Segundo Alston, todas estas condições e respectivos desideratos estão de certo modo na

origem da satisfação de 2, o que é o que realmente permite que a crença formada

principalmente com base em 2 tenha um estatuto epistémico positivo (Ibidem: passim).

Cremos que a disposição hierárquica descrita por Alston está quase correcta, pelo que

tentaremos aproveitá-la e desenvolvê-la.

6.3.3. Modelos de avaliação epistémica de crenças

A disposição hierárquica dos desideratos diretamente conducentes à verdade

defendida por Alston pode talvez ser estabelecida num esquema. Nesse esquema estão

incluídos não somente os desideratos/condições que d izem respeito à evidência necessária

para a formação de crenças que tenham um estatuto epistémico positivo, como também

os desideratos/condições cuja satisfação permite que um agente possua essa evidência. O

esquema apresenta naturalmente uma primeira aproximação, considerando os

121 Alston associa a noção de probabilidade com a noção, eminentemente fiabilista, de elevada frequência de

crenças verdadeiras geradas por um qualquer processo de formação de crenças, por oposição à baixa frequência de

formação de crenças falsas produzida por esse processo.

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desideratos e a sua hierarquia apenas genericamente. O objectivo passa apenas por

submeter um primeiro instrumento gráfico e conceptual que facilite a compreensão das

relações de causalidade e de dependência no que respeita aos desideratos epistémicos

previamente identificados.

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168

Figura 5

Estatuto epistémico positivo da crença

que p

Elevada probabilidade de

verdade da crença que p

Crença que p formada com base

em evidência adequada

Fundamentos (evidência)

adequados para a crença que p

Fiabilidade dos processos de

formação de crenças

Correcto funcionamento das

capacidades cognitivas do agente

Virtudes intelectuais

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169

Na medida em que está vocacionado para explicitar um percurso linear de

satisfação de desideratos/condições, e na medida em que parece deixar de fora pelo

menos tantos desideratos/condições quanto os que admite, o esquema constante na

figura 5 pode ser polémico. Com efeito, para respeitar a concepção alstoniana, o modelo

apresenta uma concepção mais ou menos linear em que a satisfação de cada

desiderato/condição descrito em cada passo só pode ocorrer caso ocorra a satisfação do

desiderato/condição descrito no passo anterior. Por exemplo, uma crença só poderá ser

formada com base em evidência adequada caso o agente disponha de fundamentos

(evidência) adequados para formar essa crença. Mas esta linearidade e esta simplificação

podem ser contestadas.

Por outro lado, e como já dissemos acima, o esquema deixa de fora

desideratos/condições que parecem desempenhar um papel importante na sequência

que, segundo Alston, conduz ao desiderato epistémico mais valioso e primário: a verdade

(de uma crença). Na realidade, o modelo deixa de fora os desideratos/condições incluídos

nos grupos III, IV, e V. Apontámos acima as razões que nos levam a pensar que pelo menos

alguns dos desideratos constantes nesses grupos teriam lugar no esquema, mas não

voltaremos por ora ao assunto. O nosso objectivo passa nesta fase apenas por aprimorar

o esquema.

Iniciamos este projecto de aperfeiçoamento tentando fazer com que o modelo

acomode as noções de sucesso e insucesso epistémico de uma crença. Diremos que uma

crença terá um estatuto epistémico positivo se for bem-sucedida relativamente ao

desiderato de alcançar a verdade. A crença não terá um estatuto epistémico positivo caso

não seja bem-sucedida no sentido indicado. Supomos, c ondicionalmente, por um lado, que

o que produz o sucesso e o estatuto epistémico posit ivo é a satisfação de todos os

desideratos/condições, e supomos, condicionalmente, por outro lado, que o que produz o

insucesso é a não satisfação de pelo menos um desiderato/condição. Com base nestas

suposições, chegamos ao seguinte esquema.

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Figura 6

Estatuto epistémico positivo da crença

que p

Crença que p

bem-sucedida

Elevada probabilidade de

verdade da crença que p

Crença que p formada com base

em evidência adequada

Fundamentos (evidência)

adequados para a crença que p

Fiabilidade dos processos de formação de

crenças

Correcto funcionamento das

capacidades cognitivas do

agente

Virtudes intelectuais

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Figura 7

Estatuto epistémico

negativo da crença que p

Crença que p

mal-sucedida

Baixa probabilidade de

verdade da crença que p

Crença que p formada com base

em evidência inadequada (se

houver evidência)

Fundamentos (evidência)

inadequados para a crença que p (se

existentes)

Ausência de fiabilidade dos processos de formação de

crenças

Ausência ou Incorrecto

funcionamento das capacidades cognitivas do

agente

Ausência de virtudes

intelectuais

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Note-se que a simetria é meramente indicativa. O esquema poderia não

estabelecer uma simetria e ainda assim ser de algum modo elucidativo. Aliás, é duvidoso

que à simetria no esquema corresponda uma simetria na realidade.

Note-se igualmente que Alston não considera a elevada probabilidade de verdade

de uma crença como um desiderato de direito próprio, a não ser que se identifique esta

elevada probabilidade de verdade da crença com a própria verdade da crença, o que

pressupõe uma concepção de verdade enquanto probabilidade que não estamos

preparados para aceitar sem aduzir mais argumentos.

Parece-nos também que estes esquemas não são suficientemente elucidativos. A

nossa conjectura assenta em duas hipóteses. Por um lado pensamos que a satisfação

conjunta dos seis primeiros desideratos/condições (de baixo para o topo) que constam na

Figura 6 do modelo pode não ser suficiente para que a crença seja verdadeira. Teríamos

pois um caso de crença falsa apesar da satisfação desses desideratos. Pela nossa suposição,

uma crença falsa é uma crença epistemicamente mal-sucedida e não goza de um estatuto

epistémico positivo. Por outro lado, consideramos a hipótese de a satisfação dos seis

primeiros passos na Figura 7 do modelo serem satisfeitos e ainda assim a crença ser

verdadeira, caso em que essa crença seria bem-sucedida e teria um estatuto epistémico

positivo.122

Para avaliar a plausibilidade da primeira hipótese retornamos ao caso Barney (Vide

secção 1.10.), o qual alteramos um pouco para servir os nossos intentos, designando-o por

isso agora por Barney2. Suponha-se que, ao invés de existirem muitas fachadas de celeiro

no campo e apenas um celeiro, existem muitos celeiros e apenas uma fachada de celeiro.

Suponha-se também que S verifica (confirma, etc.) que todos os celeiros que vê são

realmente celeiros, excepto a fachada celeiro, vindo por isso (por indução) a acreditar que

a fachada também é um celeiro. Ora, S usa neste caso as suas virtudes intelectuais, sendo

que as suas capacidades cognitivas estão também em ordem e a laborar com perfeição, o

que satisfaz os dois primeiros passos do esquema. Por outro lado, o processo pelo qual S

122 Excluo obviamente aqui a possibilidade de uma crença não poder ser valorizada ou desvalorizada do ponto de

vista do seu estatuto epistémico. Não possuo contudo de momento qualquer argumento a favor desta ideia. Não obstante,

deixo como sugestão que a provável existência de crenças cuja avaliação epistémica não é possível em nada afecta a crítica

que agora movemos ao modelo alstoniano.

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forma a sua crença—indução a partir de boa amostra—é fiável, o que satisfaz o terceiro

passo. Assim, S passa a acreditar que vê um celeiro (onde vê a fachada) com base em

fundamentos adequados, o que satisfaz o quarto passo. Por conseguinte, S tem evidência

adequada para acreditar que vê um celeiro e, dada essa evidência, a sua crença tem uma

elevada probabilidade de ser verdadeira, o que satisfaz, respectivamente, o quinto e o

sexto passo. Não obstante, a crença é falsa, pois S vê uma fachada de celeiro e não um

celeiro. Temos portanto um contra-exemplo ao esquema na Figura 6: os seis primeiros

passos desse esquema são satisfeitos e ainda assim a crença não é bem-sucedida, não

podendo por isso gozar de um estatuto epistémico positivo.

Pode ser objetado que dois passos/desideratos/condições não são satisfeitos

nestas circunstâncias impostas por Barney2: o de que a evidência seja adequada, por um

lado, e o de que a crença seja formada com base nessa evidência adequada, por outro.

Com efeito, Alston considera que

... àu àfu da e toàpa aàu aà e çaà oàpodeàse à o side adoà ade uado à ... àaànão ser que tenha uma relação com a verdade daà e ça (Ibidem: 92, O itálico é meu)

Com base nesta pretensão, o alstoniano pode apelar para a falta de adequação da

evidência que está na base da formação da crença de S no cenário acima descrito, pois uma

vez que essa crença é afinal falsa, jamais poderia, segundo os padrões alstonianos, assentar

em evidência adequada. Porém, a não ser que Alston e seguidores considerem que o

desiderato da elevada probabilidade de uma crença é o mesmo que o desiderato primário

da verdade de uma crença—o que me parece nunca ser por ele dito—, existirá sempre a

possibilidade de haver desfasamento entre a elevada probabilidade uma crença ser

verdadeira e a crença ser de facto verdadeira.123 Se esta suposição estiver em ordem,

cenários como o apresentado acima revelam que a satisfação dos referidos

desideratos/condições tornam bastante elevada a probabilidade de verdade de uma

crença, mas não garantem que essa crença seja realmente verdadeira. A alternativa de

Alston é talvez supor ad hoc que a verdade de uma crença é uma condição necessária para

a adequação da evidência, mas não parece ser isso que ele tem em mente.

123 Note-se que Alston fala de elevada probabilidade de verdade, mas não de probabilidade de grau 1.

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174

Voltamo-nos agora para a segunda hipótese acima submetida, a que reclama que a

satisfação dos passos na Figura 7 pode conduzir a uma crença bem-sucedida e,

considerando o critério de positividade epistémica que apresentámos condicionalmente

acima, a uma crença que tem um estatuto epistémico positivo.

Considere-se portanto o seguinte caso. Suponha-se que S sofre de uma patologia

mental, e.g., esquizofrenia, e que devido ao facto de sofrer dessa patologia, S tem delírios

e alucinações constantes, confundindo factos e ficções, tomando geralmente falsidades

por verdades, etc. S está por isso mesmo internado num hospital psiquiátrico, onde passa

o seu tempo a ver televisão. Um dia, estando na sala de convívio, S vê Barack Obama

discursar na televisão. S forma então a crença de que Obama está nesse preciso momento

atrás de si. Claro que, em virtude da sua condição médica, e, podemos também supor, pelo

facto de estar fortemente sedado, as virtudes intelectuais e as capacidades cognitivas de S

est o,àpo àassi àdize ,ài ope a tesàouà desligadas ,àoà ueàsatisfazàosàdoisàp i ei osàpassosà

do lado direito do esquema. Assim, a crença de S não pode derivar de um processo fiável

de formação de crenças. Com efeito, podemos facilmente supor que a patologia de que

sofre S e o facto de estar fortemente sedado são factores (ou processos) que têm a

tendência para gerar um elevado número de crenças falsas e um baixo número de crenças

verdadeiras, o que demite de imediato a possibilidade de a crença ter sido formada com

base em fundamentos adequados. Se a evidência não é adequada, então a probabilidade

de a crença ser verdadeira será também será por certo baixa.124 Isto dá conta dos restantes

passos constantes na Figura 7. Podemos, não obstante, supor que a crença de S é

verdadeira! Suponha-se que, sem que S possa ter qualquer indício a esse favor, Obama

decidiu visitar naquele dia o hospital onde S se encon tra, estando, por mero acaso, atrás

de S precisamente no momento em que S forma a sua crença. Se correcto, este caso

falsifica o esquema na Figura 7.

A despeito de sofrer aparentemente de problemas como os que agora julgamos ter

apontado, o esquema/modelo alstoniano estabelece um primeiro guia para a

compreensão do processo de satisfação de passos/desideratos/condições que faz com que

124 Não privilegiamos aqui qualquer concepção de probabilidade (e.g., como frequência estatística ou grau de

crença racional). Quanto muito usamos a noção probabilidade indutiva, embora de forma muito despretensiosa.

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uma crença possua ou adquira um estatuto epistémico posit ivo. Por julgarmos que o

esquema/modelo é um bom ponto de partida para a compreensão do referido fenómeno,

iremos adoptá-lo como base para o nosso próprio modelo. A ideia é acrescentar-lhe o que

pensamos faltar-lhe, isto tendo em atenção dois objectivos que quanto a nós se cruzam:

capacitá-lo de mais poder explicativo, por um lado, e torná-lo mais resistente a contra-

exemplos, por outro.

A nossa tarefa não passará contudo por tentar definir ou explicitar a natureza de

cada desiderato/condição identificado no modelo alstoniano ou naquele que tencionamos

apresentar. Considerando a diversidade de propostas disponíveis sobre a natureza de cada

desiderato, tal tarefa seria monstruosa e irrealizável. Uma estratégia mais promissora é

usar o material já avançado por Alston et al, usando-o para construir um modelo plausível

que permita explicitar como pode uma crença estar epistemicamente garantida de modo

a possuir um estatuto epistémico maximamente positivo e, logo, lhe permita ser

epistemicamente excelente.125 Trata-se pois de apresentar um esquema que mostre não

apenas como é que uma crença adquire valor em função da sua proximidade com a

verdade, no sentido em que a satisfação de determinadas condições confere uma elevada

probabilidade de verdade à crença, mas que mostre também quais os passos que têm de

ser satisfeitos para que a relação entre a crença e a verdade da proposição que é alvo dessa

crença seja a mais correcta.

6.4. Outra metodologia

Ao tentarem elucidar a natureza de um EEMP, uma larga maioria de epistemólogos

aponta um conjunto de condições necessárias e suficientes para ocorrer esse EEMP. Depois

examinam casos particulares, vindo quase sempre a constatar que, pelos mais variados

motivos, muitos dos quais inspeccionámos na primeira parte, mas principalmente por não

serem satisfeitas determinadas condições, ou por as que são satisfeitas serem demasiado

exigentes, esses casos se constituem como contra-exemplos a essas elucidações. Esta

forma de actuar constitui-se como um paradigma. Vamos chamar-lhe Paradigma

Procedimental Clássico.

125 Pedimos ao leitor que recorde as elucidações sugeridas na secção 6.1.

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176

O programa analítico que consiste (ou consistiu), part icularmente no período pós-

Gettier, na tentativa de encontrar uma análise do conhecimento é um exemplo claro do

Paradigma Procedimental Clássico. Como vimos, há quem defenda que este programa está

esgotado: Williamson é sensível a essa possibilidade quando as elucidações respeitam ao

conhecimento, enquanto Alston é sensível a essa possibilidade quando as elucidações

respeitam à justificação. Sem nos havermos comprometido com estas perspectivas, não

podemos contudo deixar de contemplar a hipótese de elas estarem correctas, justamente,

pensamos nós, por o paradigma que dita a metodologia de actuação no interior do

programa analítico estar esgotado.

Para divisarmos onde e porquê provavelmente falha o paradigma procedimental

clássico como metodologia, vamos mais uma vez trabalhar sobre uma das tentativas de

oferecer uma definição/análise do conhecimento (neste caso duas definições de base)

encetadas na era pós-Gettier. Assim, Graham Dawson sugere o seguinte:

àCo he i e toà↔à e çaàjustifi adaà e dadei aà

é uma análise falsa, pois...

2) Conhecimento →à e çaàjustifi adaà e dadei a

é falsa. No entanto, Dawson considera que...

3) Crença fiável verdadeira →à o he i e to

é verdadeira, e

4) Crença justifi adaà e dadei aà→à o he i e to (Dawson 1981: 316)

também é verdadeira. O ponto de Dawson é portanto, em primeiro lugar, por 1 e

por 3, que o conhecimento não é, estritamente falando, apenas crença justificada

verdadeira. A implicação material descrita por 2 é falsa em virtude da implicação descrita

em 3 ser verdadeira. Quer dizer, há casos de conhecimento que não são casos de crença

verdadeira justificada mas sim casos de crença fiável verdadeira. Por conseguinte, ter uma

crença justificada verdadeira não é uma condição necessária para se ter conhecimento, tal

como ter uma crença fiável verdadeira não é uma condição necessária para se ter

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conhecimento, pois há casos de conhecimento que são casos de crença justificada

verdadeira mas não casos de crença fiável verdadeira (Ibidem: 323).

Ainda segundo Dawson, todos os casos de crença justif icada verdadeira—em que a

justificação da crença é concebida como racionalidade da crença—são casos de

conhecimento. Por conseguinte, ter-se uma crença justificada verdadeira é, ainda segundo

Dawson, suficiente para se ter conhecimento. Do mesmo modo, é razoável supor-se que

um agente ter uma crença fiável verdadeira é suficiente para se ter conhecimento. Daqui

retira-se que, em determinadas circunstâncias, a satisfação de um conjunto de condições

é suficiente para haver conhecimento, mas que noutras não é sequer necessário ocorrer

essa satisfação para haver conhecimento. A suficiência das condições não implica pois a

necessidade das condições.

Vemos que, se Dawson estiver correcto, a noção de EEMP pode ter diferentes

elucidações, as quais têm origem na satisfação de diferentes conjuntos de condições; e se

isso for o caso, deixam por certo de fazer sentido as tentativas de submeter uma única

elucidação que seja válida para todos os casos de EEMP. Sendo assim, o Paradigma

Procedimental Clássico está destinado a falhar, pois falhará qualquer a tentativa de

submeter uma elucidação que, absolutamente rígida no que respeita ao conjunto restrito

de condições necessárias e suficientes que propõe, seja aplicável a todos os casos de EEMP;

isto porque será sempre possível encontrar um caso de EEMP que não decorre da

satisfação do conjunto de condições descrito por essa definição. Não concordamos com

este resultado e pensamos que é possível evitá-lo.

Experimente-se então alterar a metodologia habitual. Quando se trata de

esclarecer que condições são realmente necessárias e suficientes para todos os casos de

EEMP, em vez de tentarmos a habitual direcção...

Detecção das condições necessárias e suficientes para a ocorrência de um EEMP (não usando candidatos a EEMP ou casos de EEMP) → Detecção de casos de EEMP,

experimente-se a direcção...

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Detecção de casos de EEMP oà usa doà o diçõesà e ess iasà eà sufi ie tes à→ Detecção de condições necessárias e suficientes para a ocorrência de um EEMP.

Se for possível verificar, partindo do exame de candidatos plausíveis a EEMP e de

critérios plausíveis, que condições são realmente necessárias e suficientes para a

ocorrência de um EEMP, então certamente que a nova metodologia será proveitosa. Será,

em primeiro lugar, mais inclusiva do que a anterior, no sentido em que nos permitirá

elencar um conjunto exaustivo de condições necessárias e suficientes. E será, em segundo

lugar, mais eficiente do ponto de vista da elucidação, uma vez que, como veremos, a

metodologia permitirá organizar e hierarquizar um vasto número condições e, logo,

acomodar melhor as cinco intuições acima referidas. As principais desvantagens da

metodologia serão abordadas mais adiante.

6.5. Candidatos plausíveis a EEMP

É pois chegado o momento de submetermos alguns candidatos plausíveis a EEMP.

O critério que apresentaremos para a detecção desses candidatos não assenta contudo

exclusivamente nas habituais razões oriundas da epistemologia. A ideia de procurar razões

que não venham da província da epistemologia visa essencialmente não contaminar as

atribuições de EEMP com considerações e pressupostos pré-teóricos oriundos dessa

província.

Quando nos referimos a candidatos a EEMP estamos a referir-nos a casos plausíveis

de EEMP, casos que o mais céptico dos filósofos (tirando talvez algumas raríssimas

excepções126) não descartaria enquanto tal. Talvez alguns desses filósofos tenham, qua

filósofos, dúvidas acerca da plausibilidade desses casos, mas tal não lhes passaria pela

cabeça enquanto pessoas comuns. Existe sem dúvida uma cisão entre a atitude céptica tida

por alguns epistemólogos, nomeadamente em contexto de discussão académica e

filosófica, e a atitude dogmática tida por muitas pessoas, incluindo filósofos, em contexto

normal. O loci classici de David Hume exemplifica com rigor esta duplicidade de

circunstâncias na avaliação. Hume diz o seguinte:

Oàg a deàsu e so àdoàpirronismo ou dos princípios excessivos do cepticismo é a acção, o trabalho e as ocupações da vida comum. Esses princípios podem

126 Talvez alguns dos trabalhos de Unger (1975: 7-44, 92-147) e de Stroud (2000) dêem corpo à perspectiva céptica

mais radical.

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efectivamente triunfar nas escolas, onde, efectivamente, é difícil se não impossível, refutá-los. Mas, logo que abandonam a sombra e, em virtude da presença de objectos reais que movem as nossas paixões e sentimentos, entram em oposições com os mais poderosos princípios da nossa natureza, esvanecem-se como fumo e deixam o céptico mais decidido na mesma cond iç oà ueàosàout osà o tais (Hume 2009: 143)

Mais recentemente, mas na mesma linha, Chisholm afirma o seguinte:

Osàpuzzlesà o eça àaà fo a -seà ua doà osàpe gu ta os,à Oà ueà à ueàpossoàeal e teàsa e àa e aàdoà u do? àEstamos cientes de que há pessoas que pensam

que sabem mais do que de facto sabem. Estou a pensar em fanáticos, sectários, místicos e dogmáticos de vária ordem. E já todos ouvimos falar de pessoas que reclamam saber bem menos do que de facto sabem. Estou a referir-me àquelas pessoasà ueàseàautode o i a à pti os àeàgosta àdeàdize à ueàasàpessoasà oàpodem saber como o mundo realmente é. As pessoas tendem a ficar temporariamente cépticas depois de lerem livros de ciência popular: os autores dizem-nos que não podemos saber como as coisas realmente são (mas usam uma grande quantidade de conhecimento, ou uma vasta quantidade do que é tido como conhecimento, para sustentar a sua conclusão céptica). E, como sabemos, as pessoas tendem a tornar-se temporariamente dogmáticas sob a influência do álcool, das drogas, de experiências religiosas e emocionais. É aí que reclamam ter uma visão interior do mundo e pensam estar na posse de um conhecimento profundo que lhes dá a chave para o funcionamento do universo. Se é portador de um salutar senso comum, vai sentir que algo está errado com ambos os extremos e que a verdade está algures no meio: podemos saber bem mais do que o céptico diz que podemos saber eà e à e osàdoà ueàoàdog ti oàouàoà ísti oàdizà ueàsa e os. (Chisholm 1982: 61)

Para nós o que nos ocupa, é suficiente que se possa admitir a existência de casos

consensuais de EEMP, consensuais mesmo entre epistemólogos. Não tivéssemos outras

bases para declarar a sua plausibilidade qua casos de EEMP, e cremos tê-las, teríamos o

testemunho de tão ilustres vultos da filosofia. Quer o leigo em epistemologia quer o

epistemólogo aceitam pois a sua existência. O primeiro tem a tendência para a aceitar

tacitamente, já o segundo tem a tendência para a aceitar à luz de argumentos sólidos.127 À

falta de demonstração em contrário por parte do céptico radical, aceitaremos também

essa tese como hipótese de trabalho e como ponto de partida e inspeccionamos de seguida

o que nos parecem ser alguns candidatos plausíveis a EEMP.

Candidato 1 a EEMP:

127 O contraste entre aspectos sociais e não-sociais da epistemologia pode ser encontrado em Goldman (1986: 295-

311).

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—S acredita garantidamente que 2+3=5.

A proposição 2+3=5 é aceite e tida como uma verdade ou realidade aritmética quer

pelo epistemólogo quer pelo leigo. Existem várias teorias matemáticas e filosóficas acerca

da natureza dos números naturais e das relações de adição. Todas têm problemas, mas

todas contribuem de algum modo para explicitar o fenómeno que o leigo dá por garantido.

Tome-se, como exemplo, a explicação logicista de número natural avançada por

Frege. Como é sabido, o objectivo do programa de Frege é reduzir a aritmética à lógica (ou

reduzir as verdades da aritmética às verdades da lógica). No essencial, o seu ponto passa

por derivar as proposições da primeira das proposições da segunda. Como para Frege a

lógica oferece uma sistematização dos cânones da razão, espelha a validade das nossas

inferências e, logo, oferece justificações a priori para a aritmética, as vantagens mais óbvias

em adoptar este processo de sistematização lógica seriam: i) revelar as relações de

dependência lógica que existem entre verdades da aritmética; ii) facultar uma melhor

compreensão dos conceitos envolvidos na aritmética e na matemática. Para concretizar o

seu objectivo explanatório, Frege usa um sistema de lógica de segunda ordem, pois é um

sistema no qual as quantificações existenciais e universais incidem sobre conceitos, o que

faz delas quantificações de segunda ordem. Apesar disso, o sistema usa também

quantificações de primeira ordem, quer dizer, quantificações sobre objectos (que não são

conceitos ou propriedades em sentido estrito). Frege adiciona a este sistema de segunda

ordem um operador de extensão (ê) que simboliza a extensão de conceitos (Cf Zalta 2009).

Sem dúvida que ao programa logicista de Frege foram diagnosticados dois

problemas.128 Isso tornou o programa vulnerável e conduziu a várias tentativas de o

128 O problema da definição do conceito de número natural ser uma definição impredicativa e o problema do

paradoxo que decorre da teoria das extensões e das classes: o célebre Paradoxo de Russell. Uma explicação completa do

primeiro problema não cabe nesta nota. Já o Paradoxo de Russell é uma contradição que decorre da teoria fregeana de que

todos os conceitos têm extensão. Essa teoria revelou-se fundamental para a filosofia da matemática de Frege, mas Russell

mostrou que ela encerra a seguinte contradição. Consideremos o conceito «o conjunto que não é elemento de si próprio»

(1). Suponhamos agora que (1) tem uma extensão R. Segue-se que R = «ao conjunto x tal que x não é elemento de si

próprio». Concluímos então que x pertencerá a R sse x não pertencer a R, i.e., x R x R, o que é contraditório. E

como x é igual a R, podemos então substituir x por R e dizer que R R R R, o que é igualmente contraditório, pois

ou R pertence a R ou R não pertence a R, i.e., ou é verdade que R R ou é verdade que R R, não podendo ambas ser

verdadeiras. O que a colocação do paradoxo mostra é que há conceitos, como é o caso do conceito (1), que não podem ter

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substituir por outros programas (sendo que as mais bem-sucedidas tentativa são

provavelmente aquelas que usam a Teoria dos Conjuntos). Não nos iremos contudo deter

nestes aspectos mais particulares do problema. O nosso ponto é de que há várias

explicitações possíveis para a noção de número e de soma, o que dá algumas garantias de

que a noção não é totalmente inacessível do ponto de vista cognitivo e da explicação.

Estando disponível uma noção plausível de número natural, as relações de adição tornam-

se explicáveis usando, por exemplo, as Leis de Morgan. Sendo estas relações explicáveis,

as relações de subtracção tornam-se também explicáveis, e assim sucessivamente.

Mas o leigo não requer estas complicadas explicações para ter uma crença

garantida de que 2+3=5. O leigo em filosofia da matemática domina cognitivamente este

tipo de operações aritméticas básicas usando a sua experiência, isto sem sequer se dar

conta do que as pode alicerçar. Ninguém, num estado psicológico considerado normal, que

o p ee daàosà o eitosàdeà ú e o,àdeà ,àdeà àeàdeàadiç o,àa e taàaàpossi ilidadeàdeà

a adição de 2 com 3 não resultar em 5. Quem se encontra nestas condições tem uma crença

verdadeira e garantida de que 2+3=5.129 Estamos pois inclinados para a ideia de que,

genericamente, em circunstâncias de avaliação normais, este tipo de crenças constituem-

se plausivelmente como casos de EEMP, isto independentemente das razões filosóficas,

extensão (pelo menos se atendermos ao paradoxo e não houver outra saída); pois qualquer tentativa de considerar as

extensões de conceitos como objectos com propriedades “auto-predicáveis” conduz inevitavelmente a contradições. Como

a filosofia da matemática de Frege, e em particular a sua tentativa de extrair a aritmética da lógica, dependiam em larga

medida da ideia de que todos os conceitos têm que ter extensão, é natural que a contradição patente no paradoxo tenha

abalado a referida filosofia.

129 Não vislumbramos um mundo possível no qual 2 + 3 ≠ 5, a não ser que nesse mundo os conceitos de 2, 3 e de

adição sejam diferentes do que são no mundo actual, referindo-se a outras entidades que não as que referem no mundo

actual. A seguinte passagem de Saul Kripke sustenta de algum modo a nossa pretensão.

“Agora suponha que encontro um céptico bizarro. Esse céptico põe em causa a certeza da minha resposta, em

termos do que referi com sendo o ‘significado metalinguístico’. Ele sugere porventura que, como usei o termo ‘mais’ no

passado, a resposta que eu pretendia dar para ‘67+58’ deveria ter sido ‘5’! Claro que a sugestão do céptico é obviamente

insana. A minha réplica a esta sugestão poderia ser que o céptico deveria voltar para a escola e aprender a somar” (Kripke

1982:8)

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matemáticas, do senso-comum130, ou todas em conjunto, que nos levam a atribuir-lhes

esse estatuto.

Candidato 2 a EEMP:

—S acredita garantidamente que a água é H2O.

áà guaà à H2O à à u aà p oposição metafisicamente necessária a posteriori (Cf.

Kripke 1981: passim. Por um lado, a proposição especifica uma necessidade física e

metafísica, uma vez que a água é efectivamente H2O no mundo actual e em todos os

mundos possíveis (nos quais há o líquido água). Por outr o lado, a proposição é a posteriori

porque que a sua verdade é determinável empiricamente.

Supondo que S tem os conceitos de água, de líquido, de molécula, de hidrogénio e

de oxigénio e que acredita a água é H2O, não escandaliza sugerirmos que esta crença é um

candidato plausível a EEMP. Claro que outras condições do foro epistémico têm de ser

satisfeitas para que este seja um caso de conhecimento.

Candidato 3 a EEMP:

—S acredita garantidamente que está agora onde está

áàf aseà estouàa uiàago a ,àasse e adaàpo à“à oà o e toàt, estabelece, em t, uma

verdade contingente determinável a priori. Trata-se de uma verdade contingente uma vez

que S poderia ter estado noutro sítio em t. Trata-se de uma verdade determinável a priori

por S, uma vez que essa verdade não deriva da experiência (embora tenha origem na

experiência).131 Para qualquer agente, em circunstâncias normais, a sua ideia de que está

onde está, na altura em que está, é-lhe transparente sob reflexão. A maneira como esta

verdade se apresenta a alguém confere-lhe aparentemente um alto grau de auto-

evidência, o que parece ser suficiente para, ceteris paribus, qualificar a crença como um

EEMP.

Candidato 4 a EEMP:

130 A noção de senso-comum aqui empregue pode ser reconduzida à noção encontrada em Reid (1843: 381). Reid

remete o significado de “senso-comum” para a noção de capacidade comum de ajuizar ou de discernir (por exemplo,

discernir o verdadeiro do falso).

131 Usamos aqui a velha distinção Kantiana entre origem e derivação do conhecimento, aplicando-a à noção de

verdade. Cf. Kant 1997 b1.

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—S acredita garantidamente que isto é vermelho

Pergunte-se a qualquer pessoa se, em circunstâncias pessoais e ambientais

regulares, ao apontar para um objecto totalmente vermelho duvida que aquilo para o qual

aponta é vermelho. Uma larga maioria de pessoas, incluindo muitos epistemólogos

(possuidores do bom senso descrito por Chisholm, ver acima), responderá que não duvida.

Contudo, a possibilidade de erro massivo dos sentidos preocupa os filósofos. Acima (ver

secções 4.2.2 e 4.2.3.) visitámos diversos cenários cépticos nos quais o agente está

massivamente enganado acerca do que julga percepcionar e, logo, está enganado acerca

do estatuto epistémico das suas crenças, o qual julga ser positivo, quando afinal é negativo.

Esses cenários colocam hipóteses cépticas radicais que causam perplexidade e

aparentemente nos impedem de encontrar nas crenças perceptuais candidatos plausíveis

a EEMP. Daí julgarmos ser pertinente voltar novamente ao tópico das restrições que os

cenários cépticos radicais colocam a qualquer tentativa de elucidar fenómenos

epistémicos.

Há várias formas de responder ao desafio céptico. As hipóteses que fazem mais

sentido parecem ser as seguintes:

1— Concordar com ele.

2— Ignorá-lo.

3—Aceitá-lo para mostrar que é auto-refutante.

4—Declarar o empate entre a posição do céptico e a não-céptica (por vezes também referida por posição dogmática).

Ao escolhermos 1 estamos a dar razão ao céptico e tornamo-nos por isso também

cépticos. A resposta não é pois por isso interessante da nossa perspectiva. Ao escolhermos

2 estamos certamente a contrariar o céptico. Estamos no fundo a dizer-lhe que o cenário

que idealiza não é suficientemente convincente ou perigoso do ponto de vista

epistemológico para justificar a nossa preocupação e a nossa réplica. Esta é quase sempre

a reacção típica do leigo em epistemologia quando confrontado com cenários cépticos

radicais. Se nos for permitido usar a semântica dos mundos possíveis para explicar a atitude

do leigo, diremos que este pensa nos cenários radicais idealizados pelo céptico como

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mundos possíveis nomologicamente distantes ou como mundos impossíveis, merecendo-

lhe assim esses cenários pouco crédito, principalmente por considerar que a probabilidade

de o mundo actual ser um desses mundos é bastante baixa. Infelizmente para o leigo,

porém, há formas de estabelecer o cenário céptico de maneira a contornar a objecção da

não proximidade no mundo demonizado. Sosa (2007 passim) apresenta um desses casos,

que é simplesmente o caso de alguém que no mundo actual se diverte a mudar a cor de

uma parede branca para que possa parecer vermelha a quem a vê. Não há nada de

nomologicamente dista te à esteà aso.àOàage teàpensa estar a ver uma parede vermelha

mas, como está de facto a sofrer uma ilusão de óptica motivada por quem altera a cor da

parede, não vê que a parede é vermelha, não podendo portanto a sua crença de que isto

é vermelho ser EEMP.

Podemos conceder provisionalmente o ponto ao céptico e fazê-lo notar que, por

ter razão, se encontra na mesma situação do que nós. A ideia é mostrar-lhe não nos pode

afirmar o que quer que seja se tiver razão, incluindo que tem razão. Suponha-se que o

céptico reclama que pode afirmar que tudo o que experienciamos é uma aparência e que

nada do que percepcionamos é o caso, segue-se que a afirmação que faz perde todo o

sentido, pois, na ânsia ter razão, assume que os alvos da sua afirmação (nós os não-

cépticos) podem ser meras ilusões da sua percepção (incutidas por génios, cientistas,

demónios, extraterrestres, etc).132

A derradeira hipótese, a 4, não se configura também como muito favorável para o

não-céptico. A possibilidade de empate entre o céptico e o não-céptico surge geralmente

explícita na disputa entre mooreanos e não mooreanos. Essa possibilidade leva os filósofos

mooreanos ou neo-mooreanos a optar por uma postura epistemologicamente agressiva

contra as possibilidades cépticas. Como se viu acima, o mooreano tem a tendência para

132 A ideia de que, mesmo sendo nós seres incubados, muitas das nossas crenças tidas nessa situação são EEMPs

é, pace Chalmers (2005)., uma ideia pouco plausível, pelo menos no que respeita a crenças com origem na percepção. A

ideia de que temos crenças verdadeiras com origem na nossa capacidade de percepcionar tem de ser confrontada com a

pergunta: O que é nesse caso percepcionado? Por certo que não é uma superfície vermelha. Mesmo que o nosso argumento

não seja conclusivo ou não convença o céptico (e não nos referimos a Chalmers), podemos sempre optar pela estratégia

anti-céptica habitual. Se o céptico reclama nenhum estado de crença é um EEMP, então só temos que lhe fazer ver que não

somos forçados a aceitar o que afirma, pois o seu estado de crença não tem um estatuto epistémico relevante. Isto é válido,

pensamos, para vários tipos de conteúdos proposicionais, oriundos da percepção ou de qualquer outra fonte.

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apresentar um argumento simplificado em defesa da possibilidade de conhecimento.

Pritchard, por exemplo, descreve a contenda do seguinte modo:

Mooreanismo:

M1. Eu sei que tenho duas mãos.

M2. Se eu sei que tenho duas mãos, então sei que não sou um CNC.

MC. Eu sei que não sou um CNC.

Cepticismo:

S1. Eu não sei que não sou um CNC.

S2. Se eu sei que tenho duas mãos, então sei que não sou um CNC.

SC. Eu não sei que tenho duas mãos. (Pritchard 2008)

O sucesso do mooreanismo depende pois em larga medida da capacidade do

mooreano em nos mostrar a verdade de M1, enquanto o sucesso do cepticismo depende

em larga medida da capacidade do céptico de nos mostrar a verdade de S1. Como diz

Prichard, a situação traduz-se numa espécie de empate entre o mooreano e o céptico, pois

é tão difícil ao primeiro mostrar que M1 é verdadeira quanto ao segundo mostrar que S1

é verdadeira.

Pritchard (Ibidem) crê, quanto a nós correctamente, que esta situação acaba por

constituir uma objecção à postura do mooreano e gerar o que Pritchard chama a objecção

do impasse.133 Esta objecção diz basicamente que a postura e o argumento do mooreano

não é suficientemente eficaz ao ponto de demitir o argumento e a postura do céptico. De

facto, a situação de empate aparenta ser mais favorável para as pretensões do céptico do

que para as do mooreano, pois aquele não precisa de fazer vingar a possibilidade de ilusão

massiva, bastando-lhe sugerir essa possibilidade, suspender o juízo a respeito dela, para

de algum modo fazer valer o seu ponto. O que as hipóteses cépticas radicais fazem é

bloquear a pretensão do mooreano de apontar, sem margem para dúvida, um EEMP. Aliás,

a necessidade que o neo-mooreano sente de contrariar o argumento céptico e a sua

133 O texto identifica mais duas objecções ao mooreanismo clássico. A primeira está ligada à segunda que agora

discutimos, enquanto a terceira parece-nos menos interessante por se apoiar em razões de linguagem.

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conclusão reflecte justamente esse sentimento de urgência que o não-céptico tem em

derrubar o bloqueio imposto pelo argumento do céptico. (Conhecem-se poucas tentativas

intencionais do contrário, ninguém deseja realmente que as hipóteses cépticas radicais

sejam verdadeiras). A tentativa neo-mooreana de refutar o céptico que expomos de

seguida reflecte essa mesma necessidade.

Resumidamente, o ponto neo-moreano contra o argumento céptico é o seguinte:

Independentemente da experiência que o agente tem que isto é vermelho ser, do ponto

de vista fenoménico, indistinguível no bom e no mau caso, as razões (fundamentos) de que

o agente dispõe no bom caso como evidência para acreditar que vê algo vermelho e as

razões de que o agente dispõe para acreditar no mau caso que vê algo vermelho são

diferentes. Crucialmente, as primeiras são factivas, enquanto as segundas não. Isto faz com

que os conteúdos das experiências sejam diferentes, apesar de elas serem indistinguíveis

do ponto de vista do agente. Esta perspectiva é, segundo Pritchard (Ibidem), uma espécie

de disjuntivismo epistémico, a qual atribui a McDowell. 134 Conseguindo o agente ter acesso

reflexivo às razões factivas que sustentam a sua crença perceptual no bom caso, terá

também, desta feita segundo Pritchard, uma forma eficaz de bloquear ou mesmo demitir

o argumento céptico. Segundo estes pensadores, em especial Pritchard, a vantagem

teórica dos neo-mooreanos é estar por defeito (default) numa posição de senso-comum

(commonsense) a respeito das razões que possui para a sua crença perceptual. É assim

porque, avança o neo-mooreano, em casos rotineiros de conversação os agentes fazem

por defeito um uso linguístico correcto (que explica de alguma maneira comportamentos

linguísticos e o sucesso de muitos desses comportamentos) de expressões que implicam

razões factivas (ou que implicam a factividade da crença perceptual), expressões como

... à ue... ,à ... ejoà ue... ,àet .,àoà ueà àdeà e toà odoàu à o ài dicador de que não é

o neo-mooreano que é revisionista em relação à posição por defeito, sendo portanto o

revisionismo atribuível à posição do céptico. Pritchard alega pois que isto confere uma

pequena vantagem teórica à posição do neo-mooreano. O que nos é dito é que apesar de

134 O disjuntivismo é epistémico por a diferença entre conteúdos de experiências ser de razões e não ser de

conteúdos simples da percepção, como no caso do disjuntivismo perceptual simpliciter. Tal como notado por Pritchard, a

tese também é defendida em género por Williamson (2000: 169).

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o pressuposto de que o senso-comum está geralmente na posição por defeito ser um

pressuposto altamente falsificável, esse pressuposto representa ainda assim uma boa base

de sustentação para a teoria de McDowell.

Pritchard alega também, por outro lado, enquanto parte da solução, que o

externalismo epistémico está em boas condições de oferecer uma perspectiva plausível de

como o agente pode ter boas razões no bom caso e más razões no mau caso, isto

independentemente do conteúdo da experiência fenoménica ser o mesmo. Eis a passagem

relevante:

... àN oàpa e eàexisti à ual ue à az oàdeàp i ípioàó iaàpelaà ualàu àexte alistaàepistémico devesse considerar que a evidência perceptual de um agente esteja limitada em termos daquilo que é fenomenologicamente distinguível para esse agente. O externalista pode alegar, por exemplo, que a natureza da nossa evidência perceptual é em parte determinada por factos que dizem respeito ao pedigree do mecanismo de percepção através do qual essa evidência é adquirida—a sua fiabilidade no seio do ambiente [cognitivo] relevante, por exemplo—o que são factos que, segundo a concepção externalista clássica, não estão reflexivamente disponíveis para o agente. Numa concepção da evidência deste tipo externalista, a natureza da evidência perceptual seria diferente [em cada um dos casos] por causa do diferente pedigree do mecanismo percepção, isto apesar dos dois casos serem fenomenicamente indisti guí eisàpa aàoàage te (Ibidem)

Claro que, dizemos nós agora, parece que o facto de o agente ter boas razões do

ponto de vista externalista, na linha do que é sugerido por Pritchard, não parece ser

suficiente para ditar ao agente que está bom caso. A exigência não satisfeita de capacidade

de discernimento reflexivo entre boas e más razões pode deixar o agente na mesma

condição de incerteza acerca do conteúdo da sua experiência mesmo estando no bom

caso. Como diz Pritchard, imputando a posição a McDowell , o truque está pois em supor

que não apenas o agente tem boas razões, por exemplo, por via da sua experiência

perceptual derivar de um processo cognitivo fiável, mas que esse agente pode também

discernir que essas são de facto boas razões, pois só isso parece poder garantir ao agente

que está no bom caso.

Basicamente, segundo Pritchard, o neo-mooreano (neste caso McDowell) responde

alegando que há três ordens de considerações para sustentar que o seu disjuntivismo dá

conta da diferença entre o bom e o mau caso. Duas delas, mais passivas, referem-se à

forma como o disjuntivismo se ajusta à prática linguística e ao senso-comum, e à forma

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como o céptico não oferece boas razões para pensarmos que não é possível para o agente

distinguir entre razões factivas e não-factivas contidas na sua experiência perceptual. Não

iremos dissecar aqui essa argumentação. No que respeita à tese mais positiva, é

importante referir que ela assenta fundamentalmente no pressuposto de que uma

perspectiva do senso-comum pode fazer pender a balança para o lado do neo-mooreano.

Talvez. Mas o céptico pode valer-se do mesmo tipo de armas, alegando que duvidar e

expressar cepticismo em relação à eficácia e ao alcance das nossas razões (fundamentos)

também está conforme a prática linguística comum e à intuição.

Por fim, quanto ao último ponto aduzido por Pritchard a favor do neo-

mooreanismo, o que se tenta mostrar é que é possível transpor as dificuldades

(wittgensteinianas) relacionadas com o facto de as asserções do tipo mooreano poderem

ser concomitantemente verdadeiras e inapropriadas. Mas isto não parece também ser

suficiente para mostrar que o agente consegue discernir entre boas e más razões. Apenas

mostra que a eventual verdade dessas asserções, asserções que fazemos em função do que

julgamos ser o nosso conhecimento perceptual, é compatível com o facto de ser

inapropriado fazê-las. O céptico pode conceder isso sem ter de conceder que o mooreano

tem um bom critério para distinguir reflexivamente boas e más razões que saem de

experiências indistinguíveis do ponto de vista fenoménico.

Identificámos de forma muito resumida alguns problemas filosóficos que envolvem

uma atribuição do estatuto de EEMP a uma crença perceptual, algo que se afigura

extremamente plausível para o leigo. Detivemo-nos mais um pouco na discussão deste

candidato a EEMP porque pensamos que mesmo considerando todos os problemas

filosóficos em redor deste candidato, ninguém duvidaria que, em circunstâncias normais,

este é realmente um bom candidato a EEMP. Claro que o céptico poderá desafiar-nos a

mostrar o que são essas circunstâncias. Mas mesmo que não consigamos desenvolver essa

demonstração, isso não invalida que não possamos admitir 4 como um candidato plausível.

O facto de termos dúvidas acerca da capacidade filosófica de um aluno não é um factor

eliminatório da candidatura desse aluno a filósofo. O cé ptico é preconceituoso se rejeitar

a analogia e inconsistente se a aceitar e continuar a supor que 4 não é um candidato

plausível.

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Candidato 5 a EEMP

—S acredita garantidamente que morreram milhões de pessoas por causa da Segunda Grande Guerra Mundial

Face à evidência disponível (de vários tipos), parece absurdo não acreditar que

morreram milhões de pessoas por causa da Segunda Guerra Mundial. Essa crença numa

proposição de carácter histórico é pois, em circunstâncias normais, um candidato plausível

a EEMP.

6.6. Critérios de identificação de condições necessárias e suficientes para a

ocorrência de um EEMP

Tendo encontrado alguns candidatos plausíveis a EEMP, que remos nesta fase

fundar nessa plausibilidade a nossa busca por um crit ério de identificação de condições

necessárias e suficientes para ocorrer um EEMP. Uma vez que acima (ver secção 6.1.)

avançámos como hipótese de trabalho um EEMP é um estado de crença epistemicamente

garantida, no sentido em que a garantia permite à crença ser apropriadamente verdadeira

e infalsificável, procuramos agora critérios para identificar as condições necessárias e

suficientes para que ocorra esse tipo de garantia e, logo, para que possa ocorrer um EEMP.

6.6.1. Um critério de identificação de condições necessárias para a ocorrência de

um EEMP

Considere-se o estado E que goza de um estatuto epistémico maximamente

positivo e o estado E*, em tudo igual a E, excepto no que respeita a gozar desse estatuto.135

E e E* são estados de crença verdadeira ou, se o leitor preferir, estados de aceitação de

uma proposição verdadeira.136 Suponha-se adicionalmente que, num mundo possível w, S

está num estado E relativamente a p, enquanto no mundo possível w*, S está num estado

E* relativamente a p. Suponha-se agora que w é o mundo actual e que, neste mundo, pelas

135 Repare-se que E* pode ser um estado que goza de um estatuto epistémico positivo simpliciter, por exemplo, à

guisa alstoniana.

136 Casos de crença falsa não podem obviamente ser casos epistemicamente positivos, uma vez que a verdade não

é alcançada. O defensor da tese contrária tem o ónus de explicar em que medida são epistemicamente positivos casos de

crença falsa. Talvez possa alegar que certas crenças falsas são epistemicamente importantes para a aquisição de crenças

verdadeiras e, logo, são estados epistemicamente positivos. Esta é uma possibilidade que rejeitamos até possuirmos mais

e melhores indícios a seu favor.

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razões acima apontadas aquando da apresentação dos candidatos p lausíveis a EEMP, o

estado E é um bom candidato a EEMP. Supondo que assim é, e não vemos nenhuma boa

razão para não o ser, pergunta-se agora como poderia E perder esse estatuto e, portanto,

transformar-se em E*, na passagem de w para w*. A nossa resposta é a de que algo crucial

do ponto de vista epistémico é perdido nesta transição.137 Propomos que o que causa essa

perda é uma condição suficiente para um EEMP deixar de o ser.

Considere-se agora o seguinte critério:

C-Nec—Se X é uma condição suficiente para um estado E não ser maximamente positivo do ponto de vista epistémico, então a condição Y inversa a X é uma condição necessária para E ser um estado maximamente positivo do ponto de vista epistémico.

Por exemplo, se a falta de evidência adequada para acreditar que p for uma

condição suficiente para um agente transitar de um estado do tipo E para um estado do

tipo E*, então ter evidência adequada será uma condição necessária para um estado do

tipo E.

Não detectamos qualquer contra-exemplo a C-Nec. Quer dizer, não conseguimos

vislumbrar uma condição filosoficamente relevante tal que, sendo essa condição suficiente

para S transitar de um EEMP para um não-EEMP, então a condição inversa dessa condição

não seja necessária para ocorrer um EEMP. Deixando em aberto essa possibilidade,

entregamos ao crítico o ónus de a demonstrar.

Deve agora indagar-se como pode C-Nec realmente auxiliar-nos na detecção das

condições necessárias para ocorrer um EEMP. A nossa primeira impressão é a de que C-

Nec sugere uma trivialidade, pois parece que é igual usar a direcção que descreve as

o diçõesàsufi ie tesàpa aà t a sita àdeàEàpa aàE*àouàaàdi e ção que descreve as condições

e ess iasàpa aà t a sita àdeàE*àpa aàE.àH à o tudoàu à fa to à ueàpodeàse i -nos de

critério de escolha entre a direcção E/E* e a direcção E*/E, permitindo-nos dar a prioridade

na ordem da explicação à primeira direcção. Esse factor é o seguinte:

137 Por “passar” e “transição” queremos apenas indicar a transição entre mundos possíveis ligeiramente diferentes,

e não a passagem diacrónica, no mundo actual, de um estado ao outro. Não se trata de pois perder ou de ganhar

conhecimento, ou outro estado epistémico, no sentido convencional e temporal das expressões.

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191

F-ɵ — Em casos de fronteira, a aceitação de que um estado não é um EEMP é mais fácil e mais consensual do que a aceitação de que um estado é um EEMP.

Podemos apoiar F-ɵ em duas ordens de razões. Por um lado, podemos apelar para

o facto de ser intuitivamente mais fácil apontar um caso que falha em ser um caso de EEMP,

porque é intuitivamente mais fácil de perceber que algo falha do ponto de vista epistémico

nesse caso, sendo portanto mais fácil apontar uma condição suficiente para que esse caso

seja um putativo EEMP do que apontar uma condição necessária para ocorrer um EEMP.

Note-se que com isto não estamos a supor que é difícil encontrar um bom candidato a

EEMP, tal como o fizemos na secção anterior. Estamos apenas a dizer que é mais fácil

apontar as condições suficientes para a não ocorrência de um do que encontrar condições

necessárias para que ocorra.

A segunda razão tem a ver com a aceitação consensual dos sucessivos contra-

exemplos colocados às sucessivas definições de conhecimento e de justificação (de crenças

verdadeiras), etc., apresentadas na história recente da epistemologia. Há na realidade uma

aceitação, por vezes tácita, por vezes explícita, de que os inúmeros contra-exemplos

disponíveis para diferentes definições de conhecimento revelam claramente estados, em

casos de fronteira, que não são estados maximamente positivos do ponto de vista

epistémico.138 Muito do que expusemos na primeira deste trabalho acerca do percurso

histórico do Problema de Gettier milita a favor desta pretensão, atestando por conseguinte

a correcção de F-ɵ.

Se o F-ɵ for, como pensamos ser, válido, milita favor da plausibilidade de C-Nec,

disponibilizando dessa forma esta última um critério geral para a identificação de

condições necessárias para a ocorrência de um EEMP.

6.6.2. Um critério de identificação de condições suficientes para a ocorrência de um

EEMP

Encontrar um critério eficaz que nos permita identificar as condições suficientes

para a ocorrência de um EEMP é por certo uma das mais complicadas tarefas da história

da epistemologia. O rescaldo do Problema de Gettier exemplifica na perfeição essa

138 A excepção à regra são casos do tipo caso Barney, nos quais as intuições se dividem, havendo aí indecisão

genuína acerca de serem casos de conhecimento ou de ignorância.

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192

dificuldade (Cf. Shope 1983). Recorde-se que o problema nasce em virtude da falsificação

da DTC enquanto tese da suficiência das três condições. Na realidade, os epistemólogos

p eo upadosà o àoàP o le aàdeàGettie àte ta a à espo de à à uest oà Queà o dições

são necessárias e suficientes para S saber que p? sem se preocuparem, primeiro, em

espo de à à uest oà Qualàoà it ioàpa aà ide tifi a à aà sufi i iaà dasà o diçõesàpa aà “à

saber que p? ,à uest oàestaà ueàpa e eà u aàte àsidoàde ida e teà espo dida.àSe alguém

ensaiar um demissão do problema respondendo que o critério é óbvio, sendo o da

suficiência das condições propostas como suficientes, só temos de perguntar como se

ede àouàdete i aàessaàsufi i ia,à olta doàdeà i ediatoàaà olo a -se o problema. O

nosso ponto é que não basta propor condições que, aparentemente, são suficientes para

S saber que p. Da nossa perspectiva, tem de se discernir em primeiro lugar qual o critério

de suficiência usado para aferir a suficiência dessas condições, sem o que não é possível

realizar uma atribuição de suficiência do género pretendido.

A não existência de um tal critério abre por exemplo a porta ao que pode ser

desig adoà o oà oà p o le aà daà a iguidadeà doà sig ifi adoà deà o he i e to .à

Crucialmente, tal como descrito por Mathias Steup (2008 a e b), o problema resume-se à

possi ilidadeà deà da à últiplosà sig ifi adosà aoà te oà o he i e to ,à depe de doà doà

contexto de avaliação. Assim, num contexto pouco exigente, e.g., um contexto extra-

académico e/ou extra-filosófico, o conhecimento pode ser apenas crença verdadeira.

Noutros contextos mais exigentes do ponto de vista científico e/ou filosófico,

o he i e to à podeà sig ifi a à e çaà e dadei aà justifi ada, de-gettierizada, etc. A

consequência destas diferentes avaliações acaba por ser a ambiguidade semântica da

exp ess oà o he i e toà p oposi io al à ou,à aà elho à dasà hipóteses,à aà exp ess oà

denotar diferentes conceitos ou conceitos aparentados, mas não iguais.139

Propomos agora nós como alternativa que a solução do problema do critério de

suficiência das condições para a ocorrência de um EEMP esteja de alguma forma contida

na história do problema. Com efeito, se for possível divisar um conjunto de condições que

consegue resistir a todos os contra-exemplos tipo-Gettier (disponíveis para diversas

tentativas de definir o conhecimento proposicional), então esse será plausivelmente o

139 Na linha da célebre proposta constante em Wittgenstein 2002: § 66.

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conjunto de condições suficientes para que ocorra um EEMP. O nosso critério de suficiência

usa portanto os habituais contra-exemplos como instrumentos privilegiados e como ponto

de partida para se aferir da suficiência de um conjunto de condições. A diferença entre o

nosso critério e os outros métodos é que estes últimos reclamam a suficiência das

condições a partir de outros pontos de partida e instrumentos conceptuais, enquanto o

nosso critério usa os contra-exemplos que falsificam as definições saídas desses pontos de

partida e instrumentos. Tendo isto presente, propomos o seguinte critério para identificar

um conjunto de condições suficientes para ocorrer um EEMP:

C-Suf—Se os usuais contra-exemplos que falsificam as definições de conhecimento não resistem à satisfação de um conjunto de condições, então esse conjunto contém as condições suficientes para a ocorrência de um EEMP.

O critério será explicitado na secção 6.8., especialmente a noção na antecedente, a

qual é, sem ulterior qualificação, não apenas duvidosa como também obscura.

Há porém que fazer já duas observações a respeito de C-Suf. A primeira é a de que

não nos compromete imediatamente com a ideia de que, se um estado é um EEMP, então

é um estado de conhecimento. Com efeito, pensamos que do facto de a seguinte

implicação...

Conhecimento → EEMP

ser trivialmente verdadeira, não se segue que a seguinte implicação...

EEMP →à o he i e to

o seja. Não há a possibilidade (conceptual) de haver casos de conhecimento que

não são casos de EEMP, mas há talvez a possibilidade (conceptual ou lógica) de haver casos

de EEMP que não são casos de conhecimento. O facto de um estado de crença resistir a

todos os contra-exemplos de tipo-Gettier garante-lhe um estatuto epistémico

maximamente positivo, mas não garante prima facie que esse estado seja um estado de

conhecimento. Algo mais tem de ser dito para que a segunda implicação obtenha. Adiamos

novamente (pois já a ela tínhamos aludido no começo da segunda parte) essa discussão.

Voltaremos a ela no final do trabalho.

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A segunda observação prende-se com o sentido restrito de suficiência que C-Suf

propõe. Trata-seà deà sufi i iaà i duti a ,à seà assi à seà lheà podeà ha a ,à u à do í ioà

circunscrito. Se a satisfação de um conjunto de condições é suficiente para a ocorrência de

um estado que resiste sistematicamente a contra-exemplos lançados contra tentativas de

definir o estado de conhecimento, e se qualquer estado de conhecimento é um EEMP,

então a satisfação desse conjunto de condições é—dado a amostra disponível de contra-

exemplos—suficiente para a ocorrência de um EEMP. É portanto um sentido de

sufi i ia à i u s itoà àa ost aàdispo í elàdeà o t a-exemplos, dependendo dela.

6.7. Condições necessárias para a ocorrência de um EEMP

Temos agora, da nossa perspectiva, os instrumentos de que precisamos para

identificar as condições necessárias e suficientes, filosoficamente relevantes, para a

ocorrência de um EEMP. Vimos, por um lado, um vasto conjunto de condições legado pela

investigação recente feita em epistemologia e temos, por outro, critérios que podem

servir-nos de guia para a identificação dessas e de outras condições. Iniciamos pois o

exercício de identificação de condições necessárias tendo por referência a lista de

condições vistoriada na primeira parte e a lista de desideratos indicados por Alston.

Recordando o que dissemos quando submetemos C-Nec, o leitor deverá ter em

consideração que, para uma larga maioria dos casos a discutir, supomos que há um mundo

possível (o actual) no qual ocorre um EEMP e um mundo possível, relevantemente próximo

do actual, no qual obtém uma condição suficiente para esse estado não ocorrer. Diremos

que a condição inversa dessa condição suficiente que obtém nesse mundo possível será

uma condição necessária para a ocorrência de um EEMP no mundo actual. Esperamos

assim construir a nossa própria taxonomia de condições necessárias para a ocorrência de

um EEMP.

Começamos por inspeccionar duas condições consensualmente aceites, passando-

as pelo crivo de C-Nec. Plausivelmente, se...

(-1) S não acredita que p.

e

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(-2) Não é o caso que p.

então não ocorre um EEMP. A forteriori, se S não acredita que p então não há

qualquer estado de aceitação de uma proposição, e portanto não pode ocorrer um EEMP.

Por outro lado, Se é falso que p, então o estado epistémico não pode ser positivo, pois

acreditar numa falsidade é claramente um estado epistemicamente negativo. Assim, por

C-Nec, as seguintes são condições necessárias para a ocorrência de um EEMP:

(1) S acredita que p.

e

(2) É o caso que p.

Estas são condições pouco (ou mesmo nada) disputadas na literatura. São, salvo

raras excepções, condições presentes em todas as tentativas de elucidação da natureza de

um EEMP. Sem crença e verdade (ou sem crença verdadeira) não pode ocorrer um EEMP.

Suponha-se agora que a fundamentação (seja de que ordem for) que S tem para a

verdade de que p não garante apropriadamente a verdade de que p, sendo, por

conseguinte, a crença de S falsificável. Como é óbvio, não pode ocorrer um EEMP nessas

circunstâncias. A seguinte é uma condição suficiente para que não ocorra um EEMP:

(-3) A crença de S que p não está garantida de modo a alcançar apropriadamente a verdade, sendo falsificável.

A mera possibilidade de falsificação da crença por ausência de garantia de que não

só não alcança a verdade, como não a alcança apropriadamente, retira a essa crença a

possibilidade de ter um estatuto epistémico maximamente positivo. Considere-se a crença

de Ptolomeu de que o Sol orbita (circunda) a Terra. Apesar de fundamentada, essa

fundamentação não garantia a sua verdade de forma apropriada, pois não garantia sequer

a verdade (como se sabe hoje, a crença é falsa). Por C-Nec, a seguinte é pois uma condição

necessária para a ocorrência de um EEMP:

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196

(3) A crença de S que p está garantida de modo a alcançar apropriadamente a verdade e ser (ultima facie) infalsificável.

Como o leitor já deve ter notado, a condição 2 e a condição 3 combinam as

condições ii e iii da elucidação de EEMP que submetemos no começo da secção 6.1.

Pensamos que as restantes condições necessárias para ocorrer um EEMP que iremos

sugerir de seguida são subalternas a 3, no sentido em que esta só obtém se obtiverem as

outras. A ideia ficará em estado bruto até expormos, na secção seguinte, o método que

nos permitirá apresentar as devidas relações de hierarquia entre condições.

O facto de S não ter evidência adequada para acreditar que p, mesmo sendo p

verdadeira, é suficiente para 3 não obter e, por conseguinte, é suficiente para, ceteris

paribus, não ocorrer um EEMP. A seguinte é pois uma condição suficiente para não ocorrer

um EEMP.

(-4) S não tem evidência adequada para acreditar que p.

Assim, por C-Nec, a seguinte tem de ser uma condição necessária para ocorrer um

EEMP:

(4) S tem evidência adequada para acreditar que p.

Claro que, tal como notado por Alston et al, o facto de S ter evidência adequada

para acreditar que p não é suficiente para a crença de S que p alcançar a verdade de p de

forma apropriada, pois se S tem evidência adequada para a verdade de p, mas a sua crença

não assenta nessa evidência mas noutra coisa qualquer, então esse estado de crença não

pode ser um EEMP. Suponha-se que, ao ler o De Revolutionibus Orbium Coelestium, de

Copérnico, S fica na posse de evidência adequada para aceitar a verdade da teoria

heliocêntrica. Mas suponha-se também que S não vem a acreditar que essa teoria é

verdadeira com base nessa evidência mas sim pelo facto de pensar que Ptolomeu,

reconhecidamente, o principal defensor da teoria geocêntrica na antiguidade, era mau

astrónomo. Certamente, pois, que o facto de a crença de S não assentar em evidência

adequada (mas sim em pseudo-evidência), apesar de S possuir evidência adequada, é

suficiente para a crença de S que p não ser um EEMP. Assim, a seguinte é uma condição

suficiente para não ocorrer um EEMP:

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(-5) A crença de S que p não assenta em evidência adequada.

Por C-Nec, a seguinte será uma condição necessária para ocorrer um EEMP:

(5) A crença de S que p assenta em evidência adequada.

Note-se, em primeiro lugar, que 4 é uma condição necessária para 5. Além disso,

com base no exame que fizemos na primeira parte das várias teorias da evidência,

pensamos que 4 e 5 dão conta das condições de base necessárias para uma crença estar

garantida. Pensamos que as restantes condições necessárias para ocorrer um EEMP que

iremos sugerir de seguida são subalternas a 4 e 5, no sentido em que são diretamente

necessárias para a obtenção destas e indiretamente necessárias para a obtenção da

condição 3. Mais uma vez remetemos descrição dessa hierarquia para a próxima secção.

Há, da nossa perspectiva, diversas condições suficientes quer para um agente não

ter evidência adequada para p (condição -4) quer para a crença desse agente não assentar

nessa evidência adequada (condição -5). Listamo-las de seguida.

Começamos pelas condições suficientes para a condição (-4) obter. Suponha-se

que, tal como sugerido pelo céptico, vivemos num cenário de ilusão massiva criado por

uma entidade poderosa. Nesse cenário, sem que o possamos contrariar, julgamos ter

evidência perceptual para p, mas essa evidência é afinal pseudo-evidência, pois todas as

nossas percepções são, num certo sentido, pseudo-percepções, uma vez que as coisas que

julgamos percepcionar não existem. Assim, a seguinte é uma condição suficiente para 4

não obter e, logo, para não ocorrer um EEMP:

(-6) As circunstâncias ambientais em que se forma a crença de S que p são desfavoráveis para S do ponto de vista da obtenção da verdade de que p ou há um elemento no ambiente de formação da crença que é desfavorável do ponto de vista da adequação das razões/fundamentos que S tem para acreditar que p.

Estamos razoavelmente convictos que ninguém duvida que as circunstâncias

descritas em (-6) se constituem como factores impeditivos de um agente possuir evidência

adequada para acreditar que p. Assim, por C-Nec, a seguinte será uma condição necessária

para S ter evidência adequada para acreditar que p:

(6) As circunstâncias ambientais em que se forma a crença de S que p são favoráveis para S do ponto de vista da obtenção da verdade de que p e não há

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qualquer elemento no ambiente de formação da crença que seja desfavorável do ponto de vista da adequação das razões/fundamentos que S tem para acreditar que p.

A condição 6 dá parcialmente conta dos cenários cépticos radicais comuns na

literatura. Dizemos parcialmente porque outras condições têm de obter para que tal

aconteça. Iremos introduzi-las um pouco mais adiante, quando tratarmos da forma como

uma crença deve assentar em evidência adequada, no sentido já descrito acima.

Vimos na primeira parte, especialmente nas secções 4.3.1. e 4.3.2 que, no que

respeita a circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao surgimento de evidência

adequada, algo de muito similar ao que foi dito sobre as c ircunstâncias ambientais pode

ser dito a respeito das condições de base pessoais para recolher evidência ou às fontes

sociais de evidência. Suponha-se que S chega ao resultado correcto de que 1526+6549 é

igual a 8075 não porque o seu cérebro consiga fazer a inferência mas porque está a ser

comandado por uma entidade o faz acreditar apenas em verdades aritméticas. E, suponha-

se também, por outro lado, que S acredita que comeu cereais ao pequeno-almoço, tendo

de facto comido cereais ao pequeno-almoço, não porque se recorde de o ter feito mas

porque alguém que lhe deseja mentir lhe diz acidentalmente a verdade. Suponha-se ainda

que S acredita que está um frasco com bolachas à sua frente quando está afinal a confundir

um holograma de um frasco com bolachas por um frasco com bolachas, estando contudo

realmente um frasco com bolachas escondido por detrás do holograma. Todas estas são

circunstâncias de crença verdadeira (provavelmente justificadas) nas quais há um qualquer

problema relacionado com o exercício deficiente das capacidades cognitivas do agente

(capacidade de realizar inferências válidas, capacidade de memorizar e recuperar

memórias, capacidade de percepcionar correctamente) ou com a fonte social de evidência

(testemunho). A seguinte é pois, a nosso ver, uma condição suficiente para não ocorrer um

EEMP:

(-7) As virtudes intelectuais de um agente, as suas capacidades cognitivas e, em geral, as fontes de evidência ou fundamentos, sejam elas de carácter pessoal (a capacidade de realizar inferências, a capacidade memorizar e recuperar memórias, e a capacidade de percepcionar) ou social (testemunho), não estão a operar correctamente.

Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:

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(7) As virtudes intelectuais de um agente, as suas capacidades cognitivas e, em geral, as fontes de evidência ou fundamentos, sejam elas de carácter pessoal (a capacidade de realizar inferências, a capacidade memorizar e recuperar memórias, e a capacidade de percepcionar) ou social (testemunho), estão a operar correctamente.

A condição 7 nada mais faz do que sintetizar um conjunto de exigências

epistemológicas consensuais (ou praticamente consensuais), pelo que não nos deteremos

mais na sua discussão.

O leque de condições suficientes para não ocorrer um EEMP não termina aqui.

Suponha-se que o processo, seja ele qual for, pelo qual S poderia adquirir a evidência para

acreditar que p não é afinal fiável, quer dizer, trata-se de um processo do qual resulta

e id iaà ueà p oduz à u à g a deà ú e oà deà e çasà falsasà eà u à aixoà ú e oà deà

crenças verdadeiras. A título de analogia, suponha-se que S emprega, ao jogar xadrez, uma

combinação de lances que produz, contrariamente ao que é por si expectável (um elevado

número de vitórias), um elevado número de derrotas. Certamente que essa combinação

não é adequada para o objectivo primário de S, o qual é ganhar o jogo, pois não é fiável.

Do mesmo modo, um processo de aquisição de evidência que não seja fiável, no sentido

em que não produz os resultados desejáveis do ponto de vista epistémico, não produz

evidência adequada. A seguinte é pois uma condição suficiente para não ocorrer um EEMP:

(-8) O processo (ou processos) por via do qual S adquire evidência para acreditar que p não é fiável.

Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:

(8) O processo (ou processos) por via do qual S adquir e evidência para acreditar que p é fiável.

Repare-se que adaptamos aqui a tradicional noção de fiabi lidade à noção de

evidência, sugerindo que esta só é adequada caso o processo que esteja na sua origem seja

fiável. Isto permite-nos talvez evitar algumas objecções habitualmente levantadas às

noções de fiabilidade de crenças e de fiabilidade da justificação (vide secções 3.5. e 3.5.3.),

mas certamente que não todas. Quanto a isso temos apenas a propor, como defesa

sumária do nosso fiabilismo, que pode não ser uma condição suficiente para ocorrer um

EEMP, mas tal não impede que seja uma condição necessária, como aliás julgamos ter

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mostrado com a analogia apresentada acima. Uma defesa deste género de fiabilismo não

cabe contudo aqui por razões de economia, pelo que optamos por deixar a noção em

bruto.

Exigência de fiabilidade do processo que produz a evidência conduz-nos a outras

exigências. Suponha-se que S acredita que há vulcões nas luas de Júpiter apenas com base

em falsidades. Quer dizer, suponha-se que todas as razões, que S tem para acreditar que

há vulcões nas luas de Júpiter ou são falsas ou não estão causalmente ligadas ao facto de

haver vulcões nas luas de Júpiter. Mesmo sendo esta crença de S verdadeira, até que ponto

se lhe pode creditar o estatuto de EEMP? Vimos na primeira parte do trabalho que Clark

(secção 2.2.) e Williamson (secção 5.3.) têm, respectivamente, teorias da justificação e da

evidência que excluem a possibilidade de, também respectivamente, haver fundamentos

falsos e evidência que não é conhecimento (ou pseudo-evidência) a justificar/garantir

apropriadamente uma crença. Vimos também que Goldman e Skyrms pensam que deve

existir algum tipo de ligação causal entre o facto que torna verdadeira a proposição

acreditada e as razões para crer justificadamente nessa proposição. Se estes pensadores

estiverem correctos, então, considerando a nossa elucidação de EEMP, a seguinte é uma

condição suficiente para não ocorrer um EEMP:

(-9) S acredita que p com base em falsos fundamentos, pseudo-evidência, ou razões que não estão causalmente ligadas ao facto que torna p verdadeira.

Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:

(9) S acredita que p com base em fundamentos verdadeiros, evidência que é conhecimento, causalmente ligados ao facto que torna p verdadeira.

Crucialmente, a crença de S de que há vulcões nas luas de Júpiter só será um EEMP

caso a evidência que S tem para acreditar que isso é o caso seja constituída apenas por

verdades e conhecimento ligados ao facto de que há vulcões nessas luas. Por exemplo, que

Io tem vulcões.

Suponha-se agora que S acredita que o sistema solar não contém luas com vulcões.

Uma vez que essa proposição é inconsistente com a proposição verdadeira de que Io tem

vulcões, segue-se que a crença de S não pode ser um EEMP. A seguinte é portanto uma

condição suficiente para não ocorrer um EEMP:

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(-10) A proposição alvo de crença é inconsistente com pelo menos uma proposição verdadeira (relevante).

Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:

(10) A proposição alvo de crença tem de ser consistente com todas as proposições verdadeiras (relevantes).

Verificar se a condição 10 obtém é uma tarefa porventura irrealizável. Isso não é

contudo razão para a demitirmos. Uma teoria plausível das alternativas relevantes ao

estatuto epistémico positivo de uma crença pode mitigar o problema da verificação. David

Lewis (1996), por exemplo, está preocupado com a forma como são possíveis atribuições

infalíveis de conhecimento, tal como são exigidas pelo desafio do céptico. Após rejeitar a

noção de infalibilidade epistémica exigida pelo céptico, Lewis submete o seu falibilismo a

meio caminho entre a exigência de infalibilidade e o desespero céptico. A sua concepção

supõe que as seguintes são as circunstâncias ideais para a ocorrência de atribuições

correctas, embora falíveis, de conhecimento a um agente.

S sabe que p se e somente se a evidência que S tem para p elimina qualquer

possibilidade em que não-p, exceptuando: (a) Aquelas possibilidades/alternativas em que

não-p que são correctamente ignoradas; (b) Aquelas possibilidades/alternativas que

entram em conflito com as nossas correctas pressuposições (relacionadas com a verdade

de p). (Ibidem)

Lewis preocupa-se em submeter regras que permitam identificar alternativas não

podem ser correctamente ignoradas. Tendo presente que por alternativa não-p a p se

entende uma possibilidade que falsifica p, temos que...

Regra da Actualidade—Se uma possibilidade/alternativa obtém, então essa possibilidade não pode ser correctamente ignorada.

Regra da Crença—Se o agente acredita que uma determinada possibilidade /alternativa obtém, então essa possibilidade não pode ser correctamente ignorada.

Regra da Semelhança—Se uma possibilidade/alternativa se assemelha a outra possibilidade que não pode ser correctamente ignorada, então essa possibilidade não pode ser correctamente ignorada.

Lewis indica também algumas regras que indicam que possibilidades podem ser

correctamente ignoradas. São elas:

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Regra da Fiabilidade—Uma possibilidade/alternativa que nasça de um processo não-fiável de formação de crenças pode ser correctamente ignorada.

Regra da Conservação—Possibilidades/alternativas ignoradas em geral por outros podem ser correctamente ignoradas.

Regra da Atenção—Se uma possibilidade é consciente e racionalmente ignorada, então é correctamente ignorada, pois o facto de ser ignorada dessa forma implica que deveria de facto ser ignorada.

Lewis é bastante prudente no que respeita a reivindicar a eficácia destas últimas

regras. Da sua perspectiva, elas podem ser falsificadas, constituindo-se apenas como guias

cuja aplicação é plausível para um conjunto alargado de casos, embora não para todos os

casos. Um exemplo claro disso (que Lewis menciona) é o insucesso que a Regra da

Fiabilidade pode exibir em determinados casos. Suponh a-se que um diagnóstico médico

verdadeiro que é alternativa a um diagnóstico médico falso nasce de um processo não-

fiável de formação de crenças. Será que podemos nessa situação ignorar o diagnóstico

médico verdadeiro? Sim, podemos, mas o resultado é indesejável do ponto de vista

epistémico. Extrai-se daí a ideia de que uma alternativa não-p a p não pode ser

correctamente ignorada apenas em função do que é prescrito pela Regra da Fiabilidade.

A moral da história contada por Lewis é, aparentemente, que esta falibilidade

moderada das regras abre a porta a uma falibilidade moderada das atribuições de

conhecimento. Atribuições de conhecimento correctas são aquelas que satisfazem

sistematicamente as regras acima descritas. Essas regras podem no entanto não ser

suficientes para se determinar com exactidão se uma determinada atribuição de

conhecimento é ou não correcta. O ponto de Lewis parece-nos certeiro. Em epistemologia

temos definições, elucidações, condições, regras, guias e modelos falíveis que nos ajudam

a perceber, por aproximação e falivelmente, se uma determinada atribuição de

conhecimento é ou não correcta. A falibilidade é um fardo do epistemólogo que não segue

nem a via do cepticismo nem a via do dogmatismo.

Voltamos agora ao problema das condições necessárias para ocorrer um EEMP.

Desta feita centramos a nossa atenção nas condições ditas deontológicas, de segunda

ordem ou relacionadas.

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203

Começamos pela exigência de responsabilidade epistémica, a exigência predilecta

de algumas formas de internalismo epistemológico (vide se çõesà . .,à . à eà P i ei oà

I te lúdio ,à asàespe ial e teàaàse ç oà . . . à“upo ha -se pois que, no mundo possível

w, S é advogado de defesa R num processo judicial no qual R é acusado de ter cometido

homicídio. Suponha-se que S acredita em w que R não cometeu o homicídio de que é

acusado. Suponha-se, adicionalmente, que a crença de S é verdadeira e que S fez tudo o

que devia fazer do ponto de vista da satisfação dos seus deveres epistémicos. Agora tome-

se em consideração o mundo w*, em tudo igual a w, excepto no facto de nesse mundo S

não ter feito tudo o que devia fazer do ponto de vista da satisfação dos seus deveres

epistémicos para encontrar a verdade acerca de p. Se a crença de S for um EEMP em w,

intuitivamente, não o será em w*, pois uma condição suficiente para o não ser obtém

nesse mundo. É a seguinte:

(-11) S não é epistemicamente responsável.

Por C-Nec, seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP...

(11) S é epistemicamente responsável.

Estamos a supor que a responsabilidade epistémica implica a satisfação dos deveres

subjectivos e objectivos de um agente na procura pela verdade ou na forma como aceita

uma proposição (Cf. secção 3.6.2.). Claro que, se Foley (Cf. secção 3.6.3.) e Alston (Cf.

secção 6.3.2.) estiverem correctos, 11 não é uma condição cuja satisfação conduza

diretamente à verdade. Isso não é contudo impeditivo de, em determinadas circunstâncias,

como por exemplo a retratada pelo caso do advogado, a sua satisfação ser necessária para

ocorrer um EEMP.

Por outro lado, também parece ser verdade que em algumas situações pode

ocorrer um EEMP sem que o agente cumpra intencionalmente os seus deveres epistémicos,

o que faz com que a exigência de responsabilidade epistémica seja demitida nesses casos.

Com efeito, todos aqueles casos em que o agente forma involuntariamente uma crença (cf.

secção 3.6.4.) são casos em que, aparentemente, o agente não aloca qualquer tipo de

responsabilidade epistémica quando forma a sua crença. Como não choca admitir que

muitos desses casos são casos em que ocorre um EEMP, parece seguir-se que a satisfação

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204

dessa condição não se revela necessária para ocorrer um EEMP. Isto parece constituir um

problema para as concepções que privilegiam a necessidade de condições deontológicas

ou para concepções que privilegiam outras condições que não são sempre necessárias para

ocorrer um EEMP.

A nossa réplica a esta crítica é a de que, quando se trata de submeter uma

concepção acerca da natureza de estados epistémicos positivos e do que é necessário e

suficiente para obterem, é preferível supor que essas condições são necessárias para

alguns casos e não para outros, do que supor que nunca são necessárias. É preferível

porque a concepção torna-se mais plausível desse modo do que desconsiderando

simpliciter a necessidade das condições. Uma solução para a dificuldade é dizer que elas

são vacuamente satisfeitas nos casos em que a sua satisfação não se mostra necessária.

Isso habilita-nos a dizer que elas são não-vacuamente satisfeitas nos casos em que a sua

satisfação se revela necessária. Assumiremos a plausibilidade e a aplicabilidade desta

solução no que toca a algumas condições necessárias que ainda não apresentámos, mas

não a todas. Consideramos, no fundo, que algumas condiçõ es são absolutamente

necessárias, i.e., necessárias para todos os casos, enquanto outras são circunstancialmente

necessárias, i.e., necessárias para alguns casos. As condições do primeiro tipo são as

condições de 1 a 10, bem como a 13 e a 14 (por apresentar). As condições do segundo tipo

são as condições 11 e 12 (estando esta última também ainda por apresentar)

Passamos a inspeccionar mais uma condição suficiente para um EEMP deixar de o

se à oàse tidoà odalàdeà deixa .à“upo ha -se que S é filósofo no mundo w e que, para

fundar o edifício do conhecimento, decide de tudo duvidar, isto até encontrar uma verdade

tão certa, irrefutável e inabalável que dela não possa duvidar. Suponha-se que esse filósofo

admite como hipótese de trabalho que tudo aquilo que percepciona é afinal obra de um

génio maligno, alguém (ou algo) que cria na mente do nosso filósofo uma ilusão massiva

acerca de todas as coisas que ele julga percepcionar e saber. Confrontado com esta

possibilidade, o filósofo infere que o génio o pode enganar acerca de tudo, mas que se o

engana naquele momento, então ele, que é o enganado, tem de ser alguma coisa que

pensa que está a ser enganada. S conclui que terá de ser uma substância pensante. Mas

suponha-se agora que, no mundo w*, em tudo igual ao mundo w, excepto nos pormenores

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205

de que os agentes racionais nesse mundo não conseguem ter crenças de segunda ordem

sobre o estatuto epistémico positivo das suas crenças de primeira ordem porque, podemos

imaginar, o seu cérebro não lhes permite ter crenças de segunda ordem sobre as crenças

de primeira ordem. Assim, em w*, S não consegue ter uma crença de segunda ordem sobre

o estatuto epistémico da sua crença de primeira ordem na proposição sou uma substância

pensante, na qual acredita, podemos também supor, fortuitamente . Se assim for, a

seguinte é uma condição suficiente para não ocorrer um EEMP.

(-12) S não tem um EEMP de segunda ordem relativamente ao seu EEMP de primeira ordem.

Por C-Nec, temos...

(12) S tem um EEMP de segunda ordem sobre o seu EEMP de primeira ordem.

Em w, não só S acredita que é uma substância pensante, como acredita que acredita

que é uma substância pensante. O facto de S acreditar nesse mundo que acredita que é

uma substância pensante é fonte de evidência adequada para a sua crença de primeira

ordem de que é uma substância pensante. Como é óbvio, a limitação em w* impede S de

ter essas razões, e portanto o seu estado de crença de primeira ordem nesse mundo não

pode ser um EEMP.

Tal como a condição 11, também a condição 12 parece ser apenas

circunstancialmente necessária. Exemplos disso são talvez todas aquelas crenças cujo

conteúdo proposicional deriva da percepção. Não parece ser necessário ter um EEMP de

segunda ordem sobre um estatuto epistémico de uma crença perceptual de segunda

ordem de modo a que essa crença seja um EEMP. A condição 12 é vacuamente satisfeita

nesses casos.

Ponto da situação. As condições 1, 2 e 3 dão quanto a nós diretamente conta do

que é necessário para a ocorrência de um EEMP. As restantes condições dão, também

quanto a nós, conta do que indiretamente necessário a ocorrência de um EEMP, mais

exactamente, do que é necessário e suficiente para a evidência ser adequada. Antes ainda

de continuarmos a apresentação das restantes condições necessárias, as quais dirão

respeito à forma como a evidência adequada liga adequadamente crença e verdade, via

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206

garantia epistémica, desejamos antecipar uma objecção que se começa a formar na mente

do leitor. Trata-se da objecção de que existem muitas condições que têm de obter de forma

a que as condições 4 a 12 também obtenham. Tenha-se por exemplo em consideração a

ideia de Jason Stanley segundo a qual os interesses práticos dos agentes desempenham

um papel marcante aquando das atribuições de conhecimento, e portanto de um EEMP. A

ideia de Stanley é que

... à oà fa toàdeàalgu à sa e àouà oà ueà p pode ser determinado em parte por azõesàdeào de àp ti aà o tidasà oàa ie teà oà ualàseài se eàoàage te (Stanley

2005: 85)

Não desejamos contestar esta objecção. O que nos apraz dizer é que a condição de

Stanley, a obter, é contemplada pela nossa condição 6, a qual se refere às circunstâncias

ambientais ideais para a ocorrência de um EEMP. Listar todas as condições necessárias

particulares para que essas circunstâncias tenham lugar não é a nossa tarefa, sendo

provavelmente algo que excede a reflexão filosófica e entra no campo da

experimentalidade científica. Por outro lado, há por certo que evitar as indesejáveis

consequências oriundas das tentativas de elucidar todas as condições necessárias e

suficientes para que cada uma das condições de 4 a 12 obtenha. A mais perigosa dessas

consequências é, parece-me, o regresso ao infinito do conjunto de condições que têm de

obter para que cada condição obtenha. Pensamos, em todo o caso, que esse problema

pode ser contornado supondo que as condições, tal como formuladas, são suficientemente

esclarecedoras. Dizer o contrário impõe consequências pesadas a qualquer teoria

filosófica. Não precisamos talvez de resolver o Paradoxo de Sorites para ter uma

perspectiva esclarecedora das condições necessárias para a ocorrência de um EEMP.

Para finalizar a secção debruçamo-nos sobre aquelas condições cuja satisfação

julgamos ser crucial para haver uma ligação adequada entre a crença na proposição e a

verdade da proposição, fazendo assim a crença atingir apropriadamente a verdade, o que

lhe valerá, da nossa perspectiva, o estatuto de crença verdadeira epistemicamente

garantida e, por conseguinte, o estatuto de EEMP. A primeira é um princípio de segurança

epistémica para a evidência, enquanto a segunda é um princípio de segurança epistémica

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207

para a garantia. Tal como os concebemos, o segundo é superveniente em relação ao

primeiro.

Vimos acima (nas secções 2.4., 4.2.2., 4.2.3. e 5.2.) que os epistemólogos têm há

muito a ideia de que uma crença não pode ser acidentalmente verdadeira. Vimos também

que existem múltiplas formas de estabelecer os problemas relacionados com o acaso

epistémico,à o àaàso teàepist i a,àe,àe àge al,à o àasàdi e sasà disfu ções àexiste tesà

nos ambientes de formação de crenças que fazem com que não se lhes possa creditar o

estatuto de EEMP, mesmo considerando que estas crenças acertam na verdade. Também

nós cremos que a eliminação de factores que permitem que uma crença seja

acidentalmente verdadeira é um desiderato epistémico legítimo. Neste sentido, propomos

que a seguinte é uma condição suficiente para uma crença ser acidentalmente verdadeira

em w e, consequentemente, para que essa crença não seja um EEMP em w:

(-13) A evidência adequada que S tem para acreditar que p em w, evidência com base na qual S forma em w a sua crença de que p, é inadequada nos mundos possíveis relevantes mais próximos de w nos quais S continua a acreditar que p com base nessa mesma evidência.

Por C-Nec, a seguinte é uma condição necessária para S ter uma crença não

acidentalmente verdadeira, porque assente em evidência adequada:

(13) A evidência adequada que S tem para acreditar que p em w (o mundo actual), evidência com base na qual S forma em w a sua crença de que p, é igualmente adequada nos mundos possíveis relevantes mais próximos de w nos quais S continua a acreditar que p com base nessa mesma evidência.

Viu-se que a adequação da evidência que um agente tem para acreditar que p

ocorre por via da satisfação das condições 6 a 12. A condição 13 dá conta do acaso

epistémico no que respeita à evidência, ao indicar que a não satisfação de qualquer uma

dessas condições faria com que S não tivesse evidência adequada num mundo w*

relevante e próximo de w.

Note-se que as condições 6 a 12 são satisfeitas, por exemplo, no célebre caso

Barney. A condição 6 é satisfeita, pois S não está a sofrer de qualquer ilusão, nem se

vislumbra qualquer outro factor ambiental que impeça que a evidência seja adequada

quando S vê o celeiro. Essa evidência é adequada porque 7 e 8 também obtêm. S está a

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percepcionar correctamente, o que dá conta de 7, e a percepção é um processo fiável de

aquisição de evidência, o que dá conta de 8. Por outro lado, não existe qualquer falsidade

na origem da crença, o que permite que 9 seja satisfeita. 10 é igualmente satisfeita, pois a

proposição, sendo verdadeira terá de ser consistente com todas as proposições

verdadeiras (relevantes). Como S é epistemicamente responsável (não se vê por que razão

não o estaria a ser), 11 é satisfeita, ao passo que 12 é vacuamente satisfeita, sendo que a

sua satisfação não é circunstancialmente necessária neste caso.

Não obstante, temos alguma relutância em admitir que a crença de S assenta em

evidência adequada no caso Barney porque compreendemos que a evidência poderia

muito facilmente ter sido inadequada. Para ver que assim é, basta imaginar um mundo

possível, muito próximo do mundo actual, no qual S forma a sua crença ao olhar para uma

fachada de celeiro e não para o único celeiro presente no campo. Estamos inclinados a

aceitar que pelo menos as condições 6, 9 e 10 não seriam satisfeitas nessas circunstâncias,

o que faria com que a evidência fosse inadequada nesse mundo. À luz da condição 13, a

qual propomos como um princípio de segurança modal par a a evidência, o caso Barney,

por não a satisfazer essa condição, é um caso no qual a crença de S assenta prima facie,

mas não ultima facie, em evidência adequada. Dito de outro modo, S não assenta em

evidência adequada no caso Barney porque, apesar de as condições 6 a 12 serem satisfeitas

nesse caso, a condição 13 não o é. Por isso pensamos que a obtenção das condições 4 e 13

são diretamente necessárias para a obtenção da condição 5, sendo a obtenção desta

diretamente necessária para a obtenção de 3. Esta hierarquia será devidamente explicada

adiante.

O crítico de 13 pode todavia apelar para a ideia de que o princípio de segurança que

o sustenta é espúrio, uma vez que não permite realmente discernir entre a adequação da

evidência e a inadequação da evidência (ou entre evidência e pseudo-evidência) no mundo

actual. O crítico pode alegar que não há diferenças, no mundo actual, a respeito da forma

como S adquire a evidência para acreditar, bem como a respeito da forma como a sua

crença assenta nessa evidência neste caso, e noutros casos em que, por via da satisfação

das mesmas condições, estamos inclinados a atribuir o estatuto de adequada à evidência

disponível para o agente, não havendo portanto boas razões para amparar a distinção

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209

entre evidência adequada e inadequada apenas com base num princípio que usa a noção

de modalidade.

A isto só podemos responder que está na natureza de um princípio de segurança

modal cumprir a função de nos autorizar a decidir, em casos limite, quer dizer, em casos

que nos impõem circunstâncias de avaliação extremas, se algo obtém ou não. Mais

exactamente, no assunto que nos ocupa, se o agente dispõe ou não, em circunstâncias que

extravasam em muito a normalidade, de evidência adequada. Princípios de segurança são

pois, a nosso ver, instrumentos conceptuais úteis para decidir em casos extremos, cabendo

ao crítico mostrar que não o são.

Assumindo a utilidade de tais princípios, inspeccionamo s de seguida uma

derradeira condição, assente num desses princípios, que nos parece crucial para completar

aquela que é, novamente da nossa perspectiva, a lista de condições necessárias para que

ocorra um EEMP.

Suponha-se, pois, que todas as condições de 4 a 13 obtêm. Sendo assim, supondo

que a condições 1 e 2 também obtêm, parece que a crença de S que p estará

epistemicamente garantida no sentido descrito pela primeira parte da condição 3. Com

efeito, não conseguimos divisar outro processo plausível de satisfação de condições que

melhor personifique a noção de garantia epistémica.140 Apesar disso, o falibilista pode

apelar para o facto de a crença (não a proposição) ser de algum modo falsificável, no

sentido em que existe a possibilidade de todas as condições serem satisfeitas e ainda assim

a crença não estar apropriadamente ligada à verdade da proposição, o que abriria as

portas para a possibilidade de falsificação da crença. 141 É esta possibilidade que é

necessário precaver e demitir. Tendo em vista esse objectivo, submetemos que a seguinte

é uma condição necessária para um agente ter uma crença epistemicamente garantida, de

modo a ser infalsificável:

(14) Se a crença verdadeira de S que p está epistemicamente garantida em w (o mundo actual) em virtude da satisfação das condições necessárias e suficientes para

140 Embora admitamos que possa haver melhor elucidação dessa propriedade.

141 O termo falsificação ocorre claramente aqui num sentido fora do normal. Entendemos que proposição que é

alvo da crença pode ser verdadeira e ainda assim a crença ser falsificada, justamente porque não atinge de forma apropriada

essa verdade.

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estar epistemicamente garantida (as condições de 4 a 13), então essa crença continua a estar epistemicamente garantida nos mundos possíveis relevantes mais próximos de w nos quais S acredita garantidamente que p em virtude da satisfação das mesmas condições necessárias e suficientes para que ocorra essa garantia em w.

Noutra formulação:

(14*) A garantia epistémica da crença verdadeira de S que p, a qual estabelece a ligação apropriada entre a crença que p e a verdade de que p, não pode facilmente ser anulada ou cancelada.

Para ver que 14* descreve uma condição necessária para 3 obter e,

consequentemente, para a ocorrência de um EEMP, basta imaginar um mundo possível

muito próximo do mundo actual no qual, em virtude da não satisfação de qualquer uma

das condições de 6 a 11, as condições 4 ou 5 (ou ambas) não obtêm, o que impediria a

satisfação de 13 no mundo actual. Esse é um mundo em tudo igual ao actual, excepto no

que toca às circunstâncias que fazem com que a crença de S que p não esteja

apropriadamente ligada à verdade de p. A garantia da crença de S que p seria pois

facilmente anulável e essa crença seria falível, no sentido já descrito.

Vamos de novo recorrer ao caso Barney para ilustrar o nosso ponto. Notoriamente,

no caso Barney, a crença de S não está apropriadamente ligada à verdade no sentido

indicado por 3, pois o que permite essa ligação, a garantia epistémica, pode facilmente ser

cancelada ou anulada, bastando para tal imaginar um mundo possível, ligeiramente

diferente do actual, no qual, ceteris paribus, 9 não obtém pelo simples facto de S olhar para

uma fachada de um celeiro e não para o único celeiro presente no campo. Isso explica por

que razão bastantes epistemólogos se inclinam para a ideia de que não pode ser creditado

o estatuto de EEMP ao estado de crença de S no caso Barney. Plausivelmente, a satisfação

de 14 é necessária para ocorrer um EEMP.

Se o que dissemos estiver correcto, torna-se evidente que 14 é superveniente em

relação a 13. Se 13 (ou alguma condição necessária para 13 obter) não obtêm, 14 não

obtém. Se 13 obtém, então 14 obtém.

Isto termina a nossa exposição das condições necessárias para a ocorrência de um

EEMP.

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211

6.8. Um método heurístico de identificação das condições suficientes para a

ocorrência de um EEMP

Na secção 6.6.2. propusemos um critério, C-Suf, para identificar um conjunto de

condições suficientes para ocorrer um EEMP. Agora que temos um conjunto candidato a

satisfazer esse critério, é chegado o momento de explicitar o critério e aferir se esse

conjunto de condições realmente o satisfaz. Se isso for o caso, o conjunto de condições

necessárias que propusemos para a ocorrência de um EEMP será também o conjunto de

condições suficientes para a ocorrência de um EEMP.

Para facilitar a nossa tarefa de explicitação de C-Suf, introduzimos primeiro alguma

otaç o.à Va osà usa à Cn para denotar o conjunto das condições necessárias, c1 a c14,

des itasà aà se ç oà a te io .à Utiliza e osà Cs pa aà de ota à oà o ju toà dasà o diçõesà

suficientes para a ocorrência de um EEMP .ààEàutiliza e osà “at àpa aàde ota à satisfaç o ,à

‘es àpa aàde ota à esiste ,àeà CxG àpa aàde ota à o t a-exemplos tipo-Gettier .àPode osà

pois empregar estas abreviaturas para construir uma fórmula que explicite o significado de

C-Suf.

C-Suf: ~(CxG/Res/Sat/Cn) → (Cn = Cs)

Cabe-nos agora elucidar a antecedente da fórmula e mostrar que, se obtiver, a

consequente também obtém. E para cumprir estes objectivos temos de implementar um

método que nos permita aferir se os contra-exemplos resistem ou não à satisfação de Cn.

Da maneira como vemos o problema, o melhor método para os realizar tem um formato

heurístico.

Mas ainda antes de prosseguir importa fazer um ligeiro desvio para aclarar noção

de um método com o formato heurístico. Começamos fazendo uma observação (ou

recuperando uma ideia) que nos parece de suma importância. Quando nos propomos

apresentar um esquema que exiba um processo ou um método de satisfação de condições

pelo qual se pode chegar a um EEMP oàesta osàaàusa àasàexp essõesà p o esso àouà

todo à u aàa epç oàque aparece por vezes na literatura especializada. Goldman, por

exemplo, propôs uma distinção entre processo e método que marcou a epistemologia, ao

sugerir que...

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212

Po à p o esso à ue oà efe i à u à p o essoà psi ológi oà sico, algo essencial à

est utu aà fu da e talà doà siste aà og iti oà hu a o.à Po à todo à ueà efe i à u à

algoritmo apreensível, uma heurística, uma fórmula ou procedimento que não faça parte

doà ossoà e a is oà og iti oà atu al. (Goldman 2006: 297)

Oàse tidoàdeà todo à ueàte osàe à e teà àsemelhante, mas não idêntico, ao

de Goldman. Arriscamos por isso a incluí-lo naquele compartimento da epistemologia que

Goldman apelida de epistemologia secundária.

Por outro lado, a ideia de que as atribuições de conhecimento podem assentar em

metodologias heurísticas encontra-se num texto recente de Finn Spicer (2007). Entre

outros, o ponto de Spicer é fundamentalmente o de que as pessoas (absolutamente alheias

aos temas e problemas académicos e/ou especializados que têm a ver com o

conhecimento e a sua obtenção) dispõem de módulo ou de um instrumento (mental) que

lhes permite fazer atribuições correctas de conhecimento. Estas atribuições típicas da

epistemologia popular (folk epistemology), como lhe chama Spicer, assentam em

heurísticas, modos de resolver problemas relacionados com a atribuição ou não atribuição

de conhecimento. O nosso método toma emprestado um pouco de cada uma destas duas

concepções e depois tenta andar pelo seu próprio pé.

Co eça osàpo àsuge i àu àes ueletoàhie ui oàdoà todo.àOà í elàdeà aseà à

contém as heurísticas para resolver as condições que permitem haver evidência adequada.

Oà í elàsegui teà à o t àaàheu ísti aàpa aà esol er a ligação adequada da evidência à

e dade.àOà í elà segui teà β à o t àaàheu ísti aàpa aà esol e àaà ligaç oàap op iadaàdaà

e çaà à e dade.àOà í elàdeàtopoà α à o t àaàheu ísti aàge alàpa aà esol e àaàelu idaç o

EEMP à cf. secção 6.1.) A observação da figura 8 pode auxiliar o leitor a compreender o

que temos em mente.

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213

Figura 8

No final da apresentação do método demonstramos ~(CxG/Res/Sat/Cn)

submetendo os contra-exemplos (uma amostra representativa) ao seu crivo, verificando

assim que todos eles deixam pelo menos uma heurística por resolver.

Todas as heurísticas são apresentadas sequencialmente em formato gráfico: Nível

(figura 9); Ní elà à(figura 10); Ní elàβà(figura 11); Ní elàα (figura 12).

Nível αà- Heurística 'EEMP'

Nível βà- Heurística 'Ligação Garantia'

Nível à- Heurística 'Ligação Evidência'

Nível - Heurística 'Evidência Adequada'

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214

Ní elà

* Ou vacuamente satisfeitas. ** Se necessárias.

Condição 7

Condição 8

Não

Condição 6

Condição 9

Condição 10

Condição 11

Condição 4

Condição 12

Sim

~ Condição 4

Não

Não

Não

Não

Sim*

Não**

Não

Não

Sim

Sim

Sim

Sim

Figura 9

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215

Ní elà à

Ní elàβà

Não Nível δ

Condição 13

Condição 5

Sim

~ Condição 5

Não

Não

Sim

Nível γ

Condição 14

Não

~ Condição 3

Não

Não

Condição 3

Sim

Sim

Figura 10

Figura 11

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216

Ní elàαà

~ EEMP

Condição 1

EEMP

Não

Não

Condição 3

Condição 2

Sim

Não

Não

Sim

Sim

Figura 12

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217

É agora tempo de verificar se os contra-exemplos resistem ao método heurístico

(MH) que apresentámos. Começamos pelos contra-exemplos de Gettier e continuamos

com os restantes contra-exemplos clássicos que introduzimos na secção 1.10. e noutras

secções. Terminamos introduzindo e discutindo um alegado contra-exemplo que, devido à

sua complexidade e alcance, se apresenta como um bom candidato a resistir ao MH.

Concluímos que nem esse nem os anteriores o conseguem fazer, embora por diferentes

motivos.

CE-Gettier. Tal como para todos os contra-exemplos que inspeccionaremos, para

ver que o primeiro contra-exemplo de Gettier não resiste ao crivo do MH temos de ver

qual a heurística do modelo que não é satisfeita nesse contra-exemplo. A inspecção do

referido contra-exe ploà e elaà ueà oà esisteàaoà í elà àCo àefeito,ào ambiente no qual

Smith forma a crença verdadeira e justificada de que (e) o homem que conseguirá o

trabalho tem dez moedas no bolso, não é um ambiente epistemicamente favorável. Há

uma (in)feliz coincidência no ambiente. Acontece que, contra as suas próprias expectativas,

Smith é de facto o homem que vai conseguir o trabalho, e não Jones, como pensa Smith. O

facto de, sem o saber, Smith satisfazer as condições para vir a ser o homem que vai

conseguir o trabalho, e de o conseguir realmente, introduz uma dose de acidentalidade no

ambiente que se revela fatal do ponto de vista epistémico. A condição 6 não é satisfeita.

A falha agora mencionada é também quanto basta para o segundo contra-exemplo

de Gettier não resistir à luz do MH, pois também neste caso há uma larga dose de

acidentalidade no ambiente, uma vez que Smith acerta por mero acaso na verdade de

Brown estar em Barcelona. Mas este contra-exemplo também não resiste ao MH porque

falham certamente as condições 9 e 11. Com efeito, no caso descrito pelo contra-exemplo,

“ ithàa editaàjustifi ada e teà aàp oposiç oàfalsaà Jo esàte àu àFo d àaà ualà o stituià

evidência pa aà aà suaà e çaà aà p oposiç oà Jo esà te à u à Fo dà ouà B o à est à e à

Ba elo a .à Falhaà aà o diç oà 9.à Po à out oà lado,à à ext e a e teà du idosoà ueà “à sejaà

epistemicamente responsável ao acreditar que Brown está em Barcelona sem ter qualquer

indício nesse sentido. Falha por isso a condição 11. O s contra-exemplos à DTC não resistem

por isso ao nosso MH para detectar um EEMP, algo que vai de encontro da nossa intuição

deà ueà asosàGettie à pu os à oàpodem ser casos de EEMP.

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218

Passamos agora aos que, quanto a nós, são os mais eficazes contra-exemplos do

período pós-Gettier a diversas concepções de EEMP.142 Trata-se dos contra-exemplos que

designámos atrás por Nogot, Sheep, Broken-clock (e Temp), Homem-decapitado, Barney,

Working-clock e Jenny. Inspeccionamos também um putativo contra-exemplo que ainda

não tínhamos introduzido. Trata-se do alegado contra-exemplo Jill (Lycan 2006).

Consideramos que estes contra-exemplos constituem uma amostra significativa e que

podemos por isso generalizar as nossas conclusões para todos os contra-exemplos do

mesmo género.

CE-Nogot. Como se viu aquando da sua apresentação, este contra-exemplo não

difere muito dos contra-exemplos de Gettier. Tem realmente a virtude de dispensar uma

disjunção arbitrária, é verdade. No entanto, como qualquer caso com a habitual tipologia

dos casos Gettier, também este introduz uma elevada dose de acaso ou de acidentalidade.

Recorde-se que Smith crê justificadamente que é Nogot, um seu aluno, quem tem um

Fe a ià o à aseàe à oa àe id ia suprida por Nogot (e outros, podemos supor). Essa

e id iaà à o tudoà ap iosa.àElaà àe id iaàpa aàaàp oposiç oà u àalu oàdeà“ ithàte à

u àFe a i àpo ueà àe id iaàpa aàaàp oposiç oà Ha itàte àu àFe a i —uma proposição

verdadeira—pois é Havit quem tem realmente um Ferrari, ao passo que a proposição na

qual Smith realmente acredita quando acredita que um seu aluno tem um Ferrari é a

proposição—falsa— Nogotà te à u à Fe a i .à Oà o t a-exemplo não resiste pois às

condições 6 e 9, pois há acidentalidade no ambiente (6) e a evidência disponível não está

causalmente ligada ao facto que torna a proposição verdadeira (9). Daí a nossa inclinação

para afirmar que o caso Nogot não pode ser um EEMP,àpoisàaàheu ísti aàdeà í elà à oà à

satisfeita.

CE-Broken-clock. Diz-se geralmente que casos como este não são casos de EEMP

porque há demasiado acaso no modo como a crença atinge a verdade. O contra-exemplo

não resiste pois a 6. Concordamos. Há no entanto que acrescentar que este parece ser um

caso no qual a condição 12 deveria ser satisfeita, mas não é. A verdade é que S não tem,

nem poderia ter nestas circunstâncias, um EEMP de segunda ordem sobre a condição

epistémica maximamente positiva da sua crença (de primeira ordem), simplesmente

142 Exceptuando, como vimos, o de Russell, que antecipa os de Gettier

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porque essa condição é inexistente. O contra-exemplo não resiste pois também à condição

12. Broken-clock oà àu à asoàdeàEEMPàpo ueàaàheu ísti aàdeà í elà à oà àsatisfeita.143

CE-Sheep. O contra-exemplo não resiste fundamentalmente às condições 6 e 9, isto

pelas mesmas razões que os contra-exemplos anteriores não o fazem. Mais difícil de

compreender é se o contra-exemplo não resiste ao MH porque também não resiste às

condições 7 e 11. Não nos parece que as fontes de evidência estejam a operar

correctamente no caso Sheep. A percepção do animal que S vê não é suficientemente boa

para ser eficaz do ponto de vista da cognição, o que faz falhar a condição 7. Por outro lado,

é duvidoso que, naquelas condições pouco favoráveis, S tenha sido epistemicamente

responsável ao acreditar que o animal é uma ovelha. Se isso se confirma, segue-se que

também a condição 11 não é satisfeita. Seja como for, é razoavelmente claro que a

heurística deà í elà à oà àsatisfeita.

CE-Homem-decapitado. Parece-nos que, em última instância, o contra-exemplo de

Skyrms não resiste ao MH porque não resiste à condição 9. O agente que vê um homem

decapitado e infere que a sua morte se ficou a dever a essa decapitação, tendo afinal o

homem morrido por outra razão, não é um EEMP po ueàaà e id ia à ueàoàage teàte à

para a acreditar que o homem está morto porque foi decapitado é afinal pseudo-evidência,

no sentido em que é constituída por uma falsidade, a de que a morte do homem ficou a

dever à decapitação. Pode parecer estranho afirmar que ver um homem decapitado não

constitui evidência para acreditar justificadamente que o homem está morto. Não é isso

que é por nós dito. Há realmente um sentido em que o agente tem evidência para acreditar

que o homem está morto: ver que está decapitado. O que dizemos é que essa evidência, a

ser realmente evidência, não é a evidência indicada para o agente acreditar que o homem

está morto porque foi decapitado, quanto muito será evidência para o agente acreditar

que o homem está morto, uma vez que a decapitação é, ceteris paribus, uma condição

suficiente pa aàalgu à o e .àPe sa osàpoisà ueàheu ísti aàdeà í elà à oà à ta à

satisfeita nestas circunstâncias, o que não autoriza que o caso descrito por Skyrms seja um

143 Parece-nos que o contra-exemplo Temp é da mesma índole que este e, portanto, a nossa resposta segue o mesmo

padrão no que respeita às circunstâncias ambientais, que não são as mais propícias para a aquisição de evidência adequada.

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EEMP, uma ideia que partilhamos com ele e com muitos outros, mas para a qual

oferecemos a nossa própria sustentação.

CE-Barney. Como temos vindo a afirmar, Barney descreve um caso que satisfaz a

heu ísti aàdeà í elà .àVi o-lo aquando da discussão da condição 13 e não iremos reincidir

nessa discussão. Pensamos a esse propósito que Barney não resiste ao MH porque falha

e àsatisfaze àaà o diç oà àe,àlogo,àfalhaàe àsatisfaze àaàheu ísti aàdeà í elà .àN oàh à oà

caso Barney uma ligação adequada entre a evidência disponível para S e a sua crença, pois

a evidência poderia muito facilmente ter sido pseudo-evidência. Barney descreveria um

EEMP se 13 fosse satisfeita, o que não é o caso.

Uma alternativa à nossa perspectiva de que Barney não é um EEMP é considerar

que o é com base na ideia de que é um caso de conhecimento falível, numa acepção muito

pa ti ula àdeà falí el àdaàauto iaàdeà“tephe àHethe i gto à 999 .àNestaàa epç o,àoà asoà

Barney descreve um caso de conhecimento que poderia muito facilmente ter falhado em

se àu àEEMP,à oà se tidoà odalàdeà uitoà fa il e te , bastando para tal imaginar um

mundo possível, relevantemente próximo do mundo actual, no qual tivesse falhado pelo

menos uma condição necessária—crença, verdade e boa evidência ou boa justificação—

pa aà“àte àoà o he i e toà ueàte à oà u doàa tual.àáàdefi iç oàdeà o he i e toà failí el

(failable) submetida por Hetherington é a seguinte:

... àálgu àxàsa eàfaili el e teà ueàp, se e só se, (1) x sabe que p, e (2) há um

mundo possível acessível no qual (i) p é falsa (mas x acredita que p com base na mesma

boa evidência para p que x tem no mundo actual), ou (ii) x não acredita que p (embora p

seja verdadeira e x tenha a mesma boa evidência para acreditar que p que tem no mundo

actual), ou (iii) x não tem a mesma boa evidência para p que tem no mundo actual (mas

ainda crê que p e p é verdadeira). (E um mundo possível acessível, no que respeita a x

saber que p no mundo actual, é um mundo que contém pelo menos dois elementos do

seguinte conjunto: {p é verdadeira, x acredita que p, x tem a mesma boa evidência para p

que tem no mundo actual}.( Hetherington 1999: 567)

A concepção de Hetherington, ao contrário da nossa, indica que Barney descreve

um EEMP, embora se trate de um EEMP que, pelas suas características peculiares, é falível,

no sentido em que há mundos acessíveis muito próximos do actual nos quais uma condição

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necessária para o agente ter conhecimento não é satisfeita e, portanto, o agente não tem

conhecimento nesse mundo. O grau de falibilidade (ou failibilidade) de um estado de

conhecimento como Barney é pois literalmente aferido por comparação entre o mundo

actual e os mundos possíveis próximos nos quais há uma f alha epistémica.

Cabe em primeiro lugar dizer que a definição de Hetherinton, a ser uma análise do

conhecimento falível, é falsa, uma vez que circular, pois o analisandum ocorre na condição

1 estabelecida no analisans. Com efeito, define-se conhecimento falível e, a forteriori,

define-seà o he i e to,à dize doà ueà xà sa eà ueà p à seà à xà sa eà ueà p (2)... etc,

mostrando-se de seguida o que faria com que não o fosse. A definição poderia até ajudar

na tarefa de esclarecer a natureza de um EEMP não fosse supor, sem qualquer qualificação

prévia adicional, que se está perante um caso claro de um EEMP, algo que parece ser mais

uma estipulação do que uma suposição—uma vez que nunca é descartada. Preferimos pois

não optar por supor que Barney e similares descrevem casos de EEMP que poderiam

facilmente (mais uma vez no sentido modal) não o ser. Aliás, não seriam contra-exemplos

a EEMP se o fossem. A inclinação para os aceitar como tal fornece boas indicações de que

não os vemos intuitivamente como descrevendo um EEMP.

CE-Working-clock. Visitámos este contra-exemplo na secção 5.2. Pensamos que que

tem basicamente, a mesma estrutura que Barney.à áà heu ísti aà à à satisfeitaà peloà asoà

descrito pelo contra-exe plo,à asàaàheu ísti aà à oàoà .àásà azõesàs oà ueàsuste ta àaà

nossa pretensão são iguais ou muito similares às que aduzimos para o caso Barney.

Concluímos pois da mesma forma que o contra-exemplo não resiste ao MH.

CE-Jill. Algo de muito diferente pode ser dito a propósito do seguinte, da nossa

perspectiva, putativo, contra-exemplo a um EEMP. Tendo por base evidência adequada,

Jill acredita numa notícia verdadeira (N) que é contradita por informação falsa (I) de que

ela não está consciente. Assim, Jill acredita numa proposição verdadeira para a qual há

evidência contraditória, falsa mas plausível, tal que, Jill não teria acreditado em N se tivesse

tido contacto e considerado I. Note-se que, apesar das semelhanças, Jill difere de Barney e

de Working-clock. Nestes dois últimos casos não existe qualquer evidência contrária ao que

o agente acredita, mas no primeiro caso há. Assim, Jill tem evidência adequada para

acreditar que N é verdadeira. Apenas acontece que há pseudo-evidência para apoiar uma

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falsidade contrária à verdade na qual Jill acredita com base em evidência adequada. Claro

que podemos divisar mundos possíveis nos quais Jill entra em contacto com I e passa a

acreditar numa falsidade. Mas isso apenas tem como consequência que Jill passa a

acreditar numa falsidade nesses mundos, não que não tenha evidência adequada para

acreditar na verdade nesses mundos. A condição 13 e 14 são por isso satisfeitas por Jill (no

mundo actual). Com base no que dissemos, pensamos que este é um caso de EEMP, sendo

Jill um putativo contra-exemplo.

Com isto terminamos a inspecção dos contra-exemplos e concluímos que nenhum

resiste ao MH. Se a noção compreensão do problema for correcta, o conjunto de condições

necessárias que propusemos para a ocorrência de um EEMP é também o conjunto de

condições suficientes para essa ocorrência. Note-se que, assim estabelecidos, temos um

método e um resultado que acomoda as cinco intuições acima descritas. Na próxima

secção lançamos um olhar sobre a nossa proposta, antecipando algumas críticas e

respondendo-lhes.

6.9. Algumas objecções antecipadas

Podemos antecipar pelo menos três objecções de base à forma como nos

propusemos identificar um EEMP. A primeira prende-se com a acusação de alcance restrito

do sistema. A segunda prende-se com falta de parcimónia do método. A terceira tem a ver

com eventual trivialidade da proposta. Vistoriamos de seguida cada uma destas objecções,

as quais julgamos não obterem.

Sobre a objecção do alcance restrito. Pode ser alegado que, mesmo supondo que

está correcto, o nosso sistema apenas identifica as condições suficientes para a ocorrência

de um EEMP que são válidas para um número restrito de casos, nomeadamente para todos

aqueles casos iguais ou similares aos descritos pelos contra-exemplos ou para os casos

menos problemáticos do que esses. O crítico cimenta a sua objecção afirmando que o

sistema não consegue dar conta de casos que não estão dentro dos parâmetros

predeterminados.

A respeito desta objecção, parece-nos que o sistema é suficientemente versátil para

acomodar novas situações. Suponha-se que surge um novo contra-exemplo a uma

qualquer noção de EEMP. Suponha-se também que a configuração desse contra-exemplo

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difere das configurações tipo que submetemos ao crivo do MH. Não iria esse contra-

exemplo resistir a esse crivo? Não nos forçaria essa situação a corrigir o conjunto das

condições suficientes para a ocorrência de um EEMP e, por conseguinte, a abandonar o

sistema? A resposta é sim para a primeira parte e não para a segunda. Sim, temos de

admitir a possibilidade de ser encontrado um contra-exemplo que, pela sua sofisticação,

pudesse resistir ao conjunto de condições necessárias e suficientes que propusemos, e

teríamos assim de corrigir o sistema. Todavia, não pensamos que essa revisão não nos força

a abandonar o sistema. Se a este propósito o crítico alegar que a possibilidade de sucessivas

correcções do sistema invalida a própria viabilidade do sistema, então temos de retorquir

que qualquer sistema plausível, mas não infalível, é susceptível de revisão, sem que por

isso perca a sua utilidade, o seu alcance ou a sua plausib ilidade—a não ser que acabe por

ser falsificado. Embora tenhamos presente que essa resposta não é inteiramente

satisfatória, não nos parece ser possível dar outra. Admitir a não-revisibilidade do sistema

seria um acto de dogmatismo que não estamos preparados para tomar, tal como admitir a

sua falsidade. A melhor solução parece pois ser uma solução de compromisso, a meio

caminho.

Direccionamos agora a nossa meditação para o problema da falta de parcimónia.

Pode ser alegado que o modelo não tem a simplicidade desejável na elucidação de como

ocorre um EEMP, e que, consequentemente, como há concepções mais simples e mais

explicativas do mesmo fenómeno, devemos optar por essas elucidações, rejeitando a

nossa. Aceitamos a acusação de falta de simplicidade, mas rejeitamos as consequências

que o crítico quer tirar daí, em particular, que a nossa elucidação é menos boa do que as

outras pelo facto de não exibir a propriedade de ser simples.

A objecção da parcimónia assenta num venerável princípio de economia

explicativa, um princípio de parcimónia (PP), o qual pode ser formulado do seguinte modo:

PP—Se duas hipóteses explicativas conseguem elucidar igualmente bem o mesmo

fenómeno, deve ser escolhida a mais simples das duas por uma questão de economia de

recursos explicativos.

Se se gastasse os mesmos ingredientes a preparar uma refeição do que se gastaria

de outro modo, e o resultado final (o sabor, a textura, o valor nutricional, etc.) fosse o

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mesmo, então não haveria uma boa razão para se usar mais ingredientes, algo que só traria

complicações e gastos adicionais. O mesmo parece ser válido para o caso das elucidações

dadas em epistemologia. Por conseguinte, supondo que a nossa elucidação tem a mesma

capacidade de lançar luz sobre como ocorre um EEMP que outras elucidações rivais, e se a

nossa é menos parcimoniosa que as outras, então deveremos escolher essas detrimento

da nossa.

Não recusando a plausibilidade do PP, julgamos que a objecção da falta de

parcimónia assenta contudo numa suposição falsa, uma supos ição que desejamos

contestar. Trata-se da suposição de que a nossa elucidação tem o mesmo poder explicativo

que as elucidações rivais. Não acreditamos que isso seja o caso. Acreditamos que a nossa

é mais explicativa porque acomoda melhor as cinco intuições que descrevemos acima.

Veja-se por exemplo a elucidação de crença epistemicamente garantida (EEMP) sugerida

por Plantinga e comparemo-la com a nossa (se é que é possível compará-las). Sem dúvida

que esta é uma elucidação incomparavelmente melhor do que a nossa em muitos aspectos,

excepto talvez num que julgamos ser crucial: o facto de não fazer qualquer referência a

uma condição de segurança epistémica assente na semântica dos mundos possíveis. Isso

torna a elucidação de Plantinga menos versátil e mais fraca do que uma elucidação que

contenha essa condição. Pensamos ser possível alargar esta interpretação a todas as

elucidações que, de uma forma ou doutra, negligenciam uma ou várias condições que

incluímos no conjunto de condições necessárias para a ocorrência de um EEMP. Quando

vista desta perspectiva, a parcimónia pode não ser a propriedade mais importante de uma

elucidação. Mais do que parcimoniosa, uma elucidação do qu e é necessário e suficiente

para ocorrer um EEMP deve, do nosso ponto de vista, ser suficientemente compreensiva,

no sentido em que tende a deixar pouco ou mesmo nada de fora. Uma elucidação com

pontas soltas é uma elucidação que se presta a ser falsificada. Uma larga maioria das

elucidações de EEMP favorece apenas três ou quatro condições separadamente

necessárias e conjuntamente suficientes, privilegiando regra geral a terceira condição, mas

descurando muitas outras. Todas essas elucidações apresentam sistemas mais simples que

o nosso. Embora essa simplicidade lhes confira uma aparência de sucesso, a verdade é que

se tornam por isso mesmo insuficientes do ponto de vista da explicação.

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Sobre a objecção da trivialidade, alguém pode tentar levá-la por diante afirmando

que ninguém contesta que há um conjunto de condições, relevantes do ponto de vista

epistemológico, que têm de ser satisfeitas de modo a que ocorra um EEMP; e que, por isso

mesmo, uma tal elucidação nada apresenta de novo do ponto de vista filosófico.

A réplica que nos ocorre em defesa da nossa proposta é a de que se a nossa

elucidação apresenta realmente uma solução trivial, então a solução para o problema é

realmente trivial. Gostaríamos de clarificar esta ideia com um argumento concludente.

Porém, como não temos a pretensão de que tal argumento existe, nada mais podemos

fazer do que apelar mais uma vez para a ideia de que a satisfação de um conjunto de

condições que acomoda as intuições acima descritas é o candidato ideal para elucidar a

noção de EEMP. Se a elucidação se torna por isso trivial não é algo que o crítico consiga

mostrar com facilidade. Ele tem por exemplo de explicar por que razão algumas

elucidações empregam condições necessárias que usam modalidade enquanto outras não

o fazem. Só isso parece chegar para impedir o crítico de atribuir um carácter de trivialidade

à nossa elucidação, pois esta não admite apenas condições consensualmente ou

tacitamente aceites, como por exemplo o agente ter de ter evidência adequada para

acreditar que p.

Segundo interlúdio

Resumo

A elucidação que acabámos de apresentar parece forçar-nos a escolher entre o

particularismo e o metodismo, tal como definidos por Roderick Chisholm (1982: 61-75).

Neste interlúdio defendemos que essa elucidação é particularista e que abraçar o

particularismo é provavelmente a melhor opção disponível para o epistemólogo, isto

porque é a opção que está mais de acordo com as nossas intuições do senso comum.

a) Particularismo ou Metodismo?

O dilema colocado pela dicotomia particularismo/metodismo é geralmente

referido por Problema do Critério, colocando-se tanto ao nível das crenças como ao nível

do conhecimento. Basicamente, S tem de ter um método para discernir se a sua crença b

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é verdadeira ou falsa. Todavia, esse método tem de constituído por crenças c1...cn,

verdadeiras para ser eficaz. A questão é pois a de perceber o que tem prioridade, se a

verdade das crenças que constituem o critério ou se o critério para aferir a verdade das

crenças.

O problema transporta-se naturalmente para o tópico do conhecimento. Para se

saber o que sabemos temos de (A) ter um critério para avaliar e decidir o que é

conhecimento e o que não é. Mas não podemos ter esse critério sem (B) ter casos

particulares de conhecimento, em especial, sem saber se o critério é ou não válido. Não

podemos pois ter A sem ter primeiro casos particulares de conhecimento, quer dizer, não

podemos ter A sem que B obtenha em primeiro lugar; e não podemos ter B sem ter em

primeiro lugar um critério válido para decidir que certos casos particulares são casos de

conhecimento, quer dizer, não podemos ter B sem que A obtenha em primeiro lugar. O

círculo sobressai com nitidez (Cf. Amico 1995: 73-74).

Na perspectiva de Chisholm, é metodista quem defende a ideia de que A vem em

primeiro lugar na ordem da explicação. Por outro lado, é particularista quem defende a

ideia de que a B vem em primeiro lugar na ordem da explicação.144

Metodismo e particularismo são teorias tidas como mutuamente exclusivas, mas

não como mutuamente exaustivas. Chisholm reconhece uma terceira hipótese: o

cepticismo. Esta é uma hipótese para os que defendem a ideia de que o dialellus é

insuperável, não se podendo pois fazer qualquer atribuição correcta de conhecimento,

uma vez que para que essa atribuição fosse correcta teria de ser possível decidir o que vem

em primeiro lugar. Uma vez que não é possível decidir-se isso, há que optar entre uma

prudente suspensão do juízo ou negar a possibilidade de se saber se há ou não

conhecimento.

Chisholm recusa o cepticismo e prefere o particularismo ao metodismo. O seu

ponto é que é possível encontrar casos que, pelas suas características peculiares,

nomeadamente por serem factos inegáveis (e.g., verdades que se auto-apresentam ao

agente: que S sabe que acredita que p se acredita de forma consciente que p) ou verdades

144 Chisholm aponta Thomas Reid e G.E. Moore como sendo particularistas, rotulando John Locke e David Hume

de metodistas.

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de razão (e.g., axiomas e/ou proposições cuja verdade é detectável a priori) não podem

deixar de casos de conhecimento. Pegando nesses casos, ainda segundo ele, é possível

generalizar para um leque mais vasto de casos de particulares de conhecimento,

construindo a partir daí uma metodologia segura com a qual se torna possível avaliar que

casos são casos de conhecimento e que casos não o são. Trata-se no fundo de confiar que

as faculdades e os processos de cognição habituais (percepção, memória, inferência) nos

permitem adquirir evidência adequada, a qual nos autoriza a preferir hipóteses

sustentadas por essa evidência em detrimento de outras que não o são. Não havendo

motivo para desconfiar dessas faculdades, desses processos e dos seus resultados,

podemos tomá-los como bons (para lá da dúvida razoável) por defeito, pelo menos até ser

nos apercebermos de algo em contrário, algo que possa contrariar ou trabalhar em

desfavor dos referidos resultados.

Chisholm acaba contudo por oscilar no final da sua defesa do particularismo. O seu

ponto, ao pôr-se na pele do metodista e do céptico, é o de que a pretensão do particularista

só obtém porque este comete uma espécie de petição de princípio, ao supor que as

atribuições particulares de conhecimento feitas com base no que o particularista afirma

ser necessário e suficiente para um caso de conhecimento ser um caso de conhecimento

pressupõem de algum modo que o critério à luz do qual essas atribuições de conhecimento

são correctas seja válido e, por conseguinte, seja um caso de conhecimento.

b) Particularismo

A nossa elucidação do que é necessário e suficiente para ocorrer um EEMP, tal como

ta tasàout as,àpodeàse àa usadaàdeàpade e àdaà aleita àepiste ológi aàa i aàdes ita.à

Prima facie, para estamos na posse de um critério que nos permita discriminar

correctamente que condições são necessárias e suficientes para ocorrerem crenças que

são EEMP temos de ter crenças que são EEMP. Parece pois que a nossa elucidação tem de

ser ou particularista ou metodista (uma vez que rejeitamos o cepticismo).

Tal como Chisholm, optámos já pelo particularismo. Com efeito, partimos da

inspecção de casos particulares de EEMP e do seu acolhimento (Cf. secção 6.5.) para

construir critérios de identificação de condições necessárias e suficientes para a ocorrência

de um EEMP (Cf. secção 6.6.) A nossa escolha assenta fundamentalmente na ideia de

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intuição razoável do senso comum acerca da ocorrência de estados epistémicos

maximamente positivos, uma intuição cuja razoabilidade pode ser defendida de duas

formas. A primeira, que se inspira na venerável tradição cartesiana e chisholmiana, passa

por invocar o facto de que a verdade de determinadas proposições apresenta-se de uma

tão forma clara e tão explícita que é praticamente impossível as crenças nessas

proposições não estarem por isso mesmo indubitavelmente garantidas. A segunda, que se

inspira na venerável tradição anti-céptica, passa por invocar o facto de não ser possível

recusar validamente a ideia de uma intuição razoável acerca da ocorrência de estados

epistémicos maximamente positivos sem apelar para a ocorrência de pelo menos um de

esses estados, justamente o putativo—porque auto-refutante—estado epistémico

maximamente positivo o qual consiste numa crença do céptico acerca da impossibilidade

de haver o estado de crença em que está.

Amico (1993: 85-86) argumenta que Chisholm não consegue oferecer uma defesa

do particularismo que lhe dê vantagens teóricas sobre os rivais, metodismo e cepticismo,

e que, como tal, não é possível escolher o primeiro em detrimento dos segundos. Temos a

noção que o que agora propusemos em favor do particularismo é também muito pouco,

mas é preferível a nada ou a uma posição que beneficie o céptico.145

Não obstante, alguém pode sugerir que para discernir as boas intuições das más, e

para discernir o bom senso-comum do mau senso-comum, e para discernir a boa inspecção

filosófica da má inspecção, há que recorrer a critérios, retornando por isso o problema do

critério, agora noutro patamar. A nossa resposta é que esse não é um problema que

respeite apenas ao epistemólogo. Este deve confiar nos resultados de outras áreas da

filosofia e, tanto quanto possível, usando uma boa dose de prudência, no senso comum.

Descobrir até que ponto as nossas intuições e a inspecção filosófica são eficazes depende

não só de intuições como também da própria inspecção fi losófica e de uma boa dose de

senso-comum. O círculo explicativo é portanto inevitável, mas daí não se segue que não

haja bons indícios da ocorrência de estados epistémicos maximamente positivos. Se

145 Não cremos também que que a nossa solução caiba no intuicionismo particularista ou no intuicionismo

metodista, tal como definidos por Amico (Ibidem: 96). Mas não estamos de momento em condições de defender esse ponto,

e portanto termos de optar por uma forma mitigada do primeiro, pois pensamos que é possível adoptá-la e ainda assim ter

a esperança de que pode ser encontrado um método.

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229

eventualmente o céptico nos quiser fazer ver que estamos em apuros por causa disso, só

temos de lhe fazer ver que, mesmo que o círculo seja inevitável, teremos sempre crenças

com um estatuto epistémico maximamente positivo, por exemplo, a crença de que o

círculo explicativo é inevitável. Se o céptico ficar em silêncio, então não teremos de nos

preocupar.

7. Um argumento

…àpara a identificação de casos de crença epistemicamente garantida (EEMP) e de

casos de conhecimento.

Dissemos na secção 6.6.2. que a implicação de um EEMP para o conhecimento não

se segue da implicação do conhecimento para um EEMP. Agora que estamos na posse de

uma elucidação da natureza de um EEMP como sendo um tipo particular de crença

verdadeira garantida (CVG), julgamos ser possível substituir as duas expressões salva

veritate. O resultado desta substituição, geralmente não aceite na literatura especializada

(Zagzebski 1994, Williamson 2000, et al), é o seguinte:

Conhecimento → CVG

Mas não...

CVGà→à o he i e to

Uma solução para esta dificuldade passaria por abandonar a noção de

conhecimento mantendo as noções de EEMP e de crença garantida como principais

desideratos epistemológicos e candidatos à elucidação. Mas isto arrasta desvantagens

óbvias, por exemplo, ao nível do raciocínio prático. O chamado Paradoxo da Lotaria146

revela que um agente/apostador pode ter um elevadíssimo grau de garantia para a sua

crença na proposição de que não lhe saiu o primeiro prémio e ainda assim não o saber,

apenas porque essa proposição é falsa (Hawthorne 2004: 30). Faria pois toda a diferença,

do ponto do acto de apostar, entre o agente ter conhecimento ou ter uma crença

garantida. Não nos iremos debruçar sobre o tópico do valor do conhecimento (Cf. Pritchard

2007). Assumimos, quase tacitamente (exceptuando pelo que dissemos nas secções

6.3.2/3), que é preferível tentar uma elucidação da noção de conhecimento do que

146 Ou “Caso da Lotaria”, para quem pensar que não se trata realmente de um paradoxo.

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230

abandonar essa noção, simplesmente porque o conhecimento é mais valioso que os outros

desideratos epistémicos e, portanto, elucidá-lo também o é.

Sem desejarmos comprometer-nos inabalavelmente com a tese da identificação do

conhecimento com o estado de CVG, gostaríamos no entanto de submeter, para efeito de

discussão, um argumento para suportar essa tese. Do nosso ponto de vista, esse

argumento tem dois momentos e pode ser formalizado do seguinte modo:

Momento1

P1 — Se não houvesse uma noção partilhada de conhecimento não seria possível

decidir em conjunto se um determinado caso é (ou não) um contra-exemplo a uma

tentativa de definição do conhecimento.

P2 — É possível decidir em conjunto se um determinado caso é (ou não) um contra-

exemplo a uma tentativa de definição do conhecimento.

C1: Há, portanto, uma noção partilhada de conhecimento (K).

Momento 2

P3 — Há duas categorias, conjuntamente exaustivas e mutuamente exclusivas, de

casos: a categoria de casos que pertencem a K e a categoria de casos que não pertencem

a K.

P4 — Só os casos que pertencem a K resistem, ultima facie, a todos os contra-

exemplos às definições que tentam circunscrever K.

P5 — Só casos de conhecimento resistem a todos os contra-exemplos às definições

que tentam circunscrever K.

P6 — Só casos de EEMP resistem a todos os contra-exemplos às definições que

tentam circunscrever K.

C2: Casos de conhecimento são casos de EEMP, e conversamente.

A conclusão do momento 1 é relativamente incontroversa, seguindo-se

validamente de P1 e de P2. A P1 é quase auto-evidente e a P2 foi amplamente sustentada

pela exposição feita na primeira parte deste trabalho. Supondo que a conclusão do

momento 1 é verdadeira, a P3 segue-se dela com naturalidade. Com efeito, supondo que

K obtém, segue-se que há uma categoria de casos que satisfaz K e uma categoria de casos

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que não satisfaz K, quer dizer, há uma categoria de casos que cai sob a extensão da noção

e há uma categoria de casos que não cai sob essa extensão.

Por outro lado, embora talvez mais polémica, P4 é também bastante plausível, pois

se um caso não pertence a K, então esse caso é já um contra-exemplo a uma qualquer

tentativa de circunscrever K numa definição ou é um candidato potencial a contra-exemplo

a uma qualquer tentativa de circunscrever K por via de uma definição. A P5 é incontroversa:

só casos de conhecimento caem na extensão de K, e portanto só casos de conhecimento

podem resistir a todos os contra-exemplos a K. A plausibilidade de P6 foi extensivamente

defendida na segunda parte deste trabalho. Se assim for, parece-nos que a conclusão do

momento 2, aquela que desejamos submeter como hipótese de trabalho para futuras

ocasiões, também obtém.

Conclusão

Propusemos neste trabalho uma elucidação do fenómeno do conhecimento

proposicional. Tentámos mostrar que esse fenómeno é um estado epistémico

maximamente positivo que ocorre por serem satisfeitas determinadas condições. Depois

de inspeccionar, na primeira parte, algumas das principais teorias sobre as condições

necessárias e suficientes para haver justificação epistémica, garantia epistémica e

conhecimento, submetemos, na segunda parte, uma elucidação do referido fenómeno.

Defendemos, nesta linha, que o conhecimento é um estado epistémico maximamente

positivo, quer dizer, uma espécie particular de crença que, em função da sua excelência

epistémica, se diferencia das crenças verdadeiras simpliciter ou de outras crenças

verdadeiras que exibem outras propriedades importantes do ponto de vista epistémico

mas que não exibem aquela. Argumentámos que essa espécie particular de crença exibe a

propriedade de ser epistemicamente excelente porque está epistemicamente garantida,

no sentido em que a garantia resulta da satisfação de um conjunto de condições que, por

sua vez, depende da satisfação de vários subconjuntos de condições. Não oferecemos a

elucidação do fenómeno como uma análise. Aceitámos também outras elucidações (como,

por exemplo, que o conhecimento é a atitude proposicional factiva mais inclusiva).

Dissemos que são económicas e elegantes. Não aceitámos contudo que haja apenas uma

elucidação. Cremos que a nossa remete para uma outra forma de ver o referido fenómeno,

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uma outra perspectiva do mesmo problema. Trata-se, no nosso entender, de uma

perspectiva que também acrescenta informação pertinente, sendo por isso válida.

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g

URL = http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/apriori SCHWITZGEBEL, E., "Belief", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/belief SORENSEN, R., "Epistemic Paradoxes", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2009 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/epistemic-paradoxes/ STEUP, M., "The Analysis of Knowledge", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/knowledge-analysis/ & Suplement “Knowledge and Skepticism” URL = http://plato.stanford.edu/entries/knowledge-analysis/supplement.html ZALTA, N., "Frege's Logic, Theorem, and Foundations for Arithmetic", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2009 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL=http://plato.stanford.edu/archives/sum2009/entries/frege-logic Imagem da capa: O Oásis, René Magritte.

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I

Índice remissivo

A

acaso epistémico, 116, 190, 191

acidentalidade epistémica, 40, 109, 116

agentes cognitivos, 63, 64, 66, 67, 73

agentes racionais, 52, 188

Alston, 8, 65, 67, 68, 69, 72, 73, 84, 87, 108, 142, 143,

144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 155,

158, 159, 161, 178, 180, 187, a

analisandum, 10, 11, 29, 124, 134, 136, 203

analisans, 10, 11, 29, 124, 131, 132, 134, 135, 136, 204

análise do conhecimento, 6, 19, 20, 50, 53, 95, 108,

109, 116, 123, 135, 138, 161, 162, 203

aptidão epistémica, 84, 104, 110, 113

argumento céptico da ignorância, 103

atitude doxástica, 55, 93

atitude proposicional, 129, 214

Audi, 17, 21, 47, 49, 62, a

auto-evidente, 59, 213

Ayer, 20, 21, 39

B

Barney, 26, 30, 114, 115, 158, 176, 191, 193, 201, 203,

204

Broken-clock, 24, 201

C

Cassam, 124, 125, 132, 133, a

Causalidade, 32

cepticismo, 18, 19, 27, 76, 77, 80, 101, 102, 164, 170,

172, 186, 209, 210

certeza absoluta, 52

Ch

Chisholm, 17, 20, 21, 25, 39, 50, 51, 52, 53, 54, 57, 58,

59, 65, 66, 67, 81, 84, 147, 164, 165, 168, 208, 209,

210, a

C

circularidade explicativa, 44, 132, 140

círculo virtuoso, 136

Clark, 30, 31, 32, 33, 42, 184

Cohen, 16, 64, 65, a

conceito de conhecimento, 7, 10, 11, 19, 21, 28, 29,

32, 75, 98, 106, 116, 120, 122, 123, 124, 127, 131,

132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 141

conceito mental, 123

concepção deontológica da justificação, 65

concepção responsabilista, 70

condição ambiental, 126

condição filosoficamente relevante, 175

condição necessária, 14, 17, 36, 38, 46, 48, 64, 65, 72,

73, 78, 83, 89, 95, 106, 109, 110, 113, 120, 122, 134,

143, 146, 149, 159, 162, 174, 175, 178, 179, 180,

181, 182, 183, 184, 187, 190, 193, 194, 203

condição restrita, 126

condição suficiente, 111, 118, 174, 175, 178, 179, 180,

181, 182, 183, 184, 186, 188, 190, 202

condicional, 16, 21, 36, 37, 98, 100

Conee, 7, 27, 28, 50, 51, 54, 55, 57, 62, 69, 85, 86, 87

o he i e toà failí el , 203

o he i e toà a i al , 112, 113, 114

conhecimento a posteriori, 14

conhecimento a priori, 14

conhecimento científico, 14, 35

conhecimento de segunda ordem, 143, 147

Conhecimento fácil, 65

conhecimento matemático, 34, 35

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II

conhecimento moral, 35

conhecimento proposicional, 7, 9, 13, 14, 33, 35, 95,

138, 139, 177, 213

consequência lógica, 44

contrafactual, 37, 83, 98

correcção epistémica, 145

credibilidade, 71

Crença, 14, 64, 110, 114, 162, 185

crença do céptico, 210

crença epistemicamente apta, 112

crença epistemicamente garantida, 140, 142, 174, 193,

207, 211

crença fiável, 162

crença objectivamente justificada, 68

crença perceptual, 171, 173, 189

crença segura, 110, 113, 118, 120, 122

crença simpliciter, 128, 130

crença verdadeira epistemicamente garantida, 190

crença verdadeira justificada, 6, 20, 22, 27, 30, 137,

162, 177

critério, 13, 37, 48, 68, 70, 71, 146, 148, 150, 159, 164,

173, 174, 175, 176, 177, 194, 208, 210, 211

D

definição do conhecimento, 8, 13, 18, 19, 23, 27, 117,

121, 212

definição modal, 117

definiendum, 13, 138

definiens, 13, 138

deontologismo, 46, 52, 65, 66, 69, 72, 73, 74

desiderato epistémico, 142, 143, 144, 145, 149, 155,

190

desiderato fundamental, 146

desiderato intelectual, 149

dever epistémico, 67, 68

dialellus, 209

E

EEMP, 139, 140, 141, 142, 149, 151, 161, 163, 164,

165, 167, 168, 169, 170, 173, 174, 175, 176, 177,

178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 186, 187, 188,

189, 190, 192, 193, 194, 195, 199, 200, 201, 202,

203, 204, 205, 206, 207, 210, 211, 212, 213

elucidação, 7, 28, 32, 55, 110, 135, 138, 139, 140, 163,

179, 180, 184, 192, 195, 206, 207, 208, 210, 211,

212, 213

epistêmê, 138

epistemologia das virtudes, 108, 116, 121

epistemologia modal, 116, 120, 121

epistemologia naturalista, 116

equivalência de extensões, 123

estado de justificação, 47

estado epistémico, 7, 8, 139, 148, 174, 179, 210, 213

estado mental, 77, 123, 125, 126, 127, 128

estatuto epistémico maximamente positivo, 161, 174,

178, 179, 211

estatuto epistémico positivo, 152, 153, 155, 158, 159,

160, 174, 185, 188

evidência, 15, 16, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 30, 31, 36, 37,

39, 40, 41, 45, 47, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,

59, 66, 68, 69, 70, 71, 72, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93,

94, 137, 141, 143, 145, 146, 147, 151, 152, 155, 158,

159, 160, 168, 171, 172, 173, 175, 180, 181, 182,

183, 184, 185, 188, 189, 190, 191, 192, 195, 200,

201, 202, 203, 204, 208, 209

evidência adequada, 40, 41, 42, 68, 152, 159, 175, 180,

181, 183, 189, 191, 192, 202, 204

evidencialismo, 46, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 57, 58, 59,

66, 69, 87, 144

exemplo da bola de cristal, 39, 40

experimentalidade científica, 189

explanandum, 139

explanans, 139

externalismo, 84, 88, 94, 171

F

factividade, 135, 147, 171

factores mentais, 127

falibilidade, 42, 43, 44, 45, 53, 59, 108, 145, 186, 203

falibilidade da justificação, 43, 59

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III

falsidades, 19, 30, 39, 63, 66, 69, 160, 183

Feldman, 7, 50, 51, 54, 55, 57, 62, 67, 68, 69, 85, 86,

87, 94, a, b

fenómeno do conhecimento, 7, 33, 95, 110, 135, 136,

138, 139, 213

fiabilidade, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 105, 109, 123, 143,

172, 183

fiabilismo, 26, 33, 46, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 70,

105, 144, 183

Foley, 7, 48, 69, 70, 72, 187, b, f

Frege, 165, 166, g

fundamentos, 30, 32, 33, 47, 57, 59, 74, 96, 143, 145,

152, 155, 158, 160, 171, 172, 181, 182, 184

G

Garantia, 104, 198

garantia epistémica, 42, 104, 105, 106, 108, 110, 138,

140, 142, 189, 192, 193, 213

Gettier, 6, 9, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32,

33, 35, 38, 39, 42, 53, 57, 59, 74, 75, 94, 98, 100,

107, 108, 111, 116, 117, 121, 137, 161, 162, 176,

177, 178, 194, 200, 201, b, c, d, f

Goldman, 7, 26, 32, 33, 34, 35, 54, 58, 59, 60, 61, 62,

63, 64, 65, 69, 85, 87, 89, 90, 133, 135, 137, 165,

184, 195, b, f

H

Hawthorne, 102, 212, c

Hetherinton, 203

heurísticas, 195, 196

híbrido metafísico, 125

hipóteses cépticas, 168, 170

Hume, 164, 209, c

I

ideia complexa, 133

ideia simples, 133

Infalibilidade, 42

inferência, 25, 33, 63, 64, 80, 96, 103, 182, 209

internalismo, 66, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93,

94, 95, 126, 186

Intuição da Ligação Adequada, 141, 142

Intuição da Necessidade, 140, 141

Intuição da Suficiência das Condições , 141

Intuição da Terceira Condição, 141, 142

Intuição das Subcondições, 141, 142

intuição razoável, 210

intuições, 8, 30, 115, 120, 128, 129, 137, 138, 140,

141, 142, 152, 163, 176, 205, 206, 207, 208, 211

J

Jenny, 114, 115, 122, 201

Jill, 201, 204

justificação, 7, 11, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 30, 32, 40, 42,

43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 57,

58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71,

72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 86,

87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 104, 109, 123, 124,

126, 131, 137, 141, 142, 143, 144, 146, 161, 162,

175, 183, 184, 203, 213

justificação deontológica, 67, 143

justificação diacrónica, 50

justificação dóxastica, 49

justificação epistémica, 7, 27, 47, 57, 58, 59, 69, 70,

74, 79, 80, 144

justificação estrutural, 49

justificação externalista, 50

justificação forte, 49, 51, 64

justificação internalista, 50

justificação não-epistémica, 47

justificação sincrónica, 50

justificação situacional, 49

justificacionismo, 42, 46, 50, 65, 66, 95

K

Klein, 50, 51, 98, c

Kripke, 167, f

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IV

L

Lehrer, 13, 24, 116, c

ligação, 23, 25, 33, 35, 64, 65, 74, 141, 142, 146, 184,

190, 193, 195, 203

limitações cognitivas, 56

M

memória, 33, 63, 105, 120, 209

Ménon, 11, 17, 18, d

meta-condições, 147

Metodismo, 208, 209

método heurístico, 194, 200

metodologia, 9, 161, 162, 163, 209

modalidade, 37, 42, 95, 192, 207

mundo actual, 17, 63, 98, 104, 113, 114, 117, 118, 119,

120, 122, 167, 169, 174, 178, 190, 191, 192, 193,

203, 204

mundo alternativo, 63

mundos possíveis, 17, 37, 98, 104, 113, 114, 117, 118,

120, 122, 126, 167, 168, 174, 190, 193, 203, 204,

207

N

não-acidentalidade, 38, 39, 40, 41, 42, 146, 147

necessidade física, 37, 167

No false lemma, 30

Nogot, 24, 201

O

objecção, 11, 31, 34, 40, 55, 56, 57, 61, 62, 63, 64, 65,

88, 91, 92, 94, 97, 108, 118, 119, 125, 133, 136, 169,

170, 189, 205, 206, 207

Objecção da Generalidade, 61, 62

obrigações intelectuais, 147, 148, 149

opinião verdadeira, 18, 19

P

Paradigma Procedimental Clássico, 161, 163

Paradoxo da Análise, 11, 12

Paradoxo da Lotaria, 212

parcimónia, 205, 206

Particularismo, 208, 210

Paxson, 116, c

pirronismo, 164

Plantinga, 20, 52, 66, 67, 104, 105, 106, 107, 108, 109,

110, 120, 142, 207, b, d

Platão, 11, 17, 18, 19, 20, 141, d

Pollock, 26, 28

Princípio da falsificação, 121

princípio da segurança epistémica, 117

Pritchard, 8, 97, 102, 114, 115, 116, 117, 118, 119,

120, 121, 122, 135, 136, 169, 170, 171, 172, 212, a,

c, d, e, g

probabilidade, 19, 47, 48, 49, 68, 123, 130, 137, 143,

147, 152, 158, 159, 160, 161, 169

Problema da Quarta Condição, 6, 24, 26

problema do conceito, 124

processo, 7, 10, 28, 42, 47, 60, 61, 62, 64, 65, 76, 84,

91, 96, 100, 107, 142, 143, 146, 152, 158, 160, 165,

172, 183, 185, 186, 191, 192, 194, 195

processos fiáveis, 60, 61, 63, 64

projecto analítico, 120, 122, 129, 130, 131, 133, 134,

135, 136, 137, 138, 141, 142

proposição analítica, 125

proposição verdadeira, 7, 14, 24, 30, 31, 33, 43, 45, 48,

51, 69, 120, 123, 174, 184, 201, 204

propriedade da justificação, 47, 85

propriedade fantasma, 143

propriedades cognitivas, 146, 152

Pryor, 47, d

puzzles cépticos, 110

Q

quarta condição, 24, 28, 30, 51, 57, 58

R

raciocínio, 18, 60, 64, 109, 212

razão epistémica, 48

razão não-vencida, 58

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V

relação causal, 33, 36, 115, 134, 146

relação de superveniência, 55

responsabilidade epistémica, 66, 69, 71, 72, 73, 91,

105, 186, 187

Russell, 14, 16, 19, 20, 24, 50, 79, 151, 166, 201, d, g

Ryle, 13

S

sabe que p, 15, 16, 32, 38, 39, 50, 51, 96, 98, 100, 118,

120, 126, 127, 131, 135, 136, 137, 185, 203, 204

segurança epistémica, 52, 102, 113, 114, 117, 122,

124, 190, 207

Sheep, 25, 98, 201, 202

Skyrms, 7, 20, 35, 36, 37, 184, 202, e

Sócrates, 17, 18, 19

Solução Híbrida, 120, 135

sorte ambiental, 114

Sosa, 8, 44, 50, 51, 62, 74, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84,

86, 98, 103, 104, 110, 111, 112, 113, 117, 119, 120,

151, 169, a, b, c, d, e, f

Stanley, 13, 189, e

Swain, 51, e

T

Teeteto, 17, 18, 19, d, e

Teoria da Justificação, 47

teoria da não-analisibilidade do conhecimento, 122

teorias causais, 32, 38

tese da suficiência, 22, 176

U

Unger, 7, 38, 39, 40, 42, 164, e

V

vacuamente satisfeitas, 187, 197

valor epistémico, 144

verdade contingente, 167

viciosamente circular, 11, 13, 29, 123, 131

vínculo, 38, 39, 40, 95, 97, 148

virtude intelectual, 146, 152

W

Williamson, 8, 13, 15, 29, 54, 103, 122, 123, 124, 125,

126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135,

137, 138, 141, 142, 161, 171, 184, 211, a, c, e

Working-clock, 118, 201, 204