O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

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“O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes poderosos, tornou-se em Constantino uma paixão dominante. Não pode haver sinal externo mais sólido de poder do que edifí- cios de caráter impressionante. Além disso, executada com recursos maciços, a construção por si própria fornece uma semelhança do governo criador e, em tempo de paz, um substituto para outras atividades. Para seu fundador uma nova cidade serve como imagem e padrão de um novo mundo.” Jacob Burckhardt

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“O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes poderosos, tornou-se emConstantino uma paixão dominante. Não pode haver sinal externo mais sólido de poder do que edifí-

cios de caráter impressionante. Além disso, executada com recursos maciços, a construção por siprópria fornece uma semelhança do governo criador e, em tempo de paz, um substituto para outrasatividades. Para seu fundador uma nova cidade serve como imagem e padrão de um novo mundo.”

Jacob Burckhardt

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QUANDO MUDAM AS CAPITAIS

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Mesa Di re to ra Biênio 2001/2002

Se na dor Ra mez TebetPre si den te

Se na dor Edi son Lobão1º Vice-Pre si den te

Se na dor Antonio Car los Valadares2º Vi ce-Presidente

Se na dor Car los Wil son1º Se cre tá rio

Senador Antero Paes de Barros2º Secretário

Se na dor Ro nal do Cu nha Lima3º Se cre tá rio

Se na dor Mo za ril do Cavalcanti4º Se cre tá rio

Su plen tes de Se cre tá rio

Se na dor Alber to Sil va Se na do ra Mar lu ce Pin to

Se na do ra Ma ria do Car mo Alves Se na dor Nilo Te i xe i ra Cam pos

Conselho Ed i to rial

Se na dor Lú cio Alcân ta raPre si den te

Jo a quim Cam pe lo Mar quesVi ce-Presidente

Con se lhe i ros

Car los Hen ri que Car dim Carl yle Cou ti nho Ma dru ga

Raimundo Pontes Cunha Neto

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Coleção Biblioteca Básica Brasileira

QUANDO MUDAM AS

CAPITAIS

José Osval do de Me i ra Penna

Apre sen ta ção do Pre siden te Jus ce li no Ku bits chekPre fá cio do Dr. Isra el Pi nhe i ro, Pre si de nte da Novacap

CIVITAS UBI SILVA FUIT

Bra sília – 2002

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BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRAO Con se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral, cri a do pela Mesa Di re to ra em 31 de ja ne i ro de 1997, bus ca rá edi tar, sem pre, obras de va lor his tó ri co e cul tu ral e de im por tân cia re le van te para acom pre en são da his tó ria po lí ti ca, eco nô mi ca e so ci al do Bra sil e re fle xão so bre os des ti nos do país.

COLEÇÃO BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRAA Qu e re la do Esta tis mo

Antô nio PaimJo a quim Na bu co: Re vo lu ci o ná rio Con ser va dorVa mi reh Cha con

Mi nha For ma ção (2ª Edi ção)Jo a quim Na bu co

Oito Anos de Par la men toAfon so Cel so

A Po lí ti ca Exte ri or do Impé rio (3 Vols.)J. Pan diá Ca ló ge ras

Pen sa men to e Ação de Rui Bar bo sase le ção de tex tos pela Fun da ção Casa de Rui Bar bo sa

Ca pí tu los de His tó ria Co lo ni alCa pis tra no de Abreu

His tó ria das Idéi as Po lí ti cas no Bra silNel son Sal da nha

Insti tu i ções Po lí ti cas Bra si le i rasOli ve i ra Vi a na

A Evo lu ção do Sis te ma Ele i to ral Bra si le i roMa nu el Ro dri gues Fer re i ra

Di ci o ná rio Bi o bi bli o grá fi co de Au to res Bra si le i rosCen tro de Do cu men ta ção do Pen sa men to Bra si le i ro

Pre si den ci a lis mo ou Par la men ta ris mo?Afon so Ari nos de Melo Fran co e Raul Pila

Rui – O Esta dis ta da Re pú bli ca João Man ga be i ra

Ele i ção e Re pre sen ta çãoGil ber to Ama do

De o do ro: Sub sí di os para a His tó riaErnes to Sena

Obser va ções so bre a Fran que za da Indús triaVis con de de Ca i ruA Re nún cia de Jâ nio

Car los Cas tel lo Bran co

Ro dri gues Alves: Apo geu e De clí nio doPre si den ci a lis mo (2 Vols.)Afon so Ari nosO Esta do Na ci o nalFran cis co Cam posO Bra sil So ci al e Ou tros Estu dos So ci o ló gi cosSíl vio Ro me roFes tas e Tra di ções Po pu la res do Bra silMelo Mo ra is Fi lhoAní sio em Mo vi men toJoão Au gus to de Lima Ro chaA Abo li ção do Co mér cio Bra si le i ro de Escra vosLes lie Bet hell

Pro je to Grá fi co: Achil les Mi lan Neto

Se na do Fe de ral, 2002Con gres so Na ci o nalPra ça dos Três Po de res s/nº – CEP 70168-970 – Bra sí lia – DFCEDIT@ce graf.se na do.gov.br http://www.se na do.gov.br/web/con se lho/con se lho.htm

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Pen na, José Osval do de Me i ra, 1917-.Qu an do Mu dam as Ca pi ta is / José Osval do de Me i ra

Pen na ; apre sen ta ção do Pre si den te Jus ce li no Ku bits chek ;pre fá cio do Dr. Isra el Pi nhe i ro. – Bra sí lia : Se na do Fe de ral,Con se lho Edi to ri al, 2002.

460 p. – (Co le ção bi bli o te ca bá si ca bra si le i ra)

1. Trans fe rên cia da ca pi tal. 2. Ca pi tal (ci da de). I. Sé rie.II. Tí tu lo.

CDD 911

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Su má rio

DEDICATÓRIApág. 9

AGRADECIMENTOS pág. 11

Apre sen ta ção do Pre si den te Jus ce li no Ku bits chekpág. 13

Pre fá cio do Dr. Isra el Pi nhe i ropág. 17

I – Con si de ra ções pre li mi na respág. 19

II – No an ti go Egi to: Memp his, The bas, Akhe ta tonpág. 41

III – Ale xan driapág. 57

IV – Cons tan ti no plapág. 71

V – Be id jing (Pe king) e o ur ba nis mo chi nêspág. 89

VI – No Ja pão: Nara, Kyo to e Tó quiopág. 121

VII – Ma dridpág. 139

VIII – O Bar ro co e Ver sa il lespág. 153

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IX – São Pe ters bur go e a obra de Pe dro, o Gran depág. 185

X – Was hing tonpág. 213

XI – Otta wapág. 245

XII – Pre tó riapág. 257

XIII – Sete De lhis e Nova De lhipág. 265

XIV – Anka rapág. 285

XV – Cam ber rapág. 297

XVI – Bra sí lia, a Nova Ca pi talpág. 321

XVII – Bra sí lia, Qu a ren ta Anos De po ispág. 377

Ane xo I – Re la tó rio sobre o Pla no Pi lo to de Bra sí liapág. 415

Ane xo II – Entre vis ta de Gil ber to Frey re pág. 437

BI BLI O GRA FIApág. 443

ÍNDICE ONOMÁSTICO pág. 447

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De di ca tó ria

À MEMÓRIA DE MEU PAI QUE ME ENSINOU A AMAR OS LIVROS,

AS VIAGENS E A ARQUITETURA, E A CONFIAR NO BRASIL ONDE AS

COISAS SEMPRE ACABAM ENCONTRANDO SOLUÇÃO.

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Agra de ci men tos

Ao Dr. Isra el Pi nhe i ro, Pre si den te da Com pa nhiaUrba ni za do ra da Nova Ca pi tal, que tor nou pos sí vel a pu bli ca ção des taobra; aos meus co le gas, Emba i xa do res He i tor Lyra, Hugo Gout hi er eSet te Câ ma ra, e os co le gas R. Bat hel Rosa, Sér gio Cor rea do Lago,Arthur de Gou vea Por tel la, Má rio Ca lá bria, Arnal do Leão Mar ques;ao Ge ne ral Lima Fi gue i re do; ao Con de de Casa-Ro jas, Emba i xa dor da Espa nha em Pa ris, aos Se nho res Tunç Yal man, Côn sul da Tur quia,Arthur Dra ke, Côn sul Ge ral da União Sul-Afri ca na, e K. B. Tan -dam, do Ser vi ço de Infor ma ções da Índia, em Nova York, por me ha ve -rem for ne ci do ma te ri al re la ti vo à ma té ria e aju da do de ou tros mo dos; àBi bli o te ca Avery, da Uni ver si da de de Co lum bia, em Nova York, umadas mais ri cas co le ções de li vros de arte, ar qui te tu ra e ur ba nis mo exis ten -tes no mun do; e à Bi bli o te ca do Con gres so dos Esta dos Uni dos da Amé -ri ca – cuja aju da foi ines ti má vel.

Agra de ço de igual modo, nes ta se gun da edi ção, ao meu co le gaem ba i xa dor Wla di mir Mur ti nho pe los con se lhos re ce bi dos no que diz res -pe i to ao en cur ta men to e atu a li za ção do tex to; Mi nis tro C. H. Car dim,por me pro por ci o nar a Edi to ra do Se na do para esta se gun da edi ção; eMi nis tra Ma ria He le na Pen na Pi nhe i ro Be zer ra, igual men te do Ita ma -raty e neta do Dr. Isra el Pi nhe i ro, cujo en tu si as mo pela obra mo nu men -tal do Pre si den te da No va cap me re ce ser re com pen sa do; ao pro fes sor

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Bráu lio de Ma tos, da UnB, que fez o “es ca ne a men to” do tex to ori gi nale me as sis tiu com va li o sas su ges tões so bre o tex to; e à Se cre tá ria Ro se -lady da Sil va, do Ser vi ço de Impren sa da Pre si dên cia da Re pú bli ca, pelo tra ba lho de di gi ta ção e cor re ção de pro vas do tex to.

Bra sí lia, maio de 2002.

12 José Osval do de Me i ra Penna

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Apre sen ta ção

A ver da de é que, se hou ve ta re fa me ti cu lo sa men tepla ni fi ca da, esta foi jus ta men te a cons tru ção de Bra sí lia. O exí guo pra zo de exe cu ção da obra – mo ti vo de acér ri mos ata ques da Opo si ção – foiim pos to pela an ti ga tra di ção ad mi nis tra ti va de que ne nhum go ver no, noBra sil, ja ma is deu pros se gui men to a qual quer obra ini ci a da pelo que oan te ce deu. Daí a pres sa, a de ter mi na ção de con cluí-la, ou me lhor, não sóina u gu ran do-a du ran te o úl ti mo ano do meu go ver no, mas pro vi den ci an -do, igual men te, a mu dan ça dos ser vi do res pú bli cos, de for ma que a trans -fe rên cia da fa i xa pre si den ci al ao meu su ces sor nela ti ves se lu gar.

Não hou ve, pois, qual quer fe i ção de aven tu ra na ta re fa.Aven tu ra hou ve, e com gra ves im pli ca ções, na mu dan ça de mu i tas ca pi -ta is, re gis tra das na his tó ria. No an ti go Egi to, te mos Mem fis, Te bas eAle xan dria. Na Chi na, o tro no an dou de nor te a sul, ao sa bor dos re ve ses di nás ti cos. A par tir do sé cu lo XII, as sis ti mos no Ja pão à si tu a ção cu ri o sa de um du a lis mo es ta tal cor res pon der a du pli ci da de de ca pi ta is: em

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face de Ki o to, re si den ci al tra di ci o nal do Mi ka do, er guem-se Ka ma ku ra e, mais tar de, Yedo, cen tros ad mi nis tra ti vos e fo cos do po der mi li tar doSho gun, o di ta dor mi li tar. Hou ve, tam bém, no ve lho Egi to, a ci da -de-fan tas ma de Akhe ta ton, re si dên cia do fa raó he re ge Akhe na ton, quea er gueu para opô-la à ve lha ca pi tal, onde pon ti fi ca va o cle ro re a ci o ná riodo deus Amon. Se gui ram-se os exem plos clás si cos de cons tru ção de ci -da des ar ti fi ci a is: Cons tan ti no pla; Pe quim; Ma dri; São Pe ters bur go;Was hing ton; Ota wa; Pre to ria; Anka ra; Can ber ra; e Nova De lhi, para só fa lar das ini ci a ti vas de ma i or ex pres são.

Em to dos es ses ca sos mi li ta ram, cri an do a mo ti va ção para atrans fe rên cia ou para a mu dan ça, ra zões de na tu re za di ver sa, mas pre -do mi nan do, na ma i o ria dos exem plos, ora mo ti vos pes so a is re la ti vos ahe ge mo ni as di nás ti cas, ora im po si ções ge o po lí ti cas ou so ci o e co nô mi cas.Em re la ção a Bra sí lia, fi ze ram-se sen tir ou tros fa to res, como mu i to bemacen tu ou o Emba i xa dor J. O. de Me i ra Pen na, no seu li vro Qu an doMu dam as Ca pi ta is, pu bli ca do dois anos an tes da ina u gu ra ção deBra sí lia, o que não o im pe diu de fa zer uma aná li se, com to das as im pli -ca ções, do que iria sig ni fi car, de fato, para o nos so fu tu ro, a in te ri o ri za çãodo go ver no. Esse ilus tre di plo ma ta re ve lou, em ba ses re a lis tas, a mo ti va -ção da ci cló pi ca ta re fa: “Em pri me i ro pla no, o que se de se ja é que o go -ver no bra si le i ro aban do ne o li to ral, essa lu xu o sa vi tri na, útil ape naspara atra ir a aten ção ou ilu dir o exa me do eu ro peu e do ame ri ca no. Emse gun do lu gar, para que os cu i da dos de um Esta do mais re a lis ta, mo des -to, me nos pe dan te men te so ci a lis ta, se di ri jam ao ser tão, às gran des flo res -tas, aos cam pos ge ra is, aos rios ca u da lo sos, às ri que zas po ten ci a is enor -mes e ao ser ta ne jo – ma gro e for te, ho mem es que ci do do in te ri or – é ne -ces sá rio des vi ar o cen tro de gra vi da de do país, es ta be le cê-lo no co ra ção dos di la ta dos ter ri tó ri os do Bra sil, a fim de po der con tem plar, ao al can ce deto das as clas ses e de to das as re giões, o pa no ra ma so ci al in te i ro. Assim,os ob je ti vos da cons tru ção da nova ca pi tal são uni da de, efi ciên cia ad mi -nis tra ti va, des cen tra li za ção, apro xi ma ção das fron te i ras con ti nen ta is, de -sen vol vi men to eco nô mi co e so ci al do in te ri or e ex plo ra ção das vas tas, de -ser tas e fér te is áre as de Go iás a Mato Gros so, onde ama du re ce o fu tu roda na ci o na li da de. Dir-se-á que a fun ção de uma ca pi tal não é ser pi o ne i -ra. Por que não? No caso bra si le i ro, em que o Esta do in ter vém ou pre -ten de in ter vir em tudo, de i xai-o, pelo me nos uma vez der ra de i ra, in ter vir

14 José Osval do de Me i ra Penna

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num as pec to es sen ci al da vida na ci o nal, de i xai-o pro vo car aqui lo que opovo tem he si ta do em fa zer es pon ta ne a men te – pi o ne i ris mo!”

A de fi ni ção, aci ma trans cri ta, é per fe i ta men te vá li da. Nela sein clui qua se a to ta li da de dos mo ti vos que me le va ram a cons tru ir Bra sí -lia, não se es que cen do mes mo de acres cen tar, às ra zões ex pos tas, dois as -pec tos da ques tão que sem pre con si de rei de re le vân cia: a) a ne ces si da deque ti nha o país de sen tir suas fron te i ras com o Pa ra guai, a Bo lí via, oPeru, a Co lôm bia e a Ve ne zu e la; e b) o ob je ti vo pri o ri tá rio, jus ti fi ca ti voda cons tru ção da nova ci da de: a in te gra ção na ci o nal.

(Tre cho do li vro Por Que Cons truí Bra sí lia, pp. 16 a 18.)

JUSCELINO KUBITSCHEK

Qu an do Mu dam as Capitais 15

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Pre fá cio

Para a cons tru ção de Bra sí lia, um me ti cu lo so tra ba lho de pla ne ja -men to im põe-se des de já, co brin do toda a imen sa área que as er rô ne asten dên ci as do pas sa do de i xa ram ao aban do no e sem fun ção útil, no es for -ço co mum de de sen vol vi men to na ci o nal. Tra ba lhan do ao lado dos téc ni cos das mais di ver sas es pe ci a li da des, dos en ge nhe i ros, dos ar qui te tos, dos ur -ba nis tas, Bra sí lia re cla ma, tam bém, a co la bo ra ção dos es tu di o sos e pes -qui sa do res que vão pre pa ran do, com os seus sub sí di os ci en tí fi cos, a rotado novo des bra va men to. A essa equi pe de en ten di dos in cor po ra-se bri -lhan te men te o mi nis tro J. O. de Me i ra Pen na, com o ex ce len te li vro quete mos a gra ta sa tis fa ção de apre sen tar ao gran de pú bli co. Qu an do mu -dam as ca pi ta is sur ge, em hora es pe ci al men te opor tu na, como re le van tecon tri bu i ção para os es tu dos re la ti vos à in te ri o ri za ção da ca pi tal da Re -pú bli ca, ofe re cen do a quan tos se in te res sam mais de per to pelo pro ble mauma abun dân cia de exem plos do pas sa do e do nos so tem po, de onde re co -lher toda sor te de en si na men tos para a ex pe riên cia de Bra sí lia.

O au tor, di plo ma ta que, em sua car re i ra, co nhe ceu qua se to -das as ca pi ta is aqui des cri tas, dis se ca, na ver da de, das suas ra í zes àsmais atu a li za das ma ni fes ta ções, o pro ble ma das ca pi ta is sob o ân gu loge o po lí ti co, con se guin do es ta be le cer, nes sa ma té ria fe i ta de mu i tos im pon -de rá ve is, um es tu do sis te má ti co que vale como in dis pen sá vel ro te i ro para

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quem quer que es te ja em pe nha do na ta re fa da mu dan ça. O que a mu i tos se afi gu ra com sa bor de no vi da de e, por isso mes mo, com cer ta ín do le deaven tu ra, o Mi nis tro Me i ra Pen na apre sen ta nas suas di men sões ver da -de i ras de tema con tem po râ neo das pri me i ras ci vi li za ções e que, atra vésdos sé cu los, até hoje, sem pre es te ve nas co gi ta ções dos ho mens de Esta do.Expõe, en tão, com mu i ta se gu ran ça, a face di nâ mi ca do pro ble ma, de -mons tran do a in fluên cia das ca pi ta is na vida das na ções e os cri té ri ospo lí ti cos, es tra té gi cos, eco nô mi cos, ge o grá fi cos, so ci a is, etc., que têm pre si di do à sua for ma ção, de sen vol vi men to e even tu a is trans la ções.

No vér ti ce de todo esse bem fun da men ta do tra ta men to his tó ri -co, e dos exem plos mo der nos como Was hing ton, Otta wa, Can ber ra,Anka ra e ou tras ca pi ta is ar ti fi ci a is, o au tor si tua o caso bra si le i ro, omais atu al e sem dú vi da o mais ar ro ja do, para con clu ir que o pla no deBra sí lia obe de ceu a cri té ri os ri go ro sa men te ló gi cos e ci en tí fi cos, e que anova ca pi tal do país cor ri gi rá um gra ve des vio da nos sa for ma ção his tó ri -ca, en qua dran do o Bra sil na sua exa ta po si ção ge o po lí ti ca.

Qu an do mu dam as ca pi ta is tem, en tre ou tros, o im por tan -te mé ri to de pro var, à sa ci e da de, que em vez de uma obra de im pro vi sa -ção, ou sim ples men te ino por tu na, o em pre en di men to em que com tan topa tri o tis mo e de di ca ção se vem em pe nhan do o Pre si den te Jus ce li noKu bits chek aten de a im pe ra ti vos má xi mos do de sen vol vi men to na ci o nal.

ISRAEL PINHEIRO

18 José Osval do de Me i ra Penna

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ICon si de ra ções Pre li mi na res

A Ca pi tal exer ce uma in fluên cia de ter mi nan te navida de uma na ção. Como sede do go ver no, ór gão de cen tra li za ção doEsta do, cen tro di re tor da vida po lí ti ca e, fre qüen te men te, da vida eco -nô mi ca e cul tu ral do país, ela ocu pa uma po si ção úni ca e pri vi le gi a da.Sua im por tân cia não re si de no vo lu me do co mér cio ou da in dús tria, naex ten são da área cons tru í da ou na ci fra de sua po pu la ção resi den te,porém na fun ção es pe ci al e trans cen den te de go ver no e uni fi ca ção.

Pos to de co man do em caso de guer ra, lo cal onde se ex pri -mem e se gas tam os re cur sos es pi ri tu a is da na ci o na li da de, a Ca pi tal é aca be ça pen san te do Esta do, o ber ço de suas leis e ins ti tu i ções e, comotal, re pre sen ta uma co mu ni da de sem fron te i ras da qual é ci da dão nãoape nas o do mi ci li a do, po rém todo na ci o nal do país. Suas ati vi da des, seus pro ble mas, suas as pi ra ções, seus pro je tos re a lis tas ou so nha do res, asvicis si tudes de sua vida mul ti for me in te res sam a toda a so ci e da de po lí ticaque nela se sen te e se re fle te. Ela é o mo nu men to que er guem o Povo eo Fundador, agin do de co mum acor do, para ce le brar sua pró pria gló riae o re fi na men to de seu gos to ar tís ti co; ela é a vi tri ne da na ção, a face quemostra ao mun do e, para esse edi fí cio do or gu lho pa trió ti co, con tribuem,

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atra vés das ida des do es ti lo, seus ma i o res ar qui te tos e seus mais fa mo sos ar tis tas. A Capi tal é um sím bo lo, tan to quan to um ins tru men to po lí ti co.

A mu dan ça da Ca pi tal, quer se efe tue de uma ci da de para outra,quer de uma ve lha me tró po le para novo sí tio es pe ci al men te es co lhi do ear ti fi ci al men te apa re lha do, cons ti tui por tan to uma obra de con si de rá velal can ce e um acon te ci men to mo men to so que mar ca per ma nen te men teo des ti no de um povo. O es tu do da for ma ção e da mu dan ça das ca pi ta is, no con ce i to ge ral da es tru tu ra ção do Esta do, é um dos ob je tos pró pri osda ge o gra fia po lí ti ca, cu jos dois ou tros ele men tos cons ti tu ti vos são oter ri tó rio e as fron te i ras. Ou tras ciên ci as so ci a is con cor rem para essetra ba lho e a ci da de, em si, é a ma té ria do Urba nis mo, como ciên ciaurba na es pe cí fi ca. Mas a His tó ria é a mag ní fi ca ilus tra ção que, re fle tin do o pas sa do das na ções, for ne ce exem plos ins tru ti vos, em re giões e épo cas di fe ren tes, da ação de fa to res per ma nen tes que agi ram na de li be ra ção da mu dan ça e na es co lha do lo cal. A His tó ria não com pi la ape nas os fa tosmas pro cu ra os mo ti vos do Fun da dor, à luz dos acon te ci men tos cor re -la tos mais im por tan tes do mo men to, ana li san do as con se qüên ci as deseu ato e de ter mi nan do o sen ti do, a “Idéia Do mi nan te” que pre si diu àfun da ção.

No tra ba lho que nos pro po mos re a li zar, no qua dro de nos saes fe ra par ti cu lar de ati vi da de e como con tri bu i ção para os es tu dos re lativos à mu dan ça da Ca pi tal do Bra sil, li mi tar-nos-emos, qua se ex clu si va men te, a ti rar do pas sa do tais exem plos ins tru ti vos, sen tin do, po rém, o pro ces so de de sen vol vi men to que deu vida e for ma às ca pi ta is es tran ge i ras.Valer-nos-emos da ex pe riên cia de ou tros pa í ses cu jos mé to dos, su ces sos e re ve ses é mis ter com pre en der. E, se cabe re cor rer aos da dos dos es pe -ci a lis tas e in ves ti gar a im por tân cia re la ti va de fa to res ca rac te rís ti cos daes co lha, tais como re le vo, cli ma, solo, fa ci li da des de trans por te, con di -ções eco nô mi cas e as pec tos de na tu re za mi li tar, cul tu ral ou ad mi nistrati va, so bre le va o es tu do do pas sa do, como ma te ri al só por si dos mais valio sos para uma vi são de con jun to, sus cep tí vel de su prir a obra dos geó gra fos,dos ur ba nis tas, dos to pó gra fos, dos eco no mis tas, dos mi li ta res e dospolí ti cos. A His tó ria é uma rica e pi to res ca ilus tra ção que hu ma ni za taises tu dos al ta men te téc ni cos.

Para a com pre en são do que se se gue são im pres cin dí ve iscer tas con si de ra ções ini ci a is de ge o gra fia hu ma na ou de ge o po lí tica.

20 José Osval do de Me i ra Penna

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A Ge o gra fia, pri me i ra ciên cia a con tri bu ir com seus da dos e prin cí pi os,e sua téc ni ca es pe ci al, para o es tu do em vis ta, en si na a dis tin guir-se, deiní cio, duas no ções fun da men ta is: a no ção de sí tio e a no ção de po si ção.Essa dis tin ção, fre qüen te men te con fun di da pelo pú bli co, pos sui va lorin con tes tá vel na ma té ria pois, no con ce i to de po si ção, en tram fa to res“po lí ti cos”, agin do em con cor dân cia com os me ra men te ge o grá fi cos, na apre ci a ção dos qua is o mé to do his tó ri co en con tra per fe i ta apli ca ção. Apo si ção de uma Ca pi tal é es sen ci al men te uma ques tão po lí ti ca, umaques tão es tra té gi ca; sua es co lha não de pen de da opi nião dos téc ni cos,es pe ci a lis tas, po rém ex clu si va men te de de ci são po lí ti ca, em fun ção dosob je ti vos po lí ti cos que se pre ten de al can çar. Ao pas so que o sí tio dizres pe i to ex clu si va men te às vir tu des da si tu a ção ou po si ção lo cal, to po -grá fi ca.

Vale re pro duzir aqui as de fi ni ções do Pro fes sor Fá bio deMa ce do So a res Gu i ma rães: “Enten de-se por sí tio o con jun to de aspec -tos in trín se cos do lo cal em que se acha a ci da de, bem como das zo nasime di a ta men te cir cun vi zi nhas. São as ca rac te rís ti cas do re le vo, do cli ma,da ve ge ta ção, etc., da área ocu pa da pela ci da de e suas cir cun vi zi nhan ças,con si de ra das em si mes mas”. “Por po si ção com pre en de-se a si tu a ção da ci da de em re la ção a ou tras áre as dis tin tas, mes mo que mu i to afas ta das,em re la ção ao con jun to do país e até do con ti nen te, em suma. Não écon ce i to pu ra men te ge o mé tri co, que se pos sa ex pri mir sim ples men tepe las co or de na das ge o grá fi cas (la ti tu de e lon gi tu de), pois en vol ve con si -de ra ções a res pe i to das con di ções ge o grá fi cas de ou tras áre as que nãoaque la que se acha es tri ta men te ocu pa da pela ci da de. Tais con si de ra ções se re fe rem, por exem plo, à si tu a ção da ci da de em re la ção a aci den tesge o grá fi cos dis tan tes, tais como as gran des li nhas do re le vo, os cur sosd’água im por tan tes, as fron te i ras po lí ti cas, as vias mes tres de trans por tee co mu ni ca ções; à pro xi mi da de ou afas ta men to do mar; às suas re la ções com ou tras ci da des e ou tras re giões do país, ten do em vis ta as fa ci li da des ou di fi cul da des de co mu ni ca ções, de in ter câm bio eco nô mi co, etc.”.

Na con ce i tu a ção de Ge o gra fia da His tó ria apli cá vel ao casode mu dan ça da Ca pi tal, des per ta ain da in te res se par ti cu lar a dis tin ção,pro pos ta por Ca mil le Val la ux e Jean Bru nhes (“La Géo grap hie deI’Histoire”), en tre “Ca pi tal ar ti fi ci al” e “Ca pi tal na tu ral”. Se gun do a de fi -ni ção dos geó gra fos fran ce ses, quan do o ór gão cen tral do Esta do se

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es ta be le ce des de sua ori gem numa ci da de já exis ten te, onde a for ma çãour ba na foi es pon ta ne a men te de ter mi na da pela ação de fa to res na tu ra is,tais como cru za men to de vias de co mu ni ca ção, es tuá ri os, ba ías, va les oupla nal tos de fá cil aces so, e pelo aflu xo de po pu la ção e da vida eco nô mi -ca que é con se qüên cia da que la ação – es ta mos di an te de uma Ca pi talna tu ral. A for ma ção de tal me tró po le é ge ral men te len ta, se gue a sor tedo de sen vol vi men to di nás ti co e re sul ta da com bi na ção de ele men tosmu i to com ple xos e às ve zes con tra di tó ri os. São exem plos de ca pi tal na -tu ral: Pa ris, Lon dres, Roma, Mos cou, Lis boa, o Rio de Ja ne i ro e, de ummodo ge ral, as ca pi ta is da Amé ri ca La ti na.

A Ca pi tal ar ti fi ci al é cri a da re pen ti na men te, ex-nihilo. Isso quer di zer, é cons tru í da onde não exis tia an tes qual quer ha bi ta ção ou, pelome nos, qual quer for ma ção ur ba na su fi ci en te men te de sen vol vi da paraser vir aos pro pó si tos do go ver no. Nes se caso, ma ni fes ta-se em toda suapu re za a ação do fa tor po si ção pois é a po si ção, mais do que o sí tio, queage na se le ção do lo cal. A Ca pi tal ar ti fi ci al está li ga da aos ob je ti vos pre ci sos de seu Fun da dor, ob je ti vos ra ra men te de ca rá ter eco nô mi co ou co mer -ci al, mais fre qüen te men te de na tu re za so ci al, cul tu ral ou re li gi o sa, e quasesem pre ou sem pre de cu nho po lí ti co. “Os des ti nos des sa ci dade se guem os des ti nos do Esta do que co roa”. Seu de sen vol vi men to tem uma ca dên cia re la ti va men te sim ples e uni for me mas, se gun do Val la ux, pa re ce sem preme nos só li da e me nos viva do que a Ca pi tal so bre pos ta a uma an ti gacida de de co mér cio. Se rão es sas Ca pi ta is ar ti fi ci a is, por mo ti vos ób vi os,o ob je to par ti cu lar de nos sa cu ri o si da de, no pre sen te es tu do, pois afutura Ca pi tal do Bra sil, cons tru í da em lo cal ain da vir gem do Pla nal toCen tral – ci vi tas ubi sil va fuit – será ti pi ca men te uma Ca pi tal ar ti fi ci al.

Na apre ci a ção das di fe ren ças en tre as Ca pi ta is na tu ra is e asarti fi ci a is, Val la ux e Bru nhes fa zem crí ti cas que nos pa re cem in jus tifi ca das e pro ve ni en tes de um dog ma tis mo exa ge ra do. “Enquanto a si tu a çãogeo grá fi ca da Ca pi tal na tu ral, afir mam eles, re sul ta das van ta gens to ta li zadas que o sí tio e a po si ção con ce dem, a da Ca pi tal ar ti fi ci al re dun da devantagens for ne ci das ex clu si va men te pela po si ção. Ao in vés de adaptar-se a uma for ma ção ur ba na an te ri or, o Fun da dor da Ca pi tal ar ti fi ci al evi tato dos os sí ti os já ocu pa dos: como tais sí ti os são ge ral men te os maisfavoráve is, a Ca pi tal ar ti fi ci al pa re ce às ve zes vi o len tar a na tu re za. Pro du todi re to das ne ces si da des po lí ti cas, ela re ú ne gran de nú me ro de gen te em

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loca li da des que, por si só, não go zam de qual quer des sas for ças de atraçãode onde, ge ral men te, saem as aglo me ra ções ur ba nas. A Ca pi tal na tu ralnas ce so bre o ter re no: a Ca pi tal ar ti fi ci al nas ce no mapa e é, em se gui da, trans por ta da para o ter re no a gol pes de mi lhões e de for ça de von ta de”.Os dois geó gra fos, para ilus trar seu ar gu men to, des cre vem li ge i ra men teos ca sos de São Pe ters bur go e de Ma drid, como exem plos ins tru ti vos de Capi ta is ar ti fi ci a is edi fi ca das em po si ção bem es co lhi da, po rém com totaldes pre zo pe las con di ções de sí tio.

Não nos que re mos de ter aqui so bre es ses ca sos, nem tam poucono de Was hing ton – Ca pi tal ar ti fi ci al edi fi ca da em sí tio tam bém des fa -vorável – ha ve rá opor tu ni da de de de ba tê-los com ma i or minúcia noscapí tu los apro pri a dos des te li vro. De se ja mos ape nas cha mar a aten çãopara a tese se gun do a qual a Ca pi tal ar ti fi ci al, por sua pró pria na tu re za,va lo ri za a po si ção em de tri mento do fa tor sí tio: essa tese pa re ce-nosinexata por que não abran ge to das as hi pó te ses e re sul ta de uma in ter -pre ta ção du vi do sa da pa la vra “ar ti fi ci al”. As mu dan ças de ca pi ta is nãosão ne ces sa ri a men te efe tu a das para lo ca is “ar ti fi ci al men te” es co lhi dos ees ses sí ti os ar ti fi ci a is não apre sen tam, por prin cí pio, con di ções des fa vo -rá ve is, se não em con se qüên cia, na es co lha, de pres sa, erro ou pre do mi -nân cia mo men tâ nea de fa to res po lí ti cos pre men tes. Mu i tas ve zes jus ti fica-sepos te ri or men te a es co lha pelo cres ci men to na tu ral da me tró po le e, como pas sar dos anos, o ho mem cor ri ge não pou cos in con ve ni en tes ini ci a isdo sí tio: é o caso de São Pe ters bur go, que não sen do mais a sede dogover no rus so goza de tan ta pros pe ri da de e pos sui ma i or po pu la ção doque na épo ca dos tza res. O fato é que, qua se sem pre, a Ca pi tal ar ti fi ci alé fa vo re ci da por um cres ci men to or gâ ni co que a trans for ma em aglo me -ra ção eco nô mi ca sã. Inver sa men te, di fí cil é apon tar uma Ca pi tal na tu ralque não te nha sido, de iní cio, ar ti fi ci al men te es co lhi da. Afi nal de con tas, Roma tam bém foi ar ti fi ci al men te tra ça da pelo ara do de Rô mu lo!

As van ta gens ou des van ta gens de sí tio ou po si ção são fa to resque va ri am com o tem po. O es for ço do tur co está trans for man do Anka ra em oá sis, na qual cres ceu uma gran de ci da de, ao pas so que Istam bulcessou de fru ir, com o es fa ce la men to do Impé rio oto ma no, os privi lé gi osde sua po si ção ex cep ci o nal. O pró prio Rio de Ja ne i ro foi uma Ca pi talarti fi ci al quan do os co lo ni za do res por tu gue ses se des lo ca ram da ci dade doSalva dor. Mas hoje ela per deu as van ta gens de po si ção ge o grá fi ca capazes

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de jus ti fi car sua qua li da de de Ca pi tal Fe de ral, ao pas so que se de sen vol -veu na tu ral men te como por to co mer ci al, cen tro cul tu ral e tu rís ti co.Nem se pode ar gu men tar com a sin gu la ri da de de seu sí tio, ex ce to noque diz res pe i to à be le za in com pa rá vel da Gu a na ba ra.

Por con se guin te é lí ci to di zer que a dis tin ção aci ma pos tu la daca re ce de pre ci são e o ter mo “ar ti fi ci al” não deve ser com pre en di do emsenti do pe jo ra ti vo. Com efe i to, a Ca pi tal pla ne ja da não é ne ces sa riamen tear ti ficial. Arti fi ci al, sim, no sen ti do de, que todo es ta be le ci men to humano é ori gi na ri a men te o pro du to de um “ar ti fí cio”, o re sul ta do da ati vi da decons ci en te do ho mem para um fim es pe cí fi co. Mas a Ca pi tal pos sui uma fun ção “na tu ral”, a mais alta tal vez das que jus ti fi quem a exis tên cia deuma ci da de: a fun ção de go ver no. Arti fi ci al tam pou co em vir tu de dasin gu la ri da de de seu pro pó si to: ou tras aglo me ra ções há, mais li mi ta dasem seus fins e mais es tre i tas em suas ati vi da des, qua is se jam as ci da desuni ver si tá ri as ou de ve ra ne io, as pra i as de ba nho, as vi las mi li ta res, oscen tros in dus tri a is, os pa tri mô ni os his tó ri cos. A fun ção go ver na men tal é tão vas ta em âm bi to e tão alta em pro pó si to que, por si só, cons ti tui umfa tor fa vo rá vel ao cres ci men to har mô ni co e à ple ni tu de da vida ur ba na,com ba ten do o even tu al “ar ti fi ci a lis mo”, qui çá in se pa rá vel de qual queredi fi ca ção nova e ima tu ra.

O ar ti fi ci a lis mo é uma fal ta, um sin to ma de pla ne ja men to mal conce bi do e não o pre ço ine vi tá vel do de se nho ra ci o nal, em li nhas geomé -tri cas, exe cu ta do de acor do com os seus prin cí pi os da ar qui te tu ra e dour ba nis mo. Ver sa il les é o pro du to es tu pen do de um tra ba lho de equi peque du rou mais de cem anos e nin guém apon ta rá, na obra dos arquite tos,pintores, es cul to res e jar di ne i ros de Luis XIV, Luis XV e Ma ria Antoni e ta, qualquer ar ti fi ci a lis mo. Pe quim é tam bém uma obra-prima de pla nifica ção urbana como pro du to de um sim bo lis mo fi lo só fi co, po lí ti co e re li gioso e,não obs tan te, é uma das ci da des de ma i or en can to do mun do. Washing ton,Ca pi tal ar ti fi ci al tipo, re ve la mais ca rá ter do que a ma i or par te das ou tras ci da des ame ri ca nas de mes mo ta ma nho. Não exis te, na re a li da de, umare la ção ne ces sá ria en tre a nova Ca pi tal pla ne ja da e as qua li da des de fal tade au ten ti ci da de, des na tu ra li da de ou dis si mu la ção. O ar ti fi ci a lis mo realin de pen de das con di ções em que foi fun da da uma ca pi tal.

As capi ta is dos pa í ses no vos são na tu ral men te pla ne ja das.Qu an to mais re pen ti na a de ci são de cons truí-las, mais na tu ral se tor na a

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ação cons ci en te do ho mem que pro cu ra dis por, em for mas e es pa çosraci o nal men te con ce bi dos, os ob je tos do es ta be le ci men to co le ti vo nosolo. Belo Ho ri zon te foi pla ne ja da e não ati no como pos sa ser con si de -ra da, por esse mo ti vo, me nos au tên ti ca ou ca rac te rís ti ca do que, di ga -mos, Re ci fe ou Por to Ale gre. Não se deve con fun dir a au ten ti ci da defun da men tal de uma ci da de com a pá ti na na tu ral que tan to “char me”facul ta às ve lhas aglo me ra ções, ri cas em arte acu mu la da e, ca le ja daspelas vi cis si tu des his tó ri cas.

Mas to dos os ca sos de Ca pi ta is na tu ra is e ar ti fi ci a is ca re cemain da de um es tu do apro fun da do que se ria ine ga vel men te instruti voescla re cer como pro ble ma da “alma” das ci da des. Nos so ob je ti vo aquicon sis te ape nas em uti li zar os da dos his tó ri cos, exa mi na dos à luz dosco nhe ci men tos e no ções da ge o gra fia po lí ti ca, para de les ex tra ir os en si -na men tos ade qua dos à apre ci a ção do pro ble ma es pe cí fi co abor da do,qual seja o da mu dan ça da Capi tal do Bra sil.

E des de logo, para aten der às ob je ções dos geó gra fos fran ce ses,sem dú vi da ob ce ca dos com o pro di gi o so exem plo de Pa ris – exem plopor ex ce lên cia de Ca pi tal na tu ral – vale no tar que, na lo ca li za ção da futu raCapi tal do Bra sil, as con di ções de sí tio fo ram tão cu i da do sa men te avali a das quan to às de po si ção. Isso aliás é fá cil, num país novo, com os recur sos na tu ra is e a ex ten são ter ri to ri al do nos so. O tra ba lho de aná li se ci en tí fi ca e de le van ta men to ae ro fo to gra mé tri co, em pre en di do por Do nald Bel cher,com por tou um exa me exa us ti vo das con di ções, fa vo rá ve is ou des fa vo rá -ve is, dos vá ri os sí ti os pro pos tos, ga ran tin do sem dú vi da o mais per fe i toapro ve i ta men to da na tu re za lo cal. No que se ini cia como Ca pi tal ar tifici alcedo po de rão sur gir, com mais pro ba bi li da des do que em qua is quer outrossí ti os, as con di ções pro pí ci as a um mag ní fi co de sen vol vi men to eco nô -mi co e de mo grá fi co.

A con si de ra ção se guin te diz res pe i to à po si ção ge o grá fi caprefe rí vel de uma ca pi tal, do pon to de vis ta de sua fun ção uni fi ca do ra.“A ten dên cia é co lo cá-la em po si ção cen tral, diz Ma ce do So a res Guimarães. Não é, po rém, o cen tro ge o grá fi co do ter ri tó rio que im por ta con si de rar, o que só se ria ra zoá vel no caso teó ri co de um país ho mo gê neo cu jasregiões com po nen tes ti ves sem idên ti co va lor e no qual a po pu la ção sedis tri bu ís se uni for me men te. Qu an do se pro cu ra uma po si ção cen tral,quer-se sem pre fa zer re fe rên cia à par te do país efe ti va men te ocu pa da,

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ao ecú me no. De um pon to de vis ta teó ri co, em que ape nas a po si çãofos se con si de ra da, a lo ca li za ção ide al se ria a do cen tro de mo grá fi co dopaís”. E con ti nua: “Como cen tro po lí ti co, a fun ção mais im por tan te daca pi tal de um gran de país, é, sem dú vi da, a uni fi ca do ra. Ela deve fi carsitu a da em po si ção tal que fa ci li te a ação dos ór gãos cen tra is do Esta doso bre to das as par tes do país, ou, em ou tras pa la vras, que seja pos sí velestabe le cer fá cil aces so a es sas par tes. Tra tan do-se de um ter ri tó rio exten so,que com pre en da re giões im por tan tes ni ti da men te di fe ren ci a das, a Capi taldeve equi li brar as ten dên ci as de sa gre ga do ras que se pos sam ma ni fes tar,e sua po si ção deve ser tal que per mi ta fa cil men te equi li brar tais ten dên -ci as cen trí fu gas. As re giões do país são, en tre tan to, sem pre de si gua is emim por tân cia atu al e em pos si bi li da des fu tu ras. A Ca pi tal não deve emhipó te se al gu ma per der o con ta to com as re giões mais de sen vol vi das,aque las que cons ti tu em o que os geó gra fos de lín gua in gle sa cha mam acore area. Tal des li ga men to é sem pre fu nes to à uni da de na ci o nal”.

Esse con ce i to es sen ci al de ge o gra fia po lí ti ca, tão cla ra men teex pos to, de ve rá ser cons tan te men te lem bra do para a com pre en são doque se se gue. Já se ob ser vou que Ma drid foi lo ca li za da no cen tro ge o -mé tri co da pe nín su la Ibé ri ca, pra ti ca men te eqüi dis tan te do Atlân ti co, do Medi ter râ neo e do gol fo de Bis ca ia, lon ge, con tu do, da core area espanho laque se en con tra va na Ca ta lu nha. Ora, Ma drid não con se guiu do mi narcom ple ta men te as ten dên ci as se pa ra tis tas de al gu mas re giões es panho las.

Ao in vés de ge o gra fi ca men te cen tra is, as ca pi ta is pro cu ramfre qüen te men te uma po si ção ex cên tri ca, em co ne xão com as fron te i ras“vi vas” ou “crí ti cas” do país. Pon de ram Val la ux e Bru nhes que a fun ção da Ca pi tal res pon de ao du plo ob je ti vo de man ter a uni da de da so ci e da de po lí ti ca, pre ve nin do as ten dên ci as lo ca is cen trí fu gas, e de dar co e são edireção ao es for ço per ma nen te de pres são e de re sis tên cia exer ci do sobreas fron te i ras. “Os ca sos nu me ro sos de ex cen tri ci da de da Ca pi tal parecemde mons trar que o se gun do caso se im põe de ma ne i ra mais im pe ra ti vaain da do que o pri me i ro ou, me lhor seja dito, que a ma ne i ra mais fá cilde re a li zar o pri me i ro ob je ti vo é al can çar ini ci al men te o se gun do. Poishá uma re la ção en tre as ca pi ta is cuja po si ção é ex cên tri ca e as fron te i rasde ten são dos Esta dos. A Ca pi tal es ta be le ce-se su fi ci en te men te per todas fron te i ras crí ti cas para or ga ni zá-las e para vi giá-las, e su fi ci en tementelonge para fi ca rem ao abri go de qual quer gol pe de sur pre sa”. Essa

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ca rac te rís ti ca da po si ção pre fe ri da, de na tu re za mi li tar ou es tra té gi ca, emfun ção das fron te i ras de ten são, re ve la-se ni ti da men te no caso de Pa ris,que con tro la o li to ral do no ro es te, em fren te à Ingla ter ra e a fron te i ra do nor des te, face à Ale ma nha; no caso de Ber lim, que vi gia o Oder e omun do eslavo; no de Lon dres, que guar da o Pas so de Ca la is; no de De lhi,que de fen de a rota tra di ci o nal de in va são da Índia cen tral; no de Be id -jing, si tu a da logo atrás da Gran de Mu ra lha, fron te i ra viva da Chi napropri amente dita. E vale lem brar, na his tó ria do Bra sil, que nos sa Capitalfoi trans fe ri da da ci da de do Sal va dor para a baía de Gu a na ba ra a fim deapro xi mar o Go ver no Ge ral da luta en tão tra va da, na fron te i ra do Pra ta, pela pos se da Co lô nia do Sa cra men to. Don de a de fi ni ção fa mo sa deBru nhes e Val la ux: “Ce qui fait Ia ca pi ta le c’est Ia po si ti on d’une vil le par rapp -port à l’en sem ble du ter ri to i re de I’Etat et de Ia lig ne des fron tiè res.”

Não de ve mos crer, po rém, que im por ta ape nas nes sa es fe ra adis tân cia re la ti va e as con di ções de fen si vas do ter re no, na zona li mí tro fe. Ou tros fato res es tra té gi cos e tá ti cos de vem ser le va dos em li nha de conta.O Impe ra dor Cons tan ti no es co lheu o sí tio de Bi zân cio por que o apro xi -ma va da fronte i ra de ten são ira ni a na, sen do a Pér sia a po tên cia es trangeiramais pe ri go sa, a úni ca que os ro ma nos ja ma is con se gui ram so bre pu jar.Entre tan to, afas ta va-se da li nha do Reno, não me nos im por tan te na épocae, afi nal de con tas, fa tal para a so bre vi vên cia do Impé rio. Qu es tões detrans por te e abas te ci men to ma rí ti mo, ou como se diz em lin gua gemmo der na, a “lo gís ti ca”, as sim como as con dições ex cep ci onais da to po -gra fia do por to, cons ti tu í ram fa to res não me nos pon de rá ve is da es co lha. Os úl ti mos Impe ra do res do Oci den te tam bém aban do na ram Roma e sees ta be le ce ram em Ra ve na por que Roma era in de fen sá vel, ao pas so queRa ve na, mais pró xi ma da fron te i ra sen sí vel da Gá lia Ci sal pi na, ocu pa vauma si tu a ção pra ti ca men te in vul ne rá vel. A con fi gu ra ção to po grá fi ca,favo rá vel à de fe sa, de sem pe nhou um pa pel de ci si vo na es co lha de sí ti osur ba nos du ran te toda a Ida de Mé dia.

Ou tro exem plo: Mus ta fá Ke mal aban do nou Cons tan ti no plapor que, já no sé cu lo XX, se tor na ra vul ne rá vel. Esco lheu Anka ra parasede de seu go ver no de sal va ção pú bli ca, no mo men to da guer ra con traos gre gos, por que era a úl ti ma es ta ção na li nha fér rea de pe ne tra ção daAna tó lia. Lon ge de de se jar apro xi mar-se da fron te i ra de ten são do MarEgeu, o gran de es ta dis ta tur co, tam bém bri lhan te es tra te gis ta, vi sou

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isolar a nova Ca pi tal no in te ri or da Ásia Me nor. Anka ra é hoje um nó de co mu ni ca ções fer ro viá ri as mais ou me nos cen tral e eqüi dis tan te dosdiver sos la dos do qua dri lá te ro ana to li a no. No caso de São Pe ters bur go,que no va men te ci ta mos, as sis ti mos ao pro pó si to de li be ra do de uti li zar aCapi tal como pos to de co man do para ope ra ções ofen si vas, ter res tres ena va is. Pe dro o Gran de fun dou-a em ple no ter ri tó rio ini mi go, an tesmes mo de con clu ir vi to ri o sa men te o lon go du e lo con tra a Su é cia!

Ain da no que diz res pe i to à po si ção, vale re pa rar na dis tin çãoen tre ca pi tais “ma rí ti mas” e “pe ne ma rí ti mas” e as ca pi ta is “con tinen ta is”.Val la ux cha ma “pe ne ma rí ti mas” as ci da des que, sem se rem por tos demar, es tão su fi ci en te men te pró xi mas do mar para pos su ir um por tocom pre en di do em seus su búr bi os. Elas re pre sen tam, de um modo ge ral, uma so lu ção con ci li a tó ria en tre as van ta gens co mer ci a is do por to demar e os in con ve ni en tes es tra té gi cos re sul tan tes da vul ne ra bi li da de aata ques de sur pre sa. Nes se sen ti do, tan to as ca pi ta is ma rí ti mas quan to as pe ne ma rí ti mas im pli cam a exis tên cia de um po der na val.

Ana li san do a dis tri bu i ção nu mé ri ca des ses vá ri os ti pos, ve ri fi -ca-se que, na Eu ro pa, em sua ma i o ria são con ti nen ta is: ma rí ti mas ape nas Lis boa e as ca pi ta is es can di na vas; pe ne ma rí ti mas Lon dres, Roma,Atenas e Haia. Na Amé ri ca, a dis tri bu i ção é mais ou me nos igual, comli ge i ra van ta gem em fa vor das con ti nen ta is (Assun ção, La Paz, San ti a go,Qu i to, Bo go tá, Ca ra cas, Was hing ton, Otta wa, Mé xi co e as ca pi ta is doscin co pa í ses cen tro-americanos). Lima, com seu por to em Cal lao, é ocaso tí pi co da ca pi tal pe ne ma rí ti ma mas cer tas dú vi das têm ca bi men toquan to a mes ma clas si fi ca ção em que Val la ux co lo ca Was hing ton e Cara cas.O caso de Ca ra cas, a nos so ver, é se me lhan te ao de um gran de nú me rode cida des la ti no-americanas que bus ca ram a be i ra do pla nal to, a dis tânciasufici en te do mar, tan to por ra zões de de fe sa (o li to ral, na épo ca co lo nial,es ta va a mer cê de ata ques con du zi dos por pi ra tas e cor sá ri os), quan topor mo ti vo de cli ma e de fa ci li da de de trans por te. Na ma i o ria des ses países a zona cul ti va da e po vo a da en con tra-se no pla nal to e a fa i xa coste i ra é ba i xa, insalu bre, pou co apro ve i tá vel para a agri cul tu ra e vul ne rá vel.Nes se sen ti do, Ca ra cas me re ce ria, com mais ra zão, en trar numa clas si -fi ca ção es pe ci al em que en con tra re mos as du plas San tiago-Valparaiso,Quito-Guayaquil e, no Bra sil, São Pa u lo-Santos e Cu ri tiba-Paranaguá. Ocaso ex cep ci o nal e in ver so é o da du pla Rio-Petrópolis...

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A ques tão das ca pi ta is ma rí ti mas e con ti nen ta is está li ga da,na tu ral men te, ao pro ble ma mais com ple xo da dis tin ção en tre po tên ci asna va is e po tên ci as con ti nen ta is. De um modo ge ral é lí ci to afir mar queos gran des po vos na ve gan tes e co lo ni za do res, os po vos co mer ci an tes econs tru to res de im pé ri os ul tra ma ri nos, es ta be le ce ram seu go ver no à be i -ra do Oce a no. O con ce i to in ver so ex pri me ain da me lhor a si tu a ção: asna ções ma rí ti mas cons ti tu em como que o hin ter land de seus por tos demar. O fato de uma Ca pi tal já se en con trar no li to ral, ou perto dele,pare ce ma ni fes ta men te des ti nar o povo a uma car re i ra naval, an tesmesmo de se quer co gi tar de gran des em pre en di men tos so bre as águas.Assim, o des ti no da Ingla ter ra de do mi nar os ma res es ta va tra ça do nalo ca li za ção de Lon dres, ao pas so que a po si ção me di ter râ nea de Pa risnos re ve la a pre o cu pa ção cons tan te dos Reis de Fran ça com sua po lí ti cacon ti nen tal. Dir-se-á que os es pa nhóis fo ram gran des na ve gan tes semha ve rem edi fi ca do uma ca pi tal ma rí ti ma. Cer to! Mas a isso po de riaresponder não ser à toa que a mu dan ça do tro no para Ma drid, no re i na -do de Fe li pe II, as si na lou, ao mes mo tem po, o apo geu do po de rio his pâ -nico na Eu ro pa e o fim de sua gran de ex pan são oceâ ni ca. Na Rús sia dePedro o Gran de e no Ja pão de Me i ji a trans fe rên cia da Co roa para ci da -des à be i ra-mar co in ci diu com a cri a ção de uma ma ri nha de guer ra e sig -ni fi cou uma mu dan ça de sen ti do na vida des ses po vos que se abrem, en -tão, à in fluên cia cos mo po li ta oci den tal e ini ci am, gra ças à na vegação,um inter câm bio cul tu ral e co mer ci al com o mun do ci vi li za do.

Os pa í ses que cri a ram gran des Impé ri os na va is, como na an ti -gui da de Car ta go e Ante nas e, na épo ca mo der na, Por tu gal e a Ingla ter ra, pos su em ne ces sa ri a men te ca pi ta is ma rí ti mas por que es ses por tos detrans bor do en tre as li nhas de co mu ni ca ção in ter nas, da me tró po le, e asli nhas de co mu ni ca ção ma rí ti mas, com as co lô ni as, ocu pam como queuma po si ção cen tral no con jun to de sua es fe ra de in fluên cia por as simdi zer an fí bia. Os ro ma nos não fo ram ma ri nhe i ros no mes mo sen ti dodos fe ní ci os e dos gre gos. Entre tan to, o Me di ter râ neo re pre sen tou agran de via gra ças à qual se cons ti tu iu o Impé rio e, na con fi gu ra ção li to -râ nea des se Esta do an fí bio, Roma ocu pa va sem dú vi da uma po si çãocen tral. Cir cuns tân ci as idên ti cas ex pli cam o fas tí gio de Ale xan dria eCons tan ti no pla.

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Val la ux atri bui a exis tên cia de um nú me ro tão sur pre en den tede ca pi ta is ma rí ti mas e pe ne ma rí ti mas à cir cuns tân cia de nos en con trarmos no pe río do oceâ ni co da his tó ria, pe río do em que “se as sis te ao cres ci men tocons tan te da pro por ção das Ca pi ta is que tam bém são por tos de mar”. O as sun to é cer ta men te com ple xo pois, de cer to modo, con tra diz o pos tu la do da re la ção ne ces sá ria en tre a lo ca li za ção cen tral e a fun ção uni fi ca do rada Ca pi tal. A si tu a ção do Rio de Ja ne i ro, por exem plo, ofe re ce mar gempara ex ten sas dis cus sões no ter re no da ge o po lí ti ca, pois foi ti pi ca men tea ca pi tal ma rí ti ma de uma po tên cia con ti nen tal. Por ou tro lado, Bra sí liafoi se le ci o na da em fun ção de fa to res de po si ção re sul tan tes da nova“ida de aé rea” da His tó ria do mun do. Aliás, esse pe río do aé reo, que subs titui ope río do oceâ ni co pos tu la do pe los geó gra fos fran ce ses, já mo di fi cou profun -da men te o mapa ge o po lí ti co do mun do e as no ções fun da men tais des saciên cia. É des de logo sim bó li ca a de ter mi na ção do sí tio da nova Capi talpor meio de le van ta men tos ae ro fo to gra mé tri cos: é a pri me i ra vez queas sim se pro ce de. Po der-se-ia mes mo adi an tar que a mudança daCapital, em tais con di ções e le van do em con ta as di fi cul da des de trans por teter restre para o in te ri or de Go iás, ex pri me o sal to pi to res co que o Bra silestá dando da car ro ça de boi ao avião! A im por tân cia da avi a ção nomun do fu tu ro pa re ce, de um modo ge ral, um fa tor mais pon de rá vel doque os cál cu los de es tra té gia ter res tre e na val que, ou tro ra, acon se lha -vam a in te ri o ri za ção da Ca pi tal da Re pú bli ca.

Mas abor de mos ago ra o pro ble ma de um pon to de vis ta dadi nâ mi ca ge o po lí ti ca, exa minando os fe nô me nos re la ti vos à per ma nência,mo bi li da de ou mul ti pli ci da de de Ca pi ta is.

Só po de mos com pre en der a Fran ça com sua Ca pi tal em Pa ris. A Ingla ter ra é in con ce bí vel sem Lon dres, a Áus tria sem Vi e na. Cer tospa í ses es tão iden ti fi ca dos a suas Ca pi ta is. Ou tros não. Há ci da des queexis tem in de pen den te men te dos Esta dos, so bre vi ven do às cul tu ras e aos perío dos his tó ri cos. São “eter nas” ci da des como Roma, como Ate nas, como Be id jing (Peking). Em Bi zân cio-Constantinopla-Istambul su ce de ram-segregos, ro ma nos, bi zan ti nos e tur cos. Em Se le u cia-Ctesiphon-Bagdad,às mar gens do Ti gris, vi ve ram su ces si va men te gre gos, per sas e ára bes.Je ru sa lém é a ci da de san ta de três re li giões. Não obs tan te a fal ta d’água,há três mil anos que per ma ne ce como sím bo lo trans cen den te, so bre vi -ven do às ma i o res ca la mi da des his tó ri cas e ven do pas sar, en tre ru í nas e

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con fli tos san gren tos, he bre us, as sí ri os, per sas, gre gos, ro ma nos, ára bes,fran cos, tur cos, in gle ses e ju de us si o nis tas – para con fir mar a eter ni da de da fé! Ao con trá rio, são ins tá ve is e de sa pa re cem re pen ti na men te, semde i xar ves tí gi os, as Ca pi ta is dos im pé ri os bár ba ros das es te pes: Ní ni va,Ka ra ko rum, Sa rai.

A his tó ria re gis tra inú me ros exem plos de pa í ses que mu da ram a sua Ca pi tal, con for me se trans fe ria o cen tro do po der po lí ti co de umare gião para ou tra. Fre qüen te men te, a mu dan ça é o re sul ta do de uma luta pela he ge mo nia en tre duas ou mais ci da des ri va is. No an ti go Egi to te mos Memp his, The bas, Ale xan dria. Na Chi na, o Tro no an dou de nor te a sul,ao sa bor dos re ve ses di nás ti cos. Duas ve zes Nan king, “Ca pi tal do Sul”,foi re cons tru í da e aban do na da. No sí tio de Pe king de pa ra mos com, pelo me nos, qua tro ci da des so bre pos tas, e hoje, pela quin ta vez, a “Ca pi tal do Nor te” aco lhe um go ver no chi nês. No Ja pão pri mi ti vo a mo nar quia tro -ca va de ca pi tal após cada re i na do, não por no ma dis mo mas em vir tu dede cer tas cren ças re li gi o sas. A par tir do sé cu lo XII, as sis ti mos à si tu a çãocu ri o sa de, a um du a lis mo es ta tal, cor res pon der a du pli ci da de de Ca pi ta is: em face de Kyo to, re si dên cia tra di ci o nal (Mi ka do) do Ten nô, Impe ra -dor, er guem-se Ka ma ku ra e, mais tar de, Yedo, cen tros ad mi nis tra ti vos e fo cos do po der mi li tar do Xô gun, o di ta dor mi li tar. A trans fe rên cia doImpe ra dor de Kyo to para Yedo-Tó quio, no iní cio da era de oci den ta li za ção,não re pre sen ta pro pri a men te uma mu dan ça de Ca pi tal mas, sim, a con -se qüên cia da res ta u ra ção do po der im pe ri al, o Mi ka do vin do re si dir noan ti go Pa lá cio do Xô gun des ti tu í do. Nos so pri me i ro ca pí tu lo des cre ve rá a ci da de fan tas ma de Akhe ta ton, re si dên cia do Fa raó he re ge Akhe na ton, que a er gueu para opô-la à an ti ga me tró po le do Egi to, The bas, onde do -mi na va o cle ro re a ci o ná rio do Deus Amon.

A mu dan ça, en tre tan to, nem sem pre com por ta a cons tru çãode uma nova ca pi tal “ar ti fi ci al”. Mu i tas ve zes é mais fá cil trans ferir ogover no para lo cal já ocu pa do, bas tan do au men tar a nova me tró po le demodo a abri gar toda a po pu la ção que, nor mal men te, acom panha ogover no. Assim Cons tan ti no, quan do re sol veu aban do nar a ci da de dassete co li nas por uma “Nova Roma”, mais pró xi ma do eixo po lí ti co orien tal do Impé rio, sua es co lha re ca iu so bre um sí tio es tu pen do e ve ne rá vel,ocu pa do por um por to mais an ti go do que a pró pria ci da de da loba. Quando a Rainha Vi tó ria es co lheu Otta wa para ser a ca be ça da nova Con fe deração

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ca na dense, “Bytown” era uma vila que, ha via qua se meio sé cu lo,prospe ra va como nó de co mu ni ca ções flu vi a is e cen tro da in dús tria dama de i ra. Mus ta fá Ke mal fun dou a me tró po le da nova Re pú bli ca tur cano cen tro do ás pe ro pla nal to da Ana tó lia mas o lo cal da ve lha Ankyra(ou Ango rá), re mo ta Capi tal dos Gála tas, era an te ri or de mu i tos sé cu losao Esta do tur co.

Em suma, em cer tos ca sos as Ca pi ta is são ver da de i ras celulas-materem tor no das qua is se cons ti tu í ram as na ci o na li da des. Há ou tros Estados,po rém, que são or ga nis mos ter ri to ri al men te com ple xos cu jas ca pi ta ispo dem mu dar, ao sa bor da des lo ca ção do po der po lí ti co. Tal vez nãoeste ja lon ge da ver da de a afir ma ção de que só os pa í ses re al men te unitári os pos su em ca pi ta is per ma nen tes. Essa hi pó te se es cla re ce tal vez o problemadas Ca pi ta is na tu ra is, pois só me re ce ri am o qua li fi ca ti vo de “na tu ra is”as metró po les cuja per ma nên cia se pren de ao fato de cons ti tu í rem efe ti -va men te o nú cleo ori gi nal da na ci o na li da de.

Para con clu ir nes sa or dem de idéi as, vem a pro pó si to mencio nar os ca sos de mul ti pli ci da de de ca pi ta is, com dis tri bu i ção de fun ções oupo de res, às ve zes pou co de fi ni da: é o que as sis ti mos na UniãoSul-Africana (Pre tó ria, Cabo e Blo em fon te in), nos Pa í ses-Baixos(Amster dam e Haia) e na Bo lí via (La Paz e Su cre). No pas sa do, apon ta -re mos tam bém as ca pi ta is-anexas, re si dên ci as pa la ci anas da Eu ro pamonár qui ca, lo ca li za das não lon ge das ca pi ta is efe ti vas: Ver sailles, Potsdame Haia. O Ori en te tam bém co nhe ceu exem plos se me lhan tes de cri a çãoin di vi du al de um so be ra no, como foi o caso de Fa teh pur Sik ri, na Índia.Ou ain da o caso cu ri o sís si mo da du pli ci da de de ca pi ta is no Ja pão, nope río do medie val. Há ain da as ca pi ta is de ve rão como Sim la, nas en costas do Hi ma la ia, re si dên cia es ti val dos an ti gos Vi ce-Reis da Índia; e nos saPetró po lis en can ta do ra ao tem po de Pe dro II e até à Presi dên cia deGetú lio Var gas. To dos es ses ca sos ilus tram o pro je to, pro pug na do outro rapor al guns, de ins ta lar o go ver no em Pe tró po lis ou em ou tra ci da de pertodo Rio de Ja ne i ro, sem de i xar esta de ser Ca pi tal.

Em co ne xão com o fe nô me no da des lo ca ção das ca pi ta is, ob -serva-se às ve zes, em cer tos pa í ses, um seg men to cí cli co en tre o quepodería mos cha mar “pe río dos de in tro ver são” e “pe río dos de ex tra versão”.Quando um país, após lon go tem po de iso la men to, de na ci o na lis mo ecen tra li za ção po lí ti ca, de au tar quia eco nô mi ca, de con ser van tis mo social,

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ou tra di ci o na lis mo re li gi o so, re sol ve mu dar de rumo e en trar numa fasede re for ma ou re vo lu ção – é fre qüen te que pro cu re le var a sede dogover no para lo cal ex cên tri co ou pe ri fé ri co, pos si vel men te para o li to ral, para a pro xi mi da de de suas fron te i ras vi vas, em con ta to mais di re tocom a “ecú me ne” cos mo po li ta. Inver sa men te quan do se afas ta da co mu ni -dade das na ções per ten cen tes à sua es fe ra de cul tu ra; quan do pro curaensimes mar-se numa au to-suficiência naci o na lis ta ou er guer cortinas-de-ferro para pro te ger-se dos pe ri gos re a is ou su pos tos, pro vin dos do ex te ri or;quan do de tém seu de sen vol vi men to para len ta men te di ge rir ma te ri ales tran ge i ro que ab sor veu em pe río do an te ri or; quan do se su je i ta a umpro cesso de uni fi ca ção, lu tan do con tra for ças de sa gre ga do ras; ou quando, como no caso bra si le i ro, está em pe nha do em ex pan dir a área de civili za ção pelo imen so in te ri or de seu ter ri tó rio – é en tão ex pli cá vel que pro cu rein te ri o ri zar sua Ca pi tal, er guen do o ór gão de cen tra li za ção do Esta dojunto às pu ras fon tes da na ci o na li da de. Não exis tem exem plos nu me rososde tais me ta mor fo ses, mas os pou cos que po de mos ofe re cer são bas tantesig ni fi ca ti vos: no an ti go Egi to, a de sar ti cu la ção da ve lha ci vi lizaçãofaraô ni ca e a in te gra ção do país na es fe ra de cul tu ra he lênico-mediterrânea de ter mi nou, lo gi ca men te, o aban do no do Alto Egi to em fa vor da re giãodo Del ta onde foi cons tru í da Ale xan dria, Capi tal dos Pto lo me us. Jámen ci onamos S. Pe ters bur go, na Rús sia de Pe dro o Gran de: é o exemplomais cla ro de um fe nô me no de ex tra ver são, de uma “aber tu ra de ja ne la” que se ex pri me na des lo ca ção da Ca pi tal para a zona li to râ nea. Por ou tro lado, o re tra i men to, o pro ces so de na ci o na li za ção e ab sor ção, de in tro -ver são ou cen tra li za ção, de cres ci men to in tes ti no, de re ti ra da es tra té gi capre pa ra tó ria de nova ex pan são, são per fe i ta men te ilus tra dos, na Rús siamoder na, pelo aban do no de Pe tro grad em fa vor de Mos cou e, naTurquia, pela trans fe rên cia do go ver no para Anka ra. Anka ra aliás é,como Bra sí lia, um exem plo ca rac te rís ti co do pro ces so de “in te ri oriza ção”da ca pi tal.

É in te res san te apli car os en si na men tos des ses ca sos par ti cularesà apre ci a ção do sig ni fi ca do cul tu ral pos sí vel da “in ter na ção” da Ca pi taldo Bra sil no Pla nal to Cen tral, le van do em con ta a du pla cir cuns tân cia de que nos so país foi for ma do por um pro ces so de “se gre ga ção” re la ti va -men te ao mun do la ti no-americano, e de pa ra si tis mo cul tu ral em re la çãoà Eu ro pa.

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Va mos ago ra abor dar o pro ble ma de um novo pon to de vis ta, observan do o de sen vol vi men to das for ma ções po lí ti cas, atra vés de etapasou es tá gi os pro gres si va men te ma i o res, até atin gir a pro por ção do me ga -lo es ta do. O Me ga lo es ta dis mo re pre sen ta a ten dên cia para a for ma ção de Impé ri os, em vir tu de do ex pan si o nis mo na tu ral dos Esta dos, por meioda co lo ni za ção, fu são ou con quis ta. Nas di ver sas ida des his tó ri cas, oEsta do em ex pan são ocu pa uma área pro por ci o nal ao de sen vol vi men todos me i os téc ni cos, po lí ti cos e cul tu ra is da épo ca, se gun do um cri té rioter ri to ri al cres cen te e cor res pon den te aos es tá gi os su ces si vos no âm bi todo clã, da “ci vi tas”, da “na ção” e da área con ti nen tal. A Ba bi lô nia e oEgi to an ti gos fo ram me ga lo es ta dos, em bo ra sua área nos pa re ça hojeexí gua. No pe río do his tó ri co em que o Impé rio Ro ma no cons ti tu iu ummega lo es ta do, já o Egi to e a Ba bi lô nia se en con tra vam re du zi dos a limi tes“na ci o na is” mo des tos.

Na hi e rar quia das for ma ções po lí ti cas, o ter ce i ro es tá dio éapre sen ta do pelo Su per-Estado, aglu ti na do quer atra vés de um pro ces so de con quis ta im pe ri al, quer em vir tu de de ex pan são co lo ni al em territó rio vir gem. A área de tal Esta do pos sui uma ex ten são tão con si de rá vel; seus re cur sos na tu ra is são de tal mon ta; a po pu la ção é de ori gem ét ni ca tãocom ple xa e ín di ce de mo grá fi co tão ele va do (di ga mos, da or dem doscem mi lhões) que sua es ta tu ra me re ce ser apre ci a da em es ca la “con ti -nen tal”. A Chi na e a Índia são exem plos de Su per-Estados an ti gos deâm bi to con ti nen tal ou, pelo me nos, sub con ti nen tal. A Rús sia, her de i rado Grão-Khanato mon gol e do Impé rio tza ris ta, do mi nan do as es te peseu ra siá ti cas que cons ti tu em o que Mac Kin der cha ma de “Co ra ção daIlha Mun di al”, é ou tro Su per-Estado con ti nen tal. Vale en tre tan to no tarque a Rús sia não so bre pu jou ain da in te i ra men te a eta pa an te rior deforma ção “na ci o nal” (im pe ri a lis mo rus so), nem mes mo a eta pa pri mitiva, pro pri a men te re gi o nal, de pre do mi nân cia do nú cleo ur ba no for ma dor(he ge mo nia da Mos có via).

A con quis ta das vas tas áre as do Novo Mun do pe los eu ro pe us, bem como o pro ces so de co lo ni za ção e o pro gres so téc ni co-industrialque fa ci li tou a ex ten são ex tra or di ná ria do ha bi tat hu ma no, no sé culo passado, já per mi ti ram a or ga ni za ção de um ou tro Su per-Estado de âm bi to“conti nen tal”: os Esta dos Uni dos da Amé ri ca. O Ca na dá tam bémpossui o ter ri tó rio e os re cur sos na tu ra is de um Su per-Estado mas está

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de ma si a da men te ata do às tra di ções na ci o na is in gle sas (Ontá rio) e fran -ce sas (Qu e bec) e, além dis so, pa re ce fa da do a uma pro gres si va aglu tinaçãoeco nô mi ca, so ci al e cul tu ral com os Esta dos Uni dos. A Aus trá lia pos suia ex ten são ter ri to ri al e o iso la men to ma rí ti mo de um con ti nen te, bemcomo o “des ti no ma ni fes to” de pos to avan ça do da raça bran ca nos an tí -po das, mas fal ta-lhe, por en quan to, a ci fra de po pu la ção ne ces sá ria. NaAmérica do Sul so men te o Bra sil pos sui os re cur sos po ten ci a is para galgar, no fu tu ro, a eta pa do me ga lo es ta do con ti nen tal: pos su í mos a vas ti dãoter ri to ri al, a abun dân cia de re cur sos na tu ra is, a com ple xi da de ét ni ca e aci fra de po pu la ção con si de rá vel, como ele men tos pro mis so res de tãocon si de rá vel es ta tu ra. Só nos fal tam, por en quan to, a vi são “im pe ri al”,cri a dora de no vos ho ri zon tes, o de sen vol vi men to eco nô mi co, a ocu paçãoefe tiva do ter ri tó rio e a es tru tu ra po lí ti ca sa tis fa tó ria. Ora, tais de fi ciênciasestão re la ci o na das com o ar ra zo a do da mu dan ça do go ver no para o Pla nal toCen tral.

Essas con si de ra ções de ge o po lí ti ca, tal vez um pou co lon gas,pos su em um sen ti do mu i to per ti nen te quan to ao ob je ti vo ime di a to denos so in qué ri to. De fato, os me ga lo es ta dos de âm bi to con ti nen tal ca rac -te ri zam-se pela cir cuns tân cia de ha ve rem so bre pu ja do a eta pa do re gi o -na lis mo, de fi ni do como pre do mi nân cia no hin ter land de um nú cleo ur ba -no he ge mô ni co. Sal vo na União So vié ti ca (em que Mos cou de sem pe nha o pa pel de “ca pi tal na tu ral”), não de pa ra mos nem na Chi na, nem nosEsta dos Uni dos, nem mes mo no Bra sil, com qual quer ci da de-centro,com qual quer me tró po le aglu ti na do ra, foco tra di ci o nal de do mí nio po lí -ti co ou cen tro cul tu ral pre do mi nan te. Esses Esta dos, cons ti tu í dos semluta in ter na en tre ci da des ri va is, são com pos tos de vá ri as re giões an tro -po ge o gra fi ca men te au tô no mas (quer se jam ou não, em te o ria, Esta dosfe de ra is). Eles são es sen ci al men te mul ti na ci o na is ou mul ti-regionais,sem qual quer he ge mo nia ca rac te ri za da de es ti lo “prus siano”. Emnenhum dos pa í ses men ci o na dos en con tra mos uma ci da de-gigante(gigan te pro por ci o nal men te ao âm bi to agi gan ta do do Esta do) ou umaes tru tu ra eco nô mi ca uni tá ria, ar ti cu la da em tor no de uma úni ca ci da de.Mes mo quan do as “tre ze co lô ni as” ame ri ca nas, a Nova Ga les do Sul, aspro vín ci as de Qu e bec e Ontá rio, ou o es ta do de São Pa u lo re ve lem, àsve zes, cer tas pre ten sões he ge mô ni cas e cer to “es no bis mo”, não re i vin -di cam, ver da de i ra men te, uma pre e mi nên cia po lí ti ca. Van glo ri am-se

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apenas de se rem as pri me i ras, as mais an ti gas cé lu las de co lo ni za ção.Pois o “prus si a nis mo” ou a cen tra li za ção de tipo “Krem lin” são in con -ce bíveis nes tas nos sas vas tas so ci e da des po lí ti cas, fe de ra is por na tu re za.

Nos Esta dos Uni dos da Amé ri ca, cada re gião pos sui ca rac te -rís ti cas pró pri as e já al guém se re fe riu aos “Cin qüen ta Esta dos Uni dos”: há a Nova Ingla ter ra, o Sul, o Mid-West, o Te xas e a Ca li fór nia: NewYork, Chicago, Los Ange les, New-Orleans são ver da de i ras ca pi ta is regiona is. Na Chi na, ape sar da ho mo ge ne i da de cul tu ral, ob ser va mos um aglo meradode um bi lhão de chi ne ses do nor te, chi ne ses do sul, man chús, mon góis,ti be ta nos, tur co ma nos e ta i lan de ses. São inú me ras as Ca pi ta is re gi o na is:Muk den, Pe king, Chung king, Han kow, Nan king (eco no mi ca men te ligadaa Xang hai), Can tão. Na Índia, ve ri fi ca mos tam bém uma agluti na çãoextre ma men te com ple xa de po vos e tri bos di ver sos na lín gua, na raça,na re li gião e no es tá gio de cul tu ra, mas a es tra ti fi ca cão das cas tas só in ci -den tal men te pos sui um sen ti do ter ri to ri al: De lhi, Mum bay (Bom bay),Cal cu tá, Ma dras são ca pi ta is re gi o na is e o úni co tí tu lo da pri me i ra aopri vi lé gio de sede do go ver no Indi a no é sua tra di ção im pe ri al, aliásestran ge i ra (is lâ mi ca e bri tâ ni ca). Ao mo vi men to na ci o nal in di a no que,na base do gand his mo an ti-colonialista e an ti-ocidental, pro cu ra organi zar o sub con ti nen te em mol des fe de ra lis tas, in cum be ain da de monstrar aviabi li da de de um me ga lo es ta do que, lo gi ca men te, de ve ria tambémabarcar o Pa quis tão, Ban gla desh e Ce i lão.

Os bra si le i ros, so mos uma ex tra or di ná ria uni da de cul tu ral elin güís ti ca (pois, na ver da de, ocu pa mos a ma i or ex ten são ter ri to ri al onde uma úni ca lín gua é fa la da). Mas ofe re ce mos tam bém, no que diz res peitoao de sen vol vi men to po lí ti co, so ci al e eco nô mi co, à for ma ção ét ni ca e àsca rac te rís ti cas na tu ra is de cli ma, ve ge ta ção e to po gra fia, o es pe tá cu lo deuma di ver si da de mu i to ní ti da en tre as gran des re giões que com põem opaís. As he ge mo ni as po líticas ou eco nômicas e os se pa ra tis mos esporádi cosja ma is afe ta ram se ri a men te a uni da de fun da men tal que é a ma i or vir tu de de nos sa or ga ni za ção na ci o nal. E se so mos ain da, por as sim di zer, umEstado “in ver te bra do”, essa flu i dez que nos ca rac te ri za é, no es ta do atualde sub de sen vol vi men to eco nô mi co e a re la ti va in su fi ciên cia de me i os de trans porte e co mu ni ca ção, uma ga ran tia de in te gri da de que abre as portas às po ten ci a li da des “con ti nen ta is” fu tu ras da na ção.

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Como a for ma ção dos gran des Esta dos fe de ra dos in de pen dedo cres ci men to de uma Ca pi tal na tu ral he ge mô ni ca, ocor re, ge ral men te,que a ci da de ma i or e mais rica do país não seja a sede do go ver no. Citamos os ca sos de Nova York, Sydney, Mon tre al, To ron to e Jo han nes burg.Ora, se tal é o caso, con clui-se que pa í ses como a Argen ti na, o Mé xi co e a Ve ne zu ela, for ma dos num âm bi to fran ca men te “na ci o nal” e domi na dos por uma me tró po le pre pon de ran te, só po dem ser con si de ra dos fal sasFe de ra ções. Os geó gra fos po lí ti cos têm ra zão: a cri a ção de uma Ca pi talar ti fi ci al, es pe ci a li za da, si tu a da em po si ção me di a na e in de pen den te dacon fi gu ra ção ter ri to ri al do con jun to do país, é con di ção sine qua non para o fun ci o na men to nor mal de uma Fe de ra ção. Bons exem plos de ci da desque sa tis fa zem a essa con di ção são Was hing ton, Can ber ra e Otta wa. OsEsta dos pre ten sa men te fe de ra is que des cu ra ram de to mar a pre ca u çãoalu di da, so fre rão sem pre os efe i tos per ni ci o sos da pre pon de rân cia desuas ca pi ta is atu a is. Bu e nos Ai res e a Ci da de do Mé xi co lo cu ple tam-secom a pre sen ça do go ver no que lhes for ne ce van ta gens, pri vi lé gi os eimu ni da des in jus ti fi cá ve is, vi o lan do o prin cí pio da igual da de ter ri to ri al,prin cí pio bá si co ne ces sá rio ao fun ci o na men to do re gi me de des cen tra li -za ção ca rac te rís ti co do Esta do fe de ra ti vo.

Se a ca pi tal ar ti fi ci al (o “Dis tri to Fe de ral”) de um Esta doorga ni za do se gun do tais prin cí pi os, deve ser uma ga ran tia de in de pen -dên cia e igual da de de cada uma das uni da des com po nen tes, im põe-se aso lu ção do pro ble ma de sua lo ca li za ção, obe de cen do ao cri té rio da funçãouni fi ca do ra, sem pre ju í zo da des cen tra li za ção ad mi nis tra ti va. Com pe te,por tan to, se le ci o nar o lo cal de modo a sa tis fa zer à cons ti tu i ção or gâ ni cado país e con ci li ar re giões ri va is. A es co lha da po si ção, com vis ta às divi sasin te resta du a is, tor na-se uma con si de ra ção da mais alta re le vân cia. Ottawafoi co lo ca da en tre o Ca na dá fran cês (pro vín cia de Qu e bec) e o Ca na dáin glês (pro vín cia de Ontá rio), de modo a evi tar o con fli to imi nen te en tre as res pec ti vas ca pi ta is (Mon tre al e To ron to). Can ber ra é mais ou me noseqüi dis tan te das ci da des ri va is de Sydney e Mel bour ne. Was hing ton foies co lhida por que, si tu a da pou co ao sul da Ma son-Dixon line, en tre o Norte,“li vre” e in dus tri al, e o Sul, “es cra va gis ta” e agrí co la, cons ti tu ía um tra ço sus cep tí vel de re for çar a União (como de fato o fez, du ran te a guer ra de Se ces são). No Bra sil, esse as pec to par ti cu lar do pro ble ma qua se nãoexis te, fe liz men te. São Pa u lo, a uni da de mais po de ro sa da Fe de ra ção,

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não ma ni fes tou de se jo al gum de apro xi mar a Capi tal ar ti fi ci al. Assimmes mo, jus ti fi ca-se o cri té rio de lo ca li zar o Dis tri to Fe de ral na fron te i raen tre dois es ta dos, no caso Mi nas e Go iás, am bos me di ter râ ne os. Como tam bém no pon to de con ver gên cia das três gran des ba ci as flu vi a is dopaís.

Tal vez o mais an ti go exem plo co nhe ci do de ca pi tal fe de ra ti vaé o de Rho des, na ilha do mes mo nome. Sa be-se que, no ano 408 an tesde Cris to, os ha bi tan tes das três aglo me ra ções dó ri cas da ilha – Lin dus,Ialy stis e Ca mi rus –, de se jo sas de se uni rem para re ce ber a frota doPelo po ne so e com ba te rem Ate nas, con tra a qual se ha vi am rebelado,encar re ga ram o fa mo so ar qui te to Hip po da mos de Mi le to de cons tru iruma nova Capi tal, num sí tio es plên di do adre de à en tra da de cuja baía seer gue ria o cé le bre Co los so, uma das sete ma ra vi lhas do mun do. Ou troexem plo, eu ro peu, nos é dado pela Su í ça. Ber na sa tis fez a cer tas exi gên -ci as dos Esta dos con fe de ra dos hel vé ti cos. Fun da da pelo duque deZäringen, como pos to mi li tar na zona fron te i ri ça en tre a po pu la ção alemãe a po pu la ção bor go nhe sa, de lín gua fran ce sa, e de po is de con quis tar asua in de pen dên cia, a ci da de en trou em 1353 para a Con fe de ra ção daqual se tor nou o ele men to mais pon de rá vel. No sé cu lo XVIII re gis tra -ram-se re sis tên ci as sen sí ve is con tra sua he ge mo nia po lí ti ca, por par tedos ou tros can tões. Após o in ter va lo do pe río do na po leô ni co, a sede daCon fe de ra ção pas sou a ser trans fe ri da, a cada dois anos, en tre Ber na,Lu cer na e Zü rich. Em 1848, a Lei Fe de ral de cla rou Ber na ca pi tal úni ca,mas Zü rich e Bâle ain da são hoje ci da des mais im por tan tes, as sim como Ge ne bra.

O caso de Haia é pa ra le lo. No sé cu lo XIII fora ape nas umaca ba na de caça dos con des de Ho lan da e seu nome, ‘sGra ve nha ge, ain darecorda es ses ti tu la res fe u da is. Em 1280 o Con de Flo ris V ali es tabele ceusua re si dên cia ofi ci al, man dan do edi fi car o Hall dos Ca va le i ros que, ain dahoje, é uti li za do em cer tas ce ri mô ni as par ti cu lar men te so le nes. A im por -tân cia dos Con des e dos Prín ci pes de Oran ge, como lí de res da luta pelain de pen dên cia dos Pa í ses Ba i xos con fe de ra dos, na tu ral men te fa vo re ceua ci da de que abri gou um nú me ro cres cen te de edi fí ci os ad mi nis tra ti vos.No sé cu lo XVI, Gu i lher me o Ta ci tur no, he rói da li ber da de ne er lan de sa,ali con vo cou os Esta dos Ge ra is como que ra ti fi can do a ele va ção deHaia. Entre men tes, Amster dam e Rot ter dam cres ce ram como pra ças

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co mer ciais, cen tros fi nan ce i ros e me tró po les ar tís ti cas e li te rá ri as. Depo isda ocu pa ção na po leô ni ca, os Pa í ses Ba i xos fo ram or ga ni za dos comomo nar quia uni tá ria, pela Cons ti tu i ção de 1814, e Amster dam re ce beu otí tu lo de Ca pi tal, em re co nhe ci men to da le al da de de seus ci da dãosduran te os anos de do mí nio fran cês. Haia tor nou-se ape nas a sede dogo ver no e a Re si dên cia Real. O Rei é co ro a do na pri me i ra, em bo ra more na se gun da. O va lor de Haia, en tre tan to, re sul ta da po si ção in ter me diá -ria que ocu pa en tre Amster dam e Rot ter dam, si tu a da como está numramo do ca nal prin ci pal que une es sas duas prin ci pa is ci da des do país.

∗ ∗ ∗O pen sa men to ini ci al que pre si de à fun da ção de uma nova

Capi tal ou à trans fe rên cia da sede do go ver no para uma ou tra ci da depode ser obra de um che fe úni co, de um gê nio fun da dor ou de uma eli te es cla re ci da. A Ca pi tal pode sur gir, como por en can to, de uma Idéia Do -mi nan te, qual Ate nas da ca be ça de Zeus, como re sul ta do de uma ver da -de i ra “re vo lu ção”, sú bi ta e pro fun da. Pode tam bém ser o re sul ta do deuma “evo lu ção”, len ta e na tu ral, em lon go pro ces so de ela bo ra ção men -tal e ama du re ci men to po lí ti co. Mas quan do mes mo se des pren da aospou cos da es fe ra da ima gi na ção cri a do ra para a da re a li za ção prá tica, eseu pro ces so de ma te ri a li za ção dure anos ou mes mo sé cu los, é sem pre aex pres são de cir cuns tân ci as im pe ra ti vas numa con jun tu ra cru ci al, um mar co de ci si vo, o iní cio de um ca pí tu lo novo do li vro da his tó ria de um povo.

O gê nio do Fun da dor mu i tas ve zes em pres ta seu nome ànova me tró po le que tra çou para con subs tan ci ar sua Idéia Do mi nan te.Akhe ta ton está in dis so lu vel men te li ga da à me mó ria de Akhe na ton, o“Fa raó he re ge” que pri me i ro con ce beu o Mo no te ís mo. Ale xan dria, capi taldo Egi to pto lo mái co, foi a mais ilus tre das me tró po les que o con quista dormacedô nio es pa lhou a gra nel, no pas so de suas con quis tas ex tra or diná ri aspela Ásia oci den tal. Bi zân cio, con sa gra da como a Se gun da Roma,perdeu o nome de seu fun da dor, Byzas, para re ce ber o de Cons tan ti no.São Pe ters bur go é a ci da de de Pe dro o Gran de. Was hing ton comemora, no obe lis co cen tral do “Mall”, o ge ne ral vi to ri o so e o es ta dis ta aus te ro a quemos Esta dos Uni dos da Amé ri ca de vem sua in de pen dên cia. Pre tó riacele bra o ma i or “ban de i ran te” boer. Ou tras ve zes, o nome pos sui umsen tido his tó ri co mais pro fun do, como que pre ten den do in di car a intenção

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trans cen den te que lhe deu vida. A Ca pi tal é uma re a li za ção ur ba nís ti casim bó li ca da con cep ção do mun do re i nan te na épo ca de sua fun da ção.Como sím bo lo, ela deve ser ne ces sa ri a men te uma ci da de de beleza,digni da de e mag ni fi cên cia ar qui te tô ni ca. Como ins tru men to, deve sa tis -fa zer a cer tas con di ções de po si ção, cli ma e sí tio, ofe re cen do à ad mi nis -tra ção edi fí ci os am plos e con ve ni en tes para o tra ba lho efe ti vo – um dosmais ele va dos em seu pro pó si to – que é o go ver no! A Capi tal é umafonte de or gu lho na ci o nal e, para não ser “ar ti fi ci al”, deve ser sin cera na expres são das pe cu li a ri da des, da tra di ção e do gê nio ar tís ti co da raça.Entre to das as ci da des de um país, ela se des ta ca pela pri ma zia po lí ti ca e es pi ri tual de sua po si ção. Mais do que qual quer ou tra ci da de, ela consti tui,no di zer de Le wis Mum ford, “si mul ta ne a men te uma van ta gem para avida em co mum e um sím bo lo da que les pro pó si tos co le ti vos que bro tam,em cir cuns tân ci as fa vo rá ve is. Jun ta men te com o idi o ma, ela é, e con ti nu -a rá sen do, a ma i or obra de arte do ho mem!”.

Nas pá gi nas que se se guem, mu i tas ci da des, ve lhas ca pi ta is em ruínas, me tró po les ve ne rá ve is, aglo me ra ções mo der nas de pu jan te cres -ci men to, vão des fi lar, ilus tran do a Idéia Do mi nan te que lhes deu vida.Vere mos que essa idéia tem to dos os pro pó si tos, to dos os ma ti zes, àsve zes os mais con tra di tó ri os. To dos os ca sos, po rém, ofe re ce rão algocomo exem plo ou como li ção.

Este li vro, re di gi do an tes da de ci são do Pre si den te Jus ce li noKu bits chek de cons tru ir Bra sí lia, foi pu bli ca do, pela pri me i ra vez em1958, atra vés da No va cap, a quem re i te ro meus agra de ci men tos. Apresen te re e di ção é abre vi a da, re vis ta e atu a li za da. Nos qua ren ta anosque se passa ram, que ro crer que o pro ble ma da nova Ca pi tal con ti nuana Ordem do Dia do des ti no da na ci o na li da de.

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IINo an ti go Egi to:

Memp his, The bas e Akhe ta ton

Estes pri me i ros ca sos de mu dan ça de ca pi tal, cha ma dosà nos sa aten ção, pos su em um va lor de pura cu ri o si da de his tó ri ca. São,porém, do cu men tos in te res san tes para pro var que o ho mem, des de amais alta an ti gui da de, pro cu rou re a li zar seus pro je tos po lí ti cos e exprimirseus an se i os es pi ri tu a is atra vés de gran des con cep ções ar qui te tô ni cas eur ba nís ti cas. A ci vi li za ção apa re ceu, pela pri me i ra vez so bre a ter ra, noan ti go Egi to e na Me so po tâ mia: as ci da des que o ho mem ali cons tru iupara sede dos pa lá ci os de seus reis e dos tem plos de seus de u ses fo ramma ni fes ta ções de uma cul tu ra in ci pi en te que se pro cu ra va re a lizar napedra e no ti jo lo, já al me jan do à per ma nên cia, à eter ni da de. A edi fi ca ção da pri me i ra ci da de as si na lou, sem dú vi da, o mo men to exa to em que oho mem aban do nou sua vida de bár ba ro nô ma de e, es ta be le cendo-seseden ta ri a men te, cum priu a con di ção es sen ci al para o de sen vol vi men tode um Esta do ci vi li za do.

Ora, nes sa épo ca re mo ta já se pode no tar, em seus tra çosmais sim ples, a ação sen sí vel dos inú me ros fa to res ge o po lí ti cos, so ci a isou re li gi o sos que de ter mi nam a es co lha do lo cal e o ca rá ter da mu dan ça

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das ca pi ta is. Os exem plos do Egi to são jus ta men te no tá ve is como tes te -mu nhos da cons tân cia de tais fa to res atra vés das ida des. De mons tram are a lidade de sua ação es sen ci al e a im por tân cia in con tes tá vel de seu estu dopara a re a li za ção, em dias que cor rem, de pro je tos idên ti cos.

Qu an do o Egi to se uni fi cou, há uns cin co mil anos, e com acha ma da Pri me i ra Di nas tia or ga ni zou o “Anti go Impé rio“, seu cen troge o grá fi co en con tra va-se na re gião do Del ta do Nilo. No vértice me ri dionaldes se Del ta, acha-se ain da hoje a ca pi tal do país, o Ca i ro, não lon ge daqual se er guem as ru í nas mais an ti gas da ve lha ci vi li za ção fa raô ni ca: asGran des Pi râ mi des, Sak ka ra e os res tos de Memp his. Memphis foi aCapi tal do Anti go Impé rio no pon to exa to em que o vale do gran de riose alar ga para for mar a vas ta pla ní cie do Del ta.

Os sé cu los pas sa ram-se. A cul tu ra egíp cia es ten deu-se e o po derdo Esta do alar gou-se, pro cu ran do su bir o rio, em di re ção ao sul, paraatin gir a Etió pia. Pou co a pou co o eixo da po tên cia fa raô ni ca des lo -cou-se para o Alto Egi to, ao pas so que o Del ta – tan to do lado do oes te, para as ban das da Lí bia, como do lado ori en tal, além do ist mo de Suez,para as ban das da Ásia – se tor na va vul ne rá vel às in cur sões dos ini mi gos que a ri que za e a gló ria de Memp his atra íam. O Anti go Impé rio ruiu nofra gor das in va sões e da anar quia, de i xan do os tú mu los das Pi râ mi descomo lem bran ças de sua obra: as ma i o res cons tru ções de pe dra que oho mem ja ma is ha via re a li za do.

Depo is de um lon go pe río do de obs cu ri da de me di e val, o Egito re nas ceu no pe río do do Mé dio Impé rio. Essa épo ca as si na la o cres ci -mento de The bas. A ci da de é as sim cha ma da pe los gre gos e, em Homero, re ce be o qua li fi ca ti vo de Eka tomp ylos, “The bas das Cem Por tas”, umare fe rên cia pro vá vel aos por ta is dos seus inú me ros tem plos. Os egíp ci osco nhe ci am-na sim ples men te como Ne, “a ci da de”, ou en tão Ne-Amun,“a ci da de de Amon”, sen do Amon a gran de di vin da de lo cal que do mi -na ria a re li gião do país nos sé cu los se guin tes.

A im por tân cia de The bas e do deus Amon cresceu com oflores ci men to exu be ran te do país, em sua Ida de de Ouro. A cé le breXVIII di nas tia, es pe ci al men te nos re i na dos de Tuth mo sis III e Amenhop hisIII, er gueu os gi gan tes cos tem plos de Lu xor e Kar nak que, ain da hoje,enchem de es pan to os tu ris tas pelo seu ta ma nho e lar gue za de concep ção. A ci vi li za ção egíp cia ia atin gir à cul mi nân cia, nas cri a ções da arte e do

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es pí ri to. Mas a Ci da de das Cem Por tas so fre ria, en tão, um sé rio, ain daque pas sa ge i ro re vés, na luta pela su pre ma cia en tre as me tró po les doEgi to. Na ver da de, a his tó ria da fun da ção e da des tru i ção de Akhe ta ton,“a Ci da de do Ho ri zon te de Aton”, é de tal ma ne i ra em pol gan te que não nos po de mos fur tar ao de se jo de de di car as pri me i ras pá gi nas des ta obra à ca pi tal er gui da pelo Fa raó Akhe na ton.

As ru í nas en con tram-se per to da al de ia egíp cia de Tellel-Amarna, a 250 qui lô me tros ao sul do Ca i ro, a meio ca mi nho en tre asan ti gas Memp his e The bas. As pes qui sas, ain da não ter mi na das, já nosre ve la ram ri que zas que per mi tem for mar uma idéia cla ra da per so na lidadeex cep ci o nal de seu cons tru tor. Akhe na ton re i nou de 1375 a 1358 an tesde Cristo. Era fi lho do gran de Ame nhop his III (Ame nho tep). O egiptólo goJ. H. Bre as te ad con si de ra-o “a pri me i ra per so na li da de na his tória daHuma ni da de”. Foi o “Fa raó He re ge” que pro cu rou des tru ir o cul to deAmon e o po li te ís mo con fu so da re li gião tra di ci o nal, subs ti tu in do-ospela ado ra ção de um novo deus, deus úni co, que cha mou Aton, sim bo li -zado por um dis co so lar cu jos ra i os ben fa ze jos ter mi nam em mãos aber -tas, em ges to lar ga men te ge ne ro so. Du ran te seu re i na do, vi e ram à luz asten dên ci as mais pro fun das da re li gião egíp cia, evo lu í das na es co la dosSa cer do tes So la res do tem plo de On (que os gre gos co nhe ce ram comoHe li o po lis). Essas ten dên ci as sa li en ta vam os as pec tos éti cos e uni ver sa -lis tas do cul to de Maat, De u sa da ver da de e da jus ti ça, e de seu pai ogran de Deus so lar, Re ou Ra, que fora iden ti fi ca do a Amon. Aten ouAton é ori gi na ri a men te um dos no mes do Deus so lar, em bo ra al gunsen ten di dos ad mi tam uma in fluên cia ori en tal que se te ria fe i to sen tirapós as gran des ex pe di ções guer re i ras de Thut mo sis e de Ame nhop his,na Sí ria, Pa les ti na e Si nai. Re gis tra-se a hi pó te se de que Aton seja idênti co a um deus do mes mo nome, ve ne ra do na Sí ria e trans for ma do posteri or -men te no Ado nis da an ti gui da de clás si ca e no Ado nai he brái co.

Akhe na ton é tal vez o Fa raó me lhor co nhe ci do da his tó riaegíp cia, ape sar de ter sido o úni co cuja me mó ria seus ini mi gos pro cu ra -ram, por to dos os me i os, apa gar. Re a li zou a pri me i ra re vo lu ção re li gi o sada his tó ria e uma das mais su bli mes – a pri me i ra ex pres são de fi ni da ecla ra do mo no te ís mo, com suas ca rac te rís ti cas ex clu si vis tas e ico no clás -ti cas. O Rei re pu di ou to dos os de u ses da an ti ga re li gião na ci o nal, par ti -cu lar men te Amon e, às re pre sen ta ções ani ma is ou an tro po mór fi cas,

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subs ti tuiu o cul to da luz so lar, re pre sen ta ção abs tra ta da di vin da de única.Tan to Bre as te ad quan to Erman, es pe ci a lis tas da an ti ga re li gião do Egi to, in sis tem na su bli ma ção do con ce i to da di vin da de por ele re a li za da. OSol foi, na ver da de, con ce bi do como um sím bo lo pelo qual se ma ni fes -ta va a for ça ben fa ze ja, cri a do ra de toda vida. O dis co so lar cons ti tuiuma re pre sen ta ção sa tis fa tó ria, sus cep tí vel de ob vi ar a qual quer ima gemido lá tri ca, ani mal ou an tro po mór fi ca. E, adi an tan do-se de qua torzesécu los aos Evan ge lhos, ide a li zou Aton não como uma di vin da de lo calou na ci o nal, che fe pa ro qui a no, ci u men to e san gui ná rio de um “povoescolhido”, mas como um deus uni ver sal, um deus de Amor que reinava,sem dis tin ção, so bre os egíp ci os como so bre to dos os ou tros po vos daTer ra.

A re vo lu ção re li gi o sa acar re tou na tu ral men te uma tre men dare vo lu ção po lí ti ca. O Fa raó ti nha ape nas de ze no ve anos quan do se con -ven ceu de que a nova fé só po de ria tri un far se rom pes se de fi ni ti va men te com o cle ro dos an ti gos ído los, es pe ci al men te com o de Amon, o qualcons ti tuía uma so ci e da de po de ro sa e te mí vel, do mi nan do Ne-Amun eexer cen do uma tu te la po lí ti ca sub-reptícia so bre a mo nar quia egíp cia. Oaban do no da me tró po le tra di ci o nal pos su ía, por tan to, como ob je ti voprin ci pal, fu gir a essa in fluên cia sa cer do tal per ni ci o sa e, em ba ses no vase novo lo cal, re cons tru ir in te i ra men te a ci vi li za ção egíp cia. Ve re mos, emca pítulo se guin te, que a fun da ção de Cons tan ti no pla se pren de a moti vosre li gi o sos se me lhan tes.

A re vo lu ção fa raô ni ca com por ta va na tu ral men te uma trans -for ma ção con si de rá vel dos há bi tos, cos tu mes e cren ças se cu la res de umpovo que sem pre se dis tin guiu por seu ex tre mo sen ti men to conser va dor,pro vo cando uma me ta mor fo se cul tu ral tal vez tão pro fun da quan to a crise re li gi o sa. Akhe na ton ima gi nou, em sua ca pi tal, um com ple to re nas ci -men to, uma trans for ma ção in te gral da vida de seu povo. Tell el-Amarnaé um vale si tu a do en tre o Nilo e as en cos tas ro cho sas do de ser to, valefér til, bem ir ri ga do, ar bo ri za do e flo ri do; solo vir gem, pu ri fi ca do detoda in fluên cia ne fas ta ou con ta mi na do ra; ter ra san ta que se ria o al tarno cul to da nova di vin da de. A mu dan ça do tro no co in ci diu, aliás, com amu dan ça do pró prio nome do mo nar ca que aban do nou seu tí tu lo tra di -ci o nal de Ame nho pi ús IV pelo de Akhe na ton, “Aque le que agra da aAton”.

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Diante da von ta de so be ra na do Fa raó, a opo si ção sur da e odi o sado cle ro de pos to não evi tou a trans fe rên cia de gran de par te da po pulação,da Cor te e do apa re lho ad mi nis tra ti vo. Os ve lhos cor te sãos, cép ti cos,co nhe ce do res da vida, aman tes de seu con for to, cer ta men te não selança ram a essa nova ex pe riên cia, sur gi da como por en can to à be i ra dode ser to, sem se cre ta men te es bra ve ja rem con tra os fa ná ti cos ca pri chosdo pro fe ta co ro a do. Mas era ne ces sá rio de mons trar zelo, obe de cen do às or dens do Fa raó, por mais fan tás ti cas que pu des sem pa re cer. E Akhe na -ton era ge ni al. Tan to em seus vôos mís ti cos quan to em suas ide a li za ções es té ti cas; via em gran de! A ci da de que tra çou me dia oito qui lô me tros decom pri men to por dois de lar gu ra. O lo cal apre sen ta va a for ma de umhe mi ci clo en tre as mon ta nhas ári das e o Nilo. O cur so do rio sa gra do,nes sa al tu ra, é di vi di do por uma pe que na ilha so bre a qual o Fa raó ima -gi nou cons tru ir pa vi lhões e vi las de re cre io, para di ver são de seus fa mi li -a res. À mar gem das águas tra çou mag ní fi cos jar dins, in ter rom pidospelos pa lá ci os e pe los tem plos. De trás da fa i xa ver de jan te, su bin do asen cos tas da ro cha, er gueu seu pa lá cio e o gran de tem plo, uti li zan do ape dra lo cal, e, mais lon ge, no cír cu lo ro cho so de pa re des qua se ver ti ca is, os tú mu los enor mes, para si, os mem bros da fa mí lia e seus mais fiéispar ti dá ri os. A con cep ção era gran di o sa. Não obs tan te a fu ri o sa destrui çãoque lhe acom pa nhou a mor te, os ali cer ces lá fi ca ram como tes te mu nhasdo gê nio ar tís ti co que sou be re a li zar o pri me i ro gran de pla no ur ba nísti coco nhe ci do na his tó ria.

O Rei es ta be le ceu de fi ni ti va men te a re si dên cia na nova ca pi tal no ano VIII de seu re i na do. A ci da de es ta va ter mi na da, ao que pa re ce,em pou co mais de dois anos! Foi evi den te men te cons tru í da na ma i orpres sa. Em vez de pe dra, ma te ri al por ex ce lên cia da ar qui te tu ra egíp cia,os en ge nhe i ros uti li za ram mu i tas ve zes o ti jo lo. Não ha via tem po por queo tem po tra ba lha va con tra os ado ra do res de Aton. As de co ra ções sãofre qüen te men te tra ba lha das com “trom pe l’oeil”. Imi ta-se aqui lo que nãohá la zer para bu ri lar com cu i da do. O pla no da ci da de era re vo lu ci o ná rio, não obe de cen do a qual quer dos es que mas tra di ci o na is, co nhe ci dos emMemp his, The bas e ou tras aglo me ra ções egíp ci as. John Pend le bury, emsua obra Tell el-Amarna, for ne ce mi nu ci o sas des cri ções das ru í nas quenos in di cam o tra ça do das ruas, das lar gas ave ni das, dos pa lá ci os, dostem plos e das ca sas. Tudo foi de se nha do para o cul to do sol e dis pos to

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se gun do um eixo les te-oeste, de modo a fa vo re cer os efe i tos lu mi no sosna tu ra is da au ro ra e do cre pús cu lo. O Sol é re al men te a idéia do mi nan tedo ur ba nis mo amar ni a no, con du zin do o ar tis ta na pro cu ra dos jo gos deluz e dos re le vos na tu ra is.

Vá ri as re si dên ci as aris to crá ti cas da ci da de de i xa ram res tos que nos per mi tem, ain da hoje, re cons ti tu ir o es ti lo, o de se nho do in te ri or e a de co ração – um todo de con for to, sim pli ci da de e gos to re fi na do. Rele vos e pin tu ras de tú mu los com ple tam nos sa do cu men ta ção, re pre sen tan do a vida diá ria da épo ca, em to dos seus de ta lhes. Os jar dins de Akhe ta tontam bém re ve lam a mão do Fa raó, em seu apa i xo na do cul to da na tu re za.São ver da de i ros jar dins bo tâ ni cos e zo o ló gi cos nos qua is Akhe na tonreu niu exem plos de plan tas e ani ma is cuja be le za não se can sa va de can -tar, lou van do Aton pela sua obra ad mi rá vel. O de se nho dos es pe lhos deágua, das co lu na tas, dos qui os ques, do ele gan te pa vi lhão cons tru ídosobre a ilha, tudo pa re ce in di car a pre sen ça de um es pí ri to in te ri or, des sa “luz que vem de Aton”, ex pres são su bli ma da da ener gia cri a do ra do Sol, gra ças à qual o Fa raó di ri giu ca ri nho sa men te as mãos de seus ar tis tasnos tra ba lhos mes tres de Tell el-Amarna.

O tra ço prin ci pal do Pla no da ci da de era uma lon ga ave ni da,pa ra lela ao rio Nilo. No meio dele uma es pé cie de pas sa re la a atra vessava, no meio da qual so bres sa ía o Bal cão das Apa ri ções do Fa raó. Uma dasmais bem con ser va das ilus tra ções des se pon to ar qui te tô ni co prin ci palnos mos tra Akhe na ton, ten do ao lado sua real es po sa Ne fer ti ti e as trêsprin ce si nhas, dis tri bu in do co la res de ouro e ou tras be nes ses a seus fa vo -ri tos e ao povo que se aco to ve la va em ba i xo. A fa mí lia real é de se nha daaba ixo do disco do Aton que, com seus ra i os ter mi na dos em mãos aber -tas, re pe te o ges to pi e do so de dis tri bu i ção de dá di vas à hu ma ni da de.Pre su me-se que Akhe na ton e os seus fa mi li a res re a li za vam di a ri a men tea ce ri mô nia, ao me io-dia, como que para sim bo li zar con cre ta men te ore la ci o na men to en tre o Fa raó e o deus Aton – aos qua is tudo de vi am,não só os egíp ci os mas os ou tros po vos da ter ra. A pas sa re la, cons tru í da en tre o pa lá cio do so be ra no à be i ra do rio e o Tem plo do Sol, per mi tia àfamí lia real e aos cor te sãos atra ves sa rem a ave ni da cen tral, di re ta men tede um edi fí cio ao ou tro.

As mo ra das de Akhe ta ton, cons tru í das para re ce ber com lar -gue za os ra i os be né fi cos e di vi nos do Astro-Rei, per de ram, subs ti tu í da

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por um pá tio, a peça cen tral da an ti ga casa egíp cia. Os tem plos tam bém. Em vez do mis té rio te ne bro so dos an ti gos san tuá ri os, pór ti cos aber tos e gran des áre as por onde Aton pe ne tra às es cân ca ras, como con vém emuma re li gião de amor e cla ri da de. A ci da de foi con ce bi da como uma ver -da de i ra aglo me ra ção de tem plos. Ha via san tuá ri os de di cados aos ante -pas sa dos do Fa raó, um tem plo à Ra i nha-Mãe Tii, ca pe las para as devo -ções pes so a is da irmã do Rei, e as sim por di an te. Ha via en fim o gran deTem plo de Aton. Esse tem plo, um tan to di fe ren te na con cep ção dosou tros gran des san tuá ri os de The bas, ao in vés de fe cha do, es cu ro, aus te -ro, pró prio para ins pi rar, tal como em Kar nak ou Lu xor, o res pe i to e oter ror, foi de se nha do para a ale gria, a cla ri da de e para re ce ber em che ioa luz cri a do ra e vi vi fi can te do as tro cujo es pí ri to, Aton, nele ha bi ta va!Ali can ta ria o mo nar ca o hino ao Sol, uma das obras mais su bli mes dali te ra tu ra re li gi o sa de to dos os tem pos:

For mo sa é tua Au ro ra, no ho ri zon te do Céu, Ó Aton, Deus vivo, ini ci a dor da vida!Qu an do des pon tas do lado do Ori en te,Com tua be le za en ches o uni ver so in te i ro.És gran de, belo, res plan de cen te, alto aci ma da ter ranos pa í ses da Sí ria, da Etió pia e do Egi to.

Po e ma di vi no cuja in fluên cia du ra dou ra trans pa re ce no CIVSal mo de Isaías, pri me i ra afir ma ção so le ne da fé mo no te ís ta.

Nes sa re li gião de amor, a arte pas sou a ser uma ex pres são domis ti cis mo tão pura quan to a po e sia ou a li tur gia. Os ar tis tas pre fe ri dosdo mo nar ca cu jos no mes são co nhe ci dos – Bek, Auta, Tuti, Nut mo sis,Dje hu ti més – re pre sen ta ram a na tu re za com um re a lis mo e uma gra çare fi na da que nos en chem de ad mi ra ção. Pás sa ros, pe i xes, bor bo le tas eou tros ani ma is pin ta dos ou es cul pi dos com cu i da do afe tu o so. Ce nas daCor te, de cu nho fa mi li ar, sem ce ri mô nia mas, ao con trá rio, com sur pre -en den te fran que za, ser vin do de do cu men to para nos so co nhe ci men toda vida da que la épo ca. E re tra tos ad mi rá ve is, es pe ci al men te a fa mo saca be ça de cal cá rio co lo ri do de Ne fer ti ti, a es po sa do Fa raó, obra des co -ber ta por ar queó lo gos ale mães e imor ta li zan do “uma das mu lhe res mais en can ta do ras que ja ma is exis ti ram”.

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A nova es té ti ca amar ni a na rom pia de fi ni ti va men te com o pas -sa do e, nes se sen ti do, cons ti tu ía uma re vo lu ção tão pro fun da quan to apró pria re for ma re li gi o sa. A arte egíp cia tra di ci o nal era es sen ci al men teide o plás ti ca: nela o re a lis mo é se cun dá rio, mu i to em bo ra haja pro du zi do obras ad mi rá ve is de fran que za e ex pres são. A pin tu ra era uma ima gemcon cep tu al que im pu nha uma rí gi da dis ci pli na, trans mi ti da de sé cu lopara sé cu lo e de mi lê nio para mi lê nio. Em Akhe ta ton, en tre tan to, re gis -tra-se uma ten ta ti va cons ci en te de fa zer da per cep ção vi su al, da ob ser vação da aparên cia real da na tu re za, da re pro du ção ve rí di ca das for mas exteri o res,a base do pro ces so ar tís ti co. Sen te-se como que um ím pe to in dô mi todos ar tis tas, fa vo re ci dos sem dú vi da com o en tu si as mo e a ins pi ra ção do Rei, para cri ar no vas for mas, com ple ta men te li ber ta das das cor ren tes datra di ção hi e rá ti ca. A ten dên cia na tu ra lis ta da es co la vi o la to das as con -ven ções, in clu si ve as mais sa gra das que go ver na vam a re pro du ção dostra ços fa raô ni cos. Ao in vés de se fa zer re pre sen tar nas ati tu des hi e rá ti cas clás si cas, be las e fri as, o Fa raó apa re ce feio, ma gro, qua se ca ri ca to, comum que i xo sa li en te e uma bar ri ga do en tia, na re a li da de crua e hu ma nacom que o ar tis ta o con tem plou. O re a lis mo ex ces si vo toma for mas dever da de i ra re vol ta con tra o con ven ci o na lis mo mi le nar das es tá tu as deDe u ses e de Reis. É um re tor no à in ge nu i da de da sen sa ção e da pri me i ra im pres são. A ex pli ca ção re si de tal vez no pro fun do amor da na tu re za,pre sen te na nova re li gião ato ni a na. “Ó Se nhor, como são múl ti plas tuasobras! Como são ex ce len tes teus pla nos!”, can ta va o mo nar ca ins pi ra do.É esse cul to da cri a ção, ins pi ran do a re li gião e a po e sia, que se es ten diaàs con cep ções ar tís ti cas para ali men tar os ate li ers de Akhe ta ton.

H. Franc fort, Eric Peet, Le o nard Wo o ley e ou tros es tu dan tesde Tell el-Amarna no ta ram a se me lhan ça que exis te en tre a arte deAkhe ta ton e a de Cre ta. Pa re ce, na ver da de, que hou ve uma in fluên ciain di re ta, pois o apo geu de Cre ta é an te ri or ao re i na do de Akhe na ton, oque é ex pli cá vel, sem dú vi da, pe los mu i tos con ta tos co mer ci a is e po lí ti -cos en tre o Egi to e aque la ilha du ran te e de po is da épo ca dos Hyksos eaté a des tru i ção de Cnos sos por al gum ter re mo to, ma re mo to ou pe lasin va sões dos aque a nos. De qual quer ma ne i ra, o es pí ri to que ani ma asduas plás ti cas é o mes mo e re a pa re ce rá, qua se mil anos de po is, no gran -de sé cu lo da es cul tu ra he lê ni ca. Vale re gis trar es sas re la ções por que a es -té ti ca de Tel el-Amarna é a ex pres são pro pri a men te egíp cia numa li nha

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de de sen vol vi men to plás ti co “me di ter râ ni co” de que de ve mos ser, nós,na América La ti na, os pro vá ve is her de i ros. De po is de nela ins ta la da aCorte, oito ou nove anos de tra ba lhos tre men dos fo ram ne ces sá ri ospara trans for mar a nova ca pi tal em uma me tró po le en tre as mais be las,de modo a sa tis fazer os an se i os re li gi o sos e os de va ne i os es té ti cos do Fa -raó. A ci da de é as sim des cri ta por um cor te são: “A mui po de ro sa Ci da dedo Ho ri zonte de Aton, gran de pelo seu en can to, se nho ra de agra dá ve isfes tas e rica em virtudes de toda sor te, em cujo meio se acha a ofer tado Sol, é encan ta do ra e bela. A ale gria re i na à vis ta de sua be le za sempar. E quando te mos a ven tu ra de con tem plá-la, é como um raio de luzceleste...”

Mas, iso la do em seu so nho de fé, de paz e be le za, Akhe na tonol vi dou as mal da des des te mun do. No ex te ri or, as pos ses sões e os aliadosasiá ti cos do Egi to fo ram sen do do mi na dos pe las ar re me ti das con quis ta -do ras dos Hi ti tas, a nova po tên cia mi li tar do Ori en te. O Fa raó pa ci fis tanão se de ci dia a in ter vir. No in te ri or, o cle ro re a ci o ná rio de Amonfomen ta va dis túr bi os e cons pi ra va con tra o mo nar ca. A re vo lu ção fer via en quan to o exér ci to, co man da do por Ho rem heb, não escon dia suaimpaciên cia di an te da ina ti vi da de for ça da que lhe era im pos ta pelacandura do Fa raó. Em pou co tem po, im pe rou a anar quia e o edi fí cio doestado egíp cio foi so la pa do em suas ba ses. De ses pe ra do, qui çá ful minadopor um ata que epi lép ti co ou as sas si na do, Akhe na ton mor reu com poucomais de trin ta anos, ven do des mo ro nar-se a obra em que em pe nha ra avida. So bre a mú mia do Rei, des co ber ta por aca so no tú mu lo de suamãe, en con trou-se o se guin te epi tá fio que con tém um ape lo, uma der ra -de i ra prece a Aton, como que mis te ri o sa men te en de re ça da à pos te ridade:

“Res pi ro o doce so pro de tua boca. Di a ri a men te con tem plotua be le za. Meu de se jo é ou vir tua voz su a ve, se me lhan te ao ven to donor te, e sen tir meu cor po re vi go ra do por ti. Dá as mãos que con têm teu es pí ri to, a fim de que o pos sa re ce ber e por ele vi ver. Faze, na eter ni dade, a cha ma da de meu nome e ele ja ma is pe re ce rá!”

Akhe na ton foi su ce di do por três Fa raós in sig ni fi can tes umdos qua is, Tu tank ha mon, seu gen ro, só nos é co nhe ci do pelo tú mu lo, de uma opu lên cia ex ces si va. Mas em seu nome já se nota o dedo do cle rode Amon. O Fa raó se guin te, Ho rem heb, é o ge ne ral vi to ri o so que re pe -liu os Hi ti tas e res ta be le ceu o po de rio mi li tar do Egi to, se guin do po rém,

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em ma té ria re li gi o sa, uma po lí ti ca fran ca men te re a ci o ná ria, ins pi ra dapela fú ria vin ga ti va e odi o sa do cle ro de The bas. A Cor te vol tou para aan ti ga ca pi tal e um ím pe to van dá li co ati rou-se con tra a Ci da de do Ho ri -zon te.

Mas eis o mi la gre de Aton! Ao fa ze rem res sur gir da are ia,como por en can to, a ci da de fan tás ti ca, as pes qui sas ar que o ló gicasmoder nas re ve lam que a des tru i ção tão ra pi da men te acom pa nhou a edi -fi ca ção que cer tas ca sas e pa lá ci os ain da não pos su íam cu me e i ra quan do a pi ca re ta de de mo li ção prin ci pi ou a sua obra. Ca dá ve res de ca chor ros e de va cas fo ram en con tra dos no re cin to, como se ti ves sem mor ri do defome. O aban do no tão re pen ti no teve como con se qüên cia pa ra do xal ade permi tir sua con ser va ção, sem os es tra gos, os acrés ci mos e as de turpa -ções norma is de épo cas pos te ri o res, quan do uma ci da de atra ves sa séculosde exis tên cia. O lo cal pas sou a ser tabu. Mu mi fi cou-se, como se fora,num man to de are ia – algo se me lhan te ao ocor ri do em Her cu la num ePom péia. E como re sul ta do, as ru í nas re ve lam per fe i ta men te a plan ta da ci da de e, em seus mí ni mos de ta lhes, a dis tri bu i ção dos ba ir ros e o“zone a men to” já tão mo der no que lem bra os de se nhos de Lú cio Cos tapara Bra sí lia ou o de Le Cor bu si er na ci da de ín dia de Chan di garh. Po de -mos as sim vis lum brar o tra ça do da lon ga ave ni da, pa ra le la ao rio, que acor ta va em dois e li ga va o pa lá cio fa raô ni co, o tem plo de Aton e osedifí ci os pre su mi vel men te usa dos para fins ad mi nis tra ti vos aos ba ir rosre si den ci a is. No quar te i rão dos ope rá ri os en con tra mos um sis te ma deca sas ba ra tas, edi fi ca das umas de cos tas con tra as ou tras mas to das comfa cha das so bre a rua, que de novo lem bram os prin cí pi os do ur ba nis momo der no. Sa be mos tam bém qua is fo ram os quar te i rões ocu pa dos pores trange i ros – sí ri os, pa les ti nos, nú bi os e, so bre tu do, cre ten ses cujainfluên cia na es té ti ca de Tell el-Amarna pa re ce hoje com pro va da.

Parado xo des sa era me mo rá vel que cons ti tui, ao mes mo tempo,o prin cí pio da de ca dên cia e o tri un fo es pi ri tu al do Egi to! A arte do Niloexprimia-se qua se ex clu si va men te em lin gua gem gra ní ti ca. Não apenas quea pedra fa cil men te se haja con ser va do quan do, por ven tu ra, se perderam aspro du ções da li te ra tu ra, da mú si ca e da fi lo so fia: o es ti lo egíp cio é es sen -ci al mente ar qui te tô ni co e, em sua ân sia de per ma nên cia ma te ri al, o egípcioteve o pro pó si to de li be ra do de so bre vi ver na pe dra. Isso ex pli ca que osen ge nhe i ros fa raô ni cos ha jam de sen vol vi do a mais gi gan tes ca e mais

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exa ta en ge nha ria da pe dra co nhe ci da na his tó ria. As es tá tu as, as es fin ges, as pi râ mi des, os mu ra is são sem pre for mas ar tís ti cas sub si diá ri as de uma ar qui te tu ra cuja ex pres são é, qua se que in va ri a vel men te, o tem plo e o tú -mu lo ou, em ou tras pa la vras, uma ar qui te tu ra da eter ni da de. Não os vi -vos, cuja exis tên cia ter re na não era re al men te dig na de ma i or in te res se,mas so men te os mor tos me re ci am es ses edi fí ci os ci cló pi cos, cons tru í dos com o ob je ti vo ex clu si vo de res guar dar as mú mi as ou, pelo me nos, pre -ser var a me mó ria vi su al dos fa raós e dos gran des dig ni tá ri os num es for -ço he rói co de eter ni zar a for ma como se a for ma, mes mo cal ci fi ca da eem pe der ni da, fos se a ga ran tia da imor ta li da de!

A alma egíp cia acre di ta va que essa per ma nên cia da for macons ti tu ía uma con di ção para a vida no além-túmulo. Daí a im por tân ciado cul to de Osi ris que re pre sen ta o se gun do as pec to da re li gião ni ló ti ca,em sua pre o cu pa ção ob ses si va com a mor te. Ora, na dou tri na de Akhe -na ton um pro gres so ad mi rá vel se ope ra pois a imor ta li da de co me ça aser com pre en di da num sen ti do es pi ri tu al, in de pen den te da so bre vi vên -cia da car ne. A imor ta li da de da pe dra com que os egíp ci os an tes ha vi amcon tado é, afi nal de con tas, a imor ta li da de da mú mia den tro de seu túmulo eter na men te si len ci o so. Akhe na ton com pre en deu esse en ga no quan docha mou o Egi to de sar có fa go e se deu como ta re fa le van tar-lhe a lou sa.Pois ama va a vida em to das as suas for mas e não po dia ace i tar uma con -cepção, na re a li da de ma te ri a lis ta, que re du zia a so bre vi vên cia ao des cansope tri fi ca do. Certa vez es cre veu: “Das are i as mor tas, dos co ra çõesmortos, vou li ber tar Aton, o Deus vivo. Ho mens: Amai-vos uns aosoutros, amai-vos e não co nhe ce re is a mor te!”: Eis a cha ve do mis té rio:Qu a tor ze sé cu los an tes de Cris to, Akhe na ton pre gou a dou tri na queencon tra ria sua for mu la ção de fi ni ti va no Ser mão da Mon ta nha!

A na tu re za con fir mou a in tu i ção mís ti ca do Fa raó: mu mi ficada,como se fora, por um man to de are ia, a Ci da de do Ho ri zon te sobrevi veuin tac ta, como para re ba ter em seu pró prio ter re no as cren ças tra di ci o nais. Mas essa jus ti fi ca ção pós tu ma ser ve ape nas para ilus trar o tri un fo doespí ri to. A me mó ria do Rei mo no te ís ta, lon ge de apa ga da pelo furorico no clas ta de seus ini mi gos que lhe qui se ram mes mo des tru ir a pró pria mú mia, é hoje mais ví vi da, para nós, do que a de qual quer ou tro Fa raó.Qu an do, com pou co mais de trin ta anos, Akhe na ton mor reu, “o si nalfora dado, o si nal para os sé cu los vin dou ros”. Sua men sa gem de amor e

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de be le za não se ins cre ve ra em vão na pe dra de Akhe ta ton. Não fora àtoa que su bli ma ra sua pa i xão pela se du to ra Ne fer ti ti, sua es po sa e irmã,num amor que se es ten de ra a toda a obra de Aton, Deus vivo e Deusúni co. “Escu tai-me, sou Aton, vos so Pai, li ber tai-me das are i as edar-vos-ei um Re i no!”. Pres sen ti men to, qui çá, do Re i no dos Céus anun -ci a do no Ser mão da Mon ta nha. A hi pó te se de uma in fluên cia di re ta docul to de Aton so bre a re li gião mo sa i ca e, con se qüen te men te, so bre oCris ti a nis mo, tem de qual quer for ma in tri ga do mu i tos sá bi os mo der nos. Obser ve-se que o nome de Mo i sés – Mos he ou Mo sis – é uma pa la vraegíp cia fre qüen te, sig ni fi can do “cri an ça”. Ela apa re ce em vá ri os no mesde fa raós como, por exem plo, em Ra-Mosis (Ram sés) e Tut-Mosis (Tut -més). Sem adi an tar que Mo i sés haja sido egíp cio, Bre as ted ad mi te que“pos su ía co nhe ci men to de toda a ciên cia dos egíp ci os” e, na base deuma in ter pre ta ção psi ca na lí ti ca do mito do nas ci men to do he rói, “cri ançasal va das águas”, Fre ud tam bém adi an tou a hi pó te se que o re den tor dosjudeus te nha sido, na re a li da de, um prín ci pe, um no bre ou alto sacerdo teegíp cio, par ti dá rio ir re du tí vel de Akhe na ton e de sua re li gião. Após aque da do cul to ato ni a no, no pe río do de der ro ta e anar quia que se su ce -deu à mor te do Fa raó, pro vo can do o de sa pa re ci men to da XVII di nas tia, Mo i sés te ria im pos to a fé mo no te ís ta a uma das inú me ras tri bos ori entaises ta be le cidas no Del ta des de a in va são dos Hyksos. Obri gan do-a a aceitaro cos tu me egíp cio da cir cun ci são, Mo i sés te ria, em se gui da, con du zi doessa tri bo se mi ta numa ex cep ci o nal ex pe riên cia po lí ti ca e re li gi o sa quefi cou na his tó ria co nhe ci da como o Êxo do.

Eis um dos se gre dos mais fas ci nan tes da his tó ria! Atra vés dano i te dos tem pos, po de mos pres sen tir um fio mis te ri o so que pren de asor te de Aton ao Ado nai dos he bre us e ao Ado nis dos sí ri os e, maisalém, ao “Se nhor” dos Cris tãos. A idéia de um Deus de amor e de bele za,um Deus úni co que pre si de as obras da Na tu re za e pro te ge, de amorigual, os ho mens de to das as ra ças e de to dos os pa í ses me drou, pelapri me i ra vez, no co ra ção de um Fa raó epi lép ti co, apa i xo na do e su a ve,que seus con tem po râ ne os não sou be ram com pre en der. Mas o fio mis te -ri o so não se rom peu e, en co ber ta em sua mor ta lha de are ia, Akhe ta tonpre fi gu ra Je ru sa lém e Roma...

Uma ca pi tal não se mede ape nas pela fun ção es pe cí fi ca quede sem pe nha, con for me o uso pal pá vel que dela po dem fa zer seus

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governan tes e seus ha bi tan tes, mas tam bém pelo sim bo lis mo trans -cenden te con ti do em sua fun da ção, ou por aqui lo que sig ni fi ca. É essesim bo lis mo que lhe dá eter ni da de e mu i to em bo ra Akhe ta ton, num paíscuja exis tên cia foi a mais lon ga da his tó ria, te nha tido a vida mais cur tade to das as capi ta is que va mos es tu dar, não se per de sua li ção no ta bi lís -si ma de de di ca ção e sa cri fí cio. A “Ci da de do Ho ri zon te” é a pri me i ranuma su ces são me mo rá vel de ca pi ta is con sa gra das.

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AKHENATON – Ca be ça en con tra da no ate li er de Dje hu ti mes, em Tell el-Amar na

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AKHENATON – Ne fer ti ti e suas fi lhas

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AKHE NA TON – Sua real es posa Ne fer ti ti, acom pa nha dos das três prin ce si nhas, dis tri bu em co la res de ouro a seus fa vo ri tos, no Bal cão das Apa ri ções re a is

AKHE NA TON – Re cons tru ção

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IIIAle xan dria

Cer ta men te a mais ilus tre de quan tas ci da des me dra ram emter ras afri ca nas, Ale xan dria ain da é hoje uma das mais im por tan tes daba cia do Me di ter râ neo. Na an ti gui da de ri va li zou com Roma em ri que za, po de rio e com Ate nas em es plen dor cul tu ral; na épo ca bi zan ti na, com apró pria Cons tan ti no pla em pres tí gio in te lec tu al e re li gi o so. Em cer tomomen to ame a çou so bre pu jar as duas Ro mas como Ca pi tal do Oci dente,me tró po le por ex ce lên cia da cul tu ra gre co-romana, e, efe ti va men te,salvo cer tos ca pri chos da sor te, a obra mais du rá vel de Ale xan dre escapoude des fru tar o glo ri o so des ti no que cou be às ci da des de Rô mu lo e deCons tan ti no. E se brilhou aci ma de qual quer ou tra, no ter re no fi losófi co,ci en tí fi co e te o ló gi co, Ale xan dria me re ce ain da par ti cu lar men ção, noqua dro de nos sa pre sen te in ves ti ga ção, como a obra mais con si de rá velda es co la de Hi po da mo de Mi le to, o ur ba nis ta gre go que lan çou as basesteó ri cas do pla ne ja men to for mal.

Fi nal men te, do pon to de vis ta da ciên cia ge o po lí ti ca, a ci da deilus tra, na an ti gui da de clás si ca, como São Pe ters bur go o fará na ida demo der na, o fe nô me no pe cu li ar de trans fe rên cia de uma ca pi tal do in teriorpara o li to ral do país – em ou tras pa la vras, o mo vi men to in ver so daque leque le va mos a cabo, em nos so país, ao trans fe rir a sede do go ver no doli to ral para o Pla nal to de Go iás. Jus ta men te por esse mo ti vo, e em cone xão com o caso rus so, a apre ci a ção de tal fe nô me no en cer ra uma valiosa

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lição de po lí ti ca com pa ra da. Um pou co de his tó ria per mi tir-nos-á, como sem pre, com pre en der a sé rie de acon te ci men tos que de ter mi na ram afun da ção de Ale xan dria.

Cons ti tu ía o Egi to, no quar to sé cu lo an tes de Cris to, umasim ples pro vín cia per sa. A cha ma da “Re nas cen ça sa í ta”, sob os Fa raósPsa mé tico e Ne cao, fora de cur ta du ra ção e, só mo men ta ne a men te,con se gui ra re pe lir os con quis ta do res asiá ti cos. Era o Egi to, aliás, asombra de si mes mo. A in fluên cia do Me di ter râ neo, a pre o cu pa çãodomi nan te com a po lí ti ca asiá ti ca, onde se su ce di am os gran des Impé riosdes pó ti cos, e o in flu xo das gen tes e das co i sas gre gas cons ti tu em ostraços ca rac te rís ti cos des sa épo ca de tran si ção. Os co mer ci an tes e osmer ce ná ri os he lê ni cos co me çam en tão a de sem pe nhar um pa pel de cisivono país e a fun da ção do por to de Na u cra tis con fir ma a no ção de que oEgi to nada mais é, en tão, do que uma pro vín cia na gran de área cul tu ral,no ecúme no do mun do me di ter râ neo. Em 525 an tes de Cris to, Cam bises,fi lho de Ciro, Xá-in-Xá, in va de o país, cap tu ra Memp his e trans for ma ove lho Impé rio fa raô ni co numa sa tra pia per sa. Assim ter mi na a in de pen -dên cia egíp cia.

Menos de du zen tos anos de po is sur ge ao nor te, das mon tanhasda Ma ce dô nia, uma es tre la ful gu ran te, um me te o ro, um su per-homem ouse mi-deus que car re ga, na aven tu ra fa bu lo sa, as es pe ran ças de ummundo jo vem, trans bor dan te de ener gi as cri a do ras. Ale xan dre, es creveJu les Le mal tre, “é a his tó ria fan tás ti ca e, no en tan to, é a his tó ria!”. Aepopéia tão rá pi da quan to ex tra or di ná ria, es cri ta por seu pro ta go nista com a es pantosa in cre di bi li da de de um dra ma ho mé ri co, re gis tra a se guintesu ces são: depo is de atra ves sar o He les pon to e efe tu ar um sa cri fí cio so bre as ru í nas de Tróia, o novo Hér cu les, o novo Aqui les cor ta o nó gór dio, avan çacon tra as hos tes inu me rá ve is do Rei dos Reis, con quis ta a Ásia Me nor, ven ceem Issus, fun da a pri me i ra de suas Ale xan dri as (Ale xan dre ta ou Isken de run,ao sul da Tur quia atu al), do mi na a Sí ria, des trói Tiro e ga ran te as sim, para osgre gos, a he ge mo nia in dis cu tí vel so bre o Me di ter râ neo ori en tal que, atéentão, dis pu ta vam aos fe ní ci os e aos me das. Em se gui da, no ano 332 an tesde Cris to, após in ter rom per to das as co mu ni ca ções do vale do Nilo com oplanal to ira ni ano onde se re fu gi a ra o mo nar ca ini mi go, ele pe ne tra noDel ta e pro cla ma-se Li ber ta dor do Egi to.

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A con quis ta foi fá cil. O povo aco lheu-o, se não como liberta dor, pelo me nos como um che fe mais su a ve. O sá tra pa sub me teu-se sem luta e Ale xan dre en trou na Ca pi tal dos Fa raós onde foi pro cla ma do Rei,sacri fi can do aos de u ses tra di ci o na is do país para lhes gran je ar afe to epro teção. De Memp his des ceu o Nilo e efe tu ou en tão o ato que, na opi niãode Bury, “não hou ves se ele re a li za do qual quer ou tra fa ça nha, se ria su fi -ci en te para tor nar seu nome para sem pre ve ne rá vel”: a fun da ção da mais cé le bre das se ten ta e tan tas Ale xan dri as que es pa lhou no ca mi nho desuas con quis tas – essa sua fu tu ra ca pi tal que, para man ter o con ta to rápidocom a Gré cia e a Ma ce dô nia, de via ne ces sa ri a men te ser ma rí ti ma.

Ao li ber tar o vale do Nilo e fun dar Ale xan dria, o rei da Ma ce -dô nia pres ta va-se fi el men te a um dos ob je ti vos tra di ci o na is da gran dedi plomacia gre ga e, par ti cu lar men te, da po lí ti ca da tha las so cra cia ateni en se. Ci mon e Pé ri cles tam bém ha vi am aca ri ci a do a idéia de ata car os Me dasno Egi to e, isso, não ape nas por sim pa ti as ide o ló gi cas mas em vir tu dede in te res ses co mer ci a is que da ta vam da épo ca sa í ta e ha vi am dado ori gem ao por to de Na u cra tis e às fe i to ri as dos He le no memp hi tas. Um dosobje ti vos per ma nen tes des se de síg nio era a des tru i ção do po der na valse mi ta, lo ca li za do prin ci pal men te na cos ta do Lí ba no e pro te gi do pe losPer sas: a luta he lê ni ca con tra os fe ní ci os de Tiro é o pre lú dio do du e lomor tal de Roma con tra os fe ní ci os de Car ta go.

O pró prio sí tio de Ale xan dria, pre des ti na do por sua con fi gu -ra ção a re ce ber um gran de por to, era des de mu i tos sé cu los co nhe ci dodos gre gos. No quar to li vro da Odis séia, fala Ho me ro numa “ilha no mar re vol to, que cha mam Pha ros, ao lar go do Egi to. E tem bom an co ra dou -ro”. Con ta ain da que Me ne lau, ao vol tar de Tróia, foi de ti do nes sa ilhapelo gi gan te Pro teu, fa mo so por sua ca pa ci da de de se me ta mor fo se ar. Ora, exis te uma len da egíp cia mu i to se me lhan te que se re fe re a um “Pha raóPru ti”, sen do pos sí vel equa ci o nar a eti mo lo gia das pa la vras Pha ros ePha raó, Pro teu e Pru ti.

Assen tan do os ali cer ces da nova ca pi tal he lê ni ca em ter ras doEgi to, Ale xan dre re or ga ni zou o país mas an tes de par tir para a ofen si vacontra o pla nal to ira ni a no quis san ti fi car sua au to ri da de e tal vez sa tis fazera cer tas fan ta si as mí ti cas que sem pre aca ri ci ou. Com esse pro pósito,empenhou-se na as saz mis te ri o sa ex pe di ção ao san tuá rio de Amon,no de ser to da Lí bia, onde, pelo deus má xi mo do Egi to que os gre gos

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iden ti fi ca vam a Zeus, foi re co nhe ci do como fi lho. Assim con fir ma va asvagas no ções so bre seu nas ci men to par te no gê ni co e as cen dên cia di vi na. Oacon te cimento que o orá cu lo cor ro bo rou pos su ía sem dú vi da um profun do sen ti do po lí ti co: na fi gu ra do fi lho-herói de Olím pia, na pes soa do rei da Ma ce dô nia, ge ne ra lís si mo dos gre gos e ven ce dor dos per sas, ope ra va-sea iden ti fi ca ção das di vin da des su pre mas do Egi to e da Gré cia, isto é, afu são das duas cul tu ras. A in clu são do Egi to na es fe ra he lê ni ca abriauma nova era na his tó ria do vale do Nilo – era das mais ri cas que durariaaté a con quis ta mu çul ma na no ano de 641.

Entre tan to, o des ti no de Ale xan dria só se des ven dou após amor te do Con quis ta dor. Com pro me ti do um ins tan te quan do se lan çouso bre a Ásia Cen tral e ina u gu rou a po lí ti ca de in te gra ção gre co-iraniana,esse des ti no foi as se gu ra do por Pto lo meu, um dos me lho res e mais sá bi -os de seus ge ne ra is que, para o Egi to, trou xe o ca dá ver do Rei a fim deen ter rá-lo num sar có fa go de ouro. Pois en quan to os de ma is her de i rosdo mons tru o so Impé rio fa zi am de seu Che fe, con for me ele pró prio pre -vi ra, “fu ne ra is san gren tos”, pre ten den do, cada um por sua vez, res ta u rar o so nho de he ge mo nia uni ver sal, o pru den te e sa gaz Pto lo meu, fi lho deLa gus mas tal vez, se gun do a tra di ção, me io-irmão de Ale xan dre, con so -li dou seu do mí nio so bre o Egi to, ma no brou com di plo ma cia nos confli tosde vi zi nhos e ri va is e, so men te quan do sen tiu ga ran ti da a se gu ran ça ene u tra li da de do país, ou sou pro cla mar-se Rei. A di nas tia lá gi da as simina ugura da iria re i nar mais de du zen tos anos – di nas tia cu ri o sa, complexa,gre ga em Ale xan dria, egíp cia no Alto Nilo, di nas tia em que se con tamde zes se is Pto lo me us, seis Cleó pa tras, qua tro Be re ni ces e ou tras tan tasArsi noés, di nas tia bri lhan te e cru el onde as mu lhe res de sem pe nham umpa pel sa li en te, onde ir mão casa com irmã, irmã as sas si na ir mão e onde,à mais fre né ti ca sen su a li da de e ao ví cio mais tor pe, se ali am um sur pre -en den te ta len to po lí ti co e um sin ce ro amor pe las ar tes e a cul tu ra. Mas é ao pri me i ro e gran de Pto lomeu, ape li da do So ter, que Ale xan dria devesua po si ção pre do mi nan te, sua pros pe ri da de e dois de seus mais famososmo nu men tos, o Mu seu e a Bi bli o te ca. Foi tam bém nes sa épo ca que sefez o pla ne ja men to da ci da de.

Ale xandria foi de se nha da por Di no e ra tes de Rho des e Sostratode Cni do se gun do o pla no re tan gu lar, em “xa drez”, vul ga ri za do porHipo da mo de Mi le to. Nas ci do cer ca do ano 500 a.C., não foi Hi po da mo

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certamen te, como às ve zes se acre di ta, o cri a dor do es que ma ge o mé tri -co, do de se nho for mal, or to go nal ou em gre lha, cu jas ori gens na re a li da -de po dem ser des co ber tas no Egi to e na Me so po tâ mia, mi lê ni os an tes.Foi sim ples men te um te o ri za dor, fi ló so fo e ma te má ti co, que for mu louos prin cí pi os bá si cos do ur ba nis mo for mal, numa épo ca em que es sasno ções não ha vi am ain da pe ne tra do no ter re no das re a li za ções prá ti cas.Atri bu em-lhe a cons tru ção do Pi reu, en co men da do por Te mís to cles, e o pla ne ja men to de Rho des, o pri me i ro “Dis tri to Fe de ral” que re gis tra ahis tó ria. Hi po da mo her dou as tra di ções ge o mé tri cas e as con cep ções da “mágica dos nú me ros” que os Pi ta gó ri cos ha vi am trans mi ti do do Oriente,isto é, as con cep ções ba bi lô ni cas, as sí ri as e hi ti tas, e es pe ci al men te aveneração do nú me ro três. So freu tam bém in fluên cia do que Hen ri Lave dan chama o “ur ba nis mo prá ti co” da Me so po tâ mia, o que quer di zer a téc nicadas ca na li za ções, es go to, ori en ta ção e co mu ni ca ções. Qu al quer que lhete nha sido o mé ri to par ti cu lar ou a re a li da de das obras a ele atri bu í das, o fato é que cons ti tui um ex po en te das idéi as re i nan tes na épo ca e que seu nome foi res pe i ta do pelo pró prio Aris tó te les.

A par tir do quar to sé cu lo an tes de Cris to, a com po si ção re gu lares ten de-se e vul ga ri za-se, tal vez em con se qüên cia da in fluên cia do es pí ri tofi lo só fi co de or dem e de or ga ni za ção. Vale no tar que, tan to em Aris tó te lesquan to em Hi po da mo, os prin cí pi os do ur ba nis mo são de du zi dos daPo lí ti ca, isto é, da ciên cia de ad mi nis tra ção das Ci da des-Esta do. Tal vez are le vân cia do pro ble ma po lí ti co, que des pon ta su bi ta men te na cons ciên ciahe lê ni ca após o dra ma ir re me diá vel da Gu er ra do Pe lo po ne so, atrai aaten ção dos pen sa do res para esse ramo da ar qui te tu ra até en tão des le i xa do.Aris tó te les es cre ve so bre ur ba nis mo em sua “Po lí ti ca”, es ta be le cen do os três as pec tos fun da men ta is da ma té ria sob os tí tu los de hi gi e ne, de fe sa e cir cu la -ção. É tam bém Aris tó te les que as si na la a in com pa ti bi li da de dos dois úl ti -mos pois o pla no in for mal, como se de mons tra rá na Ida de Mé dia, é fa -vo rá vel à de fe sa mas pre ju di ci al ao trân si to. O Esta gi ri ta não ofe re ce, en -tre tan to, uma fór mu la con ci li a tó ria en tre as ne ces si da des da de fe sa e o de -se nho re gu lar que fa ci li ta as co mu ni ca ções.

Dino cra tes de Rho des per ten cia a uma pro fis são que, na época,en con tra va am plo ter re no para trans for mar em con jun tos for ma is depe dra, már mo re e ti jo los, os prin cí pi os teó ri cos de Hi po da mo e de Aris -tó te les. Pa re ce que se tra ta va de uma per so na li da de ori gi nal, de cer to

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modo me ga lo ma nía ca, pró pria para agra dar Ale xan dre. Cons ta que te riames mo pro pos to trans for mar o Mon te Athos numa es tá tua gi gan tes cado Rei da Ma ce dô nia, o qual se gu ra ria um tem plo em uma das mãos e,na ou tra, um jar ro do qual se pre ci pi ta ria uma ca ta ra ta so bre o mar.Cou be-lhe de sen vol ver, em es ca la mo nu men tal, o pla no que, em li nhasge ra is, fora con ce bi do pelo Rei. Uma len da cu ri o sa sim bo li za a co la bo -ra ção en tre o ar qui te to e seu che fe: ao dis por o pe rí me tro ur ba no deAle xan dria, Di no cra tes no tou a fal ta de cal, que uti li za va para in di car otra çado aos mes tres-de-obra. Ale xan dre or de nou in con ti nen ti que a farinha des ti na da ao exér ci to fos se ser vi da ao ar qui te to para aque le mis ter.Pássa ros vo a ram e co me ram a fa ri nha mas os áu gu res con si de ra ram oin ci den te como um pres sá gio fa vo rá vel.

O es que ma de Ale xan dria era re la ti va men te sim ples: a for made uma clâ mi de gre ga; uma ave ni da cen tral, a Rua de Ca no pe ou RuaLar ga, na ver da de de mais de trin ta me tros, lon ga de cin co qui lô me tros,cor tan do a me tró po le de les te a oes te; ou tra, a ave ni da de Soma, igual -men te am pla, cru zan do em ân gu lo reto e abrin do uma vis ta do Pa lá cioReal, si tu a do à be i ra-mar, so bre o Lago Ma re o tis, ao sul. Essas ar té ri as,cujo tra ça do pode ser ain da hoje des co ber to em ruas da mo der na Ale -xan dria, cons ti tu em tal vez as mais an ti gas ave ni das do mun do. Elasapre sen ta vam um as pec to que con si de ra ría mos mo der no: co lu na tas ear ca das la de a vam-nas, pro te gen do do sol e da chu va os tran se un tes quead mi ra vam os ar ti gos de luxo mais va ri a dos, api nha dos nas vi tri nes dassuas lo jas. Qu an to às trans ver sa is nor te-sul, em nú me ro de onze, eramdis pos tas de modo a dis tri bu ir, por todo o pe rí me tro ur ba no, os ven toseté si os que so pra vam do qua dran te Me di ter râ neo e aos qua is os sá bi os e hi gi e nis tas atri bu lam a sa ú de e lon ge vi da de dos ale xan dri nos. O en tro ca -men to das duas ave ni das prin ci pa is – que se ria or na do por Ves pa si a nocom um arco de tri un fo ou por ta mo nu men tal, o Te trapy lon cons ti tu íao ver da de i ro co ra ção da me tró po le e nele for mi ga vam os ha bi tan tes,num aco to ve la men to ori en tal e num vo ze rio ti pi ca men te me ri di o nal.Esse en tron ca men to abria uma das lar gas pla te ai des ti na das a subs ti tu ir a ágora e o fó rum como cen tro de re u niões po pu la res nas ci da des dofu tu ro (a pa la vra é a ori gem da pi az za ita li a na e da nos sa pra ça). Nãolon ge da in ter se ção en con tra va-se o tú mu lo de Ale xan dre, es pí ri to tutelarda aglo me ra ção. No cen tro da ci da de, à be i ra do gran de por to, er guia-se

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o Pa lá cio Real, pro te gi do pe los quar téis da guar ni ção pto lo ma i ca e dis -pon do de um an co ra dou ro pró prio. Em se gui da, nas pro xi mi da des, a sé -rie im pres si o nan te dos gran des mo nu men tos, das obras de que mais seor gu lha va: o Te a tro, a Bi bli o te ca, o Mu seu, o Gi ná sio con sa gra do a Di o -ní sio e o Está dio que sim bo li za vam o do mí nio da alma gre ga, impreg -na da de amor pela ra zão e pela be le za fí si ca, so bre a ve lha ter ra do Egi to. Uma pro di ga li da de ina cre di tá vel de pa lá ci os e de tem plos, edi fí ci os ima cu la -dos de már mo re bran co, de puro es ti lo jô ni co ou co rín tio, com ter ra çosem co lu na tas, or na men ta dos de mag ní fi cas es tá tu as e de mu ra is po li crô -mi cos – a arte, a fi lo so fia, o cul to da for ma hu ma na, a cla re za radi an tedo ati cis mo, a plás ti ca vi bran te da Gré cia do mi nan do o hi e ra ti cis mo fa -raô ni co, uma ri que za sem pre ce den tes de for mas e de co res que se im -pu nha so bre a ter ra en ru ga da do Egi to!

Ca pi tal de um re i no po de ro so e rico, de uma po tên cia na val emer can til, Ale xan dria pos su ía mu i tas ca rac te rís ti cas de uma ci da de co lo -ni al. Cos mo po li ta por ex ce lên cia, seu “zo ne a men to” de base ra ci al re ve -la va a fu são im per fe i ta dos vá ri os ele men tos que com pu nham a na ci o -na li da de pto lo ma i ca. No apo geu, a me tró po le foi uma Ba bel de ra çasque pode ter abri ga do um mi lhão de ha bi tan tes, isto é, tal vez mais deum dé ci mo da po pu la ção to tal do Egi to. Além das co lô ni as já men ci o -na das, em suas ruas e seus cais tran si ta vam ára bes e per sas, ju de us, fe ní -ci os e sí ri os, ne gros da Nú bia e do Su dão, etío pes, bár ba ros da Ca u cásiae das pla ní ci es rus sas, trá ci os, bi tí ni os, ca pa dó ci os, in di a nos e tal vezmes mo chi ne ses. Po pu la ção vo lá til, des re gra da, bri guen ta, ner vo sa, ir re -ve rente, ati va, co mer ci an te, bri lhan te, de vas sa, ale gre, fa ná ti ca na devoçãoa seus de u ses, à sua ci da de e aos he róis do an fi te a tro e do es tá dio.Entretan to, o por to man te ve-se sem pre es pi ri tu al men te iso la do do inte ri ordo país. O alto vale do Nilo con ser vou-se in va ri a vel men te es que ci do ere tró gra do, vi si ta do ape nas pe los tu ris tas e pe los co le to res de im pos tos.Nele os Pto lo me us eram ain da ado ra dos como Fa raós, en car na ções dadi vin da de. Ou tros ar ca ís mos so bre vi vi am. A ci são do in te ri or com agrande me tró po le li to râ nea acen tu ou-se com o pas sar dos sé cu los,ilustran do o fe nô me no tão ca rac te rís ti co das ca pi ta is li to râ ne as do qualofe re ce re mos mais tar de ou tros exem plos.

O cará ter cos mo po li ta de Ale xan dria re ve la va-se per fe i ta mentena cir cuns tân cia de ter sido o ma i or cen tro de tu ris mo da an ti gui da de. A

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ci da de or gu lha va-se de seus ho téis, de seus “gui as”, de seus in tér pre tes e cice ro nes que, além de mos trá-la, le va vam os es tran ge i ros ri cos em ex cur sões às pi râ mi des e aos tem plos de Lu xor. Mas Ale xan dria pos su ía tí tu lospró pri os para sua fama, sem ne ces si da de de re cor rer aos mo nu men tosdo ve lho Egi to. Para co me çar, o por to os ten ta va o Fa rol, uma das SeteMa ra vi lhas do mun do, cons tru í do pelo ar qui te to Sos tra to de Cni do afim de gui ar os na ve gan tes à en tra da do an co ra dou ro e su prir as de fi -ciências de um li to ral ba i xo, che io de ar re ci fes e sem ele va ção ori en tadora.Se o Fa rol re pre sen ta va o tri un fo da téc ni ca e da ciên cia he le nís ti cas econs ti tu ía uma ex pres são dos co nhe ci men tos ma te má ti cos da es co la ale -xan dri na (Sos tra to foi con tem po râ neo de Eu cli des e de Era tós te nes), aBi blioteca, cri a da tal vez por su ges tão de Aris tó te les e em cu jas pratele i rasen con tra vam-se al gu mas cen te nas de mi lha res de ro los que pre ten di amencer rar toda a ciên cia do ho mem, re fle tia a ri que za e a fer ti li da de cul turalda me tró po le. De po is de tan to con cor rer para a di fu são dos co nhe ci -men tos ci en tí fi cos e li te rá ri os da Gré cia e de Roma, a co le ção, já pre ju -di ca da na época bi zan ti na pela re a ção re li gi o sa, iria ser des tru í da pelofana tis mo ára be quan do da con quis ta is lâ mi ca sob o Kha li fa Omar.

Não me nos ve ne rá vel do que a Bi bli o te ca, do pon to de vis tacul tu ral, era o Mou se i on, isto é, o edi fí cio de di ca do, con for me ins pi ra çãopla tô ni ca, às Mu sas das le tras e das ar tes. Abri ga va a es co la ale xan dri na,essa uni ver si da de que se ria a mais jus ta men te re pu ta da do Impé rioromano, ul tra pas san do a pró pria Ate nas pela fe cun di da de de suas idéi ase pela re pu ta ção de seus mes tres. Orga ni za da sob a ins pi ra ção de Demétriode Fa le ro com o in tu i to evi den te de ri va li zar com as es co las de Ate nas,não con sis tia na re a li da de em um es ta be le ci men to de en si no po rém emuma es pé cie de ins ti tu to de al tos es tu dos, di vi di do em qua tro cor porações:a dos as trô no mos, a dos li te ra tos, a dos ma te má ti cos e a dos fí si cos. Acontri bu i ção do Mu seu à cul tu ra uni ver sal qua se vale, por si só, para tor nar Ale xan dria dig na da ce le bri da de que gran ge ou. Bas ta men ci o nar no mescomo os de He ron; Teó cri to; He róp hi lo e Era sis tra to, mé di cos fa mo sos; Ze nó do to, o gra má ti co eru di to; Era tóst he nes, geó gra fo e cos mó gra fo,cal cu la dor ge ni al da cir cun fe rên cia da ter ra, e Cla u dio Pto lo meu cujosis te ma as tro nô mi co du rou até Co pér ni co; Eu cli des, o gi gan te da ge o -me tria, e o pró prio Arqui me des, o ma i or sá bio da an ti gui da de, que aliestudou! No pe río do fi nal de sua his tó ria clás si ca, Ale xan dria se ria também

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o gran de cen tro di fu sor das idéi as ne o pla tô ni cas, re pre sen ta das sobre tu dope los fi ló so fos Phi lo Ju da e us e por Plo ti no o qual pre pa ra ria o ter re nopara o sin cre tis mo es pi ri tu al que ga ran ti ria o tri un fo do Cris ti a nis mo.

Pelo re no me de sua cul tu ra, in dús tria e pra ze res, Ale xan driame re ceu as des cri ções mais en tu siás ti cas dos que a co nhe ce ram. Foi aPa ris da an ti gui da de, meca de ar tis tas, ri ca ços, tu ris tas, vo lup tu o sos eaven tu re i ros de toda es pé cie. Sua fi lo so fia re su mia-se na dou tri na vul ga -ri za da pela es co la he do nis ta de Aris ti po de Ci re ne que pre ga va o per fe i togozo de cada mo noch ro nos he do ne, de cada mo men to de pra zer. He gé si as, fi ló -so fo pes si mis ta cu jas dou tri nas ins pi ra vam su i cí di os em mas sa, foi ex -pul so da ci da de. No su búr bio de Ele u sis e na aglo me ra ção sa té li te deCa no pe, o tem plo de Afro di te era o cen tro da or gia e da sen su a li da dede sen fre a da – imen so pros tí bu lo onde mi lha res de cri a tu ras, ori un das de to dos os re can tos da ter ra, ofe re ci am im pu di ca men te ao tran se un te“to das as li ber ti na gens in ven ta das pela sen su a li da de gre ga, ali a da àcor rup ção egíp cia e ao re fi na men to ori en tal”.

No pe río do cons tan ti no po li ta no, a me tró po le pres ti gi o sa doNilo se ria o ma i or cen tro es pi ri tu al da Cris tan da de. Ale xan dria con tribui riapara a nova re li gião com uma só li da base mís ti ca e fi lo só fi ca, ali cer ça dana Ra zão e no Amor, as duas idéi as que sem pre aci ma de tudo ve ne rou.Mas se foi um rico ma nan ci al da or to do xia, seu fa ná ti co en tu si as mo pela es pe cu la ção te o ló gi ca fa vo re ceu a pro li fe ra ção de dou tri nas he ré ti cas –o Ari a nis mo, o Mo no fi si cis mo e tan tas ou tras...

A alma fe mi ni na, a se du ção de Ale xan dria, seus mé to doscruéis e dis si mu la ção, sua pom pa in so len te e co bi ça fa tal, sua vo lup tu o -si da de e ex tra va gân cia, sua in te li gên cia e cál cu lo, es tão bem re pre sen -tadas na fi gu ra fa bu lo sa de Cleó pa tra, a úl ti ma ra i nha do Egi to. Que podermis te ri o so es con dia essa mu lher, ca paz de do mi nar não ape nas o im pe -tu o so e in fan til Mar co Antô nio, mas o ma du ro e ge ni al Jú lio Cé sar?Dela, mais do que de qual quer ou tra so be ra na, de pen deu em cer tomomen to a sor te do mun do. Go et he de cla ra que, “quan do uma mu lherad qui re al guns dos atri bu tos do ho mem, ela deve tri un far; pois se in ten -si fi ca suas ou tras van ta gens por um ex ces so de ener gia, o re sul ta do é um ser tão per fe i to quan to se pos sa ima gi nar”. Uma am bi ção inex tin guí velalimen tou o co ra ção des sa cri a tu ra, meia gre ga e meia egíp cia, com todasas ar ti ma nhas da in te li gên cia he lê ni ca e da tor tu o si da de ori en tal. Em sua

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bi o gra fia, acen tua Oscar Wert he i mer que “ela sem pre apa re ce rá como aen car na ção su pre ma do eter no fe mi ni no, enig ma doce e cru el des ti na do, pela na tu re za, ou a co lo rir a vida de um en can to di vi no, ou a destruí-la”...Flor mais per fe i ta e mais com ple ta que a cor te sã do Nilo pro du ziu noauge de seu ful gor, com que in tu i to tra ba lhou se não o de re a li zar osobje ti vos mais lon gín quos de sua casa e de sua ci da de: o de es ca par dopo der avas sa la dor de Roma e do mi nar a ba cia ori en tal do Me di ter râ neo? Cleó pa tra foi bem a per so ni fi ca ção de Ale xan dria, em toda a su ti le za desuas ar mas fe mi ni nas, para a su pre ma ten ta ti va de re a li zar o seu des ti no.

Lem bre mo-nos dos pro pó si tos va ga men te aca ri ci a dos porAle xan dre ao fun dar a ca pi tal ni ló ti ca. Esses pro je tos não fo ram con cre -ti za dos em con se qüên cia de sua pró pria des me di da e da cir cuns tân ciafor tu i ta de uma mor te pre ma tu ra. Sa be mos que, du ran te o sí tio de Tiro,Da rio pro pôs-lhe a paz com a di vi são do mun do pela fron te i ra do Eu -fra tes: a di nas tia aque me ni da con ser va ria o Ira que e o Iran, de i xan do aomacedônio a Ásia Me nor, a Sí ria, a Pa les ti na e o Egi to. Par mê nio, o velhoe pru den te ge ne ral, acon se lhou: “Eu ace i ta ria, se fos se Ale xan dre!”. Aoque lhe res pon deu o he rói, num mo men to mal ins pi ra do: “Eu tam bém,se fos se Par mê nio!”. Pois Par mê nio, em úl ti ma aná li se, es ta va com a razãotan to do pon to de vis ta es tra té gi co e ge o po lí ti co quan to do pon to devista dos in te res ses su pe ri o res da cul tu ra he lê ni ca. A his tó ria sub se qüentecom pro vou am pla men te a sa be do ria da tese que pre ten dia li mi tar a con -quis ta aos ter ri tó ri os as si mi lá ve is do li to ral me di ter râ ni co. A ex pe di çãofa bu lo sa de Ale xan dre até às mar gens do Indus ser vi ria ape nas para em -polgar as ima gi na ções e le var as se men tes da cul tu ra he lê ni ca aos con finscen tro-asiáticos. É cer to que es sas se men tes pro du zi ri am o fru to ma ra -vi lho so da arte gre co-búdica que, pela rota da seda e o Tur questão,influ en ci a ria a plás ti ca chi ne sa e ja po ne sa. Fora dis so, po rém, bem efê -me ra foi a obra de Ale xan dre no Iran. O con quis ta dor ex ce deu-se, ul tra -pas sou ali os li mi tes ra zoá ve is do en ge nho po lí ti co e mi li tar e, se o seunome Isken der ad qui riu um sen ti do qua se se mi-divino, na fér til ima ginação do Ori en te (a epo péia per sa de Fer da u si o co lo ca en tre os he róis naciona is),a ex pe di ção não teve ou tro re sul ta do prá ti co se não o de abrir tempora -ri amente o ca mi nho da Índia e des tru ir o Impé rio aque me ni da. Sua morte pre ma tu ra em Ba bi lô nia ar ru i nou qual quer pers pec ti va de con so li da ção

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de um Impé rio tão ins tá vel e he te ro gê neo em subs tân cia, quan to imen soem ex ten são.

À luz de tais con si de ra ções, pa re ce evi den te que Ale xan dria se pa ten te a va como a úni ca pos sí vel ca pi tal do abor ta do Impé rio ma ce dô -ni co. E há ain da um ou tro as pec to da ques tão: sa be mos que, entre asaspi ra ções de Ale xan dre, fi gu rou a con quis ta do Oci den te, com o objetivopre cí puo de des tru ir Car ta go como se qüe la da luta con tra os fe ní ci os de Tiro. Esse pro je to ele te ria ima gi na do em pre en der ao re tor nar da ex pe -di ção à Índia. Nes se caso, os ma ce dô ni os ter-se-iam adi an tado aosroma nos nas guer ras pú ni cas e na cons ti tu i ção de um Impé rio no Me di -ter râ neo: com sua ca pi tal em Ale xan dria ocu pa ri am uma po si ção ide alpara do mi nar ao mes mo tem po a Gré cia, o Egi to, a Sí ria e os fu tu roster ri tó ri os oci den ta is. Os his to ri a do res per mi tem-se di va gar so bre taiseven tu a li da des. Mas se as fan ta si as his tó ri cas po dem ser vãs, aju dammuitas ve zes a ex pli car acon te ci men tos de ou tro modo in com pre ensíve is. O fato é que o erro de Ale xan dre em se des vi ar da rota na tural, que alógi ca da his tó ria apon ta va, con de nou-lhe a obra ao ma lo gro e pri vou ame trópole do Nilo de um des ti no qui çá mais es tu pen do do que pode moscon ce ber.

Ale xan dre de i xou pas sar a opor tu ni da de e a fa bu lo sa Cleó pa -tra ten tou em vão agar rá-la quan do o Sol de Roma bri lha va no zê ni te. A sor te, po rém, es ta va lan ça da e a his tó ria não vol ta atrás: Cons tan ti no plae não Ale xan dria se ria a her de i ra do Impé rio, a Ca pi tal do Ori en te node clí nio de Roma. De po is, vi e ram re pen ti na men te os ára bes. O Islã eramu i to sim ples, mu i to vi ril, mu i to duro, era uma re li gião do de ser to, porna tu re za con ti nen tal, im pró pria para agra dar a uma ci da de ra di ante,banha da pe las on das azu is e as bri sas ame nas do Me di ter râ neo. Por issode ca iu. Mais uma vez o eixo do Egi to mu dou de di re ção e a capitalinter nou-se no Del ta, es co lhen do no Ca i ro o sí tio pres ti gi o so da an ti gaMemp his.

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Bus to de Ale xan dre

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Ale xan dria – Plan ta apro xi ma da, em prin cí pi os da épo ca ro ma na. De se nho em gre lha se gun do os prin cí pi os de Hi po da mo de Mi le to

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Urba nis mo no Ori en te an ti go Pla no de Ci da de hi ti ta de Zend jir li, Tur quia (in P. La ve dan “His to i re de l’Urbanisme”)

A Cruz-no-Círculo num pla no de ci da de na an ti ga Me so po tâ mia

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IVCons tan ti no pla

No sé cu lo quar to de nos sa era, uma pro fun da evo lu çãopo lí ti ca in ter na acom pa nha ra a sen sí vel trans la da ção do eixo mi li tar doImpé rio Ro ma no e a in fluên cia es pi ri tu al cres cen te do Ori en te me di ter -râ neo. Des de Ca ra ca la a ci da da nia ha via sido es ten di da a to dos seushabi tan tes li vres, e o Se na tus Po pu lus que Ro ma nus não re pre sen ta vam mais os so be ra nos do mun do. A au to ri da de es ta va ago ra in ves ti da na pes soado Impe ra dor que se trans for ma ra em um dés po ta ori en tal, cer ca do depom pa e eti que ta, e ser vi do por uma imen sa bu ro cra cia cen tra li za do ra.Roma era ain da a ci da de mais im por tan te do Impé rio. De i xa ra, po rém,de cons ti tu ir o cen tro de seu po der po lí ti co, nem po dia mais pre ten derao pri vi lé gio de al ber gar a au to ri da de efe ti va. Os Impe ra do res da de ca -dên cia, nas vi cis si tu des po lí ti cas in ter nas e ex ter nas, e le van do em con taas ne ces si da des pre men tes da de fe sa, en con tra vam me lho res sí ti os paradi ri gir suas le giões e a pe sa da má qui na do Esta do uni ver sal.

Na pró pria Itá lia, a evo lu ção dos acon te ci men tos, no pe río dofi nal do Impé rio do Oci den te, ia de ter mi nar o aban do no de Roma emfa vor de Ra ve na. Se o Impé rio do Oci den te hou ves se sub sis ti do, sem pre re sis tin do ao ím pe to dos bár ba ros, tal vez Ra ve na hou ve ra subs ti tu í do

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Roma. A Itá lia, po rém, es ta va de ca den te no cor po e na alma; na re a lidadenem era a re gião mais rica e im por tan te do Me di ter râ neo. Essa decadên ciaera evi den te nos prin cí pi os do sé cu lo quar to, isto é, cem anos an tes dosa que io de Roma por Ala ri co, rei dos Go dos, no mo men to em queCons tantino de ci diu aban do ná-la. Pois quan do o Impé rio, ten do perdidoseu di na mis mo in ter no, se re tra ía, den tro de li mi tes con ser va do res, parame lhor de fen der-se dos au da ci o sos ata ques de per sas e de bár ba ros,agu ça va-se a vi são ge o po lí ti ca dos gran des im pe ra do res da de ca dên cia.

A pri me i ra so lu ção, ide a li za da por Di o cle ci a no, fora di vi dir os do mí ni os ro ma nos em qua tro áre as, go ver na das res pec ti va men te pordois Au gus tos e dois Cé sa res, ob vi an do as sim aos in con ve ni en tes de sua enorme ex ten são. Di o cle ci a no trans fe riu em cer to mo men to seu gover nopara Nico mé dia, hoje Iznik, na mar gem asiá ti ca da Tur quia. Cons tan tino,po rém, re u ni fi ca ra o Esta do de po is de san gren ta guer ra ci vil. Ao re co -nhe cer a im por tân cia re la ti va men te ma i or e as di fi cul da des cres cen tesdo governo em sua me ta de ori en tal que, além de cul tu ral men te mais ativa,pa re cia mi li tar men te mais ex pos ta, pro cu rou uma so lu ção para a sededo co man do do Impé rio. Sár di ca, Thes sa lô ni ca (Sa lô ni ca) e Tróia fo ramcon si de ra das an tes que a es co lha fi nal men te re ca ís se so bre Bi zân cio,cuja posição e sí tio ex cep ci o na is ti ve ra, com cu i da do, oca sião de exami nardu ran te a luta con tra Li cí nio. A tras la da ção da sede do go ver no im pe ri alcons ti tu ía assim o ca pí tu lo fi nal de uma len ta evo lu ção, pre vis ta meioséculo an tes por Di o cle ci a no. Sem per ce ber que as in va sões ger mâ ni casiam re vi ta li zar o Oci den te e que ali, na Eu ro pa, re si dia em úl ti ma aná li se a he ran ça fu tu ra de Roma, es ses Impe ra do res ilus tres ti ve ram os olhosfi tos no Ori en te. É que vi gi a vam os per sas – a úni ca po tên cia que ja ma is se do bra ra ao do mí nio de Roma – em bo ra ob ser vas sem os go dos cujasvan guar das es ca ra mu ça vam no cur so in fe ri or do Da nú bio. Se é ver da deque a tor men ta ma i or atra ves sa ria o Reno, pa re cia-lhes en tão que o peri goime di a to re si dia nos dois flan cos do bas tião ana to li a no. Além dis so, asme lho res le giões eram re cru ta das na rude Ilí ria, hoje Croá cia e Albâ nia,e suas es qua dras ope ra vam no Mar Ne gro.

O caso de Ra ve na, como o su ces so de fi ni ti vo de Bi zân cio,demons tra que as con di ções da épo ca des ta ca vam a pre pon de rân cia deum novo fa tor na es co lha de sí ti os para as ci da des: a de fe sa! A sor te dascapi ta is me di e va is de pen deu in te i ra men te de suas qua li da des to po gráficas

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fa vo rá ve is à de fe sa – co i sa que não ocor reu em me di da equi va len te naAnti gui da de. Ora, se Cons tan ti no pla teve um des ti no tão bri lhan te é jus -ta men te por que, a es sas prer ro ga ti vas tá ti cas, se jun ta vam as van ta genses tra té gi cas da po si ção ge o grá fi ca. Em Ra ve na e em Cons tan ti no pla, oolho do sol da do é o pa drão exa to na apre ci a ção dos fa to res da mu dan -ça.

A his tó ria de Cons tan ti no pla en che três épo cas, a clás si ca, abi zan tina e a oto ma na. Na pri me i ra, ela é cha ma da Bi zân cio; na segunda,toma o nome do Impe ra dor e, na ter ce i ra, os tur cos cha mam-na deIstam bul (cor rup te la da ex pres são gre ga is tan po lis, “vou à ci da de”. Oque nos in te res sa aqui, es pe ci al men te, é a trans fe rên cia do go ver no im -pe ri al em prin cí pi os do se gun do pe río do men ci o na do pois essa trans fe -rên cia, me lhor tal vez do que qual quer ou tro dos exem plos abor dados no pre sen te tra ba lho, ilus tra a re le vân cia da de ci são so berana que dá exis tên -cia às ca pi ta is.

Fun da da, se gun do a tra di ção, por ma ri nhe i ros de Argus e deMe ga ra sob o co man do de Byzas, acer ca do ano 657 an tes de Cris to, Bi -zân cio deve seu des ti no bri lhan te à mag ní fi ca po si ção que ocupa entre a Eu ro pa e a Ásia, po si ção que es ses an ti gos mer ca do res gre gos não tar -da ram em ob ser var, ena mo ran do-se da be le za e se gu ran ça do local. Diza len da que, an tes de par tir para a vi a gem, Byzas con sul tou o oráculo deDel fos, per gun tan do-lhe onde de ve ria fun dar a nova colônia. A res pos tacríp ti ca “...em face dos ce gos”... – pa re ceu-lhe in com pre en sí vel. Nãoobs tan te par tiu, atra ves sou o He les pon to e a Pro pôn ti da e en con trou,na mar gem asiá ti ca do Bós fo ro, o es ta be le ci men to me ga ri a no de Cal ce -dô nia. A bom bor do, en tre tan to, des co briu uma en se a da mag ní fi ca ain danão uti li za da. E en tão com pre en deu que os ma ri nheiros de Me gara eramre al men te ce gos, pois não ha vi am per ce bi do a si tuação in fi ni ta men temais fa vo rá vel da mar gem eu ro péia, bem em fren te de sua fe i to ria.

No ter ce i ro sé cu lo an tes de Cris to, Po lí bio des cre ve ra a posi ção“como mais fa vo rá vel à se gu ran ça e à pros pe ri da de do que a de qual querou tra ci da de do mun do por nós co nhe ci do”. Do lado de ter ra con tro la -va a pas sa gem da Eu ro pa para a Ásia, no pon to mais exí guo dos Estre i -tos. Essa cir cuns tân cia pos su ía um va lor mi li tar da mais alta rele vân -cia e, na ver da de, a pra ça con se guiu im pe dir ou, pelo menos, difi cul tar o trân si to de exér ci tos in va so res que pro cu ra vam forçar a passa gem de

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um con ti nen te para o ou tro. Do lado do mar, do mi na va o Bós fo ro e oMar de Már ma ra, co man dan do a na ve ga ção do Mar Ne gro. Esse du ploen car go con ce dia a Bi zân cio o pri vi lé gio ex cep ci o nal de poder jo gar comas al ter na ti vas da for ça na val ou da for ça ter res tre, exi gin do de qual querata can te de ci di do a ca pa ci da de de ação nos dois ele men tos, co i sa rara de ob ter. Pou cas ve zes na his tó ria um Esta do go zou de van ta gem igual. Te -mos que che gar à ida de mo der na para en con trar, com a Espa nha, o Ja -pão e os Esta dos Uni dos da Amé ri ca, exem plos de po tên ci as que fo ramigual men te for mi dá ve is em ter ra e no mar.

Po de ria pa re cer, qui çá, no âm bi to con si de rá vel da so ci e da deme di ter râ nea abar ca da pelo Impé rio Ro ma no, que o sí tio de Bi zân cio se fi xa ra em po si ção ge o grá fi ca pe ri fé ri ca. Cer to, a Itá lia e a Gré cia erammais cen tra is mas o re la ti vo afas ta men to do Bós fo ro se acha va lar ga -men te com pen sa do pe las fa ci li da des de co mu ni ca ção de que dis pu nhacom o Mar Egeu, a Eu ro pa ori en tal e os Bal cãs atra vés da Trá cia, a Ásiaoci den tal, a Armê nia e o Cáu ca so atra vés do pla nal to da Ana tó lia, e aspla nícies da Rús sia me ri di o nal atra vés do Mar Ne gro. Na po leão, em Tilsit,cha má-la-ia a cha ve da Eu ro pa. O hin ter land de Bi zân cio es ten der-se-iaaté as es te pes do Don, do Vol ga e do Dni e per, exer cen do uma influên ciapo lí ti ca, eco nô mi ca e cul tu ral so bre a re ta guar da dos bár ba ros. Issocom por ta va ain da uma van ta gem es tra té gi ca su ple men tar pois per mi tiaexecu tar vas tas ma no bras de en vol vi men to con tra seus ini mi gos, pro ce den tes quer da Rús sia, quer da Ásia Me nor. Foi tam bém gra ças a essa po si ção quede sempenhou um pa pel tão sa li en te na co lo ni za ção dos ter ri tó ri os eslavose, sem dú vi da, não hou ves se exis ti do o Impé rio bi zan ti no, as pla ní ciesrus sas não seriam hoje eu ro péi as. Os rios que de sem bo cam no Mar Negro ser vi ram de vias de pe ne tra ção para a cul tu ra gre co-ortodoxa nes sasplanuras in fi ni tas que nun ca per de ram seu ca rá ter de ves tí bu lo donoma dis mo cen tro-asiático.

As con di ções lo ca is de de fe sa do por to eram igual menteincom pa rá ve is. “O mar”, es cre veu Pro có pio, o cro nis ta de Jus ti ni a no,“cin ge a ci da de, de i xan do à ter ra ape nas uma nes ga que ser ve de nó àgri nal da”. A pe nín su la pon te a gu da é pro te gi da, de um lado, pelo Mar de Már ma ra (Pro pon tis) e, do ou tro, pelo Cor no de Ouro, apre sen tan doape nas uma fren te a qual quer si ti an te even tu al. Essa fren te oci den talnão tar dou em ser for ti fi ca da com mu ra lhas que se tor na ram as mais

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con si de ráveis obras de de fe sa até en tão exis ten tes. Ale xan dre Van Milligenconclui com mu i ta ra zão: “A Na tu re za não pou pa ao ho mem a obriga çãode ser bra vo e in te li gen te; mas, na ma ra vi lho sa con fi gu ra ção de ter ra emar ao re dor de Cons tan ti no pla, a na tu re za tudo fez para per mitir àcora gem e ha bi li da de do ho mem ali es ta be le cer o es plên di do tro no deum gran de Impé rio”.

Vale re pe tir: Bi zân cio com bi na va de ma ne i ra es tu pen da ojogo da de fe sa ter res tre e da de fe sa ma rí ti ma. Si ti a da do lado da Trá cia,po dia abas te cer-se por mar. Blo que a da por es qua dras ini mi gas, re cor riaàs suas co mu ni ca ções ter res tres. Ata ca da pela Eu ro pa, a pas sa gem doBós foro ga ran tia-lhe as vias de aces so por onde che ga vam os su primen tospro ce den tes da Ásia. Agre di da por ad ver sá ri os asiá ti cos, es ses ti nhamque atra ves sar, pri me i ra men te, o fos so na tu ral do Estre i to e con tor nar o Cor no de Ouro para che gar ao pé de suas mu ra lhas. Gu ar diã da cha vedos Estre i tos, bas tião da pas sa gem en tre dois mun dos, re sis tiu du ran temais de mil anos aos ata ques de go dos, hu nos, áva ros, búl ga ros, per sas,rus sos, ára bes e tur cos. Esta do da Ida de Mé dia, como o de fi ne Ramba ud, “co lo ca do so bre as fron te i ras ex tre mas da Eu ro pa e nos con fins da bar -ba ria”, a ca pi tal caiu uma vez, sob o im pac to cri mi no so da Qu ar ta Cru -za da e, já ago ni zan te, foi le va da em 1453 por Meh met Fa tih, o Con quis -tador. Mas sob a pro te ção de suas mu ra lhas, do fogo gre guês e da VirgemSan tís si ma, que fun ção ad mi rá vel exer ceu, em be ne fí cio da ci vi li za ção,du ran te os sé cu los em que o Ve lho Mun do, da Espa nha até a China,esta va sen do sub mer gi do pe las gran des mi gra ções de po vos!

Em no vem bro do ano 324 de Nos so Se nhor, Cons tan ti nocon du ziu seus con se lhe i ros, sa cer do tes e en ge nhe i ros para pro ce der aole van ta men to das co li nas que cer ca vam a aglo me ra ção e que, como emRoma, fo ram con ta das em nú me ro de sete. Ani ma do, con for me se di zia, pela ins pi ra ção di vi na: “Avan ça rei até que Ele, o Deus in vi sí vel que mecon duz, jul gue opor tu no de ter-se”. O Impe ra dor to mou um in te res sepes so al no tra ça do da me tró po le e suas pro por ções pa re ce ram aos con -tem po râ ne os tão gi gan tes cas que lhes en cheu de es tu por in cré du lo.Entre tan to, me nos de cem anos de po is, já os li mi tes da ci da de se ha vi am tor na do tão mo des tos – ex tra va san do os su búr bi os por toda par te – que o Impe ra dor Te o dó sio re sol veu au men tar-lhe o âm bi to com cons tru çãode no vas mu ra lhas. Essas cons ti tu em ain da hoje os li mi tes da ci dade

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anti ga; mas a Istam bul mo der na cres ceu so bre tu do do lado de Gá la ta,no ba ir ro es tran ge i ro, isto é, na mar gem oci den tal do Cor no de Ouro.

No dia 11 de maio de 330, Cons tan ti no ina u gu rou a ca pi talque de di cou à Vir gem e ba ti zou com o tí tu lo de Nova Roma, Nea Rome,para in di car-lhe a alta dig ni da de. Antes mes mo de sua mor te, po rém, jáera co nhe ci da pelo nome de Ci da de de Cons tan ti no. Em Cons tanti no pla,o Impe ra dor pro cu rou re pro du zir as ce ri mô ni as de con sa gra ção que,segun do Plu tar co, te ri am sido re a li za das por Rô mu lo ao fun dar Roma.A atri bu i ção de va lor re li gi o so ao ato que foi mar ca do por sa cri fí ci os,fes ti vi da des e ce ri mô ni as de vá ri as es pé ci es, pa gãs e cris tãs, obe de cia auma prá ti ca ge ne ra li za da que se per de na no i te dos tem pos. Ela ain daper ma ne ce hoje, aliás, na ce ri mô nia ca tó li ca da bên ção. O pró prio atode abrir um fos so, com um ara do, para as si na lar os li mi tes da fu tu raaglo me ra ção, é ob ser va do em re giões as mais dis tan tes e pos sui ori gensmito ló gi cas. Nes sa so le ni da de de sen ti do má gi co-religioso, o Fun da dorpro curou re pro du zir um ato cri a dor, como se fora exe cu tan te da vonta dedi vi na. Fez-se acom pa nhar pelo fi ló so fo So pa ter, que de sem pe nhou opa pel de te les tes, isto é, le vou a cabo cer tas ações sim bó li cas des ti na das apre ser var a sor te da me tró po le, e pelo hi e ro fan te Pra e tex ta tus que, si mi -lar men te, ce le brou ri tu a is eso té ri cos. Cons tan ti no abriu en tão a ter racomo que para de po si tar a se men te que fru ti fi ca ria ma ra vi lho sa men tenum or ga nis mo ur ba no.

Mas além de Rô mu lo, o Impe ra dor pa re cia ins pi rar-se em outrosele mentos mi to ló gi cos. Jú lio Cé sar tam bém me di ta ra trans fe rir o gover no,como im por tan te ele men to de gran de es tra té gia em sua pro je ta da guer ra con tra os par tas (guer ra que os idos de mar ço fa ri am abor tar). Pen sa raem Tróia por que essa ci da de era par ti cu lar men te ve ne ra da pe los ro ma -nos que se con si de ra vam des cen den tes de Enéas. O sen ti do de re tor nosen ti mental à len dá ria Mãe-Pátria é sim bo li za do pelo ato de Constan ti no,ao tra zer de Roma o fa bu lo so Pal la di um, fe ti che que, se gun do a tradi ção,fora sal vo por Enéas da Tróia in cen di a da. Ora, se o pro je to de Cé sar e a me mó ria de Tróia cons ti tu íam su ges tões para a mu dan ça, do do mí nioda fan ta sia, exis tia um pre ce den te real no in ten to de Mar co Antô nio dees ta be le cer no Ori en te, em Ale xan dria, um po der ro ma no ali a do doEgi to e ri val da pró pria Roma. A mu dan ça da ca pi tal não sig ni fi ca va por isso um re pú dio, mas o for ta le ci men to do Impé rio. Roma ape nas muda va

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de sede, o Impé rio per ma ne cia. O la tim con ti nu ou e con ti nu a ria ain dapor mu i to tem po sen do a lín gua ofi ci al. Os ha bi tan tes con ser va vam otítu lo in ve ja do de Ro ma nos (an tes do que Gra i koi) e a re gião da Trá ciaado tou mes mo o nome de Ro ma nia ou Ru me lia. Os tur cos, mais tar de,lu tariam con tra Rum e, quan do a ci da de caiu sob o do mí nio oto ma no,o Sul tão se or gu lha ria de guar dar en tre seus inú me ros tí tu los o deKaisar-i-Rum, como para in di car a con ti nu i da de de uma so be ra nia que se pren dia à gló ria imor tal de Cé sar...

A trans fe rên cia da ca pi tal do Impé rio to mou um sen ti do dere no va ção, de re cu pe ra ção sob o signo da Cruz. Após um lon go períodode anar quia e guer ra ci vil, en quan to pa i ra va so bre o mun do a som briaimi nên cia das gran des in va sões, o povo sen tiu pro fun da men te o atocomo de o iní cio de uma ida de nova, a vol ta ao sí tio de Tróia sob a formade uma re a li za ção ime di a ta da Ci da de de Deus! Com ple ta va-se as sim aobra que Cons tan ti no ini ci a ra cin co anos an tes, em ín ti ma re la ção como su ces so fi nal do Cris ti a nis mo. A an ti ga me tró po le da loba acha va-sede ma si a damen te com pro me ti da, na men te do Impe ra dor, com os de u sesdo pa ga nis mo cujo es que ci men to rá pi do de se ja va pro mo ver. O Bis po de Roma ain da não fir ma ra sua pri ma zia nos ne gó ci os da Igre ja. O Se na doro ma no con ti nu a va sen do um dos ba lu ar tes da re a ção re li gi o sa, di fí cil de do minar sem re cur so à vi o lên cia, ao pas so que a ple be da ca pi tal,irrequi e ta, mi se rá vel, oci o sa e fa cil men te su ges ti o ná vel, es ta va sem prepron ta para ali men tar as am bi ções mi li ta res, ge ra do ras de in ter mi ná ve isguer ras ci vis. Urgia en con trar em ou tro lo cal a so lu ção dos com ple xospro ble mas com que se de fron ta va o Impé rio en fra que ci do. Cons tan tino pla são mil anos de so bre vi vên cia para um Esta do que, no sé cu lo quar to,pa re cia con de na do a fa tal ago nia.

Diz a len da que Deus apa re ce ra ao Cé sar cris tão, en quan todor mia, para dis su a di-lo de Tróia e in di car-lhe em so nho o sí tio da novame tró po le. O dedo de Deus nes sa obra é sin to má ti co do sen ti do damu dan ça da ca pi tal pois, como es cre ve A. Ba illy, os dois gran des acon te -ci men tos do re i na do são ab so lu ta men te so li dá ri os: “Cons tan ti no pla,cida de de Cons tan ti no, subs ti tui do ra van te Roma, ci da de de Rô mu lo eRemo”. O tri un fo do Cris ti a nis mo com a con ver são do Impe ra dor, afor mulação da or to do xia no Con cí lio de Ni céa e a re u ni fi ca ção do Estadopor aque le que foi um de seus ma i o res so be ra nos re pre sen ta vam

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aconte ci men tos dig nos de se rem so le ni za dos com a con sa gra ção daNova Roma em fes tas im po nen tes que du ra ram qua tro dias.

A con ver são ao cris ti a nis mo do Impe ra dor ia mu dar o sen ti do da luta que o Impé rio tra va va con tra seus ini mi gos, nas fron te i ras portoda a par te ame a ça das. No oci den te, os bár ba ros rom pe ri am as de fe sase inun da ri am as Gá li as, a Bre ta nha, a Espa nha e a Itá lia – mas os bár ba -ros, ape sar de he re ges ari a nos, eram cris tãos e, nes se sen ti do, her de i rospo ten ci a is da Roma con ver sa. Na Ásia, po rém, os ini mi gos de sa fi a vam o pró prio es pí ri to da ci vi li za ção oci den tal. O Cris ti a nis mo da ria as sim àluta mi le nar do he le nis mo con tra o ori en te um sen ti do mís ti co, ca rac te -rís ti co da Ida de Mé dia. Isso jus ta men te quan do a Pér sia sas sa ni da, sob o re i na do de Chah pur II, for ta le cia a sua fé zo ro as tri a na. E ao re cu pe rarmais tar de para a Ásia os ter ri tó ri os que Ale xan dre ar re ba ta ra e Romaor ga ni za ra, nada mais fa ria o Islã do que agra var e sa li en tar o ca rá terim pla cá vel da luta re li gi o sa en tre os dois mun dos: de um lado a Cru za da e do ou tro a Dji had, a “guer ra san ta”. Cons tan ti no pla não é ape nas anova capital do he le nis mo, é o co ra ção da or to do xia cris tã que luta con tra o in fi el asiá ti co. Cons tan ti no pla é o pal co des sa fe cun da união en tre ocris tianis mo e o Impé rio, des ti na da a plas mar to dos os as pec tos da nossaci vi li za ção.

Entre tan to, se num sen ti do a Bi zân cio cris tã se tor na ria asenti ne la do he le nis mo em face da re a ção asiá ti ca, há ou tro as pec to mais gra ve da trans for ma ção do Impé rio que deve ser re gis tra do pois en cer ra con se qüên ci as his tó ri cas re le van tís si mas. Num am bi en te de fa us to, deeti que ta e pom pa com pli ca da são lan ça das em Cons tan ti no pla as ba sesdo que foi cha ma do o ce sa ro-papismo, isto é, o do mí nio da Igre ja pelaau to ri da de tem po ral do Impe ra dor. Bi zân cio cons ti tui uma ori en ta lização do he le nis mo. É um rom pi men to com o oci den te la ti no, rom pi men toque se vai agra van do com o cor rer da Ida de Mé dia. Even tu al men te, aso ci e da de gre co-ortodoxa do mi na ria o mun do es la vo, ab sor ven doelemen tos asiá ti cos e cri an do uma di vi são apa ren te men te ir re con ci liá velque está na ori gem da mo der na opo si ção da Rús sia ao mun do oci den tal. No ter re no po lí ti co o fe nô me no é evi den te: des de Di o cle ci a no: a ori en -ta li za cão de Roma in va de o Ce sa ris mo e seu de sen vol vi men to ló gi co é o ab so lu tis mo de es sên cia di vi na – a te o mo nar quia, plas ma da no mo de lodo Irã aque me ni da e sas sa ni da.

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Essa evo lu ção, aliás, que já se fi ze ra pres sen tir nos úl ti mos anosda vida de Alexan dre cuja “di vi ni za ção” tan to ofen dia os sen ti men tosdemo crá ti cos de gre gos e ma ce dô ni os, acen tua-se nas cor tes dos diá do cos,na aven tu ra egíp cia de Mar co Antô nio e na li qui da ção pro gres si va das ins ti -tu i ções re pu bli ca nas e das an ti gas li ber da des ro ma nas. Do ra van te, o Impe -ra dor que, em Bi zân cio, será Ba si le us e Pan to cra tor, trans for ma-se em umído lo ro de a do de luxo asiá ti co e de res pe i to sub ser vi en te, no fun do do“Palá cio Sa gra do”. Cons tan ti no pla é o fim da fic ção re pu bli ca na queAugus to jul ga ra pru den te con ser var; é o tri un fo da bu ro cra cia cen trali za do rae do des po tis mo ab so lu tis ta de cu nho ori en tal que ia do mi nar toda a Ida deMé dia, esse des po tis mo de que a Eu ro pa a mu i to cus to se con se gui riadesvenci lhar gra ças à Igre ja Ca tó li ca, aos es for ços da bur gue sia e ao própriosis te ma pi ra mi dal do fe u da lis mo ger mâ ni co.

“O de se jo de cons tru ir”, es cre ve Ja cob Burc khardt, “um dosmais for tes na na tu re za dos prín ci pes po de ro sos, tor nou-se em Cons -tantino uma pa i xão do mi nan te. Não pode ha ver si nal ex ter no mais sóli dode po der do que edi fí ci os de ca rá ter im pres si o nan te. Além dis so, a cons -tru ção por si pró pria, execu ta da com re cur sos ma ci ços, for ne ce umaseme lhan ça do go ver no cri a dor e, em tem po de paz, um subs ti tu ti vopara ou tras ati vi da des. Para seu fun da dor uma nova ci da de ser ve comoima gem e pa drão de um novo mun do”.

“Obe di en te ao co man do de Deus”, Cons tan ti no fez tra ba lhar em Bi zân cio qua ren ta mil sol da dos go dos e, para em be le zá-la, não he si -tou em ina u gu rar um sis te ma que seus su ces so res acha ri am con ve ni en teimi tar: de todo o ori en te e do oci den te, de Roma, de Ale xan dria, Ate nas, Éfe so e uma cen te na de ou tras ci da des, che ga ram co lu nas de már mo re e de pór fi ro, fon tes e pór ti cos, es tá tu as, obe lis cos, ca pi téis, ob je tos detoda es pé cie, o Apo lo de Smint hia, a Hera de Sa mia, o Zeus de Do do na, a Pa las de Lin dos, des po ja dos dos tem plos pa gãos, pi lha dos de an ti gospa lá ci os, es co lhi dos en tre as mais fa mo sas obras da an ti gui da de, tudopara adornar e en ri que cer a Nova Roma. Um caso tí pi co foi o dos cavalosde bronze, pro ce den tes de Éfe so, que ador na ram o es tá dio, fo ram levadospara Ve ne za, e hoje se en con tram aci ma da en tra da da ca te dral de SãoMar cos e, por al gum tem po, en ci ma ram o Arco de Tri un fo do Car rossel,edi fi ca do por Na po leão. São Je rô ni mo es cre via: “Cons tan ti no pla foide di ca da, en quan to qua se to das as ou tras ci da des fo ram des nu da das”.

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Te o dó sio, Jus ti ni a no e mu i tos ou tros Ba si le is agre ga ram no vos mo nu -men tos, pa lá ci os e igre jas até trans for mar Cons tan ti no pla na mais rica,na ma i or e mais bela ci da de do mun do. Che gan do di an te das mu ra lhas a 23 de ju nho de 1203 e con tem plan do pela pri me i ra vez o per fil in com -pa rá vel da me tró po le de so nho, Vil le har dou in, o cro nis ta das Cru za das,não pôde con ter a ex cla ma ção que tão bem ex pri me a nos sa sur pre saquan do, ain da hoje, de pa ra mos com a ci da de ao pro ce der do Mar deMár ma ra: “Sã chez qu’il n’y eut un hom me si har di à qui la cha ir ne fré mit!”.

Pou cos anos de po is de fun da da, Cons tan ti no pla já con ta va comuns cin qüen ta mil ha bi tan tes. Te ria cem mil no fim do sé cu lo e, cem anosmais tar de, na era de Jus ti ni a no, al can ça ria o mi lhão. Po pu la ção cos mo po li ta e ati va onde a lín gua e os cos tu mes gre gos não tar da ram em so bre pujar ainfluên cia la ti na; uma imen sa bu ro cra cia, ali cer ce do Impé rio; a aris to cra ciase na to ri al e la ti fun diá ria; os ri cos co mer ci an tes que con tro la vam o co mér ciodo Pon to Eu xi no e se en ri que ci am com a im por ta ção dos pro du tos de todoo Me di ter râ neo, exer cen do uma in fluên cia cres cen te nos des ti nos da ci da de; a ple be imen sa do ar te sa na to e do tra ba lho li vre; e a mas sa dos es cra vos.

A ponta da pe nín su la era ocu pa da pela Acró po le da an ti gaBizâncio (so bre essa co li na do mi na hoje o Pa lá cio de Top-Kapu, aSubli me-Porta, re si dên cia dos Sul tões oto ma nos). So bre a se gun da colina,um pou co mais para den tro da pe nín su la, Cons tan ti no edi fi cou seuforum, em es ti lo clás si co: en tra da por Arcos de Tri un fo, pór ti co comestatuária de már mo re, co lu na de pór fi ro para ser vir de base a uma estátuade Apo lo no cen tro da pra ça, e um Se na do na face nor te. Do Foro parales te abria-se uma lar ga ave ni da, a Mese ou Ave ni da Me di a na, que conduziaao Foro da Au gus ta ou Au gus te um (em ho me na gem a San ta He le na, mãedo Impe ra dor). So bre essa pra ça, que ain da hoje exis te, se ele va va apri me i ra ba sí li ca de San ta So fia. Ao sul da mes ma, o Pa lá cio Sa grado,residên cia im pe ri al. A oes te, o Hi pó dro mo. Hi pó dro mo e Fo rum Au gusteumeram e con ti nu am sen do, du ran te a épo ca bi zan ti na, o ver da de i ro cen tro da me tró po le. Por toda a ci da de e dos dois la dos da Via Tri un fal que seestendia para oes te até al can çar as mu ra lhas, fo ram ra pi da men te construí dosos pa lá ci os im pe riais, os pór ti cos e os jar dins que eram ver da de i rosmuseus da es cul tu ra gre co-romana, os enor mes ba nhos pú bli cos segun do a tra di ção so ci al de Roma, as man sões se nho ri a is, as igre jas cada vezmais ri cas e or na men ta das, os con ven tos, as ca sas de di ver sões, os aque dutos

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e cis ter nas, os ba za res e o imen so e con ges ti o na do la bi rin to de ruas eala me das, numa con fu são ti pi ca men te me di e val e cer ta men te pi to res ca.Des sa épo ca, três mo nu men tos ape nas so bre vi vem na ín te gra e ne nhum de les é da épo ca de Cons tan ti no: são o aque du to de Va lens, as mu ra lhas de Teodó sio e a igre ja de San ta So fia, de Jus ti ni a no. Qu an to ao Hi pódromo,so bram ape nas al guns de seus ele men tos de co ra ti vos, en tre San ta So fia e a Mes qui ta Azul.

O Hi pó dro mo trans for mou-se no ver da de i ro cen tro po lí ti coda ci da de – de sem pe nhan do o pa pel do Foro em Roma e da Ágo ra emAte nas. Aí de ci diu-se a sor te do Impé rio em mu i tas oca siões de ci si vas,como du ran te a re be lião Nika que ame a çou o re i na do de Jus ti ni a no. Oaque du to de Va lens e as gran des cis ter nas são obras in te res san tes quenos ofere cem um exem plo cu ri o so da téc ni ca en tão exi gi da para abas tecerde água uma ci da de de tal im por tân cia. O vi a du to ia dar a um sis te ma de cis ter nas co bertas. Uma de las, obra de Jus ti ni a no, é ain da co nhe ci dapelos turcos pelo nome de Bin-bir-derek, uma alu são às “mil e uma co lu nas”sobre as qua is su pos ta men te se er guia: na re a li da de pou co mais dedu zen tas po dem ser hoje con ta das. Ou tra cis ter na, cons tru í da sob 336pi la res de már mo re, as se me lha-se a um enor me lago sub ter râ neo noqual se pode tra fe gar de bar co. É cu ri o so no tar que es sas mag ní fi cases tru tu ras gra ças às qua is Cons tan ti no pla re sis tiu a lon gos sí ti os semsofrer da sede, fo ram es que ci das du ran te mais de tre zen tos anos, suaexis tên cia mes ma des co nhe ci da dos tur cos. O aque du to e as cis ter nasrevelam, mais do que qual quer ou tra obra, o grau de adi an ta men totécnico al can ça do pe los en ge nhe i ros da épo ca pois, aos co nhe ci men tostradici o na is dos ro ma nos, mes tres em tra ba lhos des sa na tu re za, se juntaram as con si de ra ções de de fe sas pró pri as do ur ba nis mo me di e val.

A Igre ja de San ta So fia, que se tor nou mes qui ta após a con -quis ta de Cons tan ti no pla pe los tur cos e é hoje um mu seu, cons ti tu iunão so men te o cen tro da vida re li gi o sa da me tró po le mas tam bém umadas mais for mi dá ve is obras ar qui te tô ni cas ja ma is re a li za das. Tra ta-se daobra-prima da arte bi zan ti na. A ba sí li ca ori gi nal, con ce bi da por Constan ti nono momen to de de di car sua nova ca pi tal, foi edi fi ca da em es ca la magní fi cae pro por ci o nal ao ta ma nho da me tró po le, sen do aliás uma das pri me i ras es tru tu ras le van ta das es pe ci al men te para o novo cul to. O Impe ra dorconsagrou-a à “Eter na e San ta Sa be do ria de Deus”, tal como se manifestava

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em seu Fi lho: daí o nome Aya Sop hia, San ta Sa be do ria. Essa igreja não so -bre vi veu e cou be a Jus ti ni a no co ro ar seu re i na do – tão mar can te na es ta -bi li za ção do po der e da cul tu ra bi zan ti nas – com a cons tru ção da atu albasí li ca, o mais per fe i to e es plên di do mo nu men to do Ba i xo Império.Diz-se que, ao nela en trar pela pri me i ra vez, ex cla mou Jus ti ni a no comoque ater ra do pela pró pria obra: “Ven ci-te, ó Sa lo mão!” Seu as pec toexter no nada re ve la de es pe ci al e dá mes mo a im pres são, bem des cri tapor um vi a jan te fran cês, de ser “fu ri e u se ment lour de en de hors”. É o in te ri or,e es pe ci al men te a cú pu la, que co mo ve o vi si tan te. Afir ma va Pro có pio, ocronista con tem po râ neo, que “ela bri lha de uma cla ri da de tão pro di giosaque, dir-se-ia, em vez de ilu mi na da pe los ra i os do sol, guar da em si afon te de toda a luz”.

Que es pe tá cu lo su bli me deve ter sido uma ce ri mô nia re li gi o sa na basí li ca de Jus ti ni a no! A ima gi na ção pro cu ra vi su a li zar a alma deBizân cio, de ba i xo da abó ba da da Sa be do ria Di vi na. O Ba si le us por fi ro -gêneta, pan to cra ta, co ber to de ouro e pe dras pre ci o sas, ves ti do depúrpura, co ro a do com o di a de ma, acom pa nha do pela Cor te e Sa cer dó -cio – o can to sa cro e o in cen so, a su ti le za te o ló gi ca das lu tas re li gi o sas ea vi o lência das pa i xões po pu la res, a in di zí vel fe ro ci da de das in tri gaspala cianas, a pro fun di da de de uma fé onde o amor dos gre gos pelaes pe cu la ção fi lo só fi ca se mis tu ra va ao pen dor ori en tal pelo mis ti cis mo.Fora, além das es pes sas mu ra lhas pro te to ras, um mun do hos til, bár ba ro, anár qui co, do mi na do pelo es pí ri to do Mal...

Mas a po pu la ção de Cons tan ti no pla pos su ía, mais re a is, ou trasmu ra lhas para pro te gê-la: as Mu ra lhas de Te o dó sio, obra ex tra or di ná ria,sur pre en den te men te con ser va da se le var mos em con ta os ter re mo tos, ade ca dên cia do tem po, o ata que da ve ge ta ção ras te i ra e o bom bar de ioque so freu quan do do as sal to fa tí di co de 1453. Sua his tó ria re fle te apró pria his tó ria mi le nar da ci da de e é de ma si a da men te lon ga para ser con ta da. É uma his tó ria he rói ca, uma his tó ria trá gi ca que ter mi na nama dru ga da de 29 de maio de 1453 quan do, de po is de ter sido ba ti da em bre cha pela ar ti lha ria tur ca, as sis tiu ao ata que su pre mo dos ja ní za ros deMa ho met II, ce deu di an te da por ta de São Ro ma no, foi for ça da por umdesta ca men to ini mi go na po ter na Xylo por ta e, aban do na da pelo co man dante ge no vês Gi us ti a ni ni, gra ve men te fe ri do, con tem plou a luta der ra de i ra de seu úl ti mo he rói, o Impe ra dor Cons tan ti no Dra ga sés Pa le o logo.

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Nas ci da na an ti gui da de clás si ca e con sa gra da como ca pi tal aofi nal des sa mes ma ida de, em con tras te sig ni fi ca ti vo com Ale xan dria, éCons tan tinopla a jóia da cul tu ra bi zan ti na e pa drão de ur ba nis mo, aci dade me di e val por ex ce lên cia e, em todo caso, a ma i or e mais famosa deto das as aglo me ra ções ur ba nas no mi lê nio som brio e mís ti co que se su -ce deu à que da do Impé rio Ro ma no. Ela foi, du ran te es ses sé cu los, a Po -lis das sa u da des gre gas; a “Nova Roma” das nos tal gi as im pe ri a is; a única ci da de ci vi li za da que fi ta vam com pas mo os ru des Cru za dos, re -cém-che ga dos da Eu ro pa; a Tzar grad das fan ta si as mes siâ ni cas es la vas; oQu ar tel-General da Cris tan da de ini mi ga, meta de to das as am bi ções is lâ -mi cas; e a arca abar ro ta da de ri que zas, pre sa co bi ça da de to dos os ban -di dos das es te pes! E se é fa mo sa por sua his tó ria e pe las obras-primascon ser va das em seus mu ros, me re ce tam bém ser es tu da da do pon to devis ta es pe cí fi co do pla ne ja men to ur ba no.

O ur ba nis mo me di e val foi du ran te mu i to tem po con si de ra doine xis ten te ou, pelo me nos, des pre zí vel. A ir re gu la ri da de, o atra van ca men to, as pés si mas con di ções sa ni tá ri as das suas ci da des fo ram apon ta dos comoín di ces con de ná ve is por to dos os ar qui te tos ra ci o na lis tas que se su ce de ramdes de o Re nas ci men to. Só po e tas ro mân ti cos ou tu ris tas à cata de pi to res co en con tra ram ins pi ra ção em suas ru e las tor tu o sas, no zi gue za gue de suases tre i tas ala me das, na es cu ri dão e na bal búr dia de seus ba za res, na si nu o si -da de la bi rín tica de todo o seu es que ma ur ba no. Para os “hu ma nis tas”imbu í dos de cul tu ra clás si ca e en tu si as mo re nas cen tis ta, a ci da de me di e val é uma per fe i ta ex pres são das “tre vas” que, se gun do eles, en co brem a ci vi li za -ção nes sa ida de. Foi em 1889 que, pela pri me i ra vez, um ar qui te to vi e nen se, Ca mil lo Sit te, ou sou pro tes tar con tra tais pre con ce i tos, enal te cen do a be le za das ve lhas ci da des eu ro péi as, tão ma ra vi lho sa men te adap ta das à pa i sa gemque as cer ca va. “E é na tu ral que as sim seja, ar gu men tou, pois fun da men tal -men te as ci da des de vem ins pi rar os sen ti dos hu ma nos do mes mo modocomo a be le za da na tu re za. E já Aris tó te les epi to ma va to dos os prin cí pi osdo ur ba nis mo no pen sa men to mes tre de que as ci da des de vem ser edi fi ca -das para ofe re cer não ape nas pro te ção, mas tam bém fe li ci da de. E paraalcan çar esse ob je ti vo o ur ba nis mo deve ser tan to um pro ble ma de téc nicaquan to uma obra de arte”.

É tam bém de Aris tó te les a ob ser va ção de que o pla no re gu lar e geométri co pode ser mais acon se lhá vel para a sa tis fa ção es té ti ca, “po rém

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pou co prá ti co, do pon to de vis ta da de fe sa”. A opi nião é com par ti lha dapor Xe nop hon tes. Tra du zin do tais con ce i tos em lin gua gem mo der na,de cla ra Sa a ri nen que, em con tras te com nos sa con cep ção “aber ta” doses pa ços, a con cep ção me di e val era “fe cha da”, ten den te a en cla u su rarnum re cin to mu ra do um am bi en te ín ti mo, li mi ta do e se gu ro. Cons tan ti -no pla tra duz exa ta men te essa con cep ção de um ur ba nis mo or gâ ni co,infor mal, cuja ori gem se pren de às ne ces si da des mi li ta res da épo ca.Expli ci ta a cons ciên cia da mal da de es sen ci al do mun do, a or ga ni za çãosocial ba se a da no do mí nio do Se nhor em sua pra ça-forte, e o sen timen tode uma co mu ni da de es pi ri tu al de que a ba sí li ca ou ca te dral é o cen troar qui tetôni co. Em Cons tan ti no pla, to dos es tes ele men tos es tão presen tes. Não obs tan te o gi gan tis mo das pro por ções e a per ma nên cia in dis cu tí vel de fa to res clás si cos, in di ca a so bre vi vên cia de um modo de vida que sólen ta men te foi ce den do di an te da pres são per ma nen te do bar ba ris mocir cun dan te. A Idéia Do mi nan te de de fe sa con tra ata ques ex ter nos, asmu ra lhas ci cló pi cas que ex pri mem essa pre o cu pa ção, a ex tre ma ir re gu la -ri da de do tra ça do ur ba no que é con se qüên cia da es tre i te za e do “fe cha -men to” do es pa ço dis po ní vel, a uni da de de es ti lo de vida re fle tin do-sena cor re la ção dos edi fí ci os den tro do es que ma ge ral da aglo me ra ção, ain for ma li da de dos pla nos ar qui te tô ni cos re sul tan te da au sên cia de umamen ta li da de ra ci o na lis ta ou di ri gi da para o mun do tem po ral, e a pre do -mi nân cia do es pí ri to re li gi o so que ani ma a ci da de e se ex pri me no do mí -nio im po nen te de So fia so bre o per fil ur ba no – tudo isso re pre sen tauma evo lu ção tí pi ca e pa ra le la a de ou tras aglo me ra ções da Eu ro pa me di e val.

Conside ra da fun da men tal por La ve dan, so bre le va em Cons tan -ti no pla a pre o cu pa ção pu ra men te me di e val de de fe sa. Aris tó te les dis se“não é o muro que faz a ci da de”. Entre tan to, na ci da de me di e val e par ti -cu lar men te em Cons tan ti no pla, o muro é o fa tor pri má rio do pla ne ja -men to ur ba nís ti co. A base des se ur ba nis mo é ine ga vel men te o re fle xode de fesa, o ins tin to de so bre vi vên cia que pro cu ra re a li zar seus fins pelosmu ros de pe dra, os fos sos e as tá ti cas da luta de fen si va. A emo ção quese sen te de trás das mu ra lhas pos sui pro fun das ra í zes psi co ló gi cas epren de-se, em úl ti ma aná li se, ao sen ti men to de pri va ci da de e se gu ran çana casa pro te to ra (“my home is my cas tle”), do ani mal em seu va lha cou to e da cri an ça nos bra ços ma ter nos. Por esse mo ti vo tam bém, o re le vo, a

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to po gra fia, a pa i sa gem, a na tu re za pre si dem ao cres ci men to e à con fi gu -ra cão das ci da des me di e va is.

Uma at mos fe ra de be le za ve ne rá vel pa i ra so bre a ve lha Istam bul,em con tras te com o gos to du vi do so, que do mi na a ci da de nova, do lado deGá la ta, Pera e Ták sim. O olhar ma gis tral de Cons tan ti no sou be cer ta men tees co lher o sí tio ide al da sua nova ca pi tal. No cor rer do presen te es tu dovamos exa mi nar mu i tos ca sos de lo ca li za ção pre nhe de con se qüên ci as paraas na ções in te res sa das, ne nhum po rém que se com pa re ao de Bi zân cio. Aocon trá rio do que pos sam ar gu men tar os crí ti cos das ca pi ta is cha ma das “ar ti fi -ci a is”, não é por ven tu ra fato in con tes tá vel que a de ci são so be ra na de Cons -tan ti no de ter minou o des ti no do Impé rio bi zan ti no em sua lon ga, rica etrágica his tó ria? Quem nos po de rá ci tar exem plo igual, em ou tra épo ca eou tro lu gar? Nes te caso, bem pode di zer-se que a sa be do ria da es co lha cons -ti tu iu a pró pria con di ção da so bre vi vên cia do Esta do. Pois quan tas ve zes osmuros de Cons tan ti no pla fo ram as su pre mas bar re i ras do Impé rio, osúlti mos ba lu ar tes da ci vi li za ção di an te das in ves ti das avas sa la do ras dos bár ba -ros? A ca pi tal como que se so bre põe aqui e con di ci o na a sor te do Esta do,mas num sen ti do bem mais sig ni fi ca ti vo do que nas Ci da des-Estado daépoca clás si ca. No caso de Bi zân cio, o novo nú cleo do Esta do foi ar ti fi ci al -men te as si na la do por um gol pe de gê nio po lí ti co e a es co lha é cla ra men te oele men to es sen ci al no de sen vol vi men to pos te ri or do Esta do. O ato ins pi ra do de alta po lí ti ca que pre si de à fun da ção de Cons tan ti no pla como que seprojeta sobre o fu tu ro, com um po der qua se mi la gro so, de ter mi nan do ocur so da his tó ria do Oci den te du ran te o cor rer da Ida de Mé dia. Mais do queuma vi tó ria mi li tar, um re tum ban te putsch, uma re vo lu ção ou uma fe lizsu ces são di nás ti ca, a vi são geni al de Cons tan ti no, ao de sem bar car no Cor no de Ouro, pa re ce cons ti tu ir um des ses mo men tos de ci si vos da his tó ria, aculmi nân cia de uma épo ca e a con cep ção de ou tra!

Re pe ti mos, não é pos sí vel, sal vo no ter re no in te i ra mentediver so da re li gião e do pen sa men to fi lo só fi co, ci tar exem plo igual emque o ato de um só ho mem teve con se qüên ci as tão re le van tes na vidados po vos. E nes se sen ti do a fun da ção de Cons tan ti no pla re fle te o atopa ra le lo da con ver são do Impe ra dor, para mar ca rem am bos a data pre ci saem que ter mi na a Ida de Anti ga e se ini cia a Eu ro pa.

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Ca be ça co los sal de Cons tan ti no, no Pa laz zo dei Con ser va to ri, em Roma (ca. 330 de nos sa era)

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VBe id jing (Pe king)

e o Urba nis mo Chi nês

Na lon ga his tó ria da Chi na, mu i tas ci da des ser vi ram desede ao Tro no Impe ri al – al gu mas, ca pi ta is efê me ras de di nas ti as bárbarasou de go ver nos fu gi ti vos; ou tras, ca pi ta is de pro vín ci as e até hoje aglo -me ra ções im por tan tes; en tre to das, po rém, avul ta Be id jing (na novatrans cri ção fo né ti ca do chi nês), a ilus tre Pe king, tal vez a mais ex tra or di -ná ria das ci da des do Ori en te, a me tró po le onde se con cen tram e se re -fle tem os as pec tos mul ti for mes de uma ci vi li za ção mi le nar.

O fas tí gio ou o de clí nio e a mu dan ça das capitais da Chi naresul ta ram das vi cis si tu des da vida do Impé rio Cen tral. As mu dançasresul ta ram, so bre tu do, da ca rac te rís ti ca ten são exis ten te en tre o nor te eo sul, con se qüên cia não ape nas das di fe ren ças na tu ra is en tre as duasgran des re giões ge o grá fi cas se pa ra das pelo rio Yang Tse, mas tam bémdo fe nô me no cí cli co de in va sões e re vo lu ções di nás ti cas que cons ti tui apró pria tra ma da sua his tó ria. O vale do rio Ama re lo e de seu aflu en te oWei, na par te se ten tri o nal do país, é o ber ço da ci vi li za ção e o mais anti goha bitat do que, na épo ca pré-histórica, se pode ver da de i ra men te denomi naro povo chi nês. A ca pi tal des sa Chi na pri mi ti va lo ca li za va-se no sí tioatual de Anyang onde fo ram des co ber tas va li o sas re lí qui as arqueo ló gi cas.

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A se gun da di nas tia, Chou (1050 a 256 an tes de Cris to), du ran te o reina do da qual sa í mos da len da e en tra mos na his tó ria, é fa mo sa pe los seus grandesfi ló so fos, Con fu ci us (Kung Fu Tsé), Lao-Tsé e Men ci us (Meng Tzé). Ascidades de Sian e Lo yang fo ram suas ca pi ta is, após o que o paísatraves sou um lon go pe río do de anar quia fe u dal, co nhe ci do como o dos “Re i nos Com ba ten tes”, ter mi nan do com o Impé rio de Chin ou Kin Xih Hu ang-di. O “Pri me i ro Impe ra dor”, ti ra no cru el e uni fi ca dor da Chi na é o cons tru tor da Gran de Mu ra lha des ti na da a pro te ger o Impé rio con traas in cur sões dos bár ba ros da Mon gó lia e Man chú ria, e sua imensa ca pi talse de no mi na va Hsi an Yang. Logo a se guir a lon ga e glo ri o sa dinas tiaHan (206 an tes de Cris to a 220 de po is) es ta be le ce seu tro no nas ci da desde Tchang Nhan e Lo yang que ain da pros pe ram sob a di nas tia Tang (sé -cu los sé ti mo a dé ci mo). Mas, du ran te es ses mi lê ni os, o País Cen tral es -ten deu-se em to das as di re ções ao pas so que, nos pe río dos de de sin te -gra ção ou frag men ta ção, ou tras ci da des sur gi ram como ca pi ta is se cun -dá ri as. Aos pou cos o vale do rio Ama re lo per deu o pre do mí nio po lí ti coex clu si vo em vir tu de de dois fe nô me nos re le van tes que ten di am aalargar cons tan te men te a área da ci vi li za ção chi ne sa: em pri me i ro lu gar, asin va sões dos bár ba ros do nor te que, como con tra gol pe, ab sor vi am acul tu ra su pe ri or dos se den tá ri os, pro vo can do a ex ten são do ter ri tó riono mi nal men te de pen den te do Impé rio; e, em se gun do lu gar, ao sul, aco loniza ção de tri bos pri mi ti vas, de raça me ri di o nal, que di la ta va ainfluên cia chi ne sa so bre as re giões de ma tas e flo res tas das atu a ispro vín ci as de Can tão e Kwang si. Já no apo geu da di nas tia Tang a Chi nado mi na va cul tu ral men te todo o Extre mo-Oriente, in clu si ve o Ja pão, aCo réia, a Man chú ria, a Mon gó lia, o Tur ques tão, o Ti bet, a Ta i lân dia e aIndo chi na – Vi et nam, Laos e Cam bo ja.

A di vi são Nor te/Sul é ca rac te ri za da pelo rio Yang Tse: aonor te o do mí nio do tri go, ao sul o do ar roz. Di fe ren ças lin guís ti casacen tu am os con tras tes, em bo ra seja hoje ofi ci al a lín gua de Be id jing, oMan da rim. Pe que nas di fe ren ças ét ni cas igual men te po dem ser no ta das.Mas, à es ta bi li da de no tá vel de uma ci vi li za ção agrí co la, de base ri gi da -mente fa mi li ar e ca rá ter imu tá vel, cor res pon dia uma ex tre ma ins ta bi li dade po lí tica e di nás ti ca e, como con se qüên cia, a fre qüen te mu dan ça de capital.É cu ri o so no tar que a ci vi li za ção chi ne sa não cri ou me tró po les per ma nentese de vida mi le nar, com pa rá ve is a ci da des oci den ta is como Ba bi lô nia,

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Bagdad, Memp his, Ca i ro, Ate nas, Roma, Ale xan dria ou Bi zân cio,Constan ti no pla, Istam bul. Estas pa re cem vi ver de uma vida pró pria,trans cen den te, como que in de pen den te dos Esta dos que cri a ram oupre si di ram. Na Chi na, pelo con trá rio, as ci da des so be ra nas es tão sem pre es tre i ta men te li ga das à sor te das di nas ti as – cres cem, bri lham e de sa pa -re cem com re la ti va fa ci li da de. A es fe ra da cul tu ra chi ne sa, qui çá hajaultra pas sa do, bas tan te cedo, os li mi tes es tre i tos da ci vi tas de tipo clás si cooci den tal, al can çan do pro por ções “con ti nen ta is”, de modo que seu ter -ri tó rio ex ce deu a má xi ma ex ten são pos sí vel da zona de in fluên cia dequalquer aglo me ra ção ur ba na es pe cí fi ca. Isto tal vez ex pli que por que aí – eo mes mo fe nô me no se re pe te na Índia – a ci da de-capital de sem pe nheum pa pel his to ri ca men te me nos im por tan te do que na Eu ro pa.

Be id jing foi das pou cas me tró po les chi ne sas que per ma ne ce -ram. Mas não é pro pri a men te a ci da de, é o sí tio que pa re ce eter no. AChi na não pos sui ru í nas cuja an ti gui da de se pos sa com pa rar às do Egi to e mes mo às da Gré cia ou da Itá lia. Con tu do, as es ca va ções no lo cal enos ar re do res pro du zi ram ma te ri al ar que o ló gi co que re ve la a pre sen çado ho mem des de os tem pos mais re mo tos. Em ca ver nas ao sul da cidadefo ram des co ber tos res tos de um tipo hu ma no mu i to pri mi ti vo, in ter me -diá rio pro vá vel en tre o ho mem atu al e seu an te pas sa do zo o ló gi co, quere ce beu o nome de Si nant hro pus Pe ki nen sis. Esse ho mi ní deo, que foi es tu -da do en tre ou tros por Te i lhard de Char din e te ria vi vi do há, apro xi ma -da men te, qui nhen tos mil anos, co nhe cia o fogo e uti li za va cer tos ins tru -men tos ele men ta res de pe dra las ca da. Os an tro pó lo gos afir mam que jáapre sen ta va cer tas ca rac te rís ti cas ana tô mi cas de con ver gên cia com araça ama re la e o nú me ro ele va do de es que le tos e ob je tos des co ber tosnes sas ca ver nas, fa zem su por que se tra ta de um es ta be le cimentoperma nen te con si de rá vel e fan tas ti ca men te an ti go.

Já es ta mos em ple na his tó ria quan do ou vi mos fa lar na exis -tên cia de uma ci da de fun da da 1100 anos an tes de Cris to, Chi, Ca pi tal do es tado de Yen, um dos “Re i nos Com ba ten tes” no pe río do fe u dal da histó ria clás si ca da Chi na. Cons tru í da no sí tio atu al de Be id jing, foi to tal men tedes tru í da em 221 an tes de Cris to, pelo “Pri me i ro Impe ra dor” da di nas -tia Chin. A di nas tia se guin te, Han, re cons tru iu a ci da de a qual, sob adinas tia Tang, te ria o nome de Yu chow, ser vin do a pra ça de re si dên cia aum go ver na dor mi li tar en car re ga do da de fe sa de cer to se tor da Gran de

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Mu ra lha. No sé cu lo doze, en tre tan to, os bár ba ros for ça ram a mu ra lha,ata ca ram Yu chow que sa que a ram, re cons tru in do-a, po rém, logo de po is,com o nome de Nan king, “Ca pi tal do Sul”, para dis tin gui-la de sua pró -pria ca pi tal se ten tri o nal na Man chú ria. Ou tros bár ba ros su ce de ram-senos sé cu los ator men ta dos da Ida de Mé dia chi ne sa. A cha ma da Hor daDou ra da con quis tou a pra ça que ba ti zou com o nome de Chung Tu,sem des tru ir o que en con trou em pé. Par te dos mu ros des sa aglomeraçãoain da hoje está de pé. Se tra çar mos os li mi tes co nhe ci dos de to das es sasci da des so bre o mapa atu al de Be id jing, ve re mos que cons ti tu em pe que -nos re tân gu los den tro ou ao lado das mu ra lhas atu a is. Eram aglomera -ções com de se nho se me lhan te ao da me tró po le mo der na, isto é, umperí me tro for ti fi ca do e um re tân gu lo me nor, no cen tro, pro te gen do oPa lá cio Impe ri al ou “Ci da de Pro i bi da”. Con quis ta da, des tru í da, re cons -tru í da, pro mo vi da, no va men te con quis ta da, a ci da de já en tão ve ne rá velre nas cia sem pre de suas cin zas, qual fê nix fa bu lo so, ma i or e mais belado que fora an tes.

Em 1215 so freu o mais de sas tro so de to dos os ata ques. Oter rí vel Geng hiz Khan ati rou con tra as mu ra lhas de Chung Tu suashordas san gui ná ri as de mon góis. A pra ça foi to ma da, sa que a da, se guin -do-se o “glo ri o so mas sa cre” de toda a po pulação es tar re ci da e o ar ra samen -to com ple to. Os bár ba ros não se in te res sa vam pela vida ur ba na e se algo, no sí tio da ca pi tal, lhes pa re cia dig no de aten ção era a planície po e i renta,logo aba i xo das co li nas co ro a das pela Gran de Mu ra lha. Du ran te cin -qüen ta anos, suas ru í nas fo ram aban do na das e os pou cos ha bi tan tessalvos do mas sa cre, mi se rá ve is, fa min tos e apa vo ra dos, as sis ti am à pas sa gemin ter mi ná vel dos des ta ca men tos da ca va la ria si be ri a na que, a fer ro efogo, iam var rer a Chi na do sul, onde ain da re i na va a di nas tia na ci o naldos Sung.

Impe ra ti vos de ge o gra fia po lí ti ca ga ran ti am, po rém, o re nas ci -men to da pra ça, que iria ocor rer no re i na do de Ku blai, neto de Geng hiz Khan. Si tu a da no ápi ce da pla ní cie de alu vião da Chi na se ten tri o nal, nopon to de con ver gên cia das ro tas que li gam essa pla ní cie às es te pes daMon gó lia e da Man chú ria, ela é a cha ve da mar ca fron te i ri ça que co bre o co ra ção do Impé rio. A cen to e trin ta qui lô me tros a nor des te, no gol fode Pe chih li, a pas sa gem para a Man chú ria é efe tu a da pelo fa mo so pas sode Shan-hai-kwan, “Mon ta nha + mar + por ta”, es pé cie de Ter mó pi las

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da Chi na. Do lado da Mon gó lia, ou tra rota con duz ao pas so não me nosfa mo so de Nan kow. A cin qüen ta qui lô me tros ao nor te, a Gran de Mu ra -lha se gue a cris ta das “Mon ta nhas Oci den ta is”, com al tu ras su pe ri o res amil me tros e per fil cla ra men te vi sí vel no ho ri zon te. Orgu lhan do-se deseus mais de três mil qui lô me tros de ex ten são, a mu ra lha é o mais gran -di o so mo nu men to e exem plo da sal va guar da ma te ri al da ci vi li za ção,fron te i ra his tó ri ca, li nha de de fe sa da pla ní cie agrí co la, or de i ra e se den -tá ria con tra a anar quia nô ma de pas to ril das es te pes eu ra siá ti cas, zonadivi só ria en tre dois ti pos de or ga ni za ção eco nô mi ca, so ci al e po lí ti ca. EBe id jing é a Cha ve da Mu ra lha, for mi dá vel en tron ca men to de ro tasestra té gi cas! De sem pe nhou por isso uma fun ção his tó ri ca com pa rá vel àde Ber lim e de Vi e na, seus equi va len tes eu ro pe us na luta mi le nar da ci vi -li za ção con tra a bar bá rie – Ber lim ao pé da “Po liê” es la va, e Vi e na napas sa gem que con duz à pla ní cie hún ga ra, ves tí bu los da Ásia. Com pa raitambém com Ra ve na e De lhi que, em seu tem po, exer ce ram pa pelseme lhan te.

Pra ça es tra té gi ca numa li nha di vi só ria, Be id jing é tam bém umtra ço-de-união, o que ex pli ca sua gran de za nas épo cas em que a Chi naes te ve go ver na da por di nas ti as es tran ge i ras cu jas ra í zes se en con tra vamao nor te ou, pelo me nos, cuja aten ção se di ri gia para o se ten trião. “Ge o -grá fi ca e his to ri ca men te”, es cre ve René Grous set, “Pe king é umacom bi na ção si no-tártara. O chi nês sen te-se ain da em casa, mas o tár ta ro, ga lo pan do na pla ní cie po e i ren ta ao pé das mon ta nhas oci den ta is, não sesen te ab so lu ta men te des lo ca do”. Qu an do o bár ba ro vi to ri o so es go touseu ím pe to des tru i dor e con tem plou, ad mi ra do, os va lo res da ci vi li za ção se den tá ria, pro cu rou fun dar a base de seu po der nes sa zona in ter me diária.Embo ra si tu a da na Chi na pro pri a men te dita por que ao sul da mu ra lha, o sí tio se en con tra va su fi ci en te men te pró xi mo, na dis tân cia e na pa i sa gem, das es te pes an ces tra is. Em caso de ne ces si da de, o Khan se mi-bárbaro,pro mo vi do a Fi lho do Céu, po dia mo bi li zar a ca va la ria para de fen der oImpé rio re cém-conquistado con tra qual quer ata que na ci o na lis ta. Se,porém, se sen tis se ame a ça do pe las tri bos re tar da tá ri as que co bi ça vampar te do botim, po dia ape lar para seus no vos sú di tos que lhe for ne ce riama in fan ta ria neces sá ria à guar ni ção dos ba lu ar tes. Cha ve da de fe sa, Beidjing cons ti tu ía, por con se guin te, um pos to avan ça do para o con tra-ataquealém da mu ra lha. Foi a base do tre men do es for ço do se den tá rio no

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senti do de es ten der a zona de cul tu ra além das pla ní ci es bem ir ri ga das,com o in tu i to de es ta bi li zar, ci vi li zar e ab sor ver even tu al men te o no ma -dis mo. Esfor ço bem su ce di do por que a ci da de, que se en con tra vaoutrora na pe ri fe ria se ten tri o nal, não está hoje lon ge da core area da Chi na,se le var mos em con si de ra ção a im por tân cia da Man chú ria na eco no miage ral do país. O va lor des sa po si ção so bres sai como ar ti cu la ção de trêsdas mais im por tan tes re giões na tu ra is do Impé rio – o Ti bet, a Mon gó liae a Man chú ria – com a Chi na se ten tri o nal.

Quan do Ku bi lai ou Ku blai-Khan, so be ra no de to dos os Esta dosque Geng hiz Khan ha via fun da do des de a Rús sia até a Chi na, re sol veutrans fe rir, em 1260, a ten da im pe ri al de Ka ra ko rum, na Mon gó lia, para a an ti ga me tró po le da Hor da Dou ra da, a de ci são se ria pre nhe de con se -qüên ci as tan to para o fu tu ro da Chi na, como para a sor te ul te ri or dahege mo nia mon gol. Du ran te a guer ra ci vil que se se guiu à mor te doGran de-Khan Man gú, Ku blai lu tou con tra um ir mão mais moço e con -tra um so bri nho, Ka i dú, que lhe dis pu ta vam a co roa com base na ve lhapá tria si be ri a na. Ka i dú gran je a ra as sim pa ti as dos ve lhos ge ne ra is mon -góis que o con si de ra vam uma nova ima gem de seu bi sa vô Geng hiz, umnovo var re dor das es te pes des ti na do a le var para a fren te a pla ne ja dacon quis ta do mun do. Ku blai, por ou tro lado, ob te ve o apo io do ir mãoHu lä gu e do fi lho des te, Aba kâ, Ilkhans da Pér sia. Gra ças a es sas ali an çasre ce beu o tí tu lo he ge mô ni co. E foi jus ta men te para de fen der-se deKaidú e da ve lha guar da mon gol que se de ci diu a aban do nar Ka rakorum.A mu dan ça da capi tal des co bria um pro fun do de síg nio po lí ti co poistanto Ku blai quan to Hu lä gu re pre sen ta vam a pe ri fe ria ci vi li za da, a terceirage ra ção mon gol, já edu ca da na zona li to râ nea do con ti nen te eu ra siá ti co.Sua vi tó ria, ao mes mo tem po que re pre sen ta va uma ex pan são do do mí -nio tár ta ro, en fra que cia o ha bi tat do de ser to do Gobi si be ri a no, fon te dodi na mis mo da raça. O su ces so con ven ceu-o de que seu des ti no era so li -dá rio do da Chi na. E, ten do que re i nar so zi nho so bre a par te ori en tal do imen so im pé rio, sen tiu que ape nas lem bran ças sen ti men ta is o li ga vam àde ser ta Ka ra ko rum, a esse acam pa men to nô ma de ar ti fi ci al men te trans -for ma do em cen tro ur ba no para ser vir de quar tel-general das hor das ede ar ma zém para a pi lha gem de dois con ti nen tes. Edu ca do por chi ne ses, Ku blai com pre en deu o va lor da ci vi li za ção. Já se ob ser vou que a evoluçãoda fa mí lia de Geng hiz Khan, em duas ge ra ções, cons ti tu iu como que a

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vi tó ria su pre ma do ven ci do, na pes soa do con se lhe i ro Yelu Tchu-tsai,so bre seu con quis ta dor tár ta ro.

Ku blai foi sem dú vi da o ma i or de to dos os so be ra nos tárta ros.Mu i to em bora pas sa ra a in fân cia na es te pe e ha bi tu a ra-se à vida nômade,pos su ía uma só li da cul tu ra chi ne sa e o tem pe ra men to de um ci vi li za do.Não era sua in ten ção des tru ir se gun do o cos tume ime mo ri al de seusante pas sa dos. So nha va com a ad mi nis tra ção be ne vo len te em mol descon fu cianos, re pre sen tan do a fi gu ra do bár ba ro do mes ti ca do, hu ma nizado, ad mi ra dor das ar tes e das in dús tri as, pre o cu pado com jus ti ça e com afe li ci da de do povo, sem per der por isso a ener gia bru tal, o di na mis mo, o gê nio mi li tar e, se ne ces sá rio, a cru el da de in fle xí vel do guer re i ro a cavalo.Como seus ne tos, os “Grão-Mogóis” da Índia, re a li za va uma com bi naçãofe liz da cul tu ra do se den tá rio com o ins tin to de do mí nio e o im pul socom ba ti vo do si be ri a no nô ma de. Ku blai foi, em suma, du pla men te umImpe rador chi nês e um Grão-Khan mon gol, le gí ti mo Fi lho do Céu tantoquan to con quis ta dor na tra di ção geng hiz-khanida. Ele re a li zou, na áreado Extre mo-Oriente, uma obra po lí ti ca em que po dia in vo car a ve lhatra di ção chi ne sa de pre do mí nio cul tu ral, so bre pon do-lhe o pro gra mamon gol, mais vago e trans cen den te, e sem li mi tes pre ci sos.

Nes sa si tu a ção do sé cu lo qua tor ze ob ser va mos como queuma pre fi gu ra ção, ex tre ma men te ins tru ti va, das re la ções exis ten tes, emme a dos do sé cu lo XX, en tre a União So vié ti ca, que li de ra va o ex pan si o -nismo co mu nis ta uni ver sal, e o re gi me de Mao Dze dong e Deng Xiaoping, que obe de ce a im pe ra ti vos pu ra men te chi ne ses, de ca rá ter re gi o nal. Odu plo pa pel de Ku blai, como Gran de-Khan mon gol e como Fi lho doCéu chi nês, é dos mais in te res san tes e com ple xos. Re fle te-se tan to noca rá ter du a lis ta da sua di nas tia, que to mou o nome de Yuan, her de i ra dede ze nove di nas ti as na ci o na is, quan to na na tu re za de sua es co lha deBeid jing como sede da ad mi nis tra ção do Impé rio. De acor do com a tra di çãolo cal, ina u gu rou um novo ca len dá rio e, de 1264 a 1267, fez cons tru ir, anor deste da an ti ga aglo me ra ção dos Kin, uma nova ci da de que os chi nesesde no mi na ram Tai-tu, a “Gran de Cor te”. O nome tár ta ro era Ordu-baligh,“ci da de da hor da”, ou Khan-baligh, “ci da de do Khan”, que Mar co Polotrans cre ve Cam ba luc, pelo qual du ran te mu i tos sé cu los foi co nhe ci dados oci den ta is.

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A ci da de re ve la na sua ge o gra fia esse com pro mis so cul tu ral,eco nô mi co e po lí ti co. Em Cam ba luc, pra ça chi ne sa lo ca li za da no in te ri -or da Gran de Mu ra lha, o Khan po dia obe de cer às re gras com ple xas ese mi-religiosas da eti que ta im pe ri al, re ce ben do o “Man da to Ce les te”,Ming, que, na tra di ção ime mo ri al da dou tri na po lí ti ca chi ne sa, lhe ga ran -tia o do mí nio pa cí fi co do país. Ku blai foi as sim o pri me i ro que com pre -en deu cla ra men te as van ta gens da po si ção da ca pi tal e, ao ali ins ta lar oTro no do Dra gão, fi xou de modo de fi ni ti vo o sen ti do do de sen vol vi -men to his tó ri co do es ta do chi nês a par tir do ber ço pri mi ti vo da raça, no vale do Ho ang-ho. A fun da ção da nova ca pi tal, ao mes mo tem po quere ve la um des lo ca men to fa tal do eixo po lí ti co-militar do Impé rio mon -gol, cons ti tui o aca ba men to da obra mi le nar a que se ha vi am de di ca doge ra ções de gran des so be ra nos chins: a pa ci fi ca ção da Mon gó lia e doTur ques tão. Para com ple tar a evo lu ção, os pró pri os mon góis se fi ze rambu dis tas.

A gló ria de Khan-baligh du rou me nos de cem anos. Em 1368, a di nas tia Yuan foi der ru ba da por uma re vol ta na ci o nal. Os úl ti mos des -cen den tes da que le ter rí vel guer re i ro a ca va lo que con quis ta ra qua se todo o con ti nen te eu ra siá ti co re ti ra ram-se para suas es te pes na ta is, ba ti dos ehu mi lha dos. O bár ba ro fora ab sor vi do pela mas sa se den tá ria. A ener giados che fes cor rom pe ra-se no re fi na men to da Cor te e nos ex ces sos doha rém, en quan to o bu dis mo aca ba va de apla car a be li co si da de tár ta ra.Sob a che fia de um mon ge guer re i ro e che fe re vo lu ci o ná rio, a re a çãona ci o nal não en fren tou ma i o res di fi cul da des para ex pul sar a casa in tru sa e as sim se ina u gu rou a nova di nas tia Ming, a úl ti ma li nha gem na ci o nalda Chi na.

Os pri me i ros Impe ra do res Ming se ha vi am es ta be le ci do àsmar gens do Yang Tse Ki ang, na “Ca pi tal do Sul”, Nan king, que ain dahoje con ser va al gu mas ru í nas de seus pa lá ci os, as mu ra lhas que man da -ram cons tru ir e os tú mu los dos an te pas sa dos. Ta i tu, des ti tu í da para acate go ria de ca pi tal de uma pre fe i tu ra se cun dá ria, re ce be ra o nome deBe i bing, “Paz do Nor te”. Ha via 242 anos que o nor te es ta va do mi na dope los bár ba ros e 432 anos que a ci da de não per ten cia à Chi na pro pri a -men te dita. Esse lon go pe río do de do mí nio es tran ge i ro cri a ra umaprofun da ci são en tre a Chi na se ten tri o nal e a Chi na me ri di o nal – fenô me node ge o gra fia hu ma na ain da hoje bem sen sí vel e que mu i to ex pli ca nos

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acon te ci men tos po lí ti cos dos úl ti mos anos – o nor te, sa tu ra do de ele -men tos bár ba ros, po rém mais vi ril e de tra di ção im pe ri al; o sul, re fú gioda in de pen dên cia na ci o nal, mais cul to, mais co mer ci an te, agi tado erebel de. A eco no mia chi ne sa mo der na, se guin do o pro gra ma de “umana ção, dois sis te mas”, é mais prós pe ra no sul, em tor no de Hong Konge Can tão, do que no nor te. Xang hai, a ma i or ci da de do país, é um pon to de tran si ção en tre es sas duas re giões.

Nascido no ba i xo vale do Yang Tse, era na tu ral que ChuYuan chang, fun da dor da di nas tia Ming, es co lhes se Nand jing (Nan king)como ca pi tal. Mas o seu fi lho e se gun do su ces sor, Yung Loh(1403-1424), o ma i or so be ra no da cur ta li nha gem, gran de guer re iro earqui te to, so nhou res ta be le cer o Impé rio em ba ses de po de rio fir me eper ma nen te. Ku blai Khan ha via ou tro ra pro cu ra do trans for mar o do mí -nio mon gol em Esta do chi nês. “Mu dan do os ter mos do pro ble ma”, escre veRené Grous set, “o Impe ra dor Yung Loh quis dar à Chi na a he ran çamon gol dos Ku bi la i das. O Gran de Khan ha via ob ti do a sub mis são detoda a ter ra chi ne sa, des de o rio Ama re lo ao Ton quim, e se tor na ra umau tên ti co Fi lho do Céu. Em com pen sa ção, o ter ce i ro so be ra no Mingdecidiu sub me ter a Mon gó lia a fim de ali de sem pe nhar o pa pel de GrandeKhan”. Nes sas con di ções Yung Loh aban do nou Nan king em 1409 etrans fe riu no va men te o Tro no para a ci da de que, en tão pela pri me i ravez, re ce beu o nome de Be id jing (Pe king), “ca pi tal do nor te”, pelo qualé hoje co nhe ci da. A trans fe rên cia da ca pi tal, con ti nua Grous set, “repre sen ta, por si só, um ver da de i ro pro gra ma”, pois até então ne nhu ma dinas tiapu ra men te chi ne sa ha via tido a idéia de es co lher uma tal re si dên cia. E se o pa pel his tó ri co da re gião prin ci pi a ra com o do mí nio dos tár ta ros nonor te da Chi na, um novo ca pí tu lo abria-se ago ra para a exten são cul tu -ral e po lí ti ca do Impé rio so bre a Ásia ori en tal.

Yung Loh não foi ape nas um res ta u ra dor do pres tí gio chi nês;um re no va dor da fi lo so fia ofi ci al néo-confuciana; um con quis ta dor cu jas tro pas per cor re ram a Alta Mon gó lia e o Anam, e cu jas fro tas vi si ta ramos ma res da Ásia me ri di o nal, até al can ça rem o Ce i lão e o Gol fo Pér si co (emex pe di ções ma rí ti mas tão ex tra or di ná ri as para a épo ca quanto excep ci o -na is num povo tão pou co in cli na do para o mar que ja ma is com pre endeu a im por tân cia do po der na val). Foi so bre tu do um grande constru tor.De ve mo-lhe o pla no gran di o so da me tró po le im pe ri al, es pe ci al men te o

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de se nho do qua dri lá te ro cen tral que cons ti tui a re si dên cia pro pri a men tedita, isto é, a “Ci da de Pro i bi da” ou “Ci da de Vi o le ta-púrpura”.

Ain da que os pa lá ci os que hoje con tem pla mos em Be id jinges te jam lon ge de po der re cla mar a an ti gui da de ve ne rá vel dos tem plosgre gos e dos mo nu men tos ro ma nos – para não fa lar nos do Egi to – ouso abun dan te da ma de i ra ex pli ca a pou ca du ra ção dos edi fí ci os doExtre mo-Oriente, quan do com pa ra dos com os do Oci den te, que uti li za -ram a pe dra como prin ci pal ma te ri al de ar qui te tu ra – lem bre mo-nosque, na épo ca em que fo ram edi fi ca dos, isto é, na pri me i ra me ta de dosé cu lo XV, nada na Eu ro pa se lhes po dia com pa rar em gran de za e ex ce -lên cia ar tís ti ca. O es ti lo, em bo ra apri mo ra do, não se afas ta va da normatradi ci o nal, na uni for mi da de de uma arte que o tem po e a au sên cia de fortesinfluên ci as ex ter nas aca ba ra cris ta li zan do. O re i na do de Yun Loh as si na lao apo geu da ar qui te tu ra chi ne sa mas pou co foi acres centa do a Be id jingdu ran te a vida dos de ma is mo nar cas da di nas tia.

Os Ming, aliás, não tar da ram em de ca ir, con for me sói ocor rer na his tó ria da Chi na por for ça da cor rup ção da Cor te, da in com pe tên cia ad mi nistra ti va, do mo no pó lio do go ver no pe los eu nu cos e as concu bi nasim pe ri a is, e do em po bre ci men to e cres cen te anar quia das pro vín ci as.Em 1644 apre sen tou-se às por tas de Be id jing, como ali a do de um general chi nês em re vol ta, o exér ci to man chú que os Gran des Khans Nu rat chí e Abakaí ha vi am cu i da do sa men te tre i na do e equi pa do. Como já tantasvezes ocor re ra, os bár ba ros do nor te vi e ram, vi ram e con quis ta ram.Teve as sim iní cio a úl ti ma di nas tia, a di nas tia man chú, que to mou onome de Ching e re i nou até 1911.

Os anos fi na is dos Ming e os pri me i ros de cê ni os dos Chingco in ci dem com a che ga da dos eu ro pe us – os por tu gue ses – ao Extre -mo-Oriente. Na Cor te do Dra gão fo ram re ce bi dos al guns je su í tas, prin -ci pal men te ita li a nos e ale mães, mé di cos, sá bi os, ho mens ex tra or dinári os, homens de gran de vir tu de e sa be do ria que con se gui ram pe ne trar nacon fi an ça do Fi lho do Céu e por ele fo ram au to ri za dos a cons tru ir umob ser va tó rio as tro nô mi co. Sua in fluên cia cres ceu e, em cer to mo men to,abriu pers pec ti vas al vis sa re i ras para o pro se li tis mo cris tão no Impé riochi nês. Mas es ses je su í tas ti ve ram igual men te uma in fluên cia in di retasobre cer tos as pec tos da ar qui te tu ra e da arte de co ra ti va chi nesa e,inver sa mente, fo ram o ve í cu lo pelo qual ela gran je ou pres tí gio ex cep cional

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na Eu ro pa do sé cu lo XVIII, com suas chi no i se ri es. Ve re mos adi an te queesse pres tí gio se re ve la em cer tos por me no res da cons tru ção de Ver sa il les.

Sob o re i na do dos dois gran des mo nar cas, Kang Hsi e KienLong, con tem po râ ne os de Luis XIV e de Fre de ri co da Prús sia, o Impé riocon se guiu al can çar um der ra de i ro bri lho, man ten do sua he ge mo nia po lí -tica na área do Extre mo-Oriente. Mas a de ca dên cia ir re me diá vel do anti gore gi me cor rom pia as fi bras de todo o or ga nis mo so ci al, jus to nomomen to em que o país, a par tir da me ta de do sé cu lo XIX, ia so frer oimpacto ace le ra do e ir re sis tí vel do oci den te. O epi só dio mais in te res santeao fi nal do re i na do de Kien Long foi a fra cas sa da em ba i xa da de LordMa cartney, em 1793. Os in gle ses man da ram a em ba i xa da que se demorou dois anos na Chi na até que o em ba i xa dor con se guis se ser re ce bi do peloFi lho do Céu, em Je hol, na Man chú ria. Car re ga do de pre sen tes para oImpe ra dor, acom pa nha do por uma es qua dra e por dois mil as sis ten tesde di ver sas ca te go ri as, o in su ces so fi nal re sul tou da ne ga ti va de Macartney de se pros ter nar nove ve zes di an te do mo nar ca, com a tes ta ba ten do nochão, o fa mo so kow tow exi gi do de todo sú di to ou en vi a do de um vas sa lo. O or gu lho so re pre sen tan te de Sua Ma jes ta de bri tâ ni ca não se con sidera va,na tu ral men te, um vas sa lo e re ce beu em tro ca, por sua ati tu de ne ga ti va,uma car ta em que Kien Long ma ni fes ta va seu to tal de sin te res se pe lospre sen tes ofe re ci dos e pela pro pos ta de es ta be le cer um re la ci o na men toco mer ci al com as ilhas bri tâ ni cas. Ele afir ma va que a Chi na era o cen trodo mun do. O Re i no Flo ri do pro du zia tudo que era ne ces sá rio e ne nhum pro ve i to po de ria re sul tar de qual quer tro ca com as inú te is mer ca do ri asoci den ta is. Ala in Pey re fit te es cre veu so bre esse mo men to cru cial nahistó ria da Chi na três mag ní fi cos li vros sob o tí tu lo O Impé rio Imóvel,demons tran do que os chi ne ses, ao con trá rio dos ja po ne ses, pa ga ramcaro sua re cu sa em ter mos de atra so no ine vi tá vel pro ces so de mo der ni -za ção que tem acom pa nha do a glo ba li za ção. Pou cos anos mais tar de osbri tâ ni cos abri ri am pela for ça as por tas da Chi na. Com o que veio a serchamado a Gu er ra do Ópio, con quis ta ram Hong Kong como en treposto de co mér cio. Assim, a Ingla ter ra de sen ca de ou uma su ces são de mudan ças na Abertu ra do Impé rio Cen tral (Djung Guó) que, in ter rom pi da pe los desastres da II Gu er ra Mun di al, a in va são ja po ne sa (1937/45) e a Re vo lu çãoChi ne sa, en chem dois sé cu los in te i ros e ain da pa re cem lon ge de al cançarseu tér mi no.

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A evo lu ção dos acon te ci men tos foi len to, se guin do um cur soque atin giu pro fun da men te a vida de Be id jing. Vale a pena re cor dar algunsdos seus ca pí tu los mais sa li en tes: em 1850 a re vo lu ção dos Tai-Pingcon tra a di nas tia, re vol ta cega e pre ma tu ra que se li qui dou com al gu masde ze nas de mi lhões de mor tes. Em 1860, o pri me i ro as sal to a Be id jingpor par te dos “Di a bos oci den ta is”, per so ni fi ca dos em um exér ci to aliadocujo ob je ti vo era dar ao Fi lho do Céu uma amos tra dos mé to dos in fle xí -ve is da Eu ro pa ci vi li za da, com a pi lha gem da ci da de e o in cên dio doPa lá cio de Ve rão. Em 1900, o epi só dio ex tra or di ná rio da Re vol ta dosBo xers, xe nó fo bos fa ná ti cos que não con se gui ram, não obs tan te o au xí -lio de cla ra do da Cor te, ven cer a re sis tên cia he rói ca de um pu nha do deeu ro pe us si ti a dos no Qu ar te i rão das Le ga ções. Be id jing é en tão no va -mente pu ni da pela ce gue i ra de seus go ver nan tes e um ou tro exér ci toaliado, re pre sen tan do to das as po tên ci as im pe ri a lis tas da épo ca, in clu si ve o novo re cru ta ni pô ni co, pe ne tra na ca pi tal após a fuga da fa mo sa enefas ta Impe ra triz Tzu Hsi, mãe do Impe ra dor. Em 1911, a Re pú bli ca épro cla ma da no sul e a di nas tia ab di ca sem per der a dig ni da de. Daí pordi an te, du ran te vin te anos, en quan to o país se de ba te na anar quia mi li tar, a ci da de é pre sa fá cil dos “Se nho res da Gu er ra” e, em bo ra con ti nue a se decla rar a ca pi tal teó ri ca da Chi na e sede apra zí vel do Cor po Di plo má ticoque ha bi ta o Qu ar te i rão das Le ga ções, de i xa vir tu al men te de di ri gir osdes ti nos da na ção. Em 1927, o Ge ne ra lís si mo Chi ang Kai-Chek, co man -dante dos exér ci tos can to ne ses que cons ti tu em a van guar da da re vo luçãona ci o na lis ta, or ga ni za um novo go ver no em Nand jing. Be id jing é es que -ci da e re ce be o nome de Bei-ping, “Paz do Nor te”, que pos su ía no prin -cí pio da di nas tia Ming. Vol ta a pre do mi nar a Chi na do sul, mais in flu en -ci a da pelo oci den te e de onde par ti ra o mo vi men to re vo lu ci o ná rio emsua pri me i ra fase “bur gue sa”.

Nes sa épo ca, os mo nu men tos ve ne rá ve is da an ti ga ca pi tal são aban do na dos. Cres ce o ca pim en tre as la jes de már mo re dos ma jes to soster ra ços, o mus go re co bre os ani ma is mí ti cos de bron ze, as in tem pé ri esar ru i nam os te lha dos de ce râ mi ca dou ra da. A his tó ria me lan có li ca ébem des cri ta no fil me es tu pen do de Ber to luc ci, “O Últi mo Impe ra dor”. Du ran te dez anos é ocu pa da pe los ja po ne ses. Te naz men te, en tre tan to, ave ne rá vel ci da de agar ra-se ao pas sa do e con ser va uma dig ni da de, umano bre za, uma cons ciên cia de seu pres tí gio que não se en con tra alhu res!

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Em 1937, a cha ma da pon te de Mar co Polo, nos ar re do res de Be id jing, éce ná rio de um “in ci den te” en tre tro pas ja po ne sas e chi ne sas que de sen -ca de ia in ci den te bem ma i or – pri me i ro ca pí tu lo da Gu er ra Mun di al.Chi ang Kai-Chek e seu go ver no na ci o na lis ta aban do nam Nand jing di an te do ata que ni pô ni co e se es ta be le cem em Djung djing, “Ca pi tal Cen tral”,pro te gi dos pe las gar gan tas inex pug ná ve is do Yang Tse Ki ang. Ao termi nar a guer ra, vol tam para Nand jing. Abre-se en tão um novo ca pí tu lo darevo lução chi ne sa. Os co mu nis tas, em 1924, ha vi am en ca be ça do omovi men to can to nês; ha vi am pres ta do as sis tên cia à mar cha para o nortedos na ci o na lis tas e, re pe li dos por Chi ang Kai-chek, em 1927 o ha vi amcom ba ti do em luta ine xo rá vel. De po is, ali a ram-se a ele con tra os ja po ne -ses. Ter mi na da a guer ra, po rém, en tra ram em fran ca re be lião, dis postos are sol ver num sen ti do to ta li tá rio, agrá rio e mar xis ta o gran de ca ta clismo po -lí ti co e so ci al pro vo ca do pelo im pac to do oci den te. A luta, nes sa fase fi -nal du rou cin co anos. Em 1949 as sis ti mos ao co lap so do go ver no doKu o min tang que foge para a ilha For mo sa. Mao Dze dong, tri un fan te,ins ta la um novo re gi me, dito “po pu lar”, na ve lha e glo ri o sa Be id jing.Mas, nas três úl ti mas dé ca das do sé cu lo, as “Qu a tro Mo der ni za ções” deDeng Xiaoping abrem a ve lha ca pi tal a um mo vi men to co los sal deremo de la ção e cons tru ção que a tor na qua se ir re co nhe cí vel. Per ma ne ceem bo ra, in to ca do, o qua dri lá te ro cen tral da “Ci da de Pro i bi da” onde secon cen tram os go ver nan tes, a No menk la tu ra de man da rins que, des detem pos ime mo ri a is, go ver na ram o Impé rio e hoje se in ti tu lam “co mu -nis tas”.

No “Li vro das Odes”, um dos clás si cos da li te ra tu ra chi ne sa,com pos to há uns 2500 anos, en con tra mos a se guin te pas sa gem, que éfre qüen te men te ci ta da:

“Ain da que Chou fos se um ve lho país,re ce beu um novo des ti no.”

No de cor rer dos sé cu los a ve lha Chi na teve no vos des ti nos.Di nas ti as su ce de ram a di nas ti as. O Impé rio foi vá ri as ve zes in va di do por tri bos bár ba ras, do mi na do por re gi mes es tran ge i ros mas sem pre, no fim, os ab sor veu e re con quis tou sua in de pen dên cia. Di nas ti as cor rup tas eim po ten tes fo ram der ru ba das em re vo lu ções san gren tas que de ram ori -gem a no vas di nas ti as, e o ci clo re co me çou. Como dis se Men ci us, o fi ló -

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so fo po lí ti co por ex ce lên cia da Chi na clás si ca, “a vida nas ce da tris te za e da ca la mi da de, a mor te do pra zer e da fe li ci da de”. Por mais de sas tro sosque pa re çam os acon te ci men tos dos úl ti mos anos não de ve mos per derde vis ta que o tri un fo co mu nis ta na Chi na e a pos te ri or aber tu ra pro -por ci o na da por Deng Xi a o ping e seus su ces so res é ape nas um ca pí tu loda gi gan tes ca re vo lu ção por que a Ásia está pas san do há dois sé cu los.

Entre tan to, não são ape nas os as pec tos po lí ti cos atu a is e umaad mi rá vel tra di ção ar tís ti ca que atra em a cu ri o si da de do vi si tan te que,pela pri me i ra vez, con tem pla essa ci da de – a “Ci da de eter na do Oriente”.Qu an do se che ga a Be id jing de avião, pro ce den te do sul – como meocor reu em 1947 – o gi gan tes co qua dri lá te ro das mu ra lhas es ten de-se anos sos pés, per fe i ta men te de se nha do no con tras te que, so bre o fun docin zen to das ca sas, es tam pam o tra ça do som brio das ruas e o ful gorazul, dou ra do, ama re lo e ver de da ce râ mi ca, nos te lha dos dos tem plos edos pa lá ci os. Para quem seja se nhor do mapa da ci da de, eis que, re pen ti -na men te, ele se abre sob as asas do avião, em toda a sua per fe i ta ge o me -tria, per mi tin do lo ca li zar, num re lan ce, aqui a ro tun da azul do Tem plodo Céu; ali a mas sa do Chi en Men, a por ta prin ci pal da ci da de tár ta ra;mais adi an te, a Ci da de Pro i bi da; mais além, já tol da dos pela ne bli na dadistân cia, as Tor res do Sino e do Tam bor, seus mais an ti gos mo numen tos,da épo ca mon gol; à es quer da os la gos ar ti fi ci a is e os jar dins dos “Pa lá ciosdo Mar”; e, cer can do a vas ta aglo me ra ção, as mu ra lhas for mi dá ve is, devinte me tros de al tu ra, que de se nham um du plo re tân gu lo, qua se per feito, com vin te qui lô me tros de ex ten são to tal. Que ci da de do mun do, per -gun ta-se, mais fa cil men te per mi te, ao tu ris ta re cém-chegado, essa vi sãoime di a ta, es pon tâ nea, in de pen den te de qual quer ra ci o cí nio, capaz deorien tá-lo quan to às di re ções do com pas so e quan to às re la ções mú tu asde mo nu men tos e vias de aces so, como se a plan ta hou ves se aber to di antedos olhos? As enor mes mu ra lhas, in fe liz men te, fo ram der ru ba das noim pul so des tru i dor de plo rá vel da Re vo lu ção Cul tu ral. Não obs tan te,qua tro lar gas ave ni das ain da hoje per mi tem re cor dar as fa ces do qua dri -lá te ro, de se nha do num eixo Nor te X Sul, que li mi ta vam a me tró po le. Acidade hoje lar ga men te ul tra pas sou es ses li mi tes. Gran des edi fí ci osmodernos er guem-se numa aglo me ra ção imen sa que se apro xi ma dosdoze mi lhões de ha bi tan tes, em cla ra vi o la ção da an ti ga nor ma se gun doa qual ne nhu ma cons tru ção ci vil po de ria ul tra pas sar em al tu ra a sede

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celes te do Fi lho do Céu. Com as mu ra lhas, fo ram-se de modo si mi lar asve lhas ca sas e so la res em lin dos jar dins que se es ten di am pe los hu tung , as es tre i tas ruas pi to res cas onde só os rick shaws po di am tra fe gar, ou um ouou tro au to mó vel de um ri ca ço. Em bre ve, nada mais per ma ne ce rá dopas sa do, a não ser a Ci da de Pro i bi da e os mo nu men tos adjacen tes,assim como o Tem plo do Céu no qua dran te sul-oriental do Pla no deYung Loh.

É cer to que Nova York e Bu e nos Ai res não apre sen tam di fi -cul da de para a ori en ta ção, gra ças a seu sim ples de se nho or to go nal. Pa ris tam pou co, por ser a ci da de mais ar ti cu la da da Eu ro pa. Mas em nenhumades sas me tró po les a cor res pon dên cia das li nhas e dos es pa ços com asdi re ções car de a is, os tra ça dos axi a is, o “zo ne a men to” na tu ral e o sen ti -do, por as sim di zer, “ri tu al” do es que ma, cons ti tu iu o ob je ti vo co li ma do pelo pla ne ja dor. Be id jing era uma uni da de or gâ ni ca, uma sín te se es tru tu -ral que obe de cia a uma con cep ção ao mes mo tem po for mal e pro fun da -men te viva, real. Os edi fí ci os, as ca sas, os jar dins, as ave ni das e as pra ças eram par tes in te gran tes de um todo ar qui te tô ni co, fun ci o nal men te or ga -ni za do. Na ex pres são de S. E. Ras mus sen, a ci da de in te i ra era um tem -plo ou, por ou tra, o re cin to imen so de um tem plo cujo Sanc tum é a re si -dên cia im pe ri al. Assim pois, du pla é a im pressão que ca u sa Pe king aoestran ge i ro em êx ta se tu rís ti co. Em pri me i ro lu gar, como pen sa va Key -ser ling, “nela so pra um ven to de es te pe. Foi o es pí ri to de Geng hiz Khan e dos gran des con quis ta do res man chús e tár ta ros, e não o es pí ri to doletra do chi nês, que lhe deu ca rá ter... Be id jing é an tes de mais nada umaci da de im pe ri al, no que se as se me lha a De lhi e a São Pe ters bur go”. Uma im pres são de gran de za bra via e se ve ra, de res pe i to que ins pi ra sé cu losde his tó ria gra va dos na pe dra – im pres são re for ça da, no caso, pela cir -cuns tân cia es pe ci al de es tar mos ali as sis tin do – como as sis ti eu, com 50anos de in ter va lo! – a um dos acon te ci men tos mo men to sos do sé cu loXX e a um dos ca pí tu los mais dra má ti cos da his tó ria mi le nar da Chi na!Mas é tam bém uma im pres são pu ra men te es té ti ca. Mais do que umaaglo me ra ção di ri gen te, Be id jing, con tra ri a men te ao que im pug na Key -ser ling, foi a re a li za ção no es pa ço – como re a li da de tan gí vel – da “cidadeide al” dos le tra dos chi ne ses. E, por isso, seu ur ba nis mo pos sui umabele za trans cen den te, por que é uma obra de arte no sen ti do au tên ti coda pa la vra. Nes se sen ti do, o pla no ini ci al de Be id jing pode ser con si de -

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ra do uma das ra ras obras de pla ne ja men to ur ba no de cu nho fi lo só fi -co-religioso. Um de seus in con tes tá ve is en can tos re si dia nas pro por çõesma jes tosas de um tra ça do ri go ro sa men te sig ni fi ca ti vo. As pra ças, asaveni das e os pá ti os con ju ga vam, em uma uni da de ide al, os re cin tosqua dran gu la res que se en ca i xam, se so bre põem e se ar ti cu lam. Aoformalis mo ge o mé tri co das gran des vias e das gran des es pla na das,corres pon dia a na tu ral in for ma li da de dos par ques, dos la gos ar ti fi ci a is edos pi to res cos hu tungs, ruas e vi e las es tre i tas nos ba ir ros re si den ci a is.

Se os tra ça dos ge o mé tri cos e o for ma lis mo tra di ci o nal sãocaracte rís ti cos de Be id jing, nos cha ma dos “Pa lá ci os do Mar” e nos jardinse mo numen tos di ver sos que cer cam os la gos ar ti fi ci a is do Pe i hai, ourba nis ta pro cu rou ex pri mir-se não como fi ló so fo ou ma te má ti co, mascomo pintor ou po e ta. Em Ver sa il les, os Bour bons tam bém de se nha riamre can tos bu có li cos para rom per o for ma lis mo um tan to mo nó to no dosjardins de Le Nô tre. Yung Loh sa bia ins tin ti va men te com por umapaisagem. Em vol ta do Pe i hai, ele não pre ten deu re fle tir a or dem ce leste,po rém a en can ta do ra de sor dem e as si me tria dos la gos, dos bos ques, dos rios e das mon ta nhas na ta is. Mas é, ain da hoje, na Ci da de Pur pú rea, nadis po si ção das ave ni das, por tais, re cin tos, es pla na das e pa vi lhões doPalá cio Impe ri al que o ur ba nis ta-paisagista me lhor sou be ex pri mir seudo mí nio au da ci o so dos vas tos es pa ços ho ri zon ta is, e sua ca pa ci da de decon ju gar har mo ni o sa men te o for ma lis mo hi e rá ti co da via pro ces si o nalcom a ele gân cia dis cre ta dos efe i tos de co ra ti vos lo ca is. Ci da de si mé tri ca, essa sime tria é mes mo es sen ci al a Be id jing pois o pla ne ja dor ar quitetô ni coem pre en deu re pro du zir, na ter ra, a re gu la ri da de per fe i ta dos fe nô me nos ce les tes. Be id jing é a ima gem da na tu re za clas si fi ca da, ca te go ri za da,hierar qui za da e ar ru ma da, con for me a con ce bi am os chins, em obe diênciari go ro sa a um sis te ma de re gras com ple xas, de pen den tes não tan to daen ge nha ria e da ma te má ti ca quan to da ma gia ta o ís ta dos nú me ros e dosele men tos. A or dem for mal e si mé tri ca, a ori en ta ção, a dig ni da de e ores pe i to às for mas tra di ci o na is cons ti tu íam um si nal vi sí vel da ex ten sãodo po der e da be ne vo lên cia do mo nar ca, num vas to mo vi men to de forapara den tro. Com pa re-se a di ver si da de des ses efe i tos ar qui te tô ni cos com os da ci da de-tipo da Ida de Mé dia e do Re nas ci men to eu ro pe us. Nes sesesque mas, a um mo vi men to cen trí fu go, cor res pon de um sis te ma depla ne ja men to rá dio-concêntrico, fo ca li za do na ca te dral ou no cas te lo.

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Ri va li zando com os pa lá ci os im pe ri a is em es ti lo, porém su pe ri or pelo es pí ri to que o ani ma, o Tem plo do Céu ex pri me, me lhor do quequal quer ou tra cons tru ção de Be id jing, a com ple xi da de da Wel tans cha u -ung chi ne sa. Nes se sen ti do, co lo ca-se no mes mo pé de edi fí ci os fa mo sos como Kar nak, o Part he non, a Mes qui ta de Isfa han, o Tem plo de Madura,o Taj Ma hal, Angkor, o San tuá rio de Isê, San ta So fia, a Ca te dral deChar tres, São Pe dro de Roma – mar cos me mo rá ve is na his tó ria daexpres são da idéia pela ma de i ra e pela pe dra, obras de es ti lo o maisdi ver so em que o ho mem se su bli mou e pro cu rou, me lhor tal vez do que em qual quer ou tra for ma ar tís ti ca, tra du zir o sen ti men to ine fá vel dapre sença di vi na. Isso tal vez por que a ar qui te tu ra é, com a mú si ca, a únicaarte que não imi ta a na tu re za. É a arte que cria for mas no vas, pu ra men te menta is, e pro duz, gra ças a es sas for mas, o am bi en te pro pí cio à evoca çãodo trans cen den te.

∗ ∗ ∗O es pí ri to chi nês ex pri me-se num vas to sis te ma fi lo só fi co,

per fe i ta mente co e ren te, que re gu la não so men te a vida in di vi du al efami li ar, mas a vida co le ti va, a mo ral, a dou tri na po lí ti ca e to dos osaspec tos mul ti for mes da ve lha ci vi li za ção Chin. A as tro no mia ou as tro -logia, a ciên cia da to po gra fia, do cli ma, da lo ca li za ção das ci da des, a pin tu ra,a ar qui te tu ra e o ur ba nis mo são par tes in te gran tes do sis te ma. Em duasprin ci pa is cor ren tes ou “es co las” en qua dra-se esse pen sa men to fi lo só fi -co-religioso. São es co las não ne ces sa ri a men te ri va is, po rém com ple men -ta res, de di ca das a ra mos dis tin tos do co nhe ci men to ou en de re ça das atem pe ra men tos di ver sos. A pri me i ra, con fu ci a na, ocu pa-se da éti ca, damo ral pú bli ca, da dou tri na po lí ti ca e da te o ria so ci al. A se gun da, ta o ís ta,pos sui um ca rá ter mar ca da men te me ta fí si co e uma ten dên cia mís ti ca,não-ativista e in di vi du a lis ta. Pres tan do-se, pos te ri or men te, à ma gia e àsu pers ti ção vul gar, to tal men te em de sa cor do com a pu re za ori gi nal dopen sa men to de seu fun da dor, Lao Tzu, o qual, aliás, nada mais fez doque su bli mar as con cep ções pri mi ti vas da mi to lo gia chi ne sa, o “Ta o ís mo po pu lar” re ú ne hoje as te o ri as de vá ri as es co las an te ri o res, tais como asde as tro lo gia, di vi na ção, ge o man cia, etc.

A me ta fí si ca chi ne sa gira em tor no do con ce i to cí cli co doYin-Yang, rodando em tor no da idéia de Tao. Yang, nes se du a lis mo

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funda men tal, cons ti tui o prin cí pio ma cho, re pre sen ta do por uma li nhacon tí nua; e Yin, o prin cí pio fê mea, re pre sen ta do por uma li nha que brada.Yang con fi gu ra a for ça di nâ mi ca, a ener gia vi ril, o ca lor, a luz, o po si ti vo e ati vo, o dia, o ve rão, o prin cí pio cri a dor e o Céu. Seu nú me ro má gi co é 3 ou 3 x 3 = 9, bem como to dos os ím pa res. Yin é o ar qué ti po da mãe, a inér cia, a es cu ri dão, o ín ti mo e o pro te tor, o ne ga ti vo e o pas si vo, o prin cí -pio con ser va dor, a no i te, o frio, o in ver no e a Ter ra; seu nú me ro má gi coé 2, bem como to dos os pa res. O Cos mos con tém am bos os prin cí pi os.A vida é o re sul ta do da ação mú tua e cí cli ca de Yin e Yang. Lon ge decon tra di tó ri os ou opos tos, são com ple men ta res e su ces si vos e de seumú tuo re la ci o na men to nas cem as “dez mil co i sas”, isto é, toda a Na tu -re za. A dou tri na do Yin-Yang com bi na-se, no I-Ching ou Li vro dasMudan ças, com uma nu me ro lo gia sim bó li ca de ex tre ma com ple xi da de ein fluên cia, as sim como com o jogo dos tri gra mas. Arqui te to ni ca men tefa lan do, a sala do tro no é a sala cen tral num pa lá cio ide al de 5 ou de 9sa las. Tri gra mas e ele men tos fo ram ain da equa ci o na dos com as co res, as es tre las, os me te o ros, os “Cin co Sons”, os “Cin co Gos tos”, as “Cin coVir tu des”, as no tas mu si ca is e os me ses do ano, en glo ban do mais amedi ci na, a co zi nha e ou tras ma té ri as, até cons ti tu í rem, quan do ali menta daspela sim pa tia pe cu li ar dos chi ne ses pela ma ni pu la rão de nú me rosmágicos e de me di das sim bó li cas, um vas to e com ple xo sis te ma depensa men to “uni ver sa lis ta” de que a fi gu ra aqui pre sen te ofe re ce umaima gem sim pli fi ca da (pág. 117).

A apli ca ção des sas re gras de cor res pon dên cia à ar qui te tu ra eao ur ba nis mo cons ti tui, sem dú vi da, o tra ço mais ca rac te rís ti co de Pe king.Ve ja mos al guns exem plos cu ri o sos: o Tem plo do Céu é re don do por que o Céu, na me ta fí si ca chin, é con si de ra do um cír cu lo per fe i to. Si mi lar -men te, no Tem plo da Ter ra, o Altar da Agri cul tu ra é qua dra do, pois tal é a for ma da Ter ra. O Altar do Céu pos sui três ter ra ços de már mo re por -que três é o nú me ro Yang que re pre sen ta a uni da de cen tral en tre o parde li nhas fe mi ni nas do Yin. Nove de gra us con du zem a cada ter ra ço,por que nove é o nú me ro mís ti co do Céu, 3x3. O Pa lá cio Ide al deve ternove sa las e, na sala cen tral, re si de o Impe ra dor, Fi lho do Céu. Os blo cosde már mo re, na pla ta for ma su pe ri or do Altar, são dis pos tos em novecír cu los con cên tri cos. To das as ou tras me di das são múl ti plas de nove. Apró pria ba la us tra da de már mo re é for ma da de 360 pi la res, ou tro nú me ro

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sa gra do que re pre sen ta os 360 dias do ano lu nar e os 360 gra us do cír -cu lo ce les te. No ter re no das co res e da ori en ta ção, o mes mo res pe i to àsre gras sim bó li cas. O san tuá rio la ma ís ta edi fi ca do ao nor te, no eixo prin -ci pal da ci da de, cha ma-se Tem plo Ama re lo e pro te ge a me tró po le con -tra os es pí ri tos ma lig nos se ten tri o na is. A seu lado, o Altar da Ter ra tam -bém pos sui um te lha do de ce râ mi ca ama re la. Ain da mais ao nor te, en -con tram-se os tú mu los de Yung Loh e de ou tros mo nar cas Ming, pos toque é acon se lhá vel essa ori en ta ção a fim de res guar dar o eter no des can -so dos di nas tas de fun tos cu jos es pí ri tos pro te gem a ca pi tal (a mor te éYin e Yin pro vém do nor te). A les te da ci da de, er gue-se o Altar do Solcujo te lha do é ver me lho; a oes te o Altar da Lua cujo te lha do é bran co. Acor res pon dên cia é com ple ta da por con cep ções bu dis tas e cada um dosqua tro pon tos car de a is é pro te gi do por di vin da des fa bu lo sas, sim bo li za das, ao nor te, por uma tar ta ru ga, ao sul por um fê nix, a les te por um dra gãover de e a oes te por um ti gre bran co. Con fu ci us e seus dis cí pu los com -ple ta ram o sis te ma com uma éti ca ba se a da em tais cor res pon dên ci as ecom uma gran di o sa dou tri na po lí ti ca po la ri za da na fi gu ra do pa tri ar ca.Com efe i to, a Lei, o prin cí pio di vi no e de na tu re za es pi ri tu al que re gu lao flu xo eter no do Yin e do Yang e a cor re la ção en tre o Céu e a Ter ra écha ma do Tao. Tao sig ni fi ca “ca mi nho” isto é, sen ti do se cre to da har mo -nia e re con ci li a ção das for ças que pre si dem ao Cos mos. Tao é o cen tro, oful cro do mun do, e pode ser des cri to pela ima gem do eixo da roda. OHo mem-Per fe i to, o Ho mem-Único, isto é, o Impe ra dor ou o Sá bio Ilu -mi na do, são en car na ções do Tao e essa con cep ção fun da men tal, tam -bém a mais di fí cil de de fi nir, re la ci o na-se com o pa ra le lis mo en tre o Ma -cro cos mo e o Mi cro cos mo.

O flu xo eter no do du a lis mo Yin-Yang, co man da do pelo Tao,re per cu te no du a lis mo Céu-Terra. O Céu, Tien, que é Yang e pa tri ar cal,cons ti tui uma ca te go ria es pi ri tu al e cri a do ra, em bo ra não ca rac te ri za da -men te pessoal (e por esse mo ti vo foi tão di fí cil para os ca tó li cos chinesestra du zir a pa la vra Deus). A Ter ra, por ou tro lado, sim bo li za a Na tu re zater re na em seu todo, Yin, con ser va do ra e ma tri ar cal.

Fi nalmente, na ela bo ra rão fi lo só fi ca pos te ri or, sur gi ram asnoções abs tra tas de Po der ou Vir tu de, Tê (no sen ti do da Vir tus la ti na edo mana dos an tro pó lo gos) no ção so bre a qual in sis te Con fu ci us e seusdis cí pu los; e de Wu-wei li te ral men te “não-atividade”, que de fi ne a fi lo -

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so fia de Lao Tzu. To dos es ses du a lis mos têm sua per ti nên cia nas cogi ta ções que se se guem.

Após a sis te ma ti za ção das cren ças an ti gas e das di ver sas dou tri nas fi lo só fi cas, no pe río do de con so li da ção do Impé rio no ter ce i ro sé cu lo an tes de Cris to, a con cep ção pa tri ar cal tor nou-se a base dos dog mas ofi ci a -is. Se gun do essa con cep ção, o País Cen tral abran gia toda a hu ma ni da deci vi li za da e hi e rar qui ca men te or ga ni za da, na base da fa mí lia. O Impé rio,por con se guin te, era uma gran de fa mí lia cujo pa tri ar ca co ro a do me re ciares pe i to e obe diên cia e se obri ga va às vir tu des de be ne vo lên cia e de di ca -ção. Dado o ín ti mo pa ra le lis mo exis ten te en tre o Céu e a Ter ra, e en treo Ma cro cos mo, fí si co-po lí ti co, e o Mi cro cos mo, mo ral e in di vi du al, aoFi lho do Céu in cum bia o car go ex tra or di ná rio de pre si den te da har mo -nia uni ver sal. Como in ter me diá rio en tre as co i sas ce les tes e o mun doter res tre, de sua ação e, em úl ti ma aná li se, de sua “Vir tu de”, Tê, de pen -di am, na es fe ra po lí ti ca, a or dem, o pro gres so, o bem-es tar ma te ri al e apaz ex ter na e, na es fe ra ce les te, as con di ções me te o ro ló gi cas, o cli ma, a abun dân cia das chu vas da pri ma ve ra, a au sên cia de ca ta clis mos na tu ra -is e o êxi to das co lhe i tas. A sua di nas tia re ce bia um “Man da to” parabem go ver nar e, se gun do Men ci us, teó ri co des se sis te ma prag má ti co, asguer ras, a mi sé ria, os de sas tres, a cor rup ção e a imo ra li da de – ma le fí ci ospro vo ca do res da in va são es tran ge i ra ou da re vol ta po pu lar – eram sin to masde au sên cia de Vir tu de que de ter mi na vam, au to ma ti ca men te, a re ti ra dado man da to e a que da da di nas tia.

A apli ca ção de tal dou tri na, no ri tu al po lí ti co, con sis tia emidenti ficar o Ti en-Tao, o “Ca mi nho do Céu”, com o Wang Tao, o “Caminho do Rei”. Nes sas con di ções, a re si dên cia im pe ri al, li te ral men te descri tacomo o eixo do mun do, o pivô ou pon to de con ta to en tre os dois reinos,ce les te e ter res tre, e pólo da har mo nia uni ver sal, de via ser con ce bi dacomo cená rio dig no da ma jes to sa li tur gia que, te o ri ca men te, re pre sentavaa ra i son d’être do so be ra no.

Qualquer erro ar qui te tô ni co ou vi o la ção das re gras pro to co laresse ri am sus cep tí ve is de al te rar a se re ni da de do mo nar ca e, por tan to, deper turbar o fun ci o na men to su a ve do me ca nis mo cós mi co. Nes sascondi ções, a fun da ção e o pla ne ja men to de uma ca pi tal, bem como sualo ca li za ção, pos su íam um sen ti do ri tu al de ex tre ma re le vân cia pois dose gui men to cu i da do so das re gras de es ti lo, apli cá ve is ao caso, de pen dia

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não so men te o su ces so da di nas tia e a fe li ci da de do povo, mas a orde na ção dos fe nô me nos me te o ro ló gi cos e a paz uni ver sal.

Como apli car tal con cep ção uni ver sa lis ta à arte da lo ca li za rãodas ca pi tais e que sen ti do pos sui essa arte no sis te ma to tal da fi lo so fiachi ne sa? O Fun da dor deve de ter mi nar, com o au xí lio de as tró lo gos,geoman tas e adi vi nhos, os qua is ma ne jam os Tri gra mas sa gra dos einterpre tam os si na is dos as tros e ou tros prog nós ti cos à luz do Li vro dasMu dan ças, a po si ção exa ta da fu tu ra me tró po le onde se cru za rão as ro taspro ve ni en tes dos Qu a tro Can tos do Impé rio. De po is de exa mi nar ascon di ções das Águas e dos Ven tos e o jogo das Som bras e das Lu zes(Yin e Yang), o Fun da dor plan ta o Gnô mon. Ora, a ins pe ção dasSombras e das Lu zes é de sig na da, em ou tro an ti go li vro sa gra do doTao ís mo, pela pa la vra King que sig ni fi ca gnô mon, es ta be le cen do as sima cor re la ção ne ces sá ria com a as tro lo gia, a ciên cia dos ca len dá ri os e ane ces si da de de cada nova di nas tia par ti cu la ri zar, com uma nova era, oseu pe río do de do mí nio tem po ral no de sen vol vi men to cí cli co da his tória.Além dis so, a pa la vra apa ren ta-se, tan to na pro nún cia quan to na gra fiaide o gra má ti ca, à pa la vra King que de sig na a ca pi tal (em Pe-King,Nan-King, Chung-King, etc.). A as so ci a ção de idéi as as sim com pro va daapon ta para uma es tri ta in ter de pen dên cia en tre, de um lado, o ato deesco lha, a fun da ção e a cons tru ção de uma nova ca pi tal e, do ou tro, ade cre ta ção de um novo ca len dá rio e as ce ri mô ni as con sa gra das à im po -si ção do Man da to Ce les te que, na cons ti tu i ção se mi-religiosa do Império,dá le ga li da de ao po der. Em ou tras pa la vras, a ca pi tal as si na la a pre sen çade uma di nas tia no es pa ço como o ca len dá rio a par ti cu la ri za no tem po.

Se gun do os tex tos an ti gos, no mo men to su pre mo em que éfun da da a nova ca pi tal e em que se ma ni fes ta a Uni da de Cen tral re si den -te na Estre la Po lar, “o so be ra no go ver na os Quatro Pon tos Car de a is,separa o Yin do Yang, de ter mi na as Qu a tro Esta ções e a Esta ção Central,equi li bra os Cin co Ele men tos da ma té ria, fixa as con tas e faz evo lu ir asdi vi sões do Tem po e os de gra us do Céu e da Ter ra”! Em ou tros ter mos, a fun da ção de uma ca pi tal cons ti tui o mar co ina u gu ral de uma nova era,mo men to su pre mo em que se fun dem as ca te go ri as e se to cam o Céu ea Ter ra.

Na ca pi tal, es cre ve ain da Gra net, “a co le ti vi da de, o gru posocial co nhe ce sua di ver si da de, sua or dem e sua hi e rar quia. É ali que se

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tor na cons ci en te de sua for ça, una e com ple xa”. Por isso, “deve a ca pi tal ser es co lhi da de po is de uma ins pe ção dos es pa ços, num sí tio que ates tea vi zi nhan ça da ‘re si dên cia ce les te’, num sí tio que, pela con ver gên cia dos rios e a con fluên cia dos cli mas, re ve le sua qua li da de de cen tro do mundo”.Nes sa vi zi nhan ça, “as me di das das dis tân ci as são cons tan tes” e, comoes cre via Ssê Ma-tchen, o He ró do to chi nês, “aí, para tra zer o tri bu to dosQu atro Can tos do Mun do, as lé guas das es tra das são uni for mes” – conce i to que re ve la a in tu i ção, no de se nho de um mapa do Impé rio, da pro je çãoeqüi dis tan te cen tra li za da na ci da de-capital.

A de ter mi na ção do sí tio pro pí cio cons ti tui a ta re fa es pe cí fi cados ge o man tas. Orga ni za dos em uma es pé cie de “Co mis são para a Lo -ca li za ção da Ca pi tal”, os ge o man tas con si de ram o Feng-chui, isto é, osven tos (feng) e as águas (chui) da si tu a ção hi po té ti ca, le van do igual men teem con ta as som bras e as lu zes. O Feng-chui en glo ba um cor po de prá -ti cas tra di ci o na is cu jas ori gens se per dem na no i te dos tem pos em bo rasis te ma ti za das du ran te a di nas tia Han, em prin cí pi os de nos sa era. Inti -ma men te li ga das aos con ce i tos do Yin-Yang, às dou tri nas dos Cin coEle men tos e, em ge ral, às no ções de cor res pon dên cia já aci ma alu di das,re pre sen tam prá ti cas pse u do ci en tí fi cas ou má gi cas cujo in tu i to era aapli ca ção de re gras, de leis, de prin cí pi os ra ci o na is numa ciên cia ar ca i ca que se po de ria qua li fi car de to po lo gia ur ba na.

Ha bi tu a mo-nos, em nos so ra ci o cí nio mo der no, a de no mi nar“su pers ti ção” tais cren ças em for ças de ca rá ter mis te ri o so. Há, en tre tan -to, um pou co mais do que su pers ti ção em usos que vi sam sim ples men te a com pre en der e con tro lar es sas for ças. O Feng-Chui cons ti tui es sen ci -al men te uma for ma de in ves ti ga ção ci en tí fi ca, tal vez pri mi ti va e ir ri só riaem seus mé to dos, po rém cor re ta nos ob je ti vos fi na is. A ciên cia con tem -po râ nea não mais abor da tais con ce i tos “má gi cos” com olha res de in di -fe rença ou con des cen dên cia jo co sa. Sá bi os de re no me, como o psi cólogosu í ço C. G. Jung, re co nhe cem a qua li tas oc cul ta e a “va li da de re la ti va” dasprá ti cas da as tro lo gia, da al qui mia e da ge o man cia que con sis tem naapre ci a ção dos fe nô me nos “su pra nor ma is”, re la ci o na dos com a ati vi da -de in cons ci en te ou sub cons ci en te do es pí ri to hu ma no. Pri mi ti vo em bo ra como me to do lo gia, o Feng-chui pos sui sua va li da de re la ti va, se guin doob je ti vos pa ra le los aos da mo der na ge o gra fia, hi gi e ne e to po lo gia, bemcomo os do ur ba nis mo mais avan ça do.

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De trás da su pers ti ção en con tra mos, qua se sem pre, um in tu i to ra ci o nal e é de su por que a au sên cia des se in tu i to sig ni fi ca ria ape nas tersido seu mo ti vo ori gi nal ol vi da do ou cor rom pi do. Assim por exem plo,acre di ta vam os chi ne ses que os “es pí ri tos maus” ou de mô ni os sem previaja vam em li nha reta e, por essa ra zão, re ce a vam as pers pec ti vas re ti líneas. As por tas das ca sas, os por ta is das ci da des e pa lá ci os cos tu ma vam serin ter rom pi dos com bi om bos, mu ros ou ta bi ques de en con tro aos qua is,certa men te, se iri am cho car os de mô ni os. O prin ci pal te mor en de reça va-seaos ma le fí ci os se ten tri o na is e, por essa ra zão, a ori en ta ção para o sul eraacon se lha da às ci da des, aos pa lá ci os e às ca sas. Na re a li da de, do nor tesopram os ven tos fri os da Mon gó lia, pe ri go sos para a sa ú de, e astempes ta des de are ia, ca u sa do ras de gran de des con for to. Os bi om bos,pá ra-ventos, pa re des e por ta is têm em vis ta in ter cep tar as cor ren tes dear, res guar dar a in ti mi da de e ser vir de ele men to de co ra ti vo, além de,oca si o nal men te, an te pa ro para a de fe sa. Do nor te tam bém ema nam asin fluên ci as bar ba ri zan tes, do nor te pro ce dem as in va sões que, pe ri o di ca -men te, têm per tur ba do a es tru tu ra po lí ti ca e so ci al da Chi na. Já vi mos, a propósi to da “Co li na de Car vão”, como os in tu i tos má gi cos, de co ra tivos,defen si vos e prá ti cos mis tu ra vam-se de modo mu i to es tre i to. Um con ceitocomo o que pre si diu a cons tru ção des se an te pa ro ar ti fi ci al, no lado norteda Ci da de Pro i bi da, re ve la que a ima gem do ma le fí cio que vem do nor te en glo ba uma sé rie com ple xa de ex pe riên ci as no cam po da me di ci na, dame te o ro lo gia, da ge o lo gia, da cli ma to lo gia e, fi nal men te, da an tro po lo gia e da geopo lí ti ca. Em suma, as prá ti cas do Feng-chui e da es co lha dolocal pela ge o man cia e a as tro lo gia, os por ten tos, au gú ri os e ma ni pu laçõesvá ri as por par te dos má gi cos, as tró lo gos e adi vi nhos, as pre ces e sa cri fíciose outras tan tas ati vi da des ex tra or di ná ri as, vi sa vam exa ta men te osmesmos fins que nos pro po mos hoje al can çar, atra vés de nos sas ciên ciasanalí ti cas – ser vin do-se, en tre tan to, de um mé to do de ra ci o cí nio“univer sa lis ta”, ba se a do nas ca te go ri as fun da men ta is do Yin-Yang. e nano ção de cor res pon dên cia en tre as vá ri as es fe ras na tu ra is e hu ma nas.

Natural men te, a in su fi ciên cia dos co nhe ci men tos, as fan ta -sias ex tra va gan tes, ori un das das ge ne ra li za ções apres sa das do Ta o ís mopopu lar, e a de ge ne res cên cia na tu ral do pen sa men to chi nês (em con se qüênciade um con ser van tis mo pa to ló gi co de que só ago ra se está des ven ci -lhando) pro vo ca ram, em épo cas re cen tes, con fli tos e re sis tên ci as la men -

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tá ve is que atra sa ram o pro gres so téc ni co do país. No sé cu lo XIX, porexem plo, re gis trou-se uma opo si ção fer re nha con tra os tri lhos das es tra -das de fer ro, os pos tes de te lé gra fo e os en ca na men tos de es go toporque, su pos ta men te, do lo ro sos para a es pi nha dor sal do “dra gãosubter râ neo”, vi o la vam as re gras do Feng-chui. Mas, em sua con cep çãoori gi nal e viva, pres su pu nha a con vic ção acer ta da de que o ho mem é um frag men to in fi ni te si mal da na tu re za, e de que ele deve pro cu rar com pre -en der as for ças à sua vol ta a fim de que es sas for ças, por sua vez, oaceitem e in clu am na or dem dos pro ces sos cós mi cos.

Nos Ana lec tos de Con fu ci us, um dos li vros sa gra dos da Chi na,que cons ti tui como que uma co le tâ nea de cren ças e pen sa men tos an ti -qüís si mos, en con tra mos duas fra ses da ma i or im por tân cia para re tra çaras ori gens his tó ri cas do es que ma ur ba nís ti co chi nês. A pri me i ra é ase guin te:

Go ver nar com Tê é ser como a es tre la po larQue per ma ne ce em seu lu gar,Enquan to as ou tras gi ram em tor no dela.

A se gun da fra se, da mes ma obra, pode as sim ser tra du zi da:Orde nan do-se com toda a re ve rên cia, Ele (o Rei) vi rou-se para o sul, E isso foi su fi ci en te.

Essas duas sen ten ças fo ram ana li sa das pelo Rev. W. E. So ot -hill, em seu li vro The Hall of Light, que tra ta jus ta men te do sig ni fi ca dodo Ming Tang, o Pa lá cio Ide al de Nove Sa las. Em tem pos ime mo ri a is, oMing Tang era usa do pe los Reis à gui sa de pa vi lhão sa gra do para aelabo ra ção dos no vos ca len dá ri os, acom pa nha da de cer tas ob ser va çõesas tronô mi cas im pres cin dí ve is aos ri tu a is agrá ri os, de pro fun do sig ni ficadomá gi co, re la ci o na das com o mo vi men to do sol e o ci clo das es ta ções etendo como pro pó si to prin ci pal de ter mi nar a que da opor tu na das chuvas,pois a isso se re su mia a ad mi nis tra ção real. Se gun do So ot hill, a im pli ca -ção das duas fra ses alu di das é que, ou tro ra, bas ta va ao Rei sen tar-se notro no, na sala cen tral do Ming Tang, em ati tu de de não-atividade(Wu-wei), para que es pon ta ne a men te a Vir tu de, Tê, ne ces sá ria à mar chado mun do, dele ema nas se, com to dos os seus efe i tos be né fi cos. Lao Tzu ra ci o na li za ria o prin cí pio de Wu-wei, es ta be le cen do-o como pos tu la do

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éti co: “Qu an do re i na um Gran de-Homem,” di zia ele, “ao povo basta sa -ber que Ele ali está! Ho mens me nos gran des são ama dos e louva dos. Ho -mens ain da me nos gran des são te mi dos. E ho mens ain da me nos gran -des são des pre za dos!”.

Fun da mentado nes sas in ves ti ga ções, foi pos sí vel de du zir ocará ter es sen ci al men te re li gi o so do an ti go Rei, suas fun ções má gi cas, sua ativi da de de as trô no mo e seu pa pel so be ra no nos ri tos agrá ri os queestão na base do con ce i to cí cli co, tão ca rac te rís ti co da fi lo so fia chi ne sa.Assim pois, po de-se tam bém de du zir a evo lu ção do Ming-Tang até chegarao Tem plo do Céu, ao Pa lá cio Impe ri al e a todo o es que ma ur ba nís ti code Pe king, pa ra le la men te à evo lu ção do man da-chuva pri mi ti vo que setrans for mou em Impe ra dor. Pe king é a ex pres são fi nal de um de sen vol -vi men to mi le nar, ma te ri a li zan do a sé rie de no ções com ple xas de quepro cu ra mos dar um li ge i ro apa nha do.

Sen ta do no Tro no, na Ci da de Vi o le ta-púrpura que é, na ter ra,o que a es tre la po lar é no Céu, o Impe ra dor, imó vel, em ati tu de deWu-wei, olha para o sul, gal va ni zan do toda a vir tu de ima nen te que opos sui. Sen ta do no Tro no do Dra gão! O Dra gão, sím bo lo por ex ce lênciado Yang, ar qué ti po da for ça vi ril em seu as pec to fí si co e em seu as pec toes pi ri tu al, sím bo lo de tudo que é pe ne tran te, do prin cí pio ge ne ra ti vo na -tu ral e mo ral, da eter na trans for ma ção, do in fi ni to em ex pan são! O Dra -gão é o ani mal mí ti co por ex ce lên cia e o sím bo lo im pe ri al mais repre -sen ta ti vo. Foi o Dra gão que edi fi cou o Tem plo do Céu, qual pouso deonde se ele va ao fir ma men to. Sen ta do pois no Tro no do Dra gão, oFilho do Céu en con tra-se no cen tro ge o mé tri co da ca pi tal, a qual, simbo li -ca men te, é o cen tro or de na dor da Chi na, o País Cen tral, Chung-Kuo, oqual, por sua vez, é o cen tro do mun do. Pela sua sim ples pre sen ça,imóvel e si len ci o sa, o Impe ra dor, olhan do para o sul em ati tu de hi e rá tica,en car na Tao e res ta be le ce a har mo nia uni ver sal, tra ba lhan do no sen ti dode es ten der ao con jun to de seus sú di tos fiéis a soma de fe li ci da deequiva len te à sua pró pria vir tu de exem plar.

A ci da de de Pe king foi edi fi ca da de tal modo que, sen ta do noTro no do Dra gão, na Sala da Paz Su pre ma – Tai Ho Tien – o Fi lho doCéu, sem pre olhan do para o sul, go za va a es plên di da pers pec ti va doeixo nor te-sul, co lu na mes tre da ci da de. O olhar do mo nar ca atra ves sa -va, em ima gi na ção, os gran des por ta is e pá ti os da Ci da de Pur pú rea; tras -

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pas sa va Chi en Men e saía da ci da de tár ta ra e, cru zan do a ci da de chi ne sa, se guia a gran de via pro ces si o nal que, nos dias de ce ri mô nia so le ne, ocon du zi ram, à es quer da ao Tem plo do Céu, e à di re i ta ao Altar da Agri -cul tu ra; pe ne tra va, fi nal men te, além das mu ra lhas e con tem pla va oImpé rio in te i ro, pa cí fi co e prós pe ro, es ten di do a seus pés. Arte úni ca deum ur ba nis mo trans cen den te de cuja per fe i ta re a li za ção de pen dia a con -so nân cia dos fe nô me nos uni ver sa is! Em sua Ca pi tal do Nor te, pro te gi da con tra os es pí ri tos di a bó li cos que so pram do Se ten trião pela ca de ia demon ta nhas e a Gran de Mu ra lha, o Fi lho do Céu está mi ran do o sul. Aci da de tam bém en con trou a fór mu la ar qui te tô ni ca ca paz de lhe sa tis fa -zer a mag ní fi ca in ten ção: tam bém er gue sua “fa cha da” para o sul. O sulé toda a Chi na, ber ço e fon te dos es pí ri tos ben fa ze jos. Ali cres cem asge ra ções fu tu ras, for ças vi vas da na ci o na li da de. O Re i no tra ba lha empaz; os cam po ne ses la vram a ter ra; os rios cor rem su a ve men te, ser pen -te ando as pla ní ci es in fi ni tas; as ge ra ções no vas cres cem, como assemen tes plan ta das na pri ma ve ra, en quan to os an te pas sa dos re tor nam àterra de onde nas ce ram; a au ro ra des pon ta, ra di an te, a les te e, no cre pús cu lo, o Astro-Rei, Se nhor do Yang, mer gu lha com in com pa rá vel be le za de trás das mon ta nhas oci den ta is, para ce der lu gar à Lua, Ra i nha da No i te.Assim, o Impera dor, im pas sí vel em seu tro no, a imen sa pa i sa gemdescor ti na e com olhar ben fa ze jo ilu mi na a ter ra dos Fi lhos de Han.Atra vés de todo o flo ri do Re i no Cen tral, o mais hu mil de cam po nês,sen ta do em fren te de sua mo des ta chou pa na, en ca ran do se re na men te osul, con tem plan do a ter ra que tra ba lhou com o suor de seu ros to e onde dor mem seus an te pas sa dos, res ta be le ce com esse ato a har mo niatranscen den te, nos li mi tes de seu pe que no uni ver so...

Con cep ção uni ver sal e ab so lu ta, per fe i ta men te ló gi ca em suasapli ca ções par ti cu la res, pri mi ti va e in fan til, qui çá em seus co nhe ci men -tos ci en tí fi cos, mas pro fun da em en ten di men to hu ma no, tan to as simque du rou três mil anos, for ma ela uma sín te se con ser va do ra e imu tá velque, con tras tan do com o es pí ri to ana lí ti co e in cons tan te da fi lo so fiaoci den tal mo der na, só é com pa rá vel, em am pli dão, à “Con cep ção domun do” do Cris ti a nis mo me di e val. A Arqui te tu ra e o Urba nis mo dePe king são par tes in te gran tes des sa fi lo so fia, par te por ven tu ra das maisex pres si vas.

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Além de fi lo so fia, tais con cep ções cons ti tu em uma éti ca euma arte: a arte de adap ta ção do ho mem ao meio cós mi co. Assim como a ética cri ou essa fi gu ra se re na do le tra do chi nês, da gran de épo ca, também a arte con tri bu iu para a es plên di da dis ci pli na da ar qui te tu ra chi ne sa epara um urbanis mo que, afi nal de con tas, con sis tiu no pla ne ja mentora ci o nal de um vas to re cin to ur ba no – o pla ne ja men to de uma ci da decomo se fora uma casa e, ao mes mo tem po, um san tuá rio – des ti na da àre si dên cia ri tu al do Fi lho do Céu, de sua Cor te e de seu povo.

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Ku blai-Khan, Impe ra dor mon gol, sob cujo re i na do Tai-Tu (Pe king) foi, pela pri me i ra vez, Ca pi tal de toda a Chi na

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Di a gra ma das cor re la ções me ta fí si cas, se gun do as con cep ções tra di ci o na is do I-Ching,ou “li vro das Mu dan ças”. Essa Escri tu ra, que é uma das fo ntes da fi lo so fia ta o ís ta,

ser via aos ge o ma ntas, adi vi nhos e as tró lo gos, bem como aos ar qui te tos e ur ba nis tas. O de se nho da plan ta de Pe king re fle te tais no ções que

pre si di am ao ce ri mo ni al re li gi o so do Esta do

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PEKING – Plan ta da ci da de du ran te a di nas tia Mand chu

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Plan ta de Be id jing no ano 2000. O tra ça do ori gi nal ain da pode ser des co ber to na Ci da de Pro i bi da e nas ave ni das de con tor no que ocu pam o lu gar das an ti gas mu ra lhas

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VINo Ja pão: Nará, Kyo to, Tó quio

O pro ble ma so bre o qual de se ja mos ago ra nos fi xar é o da cor re la ção exis ten te, mesmo num país tão pe que no quan to o Ja pão,entre as mu dan ças de ca pi tal e a trans la da ção do eixo po lí ti co do Estado,bem como en tre es ses acon te ci men tos e o iní cio de cer tas épo cas bemde fi ni das na vida do povo.

Tanto quan to se pode de pre en der das pes qui sas ar que o lógicas,de men ções mu i to va gas em crô ni cas chi ne sas e da in ter pre ta ção daslen das e mi tos na ci o na is, o pri me i ro cen tro po lí ti co do ar qui pé la goter-se-ia con so li da do a les te da ilha de Kyus hú onde se de sen vol veu umre gime com ca rac te rís ti cas ma tri ar ca is. Esse es ta do pri mi ti vo, que oschine ses cha ma vam “País da Ra i nha”, se ria sim ples men te a mo ra dadaque les an te pas sa dos que, na ela bo ra ção mi to ló gi ca do Xin to ís moposteri or, se tor na ram os de u ses fun da do res do Impé rio e, es pe ci al mente,Ama te ra sú, a De u sa do Sol, as cen den te da Casa Re i nan te. A re gião ha bi -ta da por es ses pri me i ros ja po ne ses era cons ti tu í da por uma pla ní cie dealu vião, fa vo rá vel à cul tu ra do ar roz. Na re gião de Idzu mô, po rém,outro cen tro de cul tu ra, mais avan ça do no co nhe ci men to da me ta lur giae mais mes cla do de ele men tos con ti nen ta is, pro gre dia em con ta to com a Co réia. Cer ca do ter ce i ro ou quar to sé cu lo de nos sa era, o “Pri me i ro

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Impe ra dor” do Ja pão Jim mu Ten nô, fi gu ra he rói ca e len dá ria, di ri giuuma ex pe di ção de con quis ta que, par tin do de Kyus hú, sub me teu clãsini mi gos de Idzu mô e con quis tou a re gião do Ya ma tô, a se gun da pla ní -cie de alu vião pró pria para a agri cul tu ra e fu tu ro cen tro da ci vi li za çãoclás si ca ja po ne sa. O Impé rio as sim fun da do e go ver na do pelo clã daDe u sa So lar, for ta le ceu-se em Ya ma tô pela sub mis são pro gres si va dastri bos re bel des vi zi nhas. Nos sé cu los se guin tes, con tam-nos as crô ni casda épo ca len dá ria que con ti nu ou sua ex pan são para o ori en te, em lu tasconstan tes con tra os bár ba ros Ainu que lhe dis pu ta vam o ter re no. Yamatôquer di zer “Por ta da Mon ta nha”. Os ho mens do Ya ma tô, isto é, osjapo ne ses atra ves sa ram os pas sos mon ta nho sos que os se pa ra vam daregião onde se er gue hoje a ci da de de Na go yá e pe ne tra ram na ter ce i ra e mais im por tan te pla ní cie de alu vião do ar qui pé la go, a pla ní cie do Kwantôque ali men ta hoje Tó quio e Yo ko ha ma.

As crô ni cas an ti gas re gis tram vá ri as mu dan ças de re si dên ciado Mi ka do, nes se pe río do pri mi ti vo de ocu pa ção do ar qui pé la go. Tra -ta-se, pro va vel men te, de ma ni fes ta ções tí pi cas de um bar ba ris mo ain danão ul tra pas sa do. As crô ni cas fa zem cons tar mu dan ças após cada re i na -do, o fato es tan do as so ci a do, ao que pa re ce, a cer tas prá ti cas re li gi o sasxin to ís tas re la ci o na das com o tabu da mor te. A mor te, como aliás o par -to, as re la ções se xu a is, as do en ças e as fe ri das, eram con si de ra das co i sasim pu ras que de vi am ser iso la das a fim de não cons pur car os ho mens.Assim, do mes mo modo como ha via ca ba nas es pe ci a is de par to e ca ba -nas nup ci a is, as ca sas eram aban do na das quan do mor ria al guém. A mor -te de um Impe ra dor acar re ta va o aban do no de seu pa lá cio. Como ascons tru ções eram en tão de uma sim pli ci da de ab so lu ta, tor na va-se maisfá cil e ba ra to constru ir uma nova re si dên cia, em ou tro lo cal, do quepuri fi car e con ser tar a mo ra da de um fa le ci do Impe ra dor. To dos es ses“Pa lá ci os-Capitais” do Ja pão pri mi ti vo man ti ve ram-se na re gião cen traldo Ya ma tô, não dis tan do se não al guns qui lô me tros uns dos ou tros. Nosé culo quin to de nos sa era, mas so bre tu do a par tir do sé cu lo sex to, oJapão atra ves sa a sua pri me i ra gran de re vo lu ção cul tu ral, con se qüen te àin tro du ção do Bu dis mo e da ci viliza ção chi ne sa. O sé cu lo sé ti moconstitui um pe río do de in ten sa trans for ma ção, mu i to se me lhan te a queo Impé rio so freu no sé cu lo XIX. Ao prin ci pi ar a era pro pri a men tehistó ri ca da ci vi li za ção ja po ne sa, de ve mos por tan to ca rac te ri zar es ses

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dois fe nô me nos fun da men ta is: a ex pan são em di re ção ao nor des te, istoé, à pla ní cie do Kwan tô (vide mapa II); e a trans for ma ção re sul tan te das relações po lí ti cas, re li gi o sas e cul tu ra is com a Chi na e a Co réia. Se ainsta la ção do clã im pe ri al na re gião do Ya ma tô é a ex pres são do pri meirofe nô meno men ci o na do, a cons tru ção da ci da de de Nará, a pri me i raverda de i ra ca pi tal do Ja pão, é o pon to cul mi nan te do se gun do.

A edi fi ca ção da ca pi tal sig ni fi ca, an tes de tudo, a ins ta la çãoper ma nen te do Ten nô com sua Cor te. Nos prin cí pi os do sé cu lo sé ti moos “pa lá ci os” já ha vi am co me ça do a ad qui rir es ta bi li da de e uma for machi ne sa, à me di da que mais se apro fun da vam as in fluên ci as con ti nen ta is. É no ano 690 que se re a li za pela pri me i ra vez, no Pa lá cio de Fu ji wa rá, otipo ur ba nís ti co da ca pi tal chi ne sa. Assim mes mo, essa re si dên cia só foiapro ve i ta da du ran te dois re i na dos. Em Nará, ina u gu ra da em 710, ini -cia-se ver da de i ra men te a ida de das aglo me ra ções ur ba nas. A ar qui te tu racon ti nen tal era mais cara pois uti li za va ali cer ces só li dos, mu ros de pe drae de co ra ções cus to sas, exi gin do um grau con si de rá vel de pro gres so técni co, ar tís ti co e so ci al. A cons tru ção da pri me i ra ca pi tal per ma nen te do Ja pãoco in ci de, por tan to, com o fas tí gio da in fluên cia chi ne sa.

A glo ri o sa di nas tia Tang re i na va en tão so bre o Impé rio Central e o pres tí gio da sua ci vi li za ção eco a va por toda a Ásia. Os Ten nôs re for -madores do mo men to so sé cu lo sé ti mo ha vi am to ma do o há bi to deenviar Embai xa do res ao Fi lho do Céu. Eram mis sões de es tu do quevolta vam ofus ca das com o es plen dor da ca pi tal dos Tang no apo geu.Por ou tro lado, o Ja pão dava en tu siás ti ca aco lhi da a co re a nos ilus tres, are fu gi a dos chi ne ses e até mes mo a mon ges bu dis tas che ga dos da lon gín -qua e mis te ri o sa Índia. As pa la vras dos cul tos imi gran tes im pres si o na -vam a fun do os rús ti cos ni pô ni cos: “O País dos Tang é um país ma ra vi -lho so cu jas leis são com ple tas e imu tá ve is. Vós de ve is com ele man tercon ta tos per ma nen tes”... O Ja pão foi sen do as sim con quis ta do, não pelasar mas mas pela cul tu ra chin, a tal pon to que mu i tos au to res fa lam na“si ni za ção do ve lho Ya ma tô e de suas ins ti tu i ções”. Na ver da de, o Ja pão en tra va para a es fe ra de cul tu ra que se es ten de so bre todo o Extre mo-Ori en te e que pode ser sim ples men te de fi ni da pelo uso da es cri ta ide o -grá fi ca chin. Mu i tos dos as pec tos que jul ga mos ain da hoje ti pi ca men teni pô ni cos, como a de co ra ção ar qui te tô ni ca, os te lha dos em pon tas

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levan ta das, a in du men tá ria (o Ki mo no) ou a ce ri mô nia do chá re pre sentam ape nas a Chi na da di nas tia Tang mi la gro sa men te con ser va da.

Na cons tru ção de Nará os ja po ne ses, dis cí pu los fiéis, segui ramà ris ca o gran de pla no, si mé tri co e mo nu men tal, da ca pi tal chi ne sa-tipo,o pla no, em suma, de que foi Be id jing o de sen vol vi men to má xi mo. Nãose sabe exa ta men te se o mo de lo foi uma ca pi tal chi ne sa es pe cí fi ca, Sianpor exem plo, uma “ci da de ide al” ou mes mo uma có pia co re a na, o que épos sí vel vis to a Co réia ter sido o gran de ve í cu lo das idéi as chi ne sas. János re fe ri mos, a pro pó si to, ao sig ni fi ca do me ta fí si co da cons tru ção eorien ta ção de uma ci da de chi ne sa. Em Nará, as mes mas no ções pre si diram ao pla ne ja men to e fo ram, não há dú vi da, as mis sões de es tu dos mandadas ao con ti nen te ou ar qui te tos chi ne ses es pe ci al men te co mis si o na dos paraa obra, que lhe tra ça ram a plan ta e cons tru í ram os mais im por tan tes edi -fí ci os. Ao ado tar o as pec to ex te ri or, o pro to co lo, a má qui na bu ro crá ti cae o gos to pelo es plen dor que ca rac te ri za vam o sis te ma chi nês, foi amonar quia in su lar igual men te obri ga da a imi tar-lhe o ce ná rio re si den ci al.

Que es for ço ex tra or di ná rio tal obra deve ter exi gi do! Tra ta -va-se de trans for mar a ci vi li za ção tra di ci o nal, a es tru tu ra go ver na men tal, os gos tos e cos tu mes e até a ma ne i ra de pen sar de um povo in te i ro! Tales for ço só tem equi va len te no pro ces so igual por que pas sou o Ja pãonos úl ti mos 200 anos. Como es cre ve Sir Ge or ge Sam son, “na ma i orparte das ve zes, os ja po ne ses ti nham, como mo de lo, não co i sas, masapenas des cri ções de co i sas; e o que é pior, des cri ções numa lín gua estra nha. O pla no de uma gran de ci da de po dia ser co pi a do, em bo ra a vida que aani ma va não pu des se ser re pro du zi da. Nará foi uma có pia e, nãoobstan te, algo mais es plên di do do que tudo que, no Ja pão, fora an tesco nhe ci do. Não sem re sis tên ci as te na zes por par te de con ser va do res,de se jo sos de pre ser var a sim pli ci da de de suas mo ra das pri mi ti vas, fo ram imi ta dos, com um ar dor qua se fre né ti co, os pa lá ci os e os tem plos deChang Nhan, Lo yang e de Sian, com seus ta pe tes, seus ob je tos ar tís ti cos de bron ze, por ce la na e mar fim; pin tu ras so bre seda; abun dan te mo bi liá -rio; de co ra ção mul ti cor; te lha dos de lou sa ou ce râ mi ca; e todo o luxosu pér fluo da Chi na. De sen vol veu-se as sim uma cul tu ra sui ge ne ris, a maisbri lhan te a mais he do nis ta e mais ex tra va gan te que o Ja pão ja ma is co -nhe ceu. A exis tên cia num pla no su bli ma do, em toda a ple ni tu de do quejá foi chama do “La Chi ne Jo ye u se”, exer ceu uma fas ci na ção apa i xo nada na

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alma dos “ca i pi ras” do ar qui pé la go. Mas en quan to seus há bi tos eatitu des eram pro fun da men te mo di fi ca dos, sou be ram tam bém adap tar a abun dân cia chi ne sa ao gos to ina to pela sim pli ci da de, e ao es ti lo rús ti code sa bor me ri di o nal que sem pre lhes ca rac te ri zou a arte. Ina u gu ran do apri me i ra me tró po le que edi fi ca vam, logo após aban do na rem suaspeque nas al de i as tri ba is, os ja po ne ses re a li za ram um tra ba lho per fe i to de adap ta ção, o que de mons tra, já no sé cu lo oi ta vo de nos sa era, seu sen tidoartís ti co ex tre ma men te agu do, re fi na do, e ex tra or di ná rio po der de as si mi la -ção.

No ter re no re li gi o so, a era de Nará mar ca o tri un fo fi nal doBu dis mo. A cons tru ção dos mos te i ros do Hor yu jí, Ya kus hi jí, Ko fu ku jí e Toda i jí, na pró pria ci da de e nos ar re do res, cons ti tui o apo geu da artereli gi o sa ni pô ni ca. Entre os mo nu men tos mais im por tan tes da épo ca, ecujo de síg nio se cre to era al can çar e, se pos sí vel, ul tra pas sar a mag ni fi -cência da ar qui te tu ra chi ne sa, de ve mos no tar o gran de “Pa vi lhão Dou rado”,Kon dô, do Hor yu jí, exem plo mag ní fi co de ar qui te tu ra re li gi o sa peladispo si ção har mô ni ca em que se en con tra no con jun to ar ti cu la do domos te i ro; a Pa go da de Três Anda res do Ya kus hi jí, tor re per fe i ta men tepropor ci o na da que de i xa uma im pres são de gran de za e le ve za; e oDaibut sú ou “Gran de Buda” que se en con tra no enor me pa vi lhão domos te i ro To da i jí.

Lo ca li za da na par te sep ten tri o nal da pro vín cia de Ya ma tô,Nará, cujo tí tu lo ofi ci al foi He i jô, “Ci da de la da Paz”, ocu pa um lu gar, ao pé de co li nas su a ves, co ber tas de car va lhos e crip to mé ri as, numa daspaisa gens mais pi to res cas do Ja pão. Sua per ma nên cia como ca pi taldurou ape nas sete re i na dos, de 710 a 784, con ser van do des de en tão apaz do si lên cio à qual ha via sido con sa gra da.

O aban do no da ca pi tal é atri bu í do ao de se jo do Impe ra dorKwam mu (783-805), uma das per so na li da des mais for tes da di nas tia, dese sub tra ir à in fluên cia opres si va do cle ro bu dis ta. Nes se sen ti do, seusmotivos lem bram os que de ter mi na ram Akhe na ton a aban do nar The bas.Kwam mu ja ma is con des cen de ra a gran des de mons tra ções de de vo çãopela fé do Buda se não que, pelo con trá rio, sua edu ca ção na uni ver si da de con fu ci o nis ta deve tê-lo im bu í do de idéi as mu i to de fi ni das quan to aopa pel do prín ci pe num Esta do or ga ni za do... à chi ne sa. Ao cin gir as TrêsJói as Sa gra das da Co roa dera uma pro va do seu va lor po lí ti co. Ou tras

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in tri gas de Cor te po dem ter ins pi ra do a de ci são de trans fe rir a sede doMi ka dô. De qual quer ma ne i ra, o aban do no de Nará foi sú bi to e isso nomomento em que o te sou ro im pe ri al se en con tra va par ti cu lar men tedeficitá rio em con se qüên cia, en tre ou tras co i sas, das des pe sas des co munais que ha vi am sido efe tu a das no pla ne ja men to e cons tru ção dos edi fí ci osda ca pi tal: pa ra do xos de uma ad mi nis tra ção!

No quin to mês do ano de 784 uma Co mis são para a lo ca li zaçãoda nova ca pi tal es co lheu um sí tio em Na ga o ká e, de po is das con sul tasde pra xe aos má gi cos adi vi nhos e de co mu ni ca ções sa cra men ta is aosma nes an ces tra is, o tra ba lho teve iní cio sob a di re ção de Fu ji wa rá Ta net -su gú, mi nis tro po de ro so e fa vo ri to do Impe ra dor. O pri me i ro edi fí ciole van ta do foi na tu ral men te o pa lá cio im pe ri al. Di zem as crô ni cas que,em de ter mi na do mo men to, cer ca de tre zen tos mil ope rá ri os es ti ve ramem pe nha dos na em pre sa o que de mons tra de que me i os con si de rá ve is já po di am dis por os mo nar cas ni pô ni cos para a re a li za ção de seus pla nosde obras pú bli cas. Tem-se a im pres são de uma es pé cie de mo bi li za çãoge ral para par ti ci par de tão con si de rá vel re a li za ção. Du ran te dez anos aobra pros se guiu e eis se não quan do, no ano 793, tão ra pi da men te quantoes co lhi da, a ci da de foi des pre za da e o tro no mais uma vez trans fe ri do.O as sas sí nio de Fu ji wa rá é apre sen ta do como o mo ti vo da ocor rên cia.O fa vo ri to tal vez haja sido en vol vi do numa ne go ci a ta não mu i to lí ci tacom mem bros de po de ro sa fa mí lia da Cor te a quem pro me te ra promoçãona es ca la hi e rár qui ca ad mi nis tra ti va... o que pro va que es pe cu la ções dessana tu re za não são ex clu si vas de nos sa épo ca.

Na base das con clu sões dos as tró lo gos e ge o man tas, a es co lha re ca iu num pon to dis tan te de me nos de oito qui lô me tros do lo cal an te -ri or. Con sa gra da em maio de 793, a ca pi tal foi ocu pa da em ou tu bro de795 quan do, para o pa lá cio re cém-terminado, se trans fe riu o Impe ra dor. A “Co mis são de Obras” no en tan to só foi su pri mi da dez anos de po is.Ba ti za da com o tí tu lo ri tu al de “Ca pi tal da Paz e Tran qüi li da de”,Heian-kyô, e tam bém co nhe ci da como Mi ya kô e Sa ig yô (“Ca pi talOciden tal”), é a ci da de mais fa mo sa com o nome de Kyo tô. Du ran teonze sé cu los ia ser a sede ofi ci al do Ten nô, sen do de su por que essalon ge vi da de, ex cep ci o nal no Ja pão, se deva às ca rac te rís ti cas fa vo rá ve isdo sí tio es co lhi do, do que te mos, aliás, uma pro va adi ci o nal na cir cuns -tân cia de con ti nu ar até hoje como im por tan te aglo me ra ção ur ba na.

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Kyoto está lo ca li za da no vale do Ka mo ga wâ e cer ca da depito res cas co li nas co ber tas de bos ques, o Aras hi ya mâ, do mi na das poruma sé rie de mos te i ros bu dis tas. Ela en con tra-se a cer ca de dez qui lô me trosdo lago Biwâ com o qual está li ga da por um ca nal. A pa i sa gem cir cundan te é tal vez ain da mais en can ta do ra do que a de Nará e, como aque la, He i an foi pla ni fi ca da de acor do com o mo de lo chi nês: re tân gu lo apro xi ma dode cin co e meio qui lô me tros de com pri men to, no eixo nor te-sul, porqua tro e meio de lar gu ra no eixo les te-oeste. No in te ri or, o es quemafami li ar de gre lha, com suas ave ni das axi a is cor ta das por ruas em ân gu lo reto. Os en ge nhe i ros apro ve i ta ram um li ge i ro de cli ve da mon ta nha parade se nhar fos sos, pa ra le los às ave ni das, por onde a água cor ria su a ve -men te pela for ça da gra vi da de, a fim de abas te cer a po pu la ção. De vi do à na tu re za aci den ta da do ter re no, não foi pos sí vel o de se nho dos tem plos, mos te i ros e pa lá ci os em vas tas ex ten sões pla nas, o que per mi tiu a uti li -za ção das en cos tas mon ta nho sas para be los efe i tos pa i sa gís ti cos. Valeno tar que o ca rá ter an ti-clerical da ini ci a ti va do Impe ra dor Kwam mu sere ve la na im por tân cia me nor da área re ser va da aos tem plos bu dis tas:dois gran des mos te i ros ape nas, co lo ca dos den tro do re cin to ur ba no,equi li bra dos a les te e a oes te da ave ni da axi al e cla ra men te su bor di na dos ao Pa lá cio Impe ri al. Na par te nor te do es que ma es ten dia-se, como nomo de lo chi nês, o qua dri lá te ro da Ci da de Impe ri al com um qui lô me tro emeio de lado, cer ca da de mu ra lhas flan que a das de tor res e li ga da ao exte ri orpor qua tor ze gran des por tas. A ci da de in clu ía um con jun to de pa lá ci os,tem plos, sa las para ce ri mô ni as es pe ci a is, pe que nos san tuá ri os da re li gião na ci o nal, mo nu men tos, jar dins en can ta do res e as se des dos prin ci pa isde par ta men tos do Esta do. Den tro da Ci da de Impe ri al, re cin to maiscon si de rá vel era o das Au diên ci as, Tcho do in, que se guia es tri ta men te omo de lo da di nas tia Tang. O Pá tio era uti li za do para as mais so le nes ce ri -mô ni as do Esta do tais como co ro a ções, en tre gas de cre den ci a is, au diênci as do Ano Novo. Den tro dele er guia-se, de po is de um Por tal de Hon ra enova área vesti bu lar, a prin ci pal es tru tu ra do con jun to im pe ri al, o DaigokúDen, ou “Gran de Sala de Esta do”. Nes sa enor me cons tru ção de madeira,a Sala do Tro no trans for ma ra-se e se adap ta ra ao gos to ni pô ni co.

A ar qui te tu ra do pri me i ro pe río do de He i an re ve la ain da opo de ro so im pac to da Chi na. Mas in fluên ci as na ci o na li za do ras co me çam a se fa zer sen tir, ab sor ven do o es ti lo ao gê nio pe cu li ar da raça. A pa i sagem

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de Kyo to con tri bu iu para a ação emi nen te da na tu re za so bre as for masar qui te tô ni cas. As duas gran des se i tas eso té ri cas bu dis tas, im por ta das do con ti nen te nes sa épo ca, con cor re ram para o mes mo efe i to: os mos te i ros de Hi ye i zan e de Ko ya san, edi fi ca dos per to de Kyo to so bre co li nas den -sa men te ar bo ri za das, obe de cem a um de se nho mais li vre e uti li zam osmate ri a is na ti vos, re ve lan do os pri me i ros si na is da na ci o na li za ção daar qui te tu ra que se pro ces sa a par tir do sé cu lo dé ci mo. Diz Ale xan dreSo per que, nas gran des man sões de He i an, se en con tra vam e mes cla vam o que so bre vi via de três tra di ções, ou tro ra par ci al men te in de pen den tes:a pom pa do pa lá cio chi nês, a in ti mi da de do lar ni pô ni co e o trans mun -da nismo do tem plo bu dis ta. No tipo ide al des sas re si dên ci as aris to cráti cas,cria-se o es ti lo que os téc ni cos cha mam hoje de shin den-zukurí em que,den tro de uma es tru tu ra ge ral ain da or ga ni za da, si mé tri ca, for ma lis ta eor to do xa men te ori en ta da para o sul, se des ta cam os pri me i ros si na is daen can ta do ra in for ma li da de da casa ja po ne sa tí pi ca.

Co men tan do so bre a ele gân cia da Cor te de He i an, afir ma SirGeorge Sam son que não de ve mos apre ciá-la em ter mos de ex travagân ciae de luxo. “Sem pre hou ve na vida ja po ne sa uma cor ren te per sis ten te desim pli ci da de e fru ga li da de cuja ten dên cia pre ve niu ex ces sos gros se i ros”. Con se qüen te men te, no con jun to ar qui te tô ni co de Kyo to, “o efe i to to taldeve ter sido de be le za fria e se ve ra, mais do que de mag ni fi cên cia. Fal -ta vam-lhe as qua li da des quen tes da exu be rân cia e es plen dor”. Não senota em Kyo to a gran de za mo nu men tal, a enor mi da de de con cep ção e a os ten ta ção de co ra ti va que ca rac te ri zam Be id jing, Sian, Nand jing ouHang show. Cos tu ma di zer-se que o ja po nês foi pe que no no gran de egran de no pe que no, mas isso não des me re ce e, pelo con trá rio, sa li en ta o ex tra or di ná rio sen ti do es té ti co des se povo. A be le za, no Ja pão, deve serpro cu ra da no dis cre to por me nor en can ta dor, no re can to do jar dim, nacurva su a ve de um te lha do, na at mos fe ra de um pá tio re côn di to. O próprio Bu dis mo con tri bu iu para essa sen si bi li da de de li ca da ao pro cu rar re pro -du zir, na ter ra, o doce ide al do Pa ra í so do Buda Ami da, idéia que ja ma isocor re ria a um chi nês.

A re si dên cia do Mi ka do não tar dou em atra ir uma po pu la çãoque deve ter atin gi do a per to de meio mi lhão de ha bi tan tes, ci fra co lossalpara a época. Kyo to tor nou-se uma das ma i o res ci da des do mun do,talvez ape nas so bre pu ja da pela ca pi tal dos Tang, a Bag dad dos Kha li fas

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e a Cons tan ti no pla dos Ba si léis. Na Ida de de Ouro do ve lho Ja pão eraum conglo me ra do de ca sas de ma de i ra, ene gre ci das pelo tem po, de parques, de cla us tros e de pa lá ci os sun tu o sos, cor ta do de gran des ruas e es tre i tosca na is, onde pe ram bu la vam os pe re gri nos, os sa mu ra is, os sa cer do tes, os gran des se nho res fe u da is, os no bres da Cor te e a es pes sa mul ti dão dabur gue sia, de ar te sãos e ser vi do res. O cres ci men to in dus tri al do Ja pãoapós a II Gu er ra Mun di al pre ju di cou, in fe liz men te, a be le za sim ples etão bem in te gra da na na tu re za da ci da de que eu co nhe ci em 1941. Opre ço do de sen vol vi men to foi ele va do, em ter mos es té ti cos. Foi-se ama i or par te das ma ni fes ta ções de flo res ci men to ar tís ti co, in te lec tu al ere li gi o so que tudo im preg na va com o ca rá ter tão ab so lu ta men te ja po nês que co lo re to das as cri a ções do gê nio do povo ni pô ni co.

Kyoto era um mun do à par te, des li ga do do res to do país. Oin te ri or, a pro vín cia, é pra ti ca men te ig no ra do pe las crô ni cas da épo caque qua se não nos for ne cem in di ca ções so bre o de sen vol vi men to dores to do Impé rio. Essa se pa ra ção en tre ca pi tal e pro vín cia acen tua-se no sé cu lo XI quan do en tra o Ja pão, fran ca men te, em sua ida de fe u dal. Oscor te sãos, os mon ges e os bur gue ses de Kyo to, iso la dos em sua tor re de mar fim, vi ven do um so nho de paz e de be le za, tão ir re al quan to re quin -ta do, pen sam na Chi na e des co nhe cem a dura re a li da de de violên cia,pobre za e fome que os cir cun da. A re gião do Kwan tô, além do Fu ji yamá,pon to cul mi nan te da pa i sa gem ja po ne sa clás si ca, é a fron te i ra hu ma na, o li mes onde a nova clas se guer re i ra luta con tra os bár ba ros Ainu e desbravao que se po de ria cha mar o “ser tão” ni pô ni co. Aí, na re gião das mar casori entais, cons ti tu em-se as gran des ca sas fe u da is que do mi na ri am o Japãono perío do se guin te e, en quan to de cai a mo nar quia em po der e pres tígio,pela prática le va da a ex tre mos ri dí cu los de co ro ar me no res – en frentam-seem fe roz guer ra ci vil o clã dos Ta i rá e o clã dos Mi na mo tô.

Em 1185, Yo ri to mô, che fe da Casa Mi na mo tô, tri un fa so brea ini mi ga e pro cla ma-se Xô gun, isto é, “Ge ne ra lís si mo das tro pas man -da das con tra os bár ba ros”, es ta be le cen do um re gi me de di ta du ra mi li tarcuja sede foi a ci da de de Ka ma ku rá, não lon ge da mo der na Yo ko ha ma.O Ja pão co nhe ceu en tão um re gi me de go ver no dual que é ca rac te rís ti co de seu sis te ma po lí ti co. Ao lado do Impe ra dor, fi gu ra sa cros san ta, pon tí -fi ce do cul to xin to ís ta e her de i ro ve ne rá vel da tra di ção ime mo ri al daDeusa So lar – des pro vi do po rém de todo po der efe ti vo – le van ta-se o

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Xô gun, es pé cie de Chan ce ler im pe ri al e che fe da casa feu dal he ge mô nica. Ora, ao du a lis mo de go ver no cor res pon de um du a lis mo ge o po lí ti co,com re fle xos na vida so ci al, nas ar tes e na re li gião. O Impe ra dor re si deem Kyo to. À sua vol ta, a aris to cra cia pa la ci a na tra di ci o nal ha bi ta as cha -ma das “cin co pro vín ci as do més ti cas”, cen tro pri mi ti vo do Impé rio. OXô gun re si de em Ka ma ku rá, na mar ca fron te i ri ça ori en tal pró xi ma àsfon tes de seu po der. Como re sul ta do des sa di vi são de au to ri da de – es pi -ri tu al e tem po ral – o Impé rio pos sui duas ca pi ta is que po de mos de fi nircomo a ca pi tal ofi ci al do Ten nô e a ca pi tal ad mi nis tra ti va ou Qu ar -tel-General do Xô gun – fato iné di to que cons ti tui uma das cu ri o si da desda his tó ria ja po ne sa, ilus tran do mag ni fi ca men te o du plo pa pel, es pi ri tu al e po lí ti co, que as ca pi ta is nor mal men te de sem pe nham e que, nes te caso,foi dis so ci a do em seus com po nen tes sim bó li co e prá ti co.

Du ran te per to de cen to e cin qüen ta anos Ka ma ku rá go ver nou o Ja pão. A ci da de cres ceu ver ti gi no sa men te, or gu lhan do-se de um tem ploa Ha chi man, deus da guer ra e pa tro no do clã Mi na mo tô, as sim como de um ou tro “Gran de Buda”, o Da i but su, ima gi na do e man da do cons tru irpor Yo ri tomô. Essa enor me es tá tua de bron ze, cujo sor ri so inefá velparece in di car a com pre en são mi se ri cor di o sa dos so fri men tos des temundo, cons ti tu iu um cen tro de pe re gri na ção re li gi o sa, pois nes se séculocaó ti co, de lu tas fra tri ci das, seus ato res pro cu ra vam au xí lio e con so loaos pés do cor po gi gan tes co do deus da com pa i xão e da ilu mi na ção.

A épo ca do re gi me de Ka ma kurá re pre sen ta o ca pí tu lo pro -pri a men te épi co da vida do Ja pão, o pe río do em que o sa mu rai ou bus hí, isto é, o guer re i ro fe u dal, ci o so de sua hon ra e pon do a le al da de aoSenhor aci ma de qual quer ou tra vir tu de, for ne ce o es ti lo de vida queexer ce rá uma in fluên cia de ter mi nan te na for ma ção do tem pe ra men tojapo nês. Re i na a sim pli ci da de, a aus te ri da de mi li tar, a dis ci pli na es par ta -na, a mo ral es tói ca, vir tu des que se re fle tem no es ti lo ar qui te tô ni co. Anova se i ta bu dis ta Zen, adap ta da ao ri go ro so pa drão de vida da cas taguer re i ra, ins pi ra uma sim pli fi ca ção dos gos tos e dos cos tu mes, ao passoque, no res to do país, no ta-se uma gran de li ber da de, qua se uma anar quia na va ri e da de de no vos es ti los, im por ta dos do con ti nen te ou ela bo ra dospe los ar tis tas in dí ge nas. Em Kyoto, so bre vi ve o luxo efe mi na do quepreserva o en tu si as mo pe las co i sas da Chi na. A no bre za da ca pi tal “esno ba”os sa mu rais be li co sos de Ka ma kurá, al cu nhan do-os de “bár ba ros ori entais”.

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Estes, por sua vez, des pre zam e se cre ta men te pro cu ram imi tar as fa míliasde ve lha li nha gem, adap tan do-lhes pou co a pou co o gos to pe las fes tas,as roupas de bro ca do, as vi ven das ele gan tes, os so ber bos jar dins, ospassa tem pos amo ro sos e os la ze res li te rá ri os e ar tís ti cos. O Xo gu na to,en tre tan to, te mia e com ba tia essa in cli na ção: “Os ho mens vul ga res, di zia Yo ri tomô, de i xam-se pren der aos en can tos das co i sas be las. Re ce io queisso seja fon te de de ca dên cia para os no bres bus hí. Por tan to, de po is daguer ra, de ve mos con du zir os guer re i ros no ca mi nho da fru ga li da de, dotra ba lho e do exer cí cio das ar mas”. Ele re pu di a va as sim os ho mens e omodo de vida de Kyo to e lan ça va as ba ses do que veio mais tar de a serco nhe ci do como o Bus hi dô, “o Ca mi nho do Gu er re i ro”, o có di go dosca va le i ros ou re gra de con du ta hon ro sa que de via gui ar os sa mu ra is. E aCorte des ta vez tri un fou. Em 1333, a des tru i ção de Ka ma ku rá foi o sal dode nova guer ra ci vil. A di nas tia xo gu nal se guin te, da fa mí lia Ashi ka gâ,foi re ab sor vi da pelo gê ne ro de vida da me tró po le onde es ta be le ceu asede de seu go ver no. A clas se mi li tar fun diu-se com a no bre za da Cor tee o es ti lo re ad qui riu cer ta uni da de.

O sécu lo XV re pre sen ta um pe río do de anar quia ao qual suce de,no sé cu lo XVI, uma re es tru tu ra ção do Impé rio le va da a cabo por trêsgran des che fes mi li ta res. O ter ce i ro des ses ge ne ra is, To ku ga wâ Ie ya sú,es ta be le ce um novo Xo gu na to que terá como cen tro a ci da de de Yedô,isto é, a fu tu ra Tó quio. Pe río do in ten so de re vo lu ção, ini ci a do na luta ena li ber ta ção de to dos os en tra ves so ci a is, o sé cu lo XVI co in ci de comos pri me i ros con ta tos com o mun do oci den tal, re pre sen ta do por co mer -ci an tes e mis si o ná ri os por tu gue ses, se gui dos mais tar de por es pa nhóis,ho lan de ses e in gle ses. O pe río do tes te mu nha um trá gi co epi só dio depro se li tis mo cris tão, cul mi nan do com o mas sa cre dos con ver sos e nocom ple to fe cha men to do Impé rio a todo in ter câm bio es tran ge i ro. Emar qui te tu ra, o pe río do co nhe ce a con tri bu i ção do es ti lo Mo mo ya mâ queex pri me o gos to con tem po râ neo pelo co los sal, o de co ra ti vo e o de se -qui librado. É o ou to no do es ti lo tra di ci o nal e, ao mes mo tem po, o grandesé cu lo da ar qui te tu ra se cu lar. Os po de ro sos che fes mi li ta res pro cu ramos ten tar sua for ça e pro di ga li zar ri que za, er guen do cas te los for ti fi ca dosinspi ra dos, sem dú vi da, em mo de los eu ro pe us en quan to, no ter re nore li gioso, triunfa o ecle tis mo e a imi ta ção ser vil do pas sa do. A obra máxima do pe río do é o re bus ca do mu i to “ro co có” do Ma u so léu de Ie ya sú em

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Nik kô. Só na ar qui te tu ra par ti cu lar o pro gres so é sen sí vel, na ci o na li zan -do-se a arte e pro cu ran do adap tar-se ao gos to da bur gue sia nas cen te.

A sepa ra ção en tre a re gião tra di ci o nal do Ya ma tô, sede dopoder es pi ri tu al do Impe ra dor, e a pla ní cie ori en tal do Kwan tô, cen trodo po der xo gu nal, acen tua-se de fi ni ti va men te nes sa épo ca, com to das as van ta gens acres cen do à se gun da. A nova era as si na la a trans la da ção pro -gres si va da core area ni pô ni ca, numa di re ção ge ral para o nor des te. Como des bra va men to do “ser tão” da ilha prin ci pal, de que a baía de Tó quioé a mar ca fron te i ri ça, com ple ta-se a es tru tu ra ção ter ri to ri al do Impé rio.A ocu pa ção de todo o ar qui pé la go é con clu í da, in clu si ve da ilha se tentrio nalde Hok ka i dô onde ain da vi vem, hoje, os re ma nes cen tes de ge ne ra dos daraça Ainu. A pla ní cie do Kwan tô tor na-se ge o grá fi ca e eco no mi ca men te o ver da de i ro cen tro do país, cir cuns tân cia que a sa ga ci da de do gran deXogun To ku ga wá logo re co nhe ce, mu i to em bo ra não pos sa ain da conce beras con se qüên ci as mais re le van tes da po si ção do Impé rio num mundoem que o Oce a no Pa cí fi co será a gran de via de co mu ni ca ção com ooci dente. Kyo to está pró xi ma do Mar Inte ri or ja po nês e, nes te sen ti do,mira o Mar da Chi na, o con ti nen te asiá ti co e o pas sa do. Tó quio é fran -ca men te vol ta da para o Pa cí fi co, a Amé ri ca e o fu tu ro!

“Pra ia ba ti da pe las va gas so bre a qual se er guem al gu mascabanas de pes ca do res”, o lo cal de Yedô apa re ce men ci o na do pelaprime i ra vez no sé cu lo XV quan do um ge ne ral, a ser vi ço do go ver na dor de Ka ma ku rá, ali cons trói um cas te lo. Em 1487, Hi de yos hí e Ie ya sú, osfa mo sos es ta dis tas que uni fi ca ram o Impé rio e des tru íram o po der daaris to cra cia fe u dal, apos sa ram-se da pra ça. Ie ya sú re ce beu Yedô comoes pó lio de sua casa. O fu tu ro Xo gun per ce beu a im por tân cia da po si ção es tra té gi ca para o do mí nio das pro vín ci as ori en ta is do país e, a con se lhodo pró prio Hi de yos hí, não tar dou em au men tar a vila e for ta le cê-la,utili zan do as fa ci li da des de co mu ni ca ção fa cul ta das pela baía. Qu an do aí foi re si dir, Yedô tor nou-se a ma i or pra ça for ti fi ca da do Ja pão, qui tes aser-lhe em bre ve a ci da de mais im por tan te. Entretan to, só foi ofici almenteconside ra da a “Ca pi tal” do Xo gu na to após a ba ta lha de Se ki ga ha râ(outubro de 1600), gra ças à qual Ie ya sú ga ran tiu para sua fa mí lia umdo mí nio so bre o Impé rio que iria du rar du zen tos e cin qüen ta anos.

Bem no cen tro da me tró po le, Ie ya sú er gueu um Pa lá cio imensoque ser viu tam bém de for ta le za. De acor do com a po lí ti ca de en fra quecer

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os fe u da tá ri os a fim de manter uni do o país sob a he ge mo nia de suafamília, evi tan do no vas guer ras ci vis, o Xo gun exi giu dos vas sa los opaga men to de tre men dos im pos tos e o for ne ci men to de au xí lio ma terial,co i sa a que os mes mos não po di am ne gar sem vi o lên cia aos pre ce i toses tri tos do có di go de ca va la ria. A cons tru ção de Yedô foi o si nal vi sí velda “Pax To ku ga wâ” que per du rou, sob o sig no do iso la ci o nis mo maisfer renho e de uma dis ci pli na dra co ni a na, até o ano de 1868. O Ja pão,retra í do e, por as sim di zer, ador me ci do num “sono hi be rnal”, fechou-se,iso lou-se, tran cou-se a todo e qual quer con ta to com o mun do ex te ri or,numa ten ta ti va pa ra do xal e sem pre ce den tes de evi tar o im pac to da ci vi -li za ção oci den tal.

Não obs tan te, o cres ci men to da ci da de du ran te o Xo gu na tofoi con si de rá vel. A era as sis tiu ao nas ci men to da bur gue sia ja po ne sa.Uma imen sa mul ti dão de co mer ci an tes, ar te sãos e tra ba lha do res, pro ce -den tes de Osa ka, de Kyo to, de Na ga sa ki e das pro vín ci as di ri giu-se paraa nova me tró po le, vin do mis tu rar-se com a po pu la ção já re u ni da à vol tada corte mi li tar – no bres em vi si ta a seu Se nhor, sol da dos da guar da,samu ra is de so cu pa dos, mem bros da ad mi nis tra ção, la ca i os, sem fa lar em to das as ou tras clas ses que nor mal men te se con gre gam numa gran deme trópole, mon ges, bon zos, pe re gri nos, gue i xas, ar tis tas e li te ra tos.Parece que, no prin cí pio do sé cu lo XVIII, já a po pu la ção al can ça ra a cifrado mi lhão, ma i or do que a de qual quer ci da de da Eu ro pa con tem porânea.

A gran de data na his tó ria da ca pi tal é o ano de 1868, quan do are a bertu ra do país e a in tro du ção da ci vi li za ção oci den tal co in ci dem com a res ta uração do po der im pe ri al, a abo li ção do Xo gu na to e a su pressão dofeuda lis mo. Nes sa data, o ex-Xogun To ku ga wâ Ke i kí aban do nou Yedôen quan to o jo vem Impe ra dor Mut su hi tô, que um ano an tes su ce de ra aoPai e es ta va des ti na do a ser o ilus tre so be ra no Me i jí Ten nô, re ce bia emKyo to não ape nas os tí tu los re la ti vos à dig ni da de de des cen dente daDeusa do Sol Ama te ra sú, fun da do ra do Impé rio, mas tam bém o exer cícioefe ti vo da au to ri da de mo nár qui ca. A nova ad mi nis tra ção re u ni da à vol tado Impe ra dor pas sou a re a li zar, com uma ra pi dez ver da de i ra men teeston te an te, uma sé rie de re for mas fun da men ta is des ti na das a res ta u raro pres tí gio da mo nar quia e a per mi tir a mo der ni za ção do país. Uma dasme di das mais im por tan tes foi exa ta men te a trans fe rên cia da re si dên ciado Mi ka do para Yedô, sen do re pe li da a su ges tão do Mi nis tro Oku bô,

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ten den te a es ta be le cer em Osa ka a nova ca pi tal. A me tró po le re ce beu onome de Tokyô, “ca pi tal de les te”, en quan to a ve ne rá vel Kyotô, a tí tu lode com pen sa ção por seu aban do no, era dis tin gui da com o nome de Saigyô, “ca pi tal do oes te”.

Yedô, en tre tan to, acos tu ma ra-se, des de o prin cí pio, a so freral ter na ti vas de su ces so e pri va ção, so fren do de sas tres tre men dos emcon se qüên cia de in cên di os, dos qua is sem pre re nas cia como por en canto.Em 1657 foi qua se to tal men te des tru í da. Con fla gra ções se me lhan tesocor re ram no sé cu lo XX, como por oca sião do ter re mo to de 1923 e em con se qüên cia dos gran des bom bar de i os in cen diá ri os de 1944 e 45.Sempre cres cen do após a der ro ta na II Gu er ra Mun di al, com o “mi la gre ja po nês”, ela pode ser hoje a ma i or ci da de do mun do. Aglo me ra ção decres ci men to na tu ral, sem pla ne ja men to, Yedô não ofe re ce in te res se quer do pon to de vis ta ar qui te tô ni co, quer ur ba nís ti co. Ci da de enor me, inex -pres si va e inar ti cu la da, com uma par te mo der na mo nu men tal mas semgran de be le za, nem ca rá ter, é um exem plo da im pres são de ar ti fi ci a lis mo que nos ca u sa, no ori en te, a acli ma ta ção im per fe i ta de mo de los oci denta is,como re sul ta do de uma re vo lu ção in dus tri al e ur ba na ain da mal absorvi da.

A mu dan ça da ca pi tal do Ja pão é um caso cu ri o so e tal vezúni co pois não se tra ta, ver da de i ra men te, da trans fe rên cia da sede dogo ver no de uma ci da de para ou tra, ou de fun da ção de um nova me tró -po le ar ti fi ci al, mas sim ples men te da mu dan ça do Che fe do Esta do que,in ves ti do das fun ções efe ti vas de so be ra nia, vai re si dir na ci da de que,des de três sé cu los, re pre sen ta va para to dos os efe i tos o ver da de i ro centropo lí ti co do país. Ces sa o du a lis mo ge o po lí ti co; o ele men to sim bó li cotrans fe re-se da an ti ga ca pi tal para a nova. Ge o gra fi ca men te fa lan do, amu dan ça é o tri un fo fi nal da pla ní cie do Kwan tô e a trans la da ção de fi ni -ti va do eixo po lí ti co do Impé rio. Como ocor re ra em Nará, Ka ma ku rá ena pró pria Yedô, é a ex pres são ex te ri or e vi sí vel de uma nova épo ca nahis tó ria mi le nar do Ja pão.

O ja po nês cri ou, em tor no da na tu re za ter res tre, uma es pé ciede pan te ís mo es té ti co que, não fos se sua in ca pa ci da de para o pen sa men to me ta fí si co, ter-se-ia trans for ma do, como na Índia, em um gran de sis te macós mi co. O amor pela na tu re za, o cul to da pa i sa gem con si de ra da comoa pró pria ex pres são da be le za em sen ti do ab so lu to, pos su em um sig ni fi ca do mais ar tís ti co do que on to ló gi co que se ma ni fes ta nas ar tes me no res, na

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pin tu ra pa i sa gís ti ca e, so bre tu do, na ar qui te tu ra e na jar di na gem, comocri a ção de um mi nús cu lo con jun to pa i sa gís ti co. A sen si bi li da de aos fe -nô me nos na tu ra is, des de os mais gran di o sos e lon gín quos como o sol, a tem pes ta de, a au ro ra, os vul cões ou o Fu ji ya ma, até os mais pró xi mos een can ta do res como as ár vo res, as flo res, os ri a chos, os ro che dos e pe -dre gu lhos – essa sen si bi li da de que é ao mes mo tem po pri mi ti va e re fi -na da e que po voa o Uni ver so com mi ría des de es pí ri tos e vê em to das as cri a tu ras, vi vas ou ma te ri a is, se res di vi nos – kami – essa sen si bi li da de,di zía mos, é tal vez o tra ço mais ca rac te rís ti co da alma ni pô ni ca. Tal sen -si bi li da de cer ta men te ins pi rou-lhe as mais pu ras cri a ções do gê nio ar tís ti -co e poé ti co. No ur ba nis mo de Nará e de Kyo to e na ar qui te tu ra dacasa par ti cu lar em seu jar dim, o Ja pão dá-nos uma li ção de arte que nãode ve mos me nos pre zar, mes mo quan do nos pos sa pa re cer de di fí cil in te li -gên cia a fi lo so fia que vê uma har mo nia per fe i ta en tre a vida hu ma na e o cos mos, no ce ná rio ver de jan te da na tu re za ter re na.

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O IMPERADOR MEIJI (Mut su hi to), du ran te cujo re i na do a Ca pi tal foi trans fe ri da de Kyo to para Ye dô-Tóquio

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VIIMa drid

O pri me i ro ou mais im por tan te fa tor a le var em con ta naapre ci a ção da ca pi tal da Espa nha é sua lo ca li za ção qua se no cen tro ge o -grá fi co da pe nín su la ibé ri ca. Eqüi dis tan te do Atlân ti co, do Me di ter râ neo e do Gol fo de Bis ca ia, a ci da de está cons tru í da num pla nal to le ve men teon du la do, com a al tu ra mé dia de se te cen tos me tros, que faz par te dame se ta se mi-árida e des flo res ta da da Nova Cas te la. É ba nha da por umpe queno rio sem im por tân cia, o Man za na res, que não cons ti tui ele mentoprá ti co ou de co ra ti vo na ci da de. Cli ma duro mas sa u dá vel, fran ca men tecon ti nen tal, com má xi mas e mí ni mas ex ces si vas e di fe ren ças de mais devin te e cin co gra us cen tí gra dos num pe río do de vin te e qua tro ho ras.No in ver no, tem pe ra tu ras de dez gra us aba i xo de zero e um ven to frí gidoque, se gun do o pro vér bio, “mata um ho mem mas não apa ga umacande ia”, so pran do dos cu mes ne va dos da Gu a dar ra ma. No ve rão, soles cor chan te. Mas a at mos fe ra é seca, pura e re vi go ran te. Pri ma ve ra eou to no mag ní fi cos. Cli ma bom em suma e, por aca so, esse cli ma con tri -bu iu para a es co lha do lo cal tan to quan to sua po si ção ge o grá fi ca cen tral.

A po si ção cen tral, con tu do, é o fato sig ni fi ca ti vo, o fatogeopo lí tico por ex ce lên cia na apre ci a ção dos mo ti vos que de ter mi na ram

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o es ta be le ci men to do go ver no es pa nhol em Ma drid. Mu i tos ob ser vadores têm cri ti ca do a pre fe rên cia de Car los V e Fe li pe II. Os geó gra fos fran -ce ses Ca mil le Val la ux e Jean Bru nhes apre sen tam Ma drid como umexem plo – para ser evi ta do! – de uma ca pi tal es co lhi da ex clu si va men teem vir tu de da po si ção ge o grá fi ca, sem le var em con ta os fa to res tãorele van tes do sí tio. E a sua pró pria po si ção tem so fri do acu sa ções, poren con trar-se lon ge da ecú me ne es pa nho la ou da re gião in dus tri al ca ta lã.

Injus tas, tal vez, es sas crí ti cas pois tais de fe i tos na tu ra is sãoresul tan tes de uma fa ta li da de ge o grá fi ca. O pla nal to de Cas te la, de fato,não é um tra ço-de-união en tre as vá ri as re giões ex cên tri cas da pe nín su la. Os Ro ma nos en fren ta ram o obs tá cu lo ca u sa do pela Me se ta em ple noco ra ção da Ibé ria, quan do a ci vi li za ção e o po der po lí ti co do Impé rio sees ten di am so bre toda a orla ma rí ti ma, no Me di ter râ neo e no Atlân ti co.Quem con tro las se a Me se ta po dia des cer para les te ou para o sul, se guiro Tejo até a em bo ca du ra ou pas sar, ao nor te, para as mon ta nhas can tá -bri cas, os Pi ri ne us e as Gá li as. Mas a Me se ta é inós pi ta, ás pe ra, pró priaape nas, como o foi, para ber ço de uma raça de con quis ta do res.

A his tó ria me di e val da Espa nha, tan to quan to as ca rac te rís ti cas da ge o gra fia pe nin su lar, ex pli cam por que mo ti vo a uni fi ca ção se tor nou o mais gra ve pro ble ma na for ma ção do Esta do es pa nhol. Mu i to em bo ra haja atin gi do a Espa nha, an tes do que qual quer ou tra na ção da Eu ro paoci den tal, à sua ple na ma tu ri da de e ao apo geu de seu ex pan si o nis mocon quis ta dor, ja ma is con se gui ram os go ver nan tes ibé ri cos so bre pu jar,de modo de fi ni ti vo, as ten dên ci as se pa ra tis tas das vá ri as re giões com po nen -tes. E bem vi mos, du ran te a guer ra ci vil, a in ten si da de de tais sen ti men tos na se ces são da Ca ta lu nha e do País Bas co. Por ou tro lado, a con fi gu ra çãoda pe nín su la, es pe ci al men te na Extre ma du ra, jus ti fi ca a se pa ra ção daEspa nha e de Por tu gal – se pa ra ção de fi ni ti va! – e tor na com pre en sí vel a na tu re za tão dis tin ta, em ter mos ét ni cos, so ci a is, eco nô mi cos e po lí ti cos, do nor te, as tu ri a no e na var rês, da Ca ta lu nha me di ter râ ni ca, do Ara gãomon ta nhês, da rude Cas te la e da ale gre Anda lu zia, ver da de i ras en ti da des au tô no mas que todo o po der da mo nar quia e au to ri da de de re gi mes for -tes não con se gui ram, até hoje, fun dir num todo ho mo gê neo.

O qua dri lá te ro pe nin su lar apre sen ta uma es tru tu ra ge o grá fi capre ju di ci al não so men te às ten dên ci as cen trí pe tas, mas à pró pria eu ro -peização do país. Só as es tre i tas fa i xas cos te i ras no Me di ter râ neo pos suem,

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des de a an ti gui da de, uma his tó ria li ga da à da Eu ro pa. Des de a épo capré-histórica e, mais tar de du ran te gran de par te da idade clás si ca, aMeseta, ha bitada por Cel tí be ros, man te ve-se imu ne às in fluên ci ascosmo po li tas exer ci das pela co lo ni za ção gre ga, car ta gi ne sa e ro ma na.Iso lada, ela re sis tiu, às ve zes he ro i ca men te, re ve lan do aque la ca rac te rísticade ori gi na li da de te naz e de or gu lho sa in de pen dên cia que tão bem re co -nhe ce mos como es pa nho la! Qu an to às ser ras, que cor rem de les te paraoeste, se pa ram a Eu ro pa da Áfri ca an tes do que unem os dois con ti nentesatra vés do ist mo ibé ri co. É so be ja men te co nhe ci da e co men ta da a fi si o -no mia afri ca na da pe nín su la. Pior ain da: a co ne xão pró xi ma com oMarro cos, atra vés do es tre i to de Gi bral tar fa cil men te trans po ní vel,quan do apre ci a da em con tra po si ção à mu ra lha pi re nái ca que a iso la dores to da Eu ro pa, ex pli ca o de sas tre da in va são is lâ mi ca que atra sou deal guns sé cu los sua in te gra ção po lí ti ca. Na ver da de, só nos úl ti mos vin teanos se pode di zer te nha a Espa nha fi nal men te ade ri do à Eu ro pa, re gis -tran do en tão, no seio da EU, a um dos mais ex cep ci o na is cres ci men toseco nô mi cos e mo der ni za ção do con ti nen te.

Para bem com pre en der o pa pel de Ma drid no qua dro ge o po lí -ti co da Ibé ria vale lem brar, por isso, os an te ce den tes his tó ri cos da for -ma ção es pa nho la. A uni da de po lí ti ca po ten ci al ema na da da co lo ni za çãoro ma na não se re a li zou. Os dois cen tros prin ci pa is de co mu ni ca ção noin te ri or da pe nín su la eram Ca e sa ra u gus ta (Sa ra gos sa) e Eme ri ta (Mé ri da).To le tum (To le do) já exis tia. Mas a Anda lu zia e a Ga lí cia não se ar ti cu la -vam numa uni da de ver da de i ra men te or gâ ni ca. Roma ven ceu os cel tí be -ros mas não ven ceu a ge o gra fia do país: A ca pi tal per ma ne ceu em Tar -ra go na, um por to de mar da Ca ta lu nha, o que de fi ne o ca rá ter pro vin ci al e pe ri fé ri co da Espa nha ro ma na.

A uni da de di fí cil e ins tá vel im pos ta pe los Ro ma nos foi com -pro me ti da pe las in va sões. A po si ção ex ter na da Ibé ria e a mu ra lha im -pres si o nan te dos Pi ri ne us po de ri am fa zer crer em sua in vul ne ra bi li da de:na ver da de ela en con tra va-se na con fluên cia de cor ren tes hu ma nas pro -ce den tes tan to da Eu ro pa quan to da Áfri ca. Vân da los, Su e vos, Âla nos eVisi go dos atra ves sa ram-na de par em par, como se bar re i ras não exis tis -sem, e o caso es pa nhol sem dú vi da evi den cia a mo bi li da de es pan to sadas hordas in va so ras que, no pe río do de li qües cen te dos gran des Impé rios,

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não pa re cem re co nhe cer obs tá cu los na tu ra is ou hu ma nos à li vre exten sãode suas cor re ri as.

Os vi si go dos re co me ça ram a obra pe no sa de es ta bi li za ção euni fi ca ção da pe nín su la. Sob o Rei Atha na gil do (mor to em 567), a ca pi -tal foi es ta be le ci da em To le do. Em ple no cen tro da Me se ta, ocu pa umapo si ção ad mi rá vel para con tro lar o país, num sí tio ro cho so tam bémmag ní fi co, pro te gi do por uma cur va do Tejo. A in va são afri ca na ex tin -guiu esse ger me de or ga ni za ção po lí ti ca. Os sar ra ce nos for ma vam umaco a li zão de ára bes, bér be res e sí ri os. Os ára bes eram os di ri gen tes mas éco nhe ci da sua ca rên cia de ta len to po lí ti co. Os bér be res não pas sa vam de tri bos se mi-selvagens, re cém-convertidas ao Islã. Só os sí ri os pos su íamex pe riên cia ad mi nis tra ti va e cul tu ra. A não ser logo após o cho que ini ci -al da con quis ta e, mais tar de, sob um ou ou tro dés po ta ex cep ci o nal doqui la te de Abdur rah man III (912-961) ou Al-Man sur (Alman zor), naépo ca do Kha li fa do de Cór do ba, o do mí nio mu çul ma no na pe nín su laca rac te ri zou-se por uma in cu rá vel anar quia. Isso não o im pe diu, aliás, de bri lhar de uma luz in vul gar quan do Cór do ba ri va li zou com Bag dad eCons tan ti no pla como a ma i or e mais es plên di da me tró po le do mun dooci den tal. Di zem que che gou a al can çar 500.000 ha bi tan tes, or gu lhan -do-se de suas três mil mes qui tas e de seus ri quís si mos pa lá ci os. Mas nãofosse a di vi são se me lhan te dos Prín ci pes ca tó li cos e a sua téc ni ca su perior,mu i to an tes te ria ce di do à pres são cres cen te da Cru za da.

De po is do de sas tre de 711, os cris tãos re fu gi a ram-se nasmon ta nhas inex pug ná ve is das Astú ri as. Ali se con gre gou, sete anos ape -nas após a in va são, o nú cleo es pe ran ço so da Re con quis ta, ini ci a da pelavi tó ria do len dá rio Pe la yo em Co va don ga. O pri me i ro re i no in de pen -den te da Ga lí cia de sen vol veu-se sob Ra mi ro II. Abri ga da de trás dasmon ta nhas, a po pu la ção ca tó li ca cres ceu e, aos pou cos, foi des cen dopara o sul, pro cu ran do a pla ní cie onde pros pe ra ria o Re i no de León. A“fron te i ra” da luta pas sou a ser a re gião que, de vi do ao gran de nú me rode tor res de fen si vas, re ce beu o nome de “Os Cas te los” – Cas til la, a Cas -te la Ve lha. Os Con des de Cas te la fo ram os an te pas sa dos dos so be ra nosque, um dia, re i na ri am so bre a Espa nha Uni da. A mu dan ça su ces si va deca pi tal as si na la a mar cha des se avan ço, len to mas se gu ro: de Can gas deOnis para Ovi e do an tes do fim do sé cu lo VIII; de Ovi e do para León,sob Ordo ño II (914-924), quan do o Re i no das Astú ri as se trans for mou

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no de León; de León para Bur gos, ca pi tal da Cas te la Nova. A les te me -dra vam ou tros Esta dos de modo in de pen den te: o Re i no de Na var ra eAra gão e a an ti ga Mar ca His pâ ni ca que se trans for mou no Con da do deBar ce lo na. Vale no tar que, fun da da por Car los Mag no em prin cí pi os dosé cu lo IX, após uma sé rie de cam pa nhas des ti na das a frus trar de fi ni ti va -men te qual quer nova ten ta ti va sar ra ce na além dos Pi ri ne us, essa Mar care pre sen tou ao mes mo tem po o si nal do re cuo ára be e a pri me i ra eta pada Re con quis ta. Sob o re i na do de San cho El Ma yor, que se in ti tu lou Rex Ibe ro rum, e de seu fi lho Fer di nan do (Pri me i ro Rei de Cas te la), pa re ce as -se gu ra da a uni fi ca ção dos prín ci pes cris tãos para a Cru za da con tra oMou ro in fi el. À sua mor te, po rém, Fer di nan do de i xou os três re i nos deLeón, Cas te la e Na var ra aos três fi lhos San cho, Alphon so e Gár cia.Alphon so, VI do nome, é o ini ci a dor da Re con quis ta pro pri a men te dita. Foi o há bil e ge ne ro so con quis ta dor de To le do (1086) e, de pas sa gem,apos sou-se da al de ia de Ma je rit que se ria um dia Ma drid. A vi tó ria teveuma re per cus são mo ral imen sa em vis ta das lem bran ças vi si gó ti cas li ga -das a To le do e cons ti tu iu um su ces so es tra té gi co con si de rá vel pela pos se as se gu ra da da ba cia do Tejo.

O di fí cil pro ces so de re in te gra ção po lí ti ca du ra ria sé cu los ain -da, sen do di fí cil se guir a lon ga lis ta de lu tas in tes ti nas, su ces sões com -ple xas, di vi são de re i nos por tes ta men to e fu são de ou tros por ca sa men -to, re vol tas, ane xa ções, jun ta men te com o avan ço para o mar e o en fra -que ci men to pro gres si vo do ini mi go Almo rá vi de e Almo ha de. Na ba ta -lha de Las Na vas de To lo sa (1212), que fir mou o des ca la bro fi nal do do -mí nio sar ra ce no so bre a Espa nha, o Rei de Cas te la Alfon so VIII en trouem cam po acom pa nha do pelo Rei San cho de Na var ra, o Rei Pe dro deAra gão e um con tin gen te de Cru za dos por tu gue ses. Os re sul ta dos daba ta lha fo ram fe cun dos e se re a li za ram sob o re i na do de São Fer di nan -do, III do nome, que con quis tou Cór do ba, Se vi lha, Cá diz e as se gu rou aunião de fi ni ti va de Cas te la e León. No fi nal des se pe río do, con tem pla -mos a pe nín su la di vi di da em três Esta dos prin ci pa is: Por tu gal, Cas te la eAra gão, com os re ma nes cen tes dos prin ci pa dos mu çul ma nos ago ni zan -do em vol ta de Gra na da. Por uma con ven ção de 1244, Ara gão e Cas te lade li mi tam ni ti da men te suas zo nas de Re con quis ta, ame a çan do eter ni zaruma di vi são que de ve ria ser tem po rá ria. Mas cabe ao so be ra no de Cas te -la ar car com o di fí cil pro ble ma da aglu ti na ção das re giões au tô no mas,

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pro ble ma que, afi nal de con tas, se re ve lou mais ár duo do que a pró priare-cristianização da pe nín su la.

As vári as uni da des ter ri to ri a is, se pa ra das pe las bar re i ras naturaise por um pe río do de ma si a da men te lon go de cris ta li za ção, for ma ramnú cle os de pos sí ve is Esta dos, com di a le tos ou lín guas di fe ren tes e, piordo que isso, tra di ções pró pri as, cos tu mes pe cu li a res, or ga ni za ções so ci a -is di ver sas e in te res ses po lí ti cos di ver gen tes. Cas te la e León as pi ra vam àhe ge mo nia. Os Bas cos fa la vam ou tra lín gua, de ori gem mis te ri o sa, e vi -vi am apar ta dos em suas mon ta nhas. Os Na var re ses es ta vam li ga dos aosBas cos e às po pu la ções do ou tro lado dos Pi ri ne us, so fren do in fluên ciafran ce sa. É a ter ra da Can ção de Ro lan do, “la gran de tere, la cle re, la bele, lava il lant”. Foi um Rei de Na var ra que se tor nou o pri me i ro Bour bon deFran ça, Henri que IV. Os ara go nen ses ex pri mi am-se em um di a le tocas te lha no mas os ca ta lães e os va len ci a nos, as sim como os ba le a res,pos su indo uma tra di ção es sen ci al men te ma rí ti ma, me di ter râ ni ca, fala vamuma lín gua apa renta da aos di a le tos do sul da Fran ça. A Anda lu zia, fulcrodo do mí nio mou ro, foi ha bi ta da por mo zá ra bes – cris tãos que ha vi amvi vi do sob au to ri da de mu çul ma na, na ca te go ria de ra yahs – a quem a lín -gua es pa nho la, como a por tu gue sa, deve o gran de nú me ro de vo cá bu los se mi tas. Fi nal men te Por tu gal, lan ça do so bre o Atlân ti co, as se gu ra va suain de pen dên cia em Alju bar ro ta (1385), in de pen dên cia que ia pre ju di caruma ten ta ti va de união di nás ti ca: sua iden ti da de na ci o nal aca ba va tri un -fan do na con fi gu ra ção po lí ti ca da pe nín su la.

A di ver gên cia de in te res ses en tre es sas re giões é agra va da pela ação cen trí fu ga das so li da ri e da des ex ter nas: o sul, is lâ mi co, olha para aÁfrica e re cor da a gló ria sar ra ce na; o Ara gão, a Na var ra e a Ca ta lu nhafitam a Fran ça e o Me di ter râ neo. Bar ce lo na, por to co mer ci al ali a do deVe ne za e ini mi go de Gê no va, com pe te no trá fi co ma rí ti mo. O Ara gãoque, sob os Reis dos sé cu los XI e XII, Ra mi ro, San cho Ra mi rez eAlfon so, to ma ra um pa pel de pri me i ro pla no na Re con quis ta, en ras ca-se depois, além dos Pi ri ne us e na ne fas ta po lí ti ca ita li a na, per den do a ocasião de re a li zar a seu pro ve i to a uni da de es pa nho la. Só Cas te la, es pé cie detor reão da Ibé ria, mira a Espa nha mes mo. Isa bel de Cas te la e Fer nan dode Ara gão, os Reis Ca tó li cos, ha vi am cla ra men te com pre en di do que amis são pre cí pua do Esta do es pa nhol se ria man ter a união em face dasten dên ci as cen trí fu gas das re giões pe ri fé ri cas. Sen ti am, tal vez in cons ci -

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en te men te, que era ne ces sá rio li ber tar o en tu si as mo exu be ran te da raçapara a gi gan tes ca em pre sa das Des co ber tas: uma ex plo são de ati vi da de,uma ân sia de aqui si ções ma te ri a is, o fas tí gio da von ta de de do mí nio e da cu ri o si da de in sa ciá vel, ao mes mo tem po que, na tra di ção das Cru za das,o de se jo de, pelo mun do afo ra, es palhar a fé cris tã! Deve Isa bel, nes sesen ti do, ser con si de ra da o ma i or so be ra no da Espa nha.

No en tan to, sob Car los V e seu fi lho Fe li pe II, Cas te la iaservir de ins tru men to à po lí ti ca de he ge mo nia eu ro péia da Casa d’Áus -tria, des gas tan do-se em con fli tos es té re is na Itá lia, nos Pa í ses Baixos, naFran ça, em Por tu gal e na ma lo gra da aven tu ra na val con tra a Ingla ter ra – jus to no mo men to em que to das as ener gi as dos es pa nhóis po de ri ammais pro ve i to sa men te ser des pen di das no Novo Mun do, todo o ouro da Amé ri ca em le van tar o ní vel de vida da po pu la ção ibé ri ca e todo o gê nio po lí ti co da mo nar quia em so li di fi car a união pe nin su lar. Que Car losV, o ma i or dos Habs bur gos e, no fun do, um bor gui nhão, te nha vi vi do osonho vão de ab so lu tis mo uni ver sal, uti li zan do o seu Impé rio comoinstru men to des sa po lí ti ca que nem mes mo era aus tría ca, po rém pro pri -a men te di nás ti ca, ain da se ex pli ca: há algo de su bli me nes sa ten ta ti va, apri me i ra em data, de ajun tar a Eu ro pa sob a au to ri da de tem po ral doImpe ra dor e o do mí nio es pi ri tu al da Igre ja! Os es pa nhóis, tal vez por féca tó li ca, pres ta ram-se a esse pa pel de exe cu to res de tal aven tu ra que,afinal de con tas, lhes per mi tiu, de po is de mu i tos sé cu los de iso la men to,partici par in te i ra men te da vida po lí ti ca eu ro péia. Fo ram por isso guar neceros fa mo sos Tér ci os de in fan ta ria que fi ze ram a ad mi ra ção e o ter ror daEu ro pa. E as sim mes mo Car los V, que, ao pôr pela pri me i ra vez os pésem sua he ran ça ibé ri ca, nem se quer fa la va uma pa la vra de cas te lha no,mor reu como um as ce ta es pa nhol, um au tên ti co, e foi ele que das“Espa nhas” fez a Espa nha, “una y gran de”! Mas Fe li pe II, ao con trá rio do Pai, mais es pa nhol do que eu ro peu em sua po lí ti ca e, di ga-se de pas sagem,mais ger mânico no ca rá ter – her dou as sim mes mo seus fan tás ti cosplanos uni ver sa lis tas, com pro me ten do os in te res ses fun da men ta is dopaís. Hou ves se ele aban do na do as Flan dres que, por um erro fa tal lhefora le ga do, ao in vés de ca ber ao tio Fer di nan do d’Áustria, e ti ves sedesis ti do mais cedo de do mi nar a Eu ro pa oci den tal – em pre sa que ul tra -pas sa va os re cur sos de Cas te la, tan to em ho mens quan to em di nhe i ro –cer ta men te não te ria a Espa nha tão ra pi da men te de ca í do, de po is de com

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ele atin gir ao pi ná cu lo da gló ria. É cu ri o so como ten dên ci as di ver gen teso dilace ra ram e o con du zi ram, de um lado, a en fren tar o tur co em Lepan to e o he re ge com a Gran de Arma da e, do ou tro, a se ema ra nhar ir re me di -a vel men te na Fran ça e nos Pa í ses Ba i xos, sem com pre en der a re le vân ciasu pe rior da con quis ta ul tra ma ri na. Sem dú vi da seu gê nio po lí ti co procu rou com ple tar a obra al ta men te cons tru ti va de uni fi ca ção da Ibé ria. Mes moaí, po rém, não com pre en deu o pa pel his tó ri co de Por tu gal. Se, como épos sí vel ima gi nar, hou ves se tido a co ra gem de es ta be le cer seu tro no emLis boa, a união es ta ria de fi ni ti va men te con so li da da e ou tra te ria sido asorte do im pé rio ul tra ma ri no ibé ri co! De vi do à vi o lên cia de seus métodose ao cu nho tirâni co de sua ad mi nis tra ção, ao mes mo tem po em queaparen te mente al can ça va a meta, des tru ía as li ber da des es pa nho las e,enri jan do o ab so lu tis mo da mo nar quia cas te lha na, ali men ta va in di re ta -men te as fon tes dos se pa ra tis mos exa cer ba dos e dos pro ble mas so ci a isdo fu tu ro. A Espa nha pa gou um pre ço ter rí vel no rom pi men to de umatra di ção mu ni ci pa lis ta, par la men tar e pro gres sis ta que, mais cedo do que no res to da Eu ro pa, se for ma ra des de a Ida de Mé dia. Fora em Salaman ca, aliás, que sur gi ram as pri me i ras su ges tões in te lec tu a is de um li be ra lis moeco nô mi co que só, tar di a men te, o país iria ado tar, per ma ne cen do porsé cu los o mais po bre da Eu ro pa oci den tal.

A es co lha de Ma drid como “Cor te úni ca” foi a ex pres sãogeográ fi ca, na “idéia do mi nan te” des sa sua po lí ti ca cen tra li za do ra que,tal vez por ser de ma si a da men te rí gi da, não se sou be adap tar à com ple xi -da de or gâ ni ca da pe nín su la. Não po de mos, en tre tan to, ne gar-lhe a vi sãoge ni al à qual Ma drid deve seu cres ci men to como me tró po le da Espa nha.

O pla nal to ma dri le nho é qua se ári do e pou co cul ti va do e sera ras ve zes é men ci o na do na his tó ria an ti ga da Espa nha – quan do umaou ou tra le gião ro ma na ou des ta ca men to vi si gó ti co por aí de man da asatra en tes pla ní ci es an da lu zes – res tos ar que o ló gi cos re cen tes con fir mam que foi ha bi ta do des de a pré-história. A mais an ti ga men ção do lo calocor re na épo ca do do mí nio mou ro, du ran te a pri me i ra me ta de do séculodé ci mo. De pa ra mos en tão com o nome Maj rit ou Ma ge rit (la ti ni za doMa jo ri tum) cuja fo né ti ca ára be pa re ce evi den te, em bo ra pou co cla ro osig ni fi ca do. Com esse nome, mais tar de es cri to Ma drit, cons ta a pra çacomo to ma da por Ra mi ro II, o Rei de León, du ran te as lon gas lu tas que pre ce de ram a Re con quis ta.

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Os mou ros vol ta ram e re cons tru í rem sua for ta le za – o Alca -zar, no sí tio do atu al Pa lá cio Real, do mi nan do a vila. Em 1085, Alfon soVI e o povo de Se gó via, a ca mi nho de To le do, re to ma ram-na ao in fi el.Na fren te do avan ço cris tão, du ran te a lon ga e cru en ta re con quista,so fria a sor te dos pos tos fron te i ri ços mas ob te ve seus fo ros em 1202, jágo zan do de cer to va lor, pos su in do mu ra lhas, cin co por tas e uma gran de mes qui ta, dez pa ró qui as, um la bi rin to de ruas tor tu o sas e su jas em quese api nha vam cris tãos, mou ros, fi dal gos fran cos, ju de us e uma po pu laçãomo zá ra be nos su búr bi os. Data des sa épo ca a ve lha de vo ção ma dri le nhapela Vir gem de Almu de na que, es con di da pe los cris tãos du ran te aocupa ção mu çul ma na, fora mi la gro sa men te re des co ber ta. Qu a se nadasobre vi veu des sa épo ca, sal vo a tor re de San Pe dro, cons tru í da de tijolos.

No sé cu lo XIV, come ça Ma drid a apa re cer mais ami ú de nahistó ria: San cho o Bra vo pro cu rou sa ú de em seu cli ma ro bus to e seco.No re i na do dos Reis ca tó li cos, pros pe rou. Foi leal ao tro no du ran te arevol ta dos Com mu ne ros e Car los V vi si tou-a em 1524, tan to apre ci an -do o sí tio que, no ano se guin te, ali pro cu rou re cu pe rar a sa ú de aba la da.Fran cis co I de Fran ça, apri si o na do em Pa via, foi de ti do no Alca zar atéser for ça do a as si nar o Tra ta do de Ma drid de 1526 que não tar dou emrepu di ar. Em 1540, so fren do da gota e pro cu ran do um lu gar para, natran qüi li da de, re ti rar-se dos ne gó ci os pú bli cos, o ve lho Ka i ser con ce beu, qui çá pela pri me i ra vez, a idéia de trans fe rir para Ma drid o go ver no daEspa nha. Car los gos ta va do cam po, dos jar dins, da pla ci dez do sí tio edos sons da na tu re za sel va gem. Encon trou ali o lo cal apro pri a do paraessa satis fa ção pes so al ao mes mo tem po que pres sen tia um de síg niopolí ti co de mag na en ver ga du ra.

Cou be, po rém, ao fi lho, Fe li pe II, de cla rar Ma drid a re si dên cia da mo nar quia, dan do as sim à Espa nha uni fi ca da a ca pi tal de fi ni ti va deque ca re cia. Per deu-se o do cu men to ori gi nal da ele va ção de Ma drid mas ela ain da guar da hoje, com or gu lho, seu tí tu lo tra di ci o nal de “Impe ri al yCo ro na da, muy no ble y muy leal”, tí tu lo a que Fer di nan do VII ia acres cen tar, em 1814, o de “y muy he ro i ca”, em co me mo ra ção à sua re sis tên cia con traos exér ci tos na po leô ni cos. Du ran te al gum tem po a de ci são es te ve emdú vi da, com pe tin do To le do e Val la do lid com a nova ca pi tal. Val la do lidre fle tia a pre o cu pa ção com os ne gó ci os da gran de po lí ti ca eu ro péia, pois es ta va mais pró xi ma dos Pi ri ne us. To le do tal vez fos se de ma si a da men te

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me ri di o nal: seu sí tio foi con si de ra do exí guo para uma gran de me tró po le e não se sabe até que pon to in flu iu, po si ti va ou ne ga ti vamen te, seupassa do pres ti gi o so. Ma drid, ao con trá rio de ve lhas ci da des como Val ladolid,León, Sa ra go za, To le do, Bur gos, Se vi lha, Gra na da ou Cór do ba, nãoestava iden ti fi ca da a qual quer dos vá ri os re i nos, prin ci pa dos, con da dos,emi ra dos e kha li fa dos em que a Espa nha me di e val se di vi di ra. Ci da demo der na, cres ce ra no mo men to da uni fi ca ção da pe nín su la. À sua po si -ção cen tral e a esse ca rá ter mo der no deve a im por tân cia que jus ti fi cou apre fe rên cia pes so al dos mo nar cas. Fe li pe III ain da ten ta ria le var a Cor tepara Val la do lid, onde per ma ne ceu du ran te cin co anos (1601-1606), masa Co roa vol ta ria de fi ni ti va men te para Ma drid sob a pres são de tais con -si de ra ções in so fis má ve is. A ci da de é es sen ci al men te es pa nho la, da Espa -nha barro ca de “los Aus tri as” e de “los Bor bo nes”. Como ob ser va A. F.Calvert, ela é es sen ci al men te “ro co có”. Mas pos sui dig ni da de: “não sor ri como Se vi lha, nem é aus te ra como To le do e, no en tan to, nem é tris te,nem se ve ra. Gra na da e Cór do ba dor mem. Ma drid nun ca pa re ce descansar”.Nada tem de me di e val e pou cas lem bran ças con ser va da Re con quis ta.Ou tras ci da des pos su em ma i o res gló ri as: Bar ce lo na é a “vida da Espa -nha” e seu gran de cen tro co mer ci al e in dus tri al; To le do mais im por tan te como re lí quia his tó ri ca e sede ar qui e pis co pal (Dom Qu i xo te tê-la-iapre fe ri do...) e Sa la man ca mais cé le bre como cen tro uni ver si tá rio. Madrid,con tudo, cum priu a “Idéia Do mi nan te” de sua fun da ção e, nes se sen tido, é a dig na ca pi tal da Espa nha.

O pa pel uni fi ca dor que cou be ao cen tro es tra té gi co da pe nín -su la foi am pla men te com pro va do pe los acon te ci men tos que a cer ca ramdu ran te a Gu er ra Ci vil. Po der-se-ia afir mar que essa luta san gren ta ecom ple xa, onde tan tos fa to res so ci a is, po lí ti cos, re li gi o sos e re gi o na is secom bi na ram e se con tra pu se ram, gi rou, mi li tar men te fa lan do, em tor noda pra ça de Ma drid. O pri me i ro ob je ti vo dos Exér ci tos re vo lu ci o ná ri osna ci o na lis tas con sis tiu em to mar a ca pi tal por um ata que fron tal.Falhan do a re vol ta da guar ni ção ma dri le nha e ocor ren do um atra so namar cha do Ge ne ral Fran co, que fora so cor rer o Alca zar de To le do, pôde o Go ver no re pu bli ca no ar mar as mi lí ci as po pu la res e re sis tir no li mi arda ci da de. Em con se qüên cia, o sí tio pro lon gou-se, en quan to os na ci o na -lis tas pro cu ra vam en vol ver a me tró po le, li gan do as suas fren tes e su pri -mindo, um por um, os fo cos re gi o na is de re sis tên cia. A que da da Catalu nha

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anun ci ou o co lap so do re gi me ver me lho e a ren di ção de Ma drid, o fimda Guerra Ci vil. Pou cas ve zes o va lor de uma ca pi tal, como ca be ça ecoração de uma na ci o na li da de, re ce beu tão im pres si o nan te con fir ma ção.

Prin ces se des Espag nes,Blan che vil le des sé re na des.

como can tou Mus set, sou be Ma drid cum prir seu pa pel de capital,não obs tan te os er ros dos Reis, os de fe i tos do sí tio e os obs tá culos quesem pre se de pa ra ram em sua mis são uni fi ca do ra. Essa mis são foi-lhe, na ver da de, a pró pria ra zão de ser. E a ci da de, tal vez mais do que qual querou tra ca pi tal aqui exa mi na da, ilus tra a fun ção ge o po lí ti ca pre cí pua quecabe ao ór gão cen tra li za dor do Esta do.

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Fe li pe II que con so li dou a ca pi tal em Ma drid

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Car los V, por Ti ti a no

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VIIIO Bar ro co e Ver sa il les

P ode pa re cer estra nha a in clu são de Ver sa il les num li vro so bre asca pi ta is pla ne ja das do mun do. Se é ver da de, no en tan to, que o Pa lá ciode Luís XIV ser viu de re si dên cia aos Reis e, mais de uma vez, de sedeao go ver no, sem de i xar Pa ris de ser ca pi tal ofi ci al da Fran ça, dois ou tros mo ti vos pon derá ve is jus ti fi cam este ca pí tu lo. Em pri me i ro lu gar éVer sa il les exem plo úni co de Ca pi tal-Residência, Ca pi tal-Anexa, cujaexis tên cia in flu iu gran de men te na vida fran ce sa, li ga da como está à sor te do ab so lu tis mo mo nár qui co. Em se gun do lu gar, cons ti tui um mar coimpor tan te na his tó ria do ur ba nis mo.

Antes de to car no as pec to po lí ti co, vale exa mi nar o que sig ni -fi ca Ver sa il les do pon to de vis ta ar tís ti co, como ex pres são au tên ti ca, naple ni tu de do bar ro co, do ur ba nis mo ofi ci al eu ro peu. Con vém des delogo as si na lar que o ur ba nis mo da Re nas cen ça, ape nas uma vir tu a li da decri a do ra, con fun de-se com o da cha ma da épo ca bar ro ca e, por tal motivo,La ve dan pre fe re cha mar todo o pe río do de clás si co. O fato é que os estilosse con fun dem. Exis te uma uni da de de es pí ri to “hu ma nis ta” e, sem quereren trar em de ba tes me ra men te se mân ti cos ou de crí ti ca das ar tes, serásufi ci en te ad ver tir que a pa la vra bar ro co é con sa gra da e sa tis fa tó ria.

Ver sa il les ter mi na uma li nha as cen si o nal e co roa a len ta evolu çãoarqui te tô ni ca des de o Re nas ci men to ita li a no, mas tam bém ini cia um

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fenô me no de di fu são des ti na do a as se gu rar, na Eu ro pa e na Amé ri ca, osu ces so do Hu ma nis mo, do Ra ci o na lis mo e do Esti lo Clás si co. Daí serseu co nhe ci men to es sen ci al para a com pre en são das no ções que pre sidiramà cons tru ção de tan tas ca pi ta is mo der nas (São Pe ters bur go eWashing ton, en tre ou tras), sen do sua in dis cu tí vel in fluên cia des co ber taain da no pla ne ja men to de Can ber ra e de Nova De lhi, sem fa lar emobras mais re cen tes.

A Roma he le nís ti ca e im pe ri al foi a se men te de onde sur gi ram os es ti los dis tin ta men te eu ro pe us, as sim como aque les que re pre sen tamli nhas evo lu ti vas di ver gen tes, su je i tas a in fluên ci as es tra nhas. De Romapar tiu o Ro mâ ni co e de Roma tam bém o Bi zan ti no que, no Ori en te, éum ele men to na ela bo ra ção das ar qui te tu ras is lâ mi ca e rus so-ortodoxa.O pró prio Gó ti co que, para al guns, é a ver da de i ra ex pres são da almaeuro péia (se ria uma ex pres são pro pri a men te nór di co-medieval...), de sen -vol veu-se como uma es pé cie à par te, em sua su bli me e mís ti ca ver ti ca li -da de, sem re pu di ar a he ran ça de Roma. Na Itá lia, algo das formas dacivi li za ção clás si ca ha via per ma ne ci do como que ador me ci do du ran te os lon gos sé cu los da re li gi o si da de me di e val, para des per tar no es plen dor,na exu be rân cia e fú ria cri a do ra do Re nas ci men to. Qu an do ex plo diu aRe nas cen ça, os es tu dan tes de arte, se den tos de Anti gui da de, con tem pla -ram com res pe i to qua se re li gi o so e o en tu si as mo da des co ber ta as ru í nas de um pas sa do me mo rá vel. Mas, jun ta men te com o es pe tá cu lo ime di a to das abó ba das, ar cos, co lu nas e pi las tras, dos fron tões, cú pu las e ba la us -tra das, da dis ci pli na das or dens dó ro ca jô ni ca, co rín tia e com pó si ta, foi a des co ber ta do ma nus cri to de Vi tru vi us que as se gu rou a pre do mi nân ciada or dem ro ma na na ar qui te tu ra do pe río do. Os mo ti vos clás si cos, coma nova ins pi ra ção que mi la gro sa men te en ri que cia as ar tes plás ti cas,domi nou, na Itá lia dos sé cu los XV, XVI e XVII, a evo lu ção para oBarroco, os princí pi os ori gi na is de cujo ur ba nis mo são con ce bi dos ereali za dos nas “Ci da des Ide a is” e nas obras dos gran des pre cur so res.De te nha mo-nos li ge i ra men te so bre a ma té ria.1

Os pla nos das cit tà ide a le, em for ma de es tre la ou po lí go no,que apa re cem duran te o Re nas ci men to ita li a no, obe de cem ain da à

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1 Cu bro mais por me no ri za da men te a ques tão da “Ci da de Ide al” do Re nas ci men to e do Bar ro co num ca pí tu lo do meu li vro A Uto pia Bra si le i ra que tra ta, in clu si ve, desua in fluên cia no pla ne ja men to de Bra sí lia.

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concep ção rá dio-concêntrica do ur ba nis mo me di e val e à pre o cu pa çãopre do mi nan te de de fe sa: são por isso cen tra li za das e for ti fi ca das. Mas ano vi da de da épo ca se des co bre na si me tria, no for ma lis mo ge o mé tri co e na expres são plás ti ca ra ci o nal. A con cep ção ge o mé tri ca e for mal da“Cida de Ide al” en con tra suas ra í zes na re vo lu ção ocor ri da na pin tu ra,em prin cí pi os do Qu at tro cen to, com a des co ber ta da Pers pec ti va. A no ção de “vis ta” ar qui te tô ni ca, de pers pec ti va fo ca li za da em um ob je to lon gínquo como princi pal efe i to plás ti co do ur ba nis mo, já exis tia, na ver da de,anteriormen te. O Altar obe de ce a essa con cep ção, no in te ri or das catedra is gó ti cas. Na Re nas cen ça, po rém, a no ção tor na-se cons ci en te e, en tran do para a pin tu ra, abre vas tas pos si bi li da des de apli ca ção no pla ne ja men tour ba no. Cla ra men te re la ci o na do com a pers pec ti va, o “fun do” ad qui resig ni fi ca do: o qua dro, re tan gu lar e co e ren te, li mi ta do e de ter mi na do,alarga-se quan do, ao pri me i ro pla no das per so na gens, se jun ta uma paisa gem e um ho ri zon te, che io de sen ti do e in ten ção. Obser va Le wis Mum fordque a nova ja ne la bar ro ca é, es sen ci al men te, uma mol du ra de qua dro, as -sim como a pin tu ra do Re nas ci men to é uma ja ne la ima gi ná ria. É umanova con cep ção de es pa ço, re fle tin do um alar ga men to da cons ciên ciahu ma na, dis ci pli na da pela ra ci o na li da de, que pa re ce es tar li ga do àsprime i ras con quis tas da ciên cia mo der na e às Gran des Des co ber tas depor tu gue ses e es pa nhóis.

O en tu si as mo dos pin to res pela pers pec ti va e sua in cli na çãope los ce ná ri os clás si cos e os gran di o sos fun dos ar qui te tô ni cos, mu i tasve zes ir re a is, pa re cem pre ce der e mes mo ins pi rar ou cri ar as no vas for masplás ti cas da gran de ge o me tria bar ro ca. Foi a pin tu ra que, em úl ti ma aná li se, de ter mi nou o apa re ci men to da qui lo que se ria o tra ço eter no e ori gi naldo ur ba nis mo bar ro co: a Vis ta ur ba nís ti ca! Te o ri za das por AlbrechtDü rer na Ale ma nha, em sua “Ge o me tria e Pers pec ti va”, e, na Itá lia, porUccel lo, Pi e ro del la Fran ces ca, Vi a tor (De ar ti fi ci a li Pers pec ti va) e, mais tar -de, Gi a co mo Ba roz zi Vig no la e Andrea Pal la dio que, em suas obras depro pa ga ção dos prin cí pi os do Re nas ci men to, con so li dam a vi tó ria dascin co or dens clás si cas, vão às no vas te ses da pers pec ti va e do ho ri zon teca rac te ri zar, do ra van te, a pin tu ra e a ar qui te tu ra oci den tal. Estas se er -guem em face da gran de arte pa i sa gís ti ca sino-ja po ne sa, como lí di masex pres sões da ân sia ti pi ca men te eu ro péia de do mí nio dos es pa ços e dedis ci pli ni za ção ra ci o nal da na tu re za. Em con tra po si ção ao Gó ti co, o

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Bar ro co re je i ta a ver ti ca li da de e o mis ti cis mo so nha dor e som brio. Pre fe rea cla re za e a so li dez prá ti ca dos pla nos ho ri zon ta is e dos rit mos re tan gu la res.Mas, in ter rom pi da em bo ra pela vol ta ao He le nis mo e a Roma, a li nha de evo lu ção man tém algo em co mum com os es ti los an te ri o res. O Bar ro cotan to quan to o Gó ti co e o Ro mâ ni co e, ao con trá rio do Bi zan ti no, é oci -den tal, é es sen ci al men te eu ro peu! Spen gler não tem dú vi da em con si de -rá-lo uma ex pres são da cul tu ra “fáus ti ca” e seu tra ço dis tin ti vo é a im -por tân cia da fa cha da e da “fe nes tra ção”, como sím bo los sig ni fi ca ti vos dama ne i ra pela qual a alma eu ro péia “sen te a pro fun di da de”. No mo ti vo dafa cha da, que en ca ra o es pec ta dor e lhe ex pli ca o sen ti do in ter no do edi -fí cio, e na “ar qui te tu ra da ja ne la”, evi den te tan to nas ca te dra is gó ti cascom seus vi tra is co lo ri dos, como no pa lá cio bar ro co com suas gran desja ne las e na casa mo der na, com suas imen sas vi dra ças, per ce be-se a von -ta de do ho mem oci den tal de ir ra di ar para o in fi ni to seu sen ti do di nâ mi coque pro cu ra do mi nar a ma té ria pelo po der do es pí ri to e da in te li gên cia.No Bar ro co, essa con cep ção tí pi ca de es pa ço abran ge a ar qui te tu ra e our ba nis mo. Como es cre ve Mum ford: “foi um dos gran des tri un fos dain te li gên cia bar ro ca or ga ni zar o es pa ço, tor ná-lo con tí nuo, re du zi-lo ame di da e a or dem, es ten der os li mi tes de mag ni tu de, cin gin do tan to oex tre ma men te dis tan te quan to o ex tre ma men te di mi nu to; fi nal men teas so ci an do o es pa ço com o mo vi men to”.

Re ve la-se o Bar ro co no rit mo, às ve zes exu be ran te, na re gu la -ri da de, na ob ses são da si me tria e na cla re za ma te má ti ca que o pren demà fi lo so fia e à mú si ca dos sé cu los XVII e XVIII. Se gun do La ve dan sãosuas ca rac te rís ti cas pró pri as a pro cu ra cons tan te dos efe i tos de sur pre sa, o de se jo de es pa ço, por me i os nor ma is ou ar ti fi ci a is, e o hu ma nis mofun da men tal – o ho mem como fim e meio de tudo! Em ur ba nis mo, oide al bar ro co é de fi ni do pelo Mé to do de Des car tes, o qual afir ma que“as ci da des de vem ex pri mir a von ta de de al guns ho mens dotados derazão”. Des car tes se ria “não ape nas o pai do pen sa men to mo der no mas o pai do ur ba nis mo”. O pai do ur ba nis mo eu ro peu evi den te men te, poisexis te um mé to do ge o mé tri co se me lhan te no ur ba nis mo chi nês. Sãoprin cí pi os bar ro cos, ain da se gun do La ve dan, a re la ção orgâni ca dasdiver sas par tes da ci da de e sua su bor di na ção a um cen tro, as se gu ra dapor um pla no radi o con cên tri co; a pers pec ti va ou vis ta mo nu men tal; e opro gra ma de cons tru ção.

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É em Roma que o Re nas ci men to ar qui te tô ni co cria suas pri -me i ras obras de re no me e é em Roma que nas ce re al men te, no pe río dofi nal do Re nas ci men to, o ur ba nis mo bar ro co. Não por sim ples aca so!Nos sé cu los XIV e XV, era Roma uma ci da de mo des ta, mi se rá vel mesmo,que apre sen ta va o as pec to de so la dor do pa u pe ris mo e da anar quia, emmeio às ru i ri as so ber bas de um gran di o so pas sa do. Mas o es pí ri to im pe -ri al nela re si dia. É a ca pi tal do Pa pa do e o Pa pa do ia uti li zar, paraalimen to da Con tra-Reforma, a for mi dá vel ex plo são da ener gia vi tal daItá lia re nas cen tis ta. O Abso lu tis mo da Igre ja en con tra ria um meio deex pres são apro pri a do nas no vas no ções ar qui te tô ni cas, tão apro pri a do,na ver da de, quan to fora o Gó ti co para o mis ti cis mo me di e val e o Bi zan -ti no para a hi e rá ti ca li tur gia da or to do xa Cons tan ti no pla. A tra di ção impe ri alera, em Roma, ma te ri al men te mais po de ro sa do que os sen ti men tospro fun dos da Igre ja me di e val. Nada mais na tu ral que as ru í nas de umaan ti gui da de ines que cí vel per me as sem a at mos fe ra da Ci da de Eter na eins pi ras sem seus ha bi tan tes a vôos cri a do res. O fe nô me no é tan to maisin te res san te quan to não cor res pon deu, du ran te a Ida de Mé dia, ao po der es pi ri tu al e po lí ti co imen so da San ta Sé, ao pres tí gio de um Ino cên cioIII ou de um Gre gó rio VII, van ta gem prá ti ca al gu ma para a me tró po leden tro de cu jos li mi tes ne nhu ma igre ja foi en tão er gui da que se pos sacom pa rar a uma ca pe la se quer de qual quer das gran des ci da des gó ti cas.Roma dor miu ar qui te to ni ca men te en quan to o Pa pa do ro ma no tri un fa va es pi ritu al men te. Roma só des per tou quan do, es car men ta das pela Reformae pelo Abso lu tis mo mo nár qui co, as pre o cu pa ções ter re nas e tem po ra isdo Pon tí fi ce exi gi ram uma ima gem vi su al, uma ex pres são tan gí vel doseu Impé rio cris tão.

Em 1506 é lan ça da a pe dra fun da men tal da nova Ba sí li ca deSão Pe dro. Logo, os gran des gê ni os da ar qui te tu ra ita li a na (vale no tar,ne nhum de les ro ma no...) di ri gem-se para a ci da de que, como Ate nas nopas sa do e Pa ris nos dois sé cu los se guin tes, se tor na a meca dos ar tis tas.De po is de Alber ti che ga ram os três San gal lo; e Do na to Bra man te, ovul ga ri za do de Vi trú vio, tal vez o ma i or nome da ar qui te tu ra da épo ca; eRap ha el, ar qui te to não ape nas no pa i nel da “Esco la de Atenas”; eMiguel Ange lo, para al guns o ma i or ar tis ta de to dos os tem pos. São Pedrole vou anos para ter mi nar. Um de ta lhe de sua cons tru ção ilus tra, en tre -tan to, a tran si ção do Re nas ci men to para o Bar ro co: Bra man te e Mi guel

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Ange lo pla ne ja ram a ba sí li ca com uma imen sa cú pu la cen tra li za da, des ti -na da a ex pri mir, numa pu re za ide o ló gi ca es tá ti ca, a pró pria no ção decen tro da Cris tan da de. Essa no ção abs tra ta, que cor res pon de aos de se -nhos es te la res das “ci da des ide a is” re nas cen tis tas e ao sen ti do in te graldo Cris ti a nis mo me di e val, foi mais tar de subs ti tu í da pela con cep ção di nâmica da pers pec ti va que im pli ca mo vi men to para a frente, di re ção ra ci o nal,sime tria. A Ba sí li ca en tão se es ten deu e re ad qui riu o pla no cru ci for metradici o nal. A nave foi pro lon ga da e, pos te ri or men te, cons tru iu-se a colu na ta e a pi az za mo nu men tal de aces so. Os ele men tos fun da men ta is do barrocojá es tão aí pre sen tes: a Ave ni da de apro xi ma ção em pers pec ti va; a Ba sílicacomo ce ná rio de fundo, pre ce di da de uma pra ça me nor, es pé cie devestí bu lo re tan gu lar, e de uma es ca da mo nu men tal; os dois bra ços daCo lu na ta de Ber ni ni em es ti lo clás si co, cin gin do a mul ti dão dos fiéis; e o cen tro ge o mé tri co ocu pa do por um mo nu men to, um obe lis co! O mo vi -men to ri tu al pro gres si vo em di re ção ao Altar prin ci pia fora da Igre ja,cons ti tu in do as sim uma ex pres são ca rac te rís ti ca da ar qui te tu ra bar ro cada Pers pec ti va e do Mo vi men to.

Du ran te o pon ti fi ca do de Pa u lo III (1534-1549), Mi guelAnge lo cria, no Cam pi do glio, isto é, na pra ça so bre a ve ne rá vel co li nado Ca pi tó lio, a pri me i ra obra ur ba nís tica da nova era. Em sua for maorigi nal e sim ples é o mo de lo que os ar qui te tos dos sé cu los se guin tesvão fi el men te re pro du zir. Pos sui, num cres cen do rít mi co, a su bi da deapro xi ma ção pela Cor di na ta, no topo da qual se apre sen ta o prin ci palce ná rio, ten do como fun do te a tral o Pa laz zo del Se na to re; à di re i ta o Palazzodei Con ser va to ri; à es quer da o Mu seu Ca pi to li no e, no cen tro, como pon to fo cal, a fa mo sa es tá tua eqües tre de Mar co Au ré lio.

Sob o Pon ti fi ca do de Six to V (1585-1590), Roma ar ti cu la-se e toma for ma. Mi guel Ange lo mor reu; Vig no la com ple tou a cú pu la de S. Pe dro; o Re nas ci men to está em de clí nio, a Con tra-Re for ma em ple no de sen vol vi men to; a Car los V su ce deu Fe li pe II – e se anun cia o tri un fodo Abso lu tis mo mo nár qui co, si nal dos tem pos no vos. Gê nio po lí ti co ear qui te tô ni co, Six to V já era ve lho quan do su biu ao tro no pon ti fí cio mas quis dar à sua ci da de, nos pou cos anos de re i na do, o as pec to de umaver da de i ra ca pi tal do Oci den te. Era sua in ten ção tor nar Roma uma re si -dên cia ma jes to sa de onde, co ber to pe las três Co ro as do Pa pa do, po de ria go ver nar os mo nar cas da Cris tan da de, como ár bi tro in dis cu tí vel de suas

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di fe ren ças e che fe da cru za da con tra o tur co e o he re ge. Gran de Papa,não como so be ra no es pi ri tu al mas como so be ra no tem po ral no sen ti -do dos Dés po tas Escla re ci dos, Six to é, na opi nião de Gi e di on, o pri -me i ro dos ur ba nis tas mo der nos. As mag na ni me im pre se que con ce beu fo -ram in te gra das num Pla no Mes tre que ser viu de pa ra dig ma para tan tos em pre en di men tos se me lhan tes do ur ba nis mo bar ro co. Uma de suasobras mais im por tan tes é a Pi az za del Po po lo em que de pa ra mos, tal vez,com o pri me i ro exem plo da trí pli ce pers pec ti va, da pat te d’oie, ir ra di an -do de uma pra ça cen tral. O foco é um obe lis co, em Roma abun dan te -men te uti li za do como cen tro de pro je ção, como as es tá tu as eqües tres,as co lu nas e os ar cos de tri un fo. Os ur ba nis tas de todo o mun do imi ta -rão esse tra ta men to. São as três Ave ni das de Ver sa il les; as três Pers pec -ti vas de S. Pe ters bur go; o Mall com a Pennsylva nia e a Mary land Ave -nue em Was hing ton; a Ave ni da de Mayo com as duas di a go na is, emBu e nos Ai res; e o de se nho cen tral de nos sa Go iâ nia.

Fal tou, con tu do, à Ci da de Eter na, des de o prin cí pio, um es-que ma de pla ne ja men to con tí nuo e har mô ni co. A me tró po le do Pa pa -do ja ma is con se guiu ad qui rir uma es tru tu ra ver da de i ra men te or gâ ni cae essa cir cuns tân cia ilus tra su fi ci en te men te os obs tá cu los que se de pa -ram no de sen vol vi men to de uma ca pi tal tão cla ra e in con tes ta vel men te “na tu ral” como é a Ci da de Eter na. Des car tes iria por isso ex pri mir,com pa la vras sig ni fi ca ti vas, a nova con cep ção da ci da de bar ro ca pla ni -fi ca da e pro gra ma da, se gun do os prin cí pi os do bom gos to e da ra zão:“En con si dé rant le urs édi fi ces cha cun à part, on y trou ve (dans les an ci en nes ci tés)au tant et plus d’art qu’en ceux des au tres; tou te fo is, à voir com me ils sont ar ran -gés, ici un grand, là un pe tit, et com me ils ren dent les rues cour bées et iné ga les, on di -ra it que c’est plu tôt la for tu ne que la vo lon té de quel ques hom mes usant de ra i sonqui les a ain si dis po sés.” “A von ta de de al guns ho mens de ra zão”, eiso pos tu la do do novo ur ba nis mo bar ro co.

Mas da Itá lia a li de ran ça ar tís ti ca pas sa para a Fran ça. “A Itá lia está em Fran ça e Pa ris é uma nova Roma”, diz o cro nis ta da épo ca. Ber -ni ni é o úl ti mo gran de ita li a no e seu fra cas so em Pa ris é a pro cla ma çãoda in de pen dên cia ar tís ti ca fran ce sa. A re a li za ção de fi ni ti va, em ter mosno vos, das “ci da des ide a is” do Re nas ci men to ita li a no dá-se em Fran ça.O bar ro co é ali dis ci pli na do. Re pe le os ca pri chos e as fan ta si as às ve zesex ces si vas dos ita li a nos, e evo lui no sen ti do de ma i or ri que za, ple to ra de

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co lu nas, ca pi téis, cor ni jas, mol du ras, ba la us tra das e es ta tuá ria. No ri gorde li nhas e de mo ti vos, e na ma jes ta de dos gran des es pa ços aber tos, oPa lá cio bar ro co atin ge em Ver sa il les sua mais alta ex pres são. Tor na-se“clás si co”.

∗ ∗ ∗ De po is de mais de um sé cu lo de gló ria in com pa rá vel, Ver sa il les

de ca iu e, por pou co, foi in te i ra men te de mo li da, só vin do a de sem pe nhar pa pel saliente em ca sos for tu i tos pos te ri o res. Hoje é um Mu seu de di cado“à tou tes les glo i res de Ia Fran ce”! Mas quan tas ca pi ta is nas ce ram de umcapri cho de Rei? Ma drid por que Car los V, so fren do da gota, apre ci ouseu cli ma. Haia, re fú gio de caça dos con des de Ho lan da. S. Pe ters bur goem vir tu de de uma sú bi ta in tu i ção ge o po lí ti ca do Tzar. Ver sa il les tam -bém, fru to de um aca so fe liz, com bi na do com pro fun das im po si çõespo lí ti cas pois, nes sa épo ca, a es co lha de sí ti os pro pí ci os não pos sui ca rá -ter ci en tí fi co mas de pende de de se jos so be ra nos... Des car tes, cuja fi lo so fiaexpri me por ex ce lên cia a Cos mo vi são da ida de do Abso lu tis mo, di riaen fa ti ca men te que to das as gran des ações va le dou ras sem pre ema na ramde uma per so na li da de su pe ri or! O fato é que nun ca se viu uma ca pi taltão in ti ma men te li ga da à obra de um ho mem. Nun ca uma ci da de tevesua sor te tão in dis so lu vel men te vin cu la da à de uma clas se, de um re gi me ede um rei.

Pela primeira vez men ci o na da nos Ana is da mo nar quia francesaem 1609, por que Hen ri que IV ali se de te ve para des can sar dos pra ze resda caça, re a pa re ce du ran te o re i na do de seu fi lho e su ces sor Luis XIII.Este, também gran de ca va le i ro e ca ça dor, des de a in fân cia amou o bos quee o bre jo de Ver sa il les. Lhe apra zia de mo rar-se ali, lon ge das pre o cu pações,in tri gas e ce ri mô ni as da Cor te. Em 1623 é le van ta da uma mo des ta edi fi -cação, um “cas te lo de car tas” como di ria Sa int Si mon, mas só sete anos mais tar de, na ex tra or di ná ria Jour née des Du pes, en tra Ver sa il les de fi ni tivamen te para a his tó ria quando, en tre seus mu ros, se as se gu ra a for tu na do Car de al de Riche li eu. O Rei, cada vez mais ata do ao lu gar, man dou en tão dese nharum jar dim que pre fi gu ra o fu tu ro par que. Re cons trói a man são sob a for ma de um pe que no Cha te au, obra de que se en car re gou o ar qui te to Phi li bert le Roy. É, nos úl ti mos anos da sua vida, o re ti ro pre di le to des se gran deso li tário, rei ta ci tur no, e ain da so bre vi ve em par te, con ser va do pela pi e da defi li al de Luís XIV, na fa cha da do Pá tio de Már mo re.

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Em seu lon go e me mo rá vel re i na do (1661-1715), Luís oGran de cons tru iu em Ver sa il les três pa lá ci os su ces si vos que se subs ti tuíram e se com ple ta ram até for ma rem o gran di o so con jun to de hoje. É bastan teco nhe ci da a tese de que o pri me i ro se ria fru to da in ve ja do Rei pelocas te lo de Va ux-le-Vicomte, man da do edi fi car por seu mi nis tro Fou quetem 1655. Su pe rin ten den te da Fa zen da real, cé le bre fi nan cis ta e protóti podo “cor rup to”, no du e lo de mor te tra va do pela con fi an ça do Rei, Fouquetfoi ven ci do por Col bert, o su per-burocrata, e con de na do à pri são per pé -tua. Seu “luxo in so len te e au da ci o so”, nas pa la vras do Rei, en con trou no cas te lo uma ex pres são ade qua da que Luís XIV por sua vez pro cu ra riaul tra pas sar. Luxo in so len te e au da ci o so, só o mo nar ca ab so lu tis ta ti nhao di re i to de os ten tar... Entre tan to, não se pode ape nas atri bu ir Ver sa il lesao de se jo de apa gar a lem bran ça do mi nis tro con cus si o ná rio e so brepujá-lo por va i da de mes qui nha. As ins pi ra ções para tal obra exis ti am em abun -dância: nas Vi las ita li a nas, nos pa lá ci os de Roma, em Cham bord e nosou tros es plên di dos cas te los do Re nas ci men to fran cês às mar gens doLoire, no Palais Ma za rin, em Ru e il e, par ti cu lar men te, no cas te lo deRiche li eu. Este, obra do Gran de Car de al, cons tru í do em 1635 em suaster ras do Po i tou com uma ci da de a ele li ga da, pre fi gu ra a con cep çãopolí ti ca que ins pi ra ria Ver sa il les. Des ta ca-se as sim o pa drão do Cha te aude Pla i san ce como re si dên cia con dig na do Rei ou do mi nis tro po de ro so,er gui do no su búr bio das ci da des, em con ta to com a na tu re za cam pes tree alimen ta do pe los la ti fún di os an ces tra is, fa cul tan do a seus do nos o la zer, o desporto da caça, a so li dão me di ta ti va e a dis cri ção dos en con tros amo ro sos e das in tri gas de alta po lí ti ca.

De Fou quet o Rei her dou três ar tis tas de ta len to ex cep ci o nal:Le Vau, “Archi tec te des Bâ ti ments du Roi” até sua mor te em 1670; Le Brun, pin tor de se gun da or dem, é bem ver da de, po rém mes tre de obra ge ni alque exer ceu um pa pel de ci si vo na co or de na ção do tra ba lho de equi pe; eLe Nô tre, fa le ci do em 1700, o ma i or de to dos os jar di ne i ros, ao qualmais do que a qual quer ou tro se deve o de se nho de Ver sa il les e, nes sesen ti do, me re cen do mais sé ria con si de ra ção na his tó ria da arte, pois asua não é, cer ta men te, uma “arte me nor”. Sob a har mo ni o sa di re çãodesses três ho mens tra ba lha rá uma plêi a de de pin to res, ar qui te tos emaqui nis tas. Um dos gran des se gre dos de Ver sa il les re si de na per fe i taar re gi men ta ção dos es for ços des ses inú me ros ar tis tas anô ni mos. Não é

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este ou aque le por me nor de ar qui te tu ra, pin tu ra ou es cul tu ra, mas ocon jun to com ple xo da ci da de, do pa lá cio e dos jar dins que cons ti tui aver da de i ra obra-prima. Há um equi lí brio mag ní fi co das ar tes in di vi du a is. O re sul ta do, como em to das as obras ur ba nís ti cas de en ver ga du ra, éuma es té ti ca em toda a sua ple ni tu de que re su me o es ti lo da épo ca. NoAcrópole de Ate nas, em Be id jing, na ci da de Va ti ca na e nas ca te dra is góti cas,as sis ti mos a es sas re a li za ções de equi pes anônimas, em que a arte sesubli ma. Em Ver sa il les, o im pul so que di ri ge Le Brun, Le Nô tre e LeVau é a pró pria von ta de do Rei. Luís XIV é o ge ni us loci de Ver sa il les que lhe re fle te o gos to de do mí nio e de gló ria, o or gu lho des me di do (a hiper -tro fia do Eu di ri am os psi có lo gos), o es pí ri to au to crá ti co obs ti na do eWil le zur Macht ab so lu tis ta, a Von ta de de Po tên cia que Ni etzsche atri buiuaos Ho mens Su pe ri o res. Nes sa obra ele dis si pa ria a ri que za da Fran çaque Col bert amon to a ra, como em suas guer ras, na ma i or par te inú te is,esbanja ria a for ça que Ri che li eu acu mu la ra. Tan to que ao mor rer, contri to,la men ta ria ter ama do de ma is “la glo i re et les bâ ti ments”...

Entre tan to, es cre ve Ma u ri che au-Beaupré: “Embo ra adap tas seVer sa il les a sua pes soa, seus gos tos, lem bran ças, à pi e da de fi li al as simcomo à eti que ta e, so bre tu do, ao es plen dor que ten ci o na va con ce der àvida real, Luís XIV tudo su bor di nou às re gras de ar qui te tu ra e às con cepções ide a is dos ar tis tas. Ver sa il les é uma rou pa sob me di da do “ma i or Rei domun do” e da Cor te de Fran ça, “a mais bri lhan te e re fi na da que ja ma isexistira”. Luís XIV foi dono de Ver sa il les que en co men dou a seus ar tistascomo qual quer ri ca ço de hoje en co men da um sí tio su bur ba no ao ar qui -te to da moda. Mas, ao mes mo tem po, da imi ta ção da an ti gui da de e daarte con tem po râ nea ita li a na sur giu uma arte na ci o nal fran ce sa que guar -da ria as tra di ções clás si cas de me di da, de gos to e de ele gân cia. A mar cado ho mem está pre sen te em to dos os por me no res. Sen te-se a de di ca ção, o ca ri nho do Rei por essa “casa de cam po” que se tor nou o mais suntu o so dos palácios; sen te-se tam bém, atra vés das obras con se cu ti vas e va ri edadede mo ti vos e de hu mo res nas di ver sas fa ses de cons tru ção, a uni da deque sem pre pre si diu a seu de sen vol vi men to como se fora, ver da de i ra -men te, um or ga nis mo vivo.

Do pon to de vis ta ur ba nís ti co, a ci da de que cres ceu à vol ta do cas te lo re ve la igual men te a com bi na ção de ini ci a ti va pes so al de LuísXIV e con tri bu i ção anô ni ma dos ar tis tas. O es que ma é um bom exem -

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plo do pla no ra di al e, para Brinc kmann, uma lem bran ça di re ta da Pra çado Povo em Roma. O ele men to cen tral é o gru po de três Ave ni das(Ave nue de St. Cloud, Ave nue de Pa ris e Ave nue de Sce a ux) com 70 a90 me tros de lar gu ra, que con ver gem so bre a Praça de Armas, à en tra dado pa lá cio (Mapa IV). Uma quar ta ave ni da liga as duas ex tre masperpen di cu lar men te à do cen tro. A idéia bá si ca é a grande Pers pec ti vades ti na da a enal te cer o Rei cujo quar to de dor mir é o foco do de se nho.

Entre os anos de 1675 e 1684 foi cons tru í do o se gun do casteloque é obra do ar qui te to Har dou in-Mansart, so bri nho da que le que inven tou a “Man sar da”. Esse edi fí cio é, na re a li da de, um acrés ci mo ri go ro samenteobe di en te ao es ti lo do pri me i ro, dan do ao pa lá cio sua ex ten são des co -mu nal de 575 me tros! Entre tan to, tal de sen vol vi men to ho ri zon tal nãopro duz a im pres são ex ces si va que se ria de es pe rar, e que ocor re, porexem plo, no Pa lá cio de Inver no de São Pe ters bur go, por que se pro cu rou o efe i to da pers pec ti va na dis tân cia: as duas alas dão uma ên fa se ca rac te -rísti ca ao cor po prin ci pal que se pa re ce lan çar so bre os ter ra ços do parque.

Do lado da ci da de, isto é, na fa cha da les te, Har dou in-Mansart edi fi cou tam bém as duas es tru tu ras que la de i am a Pra ça de Armas. Sãoos cha ma dos “Pa vi lhões dos Mi nis tros” para abri gar os de par ta men tosda admi nis tra ção mo nár qui ca e cons ti tu ir os bra ços da Gran de Pers pecti vade en tra da, de se nhan do o U es sen ci al ao efe i to ur ba nís ti co bar ro co – oU do Cam pi do glio, da Pra ça de São Pe dro e das Tu i le ri es.

Além das es tru tu ras gi gan tes cas, ca pa zes de al ber gar al gunsmi lha res de pes so as, mu i tos ou tros edi fí ci os fo ram cons tru í dos tan to naci da de quan to no par que... Cres ceu, as sim, uma ver da de i ra ca pi tal comvida pró pria, uma aglo me ra ção que, em bo ra sem pre em ín ti mo con ta tocom Pa ris, se tor nou uma de pen dên cia mons tru o sa do pa lá cio onde sealo ja ram os aris to cra tas, os fun ci o ná ri os com suas fa mí li as, a cri a da geme to dos os ser vi ços com ple xos para o trans por te, con for to e ali men taçãoda Cor te. Qu an do mor reu Luís XIV, vi vi am nela 30.000 al mas!

No par que a obra mais im por tan te é o Gran de Tri a non, cons -tru í do em 1688 como re sul ta do de uma mu dan ça no modo de vida e no gos to do Rei. A Cor te tor na ra-se mais aus te ra após a mor te da Ra i nha.Luís XIV en ve lhe ce ra e sua fa mí lia fora atin gi da por uma sé rie fu nes tade lu tos, epi de mi as de va río la. As guer ras me nos fe li zes co me ça vam acan sar o país. O pró prio mo nar ca ar re fe ce ra em seu en tu si as mo pela

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eti que ta, pe las fes tas de so nho e exu be rân cia te a tral do am bi en te pa la ciano. Sua fa vo ri ta era en tão a pi e do sa Mar que sa de Ma in te non. No Tri a non, o es ti lo tor na-se mais dis cre to e leve.

De po is da mor te de Luís XIV, é Ver sa il les aban do na da pelaRe gên cia mas, a par tir de 1742, quan do a Cor te vol ta ao lo cal de suasgló ri as, re a ni ma-se a fe bre de cons tru ções, ca ben do a ou tro ar qui te to fa -mo so, Jac ques-Ange Ga bri el, pôr em exe cu ção os pla nos re a is. Ga bri elin tro duz o es ti lo “pu ri fi ca do”. que se diz ins pi ra do de Roma e da Gré cia,anun ci an do o Impé rio. Esti lo que, meio sé cu lo mais tar de, nor te a rá as obrasde Na po leão em Pa ris, de Ale xan dre I em S. Pe ters bur go, de Was hing ton e,fi nal men te, de todo o mun do oci den tal. O ne o clas si cis mo apa re ce, emVer sa il les, na ala, acres ci da mais tar de de ou tra si mé tri ca, que la de ia oPá tio Real. Mu i tas ve zes cri ti ca das, elas apre sen tam o fron tão do tem plo gre go, sus ten ta do por qua tro po de ro sas co lu nas, e pa re cem des to ar umpou co do bar ro co ver sa lhes co. Tam bém ins pi ra do nas for mas gre gascom que Ga bri el tra va ra co nhe ci men to em suas vi a gens, é o jus ta men tecé le bre Pe tit-Tri a non, ter mi na do em 1763. Tra ta-se sem dú vi da, pela sua pu re za áti ca, de uma jóia do re i na do e do clas si cis mo fran cês. Des pre zaos ar cos. Suas ja ne las são re tan gu la res; aban do na tam bém o ex ces sode co ra ti vo – or na men tos, tro féus, gri nal das ou fron tões. O en ta bla men toé com ple ta do por uma sim ples ba la us tra da. Na fa cha da, ape nas qua troco lu nas da or dem co rín tia, a que cor res pon dem, nos la dos, qua tro pi la res,para que brar e ani mar sua fria re tan gu la ri da de.2 Vale men ci o nar que Pa -ris tam bém deve a Ga bri el al gu mas obras me mo rá ve is tais como aEsco la Mi li tar no Champs de Mars, os Invá li dos e os dois “ho téis” queflan que i am a en tra da da rue Ro ya le.

Após ha ver abor da do o as pec to pu ra men te ar qui te tô ni co docon jun to, vale sa li en tar um seu ele men to cons ti tu ti vo cuja im por tân cia é in con tes tá vel por que, tal vez mais do que no es ti lo dos edi fí ci os, nele seex pri me o sen ti do da cul tu ra bar ro ca no sé cu lo do Rei Sol. Re fi ro-me ao Par que e à arte da jar di na gem. Em Ver sa il les, com efe i to, Le Nô tretrans fe riu ad mi ra vel men te da lin gua gem da pe dra para o idi o ma ve ge talo ide al da Gran de Pers pec ti va. Do ra van te, o Cul te de l’Axe domina o

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2 Por oca sião da Expo si ção do Cen te ná rio da Inde pen dên cia no Rio, 1922, deam bos os la dos do que é hoje a Ave ni da Pre si den te Wil son, o pa vi lhão fran cês foi uma có pia do Pe tit Tri a non. Hoje alo ja a Aca de mia Bra si le i ra de Le tras.

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urba nis mo pa i sa gís ti co. Do ter ra ço do pa lá cio, o olhar des ce en tre osdois par ter res dos Espe lhos de Água, atra ves sa a es pla na da de La to ne e,la de a do por mu ra lhas de ve ge ta ção apa ra da, sem en con trar obs tá cu losse gue o Ta pe te Ver de para per der-se, além do Gran de Ca nal, num ho ri -zon te li vre e in de fi ni do. A ele va ção so bre a qual se er gue o pa lá cio aju da a criar essa du pla im pres são de iso la men to e de co mu nhão com as dis tân -ci as sem fim. Des per ta uma emo ção se me lhan te à que nos ca u sam ospanora mas no alto das mon ta nhas po rém, aqui, ra ci o na li za da e ad qui rindoum sig ni fi ca do sim bó li co. O cul te de l’axe é uma das cha ves que per mi tecom pre en der essa arte da jar di na gem que in va de a Fran ça e, mais tar de,toda a Eu ro pa, sen do o mo ti vo prin ci pal a lar ga ave ni da ar bo ri za da,galgando uma ele va ção onde um mo nu men to qual quer cons ti tui o centrodo efe i to pa no râ mi co. Le Nô tre apli cá-lo-ia em Pa ris, na pers pec ti va doChamps Elysées que Na po leão com ple ta ria com a edi fi ca ção do Arcode Tri un fo. Em me a dos do sé cu lo XIX, Ha uss mann pro ce de ria na basede padrões se me lhan tes. No di zer de Lewis Mum ford, es ses “ei xos visuaise li nhas es tre i tas são a con tra par ti da ur ba na do mo vi men to me câ ni coem di re ção a um ob je ti vo fixo” e, por isso, é a ave ni da “o sím bo lo maisim por tan te e o fato pre do mi nan te da ci da de bar ro ca”.

No te-se a di fe ren ça fun da men tal com o es que ma da Ci da dePro i bi da de Be id jing. Na ca pi tal chi ne sa, o mo vi men to é in tro ver ti do, de fora para den tro, da pe ri fe ria para o cen tro. O cen tro é a sala do Tro no.Em Ver sa il les, pelo con trá rio, o mo vi men to é cen trí fu go. O Pa lá cio éain da o cen tro da pers pec ti va, mas um cen tro de ir ra di a ção, um “pon tode vis ta” a par tir do qual a vi são pro cu ra li vrar-se dos obs tá cu los que lhe impedem o trân si to, a fim de es ten der o seu âm bi to uni ver sal. A di ferença psi co ló gi ca entre as duas cul tu ras está per fe i ta men te ex pres sa nes saorien ta ção pa no râ mi ca, oci den tal, di nâ mi ca e ex tro ver ti da. O ho mem é opróprio cen tro do uni ver so que ele pro cu ra abar car em sua ân sia fre né ticade do mí nio es pa ci al.

A ori gem do jar dim eu ro peu é con tem po râ nea da des co ber tada Pers pec ti va. No sé cu lo XV, três gran des ar tis tas ita li a nos, um en ci clo -pé di co, Leon Bat tis ta Alber ti; ou tro ar qui te to, Bru nel les co, o cri a dor doDu o mo de Flo ren ça; e o ter ce i ro pin tor, Pi e ro del la Fran ces ca, con ce be -ram-no como par te in te gran te de sua vi são da na tu re za ma nu se a da peloho mem. Estu dan do seu as pec to teó ri co ou ex pli can do, por vez pri me i ra,

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as re la ções que exis tem en tre a pa i sa gem e a mo ra da hu ma na, es sesar tis tas des co bri ram aqui lo que já era uma idéia in tu i ti va de chi ne ses eja po ne ses, isto é, re ve la ram o va lor ar tís ti co do jar dim e a pos si bi li da dede cri a ção de uma “pa i sa gem ar ti fi ci al” como par te da es fe ra ime di a tade ação do ho mem. O jar dim tor na-se uma ex ten são de seu mun do fa -mi li ar, em ín ti ma re la ção com a casa. Logo de po is, Bra man te dará “umali nha, uma cha ve, uma ori en ta ção ao de se nho ge o mé tri co dos jar dins”. Ojar dim fran cês dos sé cu los XVI e XVII co lo ca-se, por con se guin te, nali nha de evo lu ção prin ci pi a da na Itá lia da Re nas cen ça, como cri a ção ca -rac te rís ti ca da ci vi li za ção oci den tal e, nes se sen ti do, de es pí ri to to tal men tedi ver so dos jar dins do ori en te. A Anti gui da de não co nhe ceu pro pri a -men te a arte, se ex ce tu ar mos os fa bu lo sos Jar dins Sus pen sos de Ba bi lô nia cujo sig ni fi ca do len dá rio nos es ca pa. Os res tos de Tell el-Amar na tam -pou co per mi tem en ten der o es pí ri to exa to da jar di na gem, no qua dro dacul tu ra de Akhe ta ton. Mes mo na Roma Impe ri al pa re cem li mi ta dos osjar dins, tan to em ex ten são quan to em pro pó si to, como se in te i ra men tesu bor di na dos à casa. A ci vi li za ção is lâ mi ca, po rém, já re ve la um sen ti -men to pri má rio do jar dim ge o mé tri co e da pers pec ti va ve ge tal, comoele men tos in te gran tes de con jun tos ar qui te tô ni cos, o que é de mons tra do pe los exem plos ain da exis ten tes na Espa nha, Pér sia e Índia. O pro ble mada trans mis são des sa arte do Islã para a Itá lia e a Espa nha, e daí para aFran ça, foge, en tre tan to, ao âm bi to des te tra ba lho. Ain da fan ta sia e ca -pri cho na Itá lia – nas vi las Borg he se, Bo bo li ou Lu do vi si, – o sen ti do es -sen ci al do vo ca bu lá rio só brio do bar ro co fran cês é o do mí nio da ter ra pela in te li gên cia hu ma na, com a no ção pro crus te a na de for cer la na tu re, isto é,de di ri gir os fe nô me nos na tu ra is, su je i tan do-os aos de síg ni os car te si a nosdo ho mem, ex pres sos em for mas ge o mé tri cas. Mes mo se não pre ten defor çar a na tu re za, o jar dim fran cês pro cu ra, pelo me nos, re pro du zir label le na tu re. Em ou tras pa la vras, o jar di ne i ro ten ta cri ar um mo de lo ide alde na tu re za, de acor do com o con ce i to aris to té li co de que o ar tis ta “deveme lho rar o mo de lo”. Ora, esse con ce i to cons ti tui o pró prio fun da men tofi lo só fi co do es ti lo clás si co!

A pa i sa gem bar ro ca, por ex ce lên cia, é a “pa i sa gem he rói ca”de um Ni co las Pous sin ou de um Cla u de Lor ra in cujo ob je ti vo é dar asen sa ção da pro fun di da de e da pers pec ti va, acen tu a do os vá ri os pla nosda ter ce i ra di men são. Na con cep ção da “pa i sa gem he rói ca” re a li za da em

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Ver sa il les, o co lo ri do, a de co ra ção, o por me nor per dem seu sig ni fi ca dopar ti cu lar, em pro ve i to da uni da de di nâ mi ca que pre si de à dis po si ção do con jun to. Ele é es pa ço puro, dis tân cia, ho ri zon te! Além dis so, usa cons -tan te men te mo ti vos clás si cos e, na exu be rân cia e fron do si da de de suave ge ta ção, na ma gia das co res e na mo nu men ta li da de das fan ta si as ar -qui tetô ni cas, ex pri me com per fe i ção as idéi as que deram vida a Versail les.Com Cor ne il le, Ri che li eu e Des car tes, é Pous sin con si de ra do um dosqua tro pi la res da ra zão france sa. Qu an to a Cla u de Lor ra im, é um exemploextra or di ná rio da fu são da sen si bi li da de ima gi na ti va e da dis ci pli na ra -cional de seu sé cu lo.

A re la ção ín ti ma, a sá bia tran si ção en tre o pa lá cio e o jar dim,en tre o edi fí cio e o par que, a ci da de e o cam po, e em úl ti ma aná li se en tre Pa ris e Ver sa il les, re ve lam o tipo de vida da épo ca de Luís XIV, épo ca de tran si ção en tre o ru ra lis mo fe u dal e o ur ba nis mo mo der no. Cons ti tu em, ao mes mo tem po, uma ex pres são ar tís ti ca, pró pria do es ti lo bar ro co. Ojar dim é aí par te in te gran te do com ple xo ar qui te tô ni co. Já foi cha ma douma “ar qui te tu ra ao ar li vre”. Em ou tras épo cas e de vá ri as ma ne i ras odo mí nio do ho mem so bre a na tu re za foi ex pres so em for mas ar qui te tô -ni cas, mas nun ca, afir ma Gi e di on, “uma co mu ni da de de tal en ver ga du rafoi ins ta la da sob um mes mo teto, em cam po aber to, lon ge de qual querci da de”. E para Mum ford, o gran de par que “con ti nua sen do, tal vez, ama i or con tri bu i ção do ur ba nis mo bar ro co à exis tên cia ur ba na moderna”.

A in fluên cia das con cep ções da épo ca no tra ta men to deVersailles apre sen ta ou tra ex pres são cu ri o sa, na pre di le ção pe los aspectosex te ri o res da Roma an ti ga e do pa ga nis mo. Não ape nas na ar qui te tu racu jos mo ti vos, fiéis à li nha do Re nas ci men to, têm sua ori gem na co lu nae fron tão gre gos, e na pi las tra e arco ro ma nos. A pin tu ra, a de co ra ção, aes ta tuá ria ins pi ram-se tam bém na ida de clás si ca. Nada con tem po râ neo,sal vo a pe ru ca, é dig no de ves tir a Real Ma jes ta de quan do, no bron ze ou no már mo re, é re pre sen ta da em toda a sua gló ria. Te mos as sim um Reide Fran ça em ar ma du ra de Au gus to, de ca chos e de per nas de fora! E,no qua dro ale gó ri co de Jean No cret, toda a fa mí lia Bour bon é re pre senta da se mi nua, qual de u ses do Olim po... mas de pe ru ca!

O que ocor re na pin tu ra apre sen ta uma cor res pon dên cia naar qui te tu ra. Pro du ziu-se uma ci são ou um des vio na arte oci den tal: aodua lis mo da Igre ja e da Mo nar quia cor res pon de o du a lis mo de es ti los – o

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gó ti co e o clás si co – sen do que o es ti lo le i go se de sen vol ve pos te ri or men teàs gran des con vul sões dos sé cu los XV e XVI que aba la ram o pres tí gio daIgre ja. É por tan to no clas si cis mo, com suas ins pi ra ções pa gãs e mo ti vostira dos da mi to lo gia he lê ni ca, que o po der tem po ral é obri ga do a pro cu raros pa drões es ti lís ti cos sus ce tí ve is de ex pri mir a nova re a li da de po lí ti ca ecultural. Fe nô me no re al men te cu ri o so essa re vi vis cên cia ar ti fi ci al dopaganis mo, esse in te res se apa i xo na do e poé ti co pela at mos fe ra da an ti gui -da de! Não se tra ta re al men te de um en fra que ci men to da fé cris tã: Luís XIV era um cató li co con vic to e até in to le ran te, como de mons trou pela re vogaçãodo Edi to de Nan tes. Mas a fan ta sia mi to ló gi ca ob tém alhu res um tri un fosem pre ce den tes, ser vin do aos fins do hu ma nis mo ra ci o na lis ta e do ab so lu -tis mo mo nár qui co cuja aten ção es ta va pre sa, não à imor ta li da de pes so al ouao vôo mís ti co da pi e da de cris tã, mas à gló ria ter re na, com ên fa se naexpan são ple na da li ber da de in di vi du al. Re a pa re ce as sim em Ver sa il les o du -a lis mo tão cu ri o so da pin tu ra do Re nas ci men to ita li a no onde as so le nes fi -gu ras de san tos e már ti res al ter nam com as re pre sen ta ções sen su a is dos de -u ses nus e he róis he lê ni cos pou co vir tu o sos.

É Le Brun que pre si de à de co ra ção e dá uni da de aos con jun tosplás ti cos de te mas olím pi cos. O mito fa vo ri to é o de Apo lo. Com suaale go ria so lar, como o Sol, es plen di da men te “ir ra dia” o Rei o seu do mí -nio. Essa ir ra di a ção é a “ gló ria” que o Rei in cu ti ra ao es ti lo como idéiaob ses si va. Não é sem sur pre sa que va mos de pa rar aqui, em ple na re si -dên cia des se fi lho di le to da Igre ja, com um qua dro de cor res pon dên ci asmá gi cas ca pa zes de em be ve cer qual quer sá bio ta o ís ta! Ma u ri che au-Be a pré es cre ve: “Entre esse Pa lá cio do Sol e seus jar dins, ex pla nan do ao mes mo tem po o mito de Apo lo e seu cur so di ur no, Le Brun de se jou evo car, em uma es pé cie de mi cro cos mo, toda a evo lu ção do mun do: vê-se aí auni da de sim bó li ca que quis dar a todo o se nho rio o seu pri me i ro pin tor”.E pa re ce acres cen tar um co men ta ris ta da épo ca: “Como o Sol é o em -ble ma do Rei e os po e tas con fun dem o Sol com Apo lo, nada exis te nes -sa casa so ber ba que não es te ja em re la ção com a alu di da di vin da de: as -sim, as fi gu ras e os or na men tos es tão to dos li ga dos ao Sol. Na fa cha daprin ci pal três bal cões, or na dos de qua tro co lu nas cada um, dão en se jode co lo car doze co lu nas que re pre sen tam os doze me ses do ano”. Aiden ti fi ca ção que os ar tis tas pro cu ram re a li zar en tre Apo lo e o Rei Sol

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trans pa re ce, de novo, no co men tá rio de La Fon ta i ne so bre a gro ta dasNin fas:

Qu and le so le il est Ias, et qu’il a fait sa tâ cheIl des cend chez Thethys, et prend quel que re lâ che:C’est ain si que Lou is s’en va se dé las serD’un soin que tous les jours il faut re com men cer...

A har mo nia dos mun dos está as sim plas ti ca men te in tro du zi da em Ver sa il les e, não fos se a cons ciên cia de que se tra ta ape nas de umafan ta sia poé ti ca, ofe re cer-se-ia o es pe tá cu lo pa ra do xal de uma ex pres são da mito lo gia he lê ni ca que, em ar qui te tu ra, a pró pria Gré cia ja ma is reali zou.A har mo nia em Ver sa il les é fe i ta de mu i tos ele men tos como é pro du tode mu i tas in fluên ci as. O su ces so es té ti co da obra re si de, jus ta men te naunidade que se con se guiu im por a um con jun to de ins pi ra ções tãodíspa res. O en tu si as mo da Re nas cen ça pela an ti gui da de clás si ca, a es tru -tu ra do ab so lu tis mo mo nár qui co – ve ja mos ain da ou tros!

A in fluên cia chi ne sa. Os pro gres sos da ciên cia e as gran desna ve ga ções exer ci am uma atra ção sur pre en den te so bre a cu ri o si da dedos con tem po râ ne os. A bo tâ ni ca es ta va sen do en ri que ci da com umaquan ti da de de plan tas exó ti cas, mu i tas das qua is cri a ram ra í zes emVersail les. Os co nhe ci men tos ge o grá fi cos, a des co ber ta de no vos mundosabri am ao pen sa men to vas tís si mos ho ri zon tes e da vam à épo ca umdina mis mo in com pa rá vel. A Eu ro pa ras ga va-se a to das as no vi da desmas a sua vi ta li da de e im pul so cri a dor pos su íam uma qua li da de ver da deira -men te ex plo si va, ab sor ven do e mo di fi can do tudo tão ra pi da men te que,hoje em dia, mal po de mos des co brir os si na is des sas ins pi ra ções às ve -zes tri vi a is. A in fluên cia chi ne sa, no en tan to, exis tiu re al men te, re sul ta do tal vez in di re to das no tí ci as dos je su í tas, mer ca do res e di plo ma tas que vi -si ta ram o Impé rio Cen tral en tão go ver na do por Kang Hsi, gran de con -tem po râ neo de Luís XIV.

A in fluên cia fe mi ni na. Nos sé cu los XVII e XVIII en con tra -mo-la na ple ni tu de de sua do mi na ção su til so bre a vida mun da na, osgos tos li te rá ri os, os pa drões ar tísticos e os se gre dos da po lí ti ca. Sãosécu los de ele gân cia, de re fi na men to e ga lan te ria, de po li tes se e de l’amour, quan do os mais po de ro sos Reis se sub me ti am, de bom gra do, aos con -se lhos, às opi niões e às fan ta si as das mu lhe res. Sur ge as sim, por vezprimeira, o con ce i to da moda, como, em po lí ti ca, a “opi nião pú bli ca”

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pela pri me i ra vez se ma ni fes ta. O ero tis mo ad qui re for mas de re fi na -men to. Tal ley rand la men ta ria: “Qui n’a pas vécu avant 1789 ne con na it pas ladou ce ur de vi vre” – a do çu ra de vi ver da qual es sas ado rá ve is cria tu ras fo -ram os prin ci pa is in gre di en tes.

Gi e di on es ta be le ce, como as duas prin ci pa is con tri bu i çõesfran ce sas à ar qui te tu ra bar ro ca da se gun da me ta de do sé cu lo XVII, aor ga ni za ção dos es pa ços ex ter nos e o de sen vol vi men to de um tipo mais re fi na do de re si dên cia, atri bu in do à in fluên cia fe mi ni na a idéia do con -for to, da com mo di té, a in sis tên cia na ne ces si da de de or ga ni zar a mo ra dahu ma na e a im por tân cia dos pa lá ci os como cen tros da vida so ci al ecul tu ral da épo ca. Ao ad mi tir em Ver sa il les, por suas gran des ja ne las, o ar, a luz, o sol, di zem que Luís XIV ina u gu rou a vida mo der na. O fra cas so de Ber ni ni em Fran ça, re ve la do na re pul sa a seu pro je to de re mo de la ção do Lou vre, es ta ria li ga do a cer ta inap ti dão para com pre en der essa evo lu çãodo modo de vida fran cês. A Itá lia do Re nas ci men to ain da é mu i to vi ril;só com o bar ro co fran cês a de li ca de za e su a vi da de fe mi ni nas pe ne tramnas ar tes, de po is de pre si dir aos pro gres sos da vida ca se i ra. Um ar qui te -to do sé cu lo se guin te di ria que Ber ni ni não se pres ta ra a en trar em to dos os de ta lhes des sas “co mo di da des” de que de pen de o ser vi ço de um Pa lá cio. A ob ser va ção é tan to mais sig ni fi ca ti va quan to Ver sa il les nos pa re ce,hoje, qua se pri mi ti vo em ma té ria de hi gi e ne e con for to. Bas ta di zer que,não obs tan te o es pan to so pro gres so nos cos tu mes des de o re i na do deLuís XIII, o gi gan tes co edi fí cio não pos su ía ba nhe i ros e mu i to me nosla tri nas. Ben ja min Frank lin, mu i to em bo ra ci da dão de uma nova re pú -bli ca que fora co lô nia, na Amé ri ca ain da qua se sel va gem, que i xou-se dopa lá cio onde des co briu “uma mis tu ra pro di gi o sa de Mag ni fi cên cia eNe gli gên cia, com toda es pé cie de Ele gân cia, ex ce to Lim pe za, e aqui loque cha ma mos or dem ou as se io (Ti di ness)”.

No qua dro mag ní fi co do pa lá cio e de seus par ques, a Cor tetor nou-se o cen tro da vida fran ce sa, uma vida de ope ra à la Lul li em queera o Rei a es tre la prin ci pal. Nes sa fase, de sem pe nhou o cas te lo o pa pelhis tó ri co que cou be ou tro ra, em ou tras so ci e da des, à Ágo ra, ao Fó rum,ao Anfi te a tro, ao Ba zar ou à Ca te dral. Para acres cer sua gló ria, o Rei não se sa tis fez com as vi tó ri as mi li ta res que mar ca ram o iní cio do re i na do, nemcom a efi ciên cia de uma ad mi nis tra ção es cla re ci da que mu i to con cor reupara o rá pi do en ri que ci mento do país. Quis cer car-se de cul tura. Desde

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as épo cas de Pé ri cles e de Au gus to, des de o Re nas ci men to ita li a no, nãose co nhe cia um es plen dor se me lhan te: o “gran de sé cu lo!” O pres tí gioda França na guer ra, na arte e na li te ra tu ra eco ou por toda a par te e, duran -te os du zen tos anos se guin tes, com o im pul so dado, ela per ma ne ce ria na van guar da da ci vi li za ção oci den tal.

Luís XIV era ho mem de ta len to, mas lon ge es ta va da ge ni a li -da de de um Pe dro da Rús sia, um Fre de ri co II ou uma Ca ta ri na. Foi seuta len to co nhe cer os ho mens e com pre en der a épo ca, fa zen do com quetudo contri bu ís se para sua gló ria en quan to a de di ca va à gló ria da França.Na es fe ra da polí ti ca e da guer ra, Col bert, Tu ren ne, Va u ban, Lou vo isforam os ar qui te tos de seus tri un fos. Mas na li te ra tu ra os no mes sãoainda mais fa mo sos. Sem es que cer Cor ne il le, vale lem brar os do tro ca dilho: Ra ci ne de la Bruyè re Bo i le au de la Fon ta i ne Mo liè re...

Ver sa il les ex pli ca-se pela se guin te fra se de Sa int-Simon quealu de ao tem pe ra men to do Rei: “Em tudo amou o es plen dor, a mag ni fi -cên cia, a pro fu são. Esse gos to, por po lí ti ca trans for mou em má xi maque, na Cor te, tudo ins pi rou”. E La Fon ta i ne, que não foi um crí ti comas um ad mi ra dor do re gi me, as sim jus ti fi ca o pen dor real: “Os ho -mens ne ces si tam al gum la zer. Ale xan dre era um de vas so; Au gus to, umjo ga dor; Sci pião e La e li us dis tra íam-se ati ran do na água pe dras cha tas:nos so mo nar ca di ver te-se man dan do cons tru ir pa lá ci os – e isso é dig node um Rei!”. A eti que ta com pli ca da, as ce ri mô ni as de cu nho qua se re li -gi o so como o grand le ver e cou cher du Roi, a os ten ta ção das fes tas, a opu -lên cia da in du men tá ria e da de co ra ção, e a arte de cor te jar trans for ma daem mé to do de go ver no e cons ti tu in do a pre o cu pa ção ex clu si va do “cor -te são” – que Ta i ne tão bem des cre veu em sua ima gem do Anti go Re gi -me – tudo isso era des ti na do a trans for mar a ca pi tal pa la ci a na em umsan tuá rio da vida real. Mi che let pro cu ra as ori gens des se cul to mo nár -qui co na ten ta ti va de di vi ni za ção de Ale xan dre. De fato, a idéia apo lí neabem como toda a sim bo lo gia so lar de Ver sa il les pa re cem lem brar aspreten sões fa raô ni cas do gran de ma ce dô nio.

Daí a no ção de que, em Ver sa il les, o de se nho dos pa lá ci os edos jar dins e a dis po si ção do es que ma ur ba nís ti co cons ti tu em umaexpres são da idéia do mi nan te do Abso lu tis mo mo nár qui co. Mas umabso lu tis mo da Per so na, uma “más ca ra” es tu pen da para “re pre sen tar” o po der, mais do que para vi vê-lo au ten ti ca men te. O ab so lu tis mo de via

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es ten der-se à na tu re za pela subs ti tu i ção das for mas na tu ra is por for masar ti fi ci a is: as pe ru cas, o ma ke-up de ho mens e mu lhe res, os exa ge ros daindumen tá ria de vi am re fle tir, tan to quan to o cor te ge o mé tri co das árvorese o dis po si ti vo ra ci o nal dos con jun tos ar qui te tô ni cos, a von ta de tri un -fan te do so be ra no ab so lu to, ele pró prio uma per so ni fi ca ção da Ra zão,un gi do do Se nhor. O “Cul to do Eixo” era ou tra ma ne i ra de sa li en tar aim por tân cia cen tral do Rei. O le i to do mo nar ca, co lo ca do no quar tocen tral logo atrás do Pá tio de Már mo re, ocu pa va o foco do con jun to do dis po si ti vo ur ba nís ti co.

Con co mi tan te men te, Ver sa il les ex pri me uma fi lo so fia, umama te mática e mes mo uma Con cep ção do Mun do – é o tri un fo da Razão!A or dem ur ba nís ti ca da épo ca re fle te a in ven ção da bús so la e o uso dasco or de na das nos mapas-múndi, que as gran des des co ber tas ha vi amexigi do. Re fle te tam bém os no vos pro ces sos ma te má ti cos que tor na vam pos sí ve is as con cep ções me ca ni cis tas. Já ci ta mos as pa la vras de Des car -tes (“as ci da des de vem ex pri mir a von ta de de al guns ho mens do ta dos de Ra zão” ... ). Mas, em seu “Dis cur so”, de pa ra mos com o “Mé to do” decla re za, pre ci são ma te má ti ca, ló gi ca e si me tria que ca rac te ri za o imen sopa lá cio e seus jar dins. A arte de Ver sa il les é uma “arte in te lec tu al”. Estáagra ci a da com um cer to es prit de fi nes se, o es pí ri to fran cês em ple noflores ci men to, que cor ri ge a ló gi ca car te si a na em sua, por ven tu ra,excessiva ri gi dez. Na ver da de, Des car tes, New ton, Le ib niz, o cál culo di fe -ren ci al, a tri go no me tria e o ra ci o na lis mo fi lo só fi co são fi lhos do bar ro co tan to quan to Le Nô tre e Man sart ou quan to Jo hann Se bas ti an Bach e amú si ca con tra pon tís ti ca.

Em Ver sa il les con cen tra ram-se vá ri as li nhas evo lu ti vas que seha vi am ori gi na do na Itá lia, a par tir de mo de los clás si cos. Os di ver soscom po nen tes do ide al bar ro co fo ram ali re a li za dos, de onde co me ça ram a agir so bre a Eu ro pa in te i ra no pe río do da Aufk lä rung, a Ilu mi na ção ouEscla re ci men to, es pa lhan do-se pelo mun do oci den tal. Tza res, Impe ra -do res, Du ques, Prín ci pes, Mar gra ves, Ele i to res e Lor des in gle ses to ma -ram como pa ra dig ma a Cor te do Rei Sol e ri va li za ram no em pe nho deer guer “pa lá ci os pom po sos”, Re si dentzstäd te mo nu men ta is, des ti na dos aim pres si o nar o vul go be a to e a aris to cra cia so fis ti ca da. Ver sa il les é, comra zão, apon ta da como a ma ni fes ta ção do ab so lu tis mo mo nár qui co. Osmo ti vos, po rém, são cir cuns tan ci a is e não ne ces sá ri os.

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O re i na do de Luís XIV re pre sen ta a cul mi nân cia de uma evo -lu ção so ci al di fe ren te da que se pro ces sa ra na Ingla ter ra. As de sor densda Fron da ha vi am com pro me ti do as pers pec ti vas de um go ver no par la -men tar, de cu nho aris to crá ti co, e as es pe ran ças de uma li be ra li za çãopro gres si va das nor mas cons ti tu ci o na is. O Rei pros se gui ra na po lí ti cade sub mis são com que Riche li eu ful mi na ra a no bre za e o “par la men to”de Pa ris. Sua re a ção con tra a anar quia ins pi rou-lhe a su pos ta fra se fa mo -sa L’État, c’est moi! Ver sa il les deve ser com pre en di da no qua dro des saori en ta ção que vi sa va arrolhar as úl ti mas aven tu ras do fe u da lis mo ir re qui e -to, pela con solida ção do pres tígio da mo nar quia bu ro cra ti za da e cen tra li za -do ra e a es tra ti fi cação de fi ni ti va dos “Três Esta dos”. Aris to cra ta des pe i -ta do e ir re con ci li a do, afirma ria Sa int-Simon, em suas me mó ri as, que“a Cor te foi mais um ardil da po lí ti ca de des po tis mo... da po lí ti ca quedi vi dia, hu mi lha va, con fun dia os gran des e ele va va os mi nis tros aci made to dos, em au to ri da de e em po der aci ma dos prín ci pes de san gue, emgran de za mes mo aci ma da gente da mais alta qua li da de, de po is de to -tal men te lhes mu dar a hie rar quia”. O pró prio Rei as sim de fi nia a po lí ti -ca do bon pla i sir: “Os Reis são Se nho res ab so lu tos e go zam, por na tu re -za, da dis po si ção ple na e in te ira de to dos os bens”. Ver sa il les foi a re si dên -cia for ça da dos grandes fe u da tários... em ou tras pa la vras, “uma má qui na para do mes ti car a nobreza”. E o Rei, com uma ha bi li da de con su ma da,dis tri bu ía as distin ções ou mor ti fi ca va os in ve jo sos, re com pen sa va os ser -vi do res ou tor tu ra va os so ber bos, in cen ti van do essa arte de cor te jar so -bre a qual ba se ou seu sis te ma ori gi nal de go ver no. Imi ta do em qua setoda a Eu ro pa oci den tal, o Abso lu tis mo, com seu cor res pon den te sis te -ma eco nô mi co, o Mer can ti lis mo, iri am fir mar-se com tal po der so bre as mo nar qui as ibé ri cas que de les ain da so fre mos, tre zen tos anos de po is. Adis cre pân cia no cres ci men to que se nota ain da hoje, en tre a Amé ri ca La -ti na e a Amé ri ca do Nor te, data des sa épo ca.

So lar pa la ci a no sem ain da gran de sen ti do po lí ti co, Ver sa il les,já des per ta va no en tan to, a aten ção de Col bert que, pre ven do o de sen -vol vimento fa tal, co te ja va ra zões de or dem fi nan ce i ra, pro tes ta va eadver tia con tra os gas tos de cons tru ção que iri am ar ru i nar o te sou ro. Opa lá cio, acen tu a va esse su per-burocrata, “bem mais sa tis fa zia o pra zerdo que a gló ria de sua Ma jes ta de”... Em 1685, 36.000 ope rá ri os e 6.000ca va los tra ba lha vam nas obras e seis mi lhões de li bras eram gas tos, mas

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o mi nis tro fiel, apo i a do pe los seus co le gas de ga bi ne te e es pe ci al men tepelo Chan ce ler Sé gui er, ali nha va to dos os ar gu men tos, en tran do empor me no res de to po gra fia e ar qui te tu ra para dis su a dir o dés po ta pou coes cla recido de seu in ten to, sem nun ca po rém re ve lar os mo ti vos se cretosda opo si ção. Ora lem bra va a es tre i te za do ter re no, ora a pro xi mi da dedos pân ta nos. Nis so era sus ten ta do por Sa int-Simon que, por sim plesma le di cên cia e res sen ti men to opo si ci o nis ta, es cre via: “ja ma is com pre en -di que se pu des se es co lher Ver sa il les, mu i to me nos pre fe rir essa clo a caao que é Sa int Ger ma in...” Os de sas tres fi nan ce i ros e mi li ta res do fi naldo re i na do iri am, de cer to modo, con fir mar a in tu i ção de Col bert.Ernest La vis se ob ser va que, en tre ou tras co i sas, o acrés ci mo das des pesasna Cor te teve como con se qüên cia or ça men tá ria o aban do no do es for çoco lo ni al no Ca na dá. De ve mos, po rém, ter em men te que não foi a trans -fe rên cia do go ver no para Ver sa il les mas o luxo ex ces si vo, o des per dí ciodas fes tas e os ou tros ca pri chos sun tuá ri os do Rei que con du zi ram aodes fe cho la men tá vel.

O gran de pa ra do xo é Rous se au. O pen sa dor re vo lu ci o ná rioque abo mi na va as ca pi ta is, es pe ci al men te Pa ris; que as con si de ra va umabis mo onde os bons cos tu mes, as leis, a co ra gem e a li ber da de do povo se iri am con su mir como num vór ti ce; e as des cre via como o nú cleo deuma pes te con tí nua que so la pa e des trói a na ção,3 foi o mes mo pro fe tado ja co bi nis mo san gui ná rio, a alma sa tâ ni ca, ins pi ra do ra da ralé desans-culottes, a mul ti dão as sas si na cu jos ex ces sos fi nal men te pro vo ca ria are a ção di ta to ri al do im pe ri a lis mo na po leô ni co. A Re vo lu ção veio fi nal -men te ba ter às por tas de Ver sa il les. De po is do 14 de ju lho, ali se re ú nem os Esta dos Ge ra is de 1789. Na Sala do Jeu de Pa u me, o me mo rá vel ju ra -mento re ve la a for ça in co er cí vel do mo vi men to po pu lar. Nes se cre púscu lotrá gi co de 5 a 6 de ou tu bro, o pa lá cio con tem pla o es pe tá cu lo terrí vel dopovo de Pa ris amo ti na do que, aos gri tos de “À Ver sa il les”, mas sa cra ator to e à di re i ta, e leva de vol ta ao Lou vre, para uma de ten ção que iriater mi nar na gui lho ti na, o Rei, a Ra i nha e a fa mí lia real, “le bou lan ger, labou lang ère et le pe tit mi tron”. A data é me nos sim bó li ca do que a de 14 deju lho. Re pre sen ta con tu do, como bem o no tou Jac ques Ba in vil le, o

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3 “Si les vil les sont nu i si bles, les ca pi ta les les sont en co re plus; une ca pi ta le est un gouf fre où la na ti on en tiè re va per dre ses mo e urs, ses lois, son cou ra ge et sa li ber té... De la ca pi ta le s’exhale une pes tecon ti nu el le qui mine et dé tru it en fin la na ti on.”

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ver da de i ro iní cio da re vo lu ção. Do ra van te a Co mu na de Pa ris, usan dode sua arma pre di le ta, o ter ror, toma a li de ran ça dos acon te ci men tosque cul mi nam na pro cla ma ção da Re pú bli ca.

Mas a his tó ria de Ver sa il les ain da não ter mi na ra. Na Ga le riados Espe lhos, o Rei Gu i lher me da Prús sia, ten do ao lado Bis marck, foi,a 18 de ja ne i ro de 1871, co ro a do Impe ra dor da Ale ma nha. Dois me sesde po is de ter mi na da a guer ra fran co-prussiana, o go ver no con ser va dorde Thi ers, ex pul so de Pa ris pela Co mu na re bel de, ins ta lou-se em Ver sa il -les que, mais uma vez, foi ele va da à ca te go ria de ca pi tal. Prin ci pi ou en -tão, sob os olhos sur pre sos dos ale mães que ain da ocu pa vam o nor te daFran ça, um se gun do sí tio de Pa ris: Ver sa il les vin gou-se da Re vo lu ção aoabrigar os re pre sen tan tes das pro vín ci as, mais con ser va do ras, cu jastropas le a is ani qui la ram os úl ti mos es pas mos anár qui cos da his tó ria dopo pu la cho pa ri si en se. Ati ran do nos bou le vards aber tos por Ha uss mann,com esse pro pó si to es pe cí fi co, a ar ti lha ria go ver na men tal der ru bou asbar ri ca das ver me lhas e a vi tó ria só não foi ab so lu ta por que a Assem -bléia Na cional, re u ni da a 30 de ja ne i ro de 1875 na ópe ra de Ga bri el,optou pela fór mu la re pu bli ca na por um úni co voto de ma i o ria. O Se na -do e a Câ ma ra dos De pu ta dos con ti nu a ram re u nin do-se em Ver sa il lesaté 1889, as sim como nas ses sões so le nes para ele i ção do pre si den te daRe pú blica. Ultra pas san do o âm bi to da Fran ça, foi no va men te em Versail les que, con clu í da a Pri me i ra Gu er ra Mun di al, se fir mou o ma lo gra do Tra -ta do de 1919. E, ao fi nal da Se gun da Gu er ra Mun di al, foi tam bém alique se ins ta lou o Qu ar tel-General de Ei se nho wer. A his tó ria nãoaban do na, fa cil men te, sí ti os con sa gra dos.

É che ga do o mo men to de ana li sar mos o pa pel ge o po lí ti co deVer sa il les, da ma i or re le vân cia para apre ci a ção de cer tas ten dên ci asmoder nas da his tó ria fran ce sa. O des ti no des sa ca pi tal-anexa está cer ta -men te li ga do ao fe nô me no de dis so ci a ção, de con se qüên ci as tão gra ves,que carac te ri zou a vida fran ce sa nos úl ti mos tre zen tos anos. Sen doassunto con tro ver ti do, é di fí cil acres cen tar algo de novo aos jul ga mentosde Ta i ne e de La vis se. Vale, po rém, lem brar as ori gens que se pren demao de se jo de Luís XIV de afas tar-se de Pa ris; ou mes mo, an te ri or men te,às ten ta ti vas de ou tros reis de pro cu rar no Lo i re, em Sa int Ger ma in ouem Fon ta i ne ble au, um re fú gio con tra a tur bu lên cia ba der ne i ra de Pa ris.Luís XIV ja ma is es que ceu nem per do ou as in jú ri as e hu mi lha ções que,

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em cri an ça, so fre ra du ran te os dis túr bi os da Fron da. A de sor dem lheafe tou pro fun da men te o ca rá ter. Em seu lon go re i na do, seis ve zesinutilmen te ten tou cer ce ar o cres ci men to de Pa ris cujo po der, en tre tanto,con ti nu ou a es ten der-se so bre toda a Fran ça. Foi sua má von ta de paracom Pa ris que ex pli ca Ver sa il les, como ex pli ca o Abso lu tis mo. Obser vaRené Grous set: “Todo o seu com por ta men to é uma re a ção an te ci pa dacon tra a Re vo lu ção fran ce sa... Ora, é pre ci sa men te as sim que a tor nouine vi tá vel pois pesa so bre o es plên di do iso la men to ver sa lhes co a res -pon sa bi li da de do di vór cio en tre a mo nar quia e a na ção que ter mi na riano ca da fal so”.

O di vór cio en tre a mo nar quia e o Ter ce i ro Esta do foi, de fato, ma te ri al men te de cla ra do pelo aban do no do Lou vre. Enquan to na Ingla -ter ra a evo lu ção cons ti tu ci o nal se guia um cur so par la men ta ris ta des de1689, gra ças à união, con tra os Stu art, da pe que na no bre za, da bur gue sia de Lon dres e dos ele men tos pro tes tan tes mais ra di ca is, em Fran ça osacon te ci men tos do sé cu lo XVII pro vo ca ram um de sen vol vi men to in -ver so. Na Ingla ter ra, os três Esta dos co li ga ram-se para der ru bar o po derdo Abso lu tis mo. Em Fran ça, o co lap so do fe u da lis mo não abriu o ca mi -nho para o li be ra lis mo par la men tar mas re for çou o Abso lu tis mo es ta tal,bu ro crá ti co, cen tra li za dor e fe cha do. O so be ra no, de quem ou tro ra opovo da ve lha Lu té cia fora o ser vo fiel con tra as pre ten sões dos “Gran des”,ol vi dou que a an ti ga fon te de seu do mí nio des can sa va so bre aIle-de-Fran ce. Qu an do Luís XIV pro cla mou Ver sa il les sede de fi ni ti va do go ver no, ocor re ram em Pa ris mo tins e ou tras ma ni fes ta ções de de sa gra -do que po dem ser con si de ra dos os mais an ti gos in dí ci os da Re vo lu ção a de fla grar cem anos mais tar de. A bur gue sia ja ma is per do ou a in gra ti dãodos reis. Por ou tro lado, o luxo de Ver sa il les cor rom peu a no bre za que,nas ho ras de ci si vas de 1789, não sou be re a gir e não pôde de sem pe nharo pa pel al ta men te cons tru ti vo ao qual tan to deve a Ingla ter ra sua gran -de za e es ta bi li da de po lí ti ca. A in com pe tên cia de Luís XV e Luís XVI,com a de pra va ção da no bre za pa ra sí ti ca, acen tu a ram a ini qüi da de do re gi -me, agra va da pe las re i vin di ca ções e a ar ro gân cia das clas ses pri vi le gi a das. O ca ta clis mo re vo lu ci o ná rio não foi evi ta do por que Ver sa il les apa re ceucomo o sím bo lo de ali an ças ne fas tas aos in te res ses da na ção. Foi a Cor te, e não a ins ti tu i ção em si da mo nar quia, que des per tou a oje ri za da “opi niãopú bli ca” pa ri si en se.

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Entre tan to, tais cons ta ta ções não exi mem Pa ris de cul pa. Osaconteci men tos do sé cu lo XIX e mes mo da épo ca con tem po râ nea pro vam que a idéia de uma ca pi tal ad mi nis tra ti va em Ver sa il les era, no fundo,favorá vel aos in te res ses do país. Pa ris cer ta men te de sem pe nhou umpapel ex ces si vo, tal vez fu nes to para os des ti nos da Fran ça, e, se é ver dadeque a Cor te se ar ti fi ci a li zou, per den do con ta to com a re a li da de na ci o nal, não me nos cer to é que a ple be da ca pi tal, fa mo sa pela ins ta bi li da de deseu hu mor, ar cou com a res pon sa bi li da de de inú me ros atos ir re fle ti dose ab sur dos. Nos dois sé cu los pas sa dos, a Fran ça mu dou de re gi me quinze ve zes, ex pe ri men tan do cri ses gra ves em ju lho de 1830, fe ve re i ro e ju nho de 1848, e em mar ço de 1871. Os mo tins, o gri to con ta gi o so “às bar ri -ca das!”, nas es tre i tas ruas da ca pi tal, de ci di ram da sor te dos go ver nosem dez oca siões di fe ren tes, e pro vo ca ram es sas vi o len tas gui na das, orapara a di re i ta, ora para a es quer da, tão no ci vas à per ma nên cia das ins ti -tuições e ao fun ci o na men to su a ve dos pro ces sos so ci a is evo lu ti vos.Versa il les afasta ra-se de Pa ris, mas Pa ris fre qüen te men te ig no rou osentimen to da Fran ça. O te mor ca u sa do aos go ver nan tes pelo fu ror pa ri si -en se era tal que de ter mi nou a aber tu ra de ave ni das “a tiro de ca nhão...”Ha ussmann, o cé le bre pre fe i to de Na po leão III, con fes sa va, com a maiorcan du ra, que os “bou le vards” de vi am “fa ci li tar o aces so nos dias fes ti vos e sim pli fi car a de fe sa nos dias de dis túr bio”, e “per mi tir a cir cu la ção nãoape nas do ar e da luz mas tam bém das tro pas, de modo que, por com bi -na ção en ge nho sa, a sor te do povo se ria me lho ra da, tor nan do-o me nosin cli na do à re vol ta”. Assim, ao “ur ba nis mo ab so lu tis ta” de Versa il les,subs ti tu iu-se a fór mu la do “ur ba nis mo da ar ti lha ria” de Pa ris, últimameta mor fo se e su pre ma iro nia do pla ne ja men to bar ro co! A Co mu na é apro va ca bal de que uma mul ti dão anar qui zan te e san gui ná ria, sen sí vel àpa la vra fá cil dos de ma go gos, pode cons ti tu ir um pe ri go tão gra ve para o des ti no do Esta do quan to uma Cor te pa ra sí ti ca e de vas sa. A der ro ta dos“Com mu nards”, fa ci li ta da pe los bou le vards de Ha uss mann, as si na la, aliás, aúltima oca sião em que Pa ris ten tou im por a sua von ta de pela força, nãode i xan do o fato de ser sim bó li co de que em Ver sa il les se cris ta li zou a re -a ção vi to ri o sa das clas ses mé di as e ru ra is.

Mu i tos ob ser va do res im par ci a is da Fran ça con tem po râ neaes tão de acor do em afir mar que a mons tru o sa cen tra li za ção bu ro crá ti cada ca pi tal cons ti tui ví cio tão gra ve quan to sua abu lia e des go ver na bi li da de e

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que am bas as con di ções re sul tam da ma cro ce fa lia pa ri si en se. Há exa ta -men te 150 anos Ale xis de Toc que vil le já es cre ve ra: “A ma i o ria dos ob -ser va do res qua li fi ca dos con cor rem na opi nião de que uma das prin ci pa isra zões do co lap so de to dos os go ver nos que teve a Fran ca nes tes úl ti mosqua ren ta anos é a cen tra li za ção ad mi nis tra ti va e o ab so lu to pre do mí niode Pa ris. E não te rei di fi cul da de em pro var que a que da ca tas tró fi ca damo nar quia foi, em gran de par te, de vi da às mes mas ca u sas”. Antes dis soem 1740, Mon tes qui eu di zia a um ami go: “Na Fran ça só Pa ris exis te – eal gu mas pro vín ci as ex te ri o res que Pa ris ain da não en con trou tem posu fi ci en te para abo ca nhar”. Pen sa men to que Mi ra be au com ple ta ria: “Asca pi ta is são in dis pen sá ve is mas, quan do a ca be ça é de ma si a da men tegran de, o cor po tor na-se apo plé ti co com re sul ta dos fa ta is”. Assim emvá ri as épo cas os ob ser va do res con cor da ram em apon tar os in con ve ni en tesdo cres ci men to des me di do de Pa ris. E o que di zer de hoje! A pro vín ciaé eco nô mi ca e in te lec tu al men te um de ser to: toda a ri que za, toda a vida,o es pí ri to da Fran ça, como te mi am Mon tes qui eu, Mi ra be au e Toc que vil le, con cen tram-se e gas tam-se na ca pi tal, me tró po le de vo ra do ra, ca be çamons tru o sa de um or ga nis mo atro fi a do. Em ple no sé cu lo XX, nes taida de de gran des po tên ci as de âm bi to con ti nen tal, a Fran ça re pre sen taum ana cro nis mo e, com seus qui nhen tos mil qui lô me tros qua dra dos, vivequal mo des to hin ter land de uma gi gan tes ca ci da de-es ta do.

Os en si na men tos que po de mos au fe rir des sas con si de ra çõespa re cem, em úl ti ma aná li se, fa vo rá ve is à obra de Luis XIV cujo erro,qui çá, te nha sido o de não re a li zar o ato de fi ni ti vo e com ple to, im plí ci toem sua po lí ti ca anti-pa ri si en se, de cons tru ir o seu pa lá cio mais afas ta doe ao sul de Pa ris: nas mar gens do Lo i re, por exem plo, como ima gi na ram os Va lo is quan do ain da era tem po! Uma ca pi tal em Tours, em Blo is ouem Orléans, com o aban do no ló gi co da am bi ção re na na, te ria pre ser va -do a Fran ca de du zen tos anos de guer ras es té re is e re vo lu ções pa ri si en ses...

De qual quer ma ne i ra, a “re si dên cia ide al” de Ver sa il les ins pi roupo de ro sa men te a ten dên cia para se pa rar das gran des aglo me ra ções ur -ba nas o do mi cí lio dos go ver nan tes e a sede da ad mi nis tra ção na ci o nal.Na Rús sia, o Tzar Pe dro o Gran de imi ta ria Luís XIV ao fu gir da ca pi taltra di ci o nal, Mos cou, para fun dar uma nova me tró po le, mo der na e efi ci -en te. E não é ape nas na ar qui te tu ra e no ur ba nis mo, mas na pró priano ção de uma re si dên cia go ver na men tal, de es ti lo clás si co e de fun ção

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es pe cí fi ca, pos ta em con fron to com a na tu re za agres te, que a in ten çãode evi tar a pro xi mi da de das gran des aglo me ra ções se ma te ri a li zou nosEsta dos Uni dos da Amé ri ca. Qu an do o Con gres so e o Pre si den te Was hing -ton exi gi ram uma so lu ção se me lhan te à de Ver sa il les, a fim de en con trar numa at mos fe ra de dig ni da de, in de pen dên cia e bem-es tar, o am bi en tepro pí cio ao bom go ver no, re a li za ram en tre as ver des co li nas da Vir gí nia, lon ge da azá fa ma, tur bu lên cia e aba los emo ti vos de Nova Ior que ou dePhi la delp hia, e fu gin do à pres são de seus in te res ses ma te ri a lis tas, aqui locom que so nha ra o Rei Sol. Cu ri o sa men te, a so lu ção de mo crá ti ca dopro ble ma da ca pi tal se guiu ali um rumo pa ra le lo ao in ten to ab so lu tis ta.O exem plo foi imi ta do no Ca na dá, na Aus trá lia, na Áfri ca do Sul, naTur quia ke ma lis ta. O cas te lo su bur ba no, a “ca pi tal-re si dên cia” de LuísXIV foi a se men te de onde sur giu, no Novo Mun do, em pri me i ro lu garnos Esta dos Uni dos, a con cep ção do “Dis tri to Fe de ral”, da ci da de espe -ci a li za da para agir como sede do go ver no numa de mo cra cia fe de ra ti va.Como ca pi tal, ela deve es tar lo ca li za da em po si ção ge o po lí ti ca ide al, lon -ge das de sor dens e dos in te res ses es pe cífi cos das gran des me tró po lescos mo po li tas.

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Luís XIV ao tem po em que cons tru iu Ver sa il les

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André Le Nô tre – Qu a dro de O Ma rat ta no Mu seu de Ver sa il les

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Mapa IVVer sa il les – Pla no ge ral do par que e da ci da de em tor no do pa lá cio

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IXSão Pe ters bur go

e a Obra de Pe dro, o Gran de

A ci da de que, em prin cí pi os do sé cu lo XVIII, o TzarPe dro, o Gran de, cons tru iu às mar gens do rio Neva, para lhe ser vir deca pi tal não lon ge do Mar Bál ti co, cons ti tui não so men te a mais im por -tan te cri a ção ur ba na da épo ca mas um exem plo, rico de sig ni fi ca do his -tó ri co, de como uma aglo me ra ção pode ex pri mir, em seu es ti lo e em sua po si ção ge o grá fi ca, os as pec tos mul ti for mes de uma pro fun da re vo lu ção cul tu ral. Bas ta co nhe cer as cir cuns tân ci as que pre si di ram à fun da ção econs tru ção de São Pe ters bur go para com pre en der o re i na do de Pe dro oGran de como um dos mar cos cul mi nan tes da his tó ria rus sa. A ci da de éo epí to me de sua obra. A “aber tu ra da ja ne la so bre o Bál ti co” ex pri me,gra fi ca men te, em que con sis tiu a oci den ta li za cão do país e te mos nela aenun ci a ção de um fe nô me no his tó ri co que aba la ria o povo rus so emsuas en tra nhas e lhe de ter mi na ria a vida nos du zen tos anos se guin tes.Entre 1703 e 1917, o sen ti do eu ro peu da Rús sia é São Pe ters bur go. Domes mo modo, a vol ta da ca pi tal para Mos cou, em 1918, de fi ne por si só o ca rá ter an ti-ocidental da re vo lu ção bol che vis ta. Fi nal men te, o re tor nodo nome ori gi nal da ci da de que, du ran te qua se 70 anos, re ce be ra o

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nome de Le nin grad, sim bo li za a vol ta da Rús sia em di re ção ao oci den teli be ral que o to ta li ta ris mo re pu di a ra.

Du ran te a alta Ida de Mé dia, a Rús sia de Kiev, a Rús sia das Re -pú bli cas mer can tes de Nov go rod, Suz dal e Vla di mir, pro me tia um fu tu -ro bri lhan te pois, con ver ti da ao cris ti a nis mo or to do xo em fins do sé cu lo dé ci mo, co mu ni ca-se com o mun do ci vi li za do atra vés do Mar Ne gro epro cu ra abri gar-se sob a es fe ra de in fluên cia bi zan ti na. Entre tan to, a les tedo Mar Ne gro, na pas sa gem en tre os mon tes Ura is e a ba cia ára lo-cas pi -a na, tri bos nô ma des de búl ga ros, áva res, pet che né gues, po lo vit zi a nos,kha za res, khipt cha ques – toda a re ta guar da da es te pe – mo vi men tam-see des pe nham-se em in cur sões de vas ta do ras, inun dan do a pla ní cie rus sa,bar ba ri zan do e tar ta ri zan do as po pu la ções es la vas. Eis se não quan do, no sé cu lo XIII, o fu ra cão mon gol! A cris tan da de ater ro ri za da tre me, comose con de na da ante esse novo Fla ge lo de Deus. É a Rús sia, po rém, quepaga o pre ço mais pe sa do. Os Grão-Prín ci pes fo ram var ri dos pela tor -men ta. Frus tra-se a bela es pe ran ça da ci vi li za ção uk ra ni a na. Batú fun dou a Orda de Ouro e, des de sua ca pi tal, Sa rai, es pé cie de acam pa men to nô -ma de es ta be le ci do não lon ge do sí tio atu al de Vol go gra do, re i nou apro -xi ma da men te so bre a mes ma ex ten são ter ri to ri al que ca be ria, mais tar de, a Pe dro, o Gran de. Du ran te tre zen tos anos os mon góis go ver na ram, etan to e tão bem mas sa cra ram os ho mens e vi o la ram as mu lhe res que éhoje a Rús sia qua se tão tár ta ra quan to es la va. A re gião vol tou a ummodo de vida pri mi ti vo do qual, com tan to es for ço, se ha via li ber ta do no bri lhan te pe río do de Kiev. Pro du ziu-se uma rup tu ra, tal vez ir re me diá vel.

Sob o do mí nio da Orda, o Grão-Prín ci pe de Mos cou cres ceuem po der e ri que za, gra ças às fun ções de ali a do, es pião e co le tor de tri -bu to que exer cia sem pu dor em be ne fí cio dos tár ta ros. Em 1480, IvanIII, o Gran de, sen tin do-se for te, re cu sou pela pri me i ra vez “be i jar oes tri bo” do Khan. Seu neto, Ivan o Ter rí vel, re du ziu à vas sa la gem osKa na tos mon góis de ca den tes e, após ab sor ver to dos os prin ci pa dos ri -va is, “ajun tan do as ter ras rus sas”, pro cla mou-se “Cé sar” ou “Tzar de to -das as Rús si as”, como her de i ro do Ba si le us de Cons tan ti no pla – ci da deque, em 1453, ca í ra em mãos dos tur cos. Cria-se as sim a au to cra cia mos -co vi ta, de ins pi ra ção tár ta ro-bi zan ti na. É um des po tis mo som brio e va -ga men te mes siâ ni co, a “Ter ce i ra Roma” das es te pes rus sas, de fen so ra da or to do xia e ini mi ga da la ti ni da de. Mais dois sé cu los tran si tam: e en quan to

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o oci den te, re ju ve nes ci do pela epo péia das gran des na ve ga ções, pela re -cu pe ra ção mo ral da Re for ma e pelo es plen dor do Re nas ci men to, pre pa -ra-se para sua alta mis são ci vi li za do ra, a Rús sia mos co vi ta con ti nuamer gu lha da na es cu ri dão, com ple ta men te à mar gem dos acon te ci men tosmo men to sos da Eu ro pa con tem po râ nea, sal vo que, em cer to mo men to, por pou co se tor na uma pro vín cia po la ca. O no ma dis mo tár ta ro per sis te como úni ca di nâ mi ca da po lí ti ca tza ri sta. É a épo ca em que se ini cia acon quis ta da Si bé ria. Mos cou nem é uma ci da de: é um acam pa men tofor ti fi ca do – o Krem lin, cer ca do de um imen so ba zar. É o sé cu lo XIIIasiá ti co; é asiá ti co no boné de pele, no kaf tan, na bota, nas cú pu las bol bo sasde suas igre jas e no des po tis mo cego que se es con de de trás das mu ra lhasdes sa for ta le za.

Em me a dos do sé cu lo XVII os con ta tos com a Eu ro pa mul ti -pli cam-se; mas a cul tu ra rus sa, em geral, man tém-se pro fun da men teorto do xa e re tró gra da. Do oci den te, ca tó li co ou pro tes tan te, hu ma nis taou ab so lu tis ta, ema na a he re sia de tes tá vel, o fer men to pe ri go so ca paz de in fec tar a “San ta Rús sia”. Ra ros es tran ge i ros, mer ca do res, di plo ma tas ou tu ris tas são au to ri za dos a en trar no país mas, to le ra dos com des con fiançacomo se fos sem por ta do res de uma mo lés tia con ta gi o sa, só lhes épermi ti do alo jar-se no “su búr bio ale mão” de Mos cou. Uma “Cor ti na de Fer ro” já se pa ra a Rús sia do oci den te e, na Eu ro pa, a mo nar quia mos co -vi ta é tida como um des po tis mo ori en tal, mis te ri o so e ina ces sí vel. Quan do Pe dro, pri me i ro do nome e ter ce i ro da di nas tia Ro ma noff, su biu aotrono com a ida de de 22 anos, em 1694, a “San ta Rús sia” era rica no terri -tó rio que se es ten dia, sem li mi tes, além dos mon tes Ura is; rica tam bémem po pu la ção fe cun da e em ener gi as la ten tes. Mas, do pon to de vis tama terial, so ci al e cul tu ral, pa ten te a va fla gran te atra so em re la ção à Europa de en tão. O gê nio do jo vem Tzar ia gal va ni zar es sas ener gi as e efe tu arre for mas tão pro fun das na es tru tu ra do país que, mais de du zen tos anos de po is, a re vo lu ção bol che vis ta nada mais ten ta ria fa zer do que, de cer to modo, com ple tar e, de ou tro, des man char sua obra. Com Gor ba chev,Yelt sin e Pu tin o mo vi men to de re ver são len ta men te se ex pli ci ta.

O Tzar prin ci pi ou sua car re i ra me teó ri ca li qui dan do em san -gue duas re vol tas da Gu ar da do Pa lá cio, os Streltsy – es pé cie de pre to ri a nos que sus ten ta vam as pre ten sões de sua irmã So fia. Em se gui da, obe di -en te à ve lha tra di ção mos co vi ta de opo si ção à Su bli me Por ta e ré van che

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bi zan ti na, en fren tou os tur cos e os tár ta ros da Cri méia. De po is, en tu si -as ma do pe las idéi as no vas e ins pi ra do por ami gos e au xi li a res es tran -ge i ros que co nhe ce ra no Ba ir ro Ale mão (Le fort, Gor don e outros), em1697 re sol veu fa zer uma vi a gem à Eu ro pa onde a ci vi li za ção oci den tal lheca u sou fun da im pres são. Sua vol ta a Mos cou as si na la o iní cio das mu -dan ças es pe ta cu la res que ia es ti mu lar em to dos os as pec tos da vida rus -sa. Co in ci din do com a re for ma in ter na, Pe dro em pe nha ria o seu país em uma luta ex ter na, lon ga e ter rí vel, des ti na da a ex pul sar os su e cos do li to -ral do Mar Bál ti co. Ence ta da em 1700, a Gran de Gu er ra do Nor te du ra -ria 21 anos e ter mi na ria com a subs ti tu i ção da he ge mo nia da Su é cia pela da Rús sia na Eu ro pa se ten tri o nal. Do ra van te po tên cia de pri me i ra or -dem, o Impé rio dos Tza res vol ta ria a par ti ci par, como na bri lhan te e sa -u do sa era de Kiev, qual mem bro res pe i ta do da co mu ni da de eu ro péia. Aguer ra prin ci pi ou de sas tro sa men te pois, co man da dos por Car los XII,um gê nio mi li tar de lan ces he rói cos e ma no bras te me rá ri as, os su e cosin fli gi ram a seus ini mi gos uma cru en ta der ro ta em fren te à for ta le za deNar va, so bre o Bál ti co. Sem se de i xar que bran tar, com uma ener gia ete na ci da de que fo ram suas vir tu des mais sa li en tes, o Tzar re or ga ni zou os re cur sos ines go tá ve is do im pé rio, de di can do-se à ta re fa de cri ar uma es -qua dra e tre i nar no vos exér ci tos se gun do o mo de lo eu ro peu. E, com osanos, o seu pri me i ro ob je ti vo foi al can ça do: a con quis ta de uma fa i xa li -to râ nea no Bál ti co, “essa gran de ja ne la aber ta ao Nor te, atra vés da qual a Rús siaolha para a Eu ro pa”.

Embo ra sem pre te nha sido, e é, ain da hoje, uma po tên cia es -sen ci al men te con ti nen tal – se nho ra, na ex pres são de Sir Hal ford Mac -Kin der, do He ar tland ou área pivô do con ti nen te eu ra siá ti co; e o fun da -men to de sua for ça sem pre haja re si di do na mas sa de uma po pu la çãonu me ro sa, semi-nô ma de, vi ven do na pla nu ra in fi ni ta da es te pe e da flo -res ta se ten tri o nal, ja ma is ces sou a Rús sia de sen tir uma es tra nha e con -tra di tó ria ân sia de atin gir aos ma res do sul, quen tes e li vres. É, na ver da desig ni fi ca ti vo que uma par te con si de rá vel do de sen vol vi men to his tó ri codo país haja sido de ter mi na da por essa as pi ra ção a uma sa í da ma rí ti ma,con si de ra da como um dos prin ci pa is fins “ge o po lí ti cos” de sua di plo -ma cia tra di ci o nal. Ao de pa rar com obs tá cu los na tu ra is ou re sis tên ci ashu ma nas, a Rús sia re pe ti da men te aco me teu seus vi zi nhos na orla fron -te i ri ça do Pa cí fi co se ten tri o nal, do Cás pio, do Mar Ne gro e do Bál ti co.

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Ora, esse fas cí nio pelo mar pos sui um sen ti do ge o po lí ti co pro fun do que pode ser pos to em con fron to com os as pec tos mais ge ra is do con fli tomi le nar en tre a área-pivô do co ra ção con ti nen tal eu ra siá ti co e a fa i xa decul tu ra li to râ nea, ocu pa da pela Chi na, a Índia, o Ori en te-Mé dio e aEu ro pa. Em seus tra ços ge né ri cos, a his tó ria do Ve lho Mun do tra duz-se por uma sé rie de cho ques e con tra-cho ques en tre os Esta dos li to râ ne os,for ma dos de se den tá ri os ci vi li za dos, e os Impé ri os con ti nen ta is mais oume nos es tá ve is que cris ta li zam as as pi ra ções do no ma dis mo pas to rilrus so-si be ri a no. Nes se sen ti do deve ser en ten di do o fe nô me no da so -bre vi vên cia da hu ma ni da de scí ti ca, hú ni ca, tur co ma na, mon gol e man -chú, de or ga ni za ção fun da men tal men te mi li tar, mas vi ven do em con di -ções de re la ti vo pri mi ti vis mo cul tu ral, em bo ra fre qüen te men te su pe ri orna téc ni ca dos ar ma men tos e es tra té gia, e ce den do em ci clos agres si vospe rió di cos a im pul sos ins tin ti vos, de uma po tên cia ver da de i ra men teex plo si va, que se ma ni fes tam sob a for ma de in va sões ca tas tró fi cas emdi re ção ao su des te ou ao su do es te, como que à pro cu ra do sol e domar...

Ora, se num flo res ci men to ad mi rá vel po rém pre ma tu ro, seinclu iu es pon tanea men te a Rússia ki e vi a na na es fe ra de cul tu ra po la rizada em Cons tan ti no pla, o mes mo não ocor reu com a Rús sia mos co vi ta. OMos co vis mo ja ma is per deu seu ca rá ter mis to, se mi-tártaro. Ha vi am sidode ma si a da men te fre qüen tes as in va sões das hor das tár ta ras e de ma si a -damente lon go o do mí nio de Sa rai! O Esta do que sur giu com Ivan oTerrí vel, der ru bou a so be ra nia da Orda de Ouro e ini ci ou a con quis ta da Si bé ria, foi her de i ro dos mon góis tan to quan to de Bi zân cio. O Tzar eraum con ti nu a dor do Gran de-Khan tan to quan to dos Ba si lei or to doxos.Nes sas cir cuns tân ci as, o de se jo de Pe dro o Gran de de abrir uma ja ne laso bre o mar se re ves te de um ca rá ter fran ca men te am bi va len te: tra ta-seda ambi ção de con quis ta dos es pa ços e ím pe to de agres são con tra ossedentá ri os do li to ral, con for me ao ata vis mo tár ta ro; e tam bém da atra -ção in ven cí vel que, so bre o es pí ri to cu ri o so e es cla re ci do do Tzar, exer ciamas lu zes do oci den te. Ao re tra i men to con ti nen tal, Pe dro opõe o cos mo -po li ta nis mo ma rí ti mo, pro cu ran do cor ri gir a co bi ça ru di men tar com apers pec ti va de uma sub mis são vo lun tá ria aos re fi na men tos da ci vi li zação.Veremos que essa am bi va lên cia mu i to ca rac te rís ti ca, re ve la da a cada passo na vida do Tzar – e, seja dito!, em sua pró pria per so na li da de que era um

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mis to de ge ni a li da de lu mi no sa e som bria bru ta li da de – se tra du zi ria, nope río do pos te ri or ao re i na do, em uma ci são cres cen te e ir re me diá vel entre o gê ne ro de vida de São Pe ters bur go e os sen ti men tos pro fun dos dopovo rus so.

Mas sem nos adi an tar, di zía mos que o mar, cujo pa pel se -cundário se evi den cia na exis tên cia co le ti va do povo rus so, pas sou a cons -tituir um fa tor de ter mi nan te na po lí ti ca ex ter na do Impé rio, a par tir daépoca de Pe dro, o Gran de. De modo que a na tu re za pa ra do xal do ata vismo tár ta ro-bizantino se ex pri me per fe i ta men te na con vic ção do Tzar de que a con quis ta da sa í da so bre o Bál ti co e a for ma ção de uma ma ri nhapoderosa re pre sen ta vam a ta re fa mais im por tan te do re i na do. Uma lendanão com pro va da as se gu ra que Pe dro, na in fân cia, sen ti ra uma aver sãodo en tia pela água. Se ver da de i ra, tra ta-se de uma in te res san te ilus tra çãopsi co ló gi ca re a ti va da tese aci ma, pois o mar e a arte da na ve ga ção setor na ram a pa i xão ab sor ven te de sua vida adul ta.

A pri me i ra vi a gem que re a li zou à Eu ro pa con fir mou o jo vemmo nar ca em seu amor, pelo mar e, in ci den tal men te, em sua ad mi ra çãopela Ho lan da: “Estou en tre os alu nos e pro cu ro aque les que me po demen si nar!”. Con ta-nos o Con de Fran ces co Alga rot ti, cro nis ta con tem po -râ neo, que “os pri me i ros es tu dos do Tzar se re a li za ram na Ho lan da e foi em Sa ar dam que esse novo Pro me teu rou bou o fogo com o qual ia animar a sua na ção”. De to dos os en si na men tos, aque le que mais ab sor veu foio da arte da na ve ga ção e da cons tru ção de na vi os. Em Sa ar dam e emDept ford e Wo ol wich, na Ingla ter ra, Pe dro tra ba lhou fu ri o sa men te,como sim ples ope rá rio na val, após o que foi vi si tar usi nas, es ta le i ros,museus de arte, uni ver si da des e pes so as ilus tres, re co lhen do in for ma ções econtra tan do en ge nhe i ros, pro fes so res, ar qui te tos, mi li ta res, sá bios e indus -tri a is, que en vi a va à Rús sia para a ta re fa for mi dá vel que se pro pu nharea li zar.

Assim pois, a as pi ra ção a uma sa í da ao mar, a cons tru ção daes qua dra, o do mí nio do Bál ti co com o es car men to da he ge mo nia su e ca,a oci den ta li za cão da Rús sia e a fun da ção de São Pe ters bur go, cons ti tuemas pec tos ou epi só di os com ple men ta res de uma obra úni ca e com ple xa.Pe dro me re ce ria o tí tu lo de “Pai da Pá tria”. Ele mor re ria de i xan do àRússia um co mér cio flo res cen te com a Eu ro pa e um li to ral so bre o Bálticode Riga, na Le tô nia, a Vi borg, na Fin lân dia. Fa lha ria, en tre tan to, em seu

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intu i to de er guer a Rús sia à ca te go ria de gran de po tên cia na val. Seminter câm bio sig ni fi ca ti vo com o além-mar, sem co lô ni as para de fen dernem ma ri nha mer can te para pro te ger, e com suas for ças na va is dis tribuí das em três ma res in co mu ni cá ve is, o Impé rio não era, nem po de ria ser jamaisuma po tên cia na val. Como por to de mar e base na val, São Pe ters bur gode sem pe nha ria sem pre um pa pel se cun dá rio – sen do, aliás, um mauporto. Mas isso em nada ate nu a ria a ação de ci si va que ia exer cer narefor ma so ci al e cul tu ral da Rús sia!

Vale sa li en tar que a fun da ção de São Pe ters bur go cons ti tu iuum sim ples epi só dio da guer ra con tra Car los XII. Os acon te ci men tospro ces sa ram-se do se guin te modo: após re fa zer-se do in su ces so ver go -nho so de Nar va, Pe dro in ves tiu as ci da des da Li vô nia e, em se gui da,trans fe riu as ope ra ções para a Ingria (Inger man land) e a em bo ca du ra do Neva, apo i an do-se numa base do La do ga. Em ou tu bro de 1702, a for ta -leza su e ca de Nõ te borg, onde o rio Neva aban do na a La do ga, foi tomadade as sal to pelo Ge ne ral She re me ti ef e ba ti za da com o nome de Schlüs -sel burg, para in di car que se tra ta va da “cha ve” do gol fo da Fin lân dia.No ano se guin te, des cen do o rio, as for ças na va is rus sas ob ti ve ram umlige i ro êxi to con tra um es qua drão su e co, em fren te da for ta le za de Ni yens -chantz, que de fen dia o es tuá rio. O Tzar dera, em Nar va, si na is de co vardiadi an te da fu zi la ria e pro cu ra va ago ra apa gar sua fama de pol trão. Nes teencon tro, ser vin do sim ples men te como ofi ci al su bal ter no, Pedro Mikhai lov partici pou da cap tu ra de duas fra ga tas ini mi gas cuja tri pu la ção foimassa cra da. Na ve gan do nos bar cos vi to ri o sos e atin gin do o li to ral, osobe ra no or de nou a ocu pa ção da ilha de Ko tlin, pro te to ra do es tuá rio,dando or dens para o iní cio da cons tru ção da que la que se tor na ria afamosa for ta le za de Krons tadt. Sua ale gria era exu be ran te: ha via “aber to a pe que na ja ne la”, sa í ra em al to-mar com seus pró pri os na vi os e en fren -ta ra sem te mor o fogo dos ca nhões ini mi gos. Nes sa at mos fe ra de exal tação,ali men ta da por mu i tos co pos de vod ka, im pres si o nou-se com a idéia doAlmi ran te Go lo vin, co man dan te da es qua dra, que te ria su ge ri do a edi fi -ca ção de um de pó si to de ma te ri al e base de ope ra ção na foz do Neva.De ci diu en tão, de sú bi to, ali cons tru ir a sua Re si denz stadt, uma me tró po le que re ce be ria seu nome.

Esco lheu para isso uma das pe que nas ilhas do es tuá rio, Eni sari, e, na fes ta da Trin da de, a 16 de maio de 1703, lan çou a pe dra fun da mental

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da fu tu ra ca pi tal. Com uma ba i o ne ta fen deu a ter ra pan ta no sa, de se -nhan do uma cruz e pro nun ci an do as pa la vras con sa gra das: “Aqui seráuma ci da de!”. Em se gui da, co lo cou num co fre mo e das de ouro e asrelíqui as de San to André Após to lo com cuja or dem ho no rí fi ca se ha viacon de co ra do, a si e ao ami go Mens hi kof. O co fre foi co lo ca do sob apedra e os sa cer do tes ben ze ram o lo cal, en quan to os pre sen tes me ditavam: “És Pe dro e so bre essa pe dra... ”. Indu zin do os pre sen tes a imi tá-lo, oTzar, com um ma cha do, prin ci pi ou a cor tar o mato cir cun vi zi nho. Umaáguia pou sou, voou e foi aba ti da por um sol da do, in ci den te con si de ra do de bom agou ro. A fes ta ter mi nou com o tro ar dos ca nhões e uma vas tabe be de i ra.

“Aca ba mos de le van tar o pano que, en co brin do a cu ri o si da dede nos so país, o pri va va de co mu ni ca ção com o res to do mun do”, escreviao Tzar ao an te ver o ver da de i ro pa pel da nova ca pi tal que, afe tu o sa mente,já cha ma va de “meu Pa ra í so”. O “pa ra í so”, en tre tan to, só exis tia na ima -ginação do Tzar: não era sí tio dos mais re co men dá ve is, só se jus ti fi candocomo ele men to de um pro gra ma mi li tar e po lí ti co im pro vi sa do – umasé rie de ilhas na foz do Neva, che i as de pân ta nos e ba i xi os, ha bi ta daspor ra ros e hu mil des pes ca do res fin lan de ses, “fi lhos de uma na tu re zamadras ta” na ex pres são do po e ta Push kin, águas pou co pro fun das, in su -fi ci en tes para na vi os de gran de ca la do, ex tre ma men te pe ri go sas para ana ve ga ção o que obri ga ria, mais tar de, à cons tru ção de ou tro por to mais ao sul, per to de Re val, na Estô nia; a ame a ça cons tan te de inun da çõesde sas tro sas que, du ran te o re i na do de Pe dro e, pos te ri or men te, em 1824 e 1924, por pou co des tru i ri am a ci da de; um cli ma úmi do, de sa gra dá vel e in sa lu bre, su je i to a mi as mas e ne bli nas; pri ma ve ra e ou to no qua se ine -xis ten tes, ve rão cur to e quen te, in ver no ex tre ma men te lon go, tor nan doo por to, nes sa la ti tu de de 60° Nor te, ina ces sí vel du ran te mu i tos me sesdo ano. Ape nas uma van ta gem, van ta gem pri mor di al, van ta gem ab so lu ta ca paz de jus ti fi car to dos os sa cri fí ci os: a po si ção ma rí ti ma e a pro xi mi -da de da Eu ro pa!

Pe dro re tor nou a Mos cou de onde des pa chou ar qui te tos, enge -nhe i ros e ope rá ri os com os pri me i ros de se nhos da ci da de. As for ti fi cações tive ram pri o ri da de e, du ran te o in ver no, o tra ba lho pros se guiu sem des canso. É pos sí vel que ain da não co gi tas se de trans fe rir para lá a ca pi tal da Rússia, pro je to que só ama du re ceu após a ba ta lha de ci si va de Pol ta va (1709). Na

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no i te da vi tó ria te ria es cri to: “Ago ra fi nal men te po de mos lan çar as ba ses de Sankt Pi e ter burkh”. Nos pri me i ros anos, as obras li mi ta ram-se a es -tru tu ras de fins uti li tá ri os re la ci o na das com o por to e a base na val. Doisedi fí ci os fo ram cons tru í dos, des ti na dos pela his tó ria a um pa pel re le van -te: a for ta le za de Pe dro-Paulo, fu tu ra Bas ti lha da au to cra cia tza ris ta; e oAlmi ran ta do, er gui do so bre ter ra fir me, na mar gem sul. O lança men todo pri me i ro na vio de guer ra cons tru í do em seus es ta le i ros re pre sen tou,aos olhos do Tzar, acon te ci men to qua se tão mo men to so.

Para si pró prio, Pe dro con ten tou-se com uma re si dên cia mo des ta, a “Casa Pe que na” de ma de i ra, sem ele gân cia, onde veio re si dir com afa mí lia em 1710. Era ho mem de há bi tos sim ples, que des pre za va o luxoe o for ma lis mo ex ce to para glo ri fi car o Esta do. Dois anos de po is pro cla -mou São Pe ters bur go ca pi tal da Rús sia, para lá trans fe rin do os ser vi çosad mi nis tra ti vos es sen ci a is. Car los XII sor ri ra – “De i xai o Tzar can sar-sede fun dar ci da des no vas que te re mos a hon ra de con quis tar mais tar de”!– e pro me te ra “sa cri fi car o úl ti mo de seus sú di tos, con tan to que São Pe -ters bur go não per ma ne ces se nas mãos do Tzar”. Mas de po is de Pol ta vasuas ame a ças eram vãs. Pe dro con quis ta ra Riga e Vi borg, “duas al mo fa -das so bre as qua is São Pe ters bur go po de rá re pou sar com toda a tran qüi -li da de”, e não ha via mais mo ti vo para te mer qual quer ame a ça su e ca à se -gu ran ça da pra ça. Em 1718, aliás, Car los XII mor re ria es tu pi da men te,tal vez as sas si na do, no as sal to a uma for ta le za no ru e gue sa. A paz foi fi nal -men te fir ma da em Nystadt, con sa gran do o do mí nio rus so so bre a Estô -nia, Li vô nia, Ka ré lia e Ingria.

Uma das pri me i ras ta re fas a re a li zar con sis tiu, em se gui da, nome lho ra men to da li ga ção ro do viá ria en tre Mos cou e São Pe ters bur go –qui nhen tos qui lô me tros de ca mi nhos hor ro ro sos, ver da de i ra tor tu rapara os vi a jan tes em con se qüên cia das chu vas no ve rão, da neve no inver no e de ge lo na pri ma ve ra. O per cur so durava cin co se ma nas e os di plomatas es tran ge i ros, obri ga dos a trans por tar-se de uma ci da de para a ou tra,deixa ram-nos des cri ções ví vi das a res pe i to das di fi cul da des da vi a gempe las flo res tas, pân ta nos, pon tes des tru í das, rios em en chen tes, a lama eos pe ri gos de toda es pé cie pro ve ni en tes de ho mens e ani ma is. “Há vin te e oito anos que vi a jo, es cre via um mi nis tro da Sa xô nia, e nun ca so frican sa ço igual!”. A obra de me lho ra men to nun ca foi ter mi na da. Ain da

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hoje, como pôde tes te mu nhar a Wehr macht em 1941/43, a lama é umele men to es sen ci al do sis te ma ro do viá rio rus so.

Pe dro con ce beu tam bém pro je tos gran di o sos de li ga çãoflu vi al, in clu si ve um ca nal do Don ao Vol ga, só re a li za do pelo go ver -no so vié ti co. A cons tru ção de um ca nal en tre o Vol ga e o Neva foi le -va da a cabo e, para evi tar as tem pes ta des do La do ga, o Tzar ten tou,sem êxi to, man dar abrir um ca nal de con tor no com cem qui lô me trosde ex ten são. Para a con se cu ção de ta re fas tão for mi dá ve is em tem potão cur to, o Tzar não he si tou em re cor rer aos mé to dos tra di ci o na isdo país, sem con si de ra ção al gu ma para com a vida, o con for to e afor tu na de seus sú di tos. Cen to e cin qüen ta mil ope rá ri os fo ram em -pre ga dos nas obras da ci da de. Entre es ses, mu i tos pri si o ne i ros su e -cos e li vo ni a nos. De ze nas de mi lha res mor re ram de frio, fome, aci -den tes e pri va ções de toda a sor te. Só na em pre sa fra cas sa da do La -do ga, trin ta mil te ri am sido sa cri fi ca dos. Não era fá cil le van tar es ta -cas nos bre jos do Neva e o “pa ra í so” do Tzar ad qui riu a re pu ta çãopou co in ve já vel de ser edi fi ca do so bre os os sos do povo rus so. Anosmais tar de, um bobo do Rei as sim ou sa ria des cre ver a ca pi tal: “de um lado, o mar; do ou tro, a má goa; no ter ce i ro, o mofo e, no quar to, umsus pi ro!”

Mas ou ça mos uma tes te mu nha, We ber, que, em 1725,pu bli cou um li vro in ti tu la do Nou ve a ux Mé mo i res sur l’état pré sentde la Gran de Rus sie ou Mos co vie. “Le tsar (es cre ve o cro nis ta) n’eutpas plus tôt for mé la ré so lu ti on de cons tru i re cet te vil le, qu’il don naor dre de ra mas ser pour le prin temp une gran de quan ti té de pay sansmos co vi tes, tar ta res, co sa ques, kal mouks, fin lan da is et in gri ens pourla met tre à exé cu ti on. Aus si vit-on, au com men ce ment de mai, plu si e -urs mil li ers d’ouvriers, ras sem blés de tous les en dro its du vas te em pi re rus si en, je ter les fon de ments de Ia nou vel le for te res se. Ils pouss èrentcet ou vra ge avec tant de di li gen ce, que les de dans fu rent en état en mo -ins de cinq mois, ce qui est d’autant plus sur pre nant qu’il n’y ava itpas de pro vi si ons suf fi san tes pour fa i re sub sis ter un si grand nom brede per son nes, qu’on n’avait pas eu soin de se pour vo ir des ins tru ments né ces sa i res com me de pi o ches, de pel les, de brou et tes et d’autres ou tilssem bla bles et qu’on man qua it de ma i sons ou de ca ba nes pour lo gertout ce mon de.”

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We ber cal cu la em du zen tos mil o nú me ro de mor tos, ci frapro va vel men te exa ge ra da. Mas o fato é que o mis ti cis mo re li gi o so con -ver ti do a fins pa trió ti cos, a re sig na ção com o destino e a ca pa ci da de bru tal de re sis tên cia do Mu jik fo ram sa cu di das e gas tas sem con tar. As mas sas fo ram ati ra das às mar gens palus tres do Neva, qual re gi men tos sa cri fi -ca dos em ata que fron tal – cada es ta ca va len do uma vida hu ma na...

“Eter no tra ba lha dor so bre o Tro no da Rús sia” no di zer dePushkin, Pe dro ima gi nou no vos mé to dos de tra ba lho for ça do e mo bilizouos ser vos numa vas ta área em tor no da re gião. E as sim a ci da de la cus trecres ceu. O knut e o uka se – o chi co te e a or de na ção au to crá ti ca – fo ram os ins tru men tos de um re gi me des pó ti co que não ti tu be a va quan to aosmé to dos, con tan to que fos sem al can ça dos os ob je ti vos su pe ri o res doEsta do. A fór mu la é tra di ci o nal men te rus sa e pa re ce um pou co es tra nho que Lê nin, re pe tin do uma fra se de Rous se au, te nha sido le va do a comen tar:“Pe dro lutou con tra a bar bá rie com mé to dos bár ba ros”. Não foi essa, afi nal de con tas, a re ce i ta bol che vis ta? São mé to dos que na tu ral men tecon ce dem a quem os pra ti ca uma van ta gem enor me, uma van ta gemdesco nhe ci da nos pa í ses oci den ta is onde o res pe i to aos di re i tos, dig ni dade e va lor da vida hu ma na ja ma is fo ram vi o la dos sem gra ves re sistên ci as ees crú pu los de cons ciên cia. Os ob ser va do res eu ro pe us no ta ram to dosque uma obra como a de São Pe ters bur go não po de ria ter sido levada acabo no oci den te, nem mes mo sob um re gi me ab so lu tis ta como o deLuís XIV. Na Rús sia, não ha via es crú pu los. O pró prio Push kin, ce le brando a épo ca em que “a jo vem Rús sia, com seus mús cu los en ri ja dos para aluta, ama du re cia com o gê nio de Pe dro, o Gran de”, com pa ra va o sa cri fícioim posto ao do “pe sa do mar te lo que, ao for jar o glá dio, par te em es tilhaços as pla cas de vi dro”. Me nos gran dí lo quo e mais re a lis ta do que o po e ta,era o Almi ran te Apra xin, Co man dan te da Fro ta, que as sim res pon dia a umes tran ge i ro, in dig na do com a bru ta lidade des se tra ba lho não-remunerado:“Ora! Se ria ri dí cu lo que o te sou ro do Tzar ti ves se de pa gar essa gen te,con vo ca da para exe cu tar um tra ba lho útil. Há bas tan te bor dões naRús sia para fus ti gar os re cal ci tran tes!” Tra ba lho for ça do, foi esse o sis -te ma es sen ci al que o Totalitarismo iria im por so bre a Eu ro pa ori en taldu ran te se ten ta anos...

Pe dro não en ten dia de su ti le zas ju rí di cas ou éti cas. Qu e ria“re colher o di nhe i ro, ner vo da guer ra, onde quer que en con tras se”.

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Imagi nou no vos sis te mas de tri bu ta ção que não re ca ía mais, comooutrora, so bre o che fe da fa mí lia, mas so bre o in di ví duo, a “alma mascu li -na” – isso, não obs tan te os pro tes tos do ju ris ta Pos soch kov que exi gia“a fi xa ção dos pre ços pe los bens tan gí ve is”, ar gu men tan do ser “a almaco i sa in tan gí vel, in com pre en sí vel para o es pí ri to”. As guer ras e as obrasde Pe dro cus ta ram so mas enor mes e pa re cia im pos sí vel ao país, ain daeco no mi ca men te sub de sen vol vi do, ar car com ta ma nho es for ço. Entre -tan to, as me di das ti râ ni cas e ve xa tó ri as ti ve ram êxi to, tal o po ten ci al dana ção. Pe dro con se gui ria, no fim do re i na do, de cu pli car as re ce i tas doTe sou ro.

A cons cri ção e a co er ção não atin gi am ape nas os ho mens.Esten di am-se às co i sas. O Tzar de se ja va que a ci da de apre sen tas se umas pec to eu ro peu. A ma de i ra, ma te ri al tra di ci o nal de cons tru ção no país,não era sufici en te men te só li da, nem bas tan te dig na de uma ca pi tal,embo ra abun dan te nas flo res tas cir cun vi zi nhas. Era mis ter cons tru ircom ma te ri al mais du rá vel, apro pri a do aos es ti los eu ro pe us e, en quan tonão hou ves se pe dra dis po ní vel, as fa cha das de ma de i ra se ri am tra balha dase pin ta das de modo a imi tar a al ve na ria e o ti jo lo. A imi ta ção ba ra ta noges so se ria mais apre ci a da do que um ma te ri al que lem bra va a ve lhaarqui te tu ra de Kiev e Vla di mir. Mas como fos se li mi ta do o su pri men tode pe dra nos ar re do res, foi pro i bi da, sob pena de con fis ca ção de bens eexí lio, qual quer cons tru ção de al ve na ria nas ou tras ci da des da Rús sia.Pedro deu or dens para que to dos os na vi os que, pro ce den tes do Ladoga,apor tas sem em São Pe ters bur go, trou xes sem las tro de pe dra. A me di dateve o efe i to su ple men tar de pro vo car a imi gra ção em mas sa, para a capi tal, de pe dre i ros e mes tres-de-obras.

Entre men tes, Pe dro or de nou a mu dan ça com pul só ria dafamí lia im pe ri al, dos che fes da no bre za, al tos fun ci o ná ri os, es tran ge i rosilustres e ri cos co mer ci an tes de Mos cou, de ter mi nan do que constru ís semsuas re si dên ci as na nova ci da de. Um pra zo de ape nas três ou qua tro mesesera con ce di do para a mu dan ça, an tes da pri ma ve ra. A plan ta, o ta ma nho e até o ma te ri al a ser usa do nas ca sas fo ram mi nu ci o sa men te re gu la men -ta dos, por de cre to, de acor do com a for tu na dos pro pri e tá ri os e o núme rode fi lhos. A aris to cra cia não ob te ve pri vi lé gi os nes se par ti cu lar e, bru tal -men te ar ran ca da de seus la res an ces tra is, con tri bu iu com di nhe i ro e nãopou co des con for to para o de sen vol vi men to da aglo me ra ção. Em tem po

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cur to São Pe ters bur go po vo ou-se, atra in do mer ca do res, ma ri nhe i ros,ope rá ri os, ar te sãos e aven tu re i ros. Mas o acon te ci men to re le van te – amu dan ça do go ver no e da aris to cra cia – fa zia par te da trans for ma çãoque o Tzar de se ja va ope rar no modo de vida das eli tes rus sas e, nes sesen ti do, a obri ga ção de fi xar re si dên cia em São Pe ters bur go re ma ta va asme di das an te ri or men te efe ti va das para a oci den ta li za ção dos cos tu mes,tais como o ras par das bar bas pa tri ar ca is e o aban do no das an ti gas túnicas– os kaf tans de man gas lon gas e de cor te asiá ti co. A nova ca pi tal não sede via dis tin guir de qual quer me tró po le eu ro péia pelo seu as pec to fí si co,o es ti lo de ar qui te tu ra ou a moda dos ha bi tan tes.

Árdua ta re fa, ven cer a for mi dá vel re sis tên cia pas si va do povorus so! Pe dro de tes ta va Mos cou, como Luís XIV, Pa ris. Para am bos, asan ti gas me tró po les evo ca vam lem bran ças odi o sas de uma mo ci da deator men ta da. A cons tru ção de São Pe ters bur go, como a de Ver sa il les,de via sim bo li zar o fim de um pas sa do ir re ver sí vel, de uma or dem de fi ni -ti va men te so bre pu ja da. Afas tan do-se do ve lho cen tro da Mos có via oTzar con ta va pro vo car, ar ti fi ci al men te, o co lap so da re sis tên cia con ser -va do ra e é pos sí vel que te nha sido ins pi ra do pelo exem plo do Rei Sol na uti li za ção des sa arma ge o po lí ti ca que é a ca pi tal ar ti fi ci al! A re sis tên cianão abran da va, con tu do. Os “ve lhos cren tes” cla ma vam con tra o Tzarre for ma dor, con tra seus há bi tos ím pi os, o des re gra men to mo ral, a li ber -ti na gem, as or gi as al coó li cas e a in dis far çá vel pre di le ção que re ve la vape los es tran ge i ros. Cir cu la va à boca pe que na a no ção de que Pe dro eraum “fal so Tzar”. Por ven tu ra um es pião en vi a do pe las po tên ci as eu ro -péi as para con ver ter a San ta Rús sia à he re sia ro ma na. Os mais fa ná ti coscon si de ra vam-no o Anti-Cris to. Era o anun ci a dor do fim do mun do ede suas na ri nas saía o fumo in fer nal. Os cis má ti cos pro fe ti za vam a que -da pró xi ma de São Pe ters bur go cuja sina se ria re tor nar às águas pri mor -di a is. E para os hu mil des fin lan de ses, a me tró po le pos su ía uma ori gemir re al. Fora cons tru í da no éter e dos céus des ce ra à ter ra, in te i ra, para ser de po si ta da tal qual às mar gens do Neva. As mal di ções e os lou vo rescho vi am e a ci da de cres cia. Bom ou mal, o sí tio era cer ta men te pro pí cioao de sen vol vi men to de um cen tro in dus tri al, ca paz de jus ti fi car-se eco -no mi ca men te sem de pen der da cir cuns tân cia de abri gar o go ver no e aCor te.

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O ca rá ter de São Pe ters bur go ex pli ca-se pelo de Pe dro oGran de. “Gra ças à sua ener gia vi tal, es cre ve um con tem po râ neo, tor -nou-se fí si ca e mo ral men te o ho mem mais ir re qui e to, mais duro de fa ti -gar, mais sen sí vel à ale gria da ação que se haja vis to so bre a ter ra”. Bru tal, co lé ri co, pol trão, bê ba do, de vas so, ab so lu ta men te ins tá vel de tem pe ra -men to, com um ins tin to exa cer ba do de po der e au to ri da de, re ve la vaper tur ba ções psi co ló gi cas que se po dem atri bu ir aos sus tos de sua in -fân cia, sem pre ame a ça da pe las ma qui na ções da irmã So fia, uma vi ra go.A ma ne i ra como ma tou o pró prio fi lho, o tza re vich Ale xis, de po is dasmais hor ren das tor tu ras, bem re ve la a ba i xe za mo ral e os abis mos decru el da de a que po dia des cer sua alma con tur ba da. Sua ob ses são com as de for mi da des hu ma nas, o pra zer em cer car-se de idi o tas, anões, ca re te i -ros, men te cap tos, pa lha ços e kal mu kos mons tru o sos con fir mam o de se -qui lí brio em que os ras gos de ge ni a li da de es ta vam pró xi mos da lou cu ra.O re i na do in cen ti vou o pen dor dos rus sos pelo dra má ti co, o sur pre en -den te, o ter rí vel e o ca la mi to so. A vida na nova ca pi tal ja ma is pe coupela tran qüi li da de ou a mo no to nia.

Os pri me i ros di plo ma tas eu ro pe us con tam-nos, em seus des -pa chos ofi ci a is ou me mó ri as par ti cu la res, co i sas pi to res cas ou agra van tesque di fi cil men te po de ri am ocor rer em ou tros Esta dos ci vi li za dos daépo ca. Essa pro pen são tor nar-se-ia ain da mais sa li en te nos re i na dos se -guin tes, com as re vo lu ções de pa lá cio e as in crí ve is tra gé di as da Cor te,os in ci den tes es can da lo sos e as vi cis si tu des das car re i ras; e mais tar de, nossé cu los XIX e XX, com o ter ro ris mo, as re vol tas, os lú gu bres re la tos das ví ti mas da po lí cia se cre ta, Ras pu tin, a guer ra, a re vo lu ção e, de trás daCor ti na de Fer ro, os mis té ri os hor ren dos do Esta do to ta li tá rio co mu nis ta.Isso tudo en tre me a do de inun da ções, in cên di os, epi de mi as e ou tros ca ta clis mos na tu ra is! We is brod, en vi a do bri tâ ni co, in for ma, em 1711, que“a ci da de foi com ple ta men te sub mer gi da”. Em 1715, lo bos fa min tos co -me ram uma mu lher em ple na rua cen tral. Em 1723, Le Fort, Mi nis troda Sa xô nia, ofi cia que um ban do de nove mil ca pan gas, di ri gi dos por um co ro nel prus si a no, ten tou que i mar o Almi ran ta do e mas sa crar to dos oses tran ge i ros. O Du que de Lí ria, Emba i xa dor da Espa nha, es cre ve so bre avida da Cor te que con si de ra “de mais luxo e es plen dor do que as mais ri cas da Eu ro pa”, acom pa nhan do tais in for ma ções de co men tá ri os pe ne tran tes so bre as per so na li da des ex tra va gan tes dos cor te sãos. Alguns des ses

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di plo ma tas elo gi am o Tzar. Ou tros con tri bu em para for mar a opi nião deVol ta i re de que Pe dro era “bru tal, fe roz, bár ba ro e sel va gem”. To dos que i -xam-se, exa ta men te como o fa ria um sé cu lo mais tar de o mar quês deCus ti nes, di plo ma ta fran cês que nos de i xou um edi fi can te re la to de suasvi a gens na Rús sia em que de nun cia, como o fa ri am os Emba i xa do res lo -ta dos em Mos cou, a Cor ti na de Fer ro, as di fi cul da des de alo ja men to, aes pi o na gem po li ci al, os obs tá cu los de toda a sor te in ter pos tos à lo co -mo ção, a des con fi an ça ob tu sa das au to ri da des, o ma qui a ve lis mo da pro pa -gan da e a at mos fe ra de in fle xí vel ti ra nia. O Tzar vol ta ra de sua pri me i ravi a gem à Eu ro pa um gran de ad mi ra dor da Ho lan da e, em me nor grau, daIngla ter ra. Mas seu mo der nis mo oci den ta li zan te não com por ta va oaban do no dos mé to dos ca rac te rís ti cos do Esta do au to crá ti co: em nadafoi afe ta do pe las con cep ções li be ra is e hu ma ni tá ri as ou pe las ins ti tu i çõesde mo crá ti cas des ses pa í ses. A in fluên cia do oci den te exer ceu-se no ter re no pu ra men te ma te ri al.

Amster dam, Utrecht e, até cer to pon to, Stock holm e Ve ne zaque Pe dro não che gou a vi si tar, fo ram os mo de los de São Pe ters bur go.Mas o pla ne ja men to da ca pi tal aca bou pre ju di ca do pe las cir cuns tân ci ases pe ci a is de sua fun da ção e, no di zer de um di plo ma ta con tem po râ neo,“as co i sas, como em ge ral acon te ce na Rús sia, co me ça ram pela execu ção”.Não hou ve um pla no ama du re ci do. Nem tal vez a cons ciên cia da mag ni -tu de da obra. Pe dro não era um ur ba nis ta, tal vez por que lhe faltassecultura clás si ca, e, ape sar de au to ri tá rio, não con se guiu fa zer triun far oúnico pla no que, tar de de ma is, ten tou exe cu tar. Mu i to em bo ra a in fluênciaho lan de sa con ti nu as se sen sí vel na pri me i ra fase do de sen vol vi men to daci da de, cu jas ruas fo ram plan ta das de ár vo res e cor ta das de ca na is como em Amster dam, a idéia de uma ci da de aquá ti ca, edi fi ca da so bre ilhas eservin do-se dos rios e dos ca na is como ar té ri as para o trá fe go, não che goua ser re a li za da. Le va do pelo seu en tu si as mo e trans bor dan te ener gia, “ogos to das gran des co i sas e o gê nio de do mi na ção”, o Tzar man da riaexecu tar o que lhe vi nha à men te, sem con tem plar a in te gra ção do con junto.A inspi ra ção re pen ti na, o ar bí trio, a im pro vi sa ção e os efe i tos pa ra do xais da fal ta de har mo nia in te ri or e dos cho ques emo ti vos na alma do Tzar, eis oque pa ten te ia São Pe ters bur go no século XVIII.

Em sua ad mi ra ção pe los Pa í ses Ba i xos, Pe dro cha ma ra a nova ca pi tal (que ou tros co nhe ci am como Pe tro grad ou Pe tró po lis) de Sankt

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Pi e ter Burkh, obe de cen do à pro nún cia ho lan de sa, e con ce be ra seudesen vol vi men to so bre as ilhas do del ta do Neva. Para a di re ção dos tra -ba lhos re cor reu sem pes ta ne jar aos ar tis tas, en ge nhe i ros e téc ni cosestran ge i ros. Co me çam en tão a che gar à Rús sia ita li a nos, ale mães, france ses e bá va ros, atra í dos pela re pu ta ção do mo nar ca e a es pe ran ça de for tu na,ou já con tra ta dos pe los agen tes rus sos na Eu ro pa. A pri me i ra im pres são que iam de i xar se ria, na crí ti ca do cro nis ta Alga rot ti, a de “uma es pé ciede ar qui te tu ra bas tar da” onde “a in fluên cia ho lan de sa pre va le ce ria so bre a itali a na e a fran ce sa”. Mas aos pou cos Roma e Pa ris subs ti tu emAmster dam e Ve ne za, e os ar qui te tos pro cu ram er guer mo nu men tosdes tinados a trans por as for mas da Roma Impe ri al à me tró po le daAu to cra cia rus sa no apo geu. São Pe ters bur go, na ex pres são de G. H.Ha mil ton, “ad qui ri ria com o tem po uma be le za es tra nha e opres si va”.Na “His tó ria das Artes e da Arqui te tu ra da Rús sia” por esse au tor mo der no, po de mos co lher da dos para a apre ci a ção da par te re la ti va ao de sen vol vi -men to ar tís ti co da ca pi tal e, nes se pon to, me re ce par ti cu lar aten ção ogrande nú me ro de ita li a nos que fi gu ram em seus Ana is. O nú cleo prin cipalda ci da de cons ti tu iu-se, con tra ri a men te ao de se jo ini ci al do Tzar, emtor no do Almi ran ta do, na mar gem sul, a par tir do qual se ir ra di a ri amtrês imen sas ave ni das ou “Pers pec ti vas” – Ascen ção, Nevs ki e Almi rantado – cujo de se nho pode ter sido ins pi ra do por Ver sa il les, Karl sru he ou pela Pi az za del Po po lo de Roma. A ave ni da me di a na, a fa mo sa “Pers pec ti vaNevs ki” se ria o eixo prin ci pal da ci da de – imen sa ar té ria plan ta da deárvo res e la de a da por al guns dos edi fí ci os mais im por tan tes da capital,indo ter mi nar no con ven to de Ale xan dre Nevs ki, he rói lendário, ven ce dorda Ordem Te u tô ni ca.

Du ran te o re i na do de Eli za beth Pe trov na (1741-1761), fi lha equar ta su ces so ra de Pe dro o Gran de, o cres ci men to da ca pi tal estádefini ti va men te ori en ta do para o sul. Eli za beth mu i to se as se me lha va ao Pai na sen su a li da de, te i mo sia e pa tri o tis mo. Vo lup tu o sa in sa ciá vel,aman te da be le za tan to quan to do ál co ol e da li ber ti na gem, seu re i na doapon ta o iní cio da vida lu xu o sa e ale gre, como tam bém bru tal, san gren ta edes regra da que pres ta ria cor e tem pe ra men to à “Palm yra do Nor te”.Após Eli za beth, su biu ao Tro no au to crá ti co de to das as Rús si as umamo des ta prin ce sa ale mã cuja sor te, as tú cia e gê nio po lí ti co bem lhe me -re ce ram o cog no me de Gran de. Ca ta ri na II com ple ta ria a obra de Pe dro

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em 34 anos de re i na do e pro cu ra ria cor ri gir o que con si de ra va o bar ba -ris mo rus so, dan do ao Impé rio aqui lo que ain da lhe fal ta va – estilo! SãoPeters bur go de ve-lhe qua se tan to quan to a Pe dro, o Gran de, e au xi li a dapor uma plêi a de de ar qui te tos rus sos e es tran ge i ros, en ri que ce ria a ca pi talcom monu men tos gran di o sos e aus te ros, obe di en tes à nova modaneoclás si ca.

A tra di ção clás si ca, fa vo re ci da por Ca ta ri na, cul mi nou no re i -na do de seu neto, Ale xan dre I, que, de se jo so de tor nar São Pe ters bur goa mais bela de to das as ca pi ta is eu ro péi as, tal vez mes mo im pe li do, porsua ri va li da de com Na po leão, a pro cu rar ul tra pas sar o que vira em Pa ris– sem pre de mons trou uma gran de pre di le ção pela me tró po le, con se -guin do im pri mir-lhe a ho mo ge ne i da de clás si ca fi nal da ci da de em seucon jun to. O pe río do de de clí nio do tza ris mo prin ci pia com a mor te deAle xan dre I e a re vo lu ção de ka bris ta (1825). Como tão fre qüen te men teacon te ce, o mo vi men to ar tís ti co ex pri miu a de ca dên cia so ci al e po lí ti ca.A ar qui te tu ra clás si ca de sen ti do im pe ri al e gran di o so, que fi ze ra a gló ria da ca pi tal no seu apo geu, per de-se ago ra, como diz Ha mil ton, “na con -fusão do ecle tis mo que in va de a Rús sia, como os ou tros pa í ses da Europa,de po is da me ta de do sé cu lo XIX”. Entre tan to, no tá vel é o pro gres soma te ri al da ci da de onde pri me i ro se ma ni fes tam os efe i tos da re vo lu çãoin dus tri al que, com mu i to atra so, atin ge a Rús sia. Em prin cí pi os daPrime i ra Gu er ra Mun di al e como re sul ta do da mo bi li za ção in dus tri al,sua po pu la ção atin ge dois e meio mi lhões de ha bi tan tes. Seu nome éentão mu da do para Pe tro grad – for ma rus sa, ou por ou tra es can di na va,de “ci da de” – gräd ou go rod.

É aqui o mo men to de de ter-nos para pro cu rar as ca u sas do de -clí nio e re nas ci men to de São Pe ters bur go. Ao mor rer, Pe dro, o Gran de, po -dia con si de rar-se sa tis fe i to da obra re a li za da. Obra imen sa, na ver da de, deque esse as pec to é o sím bo lo te a tral. Em pou cos anos, um Re i no atra sa do e se mi-asiático fora trans for ma do numa gran de po tên cia eu ro péia que pre si -dia aos des ti nos da ci vi li za ção oci den tal; e os “sen ti men tos ina tos de umpovo caó ti co” fo ram sub ju ga dos pela for ça e a per su a são.

Mas ocor re, como con se qüên cia tal vez de seu ca rá ter desmedi doou como re sul ta do da pró pria mag ni tu de e do su ces so in dis cu tí vel datrans for ma ção, que o Gran de Tzar te nha sido o pri me i ro res pon sá velpelo de sen ro lar de acon te ci men tos fu nes tos cu jos sin to mas já co me çam

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a sur gir no re i na do de Ale xan dre I. A fa ta li da de que con duz a ci da depara seu des ti no en con tra-se in se ri da na pró pria Idéia Do mi nan te quelhe deu nas ci men to. Nes sa idéia es con de-se a se men te de sua fu tu raqueda como ca pi tal po lí ti ca, so ci al e cul tu ral da Rús sia, como se aNême sis vin ga do ra hou ves se ob ser va do e jul ga do a obra des de o iní cio.A “Ja ne la Aber ta so bre a Eu ro pa” rom pe ria o iso la men to, apres sa ria ega ran ti ria a eu ro pe i za ção da Rús sia. Si mul ta ne a men te, po rém, vi o la vapor ven tu ra um dos ele men tos bá si cos na fun ção ge o po lí ti ca da ca pi tal: a fun ção de uni fi ca ção. Qu an do se tor nou um tra ço-de-união en tre o paíse o ex te ri or, con tri bu iu para o rom pi men to das ra í zes que de vem fi xar aca pi tal ao solo, ao cer ne da na ção, para dele re ce ber o ali men to vi vi fi -can te. A ci da de cres ceu de ma is. Cum priu mu i to a ri gor seu pa pel eu ro -pe i zante, como se fora um apên di ce mons tru o so da an ti ga ne mez kaiaslo bo da – o “su búr bio es tran ge i ro” de Mos cou onde Pe dro pas sa ra ain fância. Seus ha bi tan tes apren de ram tão bem a li ção que, nes se pro cesso,qua se de i xa ram de ser rus sos. Rous se au di ria que Pe dro “de se jou fa zeralemães e in gle ses quan do de via ter co me ça do por fa zer rus sos...”. Poucoa pou co, os aris to cra tas que vol ta vam de seus es tu dos no oci den te e osaven tu re i ros de to das as na ci o na li da des que se en ca mi nha vam para onorte, trans for ma ram São Pe ters bur go em uma gran de me tró po lecos mopo li ta.

O pró prio Tzar Pe dro con tra tou às de ze nas, às cen te nas, mi li tares, en ge nhe i ros, sá bi os, pro fes so res e ar tis tas. Sua Cor te trans for mou-senum ren dez-vous de ho mens de ta len to. Em sua mo ci da de fora ami godo su í ço Le fort, do es co cês Gordon, do balta von Meng den, do ale mãoTim mer mann; al guns gal garam os mais al tos pos tos da ad mi nis tra ção edo exér ci to. Ou tros ale mães como Büh ren, o Chan ce ler Öster mann e oMare chal Mü nich de sem pe nha ri am pa pel sa li en te nos re i na dos seguin tes.Suas aman tes tam bém eram es tran ge i ras: Anna Mons e Ca ta ri na Skow -rons ka, a fu tu ra Impe ra triz. No cír cu lo ime di a to de sua Cor te en con -tram-se dois ju de us por tu gue ses, o ar ro gan te Dé vi er, que se ria che fe dePo lí cia, e Cos ta, que se ria co ro a do Rei dos Sa mo i e das; um gre go, SavãRa gou sins ki, di plo ma ta, e um es cra vo ne gro, Han ni bal, an te pas sa do dopo e ta Pusk hin. Esses ho mens tan to con tri bu í ram para a re vo lu çãocultural e so ci al que o sé cu lo XVIII rus so é um sé cu lo es tran ge i ro – areação naci o na lis ta só se fa zen do sen tir, na ver da de, por moti vo da in va -

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são napo leô ni ca. Pode di zer-se da Rús sia, nes se pe ríodo, que o go verno éale mão, o exér ci to prus si a no, a ma ri nha ingle sa, o co mér cio ho lan dês, a lite ra tu ra fran ce sa e a ar qui te tu ra ita li a na. Du ran te os re i na dos de Eli zabethe Ca ta ri na essa evo lu ção das eli tes pos sui as pec tos po si ti vos pois, sal voas bru ta li da des e os ex ces sos, tra ta-se de uma aris to cra cia eu ro péia queprocu ra imi tar Ver sa il les. O san gue es tran ge i ro con tri bui para a com pletaab sor ção dos cos tu mes oci den ta is e, além dis so, o re i na do de Pedroassi na lou um re ju ve nes ci men to da clas se dos bo yars com in di ví du os deori gem a mais hu mil de, e bem as sim com um nú me ro con si de rá vel detár ta ros. Proces sa-se, nas al tas ca ma das, como que uma in te gra çãoteuto-eslavo-tártara e, nos sé cu los XVIII e XIX, de pa ra mos a cada passocom no mes es tran ge i ros na di plo ma cia, nas for ças ar ma das e na po lí tica:Ester hazy, Be ring, Bar clay de Tolly, Ba gra ti on, Nes sel ro de, Tod le ben,Kaufmann, Wit te e tan tos ou tros. Cria-se, em suma, uma im po nentefa cha da cul tu ral eu ro péia, uma Per so na ou más ca ra in com pa rá vel.

O cos mo po li ta nis mo pe ne tra no lar. As fa mí li as ri cas e nobrescon tra tam pre cep to res e go ver nan tas eu ro péi as para suas cri an ças. Osfi lhos es tu dam em Fran ça e na Ale ma nha de onde vol tam com idéi asno vas, nem sem pre ama du re ci das ou adap ta das ao am bi en te do país. Asfi lhas con ti nu am sua edu ca ção num am bi en te ar ti fi ci al de re fi na men to eele gân cia. Do mi na a úl ti ma moda de Paris na in du men tá ria e no roman ce.Escre ven do ain da so bre o re i na do de Pe dro, o Gran de, o me mo ri a lis taBerckholtz afir ma “ser com es pan to que se pode cons ta tar a trans forma çãoque se efe tu ou em tão pou co tem po. A mu lher rus sa, ain da re cen te mentegros se i ra e pou co ins tru í da, tor na-se qua se igual à ale mã e à fran ce sapela fi nu ra de suas ma ne i ra e afa bi li da de: sob cer tos as pec tos já lhes ému i to su pe ri or”. Nes sa li be ra li za ção do es ta tu to da mu lher en con tra mos tal vez um dos ter re nos em que as re for mas de Pe dro pe ne tram maispro fun da men te – nis so se as se me lhan do à obra des se ou tro gran de ege ni al re for ma dor que foi Ke mal Pa chá Atar türk. Em 1702 é la vra do ode cre to que ins ti tui o no i va do obri ga tó rio, per mi tin do aos fu tu ros es po -sos co nhe ce rem-se an tes do ca sa men to. A mu lher da alta cas ta, an te ri or -men te res guar da da no te rem – que é um ver da de i ro ha rém, de acor docom os cos tu mes se ve ros de uma so ci e da de es sen ci al men te pa tri ar cal –li ber ta-se e ad qui re na vida mun da na de São Pe ters bur go, uma po si ção

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pre dominan te. Para isso con tri bu em sem dú vi da os re i na dos das Tza rinasCa ta ri na I, Anna, Eli za beth e Ca ta ri na a Gran de.

Pou co a pou co, em con ta to es tre i to com as Cor tes dos Bour bons e dos Han no ver, ex ce de-se a “Palm yra do Nor te” na imi ta ção, jun tan doos há bi tos dis so lu tos e bru ta li da de, o de se qui lí brio e a em bri a guês. Asso be ra nas são as pri me i ras a ofe re cer o exem plo de de vas si dão e da pro -mis cu i da de. Mes mo no sé cu lo XIX, que co nhe ce ria a re a ção do pu ri ta -nis mo vi to ri a no, São Pe ters bur go con ti nua a ser uma das ca pi ta is maisale gres e li vres da Eu ro pa, ri va li zan do com Vi e na se não em fi nu ra, pelome nos em fa us to e os ten ta ção. Mas o fe nô me no não é ain da tão gra vequanto o do sé cu lo XIX. O rom pi men to é pro fun do e ir re me diá velentre o aris to cra ta, o bur guês ou o des cen den te do an ti go bo yar que habi tama ca pi tal, e o mu jik aban do na da em sua pe no sa exis tên cia no in te ri or. Aseli tes de sar vo ra das não sa bem mais con tro lar o mons tro e o cos mo po li -ta nis mo tor na-se uma do en ça que len ta men te as cor rói!

O ar ti fi ci a lis mo da ca pi tal re ve la a dis cor dân cia das duasten dên ci as ir re con ci liá ve is. Nada mais sin to má ti co do que a pre di le çãode Pe dro, o Gran de, de sua fi lha Eli za beth e do Grand Mon de em ge ral,pelo te a tro, os ba i les mas ca ra dos, as fan ta si as e o car na val, ma ni fes ta çõeses sas de fal ta de au ten ti ci da de e fuga da re a li da de. O rus so pos sui um ta len to ex cep ci o nal para a en ce na ção. A ar qui te tu ra ro co có da ca pi tal –essa con tri bu i ção es pe ci fi ca men te rus sa ao fal so es ti lo de vida do sé cu lo – pa re ce co li mar a ere ção de um vas to e fa bu lo so de cór de te a tro, demodo a tor nar qua se im per cep tí vel a tran si ção da vida mun da na para opal co. A pró pria ma nia do Tzar com a Ho lan da, a ado ção de ins ti tu i ções po lí ti cas su e cas e ale mãs e a ob ses são com a ma ri nha in di cam cer taper da de con ta to com a su bes tru tu ra na ci o nal. No sé cu lo se guin te, oar ti fi ci a lis mo cor rup tor agra va-se em rit mo ace le ra do. Dos to i evsky diráem tom aze do: “São Pe ters bur go é a ci da de mais abs tra ta e ar ti fi ci al que exis te”, e o his to ri a dor Ka ram zin es cre ve rá: “Tor na mo-nos ci da dãos domun do mas, sob cer tos as pec tos, de i xa mos de ser ci da dãos da Rús sia”.A crí ti ca é fre qüen te men te te ci da à obra de Pe dro o Gran de que te rialan ça do o bar co às águas, nos es ta le i ros de Pe ters bur go, sem es tar pre -pa ra do para en fren tar o oce a no. Os es tu dan tes, man da dos à Eu ro pa,res pi ra ram “o so pro do oci den te”, apren de ram a li ção mas se es que ce ramde trans mi tir os en si na men tos ad qui ri dos a seus com pa tri o tas me nos

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fa vo re ci dos. Cons tan ti no de Grun wald per gun ta se não é uma cons ta ta ção per tur ba do ra que faz o his to ri a dor “ao des co brir en tre os exi la dos, re -cen te men te do mi ci li a dos em Fran ça (os rus sos “bran cos") qua se to dos osno mes de fa mí li as ilus tres dos an ti gos “vi a jan tes” de Pe dro o Gran de. E,na ver da de, eram as for mas ex ter nas e não o es pí ri to li be ral e hu ma nis ta da ci vi li za ção eu ro péia que essa gen te as si mi la va. Bri an-Cha ni nov ob ser -va que o cos tu me fran cês, a bar ba ras pa da e os há bi tos oci den ta is nãosig ni fi ca vam que os cé re bros hou ves sem ado ta do a men ta li da de, a ci vi li -za ção e a cul tu ra eu ro péia. Tudo isso era um trom pe l’oeil que mal dis si -mu la va a au sên cia de lim pe za mo ral e de re fi na men to in te lec tu al. O co -men ta ris ta We ber, es cre ven do em 1725, já as sim se re fe ria aos es tu dan -tes rus sos na Eu ro pa: “Co lhem tudo o que há de pior na Ale ma nha eem ou tros pa í ses, e des se modo se pro ces sa ne les uma mis tu ra dos ví ci -os de sua na ção com os do es tran ge i ro. Ao vol tar à Pá tria re to mam oan ti go modo de vida mas já per de ram a pi e da de an ces tral.” Assim tam -bém, co me çam a be ber vi nhos fi nos e cham pag ne mas nem por issome nos se em be be dam; ra pi da men te adap tam o uso do ta ba co e fu mamca chim bo, o que é cer ta men te mais fá cil do que a aqui si ção da fle ug mabri tâ ni ca. Apren dem a es tra té gia mo der na e pro du zem mag ní fi cos sol da dos (que, no di zer de Na po leão, ti nham nas ba ta lhas que ser mor tos duasve zes) mas como es tão lon ge de en con trar ad mi nis tra do res ho nes tos eefi ci en tes!

Pe dro la men ta ria ter vi vi do su fi ci en te men te para ver apa re cerà sua vol ta vá ri os Tu ren ne, mas ne nhum Sully e ne nhum Ri che li eu. Osmag ní fi cos ge ne ra is, os cor te sãos ele gan tes e es pi ri tu o sos, os mi nis trosca pa zes, os fa vo ri tos todo-po de ro sos são men ti ro sos e pre va ri ca do res.Qu an do Pe dro cer ta vez ame a çou en for car todo in di ví duo acu sa do derou bar os di nhe i ros pú bli cos, o Pro cu ra dor-Ge ral per gun tou-lhe comes pan to irô ni co: “Vos sa Ma jes ta de de se ja re i nar so zi nho, sem sú di tos?”.Mens hi kov, o bra vo ca pi tão, me ce nas a quem a ca pi tal tan to deve, ami go de in fân cia e cor te são fiel, fa vo ri to cu mu la do de fa vo res e hon ra ri as, eratam bém um la drão in cor ri gí vel que res pon dia com can du ra às ful mi na çõesde seu so be ra no: “Sim, Ma jes ta de, rou bei, rou bei por que usei da au to ri da deque me des tes. Fiz em gran de o que ou tros, a vol ta de Vos sa Ma jes ta de,fi ze ram em pe que no.”

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Ao ar ti fi ci a lis mo de São Pe ters bur go de ve mos tal vez atri bu ira ve na li da de, a de vas si dão e, no sé cu lo XIX, a vi o lên cia e o ni i lis mo queca rac te ri zam suas eli tes. A Rús sia ar ran ca da de suas ra í zes: o qua drocompor ta uma re pug nân cia ina ta por todo cons tran gi men to e todadisci pli na – e daí os pro ces sos fe ro zes de re pres são, a tor tu ra, o knut, ochicote, o fal so fu zi la men to, a Si bé ria; um es tra nho mis ti cis mo mór bido, omes si a nis mo da “Ter ce i ra Roma”, a ne ces si da de de “ale grar a alma”com a “agui nha”, a vod ka e, nas cri ses mais gra ves, o im pul so ao as sassina to e ao es tu pro que jus ti fi cam o ar re pen di men to pos te ri or. Ca rá ter iner te,in ter rom pi do por so bres sal tos de ener gia ex plo si va, todo o com ple xo de ide a lis mo, hi po cri sia, vi o lên cia e mor bi dez som bria que ilus tra as per so -na gens de Go gol, Dos to i evsky e Tur gue nev; to dos os sin to mas deesqui zo fre nia que dis tin guem o mun do pe ters bur gue a no nos cem anosde de clí nio que pre ce dem a re vo lu ção bol che vis ta. “E, en quan to umapar te das eli tes go ver nan tes pro cu ra com ba ter a fu nes ta evo lu ção pe losméto dos tra di ci o na is da po lí cia (bit knu tom!, “pas se o chi co te”!), en quantoho mens como o mi nis tro da Edu ca ção, Uva rov, de cla ram, em ple noséculo XIX, ser seu in tu i to cons tru ir “di ques” para con ter o flu xo dasidéi as novas, re tar dan do se pos sí vel por cin qüen ta anos a oci den ta lizacãoda Rús sia, a ou tra par te, a in tel li gent zia que se diz pro gres sis ta, re fu gia-seno ni i lis mo, no ter ro ris mo re vo lu ci o ná rio e nas va gas lu cu bra ções maldigeri das, ins pi ra das pe las dou tri nas ma te ri a lis tas e so ci a lis tas da fi losofiaeu ro péia. Para uns, as pa re des da For ta le za de Pe dro e Pa u lo re sol vemtodos os pro ble mas. Para os ou tros, os li vros de Buck le, Dar win, Ha ec kel,He gel e Marx.

Mas a Lei da Hu bris – da pu ni ção do or gu lho in so len te – estásem pre pron ta a res ta be le cer a jus ti ça ima nen te da his tó ria. O luxo atre -vi do, o he do nis mo como jus ti fi ca ção da exis tên cia, o ter ror como mé to dode go ver no, o ma te ri a lis mo va zio e bru tal e a de gra da ção mo ral de que o mon ge Ras pu tin é o der ra de i ro exem plo, con du zem ir re me di a vel men teao des fe cho re vo lu ci o ná rio. As mas sas res sen ti das con tra tudo que SãoPe ters bur go re pre sen ta va, por que a me tró po le as pri va ra de sua le gí ti mapar ti ci pa ção na vida do país, di ri gem con tra ela seu sur do e omi no sopro tes to. Já em 1863, Aksa kov es cre via a Dos to i evsky: “A pri me i racon di ção para que o sen ti men to po pu lar rus so en con tre li vre ex pres sãoé odi ar Pe ters bur go com a alma in te i ra e todo o co ra ção... ”. Em 1825,

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a re vol ta “de cem bris ta” cons ti tui o pri me i ro in dí cio da pre sen ça de umtu mor que ar re ben ta ria cem anos mais tar de. Entre 1870 e 1880 o ter ro -ris mo alas tra-se. Em 1905, de po is dos de sas tres da guer ra rus so-ja po ne -sa, o ba tis mo de fogo re vo lu ci o ná rio di an te do Pa lá cio de Inver no. Masnem a tese dos Esla vó fi los, que pre ga vam a vol ta às tra di ções mos co vi taspa tri ar ca is – nem a an tí te se dos “Oci den ta is”, para quem o ca mi nho dePe dro era cor re to e a ori gem de to dos os ma les da Rús sia re si dia em nele não ha ver per se ve ra do – com por ta vam uma so lu ção fi nal das ten sões acu -mu la das, a qual se ria en con tra da numa sín te se sur pre en den te do ma te ri a lis -mo di a lé ti co mar xis ta com a es tru tu ra tár ta ro-mos co vi ta atá vi ca, ex pres -sa num novo “Grão-Kha na to” eu ra siá ti co.

Qu a is as con clu sões que se pode au fe rir do caso de São Pe ters -bur go? Cons tru ir uma ci da de não é a mes ma co i sa do que cons tru ir uma ca pi tal. Pe ters bur go jus ti fi cou-se ple na men te como cen tro co mer ci al, como por to (ape sar de seus in con ve ni en tes to po grá fi cos e cli má ti cos), como ci -da de in dus tri al e, in clu si ve, como “ja ne la aber ta so bre a Eu ro pa” no sen ti -do que lhe quis dar Pe dro o Gran de. Se foi uma “ca pi tal ar ti fi ci al” se gun do a de fi ni ção de Val la ux – e, na ver da de, a ca pi tal ar ti fi ci al por ex ce lên cia,a “ca pi tal ar ti fi ci al-tipo” – foi tam bém uma aglo me ra ção ur ba na degran de pros pe ri da de que pro vou como pode uma ci da de se li ber tar dode ter mi nis mo ge o grá fi co. A his tó ria re cen te con fir ma essa cons ta ta ção,aliás tão ins tru ti va quan to as crí ti cas le van ta das a seu pa pel po lí ti co eso ci al.

Em ou tu bro de 1917, na que les “dias que aba la ram o mun do”, en cer ra-se o ca pí tu lo da his tó ria rus sa ini ci a do por Pe dro o Gran de. Em fe ve re i ro de 1918, não obs tan te a Paz de Brest-Litovsk, as van guar dasger mâ ni cas apro xi mam-se da ci da de que se cha ma en tão Pe tro grad. Oco lap so te u tô ni co de no vem bro des se mes mo ano di mi nui a ame a çacon tra a pra ça onde Lê nin e Trots ki di ri gem a re sis tên cia e o ter rorverme lho. Em ou tu bro de 1919, Yu de nich, que co man da um exér ci torus so bran co au xi li a do pelo ale mão von der Goltz e pelo he rói da in de -pen dên cia fin lan de sa, ba rão Man ner he im, é de ti do às por tas da ci da de.O go ver no so vié ti co trans fe re-se para Mos cou. Pe tro grad, aban do na da,so fre os hor ro res da re vo lu ção, da guer ra ci vil, do ter ror, da mi sé ria, dafome e das inun da ções. Em 1924, quan do mor re Lê nin, sua po pu la çãopou co ul tra pas sa a ci fra dos qui nhen tos mil. Re ce be en tão, para co me -

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morar o ho mem que di ri gi ra a re vo lu ção con tra tudo que ela sim bo li zava, o nome de Le nin grad. Em 1942/44, so fre o sí tio dos exér ci tos de Hi tlerque, no en tan to, não con se guem im pe dir que, atra vés de um cer coincom ple to, seja a pra ça abas te ci da. Um mi lhão de seus ci da dãos mor rede pe nú ria, fome e bom bar de io de ar ti lha ria. A re sis tên cia da ci da de éain da mais he rói ca do que a que no ta bi li zou Sta lin grad. Qu a ren ta anosde po is, é tam bém so bre ela que so pram com mais for ta le za os ven tos de mu dan ça tra zi dos pela Glas nost de Gor ba chev. O fato que a po pu la çãoda ci da de te nha vo ta do ma çi ça men te no sen ti do de res ta be le cer o ve lhonome de ba tis mo, São Pe ters bur go, é sin to má ti co do que se pas sa, poistal vez ve nha a ca ber-lhe novo pa pel na aber tu ra da Rús sia à Eu ro pa. Em São Pe ters bur go po de rá re nas cer um novo es pí ri to de li ber da de, aber tu -ra glo bal e ecu me nis mo mo der ni za dor que in te gre a Rús sia, fi nal men te,ao Oci den te.

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Pe ter I Pe dro, o Grande

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XWas hing ton, a Ca pi tal Fe de ral

Was hing ton não é cer ta men te a pri me i ra ci da de cons tru í dacom o pro pó si to es pe cí fi co de ser vir de sede ao go ver no de um país.Con tra ri an do as pre ten sões pa trió ti cas de al guns nor te-americanos quelhe re i vin di cam a pri ma zia, es for ça mo-nos no cor rer des te tra ba lho porde mons trar que a pra xe de fun dar ou de mu dar de ca pi tal é, por as simdi zer, tão an ti ga quan to a pró pria his tó ria. Ve ri fi ca mos que mu i tos dosma i o res mo nar cas e es ta dis tas do pas sa do não pres cin di ram de gra varseu nome nos ali cer ces de uma ci da de – o ato sem pre ten do como ob je -ti vo ce le brar al gum acon te ci men to trans cen den te ou as si na lar al gu mapro fun da revo lu ção, cul tu ral ou de na tu re za ge o po lí ti ca, na vida dospovos que con du zi am para no vos des ti nos. O que sin gu la ri za Was hingtonnão é o fato de ter sido cri a da com um fim po lí ti co es pe cí fi co. Não étam pou co de ter sido tra ça da den tro de um pla no ur ba nís ti co ra ci o nal.Não, o que a dis tin gue é sim ples men te a cir cuns tân cia de re pre sen tar opa drão clás si co do Dis tri to Fe de ral, a pri me i ra ci da de mo der na que serviude sede a um tipo novo de go ver no, de for ma re pu bli ca na de mo crá ti ca e cons ti tu i ção fe de ra ti va, cir cuns tân cia que im pu nha à nova me tró po lecer tas fun ções es pe cí fi cas as sim como cer tas li mi ta ções. A cri a ção de

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uma ci da de es tri ta men te ad mi nis tra ti va e po li ti ca men te ne u tra, em áreare la ti va men te afas ta da das gran des con cen tra ções de mo grá fi cas, pas soua cons ti tu ir um ele men to im por tan te de uni fi ca ção, as sim como des cen -tra li za ção. Esta é es sen ci al ao bom fun ci o na men to do re gi me fe de ra ti vocujo prin cí pio bá si co é a de mo cra cia re gi o nal, isto é, a igual da de e au to -no mia das uni da des ter ri to ri a is com po nen tes da na ção. A idéia do mi -nan te de uma ci da de como Was hing ton é, jus ta men te, a de ser umaaglo me ra ção ur ba na eco nô mi ca e de mo gra fi ca men te se cun dá ria, aomes mo tem po que cons ti tu ci o nal men te ne u tra. Essa con di ção de re la ti -va in fe ri o ri da de em po der ma te ri al visa li ber tar o go ver no fe de ral depre o cu pa ções de âm bi to mu ni ci pal ou de in ter fe rên cia por par te de in te -res ses re gi o na is ego ís tas, per mi tin do o de sen vol vi men to na tu ral e li vredas vá ri as re giões, pro vín ci as ou “es ta dos” com po nen tes da União, emtor no de seus res pec ti vos cen tros ur ba nos.

Para bem di zer, esse con ce i to clás si co de ca pi tal de um Esta dofe de ra do nem é mes mo cri a ção ame ri ca na. A an ti gui da de nos ofe re ce oexem plo de Rhodes e, na Ida de Mo der na, já os Pa í ses Ba i xos ha vi amesco lhido Haia pe los mes mos mo ti vos. Was hing ton, po rém, é o exemploclás si co que in flu iu na es co lha e or ga ni za ção de ca pi ta is como Otta waou Pre tó ria, sen do tam bém o pa drão que nor te ou a fun da ção de Can -ber ra. Além dis so, o con ce i to de “Dis tri to Fe de ral”, com ad mi nis tra çãosui ge ne ris, foi ace i to na Amé ri ca La ti na pelo Mé xi co, a Ve ne zu e la, aArgen ti na e o Bra sil ain da que, do pon to de vis ta da re a li da de ge o po lí ti -ca, as res pec ti vas ca pi ta is não se en qua drem – sal vo Bra sí lia – den trodo mo de lo nor te-americano. Nes te caso, o mi me tis mo que nos ca rac te -ri za em ma té ria po lí ti ca nos fez per der de vis ta que uma ca pi tal fe de ralexis te para ser vir o Esta do e não para dele se lo cu ple tar como o fa zemBu e nos Ai res, Mé xi co ou Ca ra cas.

Washington ou “Dis tri to de Co lum bia” (abre vi a do DC.) possuiuma área de se ten ta mi lhas qua dra das e en con tra-se às mar gens dorio Po to mac, en tre os es ta dos de Mary land e Vir gi nia, a uma dis tân ciaaproxi ma da de cen to e cin qüen ta qui lô me tros do mar. Qu an do osprime i ros eu ro pe us atin gi ram o Po to mac, na se gun da me ta de do sé cu lo XVI, a re gião era ha bi ta da por vá ri as tri bos in dí ge nas, a ma i o ria de

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etnia al gon quiana. Vá ri os no mes das re don de zas, Po to mac, Pis ca ta way,Ana cos tia, lem bram ain da a an ti ga pre sen ça do ín dio. Foi um al mi ran teespanhol, Pe dro Me ñen dez, go ver na dor da Fló ri da, quem pri me i ro subiuo rio até as ime di a ções do sí tio de Was hing ton, ba ti zan do-o com onome de Espí ri to San to (1571). Qu a ren ta anos mais tar de o fa bu lo soCa pi tão John Smith ex plo rou a re gião, en trou em con ta to com os ín di os e es cre veu a res pe i to al gu mas pá gi nas in te res san tes. De po is vem Ge or ge Cal vert, pri me i ro Lord Bal ti mo re, que re ce beu do Rei Car los I uma con -ces são de ter ras, a les te do Po to mac, para co lo ni za ção por par te de ca tó -li cos vi ti ma dos pe las lu tas re li gi o sas da Ingla ter ra. Essa “Ca pi tania”rece beu o nome de Mary land, em hon ra da Ra i nha Mary, es po sa ca tó li ca da que le in fe liz mo nar ca. Esta be le ci da em 1634 por “vin te Se nho res demuito boa es tir pe e tre zen tos tra ba lha do res”, co nhe ceu um rá pi dosuces so, não obs tan te a hos ti li da de dos sil ví co las.

Cem anos mais tar de já es ta va a re gião do Po to mac quaseinte i ra men te ocu pa da por gran des la ti fún di os, per ten cen tes às fa mí li asmais aris to crá ti cas do Mary land e da Vir gí nia. A es cra va tu ra ne gra forain tro du zi da, jun ta men te com a cul tu ra do ta ba co. Não exis tia pro pri a -men te es ta be le ci men to ur ba no mas um tipo de re gi me fe u dal: um con -jun to de gran des fa zen das con for tá ve is e mes mo lu xu o sas onde a vidados pro pri e tá ri os, os gen tle men of Vir gi nia, cor ria na abun dân cia e emlaze res re fi na dos. A gen te vi via a ca va lo “e não he si ta va em fa zer cin coou mes mo ma i or nú me ro de lé guas para uma vi si ta so ci al ou jan tar comum vi zi nho”. Em des por tes atlé ti cos, mesa far ta e, às ve zes, a guer racontra os ín di os e os fran ce ses do Ca na dá – nis so se pas sa va a vida dessesse nho res co lo ni a is cuja Casa Gran de era ali men ta da pelo tra ba lho abun -dan te e gra tu i to da Sen za la. Duas ca rac te rís ti cas, no en tan to, dis tin gui am a or ga ni za ção so ci al da Vir gi nia da que la que vi go rou no Bra sil co lo ni al:a mes ti ça gem era pra ti ca men te ine xis ten te e exis tia uma clas se médiacom posta de bran cos po bres para os qua is o ser tão, o back countryalém dos Alleg he ni es, cons ti tu ía uma Ter ra da Pro mis são para onde selança vam os mais aven tu ro sos, à pro cu ra de for tu na e li ber da de. Numsis te ma de la ti fún di os des se tipo ra ras eram as ci da des. Encon tra mosape nas, nes sa se gun da me ta de do sé cu lo XVIII, duas vi las, Ale xan dria eGe or ge town – esta, hoje, um bem con ser va do su búr bio da ca pi tal.

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Entre tan to, ao nor te, cres ci am Nova York, Bos ton, Phi la delp hia e umaor ga ni za ção so ci al di ver sa.

As cir cuns tân ci as e es pe ci al men te a im por tân cia cres cen te daaris to cra cia cul ta e do mi na do ra da Vir gí nia pre des ti na vam o sí tio nacon fluên cia do Po to mac e Ana cos tia. De ou tro modo não se ex pli ca riao fu tu ro da re gião de mau cli ma, cu jos ba i xi os as águas cos tu ma vaminun dar em pe río dos de en chen te e cuja ma i or ele va ção, onde hoje se er -gue o Ca pi tó lio, tem ape nas trin ta me tros aci ma do ní vel do rio. O ter ri -tó rio faz par te da pla ní cie cos te i ra e o sub so lo não ofe re ce base só li dapara as gran des cons tru ções o que cri a ria mais tar de sé ri os pro ble masde en ge nha ria. Em suma, uma zona ala ga di ça, bas tan te afas ta da do marpara go zar das van ta gens da bri sa ma rí ti ma, umi da de ele va da, ven toslân gui dos, pre ci pi ta ção abun dan te e ex tre mos de tem pe ra tu ra, su bin do a qua ren ta e des cen do a me nos de vin te gra us cen tí gra dos aba i xo de zero. Os in ver nos não são lon gos mas o frio pe ne tran te. O ve rão é pior ecom pa ra-se com a ca ní cu la ca ri o ca. A re gião pos sui, no en tan to, gran debe le za na tu ral. Os cam pos on du la dos e mag ni fi ca men te ar bo ri za dos daVir gí nia e Mary land con tam-se en tre os mais pi to res cos dos Esta dosUni dos. Em 1607, po dia o Ca pi tão John Smith as si na lar que “o Céu e aTerra nun ca se pu se ram tão de acor do para cri ar para o ho mem umlu gar tão ha bi tá vel”. O dis tri to é cer ca do de co li nas e, em seu cen tro,cor ta do pelo par que Rock Cre ek. A ar bo ri za ção in ten si va das ave ni dastrans forma ram-no em ce ná rio ver de jan te, pró prio para uma gran decapi tal.

Ge or ge Was hing ton e Tho mas Jef fer son, am bos Vir gi ni a nos,cer ta men te co nhe ci am o lo cal e fre qüen ta vam mu i tas das man sões re -quin ta das às mar gens do Po to mac. Ou tras con si de ra ções en tre tan to, deor dem emi nen te men te po lí ti ca, iam am pa rar a na tu ral pre fe rên cia pelosí tio des ses dois pró-ho mens da in de pen dên cia nor te-ame ri ca na. As tre -ze co lô ni as se ha vi am le van ta do con tra a Mãe-Pá tria bri tâ ni ca. Em 1776, ha vi am pro cla ma do sua in de pen dên cia, no ca lor de uma lon ga e di fí cilluta que só a aju da fran ce sa, en ca be ça da por Ro cham be au e La Fa yet te,aca u te lou. Com pre en den do que sua so bre vi vên cia de pen dia da União,os Esta dos Uni dos – E plu ri bus unum – sen ti am a ca rên cia de um go ver -no fe de ral com sede pró pria. O “Con gres so Con ti nen tal” da jo vem Re -pú bli ca era, a prin cí pio, uma ins ti tu i ção nô ma de. Phi la delp hia, Bal ti mo re,

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Lan cas ter, York, Prin ce ton, Tren ton, Anna po lis e Nova York ha vi am al -ber ga do os le gis la do res e o po der exe cu ti vo nas cen te, em oca siões di ver -sas. Ao des con for to des sa si tu a ção, po rém, ajun ta vam-se in con ve ni en tes mais sé ri os. Em 1783, quan do em Phi la delp hia o Con gres so, re u ni do no his tó ri co Inde pen den ce Hall com de se jo de ali per ma ne cer, foi agre di do por um des ta ca men to de 300 sol da dos amo ti na dos que re cla ma vam sol -do em atra so, nem a po pu la ção lo cal, nem as au to ri da des es ta du a is ou ami lí cia da Pennsylva nia le van ta ram o dedo se quer para so cor rer os le gis -la do res. Alar ma do com a afron ta, o gran de cons ti tu ci o na lis ta Ja mes Ma -di son co men tou que, se a ci da de não es ta va dis pos ta a ga ran tir a se gu -ran ça do Con gres so, me lhor se ria pro cu rar ou tro pou so. Prin ce ton, naNova Jer sey, hoje mais co nhe ci da por sua Uni ver si da de, foi a sede en tão fa vo re ci da mas se re ve lou de ma si a da men te exí gua, dado o aflu xo da po -pu la ção. Ora, a Cons ti tu i ção con sig na va ex pres sa men te, em seu ar ti go1°, § 17, que o Con gres so ti nha o di re i to de “exer cer ju ris di ção ex clu si va,em qual quer caso, so bre o dis tri to que, não ex ce den do dez mi lhas qua -dra das, se pu des se tor nar, por ces são de qual quer Esta do e ace i ta ção porpar te do Con gres so, a sede do go ver no dos Esta dos Uni dos da Amé ri ca”.

A ques tão de ju ris di ção foi as sim de ba ti da e re sol vi da. Tra ta -va-se ago ra de sa ber qual o lo cal es co lhi do, pois na tu ral men te umaquan ti da de de can di da tu ras se apre sen ta vam. Alguém pro pôs Bos tononde “o pri me i ro tiro fora dis pa ra do”; Phi la delp hia, onde “a in de pen -dên cia fora pro cla ma da”; York town “onde fora con quis ta da”. Além dasci da des que já ha vi am al ber ga do o Con gres so, King ston, New port, Wi -ling ton, Re a ding e a ve lha ca pi tal da Virgí nia, Wil li ams burg, dis pu ta vama hon ra... Ain da em Prin ce ton, vá ri as ofer tas fo ram con si de ra das. No -tou-se con tu do, cla ra men te, uma ri va li da de tal, ori un da de di ver gên ci asmu ni ci pa is, es ta du a is e re gi o na is, que al guns pas sa ram a evi tar a ar den teques tão da “ci da de fe de ral” pe los pe ri gos que com por ta va como fon tede fric ção en tre o Nor te e o Sul do país. A 7 de ou tu bro de 1783, oCon gres so de ci diu pro vi den ci ar o le van ta men to de ter ras às mar gens do Po to mac, as qua is ha vi am sido ofe re ci das pe los es ta dos de Mary land eVir gí nia, jun ta men te com um bô nus de 200.000 dó la res caso fos se es co -lhi da a mar gem es quer da, no Mary land. Ao mes mo tem po, or de nou le -van ta men tos no De la wa re, tal vez co gi tan do de cons tru ir duas ci da desfe de ra is, uma ao nor te e ou tra ao sul. No ano se guin te, ten do a sede

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tem po rá ria do go ver no sido trans fe ri da para Nova York, a tese da ca pi -tal per to de Tren ton pa re ceu tri un far, com evi den te re go zi jo nor tis ta.

A ques tão re ves tia-se, no en tan to, de um as pec to de sumagra vi da de e, du ran te sete anos, ia pro vo car de ba tes acer bos, “in si nu an -do-se, como es cre veu um con tem po râ neo, em to das as gran des ques -tões na ci o na is”. De cer to modo, de pen dia a pró pria so bre vi vên cia daUnião de uma so lu ção sá bia do pro ble ma pois os Esta dos con fe de ra dos, jus ta men te nes sa épo ca, pro cu ra vam en con trar uma fór mu la sus ce tí velde anu lar as ten dên ci as cen trí fu gas cu jos omi no sos sin to mas se evi den -ci a vam de modo cres cen te. Re di gi da em Phi la delp hia e ado ta da pelaCons ti tu in te de 1787, era a Car ta Mag na o ins tru men to des ti na do a con -ci li ar os in te res ses di ver gen tes dos Esta dos em fa vor de uma União fe -de ral, lar ga e fe cun da, sen do o dis po si ti vo so bre a sede do go ver no umdos elos es sen ci a is ao su ces so da fór mu la. O Ge ne ral Ge or ge Was hing -ton, da Vir gí nia, ha via sido ele i to Pre si den te da Re pú bli ca e JohnAdams, do Mas sa chu setts, Vi ce-Presidente e Pre si den te do Se na do. Aluta en tre o Sul e o Nor te era sim bo li za da por es ses dois ho mens. O pri -me i ro na tu ral men te fa vo re cia o sí tio do Po to mac, cer ca de suas pro pri e -da des, en quan to o se gun do, nos anos pos te ri o res, qua se fez tri un far aca u sa de Ger man town, na Pensylva nia. Nes sa al tu ra, alar ma dos com aeven tu a li da de da “dis so lu ção de nos sa União em es tá gio ain da in ci pi en -te”, dois gran des es ta dis tas con gre ga ram seus es for ços para en con trarum ca mi nho sal va dor. Ha mil ton, do Nor te, vira der ro ta da por ma i o riain sig ni fi can te pro pos ta sua, no sen ti do de que a União “as su mis se” asdí vi das de guer ra dos Esta dos. Ape lou en tão para Jef fer son. E este ima -gi nou uma tran sa ção ace i tá vel para a qual ob te ve o apo io de dois in flu -en tes con gres sis tas da Vir gí nia.

A re ce i ta foi apro va da num ága pe ser vi do a Ha mil ton, comocon vi da do de hon ra de Jef fer son. As vi an das sa bo ro sas e o su a ve Madeirati ve ram o efe i to de se ja do, con cor dan do os su lis tas em mo di fi car seuvoto no que diz res pe i to à “Lei de as sun ção” das dí vi das de guer ra, emtro ca da pro mes sa de Ha mil ton de an ga ri ar um nú me ro su fi ci en te devotos nor tis tas em fa vor do Po to mac. A 12 de ju lho de 1790, Was hingtonano tou em seu diá rio que re ce be ra duas leis, “uma das qua is es ta be le -cendo as se des tem po rá ria e per ma nen te do go ver no dos Esta dosUnidos”. Logo após as si ná-las, o Pre si den te pas sou a to mar par te ati va

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nos tra ba lhos de lo ca li za ção e de mar ca ção do sí tio que “não ex ce de riadez mi lhas qua dra das”. Qu a se só en tre seus con tem po râ ne os, Ge or geWas hing ton pre via o cres ci men to es pan to so do país que, na épo ca, pos -su ía me nos de cin co mi lhões de ha bi tan tes e um ter ri tó rio re la ti va men te exí guo so bre o li to ral do Atlân ti co. Ele sen tia a ne ces si da de de uma ca -pi tal dig na de tal de sen vol vi men to. Como per fe i to es qui re da Vir gí nia, ele apre ci a va as van ta gens de um sí tio cam pes tre, pró xi mo dos la ti fún di osde sua fa mí lia e lon ge das in fluên ci as ne fas tas das gran des ci da des cosmo -po li tas. Escre ve ra que, se Phi la delp hia, sim ples ca pi tal de um Esta do,pre ci sa va de uma área de seis mi lhas qua dra das, a ca pi tal da União cer ta -men te ne ces si ta ria de ex ten são ma i or.

A “Lei de Re si dên cia” au to ri za va o Pre si den te a no me ar umaCo mis são de três pe ri tos, en car re ga dos de pro ce der aos le van ta men tos,de fi nin do os li mi tes do Dis tri to e pro vi den ci an do quan to à cons tru çãodos edi fí ci os pú bli cos, as sim como ad qui rir as ter ras ne ces sá ri as. O tra -ba lho de ve ria fi car pron to an tes da pri me i ra se gun da-feira de de zem brode 1800. A 24 de fe ve re i ro de 1791, o Pre si den te en vi ou uma Men sa gem ao Con gres so co mu ni can do que, “de po is de ma du ra con si de ra ção dasvan ta gens e des van ta gens dos vá ri os sí ti os, den tro dos li mi tes pres critos”,ha via ins tru í do os Co mis sá ri os no sen ti do de es tu dar a área em tor no de Ge or ge town, no Mary land. A opi nião pú bli ca es ta va fa ti ga da com osdeba tes dos anos an te ri o res e por isso ace i tou as su ges tões do Pre si dente, san ci o nan do a es co lha que, em sua sa be do ria, pa re cia con ci li ar de fi ni ti -va men te os in te res ses di ver gen tes dos dois par ti dos re gi o na is em tor nodos qua is se agru pa vam os tre ze Esta dos fe de ra dos. A 29 de mar ço domes mo ano, o ge ne ral-pre si den te vi si tou o sí tio em que se edi fi ca ria afu tu ra me tró po le à qual fi cou seu nome as so ci a do. Dela foi Was hing ton, li te ral men te, o Fun da dor.

Entre tan to, como ve re mos adi an te, a cir cuns tân cia da ca pi talpro je ta da es tar ao sul do li mi te teó ri co cons ti tu í do pela famosaMason-Dixon line que di vi dia o Sul do Nor te, lon ge de fa vo re cer os Esta -dos su lis tas que meio sé cu lo mais tar de iri am ten tar a “se ces são”, cons ti -tu i ria pa ra do xal men te uma das ga ran ti as mais só li das do êxi to da União,de fen di da pelo Nor te.

Os Co mis sá ri os no me a dos por Was hing ton, Tho mas Johnson,Da ni el Car roll e Da vid Stu art, de mar ca ram o sí tio exa to da aglo me ra ção

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que de ve ria ocu par a dé ci ma par te do “Ter ri tó rio”, mais tar de “Dis tri tode Co lum bia” que, por ato do Con gres so re co nhe ci do, se tor nou o“Con da do de Was hing ton”. Assim nas ceu esse “fi lho úni co da Na ção,a ca pi tal dos Esta dos Uni dos da Amé ri ca”... Nos anos se guintes osComis sá ri os pro vi den ci a ram a de sa pro pri a ção das ter ras e o pla ne ja -men to da ci da de. Mary land e Vir gí nia con cor da ram em con tri bu ir fi nan -ce i ra men te para a cons tru ção dos edi fí ci os pú bli cos, além de ce der suajuris di ção so bre a área de mar ca da. Na fal ta de ou tras ver bas, o Pre si dente, como agen te do Con gres so, ocu pou-se de ne go ci ar com os pro pri e tárioslo ca is a de sa pro pri a ção dos ter re nos. Che gou-se fi nal men te a um acor do segun do o qual o go ver no com pra ria qual quer área que, por ven tu ra,recla mas se para a cons tru ção de edi fí ci os pú bli cos. O res to se ria par -celado em lo tes igua is, a me ta de dos qua is ca be ria à na ção, sen do a ou traentregue ao pú bli co. Os ter re nos re ser va dos para par ques e ruas fo ramde sa pro pri a dos sem com pen sa ção, cláu su la com a qual os pro pri e tá ri oscon cor da ram, le van do em con ta os gran des be ne fí ci os que es pe ra vamob ter com a cons tru ção da ca pi tal so bre suas ter ras. Jef fer son es creveuao Pre si den te: “A aqui si ção de ter ras é re al men te no bre... Cre io que re servasmu i to li be ra is de vem ser fe i tas em fa vor do pú bli co”. No en tan to, astran sa ções, na apa rên cia sá bi as, não evi ta ri am a pra ga da es pe cu la çãoimo bi liá ria que tem, qua se in va ri a vel men te, acom pa nha do o nas ci men todas ci da des go ver na men ta is. As es pe cu la ções e as ne go ci a tas um tan toes cu sas ocor re ram du ran te essa pri me i ra fase. Ho mens do ca li bre deJeffer son não he si ta ram, se gun do cons ta, a par ti ci par de em pre sas sus ten ta -das na va lo ri za ção dos ter re nos. Mas os pro pri e tá ri os e os es peculadoresnão con ta vam com um novo per so na gem, o Ma jor Pi er re Char lesL’Enfant!

∗ ∗ ∗L’Enfant era fran cês. Ain da jo vem, to ma ra-se de en tu si as mo

li be ral, como seu co le ga La Fa yet te, e ofe re ce ra seus ser vi ços às co lô ni as ame ri ca nas que lu ta vam pela in de pen dên cia. Vo lun tá rio no “Exér ci toCon ti nen tal”, pro mo vi do a Ca pi tão e de po is a Ma jor de Enge nha ria,atra í ra a aten ção de Was hing ton gra ças a seus co nhe ci men tos na arte das for ti fi ca ções e a seu tem pe ra men to dis ci pli na dor. Ter mi na da a guer ra ede po is de cur ta vi si ta à Fran ça, es ta be le ce ra-se em Nova York como

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Enge nhe i ro-Arqui te to e ali o Pre si den te o fora pro cu rar, en car re gan do-ode de se nhar, em es ca la mo nu men tal, o Pla no Pi lo to da nova me tró po le.

Was hing ton es cre ve ra a um ami go que a na ção “po de rá edi fi -car uma ci da de a qual, em bo ra não tão gran de quan to Lon dres, seráinfe ri or a pou cas ou tras ci da des da Eu ro pa em mag ni tu de”. E, paraespan to dos con tem po râ ne os, Jef fer son pre via um cres ci men to da po -pu la ção “até cem mil ha bi tan tes, den tro de um sé cu lo”, ou san do mes mo de cla rar, con vic to, que po de ria atin gir a ci fra dos du zen tos mil!

As an te ci pa ções de Jef fer son são in te res san tes se as com pa -rarmos com o fe nô me no se me lhan te que ocor reu em Brasí lia. Nós tambémpla ne ja mos uma nova ca pi tal, em 1956, que de via abri gar meio mi lhãode ha bi tan tes. A ci da de e suas sa té li tes já pos su em hoje três mi lhões. Se,ao Dis tri to de Co lum bia, adi ci o nar mos os nú cle os su bur ba nos que sees ten dem pelo Mary land e a Vir gí nia, a Gran de Was hing ton co bri rá hoje mais do que essa soma. Nin guém, na épo ca, po dia an te ci par o fe nô menoco los sal de ur ba ni za ção que se re gis ta ria no sé cu lo XX, par ti cu lar men tenos pa í ses no vos da Amé ri ca e em ve lhas na ções asiá ti cas.

Gran de aman te de ar qui te tu ra e ad mi ra dor de Pal la dio,Jefferson, que de se nha ra pes so al men te a Uni ver si dade da Virgí nia e suaman são de Mon ti cel lo onde re ve lou ta len to de jar di ne i ro, em pe nhou-setam bém a fun do no pro je to, en ca mi nhan do a L’Enfant as plan tas deKarl sru he, Amster dam, Pa ris, To ri no e ou tras ci da des eu ro péi as.“Como es tão re la ciona das com as no tas que tomei du ran te mi nhasviagens e são im pres cin dí ve is para sua apli ca ção”, es cre via ele ao Ma jor,“peço-lhe to mar com elas todo o cu i da do e res ti tu ir-me quando não maisas ne ces si tar. Estou re al men te fe liz em sa ber que o Pre si den te de i xou em tão boas mãos o pla ne ja men to da cidade e não te nho dú vi das de que será le va do a cabo com sa tis fa ção ge ral”. A obra, com efe i to, tor nou-se aidéia fixa de L’Enfant na qual con su miu to das suas ener gi as.

“Mon si e ur”, es cre via L’Enfant a Ge or ge Was hing ton, “a in -ten ção ma ni fes ta da re cen te men te pelo Con gres so de lan çar as ba ses deuma ci da de des ti na da a tor nar-se a ca pi tal des te vas to im pé rio, ofe re ce, a quem da obra fi car en car re ga do, uma oca sião tão es plên di da de al can çar gló ria e re no me que Vos sa Exce lên cia não de ve rá fi car sur pre en di do semi nha ambi ção e o de se jo de tor nar-me um ci da dão útil ao país me im -pe lem a pe dir-lhe para to mar par te na em pre sa. Ne nhu ma na ção tal vez

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haja tido a sor te de es co lher li vre men te o lo cal onde se er gue ria suacapi tal. E ain da que os me i os de que dis põe o país não lhe pos sam per -mi tir le var mais avan te o pla no traçado, de ve rá ser con ce bi da em es ca la tal que se pos sa fu tu ra men te adap tar aos au men tos e em be le za men tos que ari que za da nação lhe fa cul tar, a qual quer tem po, por mais dis tan te queseja”.

Inspi ra do na tu ral men te, como o de mons tra Elbert Peets, noesque ma de Ver sa il les com suas ave ni das di a go na is, seu gran de eixo cen -tral, sob a for ma de um es pe lho d’água, e seu pon to de vis ta do mi na dor(há mes mo uma re la ção nu mé ri ca pre ci sa en tre as duas obras), L’Enfant con ce beu um pla no gran di o so que, ape sar de mo di fi ca do, cor ri gi do eacres ci do pos te ri or men te, ain da hoje se evi den cia no mapa. Não sepode ria di zer que os en ge nhe i ros ur ba nis tas da épo ca fos sem téc ni cos.L’Enfant con si de ra va-se mais ar tis ta do que pro pri a men te en ge nhe i ro efoi como ar tis ta, le van do em con ta sé cu los de arte eu ro péia, a ex pe riênciade ilus tres an te ces so res ita li a nos e fran ce ses, a tra di ção do Bar ro co e asplan tas qua dri la te ra is, que tra çou seu de se nho, adap ta do aos con tor nos econ fi gu rações ge ra is do ter re no. A base era a ve lha “gre lha” da an ti gui -dade. O de se nho qua dran gu lar obe de cia à te o ria ur ba nís ti ca que a grandema i o ria das ci da des ar ti fi ci a is, não per tur ba das por aci den tes ge o grá ficos,iria mais tar de se guir. Já na Amé ri ca, tan to do nor te quan to do sul (Lima e Bu e nos Ai res, por exem plo), era a fór mu la pre fe ri da, prá ti ca ain da que mo nó to na, efi ci en te ain da que sim plis ta, obe de ci da em Wil li ams burg,Nova York, Phi la delp hia e Nova Orle ans. L’Enfant não se sa tis fa zia,porém, com a uni for mi da de de quar te i rões ab so lu ta mente regu la res epro cu rou en con trar so lu ções rít mi cas que, tal vez, em es ta do embri o ná rio, fos sem ex pres são de con cep ções se me lhan tes às do zo neamen to mo der no. Oque quer que seja, o de se nho não é qua dra do po rém re tan gular, numadis po si ção em blo cos de tama nho va riá vel con for me aos eixos prin ci pa is e trans ver sa is do es que ma. As qua dras ma i o res de vi am ser uti li za das paraos edi fí ci os pú bli cos ao pas so que as me no res se riam reser va dos para as ca sas re si den ci a is. Em se gui da, ar ti cu lan do ain da mais o de se nho, cor toua gre lha por um sis te ma de gran des ave nidas diago na is. Eram “li nhas deco mu ni ca ção di re ta... con ce bi das com o in tuito de li gar os ob je tos maisdis tantes e se pa ra dos com o prin ci pal e de pre ser var, atra vés do con jun to, a re ci procida de de vis ta”. São es sas ave ni das com os no mes dos estados

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ori gi na is da União – en tre as mais fa mo sas Pennsylvania, Con nec ti cut,Massa chu setts (onde se en con tram mu i tas das prin ci pa is Emba i xa das),que dão à ci da de seu en can to e ca rá ter, muito em bo ra os ân gu los as simfor ma dos, às ve zes ab sur da men te agu dos, con fun dam o vi si tan te e di fi -cul tem hoje, enor me men te, o trá fe go au to mo bi lís ti co. Alguns en ten didossu ge rem que a idéia das di a go na is so bre pos tas ao de senho orto gonaltenha sido ins pi ra do pelo pla no de Evelyn para a ci da de de Lon dres.Entre tan to, o cen tro do dis po si ti vo era um triân gu lo isós ce les cuja base,les te-oeste, é cons ti tu í da pelo cha ma do Mall e a al tu ra, su bin do para onor te no eixo da rua 16, é re pre sen ta da pela es pla na da da Casa Bran ca.Na pon ta ori en tal, a co li na do Ca pi tó lio e, li gan do este à Casa Bran ca, adi a go nal que de se nha um dos la dos do triân gu lo é re pre sen ta da pelaPennsylva nia Ave nue. O pon to de en tron camen to da base les te-oestecom a al tu ra nor te-sul, se ria enfei ta do com “a fi gu ra eqües tre de Ge or geWas hington”. Vo ta do em 1783 pelo Con gres so, foi mais tar de subs ti tuídopelo atu al e imen so Obe lis co.

O que, na re a li da de, se de duz des sa con cep ção é a in fluên ciamu i to cla ra do es ti lo bar ro co fran cês, com seu “cul te de l’axe”. L’Enfantde sen vol veu sim ples men te o dis po si ti vo de Ver sa il les, pre ven do para acapi tal ame ri ca na o que também é ca rac te rís ti co de Pa ris, os ronds-pointsou cir cles onde se en con tram as ave ni das di ver gen tes, “pro por ci o na is emmag ni tu de ao nú me ro de ave ni das que con du zem”. Além dis so, valenotar que a im por tân cia do es que ma tri an gu lar fez crer numa se cre tains pi ra ção ma çô ni ca, sa bi do como é o pa pel que desem pe nhou a ma ço -na ria na Inde pen dên cia ame ri ca na e o fato de Ge or ge Was hing ton, elepró prio, ter sido ma çon. A “Gran de Pers pec ti va” do Re nas ci men to, apat te d’oie de três ave ni das que se ir ra di am, a par tir de um pon to fo calocu pa do por um mo nu men to qual quer e em ní vel li ge i ra men te su pe rior ao da vi zi nhan ça, con fi gu ra o ele men to es sen ci al da tra di ção ur ba nís ti caeuro péia, es pe ci al men te do clás si co fran cês. Foi o efe i to pro cu ra do emVer sa il les, o efe i to que Le Nô tre re a li zou em seus jar dins e que atin giu àcul mi nân cia na pers pec ti va dos Champs Elysées. Di zem que Ver sa il les éa ma ni fes ta cão arqui te tô ni ca e pa i sa gís ti ca do Abso lu tis mo mo nár qui co.Do mes mo modo, o Arco do Tri un fo se ria a ex pres são per fe i ta men teló gica do Impe ri a lis mo na po leô ni co. Em Was hing ton, en tre tan to, o efeitovisa en gran de cer a sede do Con gres so, a Casa do povo dos Esta dos

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Uni dos, o Ca pi tó lio. Se ria o em ble ma, como es cre via L’Enfant, “da ma -ne i ra pela qual será aces sí vel em to dos os sen ti dos e em todo o tem po, a to dos os in di ví du os que vi vem sob a guar da da União”. A Co li na doCapi tó lio, Jen kin’s He ights, ma rca va o ver da de i ro cen tro da me tró po lepro je ta da. Ao ex por seu Pla no Pi lo to, L’Enfant decla ra ra: “de po is depro cu ra cu i da do sa de uma si tu ação favo re ci da, ins pi ra do, po de rei as simdi zer, pelo re ce io de uma pri me i ra im pres são pre ju di ci al ao jul ga men to,não pude des co brir ne nhu ma que, mais van ta jo sa men te, aco lhes se osedi fícios do Con gres so, qual pe des tal à es pe ra de um mo nu mento”. Nes separ ti cu lar, o Ca pi tó lio con for ma-se aos mais aca ri ci a dos so nhos do artis ta.

O “Pa lá cio do Pre si den te”, a fu tu ra Casa Bran ca, co lo cada em ou tra ele va ção so bre o eixo nor te-sul, de ve ria go zar do esplên didopano ra ma do cur so do Po to mac, des cen do len ta men te para o mar. Essalo ca li za ção, ain da ou tra vez, era ins pi ra da pelo es que ma de Ver sa il les,isto é, pelo dis po si ti vo cru ci for me das pers pec ti vas do Tri a non e doGrand Ca nal. O que é hoje o Mall, eixo prin ci pal do de se nho, foi de li neado como “uma Gran de Ave ni da, de qua tro cen tos pés de lar gu ra e apro xi -ma da men te uma mi lha de com pri men to, la de a da de jar dins e ter mi na da, do lado das ca sas, por um li ge i ro re le vo”: se ria uma es pé cie de Cor so,um ta pis vert onde a po pu la ção da ca pi tal se con gre ga ria para pas se i os ece ri mô ni as, en tre “ca sas espa ço sas e jar dins, para aco mo dar em ba i xa do reses tran geiros”. A plan ta, em seu con jun to, era “pre pa ra da em es ca la talque per mi ti rá en gran de ci men tos e em be le za men tos por ven tu ra per mitidospelo au men to da ri que za da na ção, em qual quer tem po fu tu ro, por maisremoto que seja”. Hoje em dia, é o Mall la de a do por uma sé rie de grandesmu se us e de mo nu men tos co me mo ra ti vos (Me mo ri als).

Mu i to em bo ra o Pla no de L’Enfant seja ain da, no mapa,clara men te vi sí vel, mu i tas al te ra ções e cor re ções fo ram efe tu a das maistar de e inú me ros por me no res de co ra ti vos de fi ni ti va men te aban do na dos– a pró pria plan ta em cer to mo men to es que ci da. A uni ver sa li za ção does ti lo “clás si co”, na moda ao fi nal do sé cu lo XVIII, foi vi o la da poralguns edi fí ci os aber ran tes como, por exem plo, o Smith so ni an de es ti logó ti co e pe dra ver me lha, con ser va do até hoje por mo ti vos de sen ti men -ta lis mo nos tál gi co. Mas o es pí ri to do ur ba nis ta so bre vi veu na obe diên cia às pers pec ti vas e na tri an gu la ção fun da men tal dos mo nu men tos pos te riores:o Memo ri al de Lin coln, o Me mo ri al de Jef fer son e o pró prio mo nu mento

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a Was hing ton, que está co lo ca do li ge i ra men te afas ta do do pon to deinter ces são dos dois ei xos prin ci pa is da ci da de. L’Enfant havia pre vis to um de sen vol vi men to con si de rá vel a les te do Ca pi tó lio (East Ca pi tol stre et)que não se con cre ti zou de vi do à co nhe ci da ten dên cia das ci da des parase es ten de rem para oes te. Assim tam bém, foi es que ci da a “Gran de Cas -ca ta” pla ne ja da em fren te ao Ca pi tó lio. Seus jar dins os ten tam hoje aestá tua de John Mars hall e o Mo nu men to ao Ge ne ral Grant, ven cedor daGu er ra Ci vil. A Cor te Su pre ma e a Bi bli o te ca do Con gresso, es con di dasde trás do Ca pi tó lio, es tão as si me tri ca men te co lo ca das, in ter rom pen doas di a go na is nor des te e su des te. O Depar ta men to do Te sou ro, fru to deestú pi da te i mo sia de um Pre si den te, pos sui uma ala que cor ta a pers pectivada Pennsylva nia Ave nue, en tre a Casa Bran ca e o Ca pi tó lio. Em vez daponte so bre o Anas cós tia, na East Ca pi tol Ave nue, esse gê ne ro de cons trução mo nu men tal foi re a li za da a oes te, em duas pon tes so bre o Po to mac.

“Esse modo de de sen vol ver todo o dis tri to”, es cre viaL’Enfant em de fe sa de seu Pla no, “de ve rá le gar à pos te ri da de umaidéia gran di o sa do in te res se pa trió ti co que o pro mo veu”. No ím pe toju ve nil de um tem pe ra men to ar den te e ro mân ti co (ti nha en tão trin tae sete anos), pon ti fi ca va o fran cês em res pos ta aos es pe cu la do resimo bi liá ri os, afir man do que “a Ci da de-Capital de ve rá cres cer, ao con -trá rio das ou tras ci da des, gra ças ao ali men to pro por ci o na do pe losedi fí ci os pú bli cos, an tes do que pe los cen tros co mer ci a is”. E con cluía:“a Ci da de Fe de ral, si tu a da van ta jo sa men te sob to dos os pon tos devista, es ten der-se-á como os ra mos de uma ár vo re que pro cu ra a fon tede seu ali men to”! Isso tudo, sem per ce ber que cres cia tam bém a opo sição dos cé ti cos e dos in te res se i ros, como ain da dos pro pri e tá ri os ao contem -pla rem, es tu pe fa tos, essa plan ta que de man da va ave ni das de cem me tros de lar gu ra e ruas de mais de trin ta, com evi den te “des per dí cio de ter renospre ci o sos”! A área to tal pla ne ja da me dia pou co mais de seis mil acres,dos qua is qui nhen tos se ri am com pra dos pelo go ver no para os edi fí ci ospú bli cos e 3.600 gra tu i ta men te cedi dos para a cons tru ção das ar té ri asurba nas, res tan do ape nas pou co me nos de dois mil para o lo te a mentocujo fru to, se gun do con tra to com os pro pri e tá ri os, se ria di vi di do igual -men te en tre eles e o go ver no. De um só gol pe, fi ca vam os la ti fun diáriosredu zi dos à sex ta par te da área ori gi nal! Entre tan to, ape sar de seus pro -tes tos, o fato é que essa fra ção do lo te a men to tra ria, gra ças à va lo ri za ção

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pro vo ca da pelo pró prio cres ci men to ur ba no, lu cros dez ve zes su pe riores ao pre ço ini ci al das ter ras de cul ti vo. De novo aí, as sis ti mos a uma si tuaçãobas tan te se me lhan te à que tem afe ta do nos sa ca pi tal, Bra sí lia. A es pe cu la -ção imo bi liá ria é uma pra ga que só um “Esta do de Di re i to”, for tementedis ci pli na dor, con se gue so bre pu jar.

A luta com os pro pri e tá ri os en ve ne nou-se quan do L’Enfantre cu sou for ne cer-lhes a plan ta da ci da de, a fim de não con tri bu ir paraque “os es pe cu la do res com pras sem os me lho res lo tes, em suas vis tas econ jun tos ar qui te tô ni cos, er guen do ‘fa ve las’ sus cep tí ve is de al te rar per -ma nen te men te a con fi gu ra ção do de se nho”. A ven da dos ter renostermi nou em gran de fra cas so. L’Enfant ar cou com a ira dos pre ju dicados. Logo após, en trou em con fli to com seu as sis ten te, Andrew Elli cott, ecom os três Co mis sá ri os dos qua is le gal men te de pen dia. Entre ou trascoi sas, man dou der ru bar, sem o con sen ti men to do pro pri e tá rio, a mansãoque um dos fa zen de i ros mais in flu en tes da re gião inad ver ti da men teman da ra er guer, in ter rom pen do uma de suas gran di o sas pers pec ti vas,“com re ci pro ci da de de vis ta”. Foi o fim! Os Co mis sá ri os fu ri o sos exi gi -ram do Pre si den te a de mis são do ar tis ta in tran si gen te e Was hing ton, que pro cu ra va pro te gê-lo até os li mi tes da pa ciên cia, não teve ou tro re mé dio se não se sub me ter a im po si ções po lí ti cas de ma i or peso, no me an do Ellicott para com ple tar a obra. O go ver no ofe re ceu a L’Enfant um prê mio de2.500 dó la res e um lote ao lado da Casa Bran ca. Com so ber bo des dém,o ar tis ta re cu sou a ofer ta, re tru can do com um re que ri men to ao Con -gres so em que exi gia o pa ga men to de cer ca de cem mil dó la res, cifraastro nô mi ca para a épo ca, pois a tan to ava li a va seus ser vi ços. De ram-lhe três mil... Empo bre ci do, re vol ta do com as de tur pa ções no Pla no quefora a pa i xão de sua vida, L’Enfant mor reu de si lu di do em 1825. Oi ten ta anos de po is, sua Pá tria ado ti va pro cu rou re pa rar a in jus ti ça e se pul tou-o, com hon ras mi li ta res, no Ce mi té rio Na ci o nal de Arling ton. So bre a lajedo tú mu lo não há me lhor epi tá fio do que a plan ta, gra va da na pe dra,nem me lhor re com pen sa do que o es plên di do pa no ra ma da ci da de quedali se des cor ti na ...

De po is da de mis são de L’Enfant pros se guiu a pas sos ler dos a cons tru ção da ci da de. Não ha via di nhe i ro. O pú bli co mos tra va-seabsoluta men te apá ti co na com pra de lo tes. Até 1798, isto é, cin co anosdepois da ce ri mô nia de co lo ca ção da pe dra fun da men tal do Ca pi tó lio, a

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prin ci pal pre o cu pa ção do go ver no con sis tiu em an ga ri ar fun dos, do quere sul tou cer ta con des cen dên cia com os es pe cu la do res sem es crú pu los.Esses, em pou cos anos, con se gui ram ob ter um tal mo no pó lio da proprie -da de imo bi liá ria que os lo tes atin gi ram pre ços as tro nô mi cos. O es cân da -lo cer ta men te não con tri bu iu para a po pu la ri da de do pro je to! Ge or geWas hing ton mor reu em de zem bro de 1799, sen do subs ti tu í do na Pre si -dên cia por John Adams. No ano se guin te, o Exe cu ti vo lem brou aoLegis la ti vo os ter mos da Lei de Re si dên cia de 1790, que exi gia a trans fe -rên cia da sede do go ver no an tes de de zem bro de 1800. A mu dan ça efe -tu ou-se em ju nho da que le ano. O ato não exi giu, se gun do os da dos exis -ten tes, es for ço con si de rá vel pois todo o fun ci o na lis mo pú bli co fe de ral não ex ce -dia a ci fra mo des ta de 126 pes so as! A ba ga gem des sa mul ti dão veio de Phi -ladelp hia por ter ra e os ar qui vos e bens da na ção che ga ram por via marítima. Pron tos para aco lher os pi o ne i ros já se en con tra vam o edi fí cio do Con -gres so, o Pa lá cio Pre si den ci al e o edi fí cio do Te sou ro, o que de mons traaguda psi co lo gia. Qu an to aos De par ta men tos de Esta do, Gu er ra, Marinhae Cor re i os fo ram tem po ra ri a men te abri ga dos em re si dên ci as par ti cu lares.

O Se cre tá rio da Gu er ra, Wal cott, as sim des cre ve a pri me i raim pres são que lhe de i xou a ci da de: “Há pou cas ca sas em qual quer lu gare a ma i or par te, bar ra cões pe que nos e mi se rá ve is, cri am um con tras tehor ren do com os edi fí ci os pú bli cos. A gen te é po bre e, tan to quan topos so ima gi nar, vi vem como pe i xes, co men do-se uns aos ou tros...Olhan do em qual quer di re ção, não pos so des co brir, numa área qua setão vas ta quan to a da ci da de de Nova York, nem cer cas, nem ta bi ques,nem co i sa al gu ma a não ser for nos de ti jo los e ca ba nas tem po rá ri as deope rá ri os”. A mu lher do Pre si den te que i xa va-se de ter sido obri ga da atrans for mar em se ca dou ro para a rou pa la va da a gran de sala de au diên -ci as da Casa Bran ca, ain da ina ca ba da. As que i xas eram ge ra is. Na fal tade mo ti vos para des con ten ta men to po si ti vo, os vi si tan tes bre je i ros ri di -cu la ri za vam as pro por ções gran di o sas da ci da de, aco i man do L’Enfantde lou co – e mais lou cos ain da os res pon sá ve is pela ace i ta ção de seuspla nos! Mu i tos acon se lha vam a de vo lu ção da área do Dis tri to à Vir gí niae ao Mary land. Alguns pes si mis tas iam além e pro pu nham sim ples men te o aban do no des sa “ex pe riên cia ma lo gra da”, com a ins ta la ção do go vernoem al gu ma ci da de já ple na men te de sen vol vi da. Um ou tro, que per de raas ilu sões, la men ta va “os sin to mas pre ma tu ros de de ca dên cia” e “o

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espe tá cu lo de tan tas ca sas cons tru í das, po rém de sa bi ta das e ca in do emruí nas”. Os pró pri os es pe cu la do res ti nham ido à fa lên cia e suas es pe rançasde for tu na as se me lha vam-se às “ru í nas de Palm yra”. Um mi nis tro daIngla ter ra, em bo ra ami go da ci da de, no ta va seu “ar sel va gem e de so lado”.O Pre si den te Ma di son acha va a ca pi tal “uma so li dão” e o es cri torWashing ton Irving de plo ra va, em 1811, “a par ti da da gran de maré dapo pu la ção ca su al”, es cre ven do: “Como me pa re ce aban do na da estagran de ci da de de ser ta”. E se o cli ma era agra dá vel du ran te a “es ta ção”,to dos con cor dan do em achar a ci da de en can ta do ra na pri ma ve ra, osmias mas da ma le i ta e a umi da de ter rí vel pre ju di ca vam a re pu ta ção dacapi tal. As ruas, es pe ci al men te Pennsylva nia Ave nue, cons ti tu íam umver da de i ro la ma çal in tran si tá vel, agra van do essa im pres são pou co sa dia.

Re ve ses de ou tra na tu re za iam de ter dra ma ti ca men te o pro -gres so da ci da de. Sem mo ti vo pla u sí vel, nem su fi ci en tes pre pa ra ti vos, os Esta dos Uni dos e a Grã-Bretanha em pe nha ram-se, em 1812, numconfli to ar ma do in co e ren te que du rou dois anos. Ve re mos, em ca pí tu lopos te ri or, que essa guer ra in di re ta men te ins pi ra ria a fun da ção de Ottawa,a fu tu ra ca pi tal do Ca na dá. Mas para a ca pi tal ame ri ca na as con se qüên ciasda luta fo ram fu nes tas. Em agos to de 1814, um es qua drão bri tâ ni co efetuouum de sem bar que no li to ral do Mary land, a 60 qui lô me tros da ci da de, e,to man do de sur pre sa os de fen so res, ocu pou Was hing ton du ran te vin te e qua tro ho ras. O tem po foi su fi ci en te para in cen di ar o Ca pi tó lio, a CasaBran ca e ou tros edi fí ci os pú bli cos. O in ci den te pou co ci vi li za do não éedi fi can te para ne nhu ma das par tes en vol vi das e, por esse mo ti vo, ge ral -men te de i xa do em dis cre to es que ci men to. Um in glês cer ta vez ob -servou, jo co sa men te, que seus com pa tri o tas eram acu sa dos de ha verquei ma do Je an ne d’Arc, mas ele não sa bia te rem fe i to o mes mo comWas hing ton!

A par tir de 1817, sob a pre si dên cia de Ja mes Mon roe, a me -tró po le, já re cons tru í da, re to mou seus ares de im por tân cia e a vida ele -gan te que a vi zi nhan ça aris to crá ti ca da Vir gí nia ins pi ra va nos cír cu losmun da nos. A Casa Bran ca, que Jef fer son des cre ve ra como “uma gran de casa de pe dra, su fi ci en te para alo jar dois Impe ra do res, um Papa e oGran de Lama ain da por cima”, era ago ra um pa lá cio luxuoso ondeconver sa va, dan ça va e ce a va a “Cor te da Re pú bli ca”. A aris to cra cia la ti -fun diá ria do Sul tri un fa va no que con si de ra va sua ca pi tal... As co i sas, no

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entan to, co me ça ram a mu dar a par tir da pre si dên cia do Ge ne ral Andrew Jack son. A ele i ção de Jack son cons ti tu iu uma vi tó ria para a de mo cra ciapo pu lis ta ame ri ca na. Jack son era o he rói da úni ca vi tó ria dos ame ri ca nos na Gu er ra de 1812: sal va ra Nova Orléans do as sé dio bri tâ ni co. Ele pas -sa va ago ra a re pre sen tar o sur gi men to dos ele men tos igua li tá ri os que,pou cos anos de po is, Alé xis de Toc que vil le iria des cre ver em sua obra fa -mo sa De la Dé mo cra tie en Amé ri que, já an te ci pan do, ge ni al men te, o ine vi tá -vel con fli to en tre Li ber da de e Igual da de na pró pria subs tân cia do novore gi me de mo crá ti co.

A ci da de cres cia e de to das as par tes da União, que se estendiaver ti gi no sa men te para o oes te, gen te nova vi nha a Was hing ton paraperma nên ci as mais ou me nos pro lon ga das. Em 1840 já era a po pu la çãode 40.000 ha bi tan tes. Em 1860 atin gia 75.000. Vi si tan do-a em 1835,Har ri et Mar ti ne au as sim des cre ve a ca pi tal: “A ci da de não se as se me lhaa qual quer ou tra. Esten de-se por aqui e aco lá, uma pe que na casa ouduas a meia mi lha de dis tân cia de ou tra, de modo que, ao fa zer vi si tas‘na ci da de’, te mos de atra ves sar fos sos e va la dos, an dar ora so bre ca pim, ora so bre cal ça da, e se guir uma pi ca da no cam po para atin gir uma rua...E que so ci e da de! Uma so ci e da de sin gu lar men te com pos ta dos ele mentosos mais dis pa ra ta dos: em ba i xa do res es tran ge i ros, o go ver no ame ri ca no,mem bros do Con gres so des de ho mens como Clay e Webs ter até ti posexó ti cos como Davy Croc ket do Te xas, um ca i pi ra do Mis sou ri ou umir lan dês da Ge or gia; jo vens es pe vi ta das ou es po sas be a tas, fi el men te aolado dos ma ri dos; ju í zes aus te ros, aven tu re i ros des ca ra dos, re pór te res es per tos, ca ci ques in dí ge nas me lan có li cos e da mas tí mi das da No -va-Inglaterra, tre men do na ver ti gem des se tur bi lhão”... A im pres sãopejo ra ti va per sis tia. Escre via um: “Todo o mun do sabe que Was hing tonpos sui um Ca pi tó lio mas é pena que, ao Ca pi tó lio, fal te uma ci da de...Pa re ce até um ge ne ral sem exér ci to ou, me lhor, cer ca do por um ban dode mo le ques, pois tal é a apa rên cia dos ca se bres su jos e des man te la dosque se er guem a seu pés”. Ou tro, mais ilus tre, con si de ra va Was hing ton“um mo nu men to em ho me na gem a um pro je to já fa le ci do” e, acres cen -ta va Char les Dic kens, “suas ave ni das es pa ço sas co me çam no nada e ter -mi nam em par te al gu ma; às suas ruas de mi lha e meia de com pri men tosó fal tam ca sas, cal ça das e ha bi tan tes; seus edi fí ci os pú bli cos só ca re cem de pú bli co para se rem úte is; e os or na men tos de gran di o sas ar té ri as aos

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qua is fal tam ape nas as gran di o sas ar té ri as que de vem or na men tar.Dir-se-ia que, ter mi na da a es ta ção, as ca sas tam bém se fo ram, com seusdo nos!”.

A ci da de cres cia en tre os an da i mes, na lama e no mor ma ço.Fra cas sa ra o pro je to gran di o so do ca nal que de via trans for má-la emgran de cen tro mer can til mas, em com pen sa ção, com ple ta da em 1835 eli gan do-a a Bal ti mo re, a pri me i ra es tra da de fer ro pre nun ci a va as ma ra -vi lhas da re vo lu ção in dus tri al. Entre tan to, ou tros sin to mas, de um “con -fli to ir re pri mí vel”, amon to a vam nu vens ne gras no ho ri zon te.

∗ ∗ ∗A di ver gên cia en tre o Sul e o Nor te, de cuja so lu ção Was hington

fora a ga ran tia após a in de pen dên cia, en ve ne na va-se ago ra sob o ím pe to do mo vi men to abo li ci o nis ta. A trá gi ca luta fra tri ci da apro xi ma va-se alar gos pas sos. Eram duas es tru tu ras so ci a is, dois ti pos de ci vi li za ção,duas eco no mi as, duas tra di ções po lí ti cas opon do-se den tro da mes mana ção. O fos so ca va do em tor no do pro ble ma da es cra vi dão afri canapare cia cor tar a ca pi tal pelo meio. Was hing ton, me tró po le da União mas ci da de do Sul, so fria em suas en tra nhas, pois a ma i o ria da po pu la ção era de sim pa ti as su lis tas. Ain da as sim, a quin ta par te era com pos ta denegros e, ao mes mo tem po do que um dos mais im por tan tes mer ca dosde es cra vos, era tam bém uma “es ta ção” im pres cin dí vel no trá fi co se cretode pre tos fo ra gi dos. O abo li ci o nis ta John Ran dolph gri ta va: “Cha maiesta a ter ra da li ber da de e, no en tan to, todo o dia que pas sa tes te mu nhaco i sas que des gos ta ri am e hor ro ri za ri am os des po tis mos da Eu ro pa”.Motins e atos ter ro ris tas man ti nham a po pu la ção em es ta do de cons tanteso bres sal to. Os es cra va gis tas re cor ri am à vi o lên cia mas, si mul ta ne a mente,o fa ná ti co John Brown, ver da de i ro can ga ce i ro abo li ci o nista, desa fi a va oSul em seu pró prio ter ri tó rio. A sor te de Was hing ton de pen dia do re sul tado da luta. Em abril de 1861, cer ca da por dois Esta dos su lis tas em re be lião, a ca pi tal es ta va à mer cê de um gol pe de sur pre sa; mas os vir gi ni a nos emary lan de ses he si ta ram an tes de se de cla ra rem pela Con fe de ra ção, con -ce den do um tem po pre ci o so ao re cém-empossado Pre si den te Lin colnpara mo bi li zar a mi lí cia e cha mar às pres sas, da Pennsylva nia e de NovaYork, al guns dos re gi men tos que o Nor te já estava mo bi li zan do. Con -cen tra das a oito qui lô me tros ao sul da ca pi tal, em Ale xan dria, hoje um

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su búr bio, as tro pas da Vir gí nia não sou be ram apro ve i tar a oca sião es tu -pen da que se lhes apre sen ta va e, por que de Rich mond es pe ra vam ar ti -lha ria, per de ram tal vez o úni co en se jo de vi tó ria que ja ma is teve o Suldu ran te toda a Gu er ra Ci vil. Qu an do o gri to de “Para Was hing ton!”eco ou nos Esta dos re bel des, já era tar de para mu dar a sor te da con fla -gra ção, de ci di da des de o prin cí pio pela es ma ga dora supe ri o ri da de ma te -ri al do Nor te.

É aí jus ta men te que re si de a pro va da sa be do ria dos Pa tri ar cas da Inde pen dên cia ame ri ca na. Ao es co lhe rem o Po to mac para sede dogo ver no fe de ral, ga ran ti ram, sem o sa ber, a vi tó ria e in te gri da de fi nal daUnião. Du ran te os anos trá gi cos da Gu er ra de Se ces são, a ca pi tal com -por tou-se como ver da de i ro Qu ar tel-General dos exér ci tos fe de rais,próxi mo da pró pria fren te de com ba te. Lin coln de se ja va dar a im pres são da per ma nên cia e so li dez da União, não de i xan do nem que se in ter rom -pesse os tra ba lhos de cons tru ção do enor me Ca pi tó lio – o edi fí cio atu al– cuja cú pu la ina ca ba da se er guia no cen tro da ci da de. Was hing ton DCfoi uma ca pi tal de guer ra, foi um pos to de co man do, o co ra ção do es forçobélico nor tis ta. O gê nio mi li tar de Ro bert Lee, o co man dan te su lis ta,bem com pre en deu a im por tân cia que, para o ini mi go, cons ti tu ía a pos seda ca pi tal. Toda sua es tra té gia vi sou con quis tar ou, pelo me nos, iso lar apra ça. Por que fo ram bal da das suas ten ta ti vas, o Nor te ga nhou tem popara mo bi li zar re cur sos ma i o res em ho mens e em di nhe i ro, fa zendofinal men te agir a su pe ri o ri da de para, em Gettysburg e ou tras ba ta lhas,con ter, se pa rar e, fi nal men te, ani qui lar o Sul. A im por tân cia ge o po lí ti cada po si ção de Was hing ton, va ga men te pres sen ti da pe los Pais Fun da doresdos Esta dos Uni dos, en con tra va as sim, oi ten ta anos de po is, im pres si o -nan te con fir ma ção na es tra té gia da guer ra ci vil.

A luta ter mi nou. Lin coln foi as sas si na do. A re cons truçãoseguiu seu cur so no Sul, pros tra do pela der ro ta e pela ru í na eco nô mi ca.Foi uma épo ca de in ten so tra ba lho e pro fun da cri se mo ral. Escre ve ClaudeBo wers: “Nun ca os ho mens pú bli cos ame ri ca nos, em po si ções de res -pon sa bi li da de e di ri gin do os des ti nos da na ção, se re ve la ram tão bru ta is,hi pó cri tas e cor rup tos”. Mas Was hing ton, que du ran te e após os anos de guer ra, ha via na tu ral men te ca í do num es ta do de plo rá vel de su je i ra edesle i xo, ia pas sar por um pe río do de gran de pro gres so, a par tir de1871, gra ças à obra de Ale xan dre Shep herd. O Con gres so ins ti tu í ra uma

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nova for ma de go ver no no Dis tri to Fe de ral de Co lum bia, com umGover na dor, um De par ta men to de Obras Pú bli cas e um Con selho legis -la ti vo de onze mem bros – to dos de no me a ção do Pre si den te. Amigo dodi re tor do Was hing ton Star, jor nal de gran de in fluên cia, e go zan do dacon fi an ça do Pre si den te Grant, Shep herd ad vo ga ra um pla no de ex ten sa mo der ni za ção, pro pon do me di das con cre tas para le vá-lo a efe i to. No -me a do Di re tor do De par ta men to de Obras Pú bli cas e con se guindoobter os fun dos ne ces sá ri os, “agar ran do a opor tu ni da de que ou tros nãoha vi am des co ber to”, Shep herd em pe nhou-se, aber ta e co ra jo sa men te, ecom aban do no di ta to ri al, na obra de dar iní cio ao tra ba lho, tan to tem poes que ci do, de tor nar a ci da de o que fora so nha da pelo seu Fun da dor.Sem con si de ra ção para com os in te res ses ego ís tas e a opo si ção dos avaros,exe cu tou uma ta re fa que, nos re sul ta dos e nos mé to dos em pre ga dos, seas se me lha à do Ba rão Ge or ge Ha uss mann em Pa ris. Como Ha uss mann, foi tam bém o ho mem mais odi a do de sua ge ra ção. Não he si tou emenfren tar a im po pu la ri da de, mas to dos re co nhe cem hoje seu pa pel decon ti nu a dor de L’Enfant. Lem bra tam bém nos so Pe re i ra Pas sos. Maspor que, em 1874, os Esta dos Uni dos so fre ram uma gra ve cri se fi nan ceirae por que, no me a do Go ver na dor da ci da de, do bra ra sua dí vi da além dolimi te le gal de dez mi lhões de dó la res, foi Shep herd sub me ti do a umain ves ti ga ção ve xa tó ria e fi nal men te de mi ti do. Vale acres cen tar, a tí tu lode cu ri o si da de, que du ran te um lon go pe río do as pes so as do mi ci li a dasno Dis tri to não go za ram do di re i to de voto, li mi ta ção an ti-democráticaque se ex pli ca va, na épo ca, pelo de se jo de não es ten der tal pri vi lé gio deci da da nia à nu me ro sa po pu la ção ne gra ali re si den te. Hoje, o pre fe i to deWas hing ton é ele i to e, dada a com po si ção ét ni ca do Dis tri to, é ge ral -men te um afro-americano.

Em 1880 o nú me ro de ha bi tan tes atin gia 180.000 e a ci da decres cia ra pi da men te. A aten ção do pú bli co es ta va, no en tan to, con cen -tra da na fan tás ti ca ex pan são ter ri to ri al, eco nô mi ca e téc ni ca do país,pou co se pre o cu pan do com pro ble mas ur ba nís ti cos. A me tró po le alar -ga va-se na tu ral men te, sem le var em con ta qual quer pla ne ja men to ra cional.O es que ma de L’Enfant e as vas tas ave ni das di a go na is fo ram sendoprolon ga das, na pe ri fe ria bas tan te on du la da da ca pi tal, sem aten der àslinhas de con tor no, erro mu i to co mum do ur ba nis mo pre gui ço so emuma de mo cra cia onde mu dam cons tan te men te os go ver nan tes. Urgia

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novo pla ne ja men to pois a ca pi tal não po dia ser de i xa da em tal es ta do de aban do no. Em 1887, o Pla no da ci da de no tra ça do ori gi nal de L’Enfant, du ran te mu i tos anos es que ci do, foi re des co ber to, ca u san do gran de sen -sação. Ve ri fi cou-se que, em bo ra fre qüen te men te vi o la da em con se qüênciada mi o pia dos le gis la do res, sua es tru tu ra bá si ca ain da so bre vi via.

As co me mo ra ções do Cen te ná rio da fun da ção da ci da de con -tri bu í ram, jun ta men te com uma con fe rên cia do Insti tu to Ame ri ca no deArqui te tos que achou pés si mas as con di ções es té ti cas da ci da de, paraexi gir uma re no va ção do Pla no Di re tor da ca pi tal. Isso des per tou o in te -res se do pú bli co in te li gen te e, nes sas cir cuns tân ci as, re a li zan do-se aExpo si ção de Chi ca go de 1893 que cons ti tui um mar co im por tan te nahis tó ria da ar qui te tu ra e do ur ba nis mo ame ri ca nos, o ide al da City Be a u tifulde Da ni el Bur nham, com bi na do com a con cep ção gran di lo qüen te do“Pá tio de Hon ra” da que la ex po si ção, ins pi ra ram o Se na dor Ja mesMacMil lan, Pre si den te da Co mis são do Dis tri to, a pa tro ci nar uma re so lução ten den te a cri ar um Co mi tê de téc ni cos, en car re ga dos de ela bo rar “planospara o de sen vol vi men to e me lho ra men to do sis te ma de par ques doDistri to de Co lum bia”. Apro va da a idéia, o Co mi tê ape lou, além de umes cul tor, para os ser vi ços do pró prio Da ni el Bur nham. Ou tro ar qui te toilus tre, Char les Mac Kim, e um pa i sa gis ta, Fre de rick L. Olmsted, jun ta -ram-se ao gru po. Bur nham, cha ma do por Le wis Mum ford “um dosmaio res ex po en tes do ur ba nis mo im pe ri a lis ta”, ia de i xar sua mar ca noas pec to mo nu men tal da ci da de. Olmsted, fa mo so pelo seu de se nho doCen tral Park de Nova York, foi um dos pri me i ros ar tis tas que con ce beua idéia do “sis te ma de par ques” numa ci da de mo der na e, como tal, étam bém pre cur sor da “ci da de-jardim”.

O Pre si den te Wil li am Ho ward Taft afir ma ra que a capital, pla -ne ja da por Was hing ton, fora in fi ni ta men te ma i or, em pro por ção aosrecur sos da na ção na épo ca da Inde pen dên cia, do que a ci da de abra ça da por to dos os pla nos en tão pos tos em prá ti ca, em re la ção aos re cur soscres cen tes do país na que la data. O re sul ta do fi nal do de sen vol vi men tourba nís ti co e ar qui te tô ni co, sob a pre si dên cia de Taft, não é sem gran de za e ver da de i ra be le za, não obs tan te as crí ti cas re cen tes ao es pí ri to que ori en toua Co mis são, es pí ri to que obe de ce à tra di ção clás si ca da Éco le des Beaux Artsde Pa ris e da Fe i ra Mun di al de Chi ca go. Dois dos pos tu la dos da Co missãoeram “es ti lo clás si co” e ga ba ri to uni for me. Des de en tão, foi uma or gia

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de már mo re, o tri un fo ab so lu to do cal cá rio bran co da Vir gí nia! Mes monos edi fí ci os mo der nos, já in flu en ci a dos pe las bri sas re fres can tes daarqui te tu ra con tem po râ nea, como o Fe de ral Re ser ve – a tra di ção tem sidorespe i ta da, man ten do uma har mo nia de con jun to que lem bra Pa ris e criando um efe i to mo nu men tal qua se es ma ga dor. Sem pre obe di en te aos cânonesdas três or dens e apre sen tan do a co lu na em to das as suas pos síveisaplica ções, é mais do que a Gré cia, é Roma ou, por outra, a nos sa idéiaho di er na do que fora a Roma dos Cé sa res, que Was hing ton pro curarepro du zir. A im pres são de con junto deixa pou ca mar gem às ex ce ções,em ge ral hor ro ro sas, de neo gó ti co (por exem plo, a Smith so ni an Insti -tution), de bi zan ti no e de bar ro co. Como tam bém aba fa as ten ta ti vas tí -mi das do moder nis mo re pre sen ta do por Sa a ri nen e Frank Lloyd Wright. A East Wing da Ga le ria Na ci o nal (de Arte) é o mais bri lhan te ex po en teda ar qui te tu ra mo der na. Seu au tor, o arqui te to de ori gem chi ne sa I.M.Pei, foi tam bém quem con ce beu a re no va ção do Lou vre, em Pa ris, coma famosa e po lê mi ca pi râ mi de de vi dro no es pa ço do Car roussel.

Uma co i sa afi gu ra-se-nos in con tes tá vel: a ar qui te tu ra é in flu -en ci a da pelo es pí ri to dos tem pos. Was hing ton foi fun da da ao fi nal dope río do bar ro co e prin cí pi os do ne o clas si cis mo do “Style Empi re”. O es -pí ri to que ori en tou o seu pla ne ja men to foi o do sé cu lo XVIII, o mes moque pre si diu à re da ção da Cons ti tu i ção ame ri ca na, o de Des car tes e Mon -tes qui eu, de Bach e Kant, o ide al do Ra ci o na lis mo. Nes se sen ti do, ain daque nos pos sa pa re cer dé mo dé, o es ti lo de Was hing ton é apro pri a do paraa ca pi tal de uma gran de po tên cia que, em seu tra ça do, re fle te o sis te mago ver na men tal do país e uma Cons ti tu i ção de cuja vi ta li da de é, afi nal de con tas, di fí cil du vi dar. L’Enfant e os ar qui te tos do con jun to ad mi nis tra -ti vo do Mall obe de ce ram ao mes mo sis te ma abs tra to, le ga lis ta, ra ci o na lis ta,de pe sos e con tra pe sos e equi lí brio de po de res que go ver na a vida po lí -ti ca ame ri ca na.

E não de ve mos tam bém es que cer o ro man tis mo de prin cí piodo sé cu lo XIX, con tra pon to, se qüên cia ló gi ca e si mi lar men te in flu en te do mo vi men to an te ri or. Nes sa épo ca, quan do Winc kel mann e os po e tas daEu ro pa es ta vam vul ga ri zan do a pa i xão pela Gré cia e por Roma, criou-seuma vi são ar ti fi ci al do clas si cis mo. Por ou tro lado, os homens quefizeram a re vo lu ção ame ri ca na e a re vo lu ção fran ce sa con si de ra vam sóhaver a de mo cra cia exis ti do an te ri or men te em Roma e na Gré cia. Cabiam,

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portan to, as for mas ex ter nas da an ti gui da de clás si ca como as úni cas dignasde ves tir apro pri a da men te as no vas ins ti tu i ções re pu bli ca nas. O ra ci o cínioera cu ri o so. Na mes ma or dem de idéi as, sal vo que, em vez de Sólon,Péri cles ou Sci pião, os he róis se ri am Ale xan dre, Cé sar e Au gus to, ia-sejus ti fi car o ne o clas si cis mo de Na po leão, do Tzar Ale xan dre da Rús sia,dos im pe ri a lis tas bri tâ ni cos na Índia e dos pro gres sis tas yan ke es, in clusive,com os fron tões gre gos das man sões da Vir gí nia e dos ban cos de WallStre et. Era, em ou tras pa la vras, “o ur ba nis mo im pe ri a lis ta” a que serefere Mum ford... Ora, o ra ci o na lis mo e o ro man tis mo fo ram in ca pa zesde cri ar um es ti lo au tên ti co nas ar tes plás ti cas e, na re a li da de, ma rca ramo prin cí pio da de ca dên cia des sas ar tes a qual se acen tua no sé cu lo XIX.As ru í nas de um tem plo dó ri co, como a si lhu e ta de uma ca te dral gó ti caquan do a emo ção era di fe ren te, iam des per tar uma sen sa ção de li ci o sa esen ti men tal, cri an do uma “moda” ou um gos to que San ta ya na de fi ni riacomo “sen ti men ta li da de no már mo re”. Em úl ti ma aná li se, o jul ga men to que se pode fa zer so bre a ade qua ção do es ti lo de Was hing ton de pen dede uma con vic ção po lí ti ca ou mes mo de uma con cep ção do mun do. Nabase au tên ti ca e vi tal do hu ma nis mo re nas cen tis ta e do ra ci o na lismoenci clo pé di co, nas ilu sões es ti lís ti cas do fre né ti co di na mis mo nor -te-americano à pro cu ra de an te ce den tes, as sim como na sen ti men ta li dadear ti fi ci al do ro man tis mo de Rous se au que con tri bu i ria para re vi ver oestilo “gó ti co” tão do gos to de in gle ses e ca na den ses, com seu pos tu ladode igual da de e li ber da de in di vi du al, e sua cren ça na bon da de ina ta doho mem, tão funda men tal men te americanos – a ca pi tal dos Esta dos Unidos en con trou o es ti lo que lhe con vém.

No fun do, com to dos os seus pos sí ve is de fe i tos de clima,urba nis mo ou es ti lo ar qui te tô ni co, Was hing ton é uma ci da de lin da eagra dá vel, uma das mais in te res san tes e apra zí ve is da Amé ri ca do Nor te. Não obs tan te sua po pu la ção já ul tra pas sar a casa de três ou qua tro mi -lhões (in clu in do as ci da des sa té li tes na Vir gí nia e no Mary land) e dereve lar pre ten sões, de ri va das da im por tân cia cres cen te do país, de vir aser uma es pé cie de Ca pi tal do Mun do, guar da ain da as ca rac te rís ti cassim pá ti cas de ci da de zi nha de pro vín cia, a small town onde se en con tra oque há de me lhor e mais au tên ti co na vida dos Esta dos Uni dos. Mu i tosacu sam-na de ser me tro po li ta na sem ser cos mo po li ta. De ser uma “ca pi -tal do mun do” sem ser mun da na; pro vin ci a na na au sên cia de ver da de i ra

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cul tu ra, e de con sa grar-se as si du a men te à po li ti ca gem sem re ve lar in te -res se pe las gran des idéi as da fi lo so fia po lí ti ca, aque las que de ci dem odes ti no das na ções. E de pos su ir es plên di dos mu se us sem ali men tarqual quer vida ar tís ti ca; de ca re cer de bons res ta u ran tes, te a tro ou música;de não pos su ir ne nhu ma uni ver si da de de pri me i ro pla no e, em suma, deig no rar o que é uma at mos fe ra ele va da de pen sa men to e de arte. Comosede do go ver no dos Esta dos Uni dos aco lhe um cor po di plo má ti comais vas to do que qual quer ou tra ca pi tal do mun do. Só a Emba i xa dabri tâ ni ca pos sui um pes so al mais nu me ro so do que todo o go vernofede ral quan do se trans fe riu para a re cém-fundada Was hing ton, na pri -me i ra pre si dên cia. Re ce be tam bém um ma i or nú me ro de vi si tan tes ilus -tres, des de pre si den tes la ti no-ame ri ca nos e che fes asiá ti cos, a reis e pri -me i ro-ministros eu ro pe us. Seu pro vin ci a nis mo no en tan to im pres si o nae, às ve zes, ir ri ta. A ci da de de nun cia, a cada pas so, a in ca pa ci da de psi co -ló gi ca do ame ri ca no de com pre en der o es tran ge i ro e con ven cer-se desua imen sa res pon sa bi li da de no mun do atu al. Mes mo a vida so ci al lo cal, com todo o bri lho fa cul ta do pela pre sen ça di plo má ti ca, é rela ti va men teapa ga da, ca re cen do de su ti le za e so fis ti ca ção. “Ci da de da con versa ção”,como as si na la va Henry Ja mes, “fa lan do mu i to de si mesma e pou co dequal quer ou tra co i sa”, é a meca dos aven tu re i ros po lí ti cos, dos lobb yistsou “ca va do res” à cata de fa vo res, dos can di da tos às car reiras ofi ci a is, dosco men ta ris tas e re pór te res po lí ti cos, dos in ven to res e in dus tri a is queam bi ci o nam con tra tos de for ne ci men to ao go ver no, como é também odes can so dos fun ci o ná ri os apo sen ta dos e mi li ta res re formados. É cer ta -men te a ma i or ci da de go ver na men tal do mun do ou, como di ria Val la ux,a “ca pi tal ar ti fi ci al por ex ce lên cia”, com to dos os seus de fe i tos e van ta -gens. Cres ceu com o cres ci men to ple tó ri co do Esta do ame ri cano. Expan -diu-se so bre tu do du ran te a ad mi nis tra ção de Frank lin Ro o se velt e a Se -gun da Gu er ra Mun di al, quan do to mou a si inú me ras fun ções no vas,mo bi li zan do téc ni cos, eco no mis tas, so ció lo gos, di re to res exe cu ti vos ema na gers em nú me ro es pan to so. É a ci da de cuja prin ci pal in dús tria é ogo ver no, sen do a se gun da, o tu ris mo. Como tal, veio a cons ti tu ir ummo de lo não só de inú me ras ca pi ta is es ta du a is ame ri ca nas mas de mu i tas ou tras es tran ge i ras.

Como ci da de que cum pre uma fun ção bem de ter mi na da –uma fun ção a que bem se sub me teu nos du zen tos anos de sua his tó ria;

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uma ci da de que foi cons tru í da com um ob je ti vo pre ci so e den tro de umpla no pre de ter mi na do, Was hing ton pos sui uma dis tin ção e mes mo umadig ni da de evi den te, que nin guém lhe po de rá ne gar. É por isso que setor nou um dos mo de los que pro cu ra mos emu lar, não tal vez no que dizres pe i to ao es ti lo ar qui te tô ni co, mas no ur ba nis mo como ex pres são ge o -po lí ti ca. Na cons tru ção de Bra sí lia ti ve mos, so bre os ame ri ca nos, a van -ta gem de um ter ri tó rio já uni fi ca do, se nhor de suas fron te i ras de fi ni ti vas. A nos so dis por, nos va le mos de sua ex pe riên cia, as sim como da ex pe -riên cia de mu i tos ou tros po vos que tam bém pro cu ra ram re a li zar, na es -fe ra das ci da des go ver na men ta is, sua Idéia Do mi nan te ou o im pe ra ti voge o po lí ti co fe de ral, de união e des cen tra li za ção. Ti ve mos tam bém apos si bi li da de de apro ve i tar to dos os pro gres sos da ciên cia e da téc ni camo der nas, com os qua is L’Enfant nun ca po de ria ha ver so nha do. Econs tru í mos a nos sa me tró po le do pla nal to cen tral quan do um novo es ti loar qui te tô ni co – que cons ti tui a ex pres são plás ti ca pri mor di al da ci vi li za çãouni ver sa lis ta do fu tu ro – bro ta va em nos so solo com ad mi rá vel pu jan çae ori gi na li da de. Que nos sos go ver nan tes te nham a vi são de um Was -hing ton, um Jef fer son, um Ma di son ou um Lin coln, eis tudo quan topre ci sa mos es pe rar em Bra sí lia!

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Ge or ge Was hing ton como Pre si den te

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Pi er re Char les L’Enfant, por Leon Cha te la in. (Por cor te sia da Bi bli o te ca do Con gres so dos Esta dos Uni dos da Amé ri ca, Was hing ton, DC)

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Was hin gton – Plan ta ori gi nal de Was hing ton, con for me de se nho gra va do no tú mu lo de Pi er re Char les L’Enfant – (Foto do Au tor)

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O Ca pi tó lio em cons tu ção em ple na guer ra ci vil

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XIOtta wa

Situada na con fluên cia de três rios, num dos sí ti os mais pi to rescosdo país, a ca pi tal do Ca na dá deve sua im por tân cia à po si ção ex cep cionalque ocu pa en tre as pro vín ci as de Ontá rio e Qu e bec, cen tros res pec ti va -men te das cul tu ras in gle sa e fran ce sa. Ci da de de ori gem mo des ta, foraou tro ra cha ma da “uma al de ia su bár ti ca, con ver ti da em are na de lu taspolí ti cas por man da do real”. Mas já em prin cí pi os do sé cu lo XIX,seu cres ci men to na tu ral e po si ção ge o grá fi ca, qua li fi ca da de “mag ní fi -ca”, jus ti fi ca vam-lhe o ape li do de fu tu ra Edin bur go do con ti nen te nor -te-americano.

O lo cal fora des co ber to pelo gran de ex plo ra dor fran cês Sa -mu el de Cham pla in que, em 1613, por ali pas sou à pro cu ra do ser tão ca -na den se. Na ve ga va ele o “Gran de Rio” que os ín di os cha ma vam Ki che -sip pi e che ga ra à con fluên cia do Ga ti ne au e do Ri de au oito dias de po isde sair de Mon tre al, fun da da de pas sa gem. Foi Cham pla in que ba ti zou o Ri de au ao com pa rar a es pu ma de sua que da so bre o Ki che sip pi a uma“cor ti na” de água. Bas tan te co nhe ci do dos ín di os que, pro va vel men tedes de tem pos re mo tos, uti li za vam para por te esse ca mi nho a fim decon tor nar o rá pi do das Cha u diè res, era ter ra dos Algon quins. Mas ospri me i ros ex plo ra do res cha ma ram o rio pelo nome da tri bo que na ve ga va

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suas águas, os Uta u aks ou Ou a ta ou a is, de onde a pa la vra Otta wa que ain da hoje os fran co-ca na den ses pro nun ci am “Ota ué” – pa la vra cuja eti mo lo gia,ada we, sig ni fi ca “co mer ci ar”. Ou tros ex plo ra do res e mer ca do res se gui ramos pas sos de Cham pla in: Du luth, La Mot he-Ca dil lac, Fro bis her, Ale xan derMac ken zie e Lord Sel kirk. A re gião tor nou-se co nhe ci da gra ças aos ca ça -do res de pe les e os cha ma dos “vo ya ge urs” que su bi am a gran de via de pe -ne tra ção flu vi al em de man da do oes te lon gín quo ca na den se. Nes se prin -cí pio de sua his tó ria foi o rio en san güen ta do pe las guer ras en tre Algon -quins, Iro quo is e res pec ti vos ali a dos bran cos.

Esco ou-se um sé cu lo e a vas ta re gião que é hoje o Ca na dá foife roz men te dis pu ta da por fran ce ses e in gle ses, en quan to Vol ta i re ob ser -va va: “On se bat pour quel ques ar pents de ne i ge”, re ve lan do a in com pre en sãoto tal da opi nião pú bli ca fran ce sa pelo fu tu ro da ex pan são no além-mar.Na ba ta lha de Qu e bec (1759) foi de ci di da a sor te do con ti nen te nor -te-americano em fa vor da so be ra nia an glo-saxônica, mor ren do no com -ba te os dois ad ver sá ri os, o mar quês de Mont calm e Wol fe. Mas du ran tea luta me mo rá vel a re gião dos Ou a ta ou a is guar dou o si lên cio opres si vode suas flo res tas vir gens. Uma ge ra ção ape nas e o so pro da li ber da de ia,pela for ça das ar mas, aba lar o do mí nio bri tâ ni co. Tre ze co lô ni as mais ao sul pro cla ma ram sua in de pen dên cia e con fe de ra ram-se para de fen dê-la.No vale do Gran de Rio al guns des ta ca men tos de tro pas in gle sas, 65.000 an ti gos sú di tos do Rei de Fran ça, os co lo nos de ori gem bri tâ ni ca que seman ti nham le a is à Co roa e as tri bos de ín di os ami gos con se gui rampreservar para a Ingla ter ra as vas tas ex ten sões do Ca na dá. O país conser va,até hoje, essa fe i ção es sen ci al de le al da de ao ve lho mun do e à mãe-pátria bri tâ ni ca que o dis tin gue de seu co los sal vi zi nho nor te-americano. Foium ame ri ca no, Phi le mon Wright, o pri me i ro que, ao fin dar o sé cu loXVIII, su biu o rio Otta wa e pro pôs a uti li za ção dos re cur sos da re giãopara uma in dús tria de ma de i ra sus cep tí vel de jus ti fi car a co lo ni za ção.Wright com prou por 240 dó la res o sí tio em que se er gue hoje a ca pi tal e de no mi nou o es ta be le ci men to “Co lum bia Vil la ge”. O po vo a do de sen -vol veu-se ra pi da men te gra ças ao co mér cio do pi nho bran co de Qu e bec,Pi nus stro bus, o prin ci pal pro du to de ex por ta ção da co lô nia. Os tron cosde pi nhe i ro flu tu a ri am rio aba i xo para fa zer a for tu na dos pri me i rosaven tu re i ros, ser vi ri am nos mas tros e nos tom ba di lhos das es qua drasingle sas que com ba ti am Na po leão, e iam ser o fa tor de ter mi nan te na

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explo ra ção do vale e no es ta be le ci men to da po pu la ção às mar gens doOtta wa. O es pe tá cu lo des se meio de trans por te fá cil e eco nô mi co ain daé hoje ca rac te rís ti co da re gião.

No en tan to, a im por tân cia da po si ção de Otta wa foi o re sultadode cir cuns tân ci as não co mer ci a is, po rém mi li ta res, de cor ren tes da guer ra an glo-americana de 1812 e do pe río do de re la ções ten sas que se lheseguiu. Em 1815, o fu tu ro go ver na dor, o Earl of Da lhou sie, pas san dopelas mar gens do rio, cha mou a aten ção de um ami go: “Não se sur preenda,” dis se, “se um dia aque la emi nên cia ve nha a ser a sede do go ver no dosdois Ca na dás”. Em mis são de re co nhe ci men to, exe cu ta da em 1816,procu rou-se um ca mi nho in te ri or, li gan do Mon tre al e King ston, caminhose gu ro e pro te gi do con tra qual quer in ter fe rên cia no caso de nova guer ra com os Esta dos Uni dos. De fato, re ce a va-se pu des sem os ame ri ca nosatacar e cor tar o rio São Lou ren ço, como acon te ce ra em 1812, se pa randoas sim o Qu e bec da re gião dos Gran des La gos. Em 1823, Da lhou sie,ago ra Go ver na dor-Geral, com prou por 750 Li bras o ter re no des ti na do à fu tu ra obra. Qu a tro anos de po is, en ge nhe i ros in gle ses pro pu se ram acons tru ção do ca nal para li gar as por ções na ve gá ve is do rio Ri de au àcidade de King ston, no lago Ontá rio. O lo cal es co lhi do, na con fluên ciado Ri de au com o Otta wa, se ria a es ta ção ter mi nal da ar té ria pro pos ta,ca ben do ao Co ro nel John By, ve te ra no da guer ra pe nin su lar e co nhe ci do ofi ci al do Cor po Real de Enge nha ria, a mis são de su pe rin ten der ostraba lhos do Ri de au Ca nal. A vila trans for mou-se em cen tro mer cantilimpor tan te e, em 1838, quan do co ro a da a Ra i nha Vi tó ria, já pos su íauma po pu la ção de dois mil ha bi tan tes. A pros pe ri da de trou xe mu dan ças ine vi tá ve is na con di ção e no pon to de vis ta de seus ci da dãos. Era, como se di zia, uma “po pu la ção mis tu ra da” – tra ba lha do res do ca nal, ma de i reiros, le nha do res, sol da dos, pe que nos lo jis tas – bur gue sia in qui e ta que dava ao lu ga re jo, Bytown, a re pu ta ção de pe ri go sa aglo me ra ção fron te i ri ça e oas pec to de uma al de ia do Far West, onde a be bi da cor ria em abun dân cia,as lu tas cor po ra is eram fre qüen tes e ba ra ta a vida hu ma na. Par te dapopu la ção, ir lan de sa e ca tó li ca, cos tu ma va en fren tar, em choquessangren tos – ca rac te rís ti ca da épo ca e ge ral men te no dia de São Pa trí cio– os in gle ses e os Oran ge men pro tes tan tes. A “fe bre dos pân ta nos”, acó le ra e o tifo cons ti tu íam ou tros ar gu men tos para for mar a opi nião dos pu ri ta nos e dos pes si mis tas que con si de ra vam Bytown “uma ci da de sem

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Deus”. O pe río do pi to res co e de sor de i ro, po rém, atin gia ao fim. A 1º de jane i ro de 1885, Bytown foi in cor po ra ted, isto é, pas sou a ter exis tên cia legalcomo mu ni cí pio e o nome mu da do para Otta wa, re ce ben do um es cu dode ar mas com o modo Advan ce. A po pu la ção já atin gia oito mil ha bi tantes.O úl ti mo ca pí tu lo na evo lu ção da al de ia in sig ni fi can te, per di da nosertão ca na den se, ocor reu em 1857, data em que foi es co lhi da pelaRa inha Vi tó ria para ser, “até que de ou tro modo de ci da o so be ra no”, a “sede do go ver no da Pro vín cia Uni da do Ca na dá do Oes te e do Canadádo Les te”.

A po si ção ge o gráfica de Otta wa, tan to quan to seu sí tio ex cep ci o nal, ex pli cam a de ci são da Ra i nha. Aci ma das Cha u dières, o rio alar ga-se emuma es pé cie de lago, cal mo e espaço so, em cu jas mar gens cres ceu umaaglome ra ção de ve ra ne io. A ci da de é co ro a da pelo Par li a ment Hill, espéciede acró po le ao lado da qual se de pa ram as com por tas que ar ti cu lam osistema do ca nal com o rio Ri de au. Um pou co mais aba i xo, Otta wa éliga da por uma gran de Pon te Inter pro vin ci al à ci da de de Hull, já no Quebec,ha bi ta da so bre tu do por ca na den ses fran ce ses e bas tan te in dus tri al. Daípor di an te, após re ce ber o Ga ti ne au e o Ri de au, o rio cor re lar ga men teaté jun tar-se com o São Lou ren ço per to de Mon tre al, du zen tos qui lô -me tros aba i xo. Em gran de par te de seu cur so o Otta wa é tam bém umali nha di vi só ria en tre dois ti pos di fe ren tes de ter re no. Na mar gemesquer da, em Qu e bec, es ten dem-se as co li nas do Ga ti ne au como van -guar da do sis te ma pré-cambriano das La u ren ti das, vasta re gião co ber tade flo res tas de pi nhe i ros. Des sas mon tanhas, rá pi do e pe ri go so, des ce oGa ti ne au, via na tu ral de trans por te das gran des to ras de ma de i ra que,cor ta das nas flores tas do nor te, qual jan ga das cor rem li vre men te rioabaixo. Em con tras te, es ten de-se à mar gem me ri di o nal uma pla ní cieleve men te on du la da, co ber ta de cam pos cul ti va dos e de pastos verdejan tes, de li mi ta da pelo São Lou ren ço e pelo lago Ontário. O triân gu lo ori en tal da pro vín cia de Ontá rio, cujo vér ti ce é Mon tre al, re pre sen ta uma das par tes mais ri cas do país.

Antes de ser cons ti tu í da a Con fe de ra ção, a zona ha bi ta da dopaís não ul tra pas sa va uma fa i xa de tre zen tos qui lô me tros à margemesquer da do São Lou ren ço. Den tro des sa zona, qua tro ci da des dis pu tarama hon ra de al ber gar o go ver no do novo do mí nio: Qu e bec e Mon tre al napar te fran ce sa, To ron to e King ston do lado in glês. Mon tre al e To ron to

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são ain da hoje as duas ma i o res ci da des do país. A con tro vér sia tor na -ra-se tão aze da e pe ri go sa para a in te gri da de do Ca na dá que se che ga ra à es tra nha prá ti ca con ci li a tó ria de al ter nar a Le gis la tu ra, cada qua tro nos,en tre Qu e bec e To ron to. De po is da re be lião de 1837, dis túr bi os sé ri osem Mon tre al ti ve ram como con se qüên cia o in cên dio do par la men to eata ques ao go ver na dor, pro van do a ine xe qüi bi li da de da que la ci da decomo ca pi tal. Otta wa deve sua pre fe rên cia a Sir Ri chard Scott que, comgran de ha bi li da de, con se guiu con ven cer o pú bli co das van ta gens e es ta -bi li da de da po si ção in ter me diá ria; e ao Go ver na dor Sir Edmund Wal kerHead que, com ba ten do os ar gu men tos dos cé ti cos, pes so al men te lheadvo gou os mé ri tos jun to à Ra i nha Vi tó ria. Não se deve es que cer o de -se nho pa no râ mi co do lo cal que Lady Head mos trou à so be ra na paraconfir má-la em sua op ção, che ga da à vis ta de con si de ra ções tan to po lí ticasquan to es té ti cas. E vale acres cen tar que a ar ti cu la ção do sí tio em face da “fron te i ra de ten são” com os Esta dos Uni dos não foi pe que na con si de -ra ção, pois o pró prio es tre i ta men to das duas pro vín ci as ri va is re sul ta vade uma ne ces sá ria re con ci li a ção en tre os ele men tos an glo e fran -co-canadenses, fren te ao po der que se agi gan ta va do vi zi nho me ri di o nal. A es co lha de Otta wa a qual, “no jul ga men to de Sua Ma jes ta de, mais doque qual quer ou tro lu gar, com bi na um gran de nú me ro de van ta genspara ser a sede per ma nen te do fu tu ro go ver no”, cons ti tu iu por tan to um gol pe de es cla re ci do sen ti do po lí ti co. Te mos aí um exem plo – de cer tomodo cor res pon den te ao de Ma drid, Was hing ton e Can ber ra – de capitalcuja po si ção ge o grá fi ca re pre sen ta por si mes ma um ele men to de união,um fa tor de har mo ni za ção que con tra ba lan ça as ten dên ci as cen trí fu gasde re giões ri va is.

Sem ser a “pa i sa gem es tu pen da” do or gu lho ca na den se, aci dade goza sem dú vi da de uma to po gra fia pri vi le gi a da que os ca na densessoube ram apro ve i tar na dis po si ção do con jun to ar qui te tô ni co go ver namen tal so bre o Mor ro do Par la men to. Mas ape sar des sas van ta gens não pou cos pro tes tos! Em to das as épo cas e em to dos os pa í ses, os cé ti cos e os fi lis -te us fa zem ou vir a sua voz. Jor na lis tas in gle ses que a vi si ta ram em 1860,na co mi ti va do Prín ci pe de Ga les (fu tu ro Edu ar do VII), qua li fi ca ram-na de “mons tru o so ab sur do” e des cre ve ram os edi fí ci os do Par la men to,en tão em cons tru ção, como “ad mi ra vel men te in di ca dos para ser vir dehos pí cio de lou cos, tão cedo a pros pe ri da de da po vo a ção re que i ra tais

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ins ti tu i ções...” É cu ri o so que até ca na den ses pa tri o tas, con fi an tes nofuturo de seu país, de plo ra vam a nova ca pi tal do mato, bush ca pi tal,“cons tru í da so bre um rio tur vo, che io de tá bu as e ser ra du ra”. Esque -ci am-se de que a in dús tria da ma de i ra era, na épo ca, uma das maisprós pe ras do Ca na dá e ga ran tia so be ja men te o fu tu ro eco nô mi co daci da de, in de pen den te men te de ser ou não a sede do go ver no, tan toas sim que, até 1896, o go ver no fe de ral em nada con tri bu iu para osser vi ços pú bli cos mu ni ci pa is. Esses co men tá ri os são in te res san tespor que re ve lam, mes mo num país sé rio e pro gres sis ta como o Ca nadá, a fa ta li da de da opo si ção es tre i ta de in cré du los e pes si mis tas. E de um cer to modo con so lam aque les pa trí ci os nos sos que so nha ram com amu dan ça da ca pi tal bra si le i ra, en fren tan do crí ti cas e pi lhé ri as se me -lhan tes.

A mu dan ça da ad mi nis tra ção efe tu ou-se aos pou cos. Só em1864 o fun ci o na lis mo pú bli co trans fe riu-se de Qu e bec e a pro cla ma çãode fi ni ti va da ele va ção da ci da de data de ou tu bro de 1865. E não é deadmi rar que res mun gas sem e se que i xas sem es ses fun ci o ná ri os trans -plan ta dos, como é pró prio de sua pro fis são, sen do gran de o des con ten -ta men to com o aban do no de Qu e bec que, até hoje, se or gu lha de serum cen tro cul to, de re fi na men to mun da no e vida eu ro péia. A “ca pi taldo mato”, pro vin ci a na e rude, ha bi ta da por ser ta ne jos gros se i ros, nãoera de mol de a tor ná-la mais apra zí vel aos tre zen tos e tan tos ser ven tuáriosque, na épo ca, lo ta vam os de par ta men tos da ad mi nis tra ção ca na den se.A má-vontade não se li mi ta va ao fun ci o na lis mo pú bli co. Em 1867, ogover na dor Lord Monck es no ba ra Otta wa, de i xan do bem cla ra suaprefe rên cia pelo Pa lá cio de Spen cer wo od em Qu e bec, que re pu ta vamorada mais ame na do que a re si dên cia ofi ci al no ca sa rão de Ri de auHall.

Em 1864 re u ni ram-se os “Pa tri ar cas” da na ção ca na den se osqua is, con ven ci dos da in vi a bi li da de do sis te ma co lo ni al, de ci di ram subs ti tu iras duas pro vín ci as uni fi ca das do Alto e do Ba i xo Ca na dá – cor res pon den tesmais ou me nos a Ontá rio e Qu e bec – por uma Con fe de ra ção am pla e li vre, es ten den do-se de oce a no a oce a no: “The who le so me sea is at her ga tes, her ga -tes both east and west”. A 1º de ju lho de 1867 seus es for ços fo ram co ro a dosde êxi to e o novo do mí nio ofi ci al men te pro cla ma do, sen do Sir JohnMac do nald Pri me i ro-Mi nis tro e Lord Monck Go ver na dor-Ge ral. Con -

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fir ma da como ca pi tal dez anos de po is de sua es co lha pela Ra i nha Vi tó ria,tes te mu nha va Otta wa de sua vi são e pers pi cá cia! A me tró po le dis tin -gue-se pela pe cu li a ri da de de não cons ti tu ir, a bem di zer, um “Dis tri toFe de ral” se gun do o mo de lo de Was hing ton, Bra sí lia ou Can ber ra, mu i to em bo ra seja o Ca na dá or ga ni za do den tro de uma es tru tu ra lar ga men tefe de ral. O mo de lo do “Dis tri to de Co lum bia” que, com vá ri as e con -si de rá ve is al te ra ções, foi se gui do em Bu e nos Ai res, na Ci da de do Mé xi coe em Ca ra cas, não sa tis fa zia às con di ções es pe ci a is re i nan tes na épo cada que la pro vi dên cia. Otta wa é, ain da hoje, par te in te gran te da pro -vín cia de Ontá rio, cons ti tu in do um mu ni cí pio ab so lu ta men te au tô no -mo: A ad mi nis tra ção com plexa e de cer to modo con fu sa que re sul ta detal or ga ni za ção ba se ia-se num sis te ma de co o pe ra ção fe de ral, pro vin ci ale mu ni ci pal, e só a ex tre ma fle xi bi li da de do gê nio po lí ti co an glo-sa -xô ni co tem per mi ti do o seu su ces so. O Pre fe i to, o Ma yor – é ele i topelo povo e as sis ti do por um Con se lho de Con tro le com pos to dequa tro mem bros, e por uma Câ ma ra de de zo i to Ve re a do res (Alder -men), dois para cada um dos nove dis tri tos mu ni ci pa is. Essa cons ti tu i ção tem sido fre qüen te men te mo di fi ca da para aten der a cir cuns tân ci as do mo men to.

Do pon to de vis ta ar qui te tô ni co, a pri me i ra co i sa que sus ci -ta a aten ção do vi si tan te, ao che gar à ci da de, é o con jun to de cons tru -ções ofi ci a is em es ti lo “nor man do-gótico”, que se er gue so bre a vas ta es pla na da re tan gu lar do Par li a ment Hill. Vê-se uma su ces são de tor reses gui as e te lha dos agu dos, de si lhu e ta ele gan te e as pec to aus te ro, do -mi nan do o rio. Di an te do edi fí cio cen tral do Par la men to le van ta-se aTor re da Paz, bela obra de ar qui te tu ra ne o gó ti ca. A casa ori gi nal,cons tru í da em 1860 e des tru í da por um in cên dio em 1916, foireconstru í da em 1922, nos mol des pri mi ti vos. No in te ri or, os ca na densespro cu ram por to dos os me i os re pro du zir as re gras, os cos tu mes, asce ri mô ni as e o am bi en te da Casa fa mo sa de Lon dres, a “Mãe dosPar la men tos”. Se con si de rar mos a ri que za do do mí nio, sua ex tra or di -ná ria pros pe ri da de (a ren da per ca pi ta ca na den se é, atu al men te, deUS$25.000) e os su pe rá vits que se têm acu mu la do em seus or ça men -tos, não é fá cil jus ti fi car o fato que o go ver no fe de ral ain da não dis -po nha de todo o es pa ço cons tru í do para seu tra ba lho. O ca na den se

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her dou de seus an te pas sa dos es co ce ses e nor man dos a vir tu de de pou -pan ça.4

O con jun to do Par li a ment Hill de i xa uma im pres são de for ça,no bre za e ele gân cia. Ca be ria, po rém, la men tar a fal ta de ima gi na ção, oes pí ri to de le al da de, qui çá exa ge ra do, que quis ar re me dar na Amé ri ca aat mos fe ra da ve lha Ingla ter ra. A pre fe rên cia pelo es ti lo ne o gó ti co ouTu dor é bem re pre sen ta ti va de um cer to “co lo ni a lis mo” cul tu ral de queain da se res sen te o Ca na dá. Não hou ve au dá cia para rom per com as for -mas do pas sa do eu ro peu ou, pelo me nos, para adap tá-las ao am bi entelivre do Novo Mun do. Os ar qui te tos nada mais fi ze ram do que imi tarWest mins ter. Mu i to em bo ra com bom gos to, lhes fal tou in de pen dên ciae cri a ti vi da de. Aí, como aliás na cons tru ção dos gran des ho téis de luxo – os “Cha te a ux” de Qu e bec, Otta wa e To ron to que imi tam for ta le zas fe u -da is fran ce sas – ex pri miu-se uma men ta li da de de “Do mí nio” que nãode se jar rom per seus la ços es pi ri tu a is com a ve lha Me tró po le e não re ce ia a po bre za e o ana cro nis mo de suas obras ar tís ti cas. Nes se sen ti do, oestilo do con jun to ad mi nis tra ti vo de Par li a ment Hill é um exem plo sig ni -fi ca ti vo do “men son ge des for mes” con tra o qual de bla te ra vam os ar qui te tos con tem po râ ne os. Um exem plo da “ar que o lo gia”, do ro man tis mo me di -e va lis ta, da imi ta ção ba ra ta dos “es ti los his tó ri cos” que cor rom peu eestul ti fi cou a ar qui te tu ra do sé cu lo XIX e prin cí pi os do sé cu lo XX.

Na ver da de, toda a at mos fe ra so ci al da ci da de apre sen ta umcer to cu nho bri tâ ni co que a dis tin gue de Qu e bec onde pre do mi na vagalem bran ça con ti nen tal, um quê da ve lha Fran ça, ao pas so que To ron to e Van cou ver já são gran des me tró po les de es ti lo fran ca men te ame ri ca no.Na vida ofi ci al e di plo má ti ca des sa “Was hing ton se ten tri o nal”, a “Cor -te” do Go ver na dor-Geral pro cu ra trans plan tar as ve lhas prá ti cas pro to -

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4 Se qui ser mos fa zer uma com pa ra ção edi fi can te en tre o Bra sil e o Ca na dá, emter mos de tem pe ra men to de seus po vos, do ca rá ter de suas res pec ti vas ad mi nis -tra ções e da cul tu ra cí vi ca dos dois po vos, bas ta ria cor re la ci o nar esse fato tí pi coque o Te sou ro ca na den se, ao tem po em que es ti ve ser vin do em Otta wa (1951-52), ad mi nis tra va um or ça men to su pe ra vi tá rio dez ve zes mais ele va do que o bra si le i ro, en quan to fun ci o na va mo des ta men te num edi fí cio de ma de i ra que era qua se umpar di e i ro. Na mes ma épo ca e prin ci pi an do o Bra sil a per cor rer sua de plo rá velcar re i ra in fla ci o ná ria, o mi nis té rio da Fa zen da, no Rio, já era um imen so edi fí cio demár mo re, com es ca da ri as gi gan tes cas de bron ze e ga bi ne tes de co ra dos com ta pe -tes per sas.

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co la res de Buc king ham e Bal mo ral. Aí se acen tu am e se equa ci o nam ostrês fo cos da aten ção ca na den se: a Co mu ni da de bri tâ ni ca à qual se sen te tra di ci o nal men te li ga da por la ços po lí ti cos e cul tu ra is in que bran tá ve is;os Esta dos Uni dos ao qual o Do mí nio se as so cia eco nô mi ca (NAFTA)e mi li tar men te (OTAN) e ao qual, aos pou cos, se vai iden ti fi can do so ci -al men te; e o ca to li cis mo Vi e il le Fran ce da pro vín cia de Qu e bec, con ser va -do ra e iso la ci o nis ta, rús ti ca e ba ir ris ta... e ten den do for te men te ao sepa -ra tismo. Mas é o pri me i ro, o es pí ri to an glo-saxão da Com monwealth, que do -mi na a at mos fe ra e so bres sai na pa i sa gem e na ar qui te tu ra de Otta wa...

Ci da de de tra ba lho, é es sen ci al men te uma aglo me ra ção degen te ope ro sa, de bu ro cra tas ronds-de-cuir, de po lí ti cos, mi li ta res e in dus -triais que vêm pro cu rar con tra tos com o go ver no. É tam bém uma cidadecal ma de apo sen ta dos. Pre do mi nam as mu lhe res, vi ú vas de fun ci o ná ri os, sol te i ro nas e se cre tá ri as nas re par ti ções pú bli cas. Como se po de ria es pe -rar, é uma ci da de um tan to ar ti fi ci al onde o rús ti co do oes te pro cu ra sefa zer pas sar por gen tle man da City. O ca na den se é fran co, ale gre e des pro -vi do de con ven ci o na lis mos, mas só em Otta wa é às ve zes snob.

Os ha bi tan tes mu i to fi ze ram para em be le zar sua ca pi tal. Foramnis so bem su ce di dos por que, ape sar da fri e za do cli ma e da vida que ator nam bas tan te en fa do nha, Otta wa é sem dú vi da uma ci da de apra zí vel.Em con se qüên cia de sua or ga ni za ção ad mi nis tra ti va, ao mes mo tem pofe de ral, pro vin ci al e mu ni ci pal, e da au sên cia de uma ju ris di ção di re ta do go ver no fe de ral, foi ne ces sá rio, em 1948, es ta be le cer o “Pro gra ma depla ne ja men to e de sen vol vi men to da Ca pi tal Na ci o nal”, na base de umacoope ra ção en tre aque las en ti da des po lí ti cas. A Se gun da Gu er ra Mun dialatra sou a re a li za ção dos gran des pro je tos de re mo de la ção da ci da de. O“Plano Mes tre” é ori gi nal e com pre en si vo, vi san do sa tis fa zer as exi gênciasdo con ce i to mo der no do que deve ser uma ca pi tal, não ape nas comocen tro ur ba no mas como re gião pla ne ja da, con tro la da e su fi ci en te men te vas ta para pro ver às ame ni da des e fa ci li da des ne ces sá ri as ao per feitodesem pe nho de sua fun ção de “ór gão cen tra li za dor” do Esta do. O projetoem pre ga as téc ni cas mais mo der nas, com o in tu i to de ser vir de mo de lopara o “city-planning” ca na den se. Par ti cu lar aten ção foi de di ca da às qua lida despa i sa gís ti cas do sí tio de Otta wa e ao par que na ci o nal do Ga ti ne au, comseus rios, la gos e mon ta nhas, como cen tro des por ti vo e re ser va flo res tal.

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Eis aí o que é Otta wa, lin da ci da de, pla ne ja da para ser umadas mais be las ca pi ta is do mun do. Ci da de que, ain da ca re cen do de es pí -ri to, at mos fe ra, vida e cul tu ra, é ca pi tal de um país cujo pro gres so es tu -pen do tem fe i to o es pan to de to dos que o vi si tam; de uma po tênciaeconô mica e mi li tar en tre as qua tro ou cinco ma i o res do mun do oci dental, bas tião da OTAN, ar se nal das de mo cra ci as e re ser va ines go tá vel dematé ri as-primas; de uma na ção sé ria, ho nes ta, ope ro sa, so ci al men teequi li brada, po li ti ca men te sa u dá vel, go zan do de um dos mais al tos níveisde vida do mun do e de um fu tu ro imen so a seus pés. Uma na ção que,para nós bra si le i ros, exa ge ra da men te la ti nos, ima gi na ti vos e in dis ci pli nados, cons titui um exem plo edi fi can te da que las vir tu des cí vi cas que jus ta mentenos fal tam – como ca re cem eles da vi va ci da de e exu be rân cia, sen tidoartís ti co e fan ta sia, as qua li da des e de fe i tos mais hu ma nos que fa zemtodo o en can to e ori gi na li da de da vida bra si le i ra.

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A Ra i nha Vic to ria quan do ain da moça, apro xi ma da men te na épo ca em que es co lheu Otta wa como Ca pi tal do Ca na dá

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XIIPre tó ria

A his tó ria da Áfri ca do Sul, mais do que a do Bra sil,tem suas ori gens na pro cu ra do ca mi nho das ín di as. Cou be ao Infan teDom Hen ri que, que con ce beu a idéia da vol ta da Áfri ca, a Bar to lo meuDias, que des co briu o “Cabo das Tor men tas”, e a Vas co da Gama que,con tor nan do-o, o de no mi nou da “Boa Espe ran ça”, o es ta be le ci men todo ho mem bran co nes sas pa ra gens me ri di o na is, en tão de sa bi ta das, docon ti nen te afri ca no. Ca mões cha mou a Mon ta nha da Mesa de “Gi gan teAda mas tor” e ce le brou a des co ber ta em ver sos fa mo sos do Can to V deOs Lu sía das:

Eu sou aque le ocul to e gran de Cabo,A quem cha ma is vós ou tros tor men tó rio,Que nun ca a Pto lo meu, Pom pó nio, Estra bo,Plí nio, e quan tos pas sa ram, fui no tó rio.

Aqui toda a Afri ca na cos ta aca boNes te meu nun ca vis to pro mon tó rio,Que para o pólo an tár ti co se es ten deA quem vos sa ou sa dia tan to ofen de.

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Como mais tar de os in gle ses, os por tu gue ses pre fe ri ramoutros por tos ou ba ías para des can so e re a bas te ci men to de suas fro tasem de man da das Índi as. Os ho lan de ses, po rém, ali de sem bar ca ram em1652 sob o co man do de Jan van Ri e be ek, fun dan do, para sua Com panhiadas Índi as Ori en ta is, uma es ta ção que era ao mes mo tem po ar ma zém,por to de es ca la e base na val. Não hou ve ini ci al men te qual quer in ten çãoco loniza do ra. A par tir de 1707, a imi gra cão eu ro péia foi mes mo pro i bida,se guin do-se-lhe a de ci são fa tal de es ta be le cer, em seu lu gar, a es cra vi dão ne gra – de ci são que de ter mi nou todo o de sen vol vi men to so ci al ul te ri orda Áfri ca do Sul! Assim mes mo, o cres ci men to en do gâ mi co da po pu laçãobran ca foi es pan to so pois, no fi nal do sé cu lo XVIII, já ha via per to dede zes se is mil co lo nos eu ro pe us, des cen den tes de al gu mas cen te nas deimi gran tes ho lan de ses, ale mães e hu gue no tes. É esse o nú cleo ini ci al doele men to boer (pro nun cia-se buur), isto é, do “fa zen de i ro” sul-africano de di a le to ho lan dês, de cos tu mes pa tri ar ca is, in ten sa e rí gi da fé protes tan te,absur dos pre con ce i tos ra cis tas e há bi tos es crava gis tas.

A co lô nia cres ceu e es ten deu-se pelo hin ter land do Cabo atéque, em con se qüên cia de epi só di os re la ci o na dos com as guer ras na po -leô ni cas e, de cer to modo, com a fra cas sa da ten ta ti va in gle sa con traBuenos Ai res, o es ta be le ci men to foi con quis ta do pe los bri tâ ni cos e in te -gra do em seu Impé rio. Em 1835, des gos to sos com a admi nis tra çãoestran ge i ra e já en vol vi dos em luta fe roz con tra as tri bos ban tus, umgran de nú me ro de bo ers re sol veu aban do nar o ter ri tó rio da co lô nia e,num exô do de as pec to bí bli co, de ram iní cio ao “Gran de Trek” além dasmon ta nhas do Dra ken berg, pro cu ran do for tu na e li ber da de no que setor na ria os es ta dos de Na tal, Trans va al e Oran ge. Entre os co man dan tes le gen dá ri os des sas “ban de i ras” sul-africanas que avan ça vam em lu tassan gren tas con tra os Be chu a nas, os Ba su tos, Zu lus e Ma ta be les do Natal,e es car men ta vam as au to ri da des in gle sas es ta be le ci das no li to ral, dis tin -guiu-se Andri es Wi lhel mus Ja co bus Pre to ri us, um dos mais ou sa doslíde res do Trek. Pre to ri us da ria seu nome à fu tu ra ca pi tal da Áfri ca doSul.

Em 1856, os Esta dos do Cabo, Na tal, Trans va al e Oran ge jáse acha vam cons ti tu í dos, os dois pri me i ros ha bi ta dos por sú di tos bri tâ -ni cos, su je i tos à Co roa, os dois úl ti mos mais ou me nos in de pen den tes epre do mi nan te men te boer. Os cin qüen ta anos se guin tes en chem uma

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his tó ria con fu sa em que se re gis tra a des co ber ta das mi nas de di a man tede Kim ber ley, o es ta be le ci men to dos ale mães no Su do es te afri ca no, aNa mí bia, guer ri lha cons tan te con tra as po pu la ções ne gras, as ma lo gra -das ten ta ti vas de con fe de ra ção e a hos ti li da de cres cen te en tre in gle ses eho lan de ses, per so ni fi ca da nas fi gu ras ex cep ci o na is de Sir Ce cil Rho des,“Cons tru tor de Impé rio”, e Paul Kru ger, he rói da li ber da de boer. A hos -ti li da de cul mi nou na Gu er ra da Áfri ca do Sul em con se qüên cia da qualas Re pú bli cas do Trans va al e do Oran ge fo ram in cor po ra das ao Impé rio bri tâ ni co pelo Tra ta do de Ve re e ni ging, em maio de 1902.

Ter minadas as hos ti li da des e ain da fres cas na me mó ria ascruel dades do sis te ma de cam pos de con cen tra ção, en ge nha do pelocomandan te in glês Lord Kit che ner of Khar tum, ho mens lú ci dos, serenos e mag nâ ni mos de am bos os la dos Grey, Car nar von e Mil ner en tre osven ce do res; Bot ha e Smuts no cam po dos ven ci dos – pro cu ra ram en -contrar uma so lu ção con ci li a tó ria que em uma úni ca co mu ni da de po lí ticain tegras se as duas et ni as eu ro péi as. A fór mu la pri me i ra men te con si de rada por aque les ilus tres fun da do res foi a da aglu ti na ção de um novo Domí niogra ças à he ge mo nia de uma das Co lô ni as que se ria, na tu ral men te, a doCabo, a mais rica e do mi na da pelo ele men to pre pon de ran te in glês. Asolu ção viá vel con sis tiu, en tre tan to, na união das qua tro co lô ni as em péde igual da de, com a ado ção de um di a le to ho lan dês (o Afri ka ner) comose gun da lín gua ofi ci al. Em ou tu bro de 1908, re u niu-se uma Con ven çãocons ti tu in te de que par ti ci pa ram de le ga dos das qua tro co lô ni as e re pre -sentan tes da Ro dé sia, a fim de ela bo rar a Car ta Mag na da União pro je tada.Apro va da por Lon dres, a Cons ti tu i ção es ta be le ceu, em 31 de maio de1910, a União da Áfri ca do Sul. O país tem, por tan to, me nos de cemanos. So bre le va va de tal modo o de se jo de cer ce ar as ten dên ci as cen trí -fu gas que ha vi am de ter mi na do a ci são do sub con ti nen te que os cons ti -tuintes aca ba ram ela bo ran do uma Car ta fran ca men te uni tá ria pois de i xavamaos Esta dos, agora de no mi na dos Pro vín ci as, ape nas cer tos di re i tosmuni ci pa is. A fór mu la ia mu i to além dos pla nos de con fe de ra ção ide a li -za dos por Lord Car nar von e Sir Ge or ge Grey à ima gem do apli ca do noDo mí nio do Ca na dá. É in te res san te no tar que, além da ques tão das duas lín guas ofi ci a is, um dos mais di fí ce is obs tá cu los de pa ra dos pe los cons ti -tu in tes foi o da es co lha da ca pi tal do novo Do mí nio.

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O epi só dio é ca rac te rís ti co e con fir ma mais uma vez a im por -tân cia ge o po lí ti ca do pro ble ma da lo ca li za ção das ca pi ta is. A con vi vên -cia de dois ele men tos hu ma nos do mi na do res e ri va is – o in glês e o boer– lo ca li za dos em duas re giões dis tin tas, o li to ral e o in te ri or, con fi gu ra vaa equa ção a ser re sol vi da. Ora, não se tra ta de uma so lu ção fe de ra ti va eo que já foi dito a res pe i to da con ve niên cia, ou mes mo ne ces si da de dees co lha de uma ca pi tal ar ti fi ci al (Dis tri to Fe de ral) nos Esta dos fe de ra -dos, não se re la ci o na com o caso em exa me. A es tru tu ra do país é ra ci ale ter ri to ri al men te com ple xa. Além dos ele men tos do mi nan tes de ve mosmen ci o nar o ju deu, que con tro la gran de par te da alta fi nan ça e da mi ne -ra ção do ouro e di a man te, e o hin du, que cons ti tui uma clas se mé dia co -mer ci an te im por tan te no Na tal. Des sa clas se, in ci den tal men te, per ten cia o Ma hat ma Gand hi. O pró prio ne gro apre sen ta es tra ti fi ca ções vá ri as,in clu in do os mu la tos, de no mi na dos co lou red. Isso cri ou pro ble mas po lí ti -cos di fí ce is que o pro gra ma de dis cri mi na ção, iso la men to ou se pa ra çãora ci al – apart he id – pro mo vi do pelo par ti do na ci o na lis ta boer, aca bouagra van do. De po is da inú til pro cu ra de uma so lu ção in ter me diá ria, poruma es pé cie de sis te ma de Can tões como na Su í ça, a apart he id foi pro -gres si va men te des man te la da nos anos 80 e 90, gra ças ao tra ba lho ad mi -rá vel de dois gran des es ta dis tas, De Clerck, o eu ro peu, e Man de la, oafri ca no.

Na ques tão da es co lha da ca pi tal pro cu rou-se igual men te uma so lu ção con ci li a tó ria e, para sa tis fa zer a gre gos e tro i a nos, in ven tou-se odis po si ti vo apa ren te men te en ge nho so de ins ta lar em Pre tó ria a sede dogo ver no e a ad mi nis tra ção, em Ca pe town o Par la men to e em Blo em fon -te in, capital do an ti go Esta do li vre do Oran ge, a Cor te Su pre ma e ostribu na is de re cur so. Argu men tou-se em fa vor de tal ar ran jo, pelo menoses tra nho, com o be ne fí cio dos le gis la do res e mi nis tros se rem obri ga dosa vi a jar de um lado para o ou tro, en tre a par te in gle sa e a par te boer,passan do as sim a me lhor co nhe cer as ne ces si da des das di ver sas re giõesdo país. Mas é evi den te que a du pli ci da de de ca pi ta is pos sui sé ri osincon ve ni en tes e ca u sa gran des trans tor nos à Admi nis tra ção, sen do uma so lu ção me nos re co men dá vel do que a en con tra da pe los Esta dosUnidos, Ca na dá e Aus trá lia com suas ca pi ta is “me di a nas”.

O Par lamen to re ú ne-se nor mal men te uma vez por ano, dejaneiro a ju nho, e é prá ti ca cor ren te os Che fes dos vá ri os De par ta mentos

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da Admi nis tra ção trans fe ri rem-se para Ca pe town du ran te esse pe río do,acom pa nha dos de um pe que no nú me ro de fun ci o ná ri os es pe ci a li za dosde seus res pec ti vos Mi nis té ri os. Além dis so, um sis te ma ele trô ni co aper -fe i ço a do fa ci li ta as co mu ni ca ções rá pi das en tre os es cri tó ri os de Pre tó ria e os de Ca pe town. O in flu xo de par la men ta res e fun ci o ná ri os pú bli cosna ci da de do Cabo, du ran te a es ta ção le gis la ti va, cria cer tas di fi cul da desde aco mo da ção, mu i to em bo ra pos sa pa re cer apra zí vel a mu i tos essa es -ta da anu al à be i ra-mar, numa ci da de pi to res ca e de cli ma ex tre ma men teagra dá vel. E não po de mos com ple tar o ar gu men to sem no tar que ocaso sul-africano de mons tra a vi a bi li da de de uma des cen tra li za cão ad mi -nis tra ti va a qual, em cer tos ca sos, pode ser acon se lhá vel – como já foi,aliás, pro pos to para o Bra sil, com o Con gres so fun ci o nan do no Rio.

Mas ve ja mos ago ra Pre tó ria: A ci da de é a mais an ti ga doTrans va al e foi fun da da às mar gens de um aflu en te do Lim po po, em1855. Pre to ri us foi o ne go ci a dor do acor do gra ças ao qual aGrã-Bretanha re co nhe ceu a in de pen dên cia do Trans va al e di ri giu a ocu -pa ção dos dis tri tos de Pot chefs tro om e Rus ten burg que, após sua mor te em 1853, fo ram fun di dos em mu ni cí pio com o nome de Pre tó ria. Porum tra ta do en tre as pe que nas re pú bli cas de Lyden bur go e Áfri ca do Sul, con clu í do na ci da de em 1890, foi ela ele va da à ca te go ria de ca pi tal. OPar la men to do Trans va al pela pri me i ra vez ali se re u niu no ano se guin te. Pos to de co man do du ran te a guer ra con tra a Ingla ter ra, to ma da porLord Ro berts em maio de 1900, foi o lo cal onde os ven ci dos as si na ramo acor do de paz re co nhe cen do a so be ra nia de Lon dres. Em 1910, ao ser es ta be le ci da a União Sul-Africana, tor nou-se a ca pi tal ad mi nis tra ti va donovo Do mí nio. Como se en con tra a cer ca de 50 qui lô me tros ao nor tede Jo han nes bur go, a ci da de mais im por tan te do país, que é a “Ca pi tal do Ouro” e à qual se acha li ga da por uma bela ro do via, Pre tó ria fun ci o nacomo uma es pé cie de ca pi tal ane xa.

Em con se qüên cia dos epi só di os his tó ri cos, aci ma men ci o na -dos, e da fal ta de co nhe ci men tos ur ba nís ti cos na épo ca, o cres ci men toda ci da de foi ir re gu lar e de sor de na do. Seu Pla no Pi lo to é do tipo tra di ci -o nal, or to go nal, cons ti tu í da por ilhéus re tan gu la res en qua dra dos por lar -gas ave ni das. No cen tro ur ba no, en con tra-se a Church Squa re, isto é, apra ça da ve lha igre ja ho lan de sa com al guns dos edi fí ci os do go ver no,num dis po si ti vo que lem bra o das ci da des co lo ni a is es pa nho las. Os vários

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ba ir ros fo ram sen do agre ga dos à área ur ba na sem se ar ti cu la rem den trode um pla no pré-estabelecido. Erros ur ba nís ti cos aci den ta is ou de li be ra -dos des sa na tu re za só fo ram su pri mi dos a par tir de 1931 em que a pro -vín cia do Trans va al emi tiu uma Orde nan ça dan do base le gal ao Pla no de Urba nis mo. Nos ter mos des se ins tru men to, Pre tó ria e ou tras oito ci da -des da pro vín cia ti ve ram que pre pa rar, num pra zo de três anos, seuspro gra mas de pla ne ja men to. Em 1934, para dar efe i to à Orde nan ça, es -ta be le ceu-se o Co mi tê de Pla ne ja men to Re gi o nal que de li ne ou os prin cí -pi os bá si cos do town plan ning lo cal. Em suma, cons ti tu iu um Pla no Di re -tor, des ti na do a pre si dir ao cres ci men to de Pre tó ria e re pre sen tan do, por isso, um es que ma de ca rá ter mais ge ral do que de ta lha do. Esse pla no foi com ple ta do, em 1947, por um emi nen te ar qui te to e ur ba nis ta, o Pro fes -sor Wil li am Hol ford. Nas ci do na Áfri ca do Sul e co nhe ci do por seu tra -ba lho na re cons tru ção da área cen tral de Lon dres de vas ta da pela blitz,Lord Hol ford é o mes mo ur ba nis ta que par ti ci pou, como Pre si den te, do júri do con cur so para o Pla no Pi lo to de Bra sí lia em 1956.

Além do zo ne a men to, os pla ne ja do res de Pre tó ria fo ram muito in flu en ci a dos pela con cep ção da ci da de-jardim. E nes se sen ti do valemen ci o nar um fato de par ti cu lar in te res se, para nós bra si le i ros, pois, tãoricos que so mos em nos sa flo ra, que i ma mos nos sas flo res tas, es que cemosda uti li da de e da be le za das ár vo res e, ao in vés de plan tá-las em nos sascal ça das, fre qüen te men te cor ta mo-las... Ora, há pou co mais de cemanos, quan do a ca pi tal sul-africana era ain da uma vila re cém-fundada, opro pri e tá rio de um vi ve i ro de plan tas con se guiu in te res sar um res pe i távelci da dão por duas mu das de uma ár vo re que ofe re cia pelo pre ço mó di code dez li bras cada uma! As duas plan tas, já nas ci das na Áfri ca, per ten ciamà fa mí lia das Big no niá ce as: eram sim ples men te ja ca ran dá (pro nun cia-seali, dja ca ran da). Mais tar de, um vi ve i ro ob te ve ou tras se men tes pro ve nien tesda Aus trá lia mas, por essa épo ca, já as duas mu das pri mi ti vas se ha vi amde sen vol vi do em ár vo res fron do sas cujo ta ma nho e be le za cha ma vam aaten ção dos tran se un tes. Para po pu la ri zar o ja ca ran dá, o dono do vi ve i ro achou de bom al vi tre pre sen te ar a mu ni ci pa li da de com um grandenúmero de mu das e, des de en tão, o ja ca ran dá tem sido um dos tra çosdeco ra ti vos mais tí pi cos de Pre tó ria. A ci da de ce le bra mes mo um Jacaran daFes ti val.

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A obra ar qui te tô ni ca mais in te res san te de Pre tó ria é o Edi fíciodo go ver no, Uni on Bu il ding, cons tru í do em 1910-1913 no alto da co li na co nhe ci da como Me int je’s kop. Essa obra em es ti lo do Re nas ci men tofoi des cri to por Lord Hol ford como um exem plo mag ní fi co de ar qui te -tu ra ofi ci al e obe de ceu ao cri té rio, hoje não mais ad mis sí vel, de que oclas si cis mo é o úni co es ti lo dig no de um edi fí cio go ver na men tal. A idéia bá si ca do pla ne ja men to ur ba nís ti co de Pre tó ria tem sido, no en tan to, ade rom per com a tra di ção pas sa dis ta e a ati tu de ne ga ti va da bu ro cra cia.Os ur ba nis tas pro cu ram aten der aos de se jos dos pro pri e tá ri os e acon se -lhá-los com idéi as e su ges tões va li o sas, em seu pró prio be ne fí cio e parao em be le za men to da ci da de.

O úl ti mo pro ble ma cu ri o so de Pre tó ria foi a su pres são do“zo ne a men to ét ni co”, uma es pé cie de apart he id ur ba na, de po is do fim da po lí ti ca de se pa ra ção ra ci al. Para al guns ob ser va do res lo ca is, a in te gra -ção ét ni ca de fi ni ti va só se re a li za rá sob um re gi me de liber da de eco nô -mi ca que pos sa tor nar o eu ro peu, o afri ca no, o asiá ti co e o mes ti ço so li -dá ri os no in te res se pro du ti vo. Mais uma vez ve ri fi ca mos que a ca pi tal éum “mi cro cos mo” que re fle te a es tru tu ra, as ten dên ci as e os ide a is deuma na ção.

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XIIISete De lhis e Nova De lhi

Diz a len da que, no sí tio de De lhi, sete ca pi ta is já fo ramcons tru í das e, ao termi na rem o tra ba lho, sete ve zes seus cri a do resperde ram o do mí nio da Índia. Embo ra não se or gu lhem da an ti gui da dede ou tras ru í nas do ve lho con ti nen te, as pe dras ru bras de De lhi es tãoim preg na das de um pas sa do ve ne rá vel que, como em Roma, Be id jingou Cons tan ti no pla, con ta o dra ma dos im pé ri os e as vi cis si tu des doscon quis ta do res. Sete De lhis: a Índia dis tri bui ge ne ro sa men te a vida e amorte. Mas a per ma nên cia do sí tio é ex pli cá vel pe los va lo res ge o po líticospo si ti vos que jus ti fi cam sua his to ri ci da de. Si tu a da à riba oci den tal do rio Jumna, o ma i or aflu en te do Gan ges pela mar gem di re i ta, es ten de-se acidade so bre uma pla ní cie ás pe ra e pe dre go sa, de ve ge ta ção po bre, li ge i -ra men te in cli na da em di re ção ao rio e flan que a da por es car pas ro cho sas. O rio Jum na, tí pi co da pla ní cie se mi-árida da Índia se ten tri o nal, pos suium le i to are no so, bas tan te lar go, que só se en che no pe río do das chuvas.De um modo ge ral é uma pa i sa gem rude, es ca bro sa, como que pró priapara campo de ba ta lha! O cli ma tam bém, con ti nen tal e ex ces si vo. Amete o ro lo gia é o fato mais im por tan te da ci da de, di vi din do o ano emtrês es ta ções bem dis tin tas – a pri me i ra, seca, prin ci pia a 20 de fe ve re i ro

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e pro lon ga-se até 20 de ju nho; a se gun da, chu vo sa, é afe ta da pe los me sesdas mon ções que du ram até 20 de ou tu bro; a úl ti ma é a es ta ção fria, amais agradá vel. Du ran te o pri me i ro pe río do o ca lor vai cres cen do deinten si da de. O ar é seco e ven tos ar den tes do de ser to so pram do quadran teoes te. A tem pe ra tu ra atin ge ní ve is su pe ri o res a 40º cen tí gra dos e o soltor na-se um dés po ta odi a do. No pe río do se guin te, de gran de umi da de edes con for to, as chu vas caem em abun dân cia, após o que a estaçãotermina com ca rac te rís ti cas pou co sa u dá ve is. Os eu ro pe us pro cu ra vamevi tar sua per ma nên cia na ci da de du ran te essa épo ca, re fu gi an do-se nasal tu ras mag ní fi cas e ame nas de Sim la, nas fal das do Hi ma la ia, e noKash mir, hoje fla ge la do pela luta en tre o exér ci to in di a no e a guer ri lhamuçul ma na que re vin di ca, para a pro vín cia, o di re i to à auto-determinação.Nova De lhi foi por isso con ce bi da para uma re si dên cia anu al de ape nassete me ses, o que ex pli ca por que pou co pre pa ra da está para a ca ní cu la.No in ver no o tem po é agra dá vel, como sói acon te cer em cli mas tro pi cais.So pra um ven to frio do no ro es te e a tem pe ra tu ra oca si o nal men te podecair aba i xo de zero cen tí gra do.

Mas se o cli ma, o abas te ci men to de água e as con di ções fí si casdo ter re no não se apre sen tam como es pe ci al men te re co men dá ve is, omes mo não é lí ci to afir mar quan to à ad mi rá vel po si ção es tra té gi ca dalo ca li da de – po si ção cen tral, qua se eqüi dis tan te de Cal cu tá, Mum bai(Bom ba im), Ka ra chi e Hyde ra bad, e co lo ca da a ca va le i ro da gran de viade pe ne tra ção do sub con ti nen te no vale en tre o Gan ges e o Jum na.Pode di zer-se que, nes se sen ti do, está re la ci o na da com a fron te i ra vivado no ro es te, a fron te i ra afe gã – de sem pe nhan do um pa pel se me lhan teao de Be id jing e Vi e na, de guar da e de fen so ra da rota tra di ci o nal men tetri lha da pelo bár ba ro in va sor. A fron te i ra do No ro es te! Atra vés de Pe -cha war, hoje no Pa quis tão, e do jus ta men te fa mo so Pas so de Khyber, na fron te i ra com o Afe ga nis tão, pas sa ram to dos aque les exér ci tos e hor -das tri ba is cu jas in cur sões, pro ce den tes da Ásia Cen tral, cos tu ram a pró -pria tra ma da atri bu la da his tó ria da Índia. Ari a nos pré-his tó ri cos, per -sas, scythas, os gre gos de Ale xan dre, hu nos, tur cos, afe gãos e os mon -góis de Ta mer lão, ao de sem bo ca rem das mon ta nhas, de pa ra ram-se como Pend jab, o fér til “país dos cin co rios” na ba cia su pe ri or do Indus.Ora, o Indus cons ti tui uma re gião dis tin ta, bem di ver sa do res to do

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país e, de cer to modo, li ga da ain da ao pla nal to ira ni a no. Um novo obs tá -cu lo er gue-se ao avan ço dos in va so res pois o Pend jab está im pren sa doen tre o Hi ma la ia e o de ser to de Thar, que mede 650 qui lô me tros de ex -ten são por 250 de lar gu ra. Para pros se guir, eles pro cu ra vam o vale doJum na e a pas sa gem es tre i ta, de pou co mais de cem qui lô me tros, en tre oHi ma la ia e o de ser to, nos li mi tes do Raj pu ta na e do Esta do de UttarPra desh. Uma vez for ça da essa pas sa gem, aber to está o ca mi nho para oba i xo vale do Gan ges, para o Bi har, o Ben gal e, ao sul, além dos mon -tes Ara va li, para a Índia Cen tral e o Dek kan. Só en tão co me ça o do mí -nio do sol e da chu va, o vór ti ce da Índia, que se duz com a mi ra gemda con quis ta e a pers pec ti va do luxo fá cil, mas ab sor ve e tri tu ra a ener -gia más cu la dos guer re i ros.

Tal fe i ção ge o grá fi ca pe cu li ar de ter mi na como que dois es tá -gi os su ces si vos na pe ne tra ção do sub con ti nen te. Ale xan dre li mi tou-seao pri me i ro. Ocu pou o Pend jab, mas não con se guiu con ven cer suasfalan ges a for çar o cor re dor para o Gan ges, vol tan do para o pla nal to irani a -no. Nos mil anos se guin tes su ce de ram-se ou tros in va so res sem con tu dose atreverem além do de ser to, na vo ra gem do ma to-grosso in di a no, quasein vi o lá vel. De trás da bar re i ra, pre ser va da em at mos fe ra de es tu fa, de sen -vol veu-se a cul tu ra brah mâ ni ca numa exu be rân cia pe sa da e sen su al, num tor por mís ti co e las ci vo, numa pro li fe ra ção exa ge ra da de for mas e co resonde re i nam, des po ti ca men te, Xhi va, o Deus da mor te, e sua ter rí velcon sor te, Kali. Ali me di tam so bre as ilu sões e so fri men tos do mun do oas ce ta e o ere mi ta.

De lhi é a sen ti ne la na por ta da Índia Cen tral. O pa ta mar des sa por ta en con tra-se a ses sen ta qui lô me tros ao nor te, na al de ia de Pa ni pat,um dos lu ga res da ter ra mais re ga do do san gue dos guer re i ros e das ví ti -mas. Em Pa ni pat, tra va ram-se três das ba ta lhas mais de ci si vas da his tó ria in di a na, o que con fir ma a vir tu de da po si ção. Os con quis ta do res is lâ mi -cos fo ram os pri me i ros a com pre en der o va lor da pra ça que lhes ser viude Qu ar tel-General en quan to len ta men te es ten di am seu do mí nio emdire ção às bo cas do Gan ges e ao Dek kan, para les te e para o sul. O Islãcon se guiu, fi nal men te, trans for mar a me ta de da Índia em uma naçãomuçul ma na e do mi nar todo o res to. Des se do mí nio re sul tou a di co tomiado sub con ti nen te, ofi ci al men te con sa gra da em 1947 pela se pa ra ção dos

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dois Esta dos in de pen den tes da Índia e do Pa quis tão e, pos te ri or men te,a cri a ção do Ban gla desh.

Li ga da ao pe río do mu çul ma no da his tó ria in di a na, De lhi éessen ci al men te uma ci da de im pe ri al cu jas lem bran ças não são hin duspo rém afe gãs, tur cas, mon góis e bri tâ ni cas – da raça dos con quis ta do res! Mu i to em bo ra lem bran ças le gen dá ri as se re fi ram a uma fa bu lo sa Indra -prast ha, sua mais an ti ga men ção au tên ti ca data do ano 993 de nos sa era, quan do por vez pri me i ra foi fun da da por Anang-Pal. Esse rajá in di a nocons tru iu um gru po de san tuá ri os brah ma nis tas onde co lo cou o fa mo so e an ti quís si mo Pi lar de Fer ro, mo nu men to que data do sé cu lo V an tesde Cris to e ce le bra Chan dra gup ta Vik ra ma dit ya, o ma i or dos im pe radoresda Índia an ti ga. O Pend jab e o vale do Gan ges, na épo ca de Anang-Pal,es ta vam di vi di dos em uma mul ti dão de pe que nos re i nos mais ou me nosau tô no mos, her de i ros do úl ti mo gran de Esta do na ci o nal in di a no quefora or ga ni za do, em prin cí pi os do sé cu lo VII, por Har cha-vardhana,Rajá de Kanaudje. A con quis ta is lâ mi ca ma ni fes ta-se por uma sé rieintermi ná vel de in cur sões san gren tas e ne nhu ma di nas tia só li da consegue,ante tais cir cuns tân ci as, agüen tar-se em De lhi por mais de uma ou duasge ra ções. Logo de po is de fun da da, foi in ves ti da por um prín ci pe deAjmer, de raça gurd ja ra, ele men to en tão pre pon de ran te em toda a Índiado no ro es te. Esse so be ra no teve um so bri nho, Pri ti vraj, úl ti mo Mah rajah(Ma ra já ou “Gran de Rei”) Se nhor hin du de De lhi que se tor na ria umhe rói po pu lar ao rap tar a fi lha do Rei de Ka na ud je e di ri gir, de ses pe ra -da men te, a der ra de i ra re sis tên cia con tra os in va so res mu çul ma nos.

No ano 1001, Mah mud de Ghas ni con du ziu seu exér ci to pelo Khyber, pe ne trou na Índia em Pe cha war e ven ceu uma co a li zão de prín -ci pes indíge nas en tre os qua is fi gu ra va o Rajá de De lhi. Fi lho de umescra vo tur co que se apos sa ra pela for ça do tro no afe gão, Mah muddistin guiu-se como o pri me i ro de uma li nha gem de guer re i ros cru éis eme tó di cos cujo sa dis mo exa cer ba do, tem pe ra do de lu xú ria, não ex clu íaum cer to amor às ar tes e à li te ra tu ra. Bár ba ros con ver ti dos ao Islã porinteres se, se den tos de ra pi na, eles iam co lo rir de san gue as pla ní ci espedrego sas da Índia se ten tri o nal e trans for mar per ma nen te men te, nareli gião, na cul tu ra e na raça, toda a área do mo der no Pa quis tão.

Em 1175, Mo ha med de Ghor, o mais po de ro so mo nar ca doAfe ga nis tão, con du ziu nova ex pe di ção con tra o país cuja opu lên cia e

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fra que za cons ti tu íam uma du pla atra ção para sua co bi ça. Em 1191 e1192 ou tras ra zi as, sen do que na úl ti ma foi der ro ta do. No ano se guin te,Kutb-ud-din Ai bak, ge ne ral-escravo que Mo ha med no me a ra Go ver nadorda Índia, ob te ve me lhor su ces so e avan çou vi to ri o sa men te até o Ben gal,de po is de to mar De lhi. Ao in vés po rém, de vol tar ao Afe ga nis tão car re -ga do de sa que, ouro e es cra vas, Kutb-ud-din pre fe riu es ta be le cer-se emDe lhi. Deu as sim iní cio à ocu pa ção per ma nen te do ter ri tó rio con quis ta -do no vale do Gan ges. Foi ele quem ini ci ou a cons tru ção do fa mo soKutb-Minar, es pé cie de Tor re da Vi tó ria que é o ma i or mi na re te domundo (mede qua se 80 me tros de al tu ra) e uma per fe i ção de en ge nharia.

A mes qui ta er gui da ao lado, para ce le brar o seu tri un fo, cons -ti tui uma das pri me i ras ten ta ti vas de adap ta ção da ri que za de co ra ti va daar qui te tu ra hin du ao cha ma do “es ti lo sar ra cê ni co”. O de se nho da mes -qui ta é is lâ mi co mas a or na men ta ção de li ca da da fa cha da, ver da de i roren di lha do de pe dra ver me lha, re ve la a ins pi ra ção in dí ge na. Na mes qui ta foi co lo ca do o ve ne rá vel Pi lar de Fer ro como que para in di car que, nes sadata, De lhi se tor na ra a ca pi tal do Impé rio ma o me ta no da Índia. A di -nas tia es cra va du rou até 1290, exi bin do uma su ces são de dés po tas fe ro -zes e de pra va dos que em pa li de cem a re pu ta ção de Nero. A ca pi tal foien tão avas sa la da por Alah-ud-din (Ala di no) Khil ji, ou tro ter rí vel sol da do de raça tur ca que pro cu rou es ten der a he ge mo nia is lâ mi ca além dosmon tes Vind hya, em di re ção ao Dek kan. Esse ti ra no, bom ge ne ral, no -ta bi li zou-se ao re pe lir os mon góis de Geng hiz-Khan o qual, al guns anos an tes, es car men ta ra o vale do Indus. Mas a di nas tia Khil ji su cum biu porsua vez, no san gue e na obs ce ni da de, sen do subs ti tu í da pela Casa deGhyas-ud-din Tu glak o qual er gueu, a uns seis qui lô me tros a les te da an -te ri or, uma nova De lhi que de no mi nou Tu gla ka bad. Ghyas foi tru ci da do pelo fi lho Mu ha mad Xá que, em 1327, re sol veu trans fe rir o tro no parauma nova pra ça for ti fi ca da, Da u la ta bad, obri gan do toda a po pu la ção aacom pa nhá-lo – sim ples ca pri cho de um mo nar ca que le vou ao pa ro xis mo o sa dis mo e lou cu ra me ga lo ma nía ca dos Sul tões de De lhi. Su ce deu-lheFi ruz Tu glak que, no va men te, trans fe riu a sede do go ver no para ou trosí tio pró xi mo, Fi ru za bad. Já te mos aí qua tro De lhis! Fi ruz re ve lou-seex cep ci o nal ao ten tar re fa zer a gran de za e pro por ci o nar bem-es tar a umpaís su pli ci a do pe los seus an te ces so res.

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Mas em 1398 o Impé rio de De lhi des mo ro nou-se sob os golpes tre men dos de Ta mer lão. O mais fa mo so de to dos os con quis ta do rescen tro-asiáticos, Ti mur-lenk, “o coxo” como era cha ma do, in va diu aÍndia e to mou De lhi cuja po pu la ção in te i ra foi pas sa da ao fio da es pa da. De po is de acu mu lar as pi râ mi des de crâ ni os – de uma só vez de ca pi toucem mil pri si o ne i ros hin dus! – Ti mur, que jun ta va o fa na tis mo re li gi o soà bes ti a li da de do tár ta ro, vol tou ao Tur ques tão, de i xan do como úni cosinal de sua pas sa gem um ras tro de ca dá ve res e al de i as fu me gan tes. Seuim pé rio foi tão frá gil quan to me teó ri ca lhe ha via sido a car re i ra decarras co da Ásia oci den tal. Em 1414, Khirz Khan, Vi ce-Rei de um dosher de i ros ti mu ri das, as su miu o go ver no de De lhi e de cla rou-se des cen -den te do Pro fe ta, fun dan do a di nas tia Sayyd que do mi nou ape nas osarre do res ime di a tos da ca pi tal. Essa foi subs ti tu í da, em 1444, pela Casados Lodi, de ori gem tur co ma na, o se gun do de cu jos Sul tãos, Si kan dar(Ale xandre) Lodi, de i xou como lem bran ça um tú mu lo fa mo so e as ruínases par sas de inú me ros tem plos hin dus. De lhi foi en tão aban do na da emfa vor da Agra, ci da de si tu a da mais ao sul.

Fi nal men te, em 1526, Ba ber “o Lião”, des cen den te de Ti murna sex ta ge ra ção, ocu pou o Pend jab, en trou em con fli to com Ibra himLodi, atra ves sou o Indus e, na ba ta lha de ci si va de Pa ni pat, con quis tou oImpé rio in di a no, pro cla man do-se Sul tão em De lhi. A di nas tia dosGrão-Mongóis, que as sim ina u gu ra ra, é a ma i or de to das as li nha gensma ho metanas da Índia e es ta va des ti na da a um re i na do mul ti se cu lar,levan do ao es plen dor a ci vi li za ção is lâ mi ca de um modo tão es pe ta cu larque, a seu lado, em pa li de cem to das as efê me ras ca sas an te ri o res. Adinas tia tur co ma na se ria de fato, jun ta men te com a dos tur cos oto manosde Cons tan ti no pla, Istam bul, a úni ca a du rar al guns sé cu los – re ve lan doa mis te ri o sa in ca pa ci da de po lí ti ca dos Esta dos is lâ mi cos em ge ral. Ba ber go ver nou em Agra mas seu fi lho e su ces sor, Hu ma yun, trou xe a ca pi talde vol ta a De lhi. Em 1540 Hu ma yun foi der ro ta do por Sher Xá, prín ci -pe afe gão que re cons tru iu com ple ta men te a ci da de e a for ti fi cou comuma nova e po de ro sa mu ra lha. Qu in ze anos de po is, au xi li a do peloXá-in-Xá da Pér sia, re cu pe rou o tro no. Os Grão-Mongóis eram per sasde cul tu ra e tem pe ra men to, mu i to em bo ra des cen des sem tan to deTamer lão, quan to de Geng hiz-Khan. A Casa é de no mi na da “mon gol”ou “mo gol” de vi do à cir cuns tân cia de os hin dus as sim cha ma rem to dos

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os mu çul ma nos que não fos sem de na ci o na li da de afe gã. A di nas tia no ta -bi li zou-se pe los seus há bi tos me nos cru éis e ma i or dis po si ção para acultura e o go ver no or ga ni za do. Ela foi sem dú vi da a mais ben fa ze ja dequan tas es tran ge i ras re i na ram so bre a Índia e, du ran te esse pe río do, ia aarte in du-islâmica, so bre tu do na ar qui te tu ra e na mi ni a tu ra, atin gir aofas tí gio.

Como her de i ro, Hu ma yun ge rou o fi lho que a Índia muijusta men te iria cha mar de Gran de, Akbar. Sou be este so be ra no, comefe i to, jun tar à ener gia fe roz de um tur co ou um mon gol, o gos to ar tís ti -co re fi na do de um per sa e a pro fun da cu ri o si da de re li gi o sa de um hin du. Era ca sa do com três mu lhe res, uma das qua is por tu gue sa. De to dos osseus co me ti men tos, o mais ex tra or di ná rio foi tam bém o de me nor êxi to, en con trar um ter re no de acor do en tre o Hin du ís mo, o Zo ro as tri a nis mo, o Islã e o Cris ti a nis mo. Akbar man dou cons tru ir uma nova ca pi tal numsítio ro cho so, ári do e so li tá rio, a al gu mas mi lhas a oes te de Agra. Fa tehpurSik ri ain da so bre vi ve hoje, qua se in tac ta, como uma mú mia ur ba na,cidade fan tas ma que a fal ta de água con de nou ao aban do no mas cujoesti lo, che io de dig ni da de, cons ti tui um belo exem plo de adap ta ção daarquite tu ra per sa ao es ti lo hin du. No tá vel o Di wan-i-kas, ou Sala deAudiên ci as, onde o Impe ra dor se de le i ta va com as in ter mi ná ve is dis putaste o ló gi cas de brah ma nes, mu lahs, ra bi nos, je su í tas e sa cer do tes da re li -gião maz de ís ta. Alguns mi lê ni os se pa ram-nas, mas po de mos des co brircer to pa ren tes co mis te ri o so en tre a Ci da de do Ho ri zon te de Aton, onde sur giu o pri me i ro so nho mo no te ís ta egíp cio, e Fa teh pur Sik ri onde umou tro mo nar ca, igual men te po de ro so se bem que não tão pa cí fi co ouvisi o ná rio, so nhou com ou tra re li gião uni ver sal so lar.

Fi lho e su ces sor de Akbar, Je han gir foi um in ca paz que secele bri zou ape nas como ro mân ti co ar qui te to. Sua pa i xão pela for mo saMum taz-i-Mahal, a “Fa vo ri ta do Pa lá cio”, é a ra zão do Ma u so léu que,para ela, man dou cons tru ir em Agra, o Taj-Mahal. Tra ta-se do mo nu -men to mais ilus tre da arte mon gol e, in con tes ta vel men te, de uma dasobras-primas da ar qui te tu ra mun di al, tan to no per fil ma ra vi lho so quan to em seu con jun to de pór ti cos, jar dins, es pe lhos d’água e por me no resdeco ra tivos de seu in te ri or de mo sa i co e már mo re. Akbar e Je han girdeixaram De lhi no aban do no por que pre fe ri am Agra. Tam bém re si dirampor al gum tem po em La ho re. Sob o re i na do do Impe ra dor se guin te, Xá

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Je han, “Rei do Mun do”, o tro no vol tou para De lhi e, mais uma vez, foirecons tru í da a ve ne rá vel ca pi tal, com o nome de Xá je han pur (1638-1658),mais bela, rica e im ponente do que nun ca. Os edi fí ci os do For te deDelhi, en co men da dos a ar tis tas de todo o mun do, são tes te mu nhos deum ce ná rio de fan ta sia onde o glo ri o so Sul tão os ten ta va o seu fa us to, no apo geu do domínio mon gol. Xá Je han en con tra ra a Índia em pe drarubra, e a de i xou de már mo re...

Em 1739 ou tro me te o ro de cur ta du ra ção apa re ce no ho ri -zon te se ten tri o nal, ten tan do re pe tir a fa ça nha de Ale xan dre, Ta mer lão eBa ber. Na dir Xá, so be ra no per sa, sa que ou De lhi e tru ci dou a po pu la ção, em ce nas de or gia san gren ta que não des me re ci am da téc ni ca tur co-mon gol. O Tro no do Pa vão foi le va do como pre sa mas esse an ti go con du tor deca me los, “gló ria, hor ror e ver go nha” de seu país, não tar dou em de sa pa -re cer de cena, aban do nan do o Impé rio ir re me di a vel men te en fra que ci do. Uma nova for ça, na ci o nal, igual men te efê me ra, pro cu ra en tão re u ni fi cara Índia – os Mah ra tas que, de po is de êxi tos re tum ban tes, ter mi nam ven -ci dos, em ja ne i ro de 1761, por uma co li ga ção de prín ci pes mu çul ma nosna ter ce i ra ba ta lha de Pa ni pat, uma das mais for mi dá ve is da his tó ria daÍndia.

Cu ri o sa a con tri bu i ção is lâ mi ca à cul tu ra da Índia! Po bre, qua semi se rá vel é o sub sí dio dos con quis ta do res para a li te ra tu ra, a fi lo so fia, aciên cia, o mis ti cis mo e, no en tan to, como ad mi rá vel o que es ses ru dessol da dos cri a ram em ma té ria de ar qui te tu ra, ao con ta to com a at mos fe raar den te, exu be ran te e so bre car re ga da de sen su a li da de do sub con ti nen te!O Rev. Pa dre Wãth, ao pen sar nes sa con tri bu i ção, es pan ta-se de que“guer re i ros, que pa re ci am só pos su ir au dá cia e fa na tis mo, te nham po di do,ape nas che ga dos do rude Afe ga nis tão na Índia vo lup tu o sa e ar den te,ali cri ar obras-pri mas de ar qui te tu ra; e o que ul tra pas sa a ima gi na ção éo es for ço dos Impe ra do res mon góis, des ses so be ra nos cu jos an te pas -sa dos pró xi mos eram sim ples che fe tes das es te pes, para con fe rir atodo o Impé rio um bri lho sem par, se me an do suas prin ci pa is ci da des de edi fí ci os in com pa rá ve is pelo es plen dor e, às ve zes, pela no bre za”. OsGrão-Mon góis fo ram cer ta men te ho mens ex cep ci o na is, ca pa zes dego zar com igual ar dor o es pe tá cu lo de seus ini mi gos, exe cu ta dos sob as pa tas dos ele fan tes, e a con tem pla ção be a ta das nu vens ca pri cho sas no céu dos me ses da mon ção. Her mann de Key ser ling afir ma te rem sido

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tal vez os ma i o res so be ra nos que a Hu ma ni da de pro du ziu pois “eramna tu re zas sel va gens, como se ria de es pe rar em des cen den tes de umGeng hiz-Khan e um Ti mur; eram di plo ma tas re fi na dos, ex pe ri men ta dos co nhe ce do res dos ho mens; mas eram tam bém sá bi os, es te tas e so nha -do res _ e uma tal cons te la ção ja ma is se pro du ziu no oci den te, pelo me -nos para fins prá ti cos”. Mas com ra pi dez es pan to sa sua ener gia más cu la, so pi ta da num at mos fe ra per fu ma da, con ver teu-se em pas si vi da de e emluxo “na ba bes co”. Con tem po râ neo de Luis XIV, é Au reng zeb o úl ti modos gran des di nas tas mon góis, as sis tin do aos pri me i ros si na is da de ca -dên cia que, de po is de sua mor te, se acen tu ou ra pi da men te em con se -qüên cia de no vas que re las de su ces são, ví cio se cre to das di nas ti as tár ta ras.Nes sa épo ca, mes mo às fe i to ri as por tu gue sas e ho lan de sas já eram dopas sa do. Fran ce ses e in gle ses iam ago ra dis pu tar o Impé rio da Índia.

Na re a li da de, a úl ti ma vi tó ria dos mu çul ma nos só apro ve i ta aum novo do mi na dor que ia abrir um ca pí tu lo to tal men te di fe ren te nahis tó ria do sub con ti nen te. Do ra van te sua sor te de ci dir-se-ia nos cam pos de ba ta lha da Eu ro pa e, com ape nas al gu mas cen te nas de sol da dos eu ro -pe us au xi li a dos por mer ce ná ri os in dí ge nas, os Ci pái as (do tur co si pa hi ou spa hi, sol da do de ca va la ria), a Com pa nhia Ingle sa das Índi as Ori en ta is,es ta be le ci da em Cal cu tá, cres ceu, com ba teu, com prou na ba bos e ra jás,transfor mou em vas sa los os ma leá ve is e der ru bou os mais re cal ci trantes... A mi lha res de qui lô me tros de dis tân cia e sem ou tro con ta to com o país,sal vo por mar, uma pe que na ilha da Eu ro pa tor na va-se se nho ra doimen so Impé rio in di a no. A 8 de se tem bro de 1803, Lord Lake der ro touos Mah ra tas sob os mu ros de De lhi, pe ne trou na ca pi tal e co lo cou sobsua pro te ção a som bra de um Impe ra dor, o des cen den te apa ga do dossober bos Mon góis. Cin qüen ta e pou cos anos mais tar de, o gran de “Motimdos Ci pái as“, the Mu tiny, foi um es ter tor ter rí vel em que se apa ga ram osúl ti mos ves tí gi os da so be ra nia in di a na, con so li dan do de fi ni ti va men te odo mí nio da Co roa in gle sa so bre o sub con ti nen te. Lon ga e di fí cil, gi rou a re pres são em tor no de De lhi. O exér ci to bri tâ ni co re to mou a ve lha ca pi -tal a 20 de se tem bro de 1857, de po is de um sí tio san gren to. A ba ta lhafoi he rói ca e apon ta-se ain da o lo cal em que pe re ceu o bra vo Ni chol son, ado ra do por seus sol da dos na ti vos como um deus da guer ra. Foi umsim ples ma jor que pe ne trou no re si dên cia im pe ri al e en con trou, mal tra -pi lho, fa min to, tre men do de pa vor e pe din do mi se ri cór dia, Ba ha dur Xá,

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o úl ti mo des cen den te de Geng hiz-Khan, Ta mer leão, Ba ber e Akbar!Enquan to a sol da des ca eu ro péia, ofus ca da pelo es plen dor dos Di wans,en tre ga va-se à pi lha gem e ao cas ti go dos che fes re bel des, en cer ra va-secom esse fim me lan có li co a gran de di nas tia a quem De lhi e a Índia doNorte de vem o pe río do de ma i or pros pe ri da de! Va i da de de to das asglórias efê me ras: como bem se apli ca ao caso o fa mo so quar te to deOmar Khay yam:

Lem bra-te que, nes te ca ra van sa rai ar ru i na doCu jos um bra is são ora no i te, ora dia,Sul tão trás Sul tão, com toda a pom pa,Pou sou al guns ins tan tes e se guiu ca mi nho...

No fastí gio do re i na do da Ra i nha Vi tó ria, o po der da Ingla terrapa re cia ab so lu to e de fi ni ti vo. Sob a ins pi ra ção de Dis ra e li, Sua Ma jes ta de bri tâ ni ca en ri que cia-se com a jóia mais pre ci o sa de quan tas lhe or na vama co roa. O im pac to po lí ti co, eco nô mi co e cul tu ral do oci den te eraprofun do e es ta va des ti na do a trans for mar, de modo ain da hoje im previ sí vel, a pró pria estru tu ra so ci al e re li gi o sa do país. Nin guém po de ria en tãosupor que esse do mí nio es ta va fa da do a du rar me nos de cem anos.

De po is do gran de es pas mo dos Ci pái as, De lhi, de ca í da, re sig -nou-se a uma vida re la ti va men te prós pe ra de cen tro co mer ci al e tu rís ti -co e nó de co mu ni ca ções fer ro viá ri as. Em 1877 e no va men te em 1903foi es co lhi da para sede do Dar bar, isto é, para a Cor te tra di ci o nal, Gran -de Au diên cia ou Con gres so de prín ci pes vas sa los em que se pro cla ma vao Rei da Ingla ter ra Impe ra dor da Índia, com a pre sen ça da so be ra na.Finalmen te, no Dar bar Impe ri al de 1911, Jor ge V anun ci ou a trans fe rênciada ca pi tal para De lhi ou, por ou tra, para uma área em es tre i to con ta tofí si co com a ve lha De lhi dos mon góis. A pro vi dên cia, de ca rá ter po lí tico,cons ti tu ía um ele men to im por tan te numa sé rie de me di das to ma daspelo go ver no bri tâ ni co para ama i nar a agi ta ção na ci o na lis ta que, des deal gum tem po, prin ci pi a ra a ca u sar pre o cu pa ções.

Ao pe ne trar so le ne men te na nova ca pi tal se gui do de um cor -te jo pom po so, no Na tal de 1912, o Vi ce-Rei Lord Har din ge, fora gra ve -mente fe ri do por uma bom ba ter ro ris ta. Ora, os in gle ses que ri amdemons trar, pela cons tru ção de uma Nova De lhi, a sua in ten ção ir re vo -gá vel de per ma ne ce rem no país. Ergui da na pró pria sede de to das as anti gasgló ri as muçulma nas, a nova ca pi tal vi sa va as se gu rar o êxi to da ad mi nistra ção

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bri tâ ni ca, do Bri tish Raj, ex pri min do uma von ta de de do mí nio in con tras -tá vel. A es co lha do sí tio não obe de cia a sim ples con si de ra ções ge o po lí ti -cas, re la ci o na das com as van ta gens es tra té gi cas da pra ça para o con tro leda sen sí vel fron te i ra do no ro es te onde a som bra do im pe ri a lis mo rus sose me xia de trás das cor di lhe i ras afe gãs – mas de via cons ti tu ir um ges toes sen ci al men te sim bó li co. Enquan to fora a Índia uma sim ples co lô niade ex plo ra ção co mer ci al, era na tu ral que o go ver no per ma ne ces se emCal cu tá – um por to e pra ça mer can til em con ta to ma rí ti mo di re to com a me tró po le. Mas já que se pro cu ra va con so li dar o do mí nio so bre o país,ape lan do para uma ve lha tra di ção im pe ri al, era ló gi co que se trans fe ris se a re si dên cia vi ce-real para o cen tro ou pivô do sub con ti nen te, isto é,para aque la re gião his tó ri ca do alto vale do Gan ges que re pre sen ta olimite na tu ral en tre a Índia do no ro es te, seca, mu çul ma na e guer re i ra, e a Índia do su des te, úmi da, hin du, mís ti ca e pa chor ren ta.

Os gran des mo nar cas in di a nos, os con quis ta do res pat hães, tur -cos e mon góis, ha vi am to dos pro cu ra do ma te ri a li zar seu pres tí gio e eter -ni zar sua me mó ria pela cons tru ção de gran des ca pi ta is. As ru í nas daDe lhi de Anang Pal e Sher Xá, de Tu gla ka bad, Da u la ta bad e Xá je han pur,de Si kan dra, Agra e La ho re, eram mar cos in de lé ve is e pa ra do xa is numpaís cujo povo, im preg na do pelo sen ti men to da im per ma nên cia das co i -sas e do ca rá ter es sen ci al men te ilu só rio do mun do ma te ri al, nun ca seur ba ni zou por li vre von ta de e ja ma is pos su iu uma ver da de i ra es tru tu rana ci o nal, ex pres sa numa cons ciên cia his tó ri ca e numa or ga ni za çãopo lí ti ca es tá vel. As obras mo nu men ta is são o úni co li vro aber to dahis tó ria da Índia e, por con se guin te, o novo cen tro ad mi nis tra ti vo de ve -ria co ro ar a obra co lo ni za do ra dos in gle ses. Cle men ce au ob ser va ria queas ru í nas de Nova De lhi iri am ser, um dia, as mais no bres de to das asDe lhis – ex pri min do uma vi são apo ca líp ti ca do fu tu ro se me lhan te à dopró prio Sci pião Afri ca no, so bre Roma, e de mu i tos bra si le i ros dos anos60 quan to à so bre vi vên cia de Bra sí lia. Sa be mos hoje que o co me ti men to bri tâ ni co não te ria fu tu ro. Con fir man do a len da su pers ti ci o sa, os in gle sesper de ram a Índia que, in de pen den te, é ago ra di vi di da em três Re pú bli casri va is. Assim pois, do pon to de vis ta es tri ta men te co lo ni al, a trans fe rên ciada ad mi nis tra ção bri tâ ni ca para De lhi foi um erro por que acen tu ou eapres sou o pro ces so de or ga ni za ção po lí ti ca e cons ci en ti za ção das mas sashin dus, o que não te ria tal vez ocor ri do se o Vice-Rei hou ves se per ma ne -

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ci do em Cal cu tá, e se es for ço al gum hou ves se sido des pen di do para cri arum ser vi ço pú bli co ci vil, des ti na do a fa cul tar um go ver no cen tra li za doao sub con ti nen te. Se o Esta do in di a no for fi nal men te viá vel, se che gar a amal ga mar esse com ple xo amor fo e caó ti co de cas tas, de ra ças, cul tos elín guas di ver sas, se con se guir gal va ni zar esse povo des fi bra do e se so -bre vi ver à pres são de to das as for ças de sa gre ga do ras, in ter nas e ex ter -nas, que o ame a çam, en tão terá para com a Ingla ter ra a eter na dí vi da degra ti dão de lhe ha ver le ga do os ali cer ces para um edi fí cio po lí ti co es tá -vel e uma ca pi tal mo der na na an ti ga me tró po le de seus con quis ta do resis lâ mi cos. Nova De lhi por si só re pre sen ta um mar co sim bó li co da pas -sa gem dos Sa hibs bran cos. Aos in gle ses, por pa ra do xo, de vem os “na -ci o na lis tas” e “de mo cra tas” in di a nos, sua pró pria exis tên cia.

∗ ∗ ∗O pla ne ja men to da ci da de en vol veu, na tu ral men te, pro ble mas

de al can ce téc ni co e ar tís ti co mu i to mais con si de rá vel do que em qual -quer das ca pi ta is dos an ti gos Esta dos in di a nos. Os in gle ses fi ze ramques tão de apli car à sua ta re fa o que ha via de mais avan ça do em ma té riade co nhe ci men tos mo der nos no cam po do ur ba nis mo. Por ou tro lado,vale no tar a cir cuns tân cia sui ge ne ris de ter sido cons tru í da, não comouma aglo me ra ção in te i ra men te nova, num sí tio an tes vir gem de qual quer es ta be le ci men to ur ba no, mas como uma es pé cie de su búr bio es tre i ta -mente vin cu la do – não se so bre pon do mas se jus ta pon do à ci da de antiga.Só a “ci da de nova” de Anka ra apre sen ta al gu ma se me lhan ça com ocaso, no qua dro de nos so es tu do so bre as ca pi ta is. Nes te sen ti do, aliás,obe dece à con cep ção da “ci da de-satélite” pro pos ta por al guns ur ba nistasmo der nos como so lu ção para os mais gra ves pro ble mas de con ges ti o na -men to e “afa ve la men to”: an te ci pou Bra sí lia.

O Vi ce-Rei, Lord Har din ge, no me ou uma Co mis são es pe ci alde três mem bros, o De lhi Town-Planning Com mit tee, com pos to do Ca pi tãoG. S. C. Swin ton, Pre si den te; John A. Bro die, en ge nhe i ro da ci da de deLi ver po ol, e Edwin L. Lut yens, ar qui te to. A Co mis são vi si tou o país een tre gou o seu pri me i ro re la tó rio em ju nho de 1912. Sem es tar atra van -ca do de an ti gos mo nu men tos, a ma i or par te dos qua is se en con tram napar te ba i xa, à be i ra do rio, o sí tio per mi tia aces so fá cil aos mes mos eofe re cia boas oportuni da des para pers pec ti vas dos res tos his tó ri cos e

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arque o ló gi cos lo ca is. Apre sen ta vam-se con di ções fa vo rá ve is de aces soao cen tro da ci da de ve lha e as au to ri da des mi li ta res apro va ram os seusar re do res para a ins ta la ção da Vila mi li tar pro je ta da. Em mar ço de 1913a Co mis são re di giu o seu Re la tó rio, pre ce di do de con si de ra ções pre li mi -nares de va lor uni ver sal. “Exis tem cer tos prin cí pi os ge ra is que go vernamtodo pla ne ja men to ur ba no em qual quer país ou cli ma, mu i to em bo rapos sam so frer va ri a ções de con for mi da de com o mo ti vo de ter mi nan teda ci da de. A Co mis são de se ja fa zer res sal tar o pri me i ro de tais prin cí pi -os que é a ne ces si da de de pre vi são. É im pres cin dí vel que se ma ni fes te ode se jo de en fren tar to das as ne ces si da des pos sí ve is do fu tu ro. Qu a is quer que se jam as even tu a li da des dos dias por vir, a nova ca pi tal de ve rá ter aseu dis por o po der ine ren te de go zar de boas con di ções sa ni tá ri as e co -man dar uma vas ta ex ten são de es pa ços are ja dos, para qual quer ex pan são ul te ri or. Uma ci da de bem pla ne ja da deve nas cer já com ple ta e, não obs tan te, pos su ir a ca pa ci da de de re ce ber acrés ci mos sem per der o seu ca rá ter ori gi nal. Deve ha verbe le za com bi na da com con for to e con ve niên cia, tan to de ar ran jo quan -to de co mu ni ca ções. As prin ci pa is vias de trá fe go de vem ser ave ni das ar -bo ri za das (park ways), sus cep tí ve is de ex ten são tan to em lar gu ra quan toem com pri men to. A rede de co mu ni ca ções in ter na e ex ter na deve es taraci ma de qual quer crí ti ca. E quan do pos sí vel deve ha ver uma apre sen ta -ção das be le zas na tu ra is – mon ta nhas, bos ques e águas – e dos mo nu -men tos da an ti gui da de, as sim como dos es plen do res ar qui te tô ni co dostem pos mo der nos. Re quer es pa ço para re cre io de to das as clas ses so ci a -is. O re sul ta do fi nal deve ser con ce bi do como con te ú do orgâ ni co (selfcon ta i ned) mas, não obs tan te, pos su ir elas ti ci da de la ten te, e o con junto per -fe i to re a li za do le van do em con ta as li mi ta ções dos or ça men tos”. Os co -mis sá ri os pas sa ram, em se gui da, a de fi nir os prin ci pi as par ti cu la res quedeve ri am go ver nar o pla ne ja men to do sí tio es pe cí fi co da nova Delhi, con -ce bi dos como a re a li za ção da “Idéia Do mi nan te” da ca pi tal e com aadap ta ção do es que ma ur ba nís ti co às con di ções fí si cas lo ca is: “De lhiestá fa da da a ser uma ca pi tal im pe ri al e a ab sor ver as tradi ções de to -das as an ti gas ca pi ta is. Será a sede do go ver no da Índia e de ve rá ex pri mir a idéia do do mí nio pa cí fi co e da dig ni da de go ver na men tal do Bri tish Rajso bre as tra di ções e a vida do país. A aten ção ne ces sa riamen te de di ca da àscon dições fí si cas con cen tra-se, so bre tu do, em tor nar a nova ci da de pro pí cia a uma re si dên cia de sete me ses. A sa ú de re quer sal vaguar da cu i da do sa

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numa ter ra com uma pés si ma his tó ria de ma lá ria e su je i ta a va ri a çõesvio lentas no cli ma, nas pre ci pi ta ções e nos ní ve is das inun da ções. Osincon ve ni en tes lo ca is de po e i ra, ex ces si va lu mi no si da de e ari dez de vemser com ba ti dos e, nes se sen ti do, é mis ter um zelo es pe ci al com a ir ri ga -ção, sem o que ja ma is cres ce rão em De lhi, nem gra ma dos nem ár vo res”.

Go ver na da por tais prin cí pi os, a Co mis são apre sen tou umpro je to ur ba nís ti co com ple to que foi apro va do, pas san do-se logo à fasede execu ção, não obs tan te as di fi cul da des acar re ta das pela Pri me i raGuer ra Mun di al. Sir Edwin Lut yens, o ar qui te to da Co mis são, ins pirou-seno de se nho de L’Enfant em Was hing ton e, em par te, nos ronds-points eéto i les da os sa tu ra ha uss ma ni a na de Pa ris, con ce ben do um de se nho emlo san go em tor no de um triân gu lo equi la te ral, numa base les te-oeste.Todo o dis po si ti vo foi ar ti cu la do à vol ta de um ful cro cen tral de in te resseque for ne ce o mo ti vo prin ci pal do con jun to ocu pa do pelo Pa lá cio doGoverno (ori gi na ri a men te a re si dên cia do Vi ce-Rei) e pe los imen sosblocos do Se cre ta ri a do ou De par ta men to de Esta do, con jun to esse ergui do so bre uma pe que na emi nên cia, o Mon te Ra i si na. Ra i si na é, na ver da de,uma pe dra de quart zo mu i to duro que per ten ce à pa re de oci den tal dapla ní cie mar gi nal. A Espla na da, sede dos ór gãos do Bri tish Raj em suasu pre ma ex pres são, re pre sen ta como que uma ca be ça com os seus doisbra ços es ten di dos, do mi nan do pela al tu ra o rio, a pla ní cie, a an ti ga De lhi e a De lhi mo der na. Sem cons ti tu ir pro pri a men te uma acró po le por que a ele va ção é mo des ta, essa pla ta for ma re pre sen ta as sim mes mo a cha vees que má ti ca que pre si de à dis tri bu i ção das li nhas e das mas sas. Con tem -plan do o con jun to des de o pla no mais ba i xo, “a ima gi na ção é con vi da da a ele var-se ao pri mo-móvel do po der!”. A idéia é exa ta men te a mes maque fez do mi nar o Ca pi tó lio em Was hing ton.

Com uma “Ave ni da Real” (King sway, hoje Raj path) de três qui -lô me tros de ex ten são com 350 me tros de lar gu ra, Lut yens tra çou o eixoprin ci pal les te-oeste, obe di en te ao es pí ri to do Pla no que pro cu ra, comopon tos de re fe rên cia, os mais im por tan tes cen tros de atra ção da ve lhaDe lhi. A ar té ria, uti li za da para as gran des de mons tra ções do po de riobélico in di a no e as ma ni fes ta ções po pu la res, con duz des de o Pa lá cio doGoverno, de trás do qual se es ten dem os par ques, la de a dos pe los edi fí ciosge ra is da Re si dên cia, e o Re ser va tó rio de água, a uma pra ça mo nu men tal para a qual con ver gem dez ave ni das. Essa pra ça, de for ma he xa go nal,

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apre sen ta um diâ me tro de 750 me tros e cons ti tui um pa ta mar di an te das ru í nas da ci da de for ti fi ca da de Indra pat (o Old-Fort), a mais an ti ga De lhi, às mar gens do Jum na. Em ân gu lo reto cor re a ou tra ave ni da axi al queco me ça ao sul, na Ca te dral an gli ca na, e ter mi na ao nor te, na Esta ção daEstra da de Fer ro. As duas ave ni das la te ra is do triân gu lo bá si co (di a go na -is) en con tram-se no cen tro co mer ci al de New-Delhi e pro lon gam-se, res -pec ti va men te, até a Gran de Mes qui ta e até o tú mu lo do Impe ra dor Hu -ma yun. A ci da de está por tan to ar ti cu la da com as De lhis his tó ri cas emor dem a “sa li en tar a sua na tu re za to tal e eterna, e bem as sim seu cará ter pa cí fi co, em con tra po si ção ao as pec to bé li co das mu ra lhas e for ti fi ca -ções do pas sa do”. Po de-se di zer, em con clu são, que Nova De lhi é umbom exem plo do ur ba nis mo fun ci o nal mo der no. Lut yens aban donou osdese nhos or to go na is rí gi dos do pas sa do e cri ou uma es tru tu ra fle xível eor gâ ni ca, de ter mi na da por vá ri os im por tan tes pon tos de re fe rên cia. Dis -so re sul tou, in clu si ve, um zo ne a men to ra ci o nal dos ba ir ros re si den ci a is,cen tro ad mi nis tra ti vo, ci da de ve lha e acan to na men tos mi li ta res. Pla ne ja -da an tes da Pri me i ra Gu er ra Mun di al, numa épo ca por tan to em que otrá fe go au to mo bi lís ti co ain da não cons ti tu ía o pro ble ma fa tal das me tró -po les mo der nas, Sir Edwin Lut yens sou be pre ver o fu tu ro de sen vol vi -men to des se meio de trans por te. As ave ni das, já bas tan te lar gas, cru -zam-se em es pa ço sos “ba lões”, de se nha dos para fa ci li tar o es co a men todo trá fe go.

No mo men to em que se cons tru iu De lhi a ar qui te tu ra dita“mo der na” ain da não exis tia. O Ti mes de Lon dres po dia ain da afir marque “o Re nas ci men to é o es ti lo do mun do ci vi li za do mo der no”. Nãohou ve por isso opor tu ni da de de se ten tar o que foi re a li za do em Anka ra pe los ar qui te tos ale mães; o que Le Cor bu si er exe cu tou em Chan di gahr,na pró pria Índia, e o que foi fe i to em Bra sí lia. Na re a li da de, tal vez hou -ve sen ti do em cons tru ir Was hing ton ou Pre tó ria num es ti lo ne o clás si co.No Novo Mun do, não há tra di ção es pe ci al a con ser var e é lí ci to afir marque o es ti lo Re nas cen tis ta ou Ne o clás si co era o que ha via de mais re pre -sen ta ti vo da ci vi li za ção oci den tal. Cer ta men te os gran des edi fí ci os deWas hing ton, o Ca pi tó lio, a Cor te Su pre ma, o Me mo ri al de Lin coln, sãomais “au tên ti cos” do que o fal so gó ti co em pre ga do no con jun to go ver -na men tal de Otta wa. Mas que fa zer num país ori en tal que já pos sui uma tradição ar qui te tô ni ca na ci o nal, com pro fun das ra í zes no pas sa do re li gioso,

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po lí tico e ar tís ti co? Pro ble ma cer ta men te di fí cil para o qual nem a China,nem a Índia en con tra ram res pos ta sa tis fa tó ria. Ain da não apa re ceu, salvotal vez no Ja pão, o ar qui te to ge ni al ca paz de adap tar os es ti los in dí genas,ela bo ra dos du ran te mi lê ni os, aos pro pó si tos, às pro por ções e aos ma te -ri a is da ar qui te tu ra mo der na. Os es ti los, como as cul tu ras, são len ta menteela bo ra dos a par tir de mo ti vos an te ri o res per ten cen tes a ou tras cul tu ras.A pu re za de es ti lo é len ta men te ex tra í da de um com ple xo de mo ti vosalhe i os. Afi nal de con tas, o bol bo sar ra cê ni co de sen vol veu-se a par tir dacú pu la ro ma na, e esta a par tir de mo nu men tos sí ri os, do mes mo modocomo a co lu na gre ga ins pi rou-se na egíp cia. Na Índia se ten tri o nal che -gou-se a uma ver da de i ra in te gra ção da arte ára bo-persa com o es ti lopro pri a men te na ci o nal hindu, o qual só pode ser apre ci a do em sua“pureza” nos tem plos brah mâ ni cos na par te me ri di o nal do sub con ti -nen te. Não te nho cre den ci a is para jul gar se Sir Edwin Lut yens teve ounão su ces so na ten ta ti va de com bi na ção e adap ta ção, pois tudo que énovo em ma té ria de es ti lo ofen de, a prin cí pio, à vis ta apa nha da deimpro vi so. Nem sa be mos se sua obra foi fa vo ra vel men te re ce bi da pe losen tu si as tas da arte in dí ge na. Mas, nem por isso, de ve mos ne gar ao cons -tru tor de Nova De lhi elo gi os pelo ad mi rá vel es for ço. Como to das ascida des no vas, so bre tu do como to das as no vas ca pi ta is asiá ti cas cujomoder nis mo cho ca por si mes mo, em con tras te com o as pec to ve ne rávelda pa i sa gem das cer ca ni as, re i na so bre Nova De lhi uma cer ta at mos fe raar ti fi ci al, pou co au tên ti ca, de um cer to modo for ça da. Fal ta-lhe a pá ti nado tem po e é na tu ral que as sim seja. Como em Anka ra ou em Tó quio, o ur ba nis mo oci den tal, com lar gas ave ni das, ruas ar bo ri za das, es ti lo ar qui -te tô ni co ri go ro sa men te ge o mé tri co, sen te-se como que des nor te a do,dépay sé, pro cu ran do des cul par-se de im pin gir na ba ra fun da pi to res ca eexó tica do ori en te. Ne nhu ma des sas ca pi ta is con se guiu re a li zar o milagrede co e xis tên cia ar tís ti ca que é Roma. W. J. Grant é tal vez de ma si a da -men te se ve ro em sua crí ti ca mas vale re pro duzi-la como con clu são:Delhi “é lim pa, nova, ge o mé tri ca e bela. Como de cla ra ção de ar qui te tu ra ofi ci al é sem dú vi da per fe i ta. Não tem com pli ca ções e as trans gres sõesdo uti li ta ris mo es tão ao al can ce da mão; a vul ga ri da de da eco no mia dees pa ço não tem efe i tos de sa gra dá ve is; a mão do de se nhis ta foi li vre ege ne ro sa. Câ ma ra do Con se lho, Re si dên cia vi ce-real e Se cre ta ri a do sãotodos no bres, bran cos e es plên di dos. Nova De lhi, na ver da de, tudo possui,

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sal vo at mos fe ra. Seu es pí ri to é o es pí ri to de uma nova pol tro na na salanova de uma nova casa. A pos tu ra é cor re ta; a po si ção é cor re ta; o es ti lo é cor re to; o de se nho é cor re to. É na ver da de in fer nal men te cor re ta. Por -que ain da não vi veu e por que a úni ca es pé cie de vida que ali se pode de -senvol ver é adre de pre pa ra da e ar ti fi ci al... Nova De lhi não tem coração, sótem um cé re bro ofi ci al!”.

Cin qüen ta anos de po is e já es car men ta da pela his tó ria, comal guns mi lhões de ha bi tan tes a mais do que ori gi na ri a men te cal cu la do, aci da de im pe ri al bem me re ce, no en tan to, da nova Índia – esta Índia quese au to pro cla ma a “ma i or de mo cra cia do mun do” não obs tan te já terpro vo ca do cin co guer ras, con ser var o abo mi ná vel sis te ma de cas tas,ado rar as va cas sa gra das, man ter opri mi da a po pu la ção mu çul ma na doKash mir e ha ver re gis tra do a di ta du ra da fi lha de seu fun da dor Neh ru, a Se nho ra Indi ra Gand hi – a qual, de po is de or de nar o fu zi la men to decen te nas de sikhs na sua ci da de sa gra da de Amrit sar, foi as sas si na da emato de vin gan ça. A Índia her dou dos in gle ses a es tru tu ra le gal, ad mi nis -tra ti va, mi li tar e, em gran de par te, eco nô mi ca, que a trans for mou numadas prin ci pa is po tên ci as do mun do. De lhi cor res pon de exa ta men te aessa na tu re za, ori gem e ca rac te rís ti cas po lí ti cas e so ci a is. Não cre io queseja ago ra “ar ti fi ci al”. Foi uma das gran des re a li za ções do Bri tish Raj.

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Xá Je han, o sul tão que con so li dou Delhi como ca pi tal da Índia

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New De lhi – Plan ta de Sir. E Lut yens. 1. Pa lá cio do Go ver no. – 2. O Se cre ta ri a do.– 3. O Par la men to. – 4. Ave ni da mo nu men tal. – 5. Espla na da. – 6. Cen tro

co mer ci al. – 7. Esta ção. – Em cima, à di re i ta, Ci da de Ve lha de De lhi

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De lhi. O Pa lá cio do Go ver no, an ti ga re si dên cia do Vice-Rei

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XIVAnkara e a Obra de Atatürk

Numa ter ra ári da, im preg na da de his tó ria, onde as pe dras la vra das e as lá pi des de már mo re ates tam a an ti gui da de do ho mem naspa ra gens, Anka ra ta ria sido fun da da, se gun do a tra di ção, pelo len dá rioRei Mi das, o mes mo que con ver tia em ouro tudo que to ca va. Se é cabível a hi pó te se de uma ori gem frí gia, si na is mais an ti gos do pe río do hi ti ta,se gun do mi lê nio an tes de Cris to, fo ram en con tra dos, de tal qua li da deque a ci da de hoje se or gu lha do ma i or mu seu de an ti gui da des hi ti tas nomun do. Mais tar de, fez par te do Re i no da Lí dia. Logo após, foi con quis -ta da pe los Per sas e Ale xan dre, no iní cio de sua mar cha tri un fal através daÁsia, em 334 an tes de Cris to, de te ve-se no sí tio por al gum tem po, apóscor tar o Nó Gór dio. Os gre gos cha ma vam a po vo a ção Ankyra ouAncyra e pa re ce cer to que a pa la vra sig ni fi ca re al men te “a cur va” ou“ân co ra”, sím bo lo ma rí ti mo fre qüen te men te re pro du zi do em suas maisan ti gas me da lhas. A for ma das mon ta nhas cir cun vi zi nhas ex pli ca ria tal -vez essa es tra nha de sig na ção, numa ci da de tão pro fun da men te con -tinen tal. A ex pli ca ção pode re si dir na cir cuns tân cia que, no ter ce i ro século an tes de Cris to, o exér ci to cél ti co de Be lo ve so, so bri nho do fa bu lo soAmbi ca tus, de po is de per cor rer de vas ta do ra men te os Bal kans e a Gré cia

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onde pi lhou o tem plo de Del fos, es ta be le ceu-se na re gião que pas sou aser de no mi na da Ga lá cia. Com a Ga lí cia es pa nho la, a Ga lí cia po la ca, Walesnas ilhas bri tâ ni cas e a Ga li léia em Isra el, essa pro vín cia do Pla nal to daAna tó lia tes te mu nha a ex ten são ter ri to ri al ex tra or di ná ria que al can çou aar re me ti da ga u le sa. Os “Gá la tas tec to sa gas” do pe río do he le nís ti co con -ti nu a ram, por mu i to tem po, suas de pre da ções na Ásia Me nor sob ocoman do de che fes ou prín ci pes ban di dos; e, se sua im por tân cia numéricanão foi con si de rá vel, há quem afir me que os “Armê ni os lou ros”, cam -po ne ses da re gião em tem pos re cen tes, eram seus des cen den tes di re tos.

Incor po ra da ao Impé rio de Mith ri da tes, o ma i or ini mi go deRoma de po is de Ha ni bal, com ba te ram em Anka ra as le giões do Gran dePom peu que, de po is de ani qui lar o Rei do Pon to, em 74 an tes de Cris to,ele vou a ci da de ao alto ní vel de ca pi tal da pro vín cia gá la ta. Sua im por -tân cia co mer ci al cres ceu enor me men te sob o im pé rio dos Cé sa res, e,por esse mo ti vo, os ri cos ci da dãos da re gião te ri am er gui do, em tes temunhode gra ti dão, o tem plo de Au gus to em cu jas ru í nas foi en con tra do, nosécu lo XVI, o tex to epi grá fi co em gre go e la tim do fa mo so Tes ta men toImpe ri al – Res ges tae divi Au gus ti. Gra ças ao em pe nho de de di ca dosarqueó lo gos, po de mos hoje con tem plar as ru í nas de pe dra e már mo redo Mo nu men tum Ancyra num – a base da co lu na ta e pór ti co do tem plo; aco lu na mo nu men tal, dita de Au gus to, em cujo topo uma ce go nha cons -tru iu o ni nho; os res tos das ter mas e do cir co; mar cos es par sos bi lín -gües, la jes e fron tões, apro ve i ta dos na cons tru ção da mu ra lha da ci dadelame di e val ou per di dos en tre os ali cer ces de ca si nhas mo des tas da ci da develha – tudo re ve lan do a pros pe ri da de no tá vel que go zou Ankyra quando a fér til ter ra da Ga lá cia não fora ain da trans for ma da em de ser to pela secu ra pro gres si va do cli ma, as pa tas das hor das in va so ras e a in cú ria mi le nardo cam po nês ca pa dó cio.

A pros pe ri da de pro lon gou-se du ran te o Impé rio e sua po pu -la ção pode ter atin gi do a ci fra dos du zen tos mil. Cha ma da Se bas ta eAnto ni e ta, foi-lhe con fe ri do o tí tu lo de “me tró po le”. São Pa u lo ali pregoua mul ti dões hos tis e, sen do um dos mais an ti gos bis pa dos cris tãos daÁsia Me nor, tor nou-se co nhe ci da como cen tro de dou tri nas he ré ti cas.Em Ankyra re u niu-se um Con cí lio, acon te ci men to que de no ta a as pe rezadas lu tas re li gi o sas no pe río do bi zan ti no. Foi re si dên cia do Impe ra dorArca di us no sé cu lo V e ser viu, vá ri as ve zes, de Qu ar tel-General nos

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tem pos trá gi cos em que o Impé rio com ba teu, com al ter na ti vas de sucessose de re ve zes, con tra a maré in va so ra de seus ini mi gos. Em sua vi zi nhança, os exér ci tos dos Ba si le is en fren ta ram per sas e par tas, ára bes e sí ri os, tur -cos seld ju ki das e oto ma nos, dis pu tan do acir ra da men te a for ta le za cu jasdu plas mu ra lhas de pe dra en car na da, man cha das de san gue e que i ma das pelo sol ar den te, de fen di am um dos úl ti mos re du tos da ci vi li za ção oci -den tal na Ásia Me nor. Ha run al-Rachid e Mu ta sin, ca li fas de Bag dad,ata ca ram-na e os Seld ju ki das to ma ram-na em 1071, de po is da ba ta lhade ci si va de Man si kirt, fa tal para o des ti no da Eu ro pa na que les dis tan tesrin cões de sua ci vi li za ção. Ra i mun do de To lo sa e os Cru za dos ocu pa -ram-na em 1101, em sua mar cha para a Ter ra San ta. Logo em se qui da, e para sem pre, vi e ram os tur cos oto ma nos. Ao nor te da pra ça, a pla ní ciede Tchu buk as sis tiu a um dos ma i o res en con tros guer re i ros da his tó riame di e val quan do o Sul tão Ba ya zit (Ba ja zet), vul go “Re lâm pa go”,sucumbiu sob os gol pes for mi dá ve is de Ta mer lão, não obs tan te o heroísmodos ja ní za ros e de seus au xi li a res sér vi os. Na ba ta lha de Anka ra meiomilhão de ho mens de mons tra ram com a sua fú ria guer re i ra o va lor militarda cha ve da Ana tó lia. Mas após a mor te de Ta mer lão, os oto manosrecon quis ta ram fa cil men te a sua Engu riê ou Ango rá. Qu i nhen tos anospas sa ri am en quan to a ci da de dor mia, lem bra da ape nas pe los seus cé le -bres ga tos bran cos, sur dos, com um olho ver de e ou tro azul, hoje tão ra -ros que al guns in di ví du os vi vem no jar dim zo o ló gi co lo cal. Nin guémima gi na ria que um novo des ti no es ta va re ser va do à aglo me ra ção e queuma gran de ca pi tal res sur gi ria um dia, aos pés de suas mu ra lhas es quecidas.

Con tem ple mos o pla nal to! Se su bir mos ao alto da mon ta nhaHus se in Gha zi, cujo per fil ator men ta do su ge re a pi râ mi de cen tral deuma imen sa cra te ra que o tem po des gas tou e os ter re mo tos des man te laram,po de re mos go zar um mag ní fi co pa no ra ma. Si tu a da numa po si ção cha ve, no cen tro da Ana tó lia, ela con tro la o ca mi nho tra di ci o nal do co mér cio e das in va sões que liga a Ásia à Eu ro pa, pelo Ta u rus e a Ca pa dó cia. Acidade de Anka ra aí está, es ten di da lar ga men te so bre um eixo de dezqui lô me tros, com suas cons tru ções mo der nas que lhe da vam, há 50anos, um cu ri o so as pec to de acam pa men to ou de ex po si ção in ter naci o nal.O sí tio es tra té gi co ex pli ca o seu des ti no. E esse des ti no pos sui hoje umva lor emi nen te pois a Ana tó lia, pela pri me i ra vez, cons ti tui uma uni da de ge o po lí ti ca, in de pen den te e se pa ra da, que pro í be a uti li za ção do caminho

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his tó ri co por for ças agres si vas, o que fi cou ple na men te com pro va dopelo su ces so da ne u tra li da de ar ma da tur ca du ran te a Se gun da Gu er raMun di al. Num Ori en te Mé dio que é tal vez uma das mais im por tan tes emais sen sí ve is áre as es tra té gi cas do mun do mo der no, numa en cru zilhadaem que há três mil anos o Oci den te en fren ta a Ásia, Anka ra apa re ceucomo o bas tião da só li da for ta le za que, para a de fe sa da Eu ro pa, tor -nou-se pa ra do xal men te a Tur quia, bra ço di re i to da ar ma du ra er gui dapela OTAN às am bi ções dos so vié ti cos.

Du ran te a Pri me i ra Gu er ra Mun di al, Ango rá es te ve no car taz. Ha bi ta da en tão por umas cin qüen ta mil pes so as, das qua is um ter çoeram ar mê ni os, ca tó li cos ou gre go ri a nos, além de uns dois mil gre gos eju de us, as si na lou-se como um dos sí ti os mais en san güen ta dos pela ten -ta ti va de ex ter mí nio da raça ar mê nia, pro mo vi da pe los Jo vens Tur cos –o pri me i ro exem plo mo der no da po lí ti ca de “lim pe za ét ni ca” que no ta -bi li zou som bri a men te o sé cu lo XX. A es co lha de Anka ra como sede dogo ver no ke ma lis ta pren de-se, en tre tan to, a um mero con jun to de cir -cuns tân ci as que con fir ma ram a im por tân cia es tra té gi ca e, por assimdizer, sen ti men tal da ve lha aglo me ra ção. Ter mi na da a guer ra com ader ro ta e es fa ce la men to dos Impé ri os Cen tra is, in clu si ve o Oto ma no,“ho mem do en te da Eu ro pa”, a ocu pa ção de Cons tan ti no pla pe las for ças alia das fran co-britânicas e o de sem bar que dos gre gos em Smir na pa re ciamconfir mar a de ses pe ra da si tu a ção do povo tur co. O Sul ta na to im po tente,à mer cê das in tri gas de tor pes le van ti nos, não se re ve la va mais ca paz dedi ri gir a re sis tên cia na ci o nal aos pro je tos que vi sa vam, sim ples men te,var rer o país do mapa do mun do. Em tal emer gên cia, apa re ceu a fi gu raca ris má ti ca de Mus ta fá Ke mal Pa chá.

Ge ne ral que se ilus tra ra pela vi to ri o sa de fe sa dos Dar da ne los– na ma lo gra da cam pa nha de Ga li po li, pro mo vi da por Wins ton Chur -chill com o pro pó si to de so cor rer a Rús sia e apres sar o fim da Gran deGu er ra – as sim como por seu es pí ri to enér gi co e in de pen den te que otor na ra sus pe i to às au to ri da des da Su bli me Por ta, Mus ta fá Ke mal prin cipiaa or ga ni zar à sua vol ta uma cor ren te re vo lu ci o ná ria na ci o na lis ta, hos tiltan to à ve lha or dem mo nár qui ca quan to às in tro mis sões es tran ge i ras.Decré pi to e co var de, te me ro so de sua per so na li da de, o Go ver no otomanoo re mo veu, com o car go du vi do so de Inspe tor do Exér ci to, para Sam -sun, na cos ta do Mar Ne gro, onde ele de sem bar cou, logo di ri gin do-se

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para Ango rá. A ci da de era en tão a es ta ção ter mi nal da Estra da de Fer roana to li a na, era a ca be ça da gran de fer ro via de pe ne tra ção do pla nal toem dire ção à Sí ria e à Ter ra San ta, he ran ça do gran de so nho im pe ri a lis taalemão, fa mo so an tes do con fli to de 1914/19, pelo nome de “Ber -lim-Bagdad”. Ke mal es co lheu-a em vis ta de es tar su fi ci en te men te dis -tan te do li to ral, ocu pa do pe los in va so res gre gos, em bo ra em con ta to fá -cil com as ou tras par tes da Tur quia asiá ti ca. Logo em se gui da, ali con vo -cou uma Gran de Assem bléia Na ci o nal cuja data de aber tu ra, 23 de abrilde 1920, mar ca o pon to ini ci al do re nas ci men to da Tur quia.

A pou cos qui lô me tros da ve lha aglo me ra ção de ca den te, exis te uma co li na, Tchan ka yâ, en tão ocu pa da por al gu mas ca sas ar ru i na das,pas tos e plan ta ções de par re i ras. Uma des sas ca sas per ten cia a um armênio, um pou co me lhor do que as ou tras por ser cons tru í da de pe dra, e gozavade uma vis ta es plên di da so bre o vale pan ta no so e o mor ro for ti fi ca do da an ti ga Ankyra. Orgu lha va-se, além dis so, de pos su ir ja ne las en vi dra ça das e uma pol tro na es to fa da, luxo iné di to na que le mo men to. Mus ta fá Ke mal veio nela re si dir, alo jan do os com pa nhe i ros nas vi las es par sas da re don -de za, e no lo cal, exa ta men te nes se ce ná rio mo des to, deu iní cio à gran deobra po lí ti ca de sua vida. Foi daí que, du ran te os três anos se guin tes, o“Gha zi” ou lí der da in de pen dên cia di ri giu vi to ri o sa men te a re vo lu çãoin ter na em sua pá tria e a guer ra ex ter na con tra os gre gos. A ba talhadeci si va tra vou-se às mar gens do rio Sa kar ya, a uns se ten ta qui lô me trosa oes te da ca pi tal pro vi só ria, ter mi nan do pela der ro ta dos in va so res. Acida de foi ver da de i ra men te a “ân co ra” em que se gu rou a nave do Estado.Pou co de po is do ar mis tí cio, Ke mal, de se jo so de rom per de fi ni ti va men te com o pas sa do, abo liu o Sul ta na to e, em se gui da, o Kha li fa do, isto é, aface re li gi o sa do po der tem po ral is lâ mi co. A Re pú bli ca foi pro cla ma da a 29 de ou tu bro de 1923 e a ci da de, cujo nome pas sou a es cre ver-seAnka ra no novo al fa be to tur co la ti ni za do, foi ofi ci al men te de cla radacapi tal.

Entre tan to, a ve lha Ango rá me di e val, api nha da em tor no daci da de la, não foi des tru í da nem aban do na da, po rém con ser va da comopara ser vir de ter mo de com pa ra ção com a ci da de nova que, sem soluçãode con ti nu i da de, cres ceu à sua vol ta. A par tir de 1927, o pla ne ja men toda me tró po le pro ces sou-se ra ci o nal men te, a car go dos ur ba nis tas Jous -se ley, fran cês, e Jan sen, aus tría co. O Pla no Pi lo to pre viu um acrés ci mo

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da po pu la ção para 350.000 (ela hoje ul tra pas sa os três mi lhões!), e seupro gres so efe ti va men te foi mu i to rá pi do des de o prin cí pio. O in flu xo da po pu la ção vin da de Cons tan ti no pla e do in te ri or, a im por tân cia po lí ti cacres cen te do cen tro go ver na men tal, jun ta men te com o gê nio cri a dor deMus ta fá Ke mal, de ter mi na ram a mo der ni za ção da ci da de que é hoje,por as sim di zer, a “vi tri ne” da nova Tur quia. O vale pan ta no so en tre acida de la e a co li na de Tchan ka yâ trans for mou-se no cen tro ad mi nis tra tivoda ca pi tal, a “Ci da de Nova”, Ye nis he ír. Mas so bre tu do a par tir dos anos50, a me tró po le pas sou por uma fase de edi fi ca ção in ten si va, com re do -bra do in cre men to da po pu la ção – si na is evi den tes da vi ta li da de exu be -ran te que hoje ani ma esse rude e ári do pla nal to ana to li a no. Cabe sa li en -tar o es for ço que tudo isso exi giu da na ção tur ca, na ção po bre, semgran de ima gi na ção e do ta da de me i os ci en tí fi cos pre cá ri os. É, nes se sen -ti do, que se pode re al men te afir mar ser a Anka ra mo der na a obra de um ho mem, Mus ta fá Ke mal – o as pec to vi sí vel, a ex pres são ma te ri al da re -vo lu ção pro fun da por ele ins pi ra da e en tre cu jos múl ti plos as pec tosavul tam o po lí ti co (na ci o na lis ta e re pu bli ca no), o re li gi o so (la i cis mo erom pi men to com o Islã), o so ci al (eman ci pa ção da mu lher) e o cul tu ral(ado ção do al fa be to la ti no no pro ces so de la i ci za ção, mo der ni za ção eoci den ta lização). Even tu al men te, a in te gra ção da Tur quia à União Européia,até ago ra re tar da da sob pre tex to de des res pe i to aos di re i tos hu ma nos,com ple ta rá o pro ces so his tó ri co e re pre sen ta rá o re tor no da Eu ro pa àÁsia Me nor.

Do pon to de vis ta pu ra men te ur ba nís ti co, Anka ra foi tra ça dana base de um eixo prin ci pal, o Ata türk Bul va ri, gran de ave ni da que ligaa ve lha área da ci da de la à co li na de Tchan ka yá. So bre as en cos tas des saco li na e ao lon go do “bul va ri”, as mis sões di plo má ti cas es tran ge i ras edi -ficaram suas lu xu o sas re si dên ci as e man sões. Na zona cen tral de Yenishe íren con tra-se o ba ir ro ad mi nis tra ti vo pro pri a men te dito, o Ba kan lik lar.Su bin do a en cos ta su a ve da mon ta nha, er guem-se os vá ri os mi nis té ri os,do mi na dos pelo edi fí cio do Par la men to. O es ti lo fun ci o nal, ale mão, éaus te ro. A pe dra roxa foi mu i to usa da e as li nhas ho ri zon ta is adap tam-se à pa i sa gem rude e lisa do pla nal to. O Par la men to, de már mo re bran co,des ta ca-se so bre o con jun to som brio. A im pres são é fria mas pos sui ma -jes ta de. Vale ob ser var que gran de par te do dis po si ti vo, bem como o edi -fí cio do Par la men to, fo ram de se nha dos pelo ar qui te to aus tro-brasileiro,

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Pro fes sor Holz me is ter, co nhe ci do como au tor do pro je to para a gi gan -tes ca ca te dral de Belo Ho ri zon te.

Com todo esse es for ço ur ba nís ti co e cres ci men to re al men teadmi rá vel, Anka ra con ti nua a ser uma ci da de ad mi nis tra ti va e uni ver si tária,de vida ope ro sa po rém mo nó to na. Fal ta-lhe, cer ta men te, bri lhan tis mo,falta o que nem a pa i sa gem se mi-árida da Ana tó lia, nem o tem pe ra mentore barbati vo do tur co mu i to fa zem por cor ri gir. Du ran te a guer ra, quandolá ser vi (1944/47), a vida ofi ci al di plo má ti ca era ex tre ma men te in te res -san te, como em toda a ca pi tal ne u tra que ser via de cen tro de es pi o na -gem e onde os re pre sen tan tes das po tên ci as em luta se aco to ve la vamnas fes tas e se cru za vam nas ruas. Um epi só dio pi to res co des sa épo cafoi a fa mo sa “af fa i re Cí ce ro”, do mor do mo do em ba i xa dor bri tâ ni co que es pi o na va para os ale mães, sem que es tes o le vas sem a sé rio...

Em ou tro sen ti do, Anka ra apre sen tou en si na men tos va li o sospara o pro je to bra si le i ro de cons tru ir uma nova me tró po le no Pla nal toCen tral. Este, na ver da de, é tal vez o caso mais pró xi mo do nos so, de uma ca pi tallo ca li za da com o ob je ti vo pre cí puo de va lo ri za ção e de sen vol vi men to do in te ri or de um país. Anka ra e Bra sí lia apon tam para a per ti nên cia do fe nô me no opos toao que de ter mi nou a fun da ção de Ale xan dria e S. Pe ters bur go. Em outraspa la vras, o pro pó si to ofi ci al do Egi to he le nís ti co e da Rús sia Tza ris ta era a “aber tu ra de uma ja ne la” so bre o mar, so bre as vias do trá fe go in ter -na ci o nal num mun do cos mo po li ta; ao pas so que os pro je tos tur co e bra -si le i ro pos su em um sen ti do bem de fi ni do de “in te ri o ri za ção” da sede do go ver no e con se qüen te in tro ver são e de sen vol vi men to do ser tão.

Ao re co nhe ce rem os in con ve ni en tes bas tan te gra ves do sí tiode Anka ra – isto é, as fe bres, a fal ta d’água e o de sen vol vi men to eco nô -mi co in su fi ci en te dos ar re do res – muitos admi ra do res da obra ke ma lis ta con si de ram que a de ci são de ali er guer não so men te a sede do go ver no,mas a ca pi tal do Esta do e do povo tur co, re pre sen ta uma das me di dasmais au da ci o sas en tre os inú me ros fa tos he rói cos que ca rac te ri za ram ore nas ci men to na ci o nal da Tur quia sob a ins pi ra ção de Ata türk. Escre veNor bert de Bis choff, que, “ao dar a esse pedaço de ter ra, tão po bre -men te aqui nho a do pela na tu re za, a hon ra in sig ne da es co lha para a edi fi -ca ção de seu lar na ci o nal, e ao tra ba lhar com um ar dor fa ná ti co so breesse solo in gra to, o povo tur co ofe re ce à ter ra da Ana tó lia um su bli mesa cri fí cio expi a tó rio pelo des dém com que fora tra ta da e pelo de samparo

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em que fora de i xa da du ran te tan tos sé cu los”. No en tan to, ao aban do node Istam bul, cor res pon deu na tu ral men te uma trans for ma ção eco nô mi cacon si de rá vel da Ana tó lia. O pla nalto his tó ri co, ou tro ra rico cen tro decul tu ra e de po der po lí ti co, volta hoje, após mais de mil anos de es que ci -men to, a conhecer um pe río do de rá pi da pros pe ri da de, e a es te pe, queha via con quis ta do a re gião com as pa tas das hor das tár ta ras, recua nova -men te sob as ro das dos tra to res e dos ca mi nhões. O pró prio Ke mal deu o si nal do con tra-ataque da agri cul tu ra, por toda a par te plan tan do árvorese or de nan do a to dos os tur cos que o imi tas sem. A “ci da de-jardim” –Bah ce li ev ler – é hoje um ver da de i ro oá sis. O tri go e ou tros ce re a is vãorecu pe ran do o ter re no so bre o ca pim e a are ia, en quan to o ver de dapros pe ri da de subs ti tui, como co lo ri do do mi nan te, a ru i va ari dez do pla naltope dre go so. Des de 1948, quan do os ame ri ca nos come ça ram sua aju dami li tar e eco nô mi ca à Tur quia, de acordo com a dou tri na de Tru man,para for ta le cê-la como bas tião de re sis tên cia às am bi ções de Stá lin,foram cons tru í das mu i tas es tra das de ro da gem que con tri bu í ram pararom per o iso la men to da Ana tó lia cen tral, cuja par te oci den tal se trans -for mou em re gião al ta men te in dus tri a li za da. Era um dos es pe tá cu loscarac te rís ti cos des sa trans for ma ção ver um jeep ou um ca mi nhão cru -zan do as ca ra va nas de ca me los que ain da per cor riam a tra di ci o nal rotados Estre i tos ao Ori en te Mé dio.

Além de seus ob je ti vos mi li ta res, po lí ti cos e eco nô micos, ainte ri o ri za ção da ca pi tal da Tur quia pos sui as sim um sig ni fi ca do psi co lógico e um va lor sen ti men tal. Na ver da de, ou tros sí ti os ha ve ria mais fa vo rá veisquan to ao cli ma, be le za na tu ral, su pri men to de água ou pro xi mi da de deáreas flo res ta is. Mas não! Anka ra tri un fou como um me mo ri al da re vo lu ção kemalis ta, mo nu men to da guer ra da in de pen dên cia, sím bo lo e pro vades ses acon te ci men tos his tó ri cos e ex pres são ma te ri al da jo vem Pá tria turca,in se ri da na mo der ni da de! Ela é, por as sim di zer, a pri me i ra ci da de queos tur cos ver da de i ra men te cons tro em. Povo nô ma de por ex ce lên cia,gen te guer re i ra e pas tores sequi o sos, as ci da des em que ha bi tou fo ramedi fi ca das por ou tras ra ças. A con quis ta pela for ça das ar mas e não o tra -balho da pá e da pi ca re ta cons ti tu íam sua ati vi da de fa vo ri ta. E assimjamais he si tou em mu dar de quar tel-general em sua vida erran te pe laspla ní ci es da Ásia Cen tral, até o dia em que se apos sou de Bi zân cio, en -tão a ma i or e mais fa mo sa me tró po le do mun do! Vá ri os ob ser va do res

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atri bu í ram a pró pria fa ci lidade com que se trans fe riu de Istam bul paraAnka ra ao no ma dismo ina to e ao ata vis mo do cor re dor das es te pes. Masnão há dúvida que, ao tor nar-se de fi ni ti va men te se den tá rio, ao mo der ni -zar-se, oci den ta li zar-se e de mo cra ti zar-se, o povo tur co resol veu tro car as ten das pas to ris por re si dên ci as fi xas, de pedra e con cre to, na ci da de queele pró prio edi fi cou com o suor de seu ros to. O aban do no de Cons tan -ti no pla pos sui tam bém um valor sim bó li co, sen ti men tal, de rom pi men tocom um pas sado is lâ mi co ir re vo ga vel men te mor to. Não que o tur co re -pu di as se a me mó ria de sua gran de za pas sa da, da con quis ta que Meh metII efe tu a ra, qui nhen tos anos an tes, não obs tan te a re sis tên cia de toda aEuropa Cru za da, e da gló ria da Su bli me Por ta sob mo nar cas es cla re cidoscomo Se lim, Mah mut e So li mão o Mag ní fi co. Mas a esse pe río do defastí gio su ce deu uma lon ga e tris te de ca dên cia em que o Impé rio maispode ro so do mundo aos pou cos se cor rom peu. Cons tan ti no pla, paraMus tafá Kemal, re pre sen ta va a de ca dên cia re cen te e não a gló ria passada.Além dis so, no fun do era gre ga, era es tran ge i ra, cos mo po li ta, uma cidadede le van ti nos es per tos e ne go cis tas, um por to de mar em que se aco to -ve la vam to das as ra ças do Ori en te pró xi mo. Em vez dos ares me fí ti cosdo Cor no de Ouro, o ve lho lobo das es te pes pre fe riu vir res pi rar o ventorís pi do das es te pes pla nal ti nas. Pois, de fato, um dos ele men tos es sen ciaisda re vo lu ção ke ma lis ta fora a li qui da ção do “im pe ri a lis mo” oto ma no,subs ti tu í do pela di nâ mi ca de um novo “na ci o na lis mo” tu ra ni a no. A der -ro ta de 1918 aca ba ra de li ber tar do jugo da Su bli me Por ta os úl ti mospo vos que, du ran te sé cu los, di an te dela se ha vi am cur va do – povosbalcâ ni cos, sí ri os, judeus, armê ni os, gre gos e ára bes. Ba bel de ra ças, nãose adap ta va Istam bul à es tru tu ra mais res tri ta, ho mo gê nea e pura queAta türk pre ten dia ofe re cer como nor ma or ga ni za do ra à nova Tur quia.O aban do no de Istam bul im pu nha-se por tan to com tan ta ve e mên ciaquan to a ne ces si da de de uma nova sede no in te ri or da Ásia Me nor.

Vale apon tar, em con clu são, a se qüên cia de pa ra le lis mos e decon tra di ções que re gis tra a aná li se com pa ra ti va da per so na li da de e daobra de Pe dro o Gran de e Ke mal Pa chá. É in te res san te con fron tar oRe for ma dor da Tur quia com o an ti go Re for ma dor da Rús sia pois exis te, na ver da de, uma ex tra or di ná ria se me lhan ça tan to na ação his tó ri ca,como no ca rá ter des ses dois gi gan tes. Tal vez o Tzar haja ex ce di do oGha zi na am pli dão de seus de síg ni os, na mul ti pli ci da de de seus ta len tos

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e so fre gui dão de seu tem pe ra men to. Ambos com pa ram-se nos ví ci os.Evi den te men te, a épo ca em que vi veu o tur co não mais ad mi tia as re -pug nan tes atro ci da des co me ti das pelo rus so. Mas Ke mal cer ta men te ex -ce de Pe dro pela es ta bi li da de e equi lí brio de seu tra ba lho, pelo im pul socri a dor e com pre en são da alma de seu povo, e pela ca pa ci da de de as se gu rar o de sen vol vi men to har mô ni co do or ga nis mo po lí ti co e so ci al, após de -sa pa re cer da cena. Dis pon do de um ma te ri al in fe ri or para plas mar – umEsta do de cré pi to, em vez de um Impé rio em ple na ex pan são; de umpovo me nos aqui nho a do do que o rus so em nú me ro e em ta len to; e deum país de re cur sos mais li mi ta dos – Mus ta fá Ke mal me lhor sou be va -lo ri zar a mas sa em que tra ba lhou. Seu re gi me su a vi zou o cho que tra u má ti -co pro vo ca do pela re vo lu ção, com os bál sa mos de um li be ra lis mo es cla re -ci do de modo que, sem qual quer ar ti fi ci a lis mo, nem os ris cos de umavol ta ao des po tis mo atá vi co, abriu as pers pec ti vas de uma len ta evo lu ção para a or dem e a de mo cra cia. Um his to ri a dor in glês ob ser vou re cen te -men te, a meu ver com per fe i ta cor re ção, que Ke mal, Fran co e Pi no chetfo ram os três úni cos di ta do res mi li ta res do sé cu lo XX que sou be rampre ser var a so be ra nia de suas na ções; re a lis ti ca men te li mi tar sua am bi -ção àqui lo que era fac tí vel, re sis tin do à ten ta ção ex pan si o nis ta ou be li co -sa; eli mi nar o pe ri go do to ta li ta ris mo e, de po is do uso da vi o lên cia ne -ces sá ria ao pro je to, cri ar as con di ções bá si cas para o sur gi men to de uma só li da de mo cra cia no ter re no as sim tão bru tal men te pre pa ra do. Fo ramos úni cos “dés po tas es cla re ci dos” do sé cu lo XX.

A mis são es pe cí fi ca de Ata türk, em Anka ra, não foi oci den ta -li zar as eli tes po rém a mas sa, pro cu ran do con ver ter às ins ti tu i ções e aomodo de vida do Oci den te o cam po nês ca pa dó cio, o an ti go nô madelará pio e o fe roz cor re dor das es te pes. E, tan to quan to se pode jul garnos anos que de cor re ram des de sua mor te, não cin diu mas uniu o povotur co. A com pa ra ção en tre o Tzar e o Ghâ zi é mais per ti nen te. É du -plamente cu ri o sa quan do fe i ta no ter re no da ge o po lí ti ca ur ba na. A eu ropei -za ção da Rús sia va leu-se, como prin ci pal ins tru men to, da edi fi ca ção deuma ca pi tal ma rí ti ma na pe ri fe ria do país, em con ta to di re to com o Oci dente. Por con tras te, Mus ta fá Ke mal in te ri o ri zou sua ca pi tal com o mes moobje ti vo. Os bol che vis tas vol ta ram para Mos cou a fim de se afas tar doOci den te, da so ci e da de ini mi ga que te mi am, odi a vam e cuja ru í na in ten -ta vam. Os ke ma lis tas en tra nha ram-se nos pá ra mos da Ásia Me nor com

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a in ten ção de se apro xi ma rem da Eu ro pa oci den tal – pa ra do xos e an ti -no mi as que ilus tram su pi na men te a ri que za de sig ni fi ca dos pos sí ve is doato so be ra no que de ter mi na a mu dan ça das ca pi ta is. Em que pese o atualde sa fio do Fun da men ta lis mo is lâ mi co e o pro ble ma kur do, a úni ca et nia es tra nha na po pu la ção do país, os tur cos são hoje mem bros da OTAN,emi gran tes nu me ro sos na Ale ma nha e can di da tos à in te gra ção na União Eu ro péia. Em suma, Anka ra é cer ta men te uma ca pi tal mais sa tis fa tó riado que foi S. Pe ters bur go, me lhor se jus ti fi can do do pon to de vis ta desuas fun ções ge o po lí ti cas, cul tu ra is e so ci a is.

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Mus ta fá Ke mal Pa chá, o Ata türk, fun da dor de Anka ra e re no va dor da Tur quia, na épo ca da cons tru ção da nova Ca pi tal. (Por cor te sia do

Ser vi ço de Infor ma ções do Go ver no tur co)

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XVCam ber ra

É fre qüen te men te as se ve ra do que a de ci são de cons tru ir um novo cen tro ur ba no, ex clu si va men te sob con tro le fe de ral, para sededo go ver no da Aus trá lia re pre sen ta, sim ples men te, um acor do con ci li a tório na ve lha con tro vér sia en tre as duas ma i o res ci da des do país, Sydney eMel bour ne, que sus ten ta vam pre ten sões ri va is. Na re a li da de hou veoutras ra zões de or dem prá ti ca para ins pi rar a idéia de Can ber ra.5 Su geridopela pri me i ra vez numa con ven ção fe de ral re u ni da em Ade la i de em1897, ado ta do no ano se guin te por um con cla ve si mi lar, em Mel bour ne, du ran te o qual os par ti ci pan tes che ga ram à con clu são de que “a sede dogo ver no de ve rá ser er gui da num ter ri tó rio fe de ral”, o prin cí pio for ma li -zou-se mais pre ci sa men te numa con fe rên cia de Pri me i ros-Ministros dos Esta dos da Fe de ra ção, sen do even tu al men te in clu í do no ar ti go 125da Cons ti tu i ção aus tra li a na. Este as sim reza: “A sede do go ver no daCom mon we alth será de ter mi na da pelo Par la men to e den tro de um ter ri -tó rio a ser con ce di do ou ad qui ri do pela Com mon we alth, à qual per ten -ce rá. Esse ter ri tó rio, lo ca li za do no Esta do de New South Wa les e a uma5 A gra fia aus tra li a na é Can ber ra, mas se tem po pu la ri za do, no Bra sil, a gra fia por -

tu gue sa Cam ber ra.

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dis tân cia de não me nos de cem mi lhas da ci da de de Sydney, de ve rá pos -su ir uma área não in fe ri or a cem mi lhas qua dra das”.

A es co lha da ca pi tal es ta va li ga da ao pro ble ma mais gra ve edi fí cil de or ga ni zar a con fe de ra ção aus tra li a na. O prin ci pal em pe ci lho se ci fra va no cho que de in te res ses en tre a Nova Ga les do Sul e Vi tó ria. Osfe de ra lis tas eram par ti dá ri os da se le ção de Sydney. Sir Ge or ge Tur nerpo rém, Pri me i ro-Ministro da co lô nia, hoje Esta do de Vi tó ria, ob teveganho de ca u sa ao con se guir a in ser ção, na se ção 125 aci ma alu di da, dodis po si ti vo que lo ca li za va a ca pi tal num ter ri tó rio per ten cen te à Com -monwe alth – isto é, num Dis tri to Fe de ral, se gun do o mo de lo ame ri cano,e não se gun do o mo de lo ca na den se. Essa es ti pu la ção ex clu ía evi den te -men te Sydney, Mel bour ne ou qual quer ou tra ca pi tal dos Esta dos que seiam con fe de rar. No en tan to, em que pese a mo ti va ção de Sir Ge or geTur ner, não há dú vi da que o sen ti men to ge ral da opi nião pú bli ca, naépo ca, era de que a União de ve ria ser so be ra na em sua pró pria casa. Em tro ca do pre ce i to que fa vo re cia o Esta do da Nova Ga les do Sul, SirGeorge, como re pre sen tan te do Esta do ri val, fez in clu ir as emen das res -tri ti vas que cons tam da Car ta Mag na. Além dis so, con se guiu ob ter doPar la men to a ga ran tia de se re u nir em Mel bour ne até en con trar alo ja -men to em sua fu tu ra sede. Como re sul ta do des sa tran sa ção, a ca pi talper ma ne ceu em Mel bour ne du ran te vin te e cin co anos, fato que in flu en -ci ou sen si vel men te a ad mi nis tra ção aus tra li a na. To dos os dis po si ti vosde ram mo ti vo a de ba tes mu i to ar den tes mas a Cons ti tu i ção, fi nal men teapro va da por re fe ren dum po pu lar, per mi tiu à Com mon we alth ter exis tênciale gal, sem ma i o res atro pe los. Em sua es sên cia, o modo de for ma ção daAus trá lia e da es co lha de sua ca pi tal mu i to se as se me lha ao mo de lo ofere ci do pela con fe de ra ção das tre ze co lô ni as pri mi ti vas e se le ção de Was hington,como ca pi tal dos Esta dos Uni dos da Amé ri ca.

Qu a se ime di a ta men te após a apro va ção da Car ta Mag na, ini -ci ou-se a pro cu ra de um sí tio. O Par la men to no me ou um Co mis sá rioReal, com o en car go de exa mi nar e re di gir um re la tó rio so bre pos sí ve islo ca is. A im pren sa anun ci ou o tra ba lho com gran de alar de, pe din do su -ges tões ao pú bli co. Como re sul ta do, qua ren ta dis tri tos fo ram pro pos tospor Co mi tês lo ca is ou por par ti cu la res dos qua is vin te e três exa mi na dos pelo Co mis sá rio que, de po is de es tu dar um gran de nú me ro de fa to res tais como aces si bi li da de, su pri men to de água, solo, cli ma, cus to de aqui si ção

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do ter re no e pro xi mi da de de ma te ri a is de cons tru ção, ope rou uma se le çãopre li mi nar de três sí ti os, co lo can do o atu al em se gun do lu gar. O Re la tó rioOli vi er foi sub me ti do ao Go ver no Fe de ral em 1902 e, nes sa oca sião, um gru po de Se na do res e mem bros da Câ ma ra dos Re pre sen tan tes re sol veu efe tu ar uma ex cur são pe las áre as pro pos tas. Di zem que nem o tem po,nem a hos pi ta li da de in te res se i ra dos vá ri os Co mi tês lo ca is – to dos em -pe nha dos em fa zer a pro pa gan da en co miás ti ca das res pec ti vas her da des– con tri bu iu para um jul ga men to equi li bra do. Du ran te a ex cur são, po -rém, o pre fe i to do po vo a do de Qu e an be yan con vi dou a ilus tre com pa -nhia para uma vi si ta à área da fu tu ra Cam ber ra onde se que da ram tãoim pres si o na dos com a vis ta pa no râ mi ca do alto do mor ro de Mug gaque, sem dú vi da, o pas se io mu i to in flu iu na so lu ção de fi ni ti va do pro -ble ma.

Assim fi nal men te equa ci o na do por uma Co mis são de téc nicos,nem por isso se re nou, nos anos se guin tes, o ás pe ro de ba te po lí ti co emtor no de meia dú zia de lo ca is di ver sos. A que re la con ti nu ou em meio ane go ci a ções e pa re ce res so bre o ver da de i ro sen ti do dos dis po si ti voscons ti tu ci o na is. Em cer to mo men to, tão aca lo ra da foi a con tro vér siaque se pen sou sub me tê-la à Cor te Su pre ma de Jus ti ça. Entre tan to, a par -tir de 1906, o sí tio de Cam ber ra se tor nou mais co nhe ci do e aos pou cosse im pôs, gran je an do ma i or nú me ro de sim pa ti as. Em 1908, a si tu a çãoama du re ce ra e, de po is de um de ba te épi co, che gou-se à es co lha fi nal deYass-Canberra. Ace i to o lo cal pela Câ ma ra dos Re pre sen tan tes, peloSena do e pelo pró prio Go ver no da Nova Ga les do Sul, foi, no anoseguin te, vo ta da a “Lei da Sede do Go ver no” ane xan do o dis tri to deYass-Canberra como ter ri tó rio fe de ral e es ti pu lan do que me di ria nãome nos de 900 mi lhas qua dra das e aces so ao mar. Fir man do o acor doen tre a Com mon we alth e o go ver no es ta du al, de que re sul tou a “Lei deAce i ta ção da Sede do Go ver no”, a União to mou pos se da sua sede a 1ºde ja ne i ro de 1911, com a pro cla ma ção do Ato em apre ço. As di fi cul dades,po rém, não es ta vam ter mi na das. Du ran te al guns anos dis cu tiu-se ain da,com afin co, o nome exa to e a gra fia de Canber ra.

Uma pe que na po vo a ção cres cen do em tor no de uma ve lhaigre ja de pe dra, al gu mas fa zen das de gado bo vi no e eqüi no, pe que nasplan ta ções e “es ta ções” de re ba nhos de car ne i ros que, como se sabe,cons ti tu em uma das prin ci pa is ati vi da des eco nô mi cas do país, eis a

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região um epí to me do de sen vol vi men to ru ral da Nova Ga les do Sul,polin do po rém seus as pec tos mais ás pe ros e re ve lan do, com maisfreqüên cia, os la dos fe li zes de tal pro gres so. Re gião nova, o pri me i ro homem bran co que a per cor re ra, por vol ta de 1821, fora um ex-cirurgião na val,Dr. Char les Thorsby, fa zen de i ro e ex plo ra dor. Acom pa nha va-o an ti gode gre da do, Jo seph Wild, que lhe ser via de em pre ga do do més ti co eadmi nis tra dor. Nes sa épo ca prin ci pi a va a ex pan são da co lô nia. Re cor de -mos que foi a Aus trá lia, ori gi na ri a men te e por mu i tos anos, um país dede gre do, uma pri são ru ral den tro de uma es tre i ta fa i xa li to râ nea, e sópor vol ta da se gun da dé ca da do sé cu lo XIX viu su bi ta men te alar -gar-se-lhe os ho ri zon tes ge o grá fi cos e mo ra is após a tra ves sia das Mon -ta nhas Azu is. Des co ber tas com sur pre sa as pos si bi li da des ili mi ta das des -sa ter ra vir gem num con ti nen te ain da mais novo do que a Amé ri ca, uma tor ren te de ex plo ra do res au da zes lan çou-se para o in te ri or, se guindo aocu pa ção pa cí fi ca pe los gran des fa zen de i ros que pro cu ra vam ter ras para seus imen sos re ba nhos de car ne i ros. Thorsby re co nhe ceu as vir tudes da re -gião. Des cre veu-a como “per fe i ta men te sa u dá vel, bem ir ri ga da, com ex -ten sos pra dos de ter ra rica de am bos os la dos dos rios” e no tou a quan -ti da de ine xa u rí vel de ma te ri al de cons tru ção, gra ni to, ma de i ra, as se ve -ran do que, pela apa rên cia, “suas flo res tas se es ten di am sem li mi tes parao oes te...”. De po is dos ex plo ra do res, vi e ram os pri me i ros co lo ni za do res. Um ve te ra no de Wa ter loo, J. J. Mo o re, des cre veu sua pro pri e da de como“si tu a da em Can berry”. Mais tar de, fala do lo cal como “Can burry”. É apri me i ra vez que apa re ce o nome, apli ca do ori gi na ri a men te a um cór re -go da re gião. A pa la vra é de ori gem in dí ge na e sua pro nún cia cor re taCann bra, sen do apa ren te men te de ri va do do nome de um gru po “abo rí -ge ne” lo cal. De po is de Mo o re, ou tros fa zen de i ros e, em pou cos anos,toda a re gião es ta va par ce la da sob a for ma de con ces sões, com o núcleoci vi li za do mais pró xi mo, um ma gis tra do e uma agên cia de correio, a cemqui lô me tros de dis tân cia. O dis tri to era in fes ta do de bush ran gers, es pé ciede ban de i ran tes, ex plo ra do res aven tu re i ros vi ven do à mar gem da lei,ver da de i ros can ga ce i ros do ser tão aus tra li a no. Qu an to aos abo rí ge nes,pri mi ti vos e de ge ne ra dos, eram nu me ro sos po rém ra ra men te hos tis.

De po is da de mar ca ção do sí tio, o go ver no aus tra li a no pro vi -den ci ou a aber tu ra de uma con cor rên cia ou com pe ti ção in ter na ci o nalpara o seu pla ne ja men to ur ba nís ti co, com o in tu i to de apro ve i tar a

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opor tu ni da de úni ca as sim ofe re ci da para cons tru ir uma me tró po le quecom bi nas se as ca rac te rís ti cas mais no tá ve is de ou tras ca pi ta is do mun docom os úl ti mos pro gres sos do ur ba nis mo con tem po râ neo. Aber to emabril de 1911 com a pu bli ca ção das con di ções, acom pa nha das de es pe ci -fi ca ções de ta lha das e in for ma ções mi nu ci o sas a res pe i to do sí tio, foi ocer ta me di vul ga do no Ca na dá, Áfri ca do Sul, Nova Ze lân dia,Grã-Bretanha, Fran ça, Ale ma nha e Esta dos Uni dos da Amé ri ca. Asinfor ma ções in clu íam da dos so bre o cli ma, to po gra fia, ge o lo gia e ca rac -te rís ti cas ge ra is do sí tio, sob a for ma de re la tó ri os es pe ci a is, ma pas decon tor nos, sket ches da pa i sa gem em mo de los em ges so. Entre tan to, oRoyal Insti tu te of Bri tish Archi tects bri tâ ni co, le van tan do ob je ções a al gu -mas das con di ções, es pe ci al men te à cláu su la que de ter mi na va fos se ojul ga men to fi nal la vra do pelo mi nis tro do Inte ri or, evi den te men te umle i go na ma té ria, acon se lhou os seus mem bros a se abs te rem de par ti ci -par. Na opi nião de um crí ti co, tra ta va-se de “uma com pe ti ção en tre es -tran ge i ros para ser jul ga da por me dío cres”. As crí ti cas são sem pre ins -tru ti vas e a ocor rên cia edi fi can te, pois os er ros co me ti dos nes se con cur -so ain da hoje pro du zem efe i tos. De qual quer for ma, cen to e trin ta e sete con cor ren tes ins cre ve ram-se e seus pro je tos fo ram exa mi na dos por umjúri com pos to de um en ge nhe i ro, um ar qui te to e um to pó gra fo ou geó -gra fo. Os três não che ga ram a acor do. O mi nis tro do Inte ri or, KingO’Malley, ace i tou en tão a re co men da ção da ma i o ria, con ce den do o prê mio prin cipal, no va lor de £1.750 a Wal ter Bur ley Grif fin, de Chi ca go.

O se gun do prê mio, no va lor de £750, foi atri bu í do a ElielSaa ri nen, fin lan dês, e o ter ce i ro, de £500, ao Pro fes sor Aga che, de Pa ris, o mes mo que de se nhou os pla nos de re mo de la ção do Rio de Ja ne i ro.Os Pla nos pre mi a dos, as sim como o de se nho que o exa mi na dor ven cidoha via co lo ca do em pri me i ro lu gar em sua lis ta, tor na ram-se pro pri e da dedo Go ver no. O pla no de Sa a ri nen foi des cri to como uma obra “me ga lo -ma nía ca” cuja gran di o si da de ha ve ria so bre pu ja do a dos con jun tos ar qui -te tô ni cos às mar gens do Sena, em Pa ris. Qu al quer ten ta ti va de exe cu -tá-lo com pro me te ria ir re me di a vel men te as fi nan ças da Com mon we alth.Ape sar de seu fra cas so, Sa a ri nen é hoje con si de ra do um dos gran desarqui te tos mo der nos e tal vez te nha sido in fe liz na adap ta ção de suascon cep ções mo nu men ta is às con di ções mais mo des tas do am bi enteaustra li a no. O pro je to de Aga che, fran ca men te ins pi ra do pe las tra di ções

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clás si cas fran ce sas do sé cu lo XIX, foi as sim apre ci a do: “não lhe fal tadigni da de mas é ex ces si va men te for mal”. Con ta-se que fez uma con cessãoao fu tu ro, pre ven do um ae ro por to com uma pis ta de oi ten ta me tros delar gu ra, com han ga res para nove aviões, de um lado, e uma tri bu na paraes pec ta do res do ou tro! É ver da de que isso se pas sou em 1911. Há cer tairo nia no fato de Aga che tam bém não pre ver o de sen vol vi men to da aviaçãono Rio de Ja ne i ro, de que re sul tou o sa cri fí cio de seu pla no para a cons -tru ção do ae ro por to San tos Du mont. Qu an to ao de se nho de Grif fin,em bo ra la u re a do, não foi ime di a ta men te san ci o na do. Di fi cul dades sur gi -ram de vá ri as fon tes. Uma nova ban ca no me a da pelo go ver no de cla -rou-se in ca pa ci ta da para es co lher qual quer dos es que mas e su ge riu aapro va ção de um novo pro je to, de sua pró pria au to ria, que in cor po ra vaca rac te rís ti cas dos pla nos pre mi a dos. Entre men tes, o Mi nis tro O’Malleypre si diu, a 12 de mar ço de 1913, a ce ri mô nia ofi ci al de co lo ca ção dapedra fun da men tal, para mar car com cer ta pom pa o iní cio das obras decons tru ção da ci da de. Arma ram-se ime di a ta men te dis cus sões em tor no dopro je to de Grif fin e das vá ri as su ges tões apre sen ta das para a sua re a li za ção.

A con cep ção de Grif fin era in dis cu ti vel men te “mo der na”.Con for ma va-se ao “ur ba nis mo mo der no” do prin cí pio do sé cu lo XX, o mesmo que pre si diu ao pla ne ja men to de New De lhi e de Belo Ho ri zonte,sem fa lar no de inú me ras ci da des ame ri ca nas. É cu ri o so no tar que tan toGrif fin quan to Sir Edwin Lut yens, do mes mo modo como Lú cio Cos taem Bra sí lia, ti nham pelo me nos a in tu i ção do de sen vol vi men to gi gan tescodo trans por te au to mo bi lís ti co, sem o que não te ri am pla ne ja do as cidadesnas pro por ções que o fi ze ram. Enfim, a opi nião ofi ci al in cli na va-se afavor do iní cio das obras, obe di en te a qual quer pla no apro va do. Isso não im pe diu a im pren sa de ex ce der-se em ca ri ca tu ras e cha co tas, ain da hojedi ver ti das, que re ve lam com ple to ce ti cis mo quan to ao fu tu ro da ci da de.Pou co tem po de po is caiu o Go ver no e a nova Admi nis tra ção con vi douGrif fin a vi si tar a Aus trá lia. Seu pla no pa re cia ter ga nho de ca u sa. No me ado“Di re tor do De se nho e Cons tru ção da Ca pi tal Fe de ral”, deu ime di a -tamen te iní cio ao seu de sen vol vi men to, es ta be le cen do além dis so as condi -ções de um novo cer ta me in ter na ci o nal para a cons tru ção da sede per -ma nen te do Par la men to. Mas as di fi cul da des não es ta vam en cer ra das:He si ta va-se em re a li zar o pla no, con si de ra do mo nu men tal, en quan tonão se lhe co nhe ces se exa ta men te o cus to. Além dis so, as con fu sões entre

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as res pon sa bi li da des e as es fe ras res pec ti vas do ur ba nis ta ame ri ca no edos en ge nhe i ros do mi nis té rio do Inte ri or per du ra ram até 1916, quan do King O’Malley, no va men te en car re ga do da pas ta, apro vou de fi ni ti va -men te o tra ba lho do ame ri ca no que fi cou in cum bi do de su per vi si o naras obras de cons tru ção.

O ur ba nis ta as sim su ma ri zou suas in ten ções, vi san do a apro -ve i tar ao má xi mo as fe i ções e con tor nos na tu ra is do ter re no: “O sí tio,con si de ra do em seu todo, pode ser com pa ra do a um an fi te a tro ir re gu larcom o Mount Ains lie ao nor des te... flan que a do de um lado pela BlackMoun ta in e do ou tro pelo Ple a sant Hill, que for mam uma es pé cie degale ria. As fal das que des cem até o rio cons ti tu em o au di tó rio; os cur sos e as ba ci as d’água, a are na; as en cos tas me ri di o na is, re fle ti das nos espelhosd’água, o pal co em ter ra ços; e as es tru tu ras mo nu men ta is dos edi fí ci ospú bli cos, cla ra men te de fi ni das, o ce ná rio que es ca la, de grau por de grau,o pon to cul mi nan te da área in te ri or, isto é, a co li na um bro sa do Ca pi tólio.Mug ga Mug ga, Red Hill e as dis tan tes Ser ras Azu is, ao re fle tir o sol,cons ti tu em o ce ná rio de fun do de um con jun to te a tral”.

É in te res san te cor re la ci o nar as con cep ções de Grif fin com asinfluên ci as que se fa zi am sen tir, na épo ca, so bre o ur ba nis mo re no vador.As ci da des es ta vam cres cen do de modo as sus ta dor e pa to ló gi co, emcon se qüên cia da re vo lu ção in dus tri al. Elas apre sen ta vam, em todo o planeta,o es pe tá cu lo de can cros hor ren dos. Ne las re i na va sem pe i as a es pe cu la çãoimo bi liá ria e pro li fe ra vam os slums, as “fa ve las” e o amontoa men to caó ti code edi fí ci os sem es ti lo, sem con for to e sem be le za. Não foi só no Rio eSão Pa u lo que isso acon te ceu. A ur ba ni za ção des controla da é o pre ço queo ace le ra do de sen vol vi men to, em so ci e da des de mo crá ticas com eco no miade mer ca do, tem que pa gar. Mu i to an tes do Bra sil, a Aus trá lia so freu dopro ble ma pois é o con ti nen te mais ur ba ni za do do pla ne ta. Qu an to àsruas, cons tan te men te ame a ça das de “en gar ra fa mento”, trans for ma ram-seem me ros “cor re do res” para um trá fe go po e i ren to e mal-cheiroso quecons ti tui uma ame a ça cons tan te ao bem-estar e à se gu ran ça dos tran seun -tes. Em prin cí pi os do sé cu lo, al guns co ra jo sos pre cur so res prin ci pi a ram, no en tan to, a adi an tar so lu ções para cor ri gir os ma le fí ci os des sas grandesmetró po les in dus tri a is. A pri me i ra so lu ção foi a ci da de-jardim, con ce bidapara re me di ar os pro ble mas trá gi cos dos ba ir ros re si den ci a is, ori un dosda es pe cu la ção imo bi liá ria e da au sên cia de qual quer pla ne ja men to racional,

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que ha vi am cres ci do como for mi gue i ros mal sãos na at mos fe ra en ve ne -na da e tur va das con cen tra ções fabris. Seu gran de pro pug na dor foi oinglês Ebe ne zer Ho ward. Em 1898, pu bli cou Ho ward sua dou trinatenden te a abo lir es ses males, elimi nar as fa ve las e a acu mu la ção dapopu la ção po bre nos ba ir ros in dus tri a is da pe ri fe ria. Como bom in glêsque era, aman te do cam po e como ide a lis ta vi si o ná rio e re for ma doragrá rio, ele pro pôs, nada mais, nada me nos, do que o aban do no das me -ga ló po les con tem po râ ne as e a trans fe rên cia para o cam po da po pu la çãoin te i ra, es ta be le cen do as usinas numa pa i sa gem ide al. Sua con cep ção depla ne ja men to obe de cia es sen ci almen te ao es que ma ra di o con cên tri co poisima gi nou o or ga nis mo urbano como um sis te ma “pla ne tá rio” em queaglo me ra ções se mi-rurais, de uns 30.000 ha bi tan tes, se dis pu nham emcír cu lo, em tor no de uma “ci da de cen tral” cuja po pu la ção não de ve riaul tra pas sar a casa dos 50.000. Todo o con jun to se ria cer ca do de fa i xasver des que co bri ri am uma área cinco ve zes mais vas ta do que a área re si -denci al. Uma ave ni da ar bo ri za da de 150 me tros de lar gu ra de ve ria cir -cun dar toda a con cen tra ção. Suas idéi as fo ram apli ca das nas ci da des deLet chworth, ini ci a da em 1903, e na de Welwyn, es ta be le ci da em 1920,am bas nos ar re do res de Lon dres. Tam bém nos Esta dos Uni dos, as“cidades-satélites” do ame ri ca no G. R. Tay lor fa ri am car re i ra; e, mais tar de,em vá ri as par tes do mun do, in clu sive em São Pa u lo e Bra sí lia. Can ber rapode ser con si de ra da uma ex pres são, vo lun tá ria ou aci den tal, das idéi asde Ho ward. Si eg fri ed Gi e di on cita ain da o fran cês Tony Gar ni er, comsuas ima gens da Cité Indus tri el le (1901-1904), como ou tro pre cur sor daste ses ur ba nís ti cas mo der nas e não se pode ne gar que a aus tra li a na foiuma das pri me i ras ca pi ta is em que es sas te ses en con tra ram um ter re node apli ca ção prá ti ca. Grif fin inclu iu em seu Pla no Pi lo to um ba irroindus tri al e uma zona fer ro viá ria, se pa ra dos e in ter de pen den tes.

Cabe adu zir como igual men te re le van te na ela bo ra ção doesque ma de Grif fin, o mo vi men to re no va dor do prin cí pio do sé cu lo XX que, na ar qui te tu ra e no ur ba nis mo, to mou o nome, tal vez mal ins pi rado,de “fun ci o na lis mo”. Nes se mo vi men to de ve mos ad ver tir que o fa torplás ti co era po ten ci al men te con si de rá vel e obe di en te, em úl ti ma aná li se,ao pre ce i to aris to té li co de que as ci da des de vi am ser edi fi ca das não apenaspara pro te ger seus ha bi tan tes, mas para tor ná-los fe li zes. Nes se sen ti do,– lem bre mo-nos que o aus tría co Ca mil lo Sit te – já men ci o na do em nosso

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ca pí tu lo IV, foi um dos gu rus da nova es co la ar qui te tô ni ca, ao ana li saros prin cí pi os que de ram vida às ci da des me di e va is e pos tu lar ser o“cres ci men to or gâ ni co” das mes mas um ca mi nho sus cep tí vel de re me -di ar a si tu a ção ca la mi to sa das me tró po les con tem po râ ne as, hu ma ni zan -do-as e em be le zan do-as. Se gun do Eli el Sa a ri nen, Sit te evi den ci ou anatu re za in for mal do ur ba nis mo clás si co e me di e val. Apon tou para aorga ni za ção co e ren te des sas aglo me ra ções, al can ça da gra ças à cor re la -ção per fe i ta de suas uni da des ar qui te tô ni cas. Fi nal men te, Sit te cha mou a aten ção para a for ma ção das pra ças e das ruas em re cin tos es pa ci aisorgâ ni cos. O fun ci o na lis mo tor nou-se uma con cep ção mo ral que pro curavaa re a li za ção sin ce ra dos ob je ti vos prá ti cos dos ar qui te tos e a au ten ti ci dadede in ten ção, pon do de lado o ar ti fi ci a lis mo, a imi ta ção dos es ti los his tó -ri cos e a sim pli fi ca ção, eli mi nan do toda de co ra ção inú til. Sa be mos que a dou tri na te ria um fu tu ro bri lhan te de po is que dela se tor na ram campeõesho mens como Frank Lloyd Wright, Le Cor bu si er, Gro pi us, Mies van der Rohe e toda a plêi a de dos gran des ar qui te tos con tem po râ neos, inclu si ve os bra si le i ros.

Uma das prin ci pa is ca rac te rís ti cas e um dos mé ri tos do pla node Grif fin foi o pro ve i to que sou be ti rar da to po gra fia de Can ber ra. Ode cli ve re la ti va men te li ge i ro per mi tiu co lo car al guns dos edi fí ci os pú bli cosem emi nên cia ou usá-las como pon tos ter mi na is das prin ci pa is ave ni das. O Eixo Ter res tre re pre sen ta a prin ci pal pers pec ti va da ci da de. Foi tra ça doem di re ção nor des te des de o Red Hill ao Mount Ains lie, atra ves san do oCa pi tó lio onde foi cons tru í do o Edi fí cio do Par la men to, pivô de todo odis po si ti vo ur ba no. Dois ou tros ei xos fo ram pro je ta dos per pen di cu lar -men te ao prin ci pal: um Eixo das Águas, cujo pon to de re fe rên cia é aMon ta nha Ne gra (Black Moun ta in) e o cha ma do Eixo Mu ni ci pal, pa ra le -la men te tra ça do para no ro es te, cor tan do o cen tro cí vi co e ter mi nan dono Mount Ple a sant. O de se nho, em seu todo, obe de ce a um tema axi altrí pli ce fo ca li za do na al tu ra do Ca pi tó lio. O co ra ção do dis po si ti vo é con -fi gu ra do por um triân gu lo isós ce les cujo vér ti ce é o Ca pi tó lio, a base é o Eixo Mu ni ci pal e a al tu ra, o Eixo Ter res tre. O es que ma é cor ta do aomeio pelo con jun to de co ra ti vo do lago ar ti fi ci al. Em vol ta dos três ei xos cen tra is, Grif fin con tem plou um cor po ar ti cu la do de cé lu las ur ba nas(“cé lu la” é bem a pa la vra pois apre sen ta o as pec to de col méia) cu jasruas de se nham cír cu los ou po lí go nos con cên tri cos – a ar ti cu la ção sen do

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exer ci da gra ças a um sis te ma ra di al de ave ni das. De acor do, por tan to,com os prin cí pi os mais mo der nos do “ur ba nis mo fun ci o nal”, Grif finor ga ni zou a ci da de em qua tro “cé lu las” dis tin tas – fe de ral, mu ni ci pal,re si den ci al e co mer ci al. Com o in tu i to de não pre ju di car a vida da ci da de em con se qüên cia de uma com par ti men ta ção de ma si a da men te rí gi da, foipre vis ta a li ga ção en tre os cen tros cí vi co e na ci o nal por pon tes e lar gasave ni das. Fi nal men te, o de se nho das áre as re si den ci a is per mi te umaex pan são in de fi ni da, sem ou tro pro ble ma a não ser o da ex ten são dasave ni das, ins ta la ções de su pri men to de água, dre na gem e es go to. Note-seque, ao con trá rio de Bra sí lia onde só al guns dos con cor ren tes do con cur sode 1956, po rém não Lú cio Cos ta, ima gi na ram o lago como ele men tocen tral do Pla no – em Can ber ra as águas são apre ci a das como pon to decon ver gên cia de todo o es que ma. As três “ba ci as de inun da ção” oues pe lhos d’água (Ba cia Oci den tal, Ba cia do Mo lon glo e Ba cia Ori en tal)cons ti tu em, em suma, a prin ci pal fi gu ra de co ra ti va do pro je to, vi san doaten der a uma das con di ções do con cur so de 1911. O “eixo das águas”,cor tan do a ci da de pelo meio como faz o Sena em Pa ris, e cor res pon den -do ao lago que, hoje, leva o nome do pró prio Grif fin, apre sen ta ria tam -bém cer tas se me lhan ças com o tan que re tan gu lar do Mall, em Was hing -ton, com o Gran de Ca nal de Ver sa il les ou com os “ma res” ar ti fi ci a is daCi da de Pro i bi da de Be id jing, con tri bu in do como ele men to es té ti co deefe i tos pi to res cos. Em ma té ria de trá fe go, a plan ta in clu ía uma sé rie de“ba lões” ou rond spo ints de es ti lo pa ri si en se, no en tron ca men to das ave ni -das ra di a is. O sis te ma, além de fa ci li tar o mo vi men to dos au to mó ve is,obe de ce ri go ro sa men te ao re le vo do ter re no, de ta lhe im por tan te que de -mons tra es tu do cu i da do so do lo cal e pro cu ra evi tar os er ros que, nes separ ti cu lar, fo ram co me ti dos no tra ça do de nos sa Belo Ho ri zon te. Nare a li da de, os prin ci pa is ei xos de Grif fin – bas tan te cla ros no mapa e su fi -ci en te men te vi sí ve is no ter re no – ti ve ram sua im por tân cia por per mi tir aela bo ra ção, no pa pel, do tema com ple xo de uma ci da de que vai cres cer,além de cons ti tu ir, quan do re a li za dos, vis tas e pers pec ti vas es plên di das.Mas a ver da de i ra co lu na ver te bral é a li nha Nor te-Sul que liga o Cen trour ba no ao Go ver na men tal e ao Par la men to – fun ção que, no Pla no ori gi -nal, é exer ci da pela Ave ni da da Com mon we alth. Ao nor te, essa li nha pro -lon ga-se pela auto-es tra da que liga a ca pi tal a Sydney e ao res to do país;

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e ao sul, com li ge i ra de fle xão para su des te, con ti nua pela es tra da deQu e an be yan, a mo des ta es ta ção fer ro viá ria e a zona in dus tri al.

No pla ne ja men to do con jun to “cí vi co”, exer ceu-se so breGrif fin uma ter ce i ra in fluên cia de ca rá ter mais mo nu men tal, que obe de ceà tra di ção clás si ca da Éco le des Be a ux Arts a qual, a par tir de 1901, nor te oua re mo de la ção de Was hing ton. Já ti ve mos oca sião de men ci o nar a pro -fun da im pres são ca u sa da so bre os ar qui te tos da épo ca pelo “Pá tio deHon ra” da Expo si ção Inter na ci o nal de 1893, em Chi ca go. Essa im pres sãocer ta men te agiu po de ro sa men te so bre Lut yens e so bre Grif fin, ele pró prioha bi tan te de Chi ca go. Ho mens como Da ni el Bur nham, o re no va dor doPla no de L’Enfant, en con tra ram ne les dis cí pu los con dig nos, mu i toem bo ra em Can ber ra o ter re no e o ma te ri al não se pres tas sem, pelasua pró pria na tu re za como em vir tu de das con di ções po lí ti cas lo ca is,à ma jes ta de im pe ri al com que foi re mo de la da Was hing ton e de se nha -da a Nova De lhi. De ma si a da men te im bu í do, ou mes mo ob ce ca do coma idéia de ex pri mir ar qui te to ni ca men te con cep ções po lí ti cas, se gun do al -guns de seus crí ti cos, te ria Grif fin re cor ri do a fór mu las ar ti fi ci a is cujaapli ca ção, se não im pos sí vel, se ria pelo me nos ex tre ma men te cus to sa. B. Hig gins, em seu li vro Can ber ra: a Gar den Wit hout a City, acu sa Grif fin deter apli ca do a sua aten ção so bre os as pec tos fe de ra is da ca pi tal, des cu i -dan do dos as pec tos cí vi cos. Mu i tas das di fi cul da des da plan ta são sim -ples men te o re sul ta do ne ces sá rio do cres ci men to ur ba no e vão sen do so -bre pu ja das à me di da que a ci da de ul tra pas sar uma po pu la ção duas outrês ve zes ma i or do que a atu al. Vale, de novo, in sis tir que a po pu la çãoda Aus trá lia cres ce a um rit mo mu i to in fe ri or à do Bra sil, de tal modoque não ocor reu a ex plo são de mo grá fi ca que está afe tan do tão cla ra -men te nos sa pró pria ca pi tal.

A fim de evi tar al te ra ções fu tu ras e es ta be le cer sal va guar dasdes ti na das a pro te ger a in te gri da de do pla no, a Lei deu po de res ao mi nis -té rio do Inte ri or para au to ri zá-las con tan to que, de an te mão, fos se o pú -bli co in for ma do so bre sua na tu re za e con ce des se ao Par la men to seu con -sen ti men to ex pres so. A es ti pu la ção é in te res san te e me re ce ria, tal vez, serse gui da em Bra sí lia. Erros, atra pa lha ções, crí ti cas e dis pu tas ocor re ram,por exem plo, em Was hing ton, em vá ri os ca so ser de re mo de la ção dacon cep ção de L’Enfant, e dis pên di os con si dá ve is fo ram o re sul ta dode con ser tos e al te ra ções que não se jus ti fi ca vam. No Rio de Ja ne i ro,

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ti ve mos nós pró pri os o exem plo da Espla na da do Cas te lo em que mo di fi -ca ções e des vi os do de se nho ori gi nal, após o des mon te, pro vo ca ram fa -lhas gra ves e con si de rá ve is pre ju í zos fi nan ce i ros. Em Bra sí lia, são prin ci -pal men te as au to ri da des fe de ra is, o Ju di ciá rio so bre tu do, e a pra ga do pis -to lão po lí ti co que fa vo re cem de ter mi na dos cons tru to res, o que tem ca u -sa do vi o la ções no Pla no Pi lo to de Lú cio Cos ta. Não que um Pla no sejane ces sa ri a men te rí gi do, in vi o lá vel, tabu! A pró pria cons tru ção, a ex pe riên -cia que vem com o tem po, os pro gres sos na ciên cia ur ba nís ti ca, mé to dosde cons tru ção, ar qui te tu ra e tec no lo gia dos me i os de trans por te, po demacon se lhar e mes mo exi gir re for mas no tra ta men to ori gi nal, até no pro je -to me lhor con ce bi do. Mas qual quer al te ra ção deve ser exe cu ta da com oma i or cu i da do. Deve ser ama du re ci da ain da mais len ta men te do que opró prio Pla no e ser ela bo ra da de tal modo que se pos sa in te grar per fe i ta -men te no es que ma pri mi ti vo.

As fun ções de fis ca li za ção na exe cu ção do pla no de Can ber ra– isto é, aque las que com pe tem em Was hing ton à Fine Arts Com mis si on e, em Otta wa, ao Na ti o nal Ca pi tal Plan ning Com mit tee – fo ram en tre guesaos cu i da dos da “Co mis são para o Pla ne ja men to e De sen vol vi men to daCa pi tal Na ci o nal” cu jos mem bros de sem pe nham fun ções mais ou me nossi mi la res. São ar qui te tos, ur ba nis tas e en ge nhe i ros que exer cem pro fis -sões par ti cu la res e ser vem em ca pa ci da de me ra men te ho no rí fi ca, semre mu ne ra ção, além de, ex of fi cio, o Pre si den te da Co mis são de Obras Pú -bli cas do Par la men to e o Se cre tá rio Assis ten te do De par ta men to doInte ri or. Esse ór gão, her de i ro da Co mis são da Ca pi tal Fe de ral es ta be le ci dapela Lei de 1924, re la ti va à Sede do Go ver no e com pos ta de três mem -bros, foi cons ti tu í do sob ins pi ra ção do exem plo de Was hing ton e demu i tas ou tras ci da des ame ri ca nas, com o in tu i to es pe cí fi co de li ber tá-lode qual quer con tro le po lí ti co. A ten dên cia, na Aus trá lia como nos Esta dosUni dos, é para tor nar a pró pria ad mi nis tra ção mu ni ci pal, com seus po de res e res pon sa bi li da des no que diz res pe i to ao re co lhi men to de im -pos tos, à fis ca li za ção da pro pri e da de imo bi liá ria e à cons tru ção de edi fí -ci os e obras pú bli cas, ma té ria da com pe tên cia de ad mi nis tra do res téc ni cos es co lhi -dos pe los seus co nhe ci men tos e ex pe riên cia, ao in vés de su je i tá-la às vi cis si tu des ele i to -ra is. O pre fe i to ou go ver na dor era um pro fis si o nal con tra ta do e não ele i to e su je i to ato das as con tin gên ci as de nos so cor rup to sis te ma go ver na men tal. Tra ta-se de um

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prin cí pio ad mi rá vel que a Aus trá lia, sem pre ob ses si va men te aten ta ao pa -ra dig ma ame ri ca no, es cru pu lo sa men te obe dece.

∗ ∗ ∗

As duas Gu er ras Mun di a is, a apa tia da opi nião pú bli ca e aopo si ção de cer tos cír cu los em pe der ni dos, por mu i tos anos re tar da rama ocu pa ção ofi ci al e efe ti va de Can ber ra. Pla ne ja da em 1911, a ci da de sóse tor nou sede do go ver no em 1927, isto é, de zes se is anos mais tar de!Assim mes mo, qua se meio sé cu lo de po is de ina u gu ra da, ain da con ser va va a apa rên cia de ci da de pro vi só ria, ina ca ba da, ca re cen do de cu me e i ra. Tal -vez mes mo o que dava o ca rá ter de Can ber ra era o “pro vi só rio” e, comex ce ção do War Me mo ri al e do mo der ni nho Par la men to, nada os ten ta vadig no de nota. As di la ções, as con tra-mar chas, a inér cia e os adi a men tossão obs tá cu los nor ma is que se er guem, mor men te em uma de mo cra cia,para a re a li za ção de obras mo nu men ta is des sa na tu re za. São per cal ços quenem mes mo o tão de can ta do di na mis mo an glo-sa xô ni co con se guiu so bre -pu jar. E no en tan to os go ver nan tes aus tra li a nos pro cu ra ram apres sá-la tan toquan to pos sí vel, com mé to do e pre vi são, em bo ra sem pre he si tas sem,por mo ti vos po lí ti cos, por ina to es pí ri to de eco no mia e, qui çá, em vir tu deda tra di ci o nal co var dia de go ver nos tra ba lhis tas que du ran te dé ca das afla ge la ram, a de di car à mag na em pre sa a mão-de-obra e fun dos de quepo de ri am dis por, se hou ves se ma i or re so lu ção.

Em 1920 o Go ver no de ci diu re i ni ci ar a ati vi da de cons tru to ra.A Co mis são Con sul ti va acon se lhou que, sem pre ju í zo do ide al de umabela ca pi tal, “a eco no mia e o de sen vol vi men to uti li tá rio fos sem o ob je tivo do pri me i ro es tá gio de edi fi ca ção, de i xan do para as dé ca das fu tu ras –tal vez para as fu tu ras ge ra ções – a evo lu ção da Ci da de Na ci onal emlinhas ar qui te tô ni cas mo nu men ta is”. Esse pa re cer acar re tou gra ves con -se qüên ci as: apro va do pelo Go ver no, fo ram vo ta dos fun dos in su fi ci en tes para le vá-lo a cabo, mes mo em sua for ma re du zi da. Além dis so, a fal tade pla ni fi ca ção e a he si ta ção e ti mi dez do Par la men to em abrir no voscré di tos, in dis pen sá ve is à edi fi ca ção ma ci ça de es tru tu ras per ma nen tes,ca u sa ram gra ves trans tor nos na mu dan ça do go ver no. A his tó ria des salenta pe re gri na ção é bas tan te ins tru ti va. Vá ri as ve zes in ter rom pi da, deixouuma mar ca pro fun da na ci da de e cri ou pro ble mas com ple xos que até

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hoje não fo ram sa tis fa to ri a men te sa na dos. Essas di fi cul da des são, semdú vi da, che i as de en si na men tos para os cri a do res de Bra sí lia.

A per tur ba ção acar re ta da na evo lu ção rá pi da e su a ve de Can -ber ra pode, de um cer to modo, ser ex pli ca da pe los de ba tes em tor no daim por tân cia re la ti va do Ser vi ço Pú bli co ci vil, pro ble ma as so ci a do aotama nho do Esta do. A con tro vér sia que está in ti ma men te li ga da, naAus trá lia, a pon de ra ções de or dem po lí ti ca pois o au men to do fun ci o na -lis mo é con si de ra do con se qüên cia ne ces sá ria – e las ti mo sa! – do cres ci -men to do po der do Esta do ou, em ou tros ter mos, um co ro lá rio do so ci -a lis mo avas sa la dor. O au men to no nú me ro de fun ci o ná ri os pú bli cosnun ca foi tão con si de rá vel, pro por ci o nal men te, quan to em nos so país.Pos sui, po rém, ou tro sig ni fi ca do pois, se gun do seus crí ti cos, de no ta uma fal ta de equi lí brio na cons ti tu i ção da Com mon we alth, isto é, nas re la çõesentre a União e os es ta dos, a pon to de acar re tar a usur pa ção pelo go verno fe de ral de fun ções pri va ti vas dos es ta dos, com a con se qüen te du pli ca ção de en car gos. O acrés ci mo é cer ta men te con si de rá vel numa po pu la çãoque pou co ul tra pas sa va, nos anos 50, a ci fra dos nove mi lhões. Ha via692.545 em pre ga dos pú bli cos em ju nho de 1952, dos qua is 203.000funci o ná ri os da União e 425.000 dos es ta dos e de or ga ni za ções pa ra es -ta ta is. Hoje, a po pu la ção é de vin te mi lhões, com ba i xo ín di ce de cres ci -men to de mo grá fi co en dó ge no e uma imi gra ção asiá ti ca es tri ta men tecon tro la da.

A ques tão de sa ber se hou ve ou não usur pa ção de fun çõespode ser con tro ver ti da pois ocor reu, in du bi ta vel men te, um au mentogeral des de o fim da II Gu er ra Mun di al – em que a Aus trá lia estevedire ta men te en vol vi da e ame a ça da pe los ja po ne ses – no em pre go defun ções que re ca em, ago ra, sob a res pon sa bi li da de do Esta do. O cres ci -men to da po pu la ção e a ex pan são ge ral da vida eco nô mi ca con tri bu empara esse au men to, tra tan do-se afi nal de con tas de um fe nô me no univer sal, em gran de par te per fe i ta men te com pre en sí vel. Mas no que os crí ti cos,libe ra is e con ser va do res, in sis tem é na im por tân cia do fa tor “so ci a lismo”na ple to ra bu ro crá ti ca. A par tir de 1940, a Fe de ra ção pas sou a as su mir ares pon sa bi li da de do sus ten to da eco no mia do país, man ten do o ple noem pre go e ga ran tin do o bem-estar, o am pa ro e a sa ú de da co mu ni da de,en quan to a de fe sa na ci o nal, as ques tões de imi gra ção e as re la ções in ter -na ci o na is cons ti tu em ati vi da des adi ci o na is a exi gir nu me ro so pes so al.

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Não es ta mos ha bi li ta dos para jul gar se a Aus trá lia so fre ounão de uma hi per tro fia bu ro crá ti ca e se o so ci a lis mo, im pos to porsuces si vos go ver nos tra ba lhis tas e pelo do mí nio qua se ti râ ni co dos sin -di ca tos ope rá ri os, tem pre ju di ca do ou, pelo con trá rio, ace le ra do seudesen vol vi men to eco nô mi co. As di fi cul da des da Aus trá lia com pa ram-seàs ve zes com as nos sas. Mas o que vale sa li en tar es pe ci al men te, no caso,é que o in cre men to mons tru o so do fun ci o na lis mo foi um fe nô me nopos te ri or ao pla ne ja men to de Can ber ra, afe tan do os pla nos pri mi ti vos,exi gin do no vas cons tru ções pú bli cas, atra san do a mu dan ça das re partiçõesse di a das em Mel bour ne e, de um modo ge ral, com pli can do o pro ble ma,já por si di fí cil, da trans fe rên cia de toda a ad mi nis tra ção. To da via, per -ma ne ce o fato que a po pu la ção de Can ber ra é me nor do que todo ofun ci o na lis mo pú bli co exis ten te em Bra sí lia. A re ver são das ex pec ta ti vas so ci a li zan tes e es ta ti zan tes, com aber tu ra e cres ci men to ace le ra do daeco no mia, é fe nô me no re cen te. Data da dé ca da dos anos 90.

A re sis tên cia pas si va por par te de cer tos cír cu los ad mi nis tra tivoscon tra a re si dên cia for ça da na “Ca pi tal do ser tão” (bush ca pi tal) nun caces sou. Com o rom pi men to da Se gun da Guerra Mun di al foi mais umavez pre ju di ca da a evo lu ção nor mal da ci da de e trans for ma dos os pla nosdo go ver no. O de sen vol vi men to ain da em bri o ná rio da ci da de, no mo -men to de ten são de to das as ener gi as na ci o na is para o es for ço bé li co,não pôde im pe dir a ex pan são das ati vi da des gover na men ta is em Sydneye Mel bour ne. O país, na ver da de, pro cu rou con du zir a guer ra a par tir de três ca pi ta is di fe ren tes. Acres cen te-se que esse es for ço de pen dia, so bre -tu do, das co mu ni ca ções ma rí ti mas com os Esta dos Uni dos da Amé ri cae com as fren tes de com ba te, sa li en tan do a im por tân cia dos por tos emde tri men to da me tró po le con ti nen tal. Can ber ra ad qui riu as sim tra çosca rac te rís ti cos que a di fe ren ci am das ou tras cida des aus tra li a nas em suaevo lu ção mor fo ló gi ca e tipo de ad mi nis tração mu ni ci pal. E se es sas di fe -ren ças são na tu ra is e pró pri as de uma ca pi tal que exer ce fun ção es pe cí fi -ca no or ga nis mo es ta tal, não de i xa por isso a ci da de de ser ti pi ca men teaus tra li a na. Cres ceu mais ra pi da men te do que qual quer ou tra no país, não obs tan te as vi cis si tu des que teve de en frentar des de a sua fun da ção. Nes se sen ti do vale ob ser var que, pla ne ja da em 1911 (há por tan to 90 anos!) ain -da hoje não está de fi ni ti va men te ins ta lada. Com pa re-se essa len ti dão com o caso de nos sa Go iâ nia, ca pi tal es ta du al que tem cin qüen ta anos de

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exis tên cia e já pos sui uma po pu la ção de três mi lhões de al mas! Com pa -re-se, so bre tu do, com Bra sí lia, que tal vez já seja a ter ce i ra ma i or ci da dedo país. Mas eis o pon to es sen ci al: Can ber ra é, ape nas, uma ca pi tal ad mi -nis tra ti va. Qu an do o Par la men to não está reunido, é di fí cil en con trar, na ci -da de, os in te gran tes do Ga bi ne te e par la men tares, sen do mo ti vo de des -gos to para os lo ca is o fato de que nem mes mo o atu al Pri me i -ro-Ministro, John Ho ward, re si de na ca pi tal. Bra sí lia, do mes mo modocomo Go iâ nia, é pólo de gra vi ta ção de mo grá fi ca – no caso de nos saNo va cap, par ti cu lar men te, pela atra ção ir re sis tí vel que exer ce o pa ter na -lis mo do go ver no numa po pu la ção (e numa clas se política) que ain da acre -di tam em Pa pai Noel.

Can ber ra so freu “do en ças” de cres ci men to. Fo ram na tu ra isnas cir cuns tân ci as, mas agra va das pela re lu tân cia do go ver no em sa cri -fi car or ça men tos para a rá pi da con se cu ção da sua “Idéia Do mi nan te”.A ten dên cia era, e con ti nua sen do, exa ta men te o opos to do que ocor -reu em Bra sí lia, par ti cu lar men te à épo ca do go ver no JK, que tudo sa -cri fi cou ao item he ge mô ni co de seu Pla no de Me tas, mes mo à cus ta da in fla ção. Em con tras te com Bra sí lia, cu ri o so é seu as pec to pela ba i xaden si da de ur ba na. B. Hig gins aco i mou-a de “jar dim sem ci da de”. Elade i xa de fato a im pres são de vas tos es pa ços, im pres são agra dá vel mascon di ci o na da à pos se de au to mó vel – es pa ço tal vez ex ces si vo em re la -ção à po pu la ção, o que é, aliás, uma ca rac te rís ti ca de toda a Aus trá lia, o con ti nen te de me nor den si da de de mo grá fi ca do pla ne ta. Ou tro crí ti comor daz des cre veu-a como “sete su búr bi os dis per sos que pro cu ramuma ci da de”. Grif fin de se jou e ob te ve a vas ti dão de áre as para es ten -der o seu Pla no, um pri vi lé gio sem dú vi da. Mas tam bém teve de en -fren tar a opo si ção fer re nha dos ad mi nis tra do res, “ho mens ter rí ve isque cal cu lam o cus to das obras e en ten dem de es go tos!”. Não se podedi zer o mes mo de Oscar Ni e me yer...

A ca pi tal aus tra li a na apre sen ta o as pec to de um jar dim, a pa i -sa gem mes mo do cam po, “um caos de for mo su ra”. Co men tá rio jus to:As ruas são pi to res cas mas fal tam às ave ni das o ho ri zon te, a dig ni da dedas gran des pers pec ti vas aber tas. Mu i tas ca sas, nos ba ir ros mais an ti gos, es tão per di das de trás de es pes sa fo lha gem, como que para lhes es con der a au sên cia de mag ni fi cên cia, ori gi na li da de ou es ti lo ar qui te tô ni co. A im -pres são de fa zen da sim ples, es pa ço sa e con for tá vel é ro bus tecida pela

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ca rên cia de um es ti lo ur ba no dis tin to, ao pas so que a ar qui te tura su bur ba na e ru ral pos sui ca rá ter pró prio, bas tan te agra dá vel. Não se pode ne gar oas pec to des pre ten si o so dos an ti gos edi fí ci os pú bli cos da ca pi tal – de fe i -to que foi cor ri gi do nas cons tru ções mais re cen tes. Não hou ve a am bi -ção, como em Otta wa, de imi tar Lon dres na fa cha da ne o gó ti ca. Nem sede se jou, tam pou co, se guir o exem plo clás si co e mo nu men tal de Was -hing ton. Não se ar ris cou uma ex pe riên cia ar tís ti ca de tipo híbri do comoem Nova De lhi, ou “ul tra-moderno” como em Chandigarh, a ca pi tal does ta do do Pun jab na Índia, cons tru í da por Le Cor bu si er. Canber ra per -deu a oca sião que os in di a nos, em es ca la mo des ta, sou be ram apro ve i tar.Per deu so bre tu do a opor tu ni da de imen sa, que se abriu di an te de nos sospró pri os ar qui te tos, de cons tru ir uma me tró po le re vo lu ci o ná ria, dig nados pro gres sos téc ni cos do sé cu lo XX, com as suas pos si bi li da des for -ne ci das pelo uso do con cre to, vi dro e es tru tu ra de aço, doar-condicionado e do trans por te au to mo bi lís ti co e aé reo. O es ti lo ado ta -do fi cou re du zi do a um “stan dard me dío cre”, pe que no bur guês. Entre -tan to, vem este sen do al te ra do, nos úl ti mos anos, por pro je tos mais ar -ro ja dos e po lê mi cos, como o novo edi fí cio do Par la men to e o Mu seuNa ci o nal Aus tra li a no. Ain da as sim, o es ti lo pre do mi nan te da cidade pa -re ce con fir mar a re la ti va inap ti dão an glo-saxônica para as ar tes plás ti cas. Se ria ex pli cá vel, no caso, numa so ci e da de de mo crá ti ca de ní vel mé dio,de pre o cu pa ções es sen ci al men te prá ti cas, ima gi na ção co me di da, ten dên -ci as ni ti da men te so ci al-democráticas e ho ri zon tes não tão am plos quan -to se po de ria es pe rar, num país novo e imen so como é... To da via, deve -mos apon tar para o fato que a re la ti va po bre za ar tís ti ca da Aus trália, re la ti -va men te ao Bra sil, não a im pe diu de os ten tar uma tal ins ti tu i ção em suaca pi tal, co i sa que ain da não ou sa mos edi fi car em Bra sí lia. Nós pre fe -rimos des pen der cen te nas de mi lhões de dó la res em obras fa raô ni caspara o Ju di ciá rio.

A Aus trá lia não pos sui como o Bra sil, ou pelo me nos em grau se me lhan te, o pro ble ma do aban do no do in te ri or o qual será sem pre,em sua ma i or par te, um de ser to ina bi tá vel, em vir tu de de sua semi-ari dez.A po pu la ção do país, cer ca de nove ve zes in fe ri or à nos sa, está lon ge deser su fi ci en te para ocu par, em den si da de nor mal, a pró pria zona li to râ nea.Nes se sen ti do, o pro ble ma ge o po lí ti co da ca pi tal aus tra li a na é, ob vi a -men te, di fe ren te do nos so, pois o im pe ra ti vo da mar cha para o in te ri or e

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da co lo ni za ção do “ser tão” não se apre sen ta com a mes ma com pul sãodo que no Bra sil. Além dis so, a Aus trá lia não goza de idên ti ca ca pa ci da dede auto-su fi ciên cia po lí ti ca e cul tu ral. Pre sa por for tes la ços po lí ti cos,ra ci a is, cul tu ra is e so bre tu do eco nô mi cos à Co mu ni da de bri tâ ni ca e aosEsta dos Uni dos da Amé ri ca, vive na con tin gên cia de se apro xi mar daPá tria oci den tal, ven cen do o obs tá cu lo cri a do pela dis tân cia, a fim deen fren tar com êxi to o iso la men to ge o grá fi co e a vi zi nhan ça omi no sa de uma Ásia su per po vo a da em con vul são. O mar é es sen ci al à so bre vi vên cia daAus trá lia que, afi nal de con tas, não pas sa de uma gran de ilha. É na tu ral,é mes mo ge o po li ti ca men te ne ces sá rio que a área vi tal da na ção se man -te nha, como hoje, no li to ral do Mar da Tas mâ nia. Esse mar que ba nha a Aus trá lia e a Nova Ze lân dia, é uma es pé cie de “lago bri tâ ni co”. É, igual -men te, o pon to mais dis tan te al can ça do, no pla ne ta, pela ex pan são daci vi li za ção eu ro péia. O país está cons ci en te des sa si tu a ção de “pos to avan -ça do” em re la ti vo iso la men to ma rí ti mo, e a po lí ti ca da “Aus trá lia Bran ca”cons ti tu iu um re fle xo de te mo res que a ex pe riên cia da Se gun da Gu er raMun di al ple na men te jus ti fi cou. O de ser to aus tra li a no, a oes te e ao nor te,pro te ge o co ra ção da ilha-con ti men te con tra o es pec tro asiá ti co, mas tan tain fluên cia pos sui esse fa tor ob ses si vo quan to as cir cuns tân ci as cli ma to -ló gi cas e ou tras que de ter mi na ram a pros pe ri da de dos es ta dos do Su des -te, Nova Ga les e Vic to ria. A men ta li da de dos fun da do res da Com mon -we alth es ta va de ter mi na da por um qua dro ge o po lí ti co de que a se gu ran ça das vias ma rí ti mas e a pro te ção exer ci da pelo ta lu de de sér ti co cons ti tu emele men tos fun da men ta is. Co lo ca ram por isso a ca pi tal não lon ge do li to -ral, no pon to de con ta to do hin ter land res pec ti vo de Sydney e de Mel -bour ne. Nes sas con di ções qual quer “in te ri o ri za ção” ma i or da ca pi talaus tra li a na se ria ab sur da e, por con se guin te, di fi cil men te se po de riaima gi nar, nas cir cuns tân ci as atu a is, po si ção me lhor do que a que foise le ci o na da.

Ao ter mi nar esta se ção, per mi to-me ex pres sar al guns pon tosde vis ta re la ti vos aos fa to res cul tu ra is ou de psi co lo gia so ci al que, de ter -mi nan do as op ções po lí ti cas dos po vos, con du zem al guns ao de sen vol -vi men to e à ri que za, en quan to ou tros à de sor dem e atra so. Aus trá lia eArgen ti na se en con tram, apro xi ma da men te, no mes mo ní vel de gran dezaem ter mos de po pu la ção, ex ten são ter ri to ri al ha bi tá vel e cul ti vá vel, epre sen ça de va li o sos re cur sos na tu ra is. As duas na ções são igual men te

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pró xi mas na du ra ção de sua his tó ria. Ambas co me ça ram a cres cer emprin cí pi os do sé cu lo XIX, sen do a Aus trá lia, nes se sen ti do, ain da maisre cen te do que a Argen ti na. Ambas fi ze ram sua for tu na ini ci al men te nabase da agro pe cuá ria – a Aus trá lia po vo a da por de gre da dos e cri mi nosos,a Argen ti na prin ci pal men te por imi gran tes es pa nhóis e ita li a nos. Comoex pli car en tão que seja a pri me i ra bem go ver na da, sob um Esta do deDi re i to, e goze de uma ren da per ca pi ta (US$21.000 em 1999), mais detrês ve zes a da Argen ti na, en quan to esta, após se van glo ri ar, por vol ta de 1920, de sua pos tu ra en tre os cin co ou seis pa í ses de ma i or for tu na domun do, re ca iu como que por uma vo ca ção ir re fra gá vel para o sub desen -vol vi men to? A Aus trá lia so freu um pe río do de cres ci men to pre guiço so nasduas dé ca das de go ver no tra ba lhis ta mas, em 1994 e de novo em 1996,en tre gou o po der aos con ser va do res (os to ri es) que es ti mu la ram a econo -mia atra vés de re ce i tas li be ra is. De qual quer for ma, eis uma questão quede i xo, como uma pa u sa para me di ta ção do le i tor, pois é igual men te per -ti nen te no caso do Bra sil...

∗ ∗ ∗Che ga mos ao fim de nos so ca pí tu lo que é tam bém o úl ti mo

de di ca do a an te ce den tes es pe cí fi cos de Bra sí lia. Sen do uma das maisrecen tes das me tró po les ar ti fi ci a is, Can ber ra é tam bém aque la que, pelascir cuns tân ci as di fí ce is de sua fun da ção e cres ci men to, apre sen ta da dosmais ins tru ti vos para com pa ra ção com nos so fe nô me no “mu dan cis ta”.A prin ci pal di fe ren ça, cre io eu, é a par ci mô nia da ad mi nis tra ção aus tra liana, ver sus a ma ne i ra per du lá ria com que Bra sí lia foi cons tru í da.

No pe río do en tre a pri me i ra e a pre sen te edi ção des te li vro,no vas ca pi ta is ar ti fi ci a is fo ram cons tru í das ou pla ne ja das, na Áfri ca e naÁsia. Isla ma bad, no Pa quis tão, si tua-se não lon ge da ci da de de Ra wal -pin di. É re la ti va men te pou co dis tan te da fron te i ra da Índia e, o que émais, mu i to pró xi ma da pro vín cia do Kash mir, ha bi ta da por mu çul manos.Ora, o ter ri tó rio do Kash mir, uma das re giões mais be las do sub con ti -nen te, está sen do con tes ta do pe los dois pa í ses des de a in de pen dên cia e par ti lha da Índia bri tâ ni ca, am bos ago ra ar ma dos nu cle ar men te. Em suama i or par te, a pro vín cia é con tro la da pe los in di a nos, me nos pre zando oprin cí pio da au to de ter mi na ção dos po vos.

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Um ou tro caso in te res san te do pon to de vis ta ge o po lí ti co é anova ca pi tal da Ni gé ria, em cons tru ção. Cha ma-se Abu já. A ci da de estáes tra te gi ca men te si tu a da en tre as áre as ha bi ta das pe las três prin ci paisetni as ni ge ri a nas, os Ha us sá mu çul ma nos do Nor te se mi-árido; osIgbôs, ex tre ma men te di nâ mi cos e par ci al men te cris ti a ni za dos do Les te,onde se en con tram as prin ci pa is re ser vas pe tro lí fe ras do país; e os Iorubás,de re li gião mis ta e fa lan do sua pró pria lín gua nagô. São os io ru bás quepos su em la ços an ti gos com a po pu la ção de ori gem afri ca na da Ba hia.

Não me de te rei, con tu do, so bre es ses ca sos re cen tes em que a pro ble má ti ca do “Qu an do Mu dam as Ca pi ta is” se apre sen ta em suasfor mas pe cu li a res. O mo men to é apro pri a do para abor dar mos a nos sapró pria Bra sí lia – qua ren ta anos de po is de ha ver sido fun da da.

∗ ∗ ∗

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Wal ter Bur ley Grif fin (1876-1937). – Pho to graph re pro du ced from “Re vi ew of Re vi ews for Aus tra la sia”, July 1914

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Can ber ra. Vis ta do eixo mo nu men tal. Emba i xo o mo nu men to aos mor tos da guer ra. No fun do, o edi fí cio do Par la men to

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Uma pers pec ti va com pa ra ti va do eixo mo nu men tal de Can ber ra, com o edi fí cio do Par la mento em pri me i ro pla no e o eixo mo nu men tal

de Bra sí lia, com o edi fí cio do Con gres so ao fun do

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XVIBra sí lia, a Nova Ca pi tal6

A pri me i ra con clu são que se pode ti rar dos an te ce -den tes abor da dos no pre sen te tra ba lho é que não so men te a lo ca li za çãode uma ca pi tal é um im por tan te fa tor ge o po lí ti co, no qua dro de si tu a çõesque de ter mi nam o des ti no de uma na ci o na li da de, mas ain da o fato damu dan ça em si, quan do ocor re com ob je ti vos de ter mi na dos – mi li ta res,po lí ti cos, eco nô mi cos, so ci a is ou cul tu ra is – é um ele men to es sen ci al dacon jun tu ra his tó ri ca.

Assim, pois, são o mo men to e a po si ção as co or de na das da si tuação: o mo men to como as pec to di nâ mi co, pro je ção sim bó li ca no tem po; apo si ção como ele men to es tá ti co, mar co ge o po lí ti co fun da men tal. São omo men to do re i na do de Pe dro o Gran de, em prin cí pi os do sé cu loXVIII na Rús sia, e o sí tio da “ja ne la so bre a Eu ro pa”, aber ta do lado do Mar Bál ti co, que de fi nem S. Pe ters bur go. São a re for ma ke ma lis ta dosanos 30 e o cen tra lis mo ana to li a no que ex pli cam Anka ra. Foi o de se jo,frus tra do, de con so li dar o do mí nio bri tâ ni co so bre a Índia que ori gi nou6 Este ca pí tu lo foi es cri to em 1957, por tan to an te ri or men te à cons tru ção da nova

ca pi tal. A re da ção foi atu a li za da em 1999. No ca pí tu lo se guin te, já me atre vo a crí ti -cas, em ter mos de 40 anos de ex pe riên cia da ci da de.

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a cons tru ção de Nova De lhi. Assim tam bém, foi o mo men to his tó ri code nos so de sen vol vi men to na ci o nal que exi giu, como co ro lá rio es pa ci al,a in te ri o ri za ção da ca pi tal bra si le i ra. Estas são as duas fa ces in se pa rá ve isdo mes mo pro ble ma, são os dois ter mos de uma úni ca equa ção. O queé in ques ti o ná vel e o que este li vro pro cu rou pro var, em to dos os ca sosex pos tos, é que a mu dan ça da ca pi tal não re pre sen ta um ca pri cho, umpor me nor sem im por tân cia, um fato oca si o nal, um acon te ci men to for -tu i to. É sem pre, e ne ces sa ri a men te, um mar co es sen ci al da si tu a ção his -tó ri ca apre ci a da, tra çan do a di men são ge o grá fi ca des se mo men to.

Crí ti cas po dem ser le van ta das ao pla nal to de Fe li pe II, ao es -tuá rio pe ço nhen to de Pe dro, o Gran de, aos pân ta nos de Was hing ton, aode ser to de Ata türk, às er mas co li nas dos fe de ra lis tas aus tra li a nos, às lon -gín quas cha pa das de Go iás. Em to dos es tes ca sos, po rém, a es co lha donovo lo cal, pró prio para a ins ta la ção do go ver no, acom pa nha como im pe -ra ti vo ca te gó ri co a obra re no va do ra do go ver nan te. É por isso que en con -tra mos, em qua se to dos os gran des ins tan tes da his tó ria dos po vos, emsuas en cru zi lha das, tour nants dra má ti cos nas ho ras cul mi nan tes de sua vida co le ti va, esse ato ins pi ra do que fun da uma nova ca pi tal. Por tal mo ti voigual men te é que a fun da ção ad qui re as pec tos sa cra men ta is, como se oato en vol ves se a par ti ci pa ção de po de res ocul tos ou cons ti tu ís se um mo -men to so le ne de cri a ção, de ver da de i ra ges ta ção de uma nova era. Nãoco in ci de a fun da ção de Cons tan ti no pla com o iní cio da Ida de Mé dia?Não é a mu dan ça do Mi ka do para Tó quio, o ins tan te ini ci al da Era Me i ji?E, as sim tam bém, não ocor reu o de sen ca de a men to to tal do pro ces so dede sen vol vi men to na ci o nal bra si le i ro si mul ta ne a men te com o ato re le van te da mu dan ça do go ver no do Rio de Ja ne i ro para o Pla nal to Cen tral?

Sa be mos que a sé rie de ar gu men tos que mi li ta ram em fa vorda mu dan ça da ca pi tal do Bra sil se en qua dram den tro de três gru posprin ci pa is. Em pri me i ro lu gar, ve ri fi cou-se a con tra-in di ca ção do Rio deJa ne i ro como sede do go ver no fe de ral em con se qüên cia de seu cli ma,do am bi en te mo ral, de seu cos mo po li ta nis mo, lo ca li za ção pe ri fé ri ca epos sí vel vul ne ra bi li da de mi li tar. Em se gun do lu gar, cons ta tou-se que amu dan ça da ca pi tal, pelo sim ples fato de ser le va da a efe i to, re pre sen ta riaum es tí mu lo e cor re ti vo útil para cer tas fa lhas apon ta das em nos so pro -gres so pois, como ins tru men to efi ci en te do avan ço, se ria um mé to do,“ar ti fi ci al” sem dú vi da, mas his to ri ca men te jus ti fi ca do se gun do as me tas

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ten den tes a al can çar os ob je ti vos mais al tos da na ci o na li da de – de ven doocor rer num mo men to em que inú me ros sin to mas de ma i or ou me norgra vi da de pa re ci am in di car que ela se de pa ra va com uma de ci si va “to -ma da de cons ciên cia”. E, em ter ce i ro lu gar, con clu iu-se que a lo ca li za -ção ide al para a nova ca pi tal se ria o Pla nal to Cen tral do Bra sil. Ora, sa -be mos tam bém que, se exis tia uma una ni mi da de teó ri ca so bre a con ve -niên cia de uma even tu al trans fe rên cia de sede do go ver no, sé ri as dis cre -pân ci as se ma ni fes ta ram quan to ao sí tio mais in di ca do (Sul de Go iás?Triân gu lo Mi ne i ro? Belo Ho ri zon te? Até mes mo Pe tró po lis?) e, so bre tu -do, quan to à opor tu ni da de do mo men to. De fato, opi na vam per so na li -da des das mais res pe i tá ve is que a oca sião ade qua da não era che ga dapor que o ato po de ria cons ti tu ir um en car go de ma si a da men te pe sa do e,pre ci sa men te por essa ra zão, um obs tá cu lo ao pro ces so de de sen vol vi -men to em ple na ma tu ra ção.

Sem nos que rer apro fun dar em tal dis cus são que, re pi to, nãocons ti tui a ma té ria-prima des te li vro, vale as si na lar a co in ci dên cia, nãofor tu i ta mas ne ces sá ria, en tre a mu dan ça da ca pi tal e o pro ces so dedesen vol vi men to no es tá gio em que se en con tra va o país na me ta de dosé cu lo XX – sen do a opor tu ni da de com pro va da por con si de ra ções deca rá ter eco nô mi co e de mo grá fi co. Com efe i to, as duas ca rac te rís ti casfun da men ta is da po pu la ção bra si le i ra, na que le mo men to, eram seuexcep ci o nal ín di ce de cres ci men to e a igual men te ex tra or di ná ria di ver -sidade na den si da de de dis tri bu i ção ge o grá fi ca. Nes se sen ti do, as es ta tís ticas de mo grá fi cas com pro va vam os fa tos da ge o gra fia hu ma na. Elas cons ti -tu íam o fun da men to ge o po lí ti co da “tese mu dan cis ta” que Jus ce li noKu bits chek en car nou e, na prá ti ca, Isra el Pi nhe i ro di ri giu. Foi na dé ca da dos anos 50 que o Bra sil atin giu, pre ci sa men te, ao mais alto ín di ce deex pan são po pu la ci o nal, 3% ao ano. Na épo ca, mu i ta gen te não se davacon ta, mas a ex plo são de mo grá fi ca acres cen ta va, todo ano, três mi lhõesde se res a mais, em sua ma i o ria po bre e in cul ta, que pro cu ra vam nascidades um alí vio para as ma ze las da zona ru ral.

Ora, qual foi, e é ain da, a Idéia Do mi nan te do Bra sil atu al?Não es ta ría mos tal vez lon ge da ver da de se a de fi nís se mos como aneces si da de e o de se jo de de sen vol vi men to no sen ti do mais alto da pa la -vra – de sen vol vi men to eco nô mi co, de sen vol vi men to so ci al, pro gres soda edu ca ção e cul tu ra, re or ga ni za ção po lí ti ca e re ge ne ra ção mo ral. O desejo

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de de sen vol vi men to ace le ra do – que até hoje per sis te – pren de-se àcons ta ta ção ge ral de que nos so sub de sen vol vi men to re sul ta de pro fundasde si gual da des na dis tri bu i ção da ri que za e da cul tu ra, com con tras tescho can tes que po dem ser de fi ni dos em ter mos ge o grá fi cos, uma vezque es tão re la ci o na dos com a con cen tra ção atu al de qua se to dos os bens ma te ri a is na zona li to râ nea me ri di o nal da na ção. Não por aca so a mu -dan ça ocor reu ao se ini ci ar o pe río do de mais rá pi da ur ba ni za ção. Em50 anos, pas sa mos de 70% da po pu la ção vi ven do na área ru ral, para apo si ção opos ta: qua se 80% na área ur ba na. O fe nô me no co in ci diu como apa re ci men to, pela pri me i ra vez sen sí vel em nos sa his tó ria, de umaclas se mé dia, uma bur gue sia po li ti ca men te in flu en te (Mapa 1).

Em suma: toda a “pro ble má ti ca da re a li da de bra si le i ra” in di -ca va a exis tên cia de fa lhas gra ves na re par ti ção da po pu la ção pelo ter ri -tó rio na ci o nal e fa lhas ain da mais gra ves na re par ti ção da ri que za eco nô -mi ca, do bem-estar so ci al e do pro gres so cul tu ral. Os de se qui lí briostinham, como con ti nu am ten do, re fle xos na ins ta bi li da de po lí ti ca. To dos os so ció lo gos e his to ri a do res, não con ta mi na dos por pre con ce itosmarxis tas, no ta ram e, se não sa li en ta ram, pelo me nos de i xa ram im plí ci to o pos tu la do de que tal vez a prin ci pal ca rac te rís ti ca cons tan te de nos saevo lu ção his tó ri ca tem sido um es que ma an tro po ge o grá fi co pe cu li ar que cri ou, pa ra le la men te ao ex ten so li to ral atlân ti co, fa i xas com ní ve is decivi li za ção de cres cen te para o lado do in te ri or, es tan do esse es que ma naraiz mais pro fun da do sub de sen vol vi men to. Amo ro so Lima fala na co e -xis tên cia e in ter pe ne tra ção da ida de da pe dra no Mato Gros so, da ida dedo bur ro com sua ci vi li za ção ser ta ne ja ou ca i pi ra, na re gião dos pla naltoscen tra is, e da ida de do mo tor nas gran des ci da des cos te i ras. Numaoutra gama ide o ló gi ca, Gu er re i ro Ra mos de te ve-se, por vol ta de 1955,na “du pli ci da de” da for ma ção do Bra sil, na “he te ro no mia” que mar ca anos sa so ci e da de, no “amor fis mo” e na “ina u ten ti ci da de” que são con se -qüên ci as na tu ra is da for ma ção por co lo ni za ção, fase ain da não com ple -ta men te su pe ra da. Essa “re la ti vi da de cro no ló gi ca” ou “di a crô ni ca” node sen vol vi men to, com pa rá vel a que, por exem plo, foi no ta da no Perupe los teó ri cos um tan to pe dan tes e de so nes tos do Apris mo, se pren dena tu ral men te às con di ções es pe cí fi cas do mo de lo co lo ni za dor ibé ri co.Qu an do os co lo ni za do res che gam por mar (e é as sim que ocor re, pois o ve í cu lo na val dis tin gue o “co lo ni za dor” do “con quis ta dor” con ti nen tal)

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a ci vi li za ção se con cen tra, a prin cí pio, no li to ral e só aos pou cos seesten de pelo in te ri or. Tra ta-se de uma cons tan te ló gi ca. Ela é fa cil men teve ri fi cá vel na di ver si da de de exem plos apli cá ve is ao caso, quer a co lo ni -za ção seja for ça da, quer te nha a cul tu ra es tra nha sido es pon ta ne a men teado ta da como ocor reu no Ja pão, de modo tão ex pres si vo, pela ado çãodo Bu dis mo, da cul tu ra e da es cri ta ide o grá fi ca chi ne sas.

No qua dro da evo lu ção bra si le i ra, en tre tan to, a for ma ca rac te -ris ti ca men te li to râ nea da co lo ni za ção lu si ta na foi res sal ta da pe las pe cu li -a ri da des do ata vis mo por tu guês. A fra se do cro nis ta do sé cu lo XVIII,“os por tu gue ses agar ram-se às pra i as como ca ran gue jos”, de fi ne só porsi a cons tan te do fe nô me no do im pé rio luso. His to ri a do res e so ció lo gos hão res sal ta do es ses as pec tos, nem sem pre ati nan do com a im por tân ciada per ma nên cia por tu gue sa no li to ral. O fato de que o Bra sil foi des co -ber to como epi só dio da pro cu ra do ca mi nho das Índi as, sen do de i xa doao de sam pa ro o ter ri tó rio re cém-descoberto, que ser via ape nas comoponto de apo io para as naus que de man da vam o Cabo da Boa Espe rança;a gran de ex ten são que atin giu o es ta be le ci men to li to râ neo, quan do pos ta em con fron to com a pe ne tra ção, len ta e re la ti va men te re du zi da nosprime i ros tem pos da ocu pa ção da Ter ra de San ta Cruz; os con tras tesen tre o nos so e o tipo de co lo ni za ção es pa nho la, com a “con quis ta” devas tos es pa ços no Peru e no Mé xi co, como ma ni fes ta ções do es pí ri topro pri a men te “cas te lha no”, o que quer di zer, “con ti nen tal”, sen do essacon quis ta sim bo li za da pela len da de que al guns dos gran des con quis ta -do res es pa nhóis man da ram que i mar seus na vi os, para bem sa li en tar asua de ci são de não re tor nar à Eu ro pa – são so bre es ses fa tos que vale apena me di tar, por que re la ci o na dos com os as pec tos me nos lou vá ve is daevo lu ção his tó ri ca da na ci o na li da de.

Mas há ou tras con si de ra ções per ti nen tes ao caso. Em suamag ní fi ca obra Ban de i ran tes e Pi o ne i ros, pro cu rou Vi an na Moog con frontaros ti pos an glo-saxão e por tu guês de co lo ni za ção. Moog sa li en tou que os por tu gue ses em bar ca vam para o Novo Mun do ape nas com o de se jo deen ri que cer de pres sa e vol tar mais de pres sa ain da para a Eu ro pa. Osanglo-saxões, ao con trá rio, se es ta be le ce ram na Nova Ingla ter ra comver da de i ro es pí ri to “pi o ne i ro”, isto é, com o de se jo de se rem re al men te“ame ri ca nos”, dan do as cos tas à Eu ro pa e fun dan do uma nova na çãono Novo Mun do. As pró pri as Ban de i ras, que pa pel tão de ci si vo ti ve ram

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no alar ga men to do ter ri tó rio na ci o nal, pa pel ver da de i ra men te he rói co se con si de rar mos o es for ço exi gi do por es sas ex pe di ções até os con fins do ser tão bra si le i ro, atra vés de flo res tas tro pi ca is!, es sas ex pe di ções pre da -tó ri as, como acen tua Ca pis tra no de Abreu, “con cor re ram an tes parades po vo ar que para po vo ar nos sa ter ra”... pois “os ban de i ran tes iam etor na vam, não se fi xa vam nun ca nos ter ri tó ri os per cor ri dos”. Vi an naMoog re la ci o na a in ca pa ci da de de es ta be le ci men to per ma nen te no solo,esse tipo de “con quis ta tran si tó ria” que mui cor re ta men te dis tin gue daver da de i ra e de fi ni ti va “co lo ni za ção” em pre en di da na Amé ri ca doNorte, com o fe nô me no do “ma zom bis mo”, do “es pí ri to ma zom bo”cuja per so na gem ain da não ca du cou. O es cri tor e so ció lo go ga úchodescre ve, em pá gi nas en tre as me lho res da obra, tal ten dên cia ain da nãosu pe ra da que de fi ne: 1) como au sên cia de de ter mi na ção e sa tis fa ção deser bra si le i ro; 2) fal ta de ide al co le ti vo e, 3) so bre tu do, to tal au sên cia desen ti men to de per ten cer o in di ví duo ao lu gar e à co mu ni da de em quevive. A nos sa per ma nên cia no li to ral, que se pro lon gou de po is da in de -pen dên cia até me a dos do sé cu lo XX, foi as sim in te res san te men te equa -ci o na da com a in ca pa ci da de de cri ar uma co le ti vi da de, cons ci en te de seu des ti no, e ge rar no vas for mas cul tu ra is adap ta das à ter ra em que nosesta be le ce mos. O ape go ao li to ral, como ma ni fes ta ção do de se jo de nãoapa gar a lem bran ça da cul tu ra eu ro péia e do an se io, nun ca sa tis fe i to, devol tar à Eu ro pa, cons ti tui, no di zer de Moog, “um dos mais an ti gosobstá cu los ao ple no e de se ja do ad ven to da nos sa ma tu ri da de”.7

As ten dên ci as cam bi a ram des de que Moog es cre veu. Cri ou-se mes mo uma es pé cie de na ci o na lis mo cul tu ral es pú rio, pro va vel men teem re a ção ao fe nô me no men ci o na do. Mas a in fluên cia da So ci e da deExem plar mo der na – da Eu ro pa oci den tal e Amé ri ca do Nor te – nun cade i xou de ser um ele men to es sen ci al de nos sa vi vên cia cul tu ral. Os epi -só di cos pro tes tos que se têm re gis tra do con tra a “glo ba li za ção” não nos de vem in du zir em erro de in ter pre ta ção. O ar ti fi ci a lis mo da ci vi li za çãoli to râ nea bra si le i ra, a ins ta bi li da de emo ci o nal do “mes ti ço ne u ras tê ni codo li to ral” tal como o de fi ni do por Eu cli des da Cu nha, os con tras tes

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7 Em A Uto pia Bra si le i ra, em pre en di a ta re fa de cor re la ci o nar psi co lo gi ca men te oBan de i ran tis mo com o Dom ju a nis mo. O Ban de i ran te e o Dom Juan são am bosin tu i ti vos ex tro ver ti dos. O Ban de i ran te é um Dom Juan das Ter ras, sem pre in fi ele aban do nan do o sí tio des co ber to, sem nele se fi xar em ma tri mô nio fér til.

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cho can tes en tre a ri que za, o fal so pro gres so e a os ten ta ção das gran desmetró po les ma rí ti mas com a po bre za do ser tão, es que ci do e aban donado,to dos es ses de fe i tos de nos sa for ma ção são as saz co nhe ci dos, es tu da dos e co men ta dos. Não são, po rém, su fi ci en te men te com pre en di dos emcone xão com a atu al es tru tu ra ge o po lí ti ca do país. Nes sa es tru tu ra, aloca li za ção do go ver no fe de ral na baía de Gu a na ba ra cons ti tu ía sin to made evi den te per ti nên cia.

O que faz uma ca pi tal – lem bre mo-nos da de fi ni ção de Val laux!– é “a po si ção de uma ci da de em re la ção ao con jun to do ter ri tó rio e à li nha de fron -te i ra”. Li nha de fron te i ra viva não a tí nha mos em 1950, a não ser no sul.Vi vía mos e ain da vi ve mos re la ti va men te iso la dos de nos sos vi zinhoslati no-americanos, dan do-lhes as cos tas. Aces so ro do viá rio ao Pa cí fi coatra vés do Peru, há dé ca das que se fala nis so mas nada é fe i to, por inérciade nos sa par te e te mor do lado dos pe ru a nos. Só na que la épo ca con se -gui mos es ta be le cer uma li ga ção fer ro viá ria e ro do viá ria efe ti va com aBo lí via – que é por ex ce lên cia a área-pivô do con ti nen te. Não exis teaces so ro do viá rio as fal ta do com a Co lôm bia, Ve ne zu e la e Gu i a nas. Apo si ção do Rio de Ja ne i ro é fal sa, ex cên tri ca, ine fi ci en te, vi ra da para aEu ro pa, vi ra da para o além-mar. Des pre zan do o país, ig no ran do suasfron te i ras, per ma ne cia a Gu a na ba ra em po si ção pe ri fé ri ca, pas si va, semse ar ti cu lar com o con jun to do ter ri tó rio na ci o nal.

Ci da de tro pi cal, ma ra vi lho sa, enor me e cos mo po lita, instin ti -va men te atra í da por tudo que é es tran ge i ro, ci da de abs tra ta que pro cu raimi tar a Eu ro pa mu i to em bo ra sem gran de su ces so em seu cli ma tropical,fal ta ao Rio con ta tos re a is com as fon tes do es pí ri to na ci o nal e da vidapo pu lar. O Rio lembra, por isso, a an ti ga Ale xan dria, a S. Pe ters bur go do sé cu lo XIX, a Cons tan ti no pla de an tes da Pri me i ra Gu er ra Mun di al.Essas ca pi ta is de gran des Impé ri os de ou tro ra fo ram tam bém es ta be le ci dasno li to ral, como ja ne las aber tas a ci vi li za ções ecu mênicas ou a cul turasestra nhas. E hou ve, em to dos es ses ca sos, um rom pi men to pe ri go socom as ra í zes pro fun das da na ci o na li da de. No nos so caso, por que ten tatal vez, com de ma si ado entu si as mo, con tem plar a Eu ro pa e os Esta dosUni dos da Amé ri ca, o Rio de Ja ne i ro pa re ce in di fe ren te ao res to do país.

Cer ta men te é o Rio uma ci da de mag ní fi ca, num dos mais be lospa no ra mas na tu ra is do mun do. Mas é uma ci da de tropical, uma me tró po le de luxo e pra zer, dol ce far ni en te cuja im pres si o nan te fa cha da de con cre to

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ar ma do en co bre, a dez pas sos da pra ia, na pro li fe ra ção das fa ve las, osmo dos de vida mais su jos, mi se rá ve is e pri mi ti vos de todo o vas to ter ri -tó rio na ci o nal. De ze nas de mi lha res de fun ci o ná ri os pú bli cos vi vi am eainda vi vem nos edi fí ci os mo der nos que cons ti tu em o prin cipal mo tivofoto grá fi co de nos sa pro pa gan da no ex te ri or – mas para a ma i or par tede les o ser vi ço do Esta do pa re cia cons ti tuir ape nas uma for ma de vidafácil, ou mes mo um sis te ma ti pi ca men te bra si le i ro de pre vi dên cia so ci al. No Rio, ter re no fér til para a bu ro cra cia pa ra si tá ria, não exis te cli ma nem fí si co nem men tal para um ser vi ço pú bli co efi ci en te, ca paz de aten deraos pro ble mas ur gen tes de um co los so em ple no cres ci men to. Cida de de ve ra ne io, cer ca da por to das as se du ções da na tu reza e ba nha da numaatmos fe ra lu xu ri an te, onde o carioca se pode de i tar ao sol, nadar naságuas ame nas e go zar tran qüi la men te os en can tos de uma vida semres pon sa bi li da des, o nos so Rio cer ta men te não re pre sen ta va o sí tioide al para sede de um bom go ver no. Mas o que são es ses sin to mas senão pro vas de ar ti fi ci a lis mo – ori gi na do numa au sên cia de iden ti fi caçãocom a mis são su pe ri or que lhe cum pria exer cer nos des ti nos da na ci o na -li da de? Arti fi ci a lis mo da fa cha da de Co pa ca ba na, ar ti fi ci a lis mo de umabu ro cra cia gro tes ca men te inú til, va dia, in sa tis fe i ta, cí ni ca, pre da tó ria, re ve la do ra de to dos os sin to mas pró pri os da ina dap ta ção; de uma bu ro -cra cia pa ra si tá ria que, às ve zes, em seus mo men tos de lu ci dez, pre ten dego ver nar como se fôs se mos um país eu ro peu dos mais avan ça dos e de -pa ra-se, atô ni ta, com con di ções re a is pró pri as da Áfri ca sub-sahárica.

Sou ca ri o ca, fi lho de pais ca ri o cas, neto de pa u lis tas, gaúcha epor tu guês, mas me con ver ti ao “mu dan cis mo” das me tas jus ce li a nas por ex pe riên cia pró pria. Há ses sen ta anos que re ce bo, re li gi o sa men te, o con -tra che que a que fa zem jus os fun ci o ná ri os pú bli cos, na ati va ou apo sen -ta dos. É o úni co tra ço, só li do como o Pão de Açú car, das ins ti tu i çõespo lí ti cas e ad mi nis tra ti vas des te país. Não é só o ca ri o ca que tem vocaçãopara o “ser vi ço” pú bli co. É um ví cio bra si le i ro, igual men te gras san doem Mi nas e no Nor des te, e do qual nem mes mo São Pa u lo es ca pou.Cer to, fo ram vãs mi nhas es pe ran ças na “mu dan ça de men ta li da de” does ta tis mo bu ro crá ti co e pa tri mo ni a lis ta bra si le i ro. A ex pe riên cia de 40anos foi gra ve men te aba la da. Mas mi nhas crí ti cas quan to ao Rio con ti -nu am de pé, nes se as pec to es pe ci al. O Rio sem pre foi uma vitri ne. Seupro gres so foi fe i to às cus tas do sub de sen vol vi men to do sertão. Pa re ce às

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ve zes que o país in te i ro tra ba lha va para ali man ter um lu xu o so sa lão devi si tas. Foi as sim que cres ceu ar ti fi ci al men te, não como “ca pi tal” deuma na ção cons ti tu ci o nal e geogra fi ca men te uni fi ca da, mas como umaci da de cuja mons tru o si da de não se deve a ca rac te rís ti cas pró pri as de seu de sen vol vi men to eco nô mi co, mas an tes ao cres ci men to do Esta do, oupor ou tro do “go ver no” no sen ti do que lhe da mos de gene ro so dis tri -bu i dor de em pre gos, be nes ses, fa vo res e au men to in dis cri mi na do dossa lá ri os da No men cla tu ra... O cres cimen to do Rio con fun de-se as simcom um es ta tis mo gro tesco, de país que já es ta ria avan ça dís si mo na tri lha do so ci a lis mo. Na re a li da de, a bu ro cra cia do Rio ain da é o fru to da de ma -gogia ou, como mu i to bem ob ser vou Gil ber to Frey re, do ata vis mo pa -tri ar cal es cra vo cra ta de um pas sa do co lo ni al ain da não supe ra do. Dis sore sul tam si tu a ções pa ra do xa is e, às vezes, ridí cu las. Do Acre ao Ama pá e do Rio Ne gro ao Chuí, as popu la ções fi ta vam o Rio de Ja ne i ro com omes mo ar ad mi ra ti vo com que se ad mi ra va a Cor te do além-mar, es pe -ran do do go ver no fe de ral aque la pro te ção be ne vo len te do Rei por tu guês e do Impe ra dor Dom Pe dro. Pa pai Noel não exis te mas ele se en car na na au to ri da de ca ris má ti ca do “Se nhor Pre si den te” – o gran de dis tri bu i dor de em pre gos. Um in cêndio num lu xu o so apar ta men to de Co pa ca ba na, oau men to das pas sa gens nos bon des da Light ou as de nún ci as de um de pu -tado nas co lu nas de um jor nal ca ri o ca, cons ti tu íam as sun tos dig nos dasmais aten tas con ver sa ções nas al tas es fe ras ofi ci a is ou pro vo ca vam mo -vi men tos de opi nião “que ame a çam as ba ses do re gi me”... Sem fa larque, por um fe nô me no tra di ci o nal, pa re cia que to dos os gran des atoshis tó ri cos da vida po lí ti ca bra si le i ra se re sol vi am atra vés de pro nun ci a -men tos da guar ni ção da Vila Mi li tar.

Não, o Rio não era uma ca pi tal no ver da de i ro sen ti do da pa la vra! É um gran de por to cos mo po li ta que, por cir cuns tâncias ori un das da co lo -ni za ção li to râ nea por tu gue sa, se re ves tiu da dig ni da de me tro po li ta napara de sem pe nhar um fal so pa pel ad mi nis tra ti vo numa vas ta co mé diago ver na men tal a qual, se tal vez não deu para pre ju di car fun da men tal -men te o país, cer ta mente não ser viu para lhe apres sar o pro gres so. Ocor re ainda que, de po is de Car los La cer da, teve o Rio uma su ces são in fe liz degover na do res, em sua ma i o ria me dío cres de ma go gos que mal con se gui -ram con ser var o que ha via sido re a li za do nos anos ses sen ta. “Rio deJane i ro, ci da de que me se duz. De dia não tem água, de no i te não tem

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luz” – é o que se can ta va na época. Pou cas gran des obras para me lho riado trá fe go e dos ser vi ços ur ba nos fo ram re a li za das des de en tão. Umagran de ci da de, com suas in fluên ci as, suas pa i xões, os exa ge ros de umaim pren sa por ve zes le vi a na e os pe ri gos cons tan tes que po dem sur gir de uma po pu la ção mes ti ça, al ta men te emo ti va, num am bi en te ir ri tan te deestu fa, não pa re ce ser a sede mais in di ca da para uma ad mi nis tra ção efi ciente,ca paz de se exer cer em âm bi to na ci o nal. A his tó ria que aca ba mos depercor rer nos ca pí tu los an te ri o res re gis trou vá ri os exem plos de so be ranosque, por di ver sos mo ti vos po lí ti cos, so ci a is, mi li ta res, cul tu rais e mes more li gi o sos, de ci di ram aban do nar suas ve lhas ca pi ta is a fim de en con trarum novo lo cal mais con ve ni en te para seus la bo res. O Fa raó Akhe na tonde i xou The bas em fa vor de sua pró pria “Ci da de do Ho ri zon te”; oImpe ra dor Cons tan ti no aban do nou a Roma pagã, de ca den te e vul ne rá vel,para projetar sobre a ida de mé dia mil anos de ci vi li za ção bi zan ti na;Kwammu, no Ja pão, aban do nou Nará para se li vrar do cle ro bu dis ta;Kublai Khan des pre zou as ten das de Ka ra ko rum por que ne las se exercia ain fluên cia re tró gra da do bar ba ris mo mon gol; Luís XIV de tes ta va Pa ris,a Pa ris da ple be anár qui ca que fa ria a Re vo lu ção e a Co mu na, e por issocons tru iu Ver sa il les; Pedro o Gran de odi a va Mos cou, abrin do so bre ooci den te uma ja ne la que, só em nos sos dias, a Cor ti na de Fer ro virianova men te fe char; e Ke mal Ata türk, re pu di an do o pas sa do decaden te da Istam bul oto ma na, in ter nou-se nas ás pe ras planu ras da Ana tó lia.

Nes se sen ti do, tam bém, o que se pre ten deu com a in te ri o ri zação da ca pi tal do Bra sil – qui çá sem su ces so, devo con fes sar após 40 anos –não foi o es for ço her cú leo de trans fe rir para Go iás uma bu ro cra cia imen sa, oci o sa e cor rup ta, mas sim, ne ces sa ri a men te, es que cê-la, de i xá-la ve ge tar e mo far na umi da de da Gu a na ba ra. E vale ain da acres cen tar que osEstados fe de ra dos têm sen ti do es pe ci al men te a ne ces si da de de re ti rar ogover no das gran des ci da des a fim de li ber tar o Con gres so e o Exe cu tivode pres sões de in te res ses lo ca is ou re gi o na is. Foi assim que sur gi ramWas hing ton, Otta wa, Pre tó ria e Can ber ra. A de mo cra cia re gi o nal é uma ca -rac te rís ti ca es sen ci al do sis tema fe de ral. Fe de ra lis mo é des cen tra li za ção.Em tal sis te ma, nenhu ma ci da de pode cons ti tu ir uma área pri vi legi a da,fa vo re ci da com a so li ci tu de ofi ci al. A ver da de i ra “ca pi tal federal” não éarti fi ci al, é ape nas fun ci o nal. Seu pa pel não é as se gu rar, po rém com ba ter a cen tra li za ção go ver na men tal cujo pro ces so se in ten si fi ca, na tu ral mente,

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nas gran des me tró po les, cul tu ral e eco no mi ca men te ri cas. O que seprocu rou, por con se guin te, não foi ape nas ir para o in te ri or mas fugir do Rio – pe los mes mos mo ti vos que os fun da do res das grandes de mo cra ci asan glo-saxônicas fu gi ram de Nova Yok e Phi la delp hia, de Mon tre al eToron to, de Sydney e Mel bour ne, de Ca pe town e Jo han nes bur go.

Nes sas ba ses é que de ve mos co lo car o pro ble ma da mu dan çada nos sa ca pi tal. A Idéia Do mi nan te de Bra sí lia foi en tre tan to di fe renteda que la que pre si diu aos ca sos aqui apre sen ta dos como pre ce den teshis tó ri cos, no sen ti do que se re ves tiu de ca rac te rís ti cas pró pri as e uni -ca men te bra si le i ras. Se me lhan te a es ses pre ce den tes, a nos sa mu dan çao é ape nas no sen ti do que o mes mo ins tru men to ge o po lí ti co foi cons -ci ente men te usa do para atin gir ou tros fins. Nem mes mo o caso maispró xi mo, o tur co, se pa re ce com o nos so. Pro mo vi da por Ke mal Pa chá,a in te ri o ri za ção na Ana tó lia teve como mó vel pri má rio con si de ra ções de ordem es tra té gi ca e só, se cun da ri a men te, se tor nou ve í cu lo de “co lo niza -ção” e na ci o na li za ção.

Em pri me i ro pla no, o que se de se jou foi o aban do no do litoral,des sa lu xu o sa vi tri ne, útil ape nas para atra ir a aten ção ou ilu dir o exa medo eu ro peu e do ame ri ca no. Em se gun do lu gar, para que os cu i da dos de um Esta do mais re a lis ta, mais mo des to, se di ri gis sem ao ser tão, às grandesflo res tas, aos cam pos ge ra is, aos rios ca u da lo sos, às ri que zas po ten ci a isenor mes e ao ser ta ne jo, ma gro e for te, ho mem es que ci do do in te ri or –foi ne ces sá rio des vi ar o cen tro de gra vi da de do país. Urgia es ta be le cê-lono co ra ção dos di la ta dos ter ri tó ri os do Bra sil. Ca bia con tem plar, aoalcan ce de to das as clas ses e de to das as re giões, o pa no ra ma na ci o nalin te i ro. Os ob je ti vos da cons tru ção da nova ca pi tal fo ram uni da de, efi -ciên cia ad mi nis tra ti va, des cen tra li za ção, apro xi ma ção das fron te i ras con -ti nen ta is, de sen vol vi men to eco nô mi co e so ci al do in te ri or e ex plo ra çãodas vas tas e fér te is áre as do cer ra do de Go iás e do Pan ta nal de Mato Gros so onde ama du re ce o fu tu ro da na ci o na li da de. É com cer to orgulho que meatrevo a re cor dar te rem sido meus ar gu men tos “mu dan cis tas” os mesmosque o Pre si den te Jus ce li no Ku bits chek ex pli ci tou em sua obra Por QueCons truí Bra sí lia. A Apre sen ta ção que co lo quei no iní cio des te vo lu me,de autoria de JK, re ve la a con cor dân cia de ra ci o cí nio e o pa ra le lis moargu men ta ti vo.

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Dir-se-á que a fun ção de uma ca pi tal não é ser pi o ne i ra. Maspor que não? No caso bra si le i ro, em que o Esta do in ter vém ou pre ten de in ter vir em tudo, de i xai-o, pelo me nos, in ter vir num as pec to es sen ci al da vida na ci o nal, de i xai-o pro vo car aqui lo que o povo tem he si ta do em,espon ta ne a men te, em pre en der: pi o ne i ris mo! Com o go ver no por fimins ta la do em Go iás, po de rá a na ção bra si le i ra tor nar-se ver da de i ra men te cons ci en te de sua po si ção no con ti nen te e co me çar a “sen tir” suas fron -te i ras ter res tres com o Pa ra guai, a Bo lí via, o Peru, a Co lôm bia, a Ve ne -zu e la e as Gu i a nas. Ade ma is, es pe ra-se que, com a aten ção das eli tesdes vi a da de seu qua se ex clu si vo in te res se pela Eu ro pa, pos sa ser rom pidoo “es plên di do iso la men to” que, até ago ra no es pí ri to como de fato, temse pa ra do o Bra sil de seus vi zi nhos con ti nen ta is. A eles cos tu ma mos daras cos tas. Andes atrás, Atlân ti co na fren te. Nes se in tu i to de ver da de i raame ri ca ni za ção se deve en ten der a mu dan ça, num con tex to cons tru ti voque não re je i ta a he ran ça oci den tal mas ape nas a fal sa imi ta ção. Elasigni fi ca ape nas a de ci são in te ri or, li vre men te to ma da, de ade são à glo -ba li za ção ao mes mo tem po do que de re pú dio ao ma zom bis mo atá vi co.O que se pre ten deu não é vi rar-nos con tra a Eu ro pa, é tra zer a novacivi li za ção ecu mê ni ca ao ser tão do Bra sil. A meta: sub ju gar a sel va gemre sis tên cia de uma na tu re za exu be ran te, ven cer o pa tri mo ni a lis mo co lo -ni al, le var para o in te ri or e im por ao ser tão, gra ças à téc ni ca mo der na, opro gres so, a edu ca ção, a or dem e a li ber da de. O ma zom bo sa u do sis taque, na fal ta de po der vi ver em Pa ris ou Nova York, quer fa zer do Riouma ima gem ar ti fi ci al de seus so nhos, não é pior do que o fal so na ci o -na lis ta que se ape ga a for mas ar ca i cas, re ves ti das de slo gans da moda,para com ba ter in fluên ci as, até mes mo do ci ne ma, te le vi são, Inter net evoca bu lá rio es tran ge i ro, que só são no ci vas quan do fer men tam na pesadaat mos fe ra das pra i as atlân ti cas.

É per ti nen te a cons ta ta ção que, se gun do os re cen se a men tossu ces si vos le va dos a efe i to pelo IBGE, o cen tro de gra vi da de da po pu la ção doBra sil per ma ne ceu, por dé ca das, es ta ci o ná rio no mes mo lo cal, num pon to entreDiaman ti na e Mon tes Cla ros – um pou co ao nor te de Belo Ho ri zon te. O cen trose tras la da va len ta men te do sul da Ba hia. A par tir de 1970, esse pontocome çou a do brar numa di re ção no ro es te. A trans fe rên cia do go ver nopara o pla nal to cen tral co me çou a ter o efe i to de com ba ter a ten dên ciapara a con cen tra ção ur ba na no li to ral, des vi an do, para o no ro es te

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subpo vo a do, o alu di do cen tro de mo grá fi co (Mapa 2 ). Bra sí lia pode ser de -fi ni da como um ins tru men to ar ti fi ci al do Esta do para atra ir e des vi ar o flu xo mi gra -tó rio, acom pa nha do de todo o ca pi tal hu ma no, que do nor te do país e do es tran ge i ro,se di ri ge para o gran de com ple xo in dus tri al de São Pa u lo e a área em fran ca ex pan -são in dus tri al do triân gu lo Rio-São Pa u lo-Belo Ho ri zon te. O cres ci men to deGo iâ nia e de Bra sí lia, cada uma das qua is já pos sui uma po pu la ção su pe -ri or a três mi lhões, cons ti tui a pro va da sa be do ria do prin ci pal item noPla no de Me tas. Com seus au xi li a res, prin ci pal men te Isra el Pi nhe i ro,Pre si den te da No va cap, e Ber nar do Sa yão, o gran de abri dor de es tra das,JK glo ri o sa men te di ri giu, na Mar cha para o Oes te, o tra ba lho dos “can -dan gos”, os mais le gí ti mos he róis do em pre en di men to. Isso me con duz, aliás, a apre sen tar a su ges tão ao Go ver no do Dis tri to Fe de ral que façauma ho me na gem a es ses ho mens, con ce den do-lhes o nome aos trêsprin ci pa is Ei xos de Bra sí lia: ao Eixo Mo nu men tal o nome de Jus ce li noKu bits chek, o Fun da dor; ao Eixo re si den ci al Sul, o nome de IsraelPinhe i ro, que di ri giu a cons tru ção da ci da de; e, ao Eixo re si den ci al Norte,a Ber nar do Sa yão, que tor nou Bra sí lia o pon to de par ti da para a aber turado ser tão Nor te e No ro es te pela rede ro do viá ria.

∗ ∗ ∗Entre tan to, es ses as pec tos de mo grá fi cos e eco nô mi cos são

ape nas re ves ti men tos fí si cos de uma mu dan ça de ati tu de men tal. O va lorsim bó li co da ca pi tal é jus ta men te ad mi rá vel e trans cen den te por que,num ato ma te ri al sen sí vel, ple na men te vi sí vel, ela ex pri me um acon te ci -men to de pro fun do sig ni fi ca do cul tu ral, in fe liz men te até hoje não su fi ci -en te men te cons ci en ti za do pelo res to da po pu la ção bra si le i ra. É cu ri o soque o pa pel de Bra sí lia, aci ma de li ne a do, te nha sido in tu i ti va men te tãobem com pre en di do por nos so sa u do so ami go Mi ram La tif, em O Ho -mem e os Tró pi cos. Tra du zin do e ex pan din do as idéi as se mi na is do ma i orso ció lo go bra si le i ro, Gil ber to Frey re, acen tua o bri lhan te en sa ís ta ca ri o ca,mo ti va do pelo mes mo ím pe to que a mim igual men te es ti mu lou, comodeve o ho mem tro pi cal fil trar, ana li sar, se le ci o nar, dis cri mi nar mi nu ci o -sa men te, de ma ne i ra a não per tur bar o equi lí brio ins tá vel e de li ca do domeio-am bi en te na co e xis tên cia bi o ló gi ca em cli ma su pe ra que ci do. Paraevi tar as epi de mi as, as se cas, as inun da ções e a ero são que, num ins tan te, po dem tudo des tru ir, deve o ho mem iso lar-se, pro te ger-se, de sem ba ra -

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çar-se do ex ce den te. Deve fa zer de tal modo que o meio, so bre car re ga dode for ça te lú ri ca, não o ab sor va e su fo que. Di ría mos mes mo que devein te ri o ri zar-se, in tro ver ter-se. Eis a jus ti fi ca ção teó ri ca de Bra sí lia nopen sa men to de La tif. So bre o Pla nal to Cen tral, uma vas ta re gião de cer -ra dos e sa va nas de três mi lhões de qui lô me tros qua dra dos que se vai aos pou cos trans for man do, pela agri cul tu ra, num dos ce le i ros do mun do,pro cu ra o ho mem o iso la men to, a tran qüi li da de e o si lên cio. De trás dapro te ção de suas gran des ja ne las, es ta rá o bra si li en se mais ha bi li ta do acon tem plar o todo con ti nen tal de um pon to de vis ta mais con for tá vel,nas me lho res con di ções de am bi en te para a pers pec ti va de con jun to. Láse en con tra o ho ri zon te ne ces sá rio para abs tra ir e ob ser var os di ver sosBra sis de Eu cli des da Cu nha, Jac ques Lam bert e Gil ber to Frey re. Elesde vem ser in te gra dos num qua dro úni co e, aco lhen do da Eu ro pa e daAmé ri ca do Nor te, e oca si o nal men te de ou tros con ti nen tes, o que podeser apro ve i ta do como idéia e como modo de ação, como arte e comotec no lo gia, deve o bra si li en se ao mes mo tem po de i xar de lado, nos ar -qui vos e mu se us, o que não é ime di a ta men te uti li zá vel em sua luta poradap tar-se à mo der na cul tu ra glo bal.

A ca pi tal car te si a na de fi ne um novo ca pí tu lo da his tó ria doBra sil. Esse ca pí tu lo foi mar ca do pelo ta ke-off eco nô mi co da era de Jus ce -lino. Não pos sui o Pla no Pi lo to, aliás, a for ma de um avião? E não de pen de Bra sí lia, so bre tu do, da avi a ção para seus con ta tos com o res to do país? Elaé o pro du to das ne ces si da des pre sen tes da na ção e da in tu i ção de sua gran -de za futura – e eis que, de se nhan do o Pla no Pi lo to, lhe cons ti tui o si nalalegóri co. Em mi nha obra A Uto pia Bra si le i ra, faço uma aná li se psi co ló gicapro funda, de na tu re za jun gui a na, da sim bo lo gia mí ti ca do pás sa ro. O pás saro, como a pom ba do Espí ri to San to, sim bo li za a sal va ção, as sim como for neceum tes te mu nho da es pe ran ça.

Pela pri me i ra vez, nos tem pos mo der nos, o ho mem oci den talen fren ta a flo res ta vir gem com pers pec ti vas de su ces so, fi xan do-se con -ve ni en te men te em ple no co ra ção dos tró pi cos. O Bra sil re pre sen ta opri me i ro caso de es ta be le ci men to nes sa fa i xa do pla ne ta de uma so ci e -da de mul tir ra ci al, mo der na, in dus tri a li za da e de cul tu ra la ti na. “Ca pi talda Espe ran ça” (La Ca pi ta le de l’Espoir), como a pro cla mou Mal ra ux, emdis cur so gran di lo qüen te de 1959, que tive a hon ra de ou vir no pon toapro xi ma do em que se er gue hoje o Te a tro Na ci o nal – des se pon to de

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co man do cen tral flo res ce o gran de pla no es tra té gi co de de sen vol vi men toge o po lí ti co na es ca la enor me do país, e to das as ener gi as da na ção con -cen tram-se na ta re fa de ali cons tru ir uma nova ci vi li za ção. Ci vi tas ubi sil va fuit – eis o sen ti do su pre mo da mu dan ça.

Na sim bo lo gia da nova ca pi tal, que Mal ra ux e ou tros es tu di o sosdo mag no em pre en di men to com pre en de ram e re gis tra ram, po de mosdes co brir a ação de ou tros fa to res, mer gu lha dos na som bra do Incons ci en teCo le ti vo. Sa li en te mos que é pos sí vel con ce ber a his tó ria do Bra sil se gun doa ima gem de uma di a lé ti ca de três mi tos que, como pa râ me tros, pa re cemcon du zir nos sa evo lu ção his tó ri ca e flo res cem no es pa ço ge o po lí ti co,mol dan do o ca rá ter na ci o nal.8 Sur ge, em pri me i ro lu gar, o mito do Pa ra -í so Tro pi cal. Sér gio Bu ar que de Ho lan da apro fun dou as ori gens des sacons tru ção ar que tí pi ca em sua obra Vi são do Pa ra í so, onde pes qui sa asvá ri as ex pres sões his tó ri cas que ad qui riu na Eu ro pa ao fi nal da Ida deMé dia. Des de Co lom bo, os co lo ni za do res que de sem bar ca ram em nos -sas pra i as de bran cu ra ofus can te, la de a das de ele gan tes pal me i ras, con -tem plan do seus ver des ma res bra vi os e seu céu de um azul mu i to puro,de i xa ram-se se du zir pela be le za in com pa rá vel da na tu re za ain da vir gem.Numa at mos fe ra afro di sía ca, ma ra vi lha ram-se com a nu dez dos ín di osque os ex ci tou com a no ção ilu só ria do Bom Sel va gem – ami go, ino cen -te e puro. A ima gi na ção da Re nas cen ça de di ca ra-se à pro cu ra de li be ra dado pa ra í so so bre a ter ra, apon tan do para a uto pia do “Novo Mun do”que os na ve ga do res ibé ri cos iri am des co brir para a Eu ro pa. Com Mon -ta ig ne e de po is Rous se au, o mito tran si tou pe los sé cu los XVII e XVIII,apos san do-se do mo vi men to ro mân ti co. Mas, no pró prio Bra sil, de se nhaa tela de fun do da so ci e da de pa tri ar cal pa tri mo ni a lis ta, edi fi ca da so bre aes cra vi dão afri ca na e a mo no cul tu ra do açú car. Ei-lo, o qua dro edê ni co,que res sur ge à be i ra-mar, em Co pa ca ba na, Ipa ne ma, Gu a ru já ou Sal va -dor, com pon do um so nho de sen su a li da de e dol ce vita em ver são tu rís ti ca mo der na.

Entre tan to, quan do pre ten deu o co lo ni za dor por tu guês de i xar a cos ta atlân ti ca para pe ne trar no in te ri or das ter ras, foi sur pre en di do de re pen te, sur pre sa cru el, com uma re a li da de em que os ín di os não eram

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8 Em meu li vro Em Ber ço Esplên di do, Ensa i os de Psi co lo gia Co le ti va Bra si le i ra, 1ª edi -ção, José Olím pio/INI, 1972; 2ª edi ção, re vis ta e en ri que ci da. Edi to ra Top bo oks,Rio, 1999.

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sel va gens ino cen tes, sem ma lí cia, po rém ca ni ba is se den tos de san guecuja re sis tên cia au men ta va à me di da que avan ça va o eu ro peu so bre seuster re nos de caça. A na tu re za não o aco lhia com bra ços aber tos. Con traele, ao con trá rio, de sen ca de a va, como num qua dro de Hi e rony musBosch, as fe bres, os in se tos, as ser pen tes ve ne no sas, as mon ta nhasabrup tas, os rios tão lar gos quan to bra ços de mar, as chu vas di lu vi a nas,a flo res ta vir gem im pe ne trá vel, to das as ar ma di lhas dos tró pi cos. Cla u de Lé vi-Strauss con si de rou o Mato Gros so o meio na tu ral mais hos til queo ho mem ja ma is en fren tou, algo di ver so do jar dim pa ra di sía co da novela“Pan ta nal”... A an tí te se da vi são edê ni ca foi as sim a ân sia do Infer noVer de. Os efe i tos so ci o e co nô mi cos des ses Tris tes Tró pi cos re du zem-sea uma só pa la vra: sub de sen vol vi men to. A ati tu de do po si ti vis mo ci en tí -fi co e li te rá rio do sé cu lo XIX e prin cí pi os do sé cu lo XX, em re la ção aoambi en te na tu ral da gran de flo res ta úmi da e quen te é pu ra men te ne ga tiva: os tró pi cos são hos tis à raça hu ma na, são ha bi ta dos por “ho mens decor” ig no ran tes, pre gui ço sos, obs ce nos, in go ver ná ve is e in ca pa zes decivi li za ção. Em nos sa li te ra tu ra, a opi nião eu ro péia tra du ziu-se em umaexpres são de pes si mis mo, de der ro tis mo e ci nis mo des tru i dor com relaçãoa nos so fu tu ro e nos sas pos si bi li da des cul tu ra is. “Que país é este?”, amiúde nos per gun ta mos, de sa bu sa dos. So fre mos de uma hi po con dria crô ni ca.

Des pon ta, en tre tan to, um ter ce i ro mito, para so bre pu jar osdois ou tros em uma sín te se cri a do ra: o Eldo ra do! É a ele que nos re fe -rimos, his to ri ca men te, quan do fa la mos da epo péia das Ban de i ras. No séculoXVII, um ca pi tão de pres tí gio ca ris má ti co ar vo ra va o es tan dar te e, sobsuas or dens, al gu mas cen te nas, às ve zes al guns mi lha res de ho mens emu lhe res, bran cos, ma me lu cos, ne gros, de to das as clas ses, co res e es pé -ci es par ti am para o des co nhe ci do, à pro cu ra de ín di os, ouro e pe draspre ci o sas e a rá pi da for tu na. “Dir-se-ia uma raça de gi gan tes”, ob ser vou Saint-Hilaire. Cons ti tui, sem dú vi da, o fe nô me no mais di nâ mi co de nossahis tó ria. No tai que a em pre sa era co le ti va, qua se fe u dal, ao pas so que osfa mo sos rush ame ri ca nos do sé cu lo XIX fo ram ne gó ci os pu ra menteindi vi du a is. Par tin do de São Pa u lo, os Ban de i ran tes atin gi ram os Andese, como se sabe, do bra ram a ex ten são de nos so ter ri tó rio até des cobri remo ouro e os di a man tes de Go iás e das Mi nas Ge ra is.

O mo vi men to de po is ces sou, brus ca men te. Um si lên cio nogran de ser tão... Du ran te 200 anos a vas ti dão foi aban do na da, sal vo al gu mas

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va gas de pi o ne i ros que se su ce de ram para a bor ra cha da Ama zô nia, oca cau do sul da Ba hia e o café de São Pa u lo, pro vo can do no vas cor ren tesmi gra tó ri as. O es pí ri to do ban de i ran te aven tu re i ro, po rém, sem pre seman te ve vivo. O ins tin to nô ma de, o de se jo de par tir, de ex plo rar, de sees ta be le cer e par tir, de novo e sem pre, à pro cu ra da for tu na. Bra sí lia re -pre sen ta a con clu são da epo péia. É a con cep ção ti pi ca men te bra si le i rado de sen vol vi men to im pul si vo, o que cha ma mos de de sen vol vi men tis mo, ain dus tri a li za ção ace le ra da a to que de ca i xa in fla ci o ná ria, cor res -pondendo à “ide o lo gia” da épo ca, pro pos ta pelo ISEB. A in fla ção mo -de ra da da Pre si dên cia JK foi se gui da da cri se que mar cou os anosJan-Jan, de 1961 a 64 (em prin cí pi os de 1964, ela já atin gi ra 12% aomês) e se ace le rou, no va men te, a par tir de 67/68. Com a pro mes sa do“Mi la gre”, já ago ra pró xi mo, a Re vo lu ção in dus tri al nos deve per mi tirven cer a bar re i ra do atra so – pro mes sa que, es pe ra mos, não te nha sidore ti ra da pela de cep ção da “dé ca da per di da” dos anos 80 e as in cer te zasdos anos 90.

A cons tru ção de Bra sí lia cons ti tui as sim um mar co, um pas sode ci si vo de nos sa his tó ria – e ao Pre si den te Ku bits chek deve o Bra sil fi -car eter na men te gra to pelo im pul so que seu en tu si as mo e oti mis mo des -per ta ram. A nova ca pi tal sim bo li za a von ta de de avan çar, de mu dar, decres cer, de des co brir o Eldo ra do. Em que pe sem as agi ta ções po lí ti casque se su ce de ram nos 40 anos pos te ri o res à trans fe rên cia da ca pi tal, aobra do Fun da dor sig ni fi ca, no es pa ço, esse re tor no ao ser tão que estádentro da mais pura tra di ção das Ban de i ras – en quan to re fle te, notempo, o ca rá ter es sen ci al men te “fu tu ris ta” de nos so avan ço co le ti vo. Apers pec ti va fu tu ris ta veio a ser qua li fi ca da, pe los mais afo i tos, de pro je to para o “Bra sil Gran de”, o Bra sil in clu í do no gru po das sete ou oito po -tên ci as di ri gen tes do pla ne ta... e, como pro cla ma va o slo gan da épo ca,“nin guém mais se gu ra este país”!

Jus ce li no en con trou exa ta men te em Isra el Pi nhe i ro o ho memde quem ne ces si ta va para exe cu tar o que ti nha em men te. Isra el era filhode ou tro gran de po lí ti co mi ne i ro, João Pi nhe i ro. Fi lho de um imi gran teita li a no de nome Pig na ta ro, Re pu bli ca no his tó ri co que te ria pro va vel -men te sido Pre si den te da Re pú bli ca, não hou ves se fa le ci do pre ma tu ra -men te com 48 anos de po is de ser Go ver na dor de Mi nas, João Pi nhe i rofora edu ca do nas idéi as dos po si ti vis tas, evo lu ci o nis tas e li be ra is clás sicos

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do século XIX, ho mens como John Stu art Mill, Her bert Spen cer,Saint-Simon e Com te. Foi ele quem, após as su mir o go ver no de Mi nasem 1906, ex pôs pela pri me i ra vez o sig ni fi ca do bá si co do pro gra ma queo fi lho e al guns de seus su ces so res iri am se guir à ris ca, até atin gir, 50anos de po is, o Pla no de Me tas de JK... “O meu pen sa men to ca pi tal,você o sabe, é a or ga ni za ção eco nô mi ca”, de cla rou ele para um ami gona re cém-inaugurada Belo Ho ri zon te. Ele adi ci o na ra à ex pres são “or ga -ni za ção na ci o nal”, que Alber to Tor res cu nha ra, sem gran de su ces so, ocompo nen te em que cla u di ca va a fa mo sa “or dem e pro gres so” po si ti vistacom que os com te a nos do 15 de no vem bro ha vi am en fe a do a ban de i rado país, con tra to das as re gras da he rál di ca.

O his to ri a dor Fran cis co de Assis Bar bo sa re co nhe ceu emJoão Pi nhe i ro o “pi o ne i ro do de sen vol vi men to na ci o nal”, no sen ti dode Idéia Cen tral da ad mi nis tra ção pú bli ca que deve pre si dir ao pro -gres so da eco no mia, uma idéia cu jos pri mór di os va mos en con trar, 150 anos an tes, na vi são do Mar quês de Pom bal. Era a he ran ça do pa tri -mo ni a lis mo ibé ri co e das idéi as ab so lu tis tas que, pos te ri or men te, osdis cí pu los do ja co bi nis mo e do bo na par tis mo fran cês for te men te fi xa -ram no es pí ri to de nos sos “do nos do po der”, como tem sido far ta -men te es tu da do e ana li sa do pe los pro fes so res Ray mun do Fa o ro,Roque Spen cer Ma ci el de Bar ros, Antônio Paim e Ri car do Vé lez Ro -driguez. Her dan do do Pai o prin cí pio bá si co de cri ar uma infra-estruturamate ri al que ja ma is, até en tão, ob ti ve ra cons ci en te pre e mi nên cia namen ta li da de dos go ver nan tes bra si le i ros, Isra el Pi nhe i ro era en ge nhe i -ro e ad mi nis tra dor, con vic to da im por tân cia do fa tor eco nô mi co node sen vol vi men to na ci o nal, ten do sido o cri a dor da Com pa nhia do Vale do Rio Doce e ins pi ra dor da idéia que a Re vo lu ção Indus tri al de via, no Bra sil, prin ci pi ar pela ins ta la ção de uma in dús tria do aço, sus ten ta da na ex por ta ção do mi né rio de fer ro.

Na épo ca, evi den te men te, ain da se ima gi na va o Esta do comoo prin ci pal res pon sá vel e for ça mo to ra do pro ces so de mo der ni za ção.Ao Esta do ca be ria a ar ran ca da para o de sen vol vi men to. A idéia ama du -re ceu no “de sen vol vi men tis mo” como ide o lo gia, tal como ela bo ra dopelo ISEB, o Insti tu to Su pe ri or de Estu dos Bra si le i ros na dé ca da dos50. For ma do de jo vens que se ha vi am edu ca do no na ci o na lis mo in te gra -lis ta dos anos 30, o ISEB e os de sen vol vi men tis tas do “ge tu lis mo tar dio”

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pas sa ram a se ins pi rar, de po is da II Gu er ra Mun di al, no mo de lo so vié tico.Em sua ma i o ria, se tor na ram na ci o na lis tas de es quer da. A ên fa se, dequal quer for ma, era a Re vo lu ção In dus tri al, com a trans fe rên cia da ca pi tal no quadro do de sen vol vi men to na ci o nal.

Numa con fe rên cia pro nun ciada em abril de 1957, no Clu be deSe gu ra do res e Ban que i ros, o recém-empossado Pre si den te da No va capen fa ti zou que a idéia mu dan cis ta não de via ser exa mi na da ape nas peloân gu lo sim plis ta de afas tar a ca pi tal das agi ta ções de um por to ma rí ti mo. “O sen ti do e a pro fun di da de da ini ci a ti va’, di zia ele, ‘bem se ca rac te ri -zam se con si de rar mos que o pro ble ma se agi ta toda vez que fa to res deor dem so ci al e po lí ti ca al te ram as con di ções da vida na cional – na Incon -fi dên cia, na che ga da de D. João VI, na Inde pen dência e em to das asAssem bléi as Cons ti tu in tes... pro ble mas que, nos pe río dos de nor ma li da -de, re gri dem e se em ba ra çam nas eter nas so lu ções pro te la tó ri as”... “Ve ri -fi ca-se tam bém que os te mas dessa jus ti fi ca ção evo lu í ram mar ca da men teno sen ti do da ob je ti vi da de. O que eram ra zões teó ri cas ou sim ples ma ni -fes ta ções do ins tin to pa trió ti co, cons ti tu em, hoje, funda men tos rigo ro sa -men te ló gi cos, uma so lu ção téc ni ca, po lí ti ca e im pe ra tiva do mo men to. Osen ti do eco nô mi co as su miu o pri me i ro pla no das co gi tações e o de sen vol -vi men to da téc ni ca mo der na tor nou pos sí vel a con cre ti za ção do so nhodos Incon fi den tes. Não sub sis tem mais os obs tá cu los que re tar daram,com pli ca ram ou mes mo im pe di am a in te ri o ri za ção da capital. Os for mi dá -ve is re cur sos da en ge nha ria, o au to mó vel, o rá dio, o avião e todos os nu -me ro sos mila gres téc ni cos da nos sa épo ca trou xe ram o vago so nho damu dan ça para a área das re a li za ções efe ti vas”.

Na pers pec ti va de Isra el Pi nhe i ro, a di co to mia li to ral-in te ri oré o que ca bia eli mi nar. O de sen vol vi men to eco nô mi co do in te ri or, nãoape nas atra vés da in dus tri a li za ção, mas da pró pria agri cul tu ra, era o que,sob ins pi ra ção pa ter na, o po lí ti co mi ne i ro ima gi na va. Qu a ren ta anos de -po is, evi den te men te, po de mos com pro var que esse pro gres so da áreaser ta ne ja se re a li zou, em par te, gra ças à cons tru ção da nova ca pi tal, obra in te gra da, como sem pre é ne ces sá rio sa li en tar, ao pla no ro do viá rio dasMe tas de 1956/61 e à ins ta la ção de uma in dús tria au to mo bi lís ti ca,sus ten ta da na in dús tria do aço, hoje mais do que nun ca as so ci a da aosdois itens aci ma.

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Evi den te men te, a di co to mia en tre Nor te e Sul, ou seja, en treo Bra sil Arca i co e o Bra sil Mo der no de con for mi da de com a pers pec ti va do bri lhan te en sa io “Les Deux Bré sils”, que ilus trou o nome do so ció lo go fran cês Jac ques Lam bert, lon ge está de ser su pe ra da. Na fal ca truaobsessi va que foi in tro je ta da na men te da in tel li gent sia de es quer da,perde-se de vis ta que o dis tan ci a men to en tre ri cos e po bres é mu i tomais um pro ble ma de ge o gra fia hu ma na do que de aná li se eco nô mi camar xis ta. Se o Dis tri to Fe de ral re fle te ain da hoje essa di co to mia no con -tras te en tre o ní vel de vida das ci da des-satélite em face dos al tos ín di cesde renda da po pu la ção do Pla no Pi lo to, dos ba ir ros do Lago Sul e Norte,e do Park way, a raiz do mal con ti nua de ven do ser pro cu ra da nos con trastescul tu ra is des sas duas áre as ge o grá fi cas do país. Uma pi a da que cir cu laem Bra sí lia pa ra fra se ia e en ri que ce o afo ris mo clás si co: “Em Romacomo os ro ma nos”, com o novo “em Bra sí lia como os nor des ti nos”... A gran de mas sa de nor tis tas e nor des ti nos ha bi ta, não as qua dras no bresda cidade, mas o en tor no. Nas pri me i ras, são só os bu ro cra tas e po lí ticosque se locuple tam com os al tos sa lá ri os da No men cla tu ra pa tri mo ni a lista.Em que pe sem as es pe ran ças de Isra el Pi nhe i ro, a for ça de in te gra çãoque Bra sí lia re pre sen ta ain da não su pe rou o tipo de di co to mia cul tu ralque atra sa nos so país.

∗ ∗ ∗Bra sí lia foi uma das pri me i ras gran des ci da des pla ne ja das do

Bra sil. Não que Belo Ho ri zon te, Go iâ nia ou Lon dri na não a hou ves sempre ce di do mas, como ca pi tal, Bra sí lia pro me tia a nos so povo de eter nosim pro vi sa do res e eter nos pro cras ti na do res uma es pé cie de con ver sãora di cal de men ta li da de. Era o sím bo lo do des per tar de uma ra ci o na li da deprag má ti ca em nos sas for mas co le ti vas de agir, sem pre pre si di das maispela emo ção do que pela ra zão. Era o pre lú dio da po lí ti ca de Pla ne ja -men to, anun ci a da por um ur ba nis ta e um ar qui te to de ta len to e, em se -gui da, pos ta em prá ti ca por eco no mis tas, em pre sá ri os e mi li ta res. Pa ra -do xal men te, a in tu i ção im pe tu o sa de um Che fe de Esta do que mais ti -nha de Ban de i ran te aven tu re i ro, ob ce ca do com suas me tas fan tás ti cas,do que de es ta dis ta pru den te e ca u te lo so, dava nas ci men to a um pro je tode pro pó si tos al ta men te po si ti vos, mar can do, como se fora, o novo es -ti lo do de sen vol vi men to ace le ra do que en tão se ini ci a va para a na ção.

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A ci da de, cuja cons tru ção se ori en ta ria por um Pla no Pi lo to de pro por ções co los sa is, se ria a ca be ça de um povo ini bi do pela im pre vi dên cia, o re la -xa men to, a con fu são, a in ca pa ci da de de es for ço or ga ni za do e per sis ten te,com re lu tân cia em fi xar ob je ti vos cla ra men te de fi ni dos. Bra sí lia é a re -vo lu ção car te si a na, nos sa nova Ida de da Ra zão9 – o que é tan to maiscu ri o so quan to nos en con tra mos, no oci den te, no meio de uma épo caque se com praz na exal ta ção do ir ra ci o nal. Não é em vão que te nhaDes car tes sido con si de ra do não so men te o grão-mes tre da fi lo so fia daRa zão, mas tam bém o fun da dor do ur ba nis mo mo der no. Foi no Dis -cur so so bre o Mé to do, como já acen tu a mos, que Des car tes tra du ziu as idéi asar qui te tô ni cas do Re nas ci men to e do Bar ro co em só li dos prin cí pi os depen sa men to teó ri co e abs tra to. “A von ta de de al guns ho mens usan do suara zão” – eis o pos tu la do do pla no ur ba nís ti co mo der no. Foi tam bém oprin cí pio que, no meio de mu i ta con fu são, pre si diu à trans fe rên cia e à cons -tru ção da nova ca pi tal.

O ur ba nis mo sem dú vi da exis tiu na an ti gui da de he le nís ti ca eromana, bem como no ori en te chi nês e is lâ mi co. Men ci o na mos Hi pó damo de Mi le to, con tem po râ neo de Aris tó te les, a pro pó si to da cons tru ção deAle xan dria. Na Re nas cen ça ita li a na, “ci da des ide a is” fo ram con ce bi daste o ri camen te, em for ma es te lar ou ra di o con cên tri ca. Mig u e lân ge lo criouuma das pri me i ras e mais be las com po si ções ur ba nís ti cas na pra ça queco roa o Cam pi do glio, em Roma. Pal ma Nu o va, não lon ge de Ve ne za, éum exem plo con cre to. Uma sé rie de “Ci da des Ide a is”, em for ma deestre la, foi de se nha da por al guns dos gran des ar tis tas ita li a nos da épo ca.Re cor dando o tema de que tra ta mos no Ca pí tu lo VIII, a idéia da pers -pec ti va foi in tro du zi da nas ar tes plás ti cas, pro pi ci an do aos ar qui te tos aaber tu ra de ave ni das em ei xos mo nu men ta is, com fundos te a tra is. O ur ba -nis mo bar ro co evo lu iu a par tir da obra re nas cen tis ta.

O mé ri to de Bra sí lia con sis te as sim em ha ver sido pla ne ja da,pro gra ma da e cons tru í da se gun do uma or ga ni za ção de tra ba lho, um tra ba -lho de equi pe, uma téc ni ca ope ra ci o nal car te si a na – re a li za ção tan to maisno tá vel quan to nos sa tra di ção ur ba nís ti ca sem pre fora pa u pér ri ma.Ao con trá rio do ocor ri do na Amé ri ca Espa nho la, os por tu gue ses não

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9 Foi o tema de ou tro en sa io, O Bra sil na ida de da Ra zão, em que pro cu rei ana li sar,numa pers pec ti va oti mis ta, o que es ta va ocor ren do no pe río do do “Mi la gre” queen tu si as ma va os mi li ta res.

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in tro du zi ram no Bra sil aque les rí gi dos prin cí pi os de ci da des qua dri -cu la das com sua Pla za Ma yor, la de a da pela Ca te dral e o Pa lá cio doGo ver na dor, que de pa ra mos em Bu e nos Ai res, Mé xi co, Lima e in con -tá ve is ou tras me tró po les da Amé ri ca La ti na. As que aqui de sen vol ve mos fo ram es pon tâ ne as, cres ce ram na tu ral men te. Haja vis ta o que ocor re em Belo Ho ri zon te: pla ne ja da em 1897 por Aa rão Reis, com seu es que maclás si co qua dri cu lar de ruas, cor ta das di a go nal men te por ave ni das de es ti lobar ro co, é na ca pi tal mi ne i ra que se no tam os mais cla mo ro sos er ros deim pre vi dên cia ur ba nís ti ca. É ela hoje, so bre tu do em seus ar re do res, um caos que, de bela e apra zí vel, a tor nou uma das mais de sor de na das e po lu í das do Bra sil. Tal vez em ne nhum ou tro as pec to de nos sa vi vên cia co le ti va se re ve la tão no tá vel nos so gê nio (ou ví cio...) de im pro vi sa ção, quan to na ma -ne i ra le vi a na como de i xa mos se agi gan ta rem as me tró po les – o caso maissa li en te sen do sem dú vi da o de São Pa u lo. A ca rac te rís ti ca é tan to maispe sa da de con se qüên ci as quan to so fre mos, pre ci sa men te, um dos maises pan to sos fe nô me nos de ur ba ni za ção que se re gis trou no pla ne ta.

Bra sí lia, ao con trá rio, é um ma ni fes to, uma de cla ra ção deprin cí pi os, um pa ra dig ma. Bra sí lia abriu o ca mi nho. De mons trou queo pla ne ja men to pode ser efe ti vo e com pen sa tó rio quan do ra ci o nal,res tri to, mo de ra do e fle xí vel – quan do não in ter fe re, em suma, com aini ci a ti va pri va da e a or dem es pon tâ nea do mer ca do li vre, com res pe i to às leis. Des de Bra sí lia, se im pôs às eli tes bra si le i ras a no ção de que sepode pro je tar, pla ni fi car, sub me ter a um mo de lo de con jun to a ati vi da -de co le ti va or ga ni za da, des de que essa ati vi da de seja ori en ta da car te si a -na e ra ci o nal men te para um fim pre ci so e cla ro. É in te res san te no tarque qua se to dos os com pe ti do res no con cur so de 1956, para o Pla noPi lo to de Bra sí lia, en fa ti za ram a na tu re za ra ci o nal e ge o mé tri ca de seus pro je tos. Mu i tos de nun ci a ram qual quer ten dên cia a so lu ções “ro mân ti -cas” ou “aca dê mi cas”, em bo ra não fi cas se mu i to cla ro o que en ten di -am pelo qua li fi ca ti vo “ro mân ti co”.

Em to dos os pla nos, in clu si ve no pro je to vi to ri o so de Lú cioCos ta, no tou-se uma to tal in di fe ren ça para com o prin ci pal ele men tona tu ral de em be le za men to do sí tio: o lago. O que se am bi ci o nou foi umde se nho abs tra to, sem qual quer cri té rio eco ló gi co cons ci en te. Lú cioCos ta, quan do mu i to, re fe re-se ao con tor no do sí tio que de ter mi nou oen cur va men to do Eixo Re si den ci al. As mar gens do lago fo ram aban do na das

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e só pos te ri or men te pas sa ram a ser ocu pa das pe los clu bes e o cres ci -men to pos te ri or de mu i tas re si dên ci as. Tem-se a im pres são de que, pelome nos os ar qui te tos ori gi ná ri os do Rio, opri mi dos pelo im pac to que ana tu re za exu be ran te da Gu a na ba ra im põe à Ci da de Ma ra vi lho sa, re sol -ve ram des de nhar qual quer con si de ra ção de na tu re za pa no râ mi ca ouam bi en tal. O de se nho ge o mé tri co re fle te o ím pe to de do mi nar ar bi tra ri -a men te o meio na tu ral com uma so lu ção ce re bri na. A mes ma in di fe ren -ça le vou os cons tru to res, pos te ri or men te, a edi fi ca rem as ca sas como se, em Bra sí lia, ja ma is cho ves se tor ren ci al men te, nem ja ma is fos se o sol es -cor chan te, nem a se cu ra ter rí vel em ju lho e agos to, nem se re gis tras semtem pes ta des com ven ta nia no ve rão. O cli ma é so be ra na men te ig no ra do, para de ses pe ro dos mo ra do res. O fra cas so da ar qui te tu ra dita “mo der -na”, de Bra sí lia, re sul ta em gran de par te des sa in di fe ren ça.

Bra sí lia é a glo ri fi ca ção da má qui na, é o tri un fo do au to mó vel.Lú cio Cos ta de se nhou-a an tes mes mo da ins ta la ção da gran de in dús triaautomobi lís ti ca de São Pa u lo e Mi nas, mas tal vez hou ves se tido a pre mo -nição do fe nô me no que, fas ci nan do a pre sen te ge ra ção, será o hor ror dapró xi ma. “Num país re la ti va men te pou co in dus tri a li za do”, es cre via Nor maEven son com cer ta iro nia,10 “ela sim bo li za vi su al men te um grau de me ca -nização que o Bra sil ain da não al can çou, mas pro cu ra como meta na cional”.Pro fes so ra de His tó ria da Arqui te tu ra na Uni ver si da de da Ca li fór nia,Mrs. Even son acres cen ta: “a fa cha da da tec no lo gia mo der na con ser vaum fas cí nio que já per deu alhu res”. Con se qüen te men te, em seu con textomodu lar e mo nó to no, Bra sí lia já te ria nas ci do ob so le ta. Numa pers pectivapessi mis ta, ela se ria um exem plo do que o sem pre mal-hu mo ra do Le wisMumford cha mou “as ci da des de on tem no ama nhã”... O pró prio Lú cio Cos ta, em en tre vis ta de 28.2.1987, re ve la uma es pé cie de de si lu são como que ocor reu com sua gran de obra. “Bra sí lia, in cha da, atro pe la a ima gi -na ção de Lúcio Cos ta”, eis o tí tu lo da en tre vis ta. Trin ta anos de po is, eleacentua que 2,5 mi lhões de ha bi tan tes “é o li mi te de fi ni ti vo” – como sefos se pos sí vel li mi tar o cres ci men to es pon tâ neo de uma ci da de que nãoé como um di nos sa u ro, uma ba le ia ou um ele fan te um ser vivo cujocres ci men to é de ter mi na do por cer tas in jun ções mis te ri o sas já in se ri das, desde o nas ci men to, em seu DNA. E ad mi te que o nú me ro de au to móveis

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10 Em sua obra Two Bra zi li an Ca pi tals, Yale Univ. Press, 1973.

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(isto há quin ze anos, quan do era pou co mais da me ta de do que é hoje)“su pe rou mi nhas ex pec ta ti vas”.

Esse pro ble ma do cres ci men to su pe ri or ao pro je to ori gi nal foium dos que aze dou o de ba te en tre os con cor rentes do con cur so de 1957.Pon do de par te as ri va li da des na tu ra is, a in ve ja e os res senti men tos, per -ma ne ce o fato que Lú cio Cos ta, li mi tan do seu dese nho es tri ta men te àim po si ção ar bi trá ria de uma ci da de de meio milhão, en trou em con fli to com os de ma is ur ba nis tas que pro pu nham con dições de pro gres si vocres ci men to da nova ca pi tal. A ques tão do tráfe go au to mo bi lís ti co in -di vi du al era o mais gra ve. Um dos ar qui te tos pre mi a dos, Ma u rí cio Ro -ber to, que con cor reu jun to com seus ir mãos na fir ma M.M.Ro ber to ere ce beu um dos pri me i ros prê mi os no Con cur so, ob ser vou que “nin -guém po de ria con ce ber o grau de com pli ca ções que se ria ge ra do pelotrans por te in di vi du al”. O ar qui te to ca ri o ca acres cen tou que, “no as pec to da po pu la ção, já era evi den te em 1957 que o Pro je to (ofi ci al) não cor -res pon dia à meta”. Lú cio con cor reu com esse jul ga men to mas, ao vi si tar Bra sí lia em 1984, re co nhe ceu, sem dú vi da emo ci o na do, que “a re a li da de é ma i or que o so nho”...

De cer to modo, foi Bra sí lia mais o re sul ta do de um pla ne ja -men to ar qui te tô ni co ime di a to, do que de um pla ne ja men to ur ba nís ti co a lon go pra zo. Na no ção de ur ba nis mo es tão in clu í dos uma sé rie de con -ce i tos eco nô mi cos, so ci o ló gi cos e eco ló gi cos que um úni co in di ví duo,por mais ge ni al que seja, não pode abar car. A fal ta de apro fun da men tones ses cam pos do ur ba nis mo foi res sal ta da por al guns crí ti cos, es pe ci al -men te por Gil ber to Frey re em Bra sil, Bra sis, Bra sí lia. Mas é pre ci so sa li -en tar que a es co lha do pro je to de Lú cio Cos ta, em de tri men to dosou tros con cor ren tes al guns dos qua is se ha vi am subs tan ci al men te es ten -di do so bre mu i tos as pec tos prá ti cos do Pla no, re fle te o sim ples de se jopo lí ti co, re pi to po lí ti co, de apres sar a cons tru ção. Foi Lú cio Cos ta o úni co que pla ne jou uma ci vi tas, e não sim ples men te uma urbs. Foi tam bém oúni co que pla ne jou uma ci da de que pu des se ser cons tru í da de uma vezsó, como uma uni da de in te gra da. Não ha via tem po para os pe sa dos elon gos es tu dos pro pos tos por al guns ou tros com pe ti do res, que vi e ramar ma dos de de se nhos com ple xos, am pa ra dos por grá fi cos, mo de los ere la tó ri os ane xos. A cri a ção de Lú cio Cos ta foi mu i to mais o re sul ta doda in tu i ção ar tís ti ca do que da len ta ra ci o na li za ção ci en tí fi ca, o que tal vez

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con tra rie meu ar gu men to ini ci al, mas con fir ma a idéia de um re la ci o na -men to di re to en tre o pla no ar qui te tô ni co e o Pla ne ja men to Po lí ti co. Elere co nhe ce, cor re ta men te, que mu i tas das fa lhas re sul tam da “fa ta li da dede se cons tru ir uma ci da de em ape nas três anos”. Sen do o ar qui te to oins tru men to do Po der Exe cu ti vo, como pla ne ja dor es tra té gi co, foi Lú cioCos ta, li te ral men te, um exe cu tor fiel da vi são fu tu ris ta de JK. Vale lem brarque Des car tes tam bém pro pu nha a tese se gun do a qual, “con ce bi da porho mens do ta dos de ra zão”, de via a nova ci da de ser de se nha da mo nar qui -ca men te. Foi o caso de S. Pe ters bur go, Ver sa il les, Vi e na, Karl sru he e ou trasca pi ta is bar ro cas, até mes mo de Was hing ton – sal vo que, na ca pi tal ame -ri ca na, o foco do Pla no não é a cama do mo nar ca, mas a cú pu la doCon gres so, re pre sen ta ti vo do povo... ou, pelo me nos, as sim se es pe raque seja.

Oscar Ni e me yer é mar xis ta e diz-se li be ral. É um pa ra do xo.Mas, com o apo io ir res tri to do pre si den te da Re pú bli ca e de seus su ces so res, ele exer ceu uma au to ri da de qua se des pó ti ca, como ele pró prio con fes saem seu tes te mu nho no “Inqué ri to Na ci o nal de Arqui te tu ra” (Belo Ho ri zon te,1963): “Não se deve ace i tar que uma nova ci da de pla ne ja da apre sen te os mes mos er ros, a mes ma con fu são ur ba nís ti ca e ar qui te tô ni ca das ci da desexis ten tes, que se ex pan dem sem con tro le, onde cada edi fí cio é tra ta do como edi fí cio iso la do, sem re la ção com os que o cer cam, ou com a har mo nia dogru po, que um ar qui te to cons ci en te sa be ria como pre ser var”. O con ce i to éfran ca men te ab so lu tis ta... De po is de afir mar que “não está de acor docom a cen su ra per ma nen te de qual quer ci da de”, Oscar ad mi te que, emBra sí lia, não hou ve re mé dio se não es ta be le cê-la. Jus ti fi ca-se com oexem plo do pro je to de uma igre ja que te ria a for ma de um pe i xe gi gan -tes co, es pé cie de Le vi a tã de con cre to ar ma do que en go li ria os fiéiscomo Jo nas no es tô ma go da ba le ia. Foi cen su ra do. Um ho tel pre ten diare pe tir as co lu nas do Pa lá cio da Alvo ra da – cen su ra do! E, por fa lar nis so,fui en con trar uma cons tru ção des se tipo imi ta ti vo em Abid jan, na Côted´Ivo i re. O pro ble ma é que o ar qui te to-cen sor de se ja es ta be le cer ti ra ni -ca men te seu pró prio de se nho. O re sul ta do pode ser es plên di do comona rue de Ri vo li ou Pla ce des Vos ges, em Pa ris, ou em Re gent´s stre et,em Lon dres. Ha uss mann im pu nha um nú me ro res tri to de mo de los defa cha da que to dos os ar qui te tos de Pa ris, du ran te 50 anos, fo ram obri ga -dos a se guir. A har mo nia de Pa ris mu i to deve a esse mé to do, que cor res -

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pon dia à di ta du ra de Na po leão III. Em Bra sí lia, du ran te al guns anos, aúni ca for ma ace i tá vel dos gran des edi fí ci os pú bli cos e apar ta men tos dasSu per qua dras foi a ca i xa de fós fo ro, em pé, do lado ou de i ta da. Em Ta -gua tin ga, Ce i lân dia e ou tras “ci da des-sa té li te”, a cons tru ção se de sen vol -veu sem qual quer di re ti va evi den te, como em qual quer ou tra ci da de bra -si le i ra. Quem não gos ta da mo no to nia das Su per qua dras bra si li en sespode sem pre se mu dar para Ta gua tin ga... Gil ber to Frey re de nun ci ou,cre io que um pou co in jus ta men te, a cas ta de sumo-sa cer do tes, oni po -ten tes e onis ci en tes. Como sói acon te cer em re gi mes au to ri tá ri os, a li -ber da de dos ou tros é cer ce a da por aque les que se ar vo ram em in tér pre tesex clu si vos da Vo lon té Gé né ra le de Rous se au. Oscar e seus dis cí pu los es ban ja -ram em Bra sí lia sua exu be ran te ima gi na ção cri a do ra – de se nhan do aliás,com li ber da de to tal em suas obras pú bli cas prin ci pa is, mo de los plás ti cos que es ca pa vam do pa ra dig ma “ca i xa de fós fo ro”. Não se sub me te ram a qual quer tipo de res tri ção, quer de or dem fi nan ce i ra, quer de or demfun ci o nal, quer mes mo de or dem am bi en tal.

O pro ble ma da cen su ra ar qui te tô ni ca é como de qual quercen su ra: de pen de da dose de bom sen so. Assim como é mis ter evi tar oscri mes, o ri dí cu lo e o mau gos to (e não são pou cos, na área re si den ci aldas Pe nín su las), não se de ve ria tam pou co cer ce ar a au to no mia do ar qui -te to, a pon to de cair na mo no to nia. O grau de li ber da de é re la ti vo, den trode um de ter mi na do “es ti lo”. De pen de, em úl ti ma aná li se, do bom sen so do ad mi nis tra dor de bom gos to. Não se con ce be em Bra sí lia um edi fí cio de es ti lo ne o gó ti co ou ne o bi zan ti no. Nos ve lhos pa í ses eu ro pe us, naSu í ça por exem plo, onde re si di mu i tos anos, as re si dên ci as re pro du zemmo no to na men te o tipo-ide al do cha lé su í ço. Só ago ra a ar qui te tu ra, dita“mo der na”, co me ça a fa zer in cur sões que rom pem com o tra di ci o nal.Em Nova York, a va ri e da de nas gran des cons tru ções prin ci pi ou a seim por na pri me i ra me ta de do sé cu lo pas sa do. Ten deu igual men te para ore tân gu lo en vi dra ça do, re pre sen ta do na obra em ble má ti ca mag ní fi ca deMies van der Rohe, que é o Se a gram Bu il ding cor de bron ze, da ParkAve nue, cons tru í do em 1954. Mies re su mia seu es ti lo de sim pli ci da defun ci o nal clás si ca no afo ris mo “quan to me nos, mais!”. No ar ra nha-céuda A.T.T. da Ma di son Ave nue, o ar qui te to Phi lip John son atre veu-se ade sa fi ar esse prin cí pio, re tor nan do a cer tos mo ti vos de co ra ti vos clás si cosque ina u gu ra ram o que veio a ser cha ma do “pós-mo der no”. O ter mo

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pós-mo der nis mo só tem sen ti do, aliás, quan do em pre ga do es tri ta men te na área da ar qui te tu ra. Como de sig na “o que é de hoje”, o que é “mo der -no” é sem pre, exa ta men te, tudo aqui lo que é atu al, pre sen te. Foi numaobra de Ro bert Ven tu ri ni, Com ple xity and Con tra dic ti on in Archi tec tu re,(1966), que esse ar qui te to su ge riu a “pre sen ça do pas sa do” na artemo der na de cons tru ção. Esse re tor no ima gi na ti vo ain da é, in fe liz -men te, pou co sig ni fi ca ti vo em nos sa No va cap. Um meio ter mo en trea dis ci pli na car te si a na de Bra sí lia e o caos da Pa u li céia des va i ra da se riao ide al.

Bra sí lia, de qual quer for ma, é mais um sím bo lo do que umPla no. A trans fe rên cia da adminis tra ção de ve ria in tro du zir uma nova ida de de efi ciên cia e pro gresso. “Para os po bres e os anal fa be tos, esta edi fi ca -ção cí vi ca é um sím bo lo que po dem ver e com pre en der”, ob ser va vaLord Wil li am Hol ford, o gran de ur ba nis ta e ar qui te to bri tâ ni co, nas ci dona Áfri ca do Sul, que pre si diu e teve um pa pel de ci si vo no júri do Con -cur so de 1956, para o Pla no Pilo to. Tam bém acen tu ou Nor ma Even -son que “Bra sí lia é um triunfo hu ma no, uma fon te de or gu lho le gí ti mopara seus cri a do res e um es tí mu lo para o es for ço con ti nu a do”. Re co -nhe ça mos, en tre tan to, que, sen do o pri me i ro gran de em pre en di men tona ci o nal em que a nova dis po si ção se ma ni fes ta va, a ci da de não pôdeevi tar cer tos er ros, fal sos caminhos e exa ge ros. Três são os ti pos prin ci pa -is de des vio que descubro em nos sa ca pi tal. O pri me i ro diz res pe i to ànão-execução do pro gra ma do, ou seja, a tra i ção ao Pla no Pi lo to. O se -gun do, o na tu ral pre do mí nio do es té ti co, ou o que cha mo o ‘eró ti co’ so -bre o ‘ló gi co’ fun ci o nal, com igual vi o la ção do pró prio prin cí pio do Pla -ne ja men to ur ba no. E o ter ce i ro, os abu sos re sul tan tes de um es prit de géo -mé trie con ta mi na do pelo seu pró prio or gu lho so des man do – aqui lo queFri e drich Ha yek de nun ci ou como a “pre sun ção fa tal” (Fa tal Con ce it), oCons tru ti vis mo.

Pe ne tra mos na Ida de da Ra zão. So mos con de na dos a en trarna Mo der ni da de: é esta uma tese que me apraz de fen der.11 O den te desiso não nas ce, po rém, da no i te para o dia. Em país al gum a ra ci o na liza çãope netrou como sú bi ta cen te lha, sem re cu os, sem con tra di ções, he si tações,abu sos e recaí das no ro man tis mo e no caos emo ti vo. Se ria re al men teextra or di ná rio se, em ape nas vin te, trin ta ou qua ren ta anos, ti vés se mos

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11 Vide meu li vro O Bra sil na Ida de da Ra zão – Fo ren se/INL, Rio, 1980.

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dado um tão pro fun do gol pe de bar ra, com uma re vi ra vol ta de 180º,sem qua is quer sur pre sas. Re sig ne mo-nos, por con se guin te, aos as pec tosparti cu la res do pro ces so de ra ci o na li za ção que com por tam cer tos percal çose oca si o na is des car ri la men tos... De to dos os exem plos de apli ca ção decri té ri os ra ci o na is ao pla ne ja men to, ne nhum ofe re ce tan to en si na men toquanto o de Bra sí lia. A Nova Ca pi tal é uma ci da de que se quer car tesiana.Eis um lu gar-comum que os crí ti cos sa li en ta ram no perío do he rói co de sua con cep ção. Mas de po is, quan tos er ros e des vi os! A Nova Ca pi talmu i to tem tam bém de uma ci da de kaf ki a na.

As crí ti cas fo ram em cer tos ca sos fru to da in ve ja e in com pre -en são. Lem bro-me, por exem plo, de ha ver vi si ta do em Zu ri que, com ores pe i to que me re cia, Si eg fri ed Gi e di on, o au tor de Spa ce, Time and Archi -te tu re, uma das obras mais im por tan tes so bre ur ba nis mo pu bli ca das emme a dos do sé cu lo XX. O li vro me ha via imen sa men te aju da do no es tu doda ar qui te tu ra e ur ba nis mo que efe tu ei na pre pa ra ção des ta obra. Aco -lhen do-me com gen ti le za, tal vez tam bém por que eu era Herr Ge ne -ral-Kon sul em sua ci da de, Gi e di on me de cla rou que, com seus dis cí pu los, fi ze ra um es tu do apro fun da do do Pla no Pi lo to de Lú cio Cos ta e ha vi am to dos che ga do à con clu são, mais do que evi den te, que o trá fe go li mi ta doa dois ei xos, por mais lar gos que fos sem, ja ma is da ria va zão aos ve í cu losau to mó ve is e ôni bus numa ci da de de meio mi lhão de ha bi tan tes (sem co men tá ri os!).

Não se pode tam pou co le var a sé rio as opi niões, entre o sar -cás ti co e o per ver so, do ita li a no Bru no Zevi. Fi gu ra de proa no Con -gres so Extra or di ná rio da Asso ci a ção Inter na ci o nal de Crí ti cos de Artede 1959 (Rio, Bra sí lia e São Pa u lo), ele se en tu si as mou em São Paulocom seu ur ba nis mo ab so lu ta men te anár qui co, em con tra tes com o quevira na No va cap – uma opi nião cer ta men te jus ti fi cá vel no jul ga men to de um ita li a no, sem fa lar no fato que é a “Pa u li céia des va irada”, em gran depar te, obra de ita li a nos. Mais cer ta era a po si ção de ou tro suíço, MaxBill. Este era, na tu ral men te, me nos sen sí vel aos as pec tos esté ti cos dasi tu a ção e mu i to mais às exi gên ci as prá ti cas. Bill con si de rou im pra ti cá vel o uso de pa re des de vi dro num país tro pi cal de for tís si ma lu mi no si da de, quan do não se usa ar-condicionado. Ti nha toda ra zão. Pou co apro pri a do é o bri se-soleil quan do ape nas cos mé ti co e ele exem pli fi ca va com um edi -fí cio que os ten ta va bri se-soleil dos qua tro la dos do qua dran te! Os blo cos

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uni form iza dos dos Mi nis té ri os no Eixo Mo nu men tal se ri am um aten ta -do ao bom sen so. Áspe ro, qua dra do e pu ri ta no, Max Bill se re vol ta vacon tra os as pec tos bar ro cos e ima gi na ti vos de nossa ar qui te tu ra na épo ca.A crí ti ca era pro ce den te na me di da em que, con tra ri an do seus pró pri osprin cí pi os pre con ce i tu o sos, nos sos ar qui te tos cons tru í ram edi fí ci os an -ti-funcionais por sim ples es pí ri to car na va les co. To ca re mos nes se temamais adi an te.

Nos anos de cor ri dos des de sua ina u gu ra ção, a ci da de cres ceuace le ra da men te (o mais rá pi do cres ci men to ur ba no no Bra sil!), obe de -cen do ao mo de lo de seus ide a li za do res, ou lhes tra in do a in ten ção;resol vendo pro ble mas que são in so lú ve is em ou tras me tró po les, oucriando no vos, im pre vi sí ve is; de sen vol ven do-se de mol de a jus ti fi car aad mi ra ção pe re ne de quan to por ela se en tu si as ma ram, mas abrin doigual men te o flan co a crí ti cas se ve ras, a pro tes tos e a ir ri ta ção com certosas pec tos não de todo apra zí ve is, e que se ri am fa cil men te evi tá ve is. Sin -to-me à von ta de para fa lar do as sun to. Fui, no mi nis té rio das Re la çõesExte riores, um dos ra ros “mu dan cis tas”, ha ven do mes mo es cri to estelivro em 1954/55 – an tes mes mo da mo men to sa de ci são to ma da peloPre si dente Jus ce li no Ku bits chek. Hon ra do de po is com a di re ção doDepar ta men to Cul tu ral do Ita ma raty (1956/59), con tri buí, cre io demodo pon de rá vel, com fo lhe tos, con fe rên ci as, fil mes, en tre vis tas, ex po -si ções, in clu si ve na sede da Unes co em Pa ris, e con vi tes para vi si ta rem aobra que se le van ta va no Pla nal to Cen tral a téc ni cos ur ba nis tas e crí ti cos de arte para sa tis fa zer a cu ri o si da de que o mag no em pre en di men toexcitava en tão, no ex te ri or – onde a cons tru ção de Bra sí lia tan to pres tígiogran je a ra para nos so país. De to das es sas vi si tas a mais no tá vel foi a deAndré Mal ra ux12 que pro nun ci ou seu cé le bre dis cur so exal tan do “la capi ta le de l’es po ir”... Hoje, não raro, ao me ir ri tar com os per cal ços de Bra sí lia,faço um es for ço para me re cor dar da que le mo men to so le ne em que,pela pri me i ra vez, em me a dos de 1957, pus os pés nes te bas tião do Pla -

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12 A idéia de con vi dá-lo a vi si tar Bra sí lia foi de mi nha ini ci a ti va em 1958. Mal ra uxera en tão che fe de uma se cre ta ria de cul tu ra e seu ní vel mi nis te ri al no novo go -ver no de De Ga ul le – que aca ba va de as su mir após o gol pe mi li tar na Argé lia – apro xi ma da men te igual ao meu pró prio. Qu an do vi si tou a nova ca pi tal em cons -tru ção, era mi nis tro de Esta do e foi re ce bi do com as hon ras que com por ta vam suahi e rar quia e pres tí gio li te rá rio.

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nal to. A emo ção foi for te. Sen ti von ta de de me ajo e lhar e be i jar a ter rasa gra da, como faz o Papa quan do che ga a um novo país.

Na Idéia Do mi nan te que pre si diu aos atos fun da men tal men te prá ti cos, ma te ri a is, da mu dan ça das ca pi ta is, vi mos que a in ten ção po lí ti caen con trou na arte um ve í cu lo pró prio de enun ci a ção ou sim bo lis mo.Sur gi ram, fre qüen te men te, no vos es ti los. Cons tan ti no pla, por exem plo,vul ga ri zou o “bi zan ti no” e a cú pu la que, for ma li za da no Pant he on deAgrip pa em Roma, se es pa lhou pelo mun do. Há tal vez, para isso, umaex pli ca ção. Assim como a mú si ca, é a ar qui te tu ra es sen ci al men te abs tra tapois nela o ho mem não imi ta a na tu re za mas cria for mas no vas, sim bó li cas, ori gi na is, que pro cu ra con cre ti zar ao impô-las à pa i sa gem. A mú si catam bém é pro fé ti ca. É di ri gi da ao fu tu ro mas, de po is de ou vi da, flui,de i xan do ape nas a im pres são mne mô ni ca que faz vi brar as cor das emo -ci o na is mais pro fun das da alma. Na ar qui te tu ra, a Idéia Do mi nan te re -ves te for ma ma te ri al vi sí vel na pe dra, na ma de i ra, no bar ro, na ver du ra, nofer ro, no con cre to, no már mo re, no vi dro – for ma que se de se ja eter ni -zar. A ci da de sen do sem pre, na fra se de Mum ford, “a ma i or obra de arte do ho mem”, é por isso mes mo a mais le gí ti ma ex pres são plás ti ca domo men to his tó ri co em que foi cri a da e da ima gem de seu cri a dor. Aessa re gra não pa re ce fu gir o epi só dio a que, no Bra sil, as sis ti mos. Amu dan ça de nos sa ca pi tal, em me a dos do sé cu lo XX, co in ci diu com um dosgran des ins tan tes da his tó ria da ar qui te tu ra uni ver sal, o mo men to em quesu pe ran do os es ti los clás si cos eu ro pe us, ori gi ná ri os da Gré cia, Roma, Bi -zân cio, do Me di e vo gó ti co e do Bar ro co, a ar qui te tu ra se glo ba li zou . Bra sí -lia é uma obra de be le za, uma de cla ra ção ver da de i ra dos prin cí pi os es té -ti cos que anun ci a vam a glo ba li za ção do pla ne ta, ao mes mo tem po emque ins pi ra vam a nas cen te cul tu ra bra si le i ra em suas múl ti plas ra í zes.

Ne nhu ma arte so freu e so fre rá ain da mais im pac to do que aar qui te tu ra, como re sul ta do dos imen sos pro gres sos da ida de in dus tri al.Por esse mo ti vo, é lí ci to pre ver es te ja a ar qui te tu ra fa da da a do mi nar aes fe ra es té ti ca do fu tu ro, cri an do como pen sa Wal ter Gro pi us “umanova or dem com pre en si va e in te gral”. A con cepção tra di ci o nal das“belas ar tes”, como dis ci pli nas in de pen den tes, está des ti na da ao ol vi do.A pin tu ra e a es cul tu ra já se en con tram, se gun do tudo pa re ce in di car,mu i to avan ça das no ca mi nho do de clí nio. O sur re a lis mo na pin tu ra deDali e no de se nho de Escher, as sim como o abs tra to me câ ni co nos mobiles

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de Cal der fo ram as úl ti mas obras ge ni a is nes sa es fe ra. O pró prio Cal derse adap ta me lhor no con tex to ar qui te tô ni co “mo der no” em que se balan ça.As pi râ mi des de Pei são ele men tos de co ra ti vos de seus mag ní fi cos edi fí -ci os. Ten do ser vi do ape nas, em ca rá ter mais ne ga ti vo ou des tru i dor doque pro pri a men te cons tru ti vo, para lim par os re ma nes cen tes da es té ti caeu ro péia clás si ca, es sas obras enun ci am os no vos prin cí pi os e anun ci ama nova con cep ção de es pa ço qua dri di men si o nal que in va de a cul tu raocidental glo ba li za da. A pin tu ra e a es cul tu ra tor nar-se-ão pro va vel mente,como já ocor reu em mu i tas ou tras oca siões e no ta da men te no Egi to, asfiéis ser vi doras da ar qui te tu ra. Na qui lo em que são in de pen den tes jáconstitu em, aliás, uma arte mor ta, uma arte de “Mu seu”. Par te de lastal vez se jun te à mú si ca e à arte dra má ti ca na nova for ma, es sen ci al mentedi nâ mi ca e mo der na, que é o Ci ne ma.

Por ou tro lado, em to dos os su pre mos pe río dos da arte, emto dos os “sé cu los de ouro” da Cul tu ra uni ver sal – no Egi to de Akhe naton, na Gré cia de Pé ri cles, no Ja pão de Kyo to, na Itá lia do Re nas ci men to, naFran ça de Luís XIV – a Arqui te tu ra tem sido a pri me i ra, a mais fun da mental, a mais so ci al de to das as ar tes. To dos os gran des mo nar cas mani fes ta -ram o de se jo de cons tru ir. To dos os po vos se têm or gu lha do, aci ma detudo, de suas ci da des, de seus mo nu men tos. Os ci da dãos de Flo ren çache ga ram a vo tar so bre o tipo de co lu na a ser usa do na Ca te dral! OPart he non, San ta So fia, Char tres, o Taj Ma hal, a “Ci da de Pro i bi da” deBe id jing, o par que de Ver sa il les, o ar ra nha-céu ame ri ca no, que melhorexem plo exis te do es pí ri to que ani ma seus cons tru to res? A ar qui te tu ra,como pen sa va Spen gler, é a ex pres são mais per fe i ta do “sím bo lo primá rio”de uma cul tu ra; an te ce den do, se gun do sua tese, a to das as belas-artes nodesen vol vi men to tem po ral das cul tu ras “como se res vi vos”. O que nelaim por ta não são “as téc ni cas cons tru ti vas” mas “as idéi as cons tru ti vas”.A ar qui te tu ra, na ver da de, é para ou tros teó ri cos e fi ló so fos não ape nasa ma i or ou a mais com pre en si va das ar tes, mas tam bém a pri me i ra amani fes tar-se, his to ri ca men te fa lan do, no de sen vol vi men to cul tu ral deuma so ci e da de. Para Paul Li ge ti e para Sir Flin ders Pe trie – só ci tan dodois no mes na fi lo so fia da arte – a ar qui te tu ra é re al men te, na se qüên ciade es tá gi os cul tu ra is em cada so ci e da de, o pri me i ro ramo das artes aliber tar-se das for mas ar ca i cas, al can çan do o mo men to de cri a ção defor mas ori gi na is. He gel, que tam bém sus ten ta a te o ria de uma su ces são

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uni for me na evo lu ção das vá ri as for mas ar tís ti cas, apre sen ta a ar qui te turacomo a ob je ti va ção mais ade qua da da Idéia ou Espí ri to (Ge ist), noprimeiro dos três es tá gi os su ces si vos – o sim bó li co, o clás si co e o ro mân tico– em que ele se des co bre. A ar qui te tu ra se ria por tan to, para He gel, a pri -me i ra for ma pela qual o Espí ri to se re ve la quan do, no es tá gio sim bó li co, por ser ain da es sen ci al men te abs tra to e in de ter mi na do, é in ca paz dedomi nar in te i ra men te seus me i os de ex pres são e, por con se guin te, suaapa rên cia ex ter na e o ma te ri al de que se uti li za.

O ar gu men to vale que nele nos de te nhe mos!A im por tân cia de Bra sí lia re si de no fato de que po de rá efe ti va -

men te en trar para a his tó ria como pri me i ra ma ni fes ta ção au tên ti ca, no Bra -sil, da nova cul tu ra que é oci den tal em seu es pí ri to, téc ni ca e ci en tí fi ca emsuas ba ses, glo bal em âm bi to. Como pro vín cia da nova cul tu ra uni ver sal,ain da jo vem mas che ia de ins pi ra ção cri a do ra e de po ten ci a li da des ori gi na is, o Bra sil apre sen ta-se como um ter re no ide al para tais ex pe ri men ta ções es té -ti cas. Se ad mi ti mos que a ar qui te tu ra con tem po râ nea, em sua sú bi ta e ex tra -or di ná ria pu jan ça, é a pri me i ra le gí ti ma ma ni fes ta ção ar tís ti ca da nova cul tu -ra uni ver sal – da qual é o Bra sil uma pro vín cia pro mis so ra – che ga mos àcon clu são que a ex pe riên cia de Bra sí lia pode cons ti tu ir um mar co fun da -men tal na his tó ria de nos sa ci vi li za ção. Se ria um sin to ma de ma tu ri da depró xi ma. Apren den do suas pri me i ras le tras, en con tra o gê nio da raça gra ças ao novo vo ca bu lá rio do aço, do con cre to, do vi dro e da ve ge ta ção, as fra ses com as qua is pro cu ra ex pri mir suas pri me i ras idéi as ori gi na is.

Assim, o es ti lo de Bra sí lia será na tu ral men te in ter na ci o nal nosen ti do de que ma te ri a li za con cep ções em vi gor em todo o mun do,como re sul ta do da re vo lu ção ci en tí fi ca e in dus tri al que abar ca glo bal -men te o pla ne ta, po den do por isso ser com pre en di do tan to na Eu ro pa e na Amé ri ca quan to na Ásia ou na Aus trá lia. Mas é, igual men te, na ci o nal, já que pro cu ra dar ex pres são à pa i sa gem, ao cli ma, aos cos tu mes e àstra di ções de nos sa ter ra e nos sa gen te. Será um es ti lo so bre cuja ela bo ração in flu í ram ar tis tas como Gro pi us, Le Cor bu si er, Mies van der Rohe, Sit te, Sul li van, Ebe ne zer Ho ward e to dos os pro fe tas da Nova Ci da de. Mas étam bém um es ti lo in dí ge na. É ori gi nal na tra di ção plás ti ca que nos vemdo bar ro co mi ne i ro, um es ti lo que é uma ex po si ção tí pi ca do de se jo depro te ção, de luz, ar, be le za, con for to e do mí nio dos es pa ços tro pi ca isque le vam o ho mem bra si le i ro a cons tru ir.

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Lú cio Cos ta ex pôs ad mi ra vel men te es sas ca rac te rís ti cas donovo es ti lo em seu pro je to para o Pla no Pi lo to. Bra sí lia é a pri me irametró po le cons tru í da em fun ção da nova ida de da avi a ção e não de i xade ser sin to má ti co haja sido seu sí tio es co lhi do na base de le van ta mentosae ro fo to gra mé tri cos. O ae ro por to Jus ce li no Ku bits chek já é o ter ce i rodo país em mo vi men to e um dos mais avan ça dos do mun do.

Encon tran do uma fra se per fe i ta para ex pri mir o es pí ri to dostem pos, deu Lú cio Cos ta à sua ci vi tas a for ma sim bó li ca de um pás sa roou avião, pro va vel men te sem mes mo dis so es tar cons ci en te. O pró priopla ne ja men to da cir cu la ção obe de ce a no vas con cep ções de es pa ço mul -ti-dimen si o nal, de ma ne i ra a evi tar, tan to quan to pos sí vel, os cru za mentosno mes mo ní vel que exi gem si na li za ção lu mi no sa. O zo ne a men to, ofunci o na lis mo, a for ma fle xí vel do de se nho – que não obe de ce aostradi ci o na is es que mas or to go na is ou ra di o con cên tri cos, mas a um ver -da de i ro sen ti men to or gâ ni co das fun ções de uma ca pi tal – são pos sí ve isgra ças aos en si na men tos dos gran des pro fe tas que per mi ti ram ul tra passar a gran de he ran ça clás si ca e bar ro ca e nos fi ze ram vis lum brar a ci da defe liz do fu tu ro, essa ci da de que, na ex pres são de Frank Lloyd Wright, “ade mo cra cia ain da não cons tru iu”. Bra sí lia é, em suma, uma ci da de mo -der na, em que pe sem os per cal ços que mais adi an te dis cu ti re mos!

As ne ces si da des fun da men ta is da vida, os re qui si tos doconfor to e do re cre io, as im po si ções da efi ciên cia no tra ba lho, a ra pi deznas co mu ni ca ções e no trân si to, e a eter na as pi ra ção do ho mem pelobelo, a que se ja mos tal vez mais sen sí ve is como la ti nos nos tró pi cos con -forme as si na lou Gil ber to Frey re – cons ti tu em os ele men tos fun da mentaisno pla ne ja men to e cons tru ção da ca pi tal. A cha ve do su ces so de Bra sí lia – essa cha ve que, qui çá, os pla ne ja do res de al gu mas das mais recen tescapi ta is ar ti fi ci a is não sou be ram en con trar – será a cri a ção de um ambientesa tis fa tó rio para as ne ces si da des ma te ri a is, emo ci o na is e es té ti cas deseus ha bi tan tes. É nes se sen ti do que a ar qui te tu ra de Bra sí lia terá comota re fa não ape nas o su ces so téc ni co, mas a ver da de i ra com pre en são dofa tor hu ma no. Gro pi us es cre veu: “No cur so de mi nha vida tor nei-mecada vez mais con ven ci do de que a prá ti ca usu al dos ar qui tetos de ali vi ar ade sor dem do pa drão do mi nan te com a cons tru ção, aqui e aco lá, de umbelo edi fí cio é mais do que ina de qua da. Pre ci sa mos en con trar, em vezdis so, um novo con jun to de va lo res, ba se a dos em fa to res cons ti tu ciona is

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que pos sam ge rar uma ex pres são ín te gra do pen sa men to e do sen ti men -to de nos sa épo ca”. Ora, as sim como o fato em si da mu dan ça da sededo go ver no mar cou no tem po a fase his tó ri ca de ple no de sen vol vi men -to da na ci o na li da de, a sua ar qui te tu ra será “uma ex pressão ínte gra dopen sa men to e do sen ti men to de nos sa época”, regis tran do sim bo li ca -men te no es pa ço a Idéia Do mi nan te da nova cul tu ra que ama du re ce.

“A ar qui te tu ra é uma arte so ci al”, es cre ve Ri chard Neutra,outro emi nen te crí ti co de arte. “Tor na-se um ins tru men to do des ti nohu ma no não ape nas por que pro vê as nos sas ne ces si da des mas tam bémpor que con di ci o na e dá for ma a nos sas re a ções. Pode ser cha ma da dere fle xi va por que é um es pe lho de nos so pro gra ma de con du ta e de vida. Ao mes mo tem po, essa arte do pla ne ja men to do meio faz ain da mais,pois é um pro gra ma de con du ta diá ria de toda a nos sa vida ci vi li za da”.Ora, é isso exa ta men te o que se in ten ta em Bra sí lia – um novo meio físicoe men tal para a azá fa ma de go ver no. A nova ca pi tal, se gun do a so lu çãode que se “des ven ci lhou” Lú cio Cos ta, “deve ser con ce bi da não comosim ples or ga nis mo ca paz de pre en cher sa tis fa to ri a men te, sem es for ço,as fun ções vi ta is pró pri as de uma ci da de mo der na qual quer... e, paratan to, a con di ção pri me i ra é achar-se o ur ba nis ta im bu í do de uma cer tadig ni da de e no bre za de in ten ção, por quan to des sa ati tu de fun da men taldecor rem a or de na ção e o sen ti do de con ve niên cia e me di da ca pa zesde con fe rir ao con jun to pro je ta do o de se já vel ca rá ter mo nu mental.Monu men tal não no sen ti do de os ten ta ção mas no sen ti do da ex pres são pal pá vel, por as sim di zer, cons ci en te, da qui lo que vale e sig ni fi ca. Cidadepla ne ja da para o tra ba lho or de na do e efi ci en te, mas ao mes mo tem poci da de viva e apra zí vel, pró pria ao de va ne io e à es pe cu la ção in te lec tu al,ca paz de tor nar-se, com o tem po, além de cen tro do go ver no e ad mi nis -tra ção, num foco de cul tu ra dos mais lú ci dos e sen sí ve is do país”.

O pla ne ja men to e a ar qui te tu ra de Bra sí lia não devem serenten di dos, por con se guin te, como sim ples for mas ex te ri o res, re ves ti -men tos su pér flu os da fu tu ra aglo me ra ção go ver na men tal. Estão, sim, ín -ti ma e fun da men tal men te li ga dos à pró pria fun ção da nova capi tal,desem pe nhan do, em úl ti ma aná li se, um pa pel po lí ti co, so ci al e cul tu ralda ma i or re le vân cia.

∗ ∗ ∗

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Pa lá cio Pre si den ci al pro vi só rio em Bra sí lia. Pri me i ra cons tru ção exe cu ta da na Nova Ca pi tal.

Pro je to de Oscar Ni e me yer

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Go iâ nia

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Con cur so de 1956 para o Pla no Pi lo toPro je to de N. Gon çal ves, Ba ru chi Mil man e

J. N. Ro cha: se gun do lu gar

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Pla no Pi lo to nº 8 – 3º Lu gar. Au to res: M. M. M. Ro ber to, Antônio A. Dias, Elli da Engert, Pa u lo No va es, Fer nan do Se ga das Vi an na.O pro je to ima gi na va uma sé rie de cé lu las ra di o con cên tri cas, de apro xi ma da men te

12.000 ha bi tan tes cada uma, se le ci o na das con for me a pro fis são ou ati vi da de prin ci pal

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Idem. Pro je to M. M. Ro ber to

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Pla no Pi lo to nº 17 – 3º Lu gar. Pro je to de Rino Levi(O Júri re u niu os 3º e 4º lu ga res e atri bu iu-os aos pro je tos de nº 17 e de nº 8)

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Pro je to para o Pla no Pi lo to de Rino Levi

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No Pro je to de Rino Levi gi gan tes cos edi fí ci os de 300 me tros de al tu ra e 30.000 ha bi tan tes cada um

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Pro je to de Hen ri que Mind lin

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Pro je to de Hen ri que Mind lin e Gian Car los Pa lan ti

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Oscar Ni e me yer

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Lú cio Cos ta e Jus ce li no Ku bits chek, Bra sí lia, 1957

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Lú cio Cos ta, JK e Isra el Pi nhe i ro na fren te da cruz poroca sião da pri me i ra mis sa em Bra sí lia

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Isra el Pi nhe i ro, Jus ce li no Ku bits chek e Oscar Ni e me yer ven do a ma que te do Palá cio da Alvo ra da

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Isra el Pi nhe i ro e o em ba i xa dor Set te Câ mara re ce ben do em Bra sí lia a es tre la de Holl ywo od Rita Hay worth

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Bur le Marx, o pa i sa gis ta

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Ber nar do Sa yão era o bra ço di re i to do Pre si den te Jus ce li no Ku bits chek

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Pal ma Nova, no norte da Itá lia, não lon ge de Ve ne za, desenhadacomo uma Ci da de Ide al por Vin ce nzo Sca moz zi, 1593

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Como na Ci da de Ide al do Renas ci men to Ita li a no o Pla no Pi lo to para Bra sí lia no de se nho de M. M. Ro ber to, 1956

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XVIIBra sí lia, Qu a ren ta Anos De po is

Entre 1956 e 1961 foi o pro je to de Bra sí lia le va do a ter -mo sob a Pre si dên cia e ins pi ra ção ge ral de Jus ce li no Ku bits chek, a ad -mi nis tra ção di re ta do Pre si den te da No va cap, Isra el Pi nhe i ro, e se gun doo Pla no de Lú cio Cos ta, de ca no dos ar qui te tos bra si le i ros. Era o pro je tonº 1 no Pla no de Me tas de JK. Na pri me i ra edi ção des te li vro, per mi -ti-me, na qua li da de de ca ri o ca, e vo lun tá ria e ca pri cho sa men te de di ca doà de fe sa de Bra sí lia, ex pli ci tar mi nhas ex pec ta ti vas no en tu si as mo doem pre en di men to. Con si de rem que, ao ini ci ar a com po si ção da obra, eraeu 48 anos mais moço do que sou hoje, ser vin do en tão em Nova Yorkcomo Con se lhe i ro de Emba i xa da na Mis são do Bra sil jun to à ONU.Vol tan do ao Bra sil em 1956, tra ba lhei qua se qua tro anos como che fe da Di vi são e, pos te ri or men te, De par ta men to Cul tu ral do Ita ma raty. Entreien tão, pela pri me i ra vez, em con ta to di re to com a vida po lí ti ca, so ci al ecul tu ral da Ve lha cap, en quan to lhe sen tia os va lo res e de fe i tos. Os con -ta tos eram so ci a is mas igual men te bu ro crá ti cos – ex of fi cio . Cre io que ope río do foi o pon to alto de mi nha car re i ra. Tam bém a opor tu ni da deex cep ci o nal de que me apro ve i tei para co nhe cer a eli te nos me i os li te rá ri os

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e ar tís ti cos do país, as sim como gran de nú me ro das ma i o res per so na li -da des do sé cu lo nes ses dois ter re nos.

Nes sas cir cuns tân ci as, pos so re pe tir as crí ti cas en tão di ri gi dasao Rio como Ca pi tal – ex pli cá ve is, na épo ca, pela ur gên cia em com ba ter os pre con ce i tos ex tra va gan tes e as ca lú ni as que atin gi am o pro je to decons tru ção da nova Ca pi tal . É fato que a fan ta sia, o mito, o bo a to sepro pa ga vam como fogo de cer ra do na es ta ção seca – que a ci da de nun cate ria água su fi ci en te; que o lago ar ti fi ci al ja ma is se en che ria; que as ár vo resnão cres ce ri am em tal cli ma; que o solo semi-ári do era ab so lu ta men teim pres tá vel (sem le var em con ta que o que se pre ten dia, pre ci sa men te,era cons tru ir uma aglo me ra ção em al ve na ria e con cre to, não re a li zar umem pre en di men to agrí co la); que os pró pri os pás sa ros evi ta vam a re gião a qual, in fes ta da de ra tos, não per mi tia a am bi en ta ção de ga tos; que nãoexis ti am te le fo nes e, fi nal men te, como críti ca ge ne ra li za da, que a cons -tru ção de Bra sí lia era a úni ca res pon sá vel pelo sur to in fla ci o ná rio e pelacor rup ção e des vi os dos di nhe i ros pú bli cos que a opo si ção po lí ti ca,prin ci pal men te da UDN, en tão atri bu ía à admi nis tra ção de Ku bits chek.Estas duas úl ti mas ale ga ções, im pal pá ve is, iam ter como re sul ta do de -plo rá vel a cas sa ção de seus di re i tos po lí ti cos após 1964, con tra a von ta dealiás, pelo que se sabe hoje, do pró prio Cas tel lo Bran co. Além dis so, oprin ci pal res pon sá vel pe los di nhe i ros gas tos era Íris Me im berg, o Di re -tor in di ca do pela pró pria UDN com esse ob je ti vo es pe cí fi co de su per vi -si o nar o or ça men to da Novacap.

Em cer to sen ti do, re co nhe ço al gu mas fal sas an te ci pa ções que, eu pró prio, me atre vi a de sen vol ver. A mais gra ve é ha ver ima gi na do atrans fe rên cia do go ver no do Rio para o Pla nal to Cen tral como úl ti more cur so no sen ti do de cer ce ar o cres ci men to pa to ló gi co do Di nos sa u robu ro crá ti co con tra o qual ali men ta va, como ali men to até hoje, uma oje ri zapro fun da, mu i to em bo ra ten do nele fe i to car re i ra. Ge ra do pelo Pa tri -mo ni a lis mo bra si le i ro, o Esta do Le vi a tã, cujo ta ma nho e ar ca ís mo ju rás -si co po dia sen tir por ex pe riên cia di re ta, me aca bru nha va e, oca si o nal -men te, me en chia de in dig na ção. Nas obras, O Di nos sa u ro e Uto pia Bra si le i ra,am bas pu bli ca das em 1988, pro cu rei ana li sar o pro ble ma so ci o ló gio daBu ro cra cia e os as pec tos utó pi cos do pa ra dig ma da Ci da de Ide al que ahis tó ria uni ver sal nos ofe re ce, par ti cu lar men te a par tir do Re nas ci men to. Na pers pec ti va da épo ca, a si tu a ção já era cons tran ge do ra e pou co me -

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lho rou des de en tão. Devo, nes te pon to, fa zer um mea cul pa; algo comouma “crí ti ca sin ce ra de meus er ros” como cos tu ma vam pra ti car os po lí -ti cos em des gra ça, na an ti ga União So vié ti ca. Em seu di ver ti do Ma nu aldel Per fec to Idi o ta La ti no-ame ri ca no, Car los Alber to Mon ta ner, Apu le yoMen do za e Luiz Var gas Llo sa, fi lho do gran de es cri tor pe ru a no, se di -ver tem com a in clu são no li vro das pró pri as idi o ti ces que es cre ve ram, na mo ci da de, quan do de fen di am po si ções di ver sas das atu a is, mais ma du ras.Nes te caso, não ima gi nei que Brasí lia, lon ge de evi tar, como eu es pe ra va, a sim ples emi gra ção em mas sa para o Pla nal to da imen sa bu ro cra cia oci o saque afo ga va a Ci da de Ma ra vi lho sa, iria cri ar uma ou tra, bem ma i or, mais or ça men tí vo ra e pre da tó ria do que a pri me i ra. No Par que Ju rás si co dePin do ra ma con tem pla mos hoje dois Di nos sa u ros, em vez de um...

É sig ni fi ca ti vo que os ar gu men tos mais sé ri os le van ta dos sete nham prin ci pal men te sus ten ta do em da dos eco nô mi cos, em ob je çõesfi nan ce i ras ou, de um modo ge ral, em con si de ra ções prá ti cas. Pou coseram vá li dos. Não é exa to, por exem plo, que a cons tru ção de Brasí liate nha de sen ca de a do o de sas tro so pro ces so in fla ci o ná rio que, du ran temais de qua ren ta anos, es car men tou nos sa eco no mia. Esse pro ces so jáse ini ci a ra an te ri or men te, sob a Pre si dên cia de Ge tú lio Var gas(1950/54), e dele re sul tou, como se sabe, o em po bre ci men to da mas sada po pu la ção, prin ci pal men te ru ral, as sim como as clas ses não pro te gi daspela “cor re ção mo ne tá ria” que fa vo re cia o fun ci o na lis mo pú bli co, ostra ba lha do res sin di ca li za dos e a alta bur gue sia, a qual dis põe de re cur sos de pou pan ça, bens imo bi liá ri os ou de pó si tos em ban cos es tran ge i ros. Oauge da in fla ção de vas ta do ra ocor reu nos anos oi ten ta, na Pre si dên ciaSar ney. Foi mu i to de po is da cons tru ção de Brasí lia. Sua ca u sa prin ci palse ria a de sas tro sa in ter pre ta ção de sen vol vi men tis ta das dou tri nas de lord Key nes, e seus as pec tos mais ób vi os po dem ser apon ta dos na ob ses sãocom a re ser va de mer ca do, no pros se gui men to obs ti na do da po lí ti ca de“subs ti tu i ção de im por ta ções”, oca si o nal men te le va da a ex tre mos de sas -tro sos, na glo ri fi ca ção da au tar quia es ta tal e no po pu lis mo que des pre zao axi o ma de Fri ed man se gun do o qual não exis te al mo ço gra tu i to. Elescon ta mi na ram tan to a es quer da so ci a lis ta quan to a di re i ta na ci o na lis ta,ao fi nal do re gi me mi li tar e em prin cí pi os da “nova Re pú bli ca” sob aine fá vel “Cons ti tu i ção dos Mi se rá ve is” do “Dr.” Ulysses. Tudo isso, afi nal de con tas, foi fa tor que se adi ci o nou ao ca tacl ísmi co dé fi cit pú bli co, de

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cu jos efe i tos per ver sos só te mos con se gui do es ca par pelo vi gor na tu ralda ini ci a ti va pri va da na me ta de me ri di o nal do país.

Con se qüen te men te, os ar gu men tos ne ga ti vos con tra Bra sí lia,su pos ta men te prag má ti cos, nada mais fi ze ram do que ex plo rar inu til -men te uma re a li da de esen ci al men te “abs tra ta”. Fo ram fór mu las pre ten -sa men te “re a lis tas” que vi sa vam en co brir pre con ce i tos in te lec tu a is, fo -men ta dos pela Ide o lo gia, e os res sen ti men tos na tu ra is da po pu la ção daVe lha cap com a “de mo ção” de sua ci da de. A mu dan ça da ca pi tal é quecons ti tu iu um ato de pro fun do re a lis mo ge o po lí ti co, re ves ti do em bo rade ma ti zes essen ci al men te ide a lis tas. O ato mu dan cis ta nada ti nha a vercom o pre sen te. Ele só é com pre en sí vel a uma men te ori en ta da para ofu tu ro – o que, evi den te men te, ex clui o opor tu nis mo ime di a to. Umaobra des se vul to não se en qua dra num or ça men to anu al, num pla noqüin qüe nal, nem mes mo numa con jun tu ra uni ver sal. Mede-se em ter -mos de sé cu los! As agru ras fi nan ce i ras, a cri se eco nô mi ca, as di fi cul da desde trans por te para Go iás, a in qui e ta ção po lí ti ca, os obs tá cu los apa ren te -men te in su pe rá ve is que pa re ci am se opor a uma vi a gem de mil qui lô me tros para toda a má qui na ad mi nis tra ti va fe de ral – tudo isso não im por ta!Fo ram me ras ocor rên ci as oca si o na is, fa vo rá ve is ou des fa vo rá ve is, quenão afe ta ram o pro pó si to fi nal ob je ti va do, na base de um pro gra ma nãoutó pi co. Con fi gu rou, cer ta men te, a ma i or obra cons tru ti va da na ção,re a li za da no sé cu lo pas sa do – algo do mes mo va lor do que a Aber tu rados Por tos, a Inde pen dên cia e a Abo li ção.

Qu a ren ta anos se pas sa ram. Mu i tos acon te ci men tos po lí ti cosocor re ram, à mar gem do pro je to. É in te res san te e de cer ta opor tu ni da de per gun tar mo-nos qua is são hoje seus re sul ta dos. Como res pon de Bra sí liaao ide al de seus fun da do res? Que con se quên ci as teve a mu dan ça so bre a evo lu ção po lí ti ca do país e, an tes de mais nada, em que me di da o em -pre en di men to con tri bu iu, ver da de i ra men te, no sen ti do de des vi ar asaten ções ofi ci a is para os pro ble mas do in te ri or, re du zin do ao mes motem po os cu i da dos ob ses si vos com os mo de los e in te res ses me tro po li ta nos do Rio e de S. Pa u lo? O que cha ma mos “in te ri o ri za ção” – terá sido elaporven tu ra efe ti va, em seu tri plo sen ti do an tro po ge o grá fi co, de mo grá fi coe psi co ló gi co? Eis al gu mas das ques tões que ca re cem de res pos ta, apósuma ex pe riên cia de qua se meio sé cu lo. Uma con clu são já re le van te pode ser re ti ra da do exa me cu i da do so dos dois ma pas de mo grá fi cos que

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acom pa nham este ca pí tu lo. A ou tra é ób via. O Bra sil tor nou-se mu i togran de e de ma si a da men te com ple xo. Num país de di men sões con ti nen ta is,as for ças so ci a is a po lí ti cas ex pri mem-se cada uma a seu modo, se gun do a dis tri bu i ção re gi o nal e in te res ses con tra di tó ri os – e é em Bra sí lia que o fe i xe ter mi na. O re sul ta do não é de ter mi na do por tal ou qual ele men topar ti cu lar – o con ser va do ris mo dos co ro néis la ti fun diá ri os do Nor des te, a na tu re za ex tre ma men te pro lí fi ca da mu lher nes sas áre as me nos de sen -vol vi das, o di na mis mo dos em pre sá ri os de São Pa u lo e do Sul, a nos tal giados res sen ti dos do Rio, a ide o lo gia dos in te lec tu a is es quer di zan tes, oes cân da lo pro cu ra do por cer ta clas se de jor na lis tas ou o na ci o na lis moalgo pas sé dos mi li ta res, que não se dão con ta dos efe i tos da glo ba li za ção– ou, en fim, a sur pre sa be a ta di an te da ci da de, ma ni fes ta da pela mul ti -dão de can dan gos mi ne i ros, go i a nos e nor des ti nos que a têm pro cu ra donum rit mo mais in ten so do que pode ela ab sor vê-los. É a von ta de detoda a na ção, me di da como so ma tó rio de to dos es ses in te res ses, que sema ni fes ta e se con ci lia em Bra sí lia. De ma si a da men te com ple xo é hoje oBra sil – po lí ti ca, so ci al a eco no mi ca men te, mu i to mais do que na épo caem que Jus ce li no, Isra el Pi nhe i ro e a eli te dos tec no cra tas da vam o im pul sode ci si vo para nos ar ran car do sub de sen vol vi men to.

Devo con fes sar que a ques tão aci ma le van ta da, quan to aosmé ri tos da in te ri o ri za ção do Go ver no Fe de ral, me co lo ca em amis to sode sa cor do com a po si ção do ma i or e sa u do so eco no mis ta, e uma dasmais lú ci das in te li gên ci as de que se pos sa or gu lhar este país. Em ar ti gode 24-4-94, re pro du zi do na co le tâ nea Anto lo gia do Bom Sen so, Ro ber toCam pos re fe re-se per func to ri a men te a ou tras ca pi ta is em que ser viu eaos mo ti vos in vo ca dos para a mu dan ça em cada caso es pe cí fi co. Mascri ti ca Bra sí lia por que “não pas sa de um cen tro de con ven ções, um vá cuo cul tu ral com ple to, gen te que se está en con tran do ape nas de pas sa gem”.Ten do tido como ob je ti vo, diz ele, uma “gran de pa je lan ça, a so lu çãomá gi ca de to dos os nos sos ma les, o as som bro do mun do”... eis que anova ca pi tal “de via pro mo ver o de sen vol vi men to, a re for ma dos cos tu -mes po lí ti cos, ocu par o vas to in te ri or (ain da não ha via eco lo gis tas deplan tão) e ca ta pul tar o país na pri me i ra fila do Pri me i ro Mun do”. Di an te dos de sen can tos, Cam pos não de i xa de reconhecer que “a in fra-es tru tu -ra bra si le i ra teve uma for mi dá vel mo der ni za ção” no go ver no JK, aoqual ele pró prio ser viu. Não ace i ta, con tu do, que es tra das e ca pi ta is te -

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nham qual quer co i sa a ver umas com as ou tras. Afir man do que Bra sí liaé “a mãe de to das as in fla ções”, Cam pos in sis te num ar gu men to que setor nou ba nal. Bra sí lia te ria sido a prin ci pal res pon sá vel pelo fe nô me noque de vas tou e em po bre ceu a na ção.

Nes te pon to, en tre tan to, cre io que o ar ra zo a do de meu co le ga e ami go, que tan to ad mi ro, não pos sui sus ten ta ção em pí ri ca. A in fla çãobra si le i ra teve iní cio nos anos 50, an tes por tan to de Bra sí lia. Ela pra ti ca -men te ces sou com o Pla no Real. Ne nhu ma ou tra nova ca pi tal, en tre asquin ze ou mais das que men ci o nei nes ta obra, de sen ca de ou um pro ces -so in fla ci o ná rio. Mu i tos con si de ram ir re le van te a in fla ção em ter mospo lí ti cos, mas o ques ti o na men to que apre sen to nada tem a ver com esse fal so key ne si a nis mo, é uma ques tão de re la ci o na men to his tó ri co de ca u sae efe i to o que me opõe à tese de Ro ber to Cam pos.

Chu to en tão a bola de vol ta e in sis to, uti li zan do o mes mo tipo de con tra di ção do di plo ma ta eco no mis ta, que in fla ção e mu dan ça de ca pi ta is não têm qual quer co i sa a ver uma com a ou tra. A gran de in fla ção ale mã de po is da 1ª Gu er ra Mun di al e a in fla ção chi ne sa, que tes te mu nhei em Nand jinge Xang hai em 1947/49, não re ve la ram qual quer co ne xão com o fato dese rem Ber lim ou Nand jing ca pi ta is dos pa í ses atin gi dos pelo de sas tre. Ain fla ção bra si le i ra foi de ter mi na da pela con ta mi na ção de idéi as Key ne -si a nas em nos sos go ver nos e eco no mis tas – com a no tá vel ex ce ção dopró prio Ro ber to Cam pos quan do, com o Mi nis tro Bu lhões, con se guiure du zir o rit mo cres cen te da mo lés tia, re co nhe cen do que o es for ço de -pen dia ape nas de uma ade qua da po lí ti ca mo ne tá ria, sus ten ta da por du -ras me di das fis ca is e or ça men tá ri as. No pe río do de Cas tel lo a Mé di ci, ain fla ção foi sen do con ti da aos pou cos, en quan to o Bra sil re gis tra va oque, apro pri a da men te, se ria qua li fi ca do como o Mi la gre Bra si le i ro. Ora,Bra sí lia mu i to con tri bu iu para o mi la gre como os pró pri os mi li ta res emu i tos opo si to res re co nhe ce ram. Infe liz men te, sob as pre si dên ci as Ge i sel,Fi gue i re do e suas su ces so ras ime di a tas, até a che ga da de FHC, o des -con tro le mo ne tá rio re tor nou, ex plo din do numa iné di ta ace le ra ção. Di fí cilse ria cul par Bra sí lia pe los des man dos fi nan ce i ros de Sar ney e Col lor.Entre JK e Sar ney, as sis ti mos no Bra sil ao balé de qua se uma dú zia deChe fes de Esta do, en tre es co lhi dos a dedo pe los do nos do po der, os ele i tos di re ta ou in di re ta men te, ma jo ri tá ria ou mi no ri ta ri a men te, os in te ri nos,

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im pe di dos, ex pul sos e im pe a ched, tudo com al tos e ba i xos nos ín di cesapon ta dos de des va i ra da emis são de mo e da.

Foi Jus ce li no, evi den te men te, mu i to mais um en tu siás ti co es ti -mu la dor do de sen vol vi men to com sua vi são da gran de za do país, do que um ad mi nis tra dor par ci mo ni o so dos di nhe i ros pú bli cos. A pres sa era,para ele, um pon to im por tan te no seu pe río do de man da to. Qu es tão detem pe ra men to tam bém. Ele era um in tu i ti vo ex trover ti do. Cer to. Di ría mosen tão que om nia fes ti na tio ab di a bo li se gun do o di ta do la ti no, toda a pres savem do di a bo, mas exis tem mo men tos ex cep ci o na is e JK per ce be racor re ta men te que, se não com ple tas se Bra sí lia an tes do fim do man da to, qua se que ine vi tá vel se ria a re a ção de re tor no – como aliás che gou a serten ta do ao tem po de Jâ nio Qu a dros. Os go ver nan tes bra si le i ros di fe rem dos aus tra li a nos, nem é a men ta li da de bra si le i ra se me lhan te à dos des -cen den tes de exi la dos e pre si diá ri os que trans for ma ram aque le con ti -nen te aus tral num ad mi rá vel exem plo de pro gres so, equi lí brio so ci al ebom go ver no. Can ber ra, como acen tu ei, de mo rou 100 anos para che garao pon to que se en con tra hoje , com uma po pu la ção que é um dé ci moda bra si li en se. Eles lá, ame ri ca nos ou bri tâ ni cos como os cons tru to resde Was hing ton, Otta wa, Nova De lhi e Pre tó ria, são par ci mo ni o sos portem pe ra men to, pela cul tu ra e por uma lon ga ex pe riên cia his tó ri ca. To dases sas ca pi ta is, como vi mos, so fre ram de ca lú ni as e crí ti cas de sa i ro sasnos pri me i ros anos de sua exis tên cia. Não cul pem pois nos sa Bra sí liapelo ocor ri do com as dú zi as de mo e das, su ces si va men te in ven ta das ecada qual mais suja do que a ou tra, mil réis, cru ze i ro, cru za do, cru ze i ronovo, cru za do novo ou o que mais não te nha sido bo la do na ca be ça demi nis tros co var des, eco no mis tas me dío cres ou ad mi nis tra do res ir res -pon sá ve is que não sa bi am ou não po di am con ven cer seus che fes pelomal que es car men ta va o bol so do povo, anar qui za va a eco no mia e cri a va os ter rí ve is con tras tes de ren da con tra os qua is os de ma go gos de hojede bla te raram, in vo can do uma fa la ci o sa “jus ti ça so ci al” que eles são ospri me i ros a des pre zar. Cre io, por con se guin te, que in jus ta e ina pro pri a da é a co lo ca ção fe i ta por Ro ber to Cam pos, no mes mo ca pí tu lo so bre Bra sí -lia em que des cre ve a in fla ção como se fos sem even tos in ter li ga dos.

Na épo ca, acu sa va-se Bra sí lia pe las cons tru ções que eram fe i -tas, pe las des pe sas com es tra das, ruas, ave ni das, par ques, pe los pa lá ci os edi -fi ca dos, pela quan ti da de de edi fí ci os pú bli cos e apar ta men tos pla ne ja dos,

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pelo apa ren te es ban ja men to de re cur sos num em pre en di men to im pro vi -sa do. Tudo isso, evi den te men te, cus ta va di nhe i ro. As es tra das tam béme a ins ta la ção da in fra-es tru tu ra nos ou tros itens do gi gan tes co Pla no de Me tas. Mas a ver da de é que, na dé ca da de 1950/1960, o cres ci men to dapo pu la ção bra si le i ra al can çou o ma i or ín di ce his tó ri co re gis tra do, 3% ao ano, um dos mais al tos do mun do. Os re cen se a men tos, na épo ca, acu sa -vam uma ci fra que pou co ul tra pas sa va os cem mi lhões de ha bi tan tes nopaís, en quan to três mi lhões de se res vi vos eram acres ci dos anu al men teao to tal. Hoje, com uma po pu la ção qua se o do bro, me nos de dois mi lhõesé a ci fra cal cu la da de au men to de mo grá fi co. Era isso o que pro vo ca va aur ba ni za ção ga lo pan te e, se as ca sas e apar ta men tos não fos sem cons -tru í dos no Pla nal to Cen tral, para abri gar toda essa gen te, mi lhões a mais se te ri am ido des pe jar nas fa ve las do Rio, S. Pa u lo e Belo Ho ri zon te. Ases tra das eram igual men te ur gen tes para in ter li gar os nú cle os po pu la ci o na isque, es pon ta ne a men te, se cri a vam no ser tão do Pla nal to. Re pi to o que já sa li en tei: Bra sí lia era o úni co re cur so de que se po de ria va ler o Esta dopara ten tar des vi ar para o in te ri or aque les ca ran gue jos po ten ci a is que, de ou tro modo, se iri am mais den sa men te aco to ve lar nas pra i as atlân ti cas.Isto está com pro va do no Mapa II: o cen tro de mo grá fi co da na ção sedes vi ou para o no ro es te pela pri me i ra vez em 1970, no len to tras la dore gis tra do a par tir de Sal va dor da Ba hia.

Isra el Pi nhe i ro, Lú cio Cos ta e Oscar Ni e me yer, as sim comoos ou tros ide a li za do res do Pla no, ti nham como ob je ti vo pre cí puo, de -mo crá ti co, na ci o na lis ta, so ci al-de mo crá ti co ou mar xis ta como di ver sa -men te se de cla ra vam, mis tu rar as clas ses. O in tu i to era, pre ci sa men te,fun di-las numa aglo me ra ção de na tu re za co le ti vis ta em que não se pu des seiden ti fi car o ní vel so ci al das fa mí li as pelo ba ir ro em que re si dis sem. Ora, Ro ber to Cam pos apon ta, com ra zão, para a aber ra ção re pre sen ta da pelo zo ne a men to so ci al que se pro ces sou na Nova Ca pi tal. Não de i xa de seruma pro fun da iro nia te nha re al men te ocor ri do o que ele des cre ve dose guin te modo: Bra sí lia “é a úni ca ci da de do Bra sil, e pro va vel men te domun do, de se nha da ex pres sa men te com um apart he id em bu ti do. Há umPla no Pi lo to para a nata bu ro crá ti ca e po lí ti ca. Os mais po bres, os queser vem a esta nata, vi vem em ci da des sa té li tes, a 20, 30 qui lô me tros dedis tân cia – uma se pa ra ção fi si ca in trans po ní vel, mes mo para os pou cospri vi le gi a dos que têm au to mó vel. A pri va ci da de dos do nos da Co i sa

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Pú bli ca está ga ran ti da”. A crí ti ca, nes te pon to, é po lê mi ca por que atin geo alvo er ra do. Cam pos é cru el e pro fun da men te in jus to quan do des cre vea nova Ca pi tal como sen do, “a seu modo, o ma i or mo nu men to já er gui do a Stá li ne, por que en glo ba a pró pria es sên cia do Sta li nis mo. É a Cor tecon ce bi da para o go ver no in tran si ti vo, para a bu ro cra cia que não devesa tis fa ção a nin guém”.

Cam pos te ria ra zão se fos se da Ca pi tal ou de seu Pla no a cul pada de sor dem na ad mi nis tra ção bra si le i ra, de que foi um dos mais obs ti -na dos, co ra jo sos e pe ne tran tes ana lis tas. Cabe a res pon sa bi li da de dadis cri mi na ção ur ba na, isto sim, ao pa tri mo ni a lis mo cen te ná rio da es tru -tu ra so ci al bra si le i ra. É o pa tri mo ni a lis mo tra di ci o nal da he ran ça ibé ri ca– para não fa lar na he ran ça ca tó li ca... com a per sis tên cia do do mí nio deuma eli te pre da tó ria, as so ci a da ao Esta do e com pos ta por es ses “Do nosdo Po der”, “Nova Clas se” ou No menk la tu ra de pa ra si tos da bu ro cra cia,como têm sido re pe ti da men te de nun ci a dos por nos sos me lho res so ció -lo gos e en sa ís tas (Oli ve i ra Vi an na, Bu ar que de Ho lan da, Ra i mun do Fa o ro,Oli ve i ros Fer re i ra, Emil Far hat, Si mon Schwart zman, Ives Gan draMar tins, Anto nio Paim ou Ri car do Vé lez Ro dri guez, para só ci tar al guns en tre os mais in ci si vos) – o que de ter mi nou o es can da lo so des men ti dodado aos pla ne ja do res que de se nha ram uma co i sa, sem se dar con ta deque não po di am di ri gir, a seu bel pra zer, a rota que o de sen vol vi men to na -ci o nal to ma ria. Os ho mens de Bra sí lia fo ram apren di zes de fe i ti ce i ros.Lú cio Cos ta fez um mo des to es for ço para co lo car os “mais po bres, queser vem a essa nata” da No menk la tu ra nas qua dras jun to à L2, as Su per -qua dras de nú me ro 400. Mas foi o rá pi do e im pre vis to cres ci men to es -pon tâ neo da po pu la ção o que lan çou o ex ce den te para fora do Pla noPi lo to. Em ple na cons tru ção, como tes te mu nha Fer nan do Ta ma ni ni emsua Me mó ria da Cons tru ção, mi lha res de de sem pre ga dos já se acu mu la vam, eis que, mes mo ao “rit mo de Bra sí lia”, não ha via ma ne i ra de ab sor ver amão-de-obra que, do vas to hin ter land da na ção, se pre ci pi ta va no quese ria ma ra vi lho sa men te des cri to por Mal ra ux como a “Ca pi tal da Espe ran -ça”. O ex ce den te “rico” foi para as qua dras re si den ci a is do Lago e da Park -way; o ex ce den te po bre per ma ne ceu no Nú cleo Ban de i ran te ou se en ca mi -nhou, pos te ri or men te, para as ci da des sa té li tes. Nin guém pla ne jou tal re sul -ta do es ta li nes ca men te. O fe nô me no sim ples men te ocor reu por que as pre -mis sas do di ri gis mo es ta tal não eram cor re tas. De acor do com os prin cí pi os

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li be ra is de Mi ses a Ha yek, não pode o ho mem de ter mi nar seu pró prio de -sen vol vi men to eco nô mi co, mas ape nas ori en tá-lo no sen ti do, em pí ri ca epro gres si va men te in di ca do pela “or dem es pon tâ nea” que sur ge, in de -pen den te men te de nos sas in ten ções.

O acon te ci do, na ver da de, é uma pu ni ção me re ci da àque lesque pen sa ram fa zer de Bra sí lia uma ci da de “es ta li nis ta”. Aque les pen -sa ram as sim por que eles pró pri os eram, como con ti nu am a ser, es ta li -nis tas. O fun da dor do mo vi men to de So li da ri e da de que con tri bu iu parade i tar por ter ra o Co mu nis mo e foi Pre si den te da Po lô nia, Lech Wa le safez crí ti cas, vá li das ain da que pou co di plo má ti cas, à uni for mi da de de es -ti lo dos blo cos nas Su per qua dras do Pla no Pi lo to – com pa ran do-os aosmo nó to nos, enor mes e fe i os edi fí ci os de sua Pá tria ao tem po do do mí -nio es ta li nis ta. Nem Was hing ton, nem Otta wa, nem Can ber ra, nemmes mo De lhi apre sen tam o es pe tá cu lo de ba ir ros uni for mi za dos comoos que des gos ta ram Cam pos e Wa le sa. De novo in sis to, a res pon sa bi li -da de não é de Bra sí lia. É de quem pro cu rou con ver tê-la so ci a lis ti ca men te– re ce ben do, em tro ca, o me re ci do jul ga men to do que Ha yek qua li fi coucomo a “ar ro gân cia fa tal” (Fa tal Con ce it).

Cam pos con clui sua di a tri be con fes san do que “os ma les po lí -ti cos bra si le i ros não são só de Bra sí lia. Na re a li da de, este é an tes um sin -to ma de ca u sas pro fun das. Num país sen sa to, de ci da dãos, não de sú di -tos”, não acon te ce ria que “qual quer ca pri cho do go ver no se im põe semma i o res re sis tên ci as”. Ele su ge riu, como mé to do de cor re ção de al gunsdos de fe i tos apon ta dos, o fra ci o na men to das fun ções se gun do o mo de loale mão. Em vá ri os pa í ses do mun do, como na Bo lí via, na Áfri ca do Sul,nos Pa í ses Ba i xos, um Po der do Esta do pode es tar numa ci da de, ou troem re si dên cia di fe ren te. Aliás, con ti nua acon te cen do que mais da me ta dedos fun ci o ná ri os pú bli cos fe de ra is te nham per ma ne ci do no Rio, comoos dos Mi nis té ri os da Fa zen da, da Ma ri nha e do Exér ci to por exem plo.É pos sí vel que a pró pria con ti nu a da pre sen ça do Ju di ciá rio no Rio deJa ne i ro hou ves se pre ve ni do essa ex tra or di ná ria de mons tra ção de lu xú ria alu ci na da que tem sido a cons tru ção de enor mes pa lá ci os fa raô ni cospara mais de meia dú zia de tri bu na is di ver sos que in va di ram a Ca pi tal.Não cre io, con tu do, que a per ma nên cia do Con gres so no Rio te ria sidoin di ca da. A opi nião pú bli ca ca ri o ca tal vez ob ti ves se con tro le crí ti co mais se ve ro das ma lan dra gens do que a de Bra sí lia, mes mo que gran de par te

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da po pu la ção te nha por há bi to, na ca pi tal, in va dir o re cin to do Le gis la ti -vo para ba der nas ou, mais co mu men te, para pe dir fa vo res a Pa pai Noel.

Fi nal men te, Cam pos fala no trân si to. Re fe re-se aos “pou cospri vi le gi a dos que têm au to mó ve is”. Eles são hoje se te cen tos mil. Con -cor do com a sus pe i ta que uma per cen ta gem con si de rá vel des se nú me roé com pos ta, hoje, não mais de “cha pas bran cas”, mas de “cha pas fri as”.Foi um go ver na dor que se diz mar xis ta, uni ver si tá rio e pa tro no do “or -ça men to par ti ci pa ti vo” (o que quer que sig ni fi que essa ex pres são es drú -xu la), quem, du ran te seu man da to, in ter rom peu a cons tru ção do me trôde mo crá ti co e par ti ci pa ti vo. O pro ble ma do trans por te co le ti vo é, efe ti -va men te, um dos mais sé ri os que tem afe ta do a Novacap. Inci den tal -men te, acre di to que a au sên cia de um pro je to de trans por te co le ti vo so bretri lhos, no Pla no Pi lo to, foi o mais gra ve, se não úni co erro sé rio co me ti do por Lú cio Cos ta no Pla no Pi lo to de 1956.

Ou tras ques tões po lê mi ca po dem ser le van ta das. Na épo ca da cons tru ção, quan do o em pre en di men to foi con ta mi na do por ques tõespar ti dá ri as oca si o na is que en tão agi ta vam a na ção, era di fí cil sa ber se osar gu men tos in vo ca dos pró ou con tra o pro je to eram pró ou con tra aUDN, ou pró ou con tra o PDS e o PTB go ver nis tas. Até mes mo ho mens do qui la te mo ral e in te lec tu al de Gus ta vo Cor ção – um dos pen sa do resbra si le i ros do sé cu lo XX que mais ad mi ro, e fa lan do como en ge nhe i ro – oca si o nal men te re cor ri am a ar gu men tos ir ra ci o na is para com ba ter oitem nº 1 do Pla no de Me tas. La u ra Reis Fa gun des e Isra el Be loch, emseu es tu do so bre a cons tru ção de Bra sí lia, ci tam um ar ti go de Cor ção,du vi dan do da exis tên cia de li ga ção te le fô ni ca en tre a Nova Ca pi tal e oRio, e de bi can do o em pre en di men to mu dan cis ta ime di a ta men te an tesde sua ina u gu ra ção com um ar ti go que afir ma va o se guin te: “Fal tamdoze dias para a ope ra ção que, por eu fe mis mo ofi ci al, está sen do de sig -na da pela ex pres são mu dan ça da ca pi tal... Bra sí lia não tem ser vi ço te le -fô ni co... Não sei se o cir co rus so, além de urso, tem aque les dois per so -na gens que to dos os cir cos de mi nha in fân cia in fa li vel men te tra zi am: opa lha ço mu i to bem pa ra men ta do e o clown de co la ri nho imen so, carade bobo, pago para re ce ber bo fe ta das do pa lha ço. O Bra sil tor nou-seum vas to cir co... com mu i tos pa lha ços de luxo. O clown é o povo, so mosnós, é você le i tor. Com a di fe ren ça de que, em vez de ser mos pa gos pe lasbo fe ta das, ain da pa ga mos. Bra sí lia, meus ami gos, é a bo fe ta da sín te se”

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(Diá rio de No tí ci as, Rio, 9.4.1960). Ou tras pes so as fa mo sas cri ti ca vam opro je to. Car los Drum mond de Andra de des cre via, me la co li ca men te, o“po bre Rio, avil ta do pe los in te res ses po lí ti cos que te es po li am e não tede i xam se não esse ar de ve lha pa lha ça da e bê ba da...” en quan to Nel sonRo dri gues des cre via a mu dan ça como “a mais bur ra e em po bre ce do radas ex pe riên ci as hu ma nas”. Eu guar do uma char ge pu bli ca da no Cor re ioda Ma nhã, re pre sen tan do um mon tão de ru í nas, per cor ri do por ar queó -lo gos da fu tu ro lo gia, um dos qua is men ci o na ao ou tro a des co ber ta dosi nal do que ha via sido, sé cu los an tes, a ca pi tal do Bra sil... O ódio de al -guns ao em pre en di men to pro vo ca va es ses de sa ba fos de mau gos to, àsve zes es tú pi dos. As ale ga ções, ar gu men tos, acu sa ções e ca lú ni as eramre al men te ab sur das. Di zia-se que, em Bra sí lia, não ha via pás sa ros, osqua is evi ta vam voar so bre o lo cal pes tí fe ro, e que o cli ma era tão secoquan to o do de ser to do Sa a ra. Mu i tos ar qui te tos acre di ta ram nis so, semse dar con ta que, no ve rão, são as chu vas tor ren ci a is e o cli ma às ve zestão úmi do quan to o de Pe tró po lis. Afir ma va-se ain da que todo o ma te ri alde cons tru ção era trans por ta do de avião. Era um ar gu men to iló gi co eisque, pelo me nos, foi ne ces sá rio car re gar de ca mi nhão um vo lu me apre -ciá vel de bri ta e ci men to para co brir a lon ga pis ta do ae ro por to, an tesque qual quer avião pu des se pou sar no lo cal. Na ver da de, o pri me i rogran de tra ba lho ro do viá rio de JK con sis tiu, pre ci sa men te, em as fal tar asjá exis ten tes e pre cá ri as es tra das de ter ra que li ga vam Belo Ho ri zon te aTrês Ma ri as, João Pi nhe i ro, Pa ra ca tu, Cris ta li na e Lu ziâ nia, já nos li mi tesdo DF. A mais ri dí cu la de to das as con tes ta ções era que, no solo ári dodo cer ra do, com um cli ma des ses, ne nhu ma ár vo re cres ce ria... Enfim, as mais gro tes cas ob je ções ser vi am ape nas para pro var que o bra si le i ro cos -tu ma dar um con te ú do má gi co às pa la vras. So mos cré du los e su ges ti o ná -ve is, tal vez por ser mos me ri di o na is ou ha ver mos so fri do sé cu los decon ta to com mou ros, bér be res e ára bes; qual quer con to das Mil a UmaNo i tes re ce be pron ta aco lhi da, se ade qua da men te ve i cu la do pela te le vi -são ou em dis cur so re tó ri co (“Vos sa Exce lên cia me per mi te um apar te,nhe nhe nhém...”).

Bra sí lia tam bém so bre vi veu às in tem pé ri es da agi ta da po lí ti cabra si le i ra. Assim, a cri se dos anos 1961-1964 se ma ni fes tou por um qua seaban do no da nova me tró po le. O Pre si den te Jâ nio Qu a dros de tes ta va aci da de onde de via mo rar, iso la va-se no Pa lá cio da Alvo ra da com seu

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copo de whisky, ma tu tan do sua mal fa da da cons pi ra ção. Este foi o mo -men to mais gra ve para a nova ca pi tal. Jâ nio, sen ta do em seu pa lá cio,en tor pe ci do e en te di a do, per deu todo con tato com as fa mo sas “mas sas”que hip no ti za ra, de modo que a mis te ri o sa ten ta ti va de gol pe de es ta do,em agos to de 61, ter mi nou em ri dí cu la cha ra da. Os dias que se se gui ram fo ram dra má ti cos. Pela pri me i ra vez em nos sa his tó ria re pu bli ca na, nãofoi a guar ni ção do Rio, o Pri me i ro Exér ci to da Vila Mi li tar, que teve aúl ti ma pa la vra quan do de uma cri se cons ti tu ci o nal – sen do o con tra-gol pe de no vem bro de 55, com al guns tan ques sob as or dens de Lott e De nis,para as se gu rar a pos se de Ku bits chek, a úl ti ma oca sião em que issoocor reu. A pos se do Pre si den te Gou lart foi ga ran ti da gra ças às for çases ta ci o na das no Rio Gran de do Sul. A mu dan ça era, no en tan to, ir re ver -sí vel e to dos os es for ços da opo si ção, sus ci ta da nos go ver nos pos te ri o -res, re ve la ram-se in su fi ci en tes para de sen ca de ar um mo vi men to sen sí vel de re tor no ao Rio. O des ca la bro eco nô mi co e po lí ti co do go ver no doPTB se guiu en tão seu cur so la men tá vel, pa ra le la men te ao aban do noqua se com ple to da ca pi tal pelo Exe cu ti vo. E de novo, quan do ex plo diuo gol pe de es ta do de 31 de mar ço de 1964, a guar ni ção do Rio foi a úl ti maa se pro nun ci ar. Não é mais no Rio, em suma, que se de ci de a sor te dana ção. Só isso foi um gran de pro gres so.

De um ilus tre mi li tar, um dos mais bri lhan tes do pe río do64-95, o Ge ne ral Octa vio Cos ta, que foi di re tor da Asses so ria Espe ci alde Re la ções Pú bli cas ao tem po do Pre si den te Mé di ci e, pos te ri or men te,Se cre tá rio-Ge ral do Mi nis té rio do Exér ci to, po de mos ci tar a opi niãose guin te, um tan to pes si mis ta, mas que, a meu ver, re su me o sen ti men to co le ti vo da que la épo ca: “Acre di ta mos que já não pa i rem dú vi das so breas van ta gens ge o po lí ti cas da cons tru ção de Bra sí lia, mas há gra ves con -se quên ci as so ci o ló gi cas a as si na lar. Por suas ca rac te rís ti cas de gran deplas ti ci da de ar qui te tô ni ca, por sua pos tu ra tí pi ca de fal so novo rico, porsua pre ten são mais de gran de za, por sua ar ti fi ci a li da de, o novo Dis tri toFe de ral tor nou-se ali e nan te e con tri bu iu para ali e nar da re a li da de na ci o nal mu i tos da que les que, exer cen do o po der em nome do povo, de ve ri amtê-lo sob sua per ma nen te ins pi ra ção. Impõe-se, fi nal men te, re co nhe cerque, ao lado de suas gran des van ta gens, Bra sí lia con tri bu iu para o des -per dí cio, para a os ten ta ção, para o do bra men to das es tru tu ras, para ama cro ce fa lia em to das as áre as do po der es ta tal... Acre di ta mos que o

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po der mi li tar tam bém não fi cou imu ne aos efe i tos no ci vos da mu dan çapara Bra sí lia. A ob ser va ção mais apro fun da da po de ria apon tar uma cer taten dên cia para o au men to das es tru tu ras de di re ção, cres cen do in ces san -te men te e se atro pe lan do em suas atri bu i ções, tal vez al gum des vio datra di ci o nal men ta li da de de aus te ri da de no rumo do des per dí cio e daos ten ta ção, um gos to pela vida so ci al ofi ci al, o com pre en sí vel ape go àsmo ra di as con for tá ve is e às fun ções gra ti fi ca das, al gu ma aco mo da ção,al gum amo le ci men to, al gum co mo dis mo, numa ex pres são mais for te,um cer to abur gue sa men to”.13 Eu po de ria acres cen tar a es ses re pa ros do ilus tre mi li tar que, se é ver da de que no lta ma raty há mais em ba i xa do resdo que ter ce i ros se cre tá ri os em prin cí pio de car re i ra, acon te ce si mi lar -men te que, no Rio, há mais al mi ran tes do que na vi os na es qua dra e, emtodo o Bra sil, mais uni ver si da des do que na Eu ro pa in te i ra, o que nãonos faz, ne ces sa ri a men te, o país mais cul to, rico e po de ro so do mun do.A in fla ção não é só um mal bra si li en se, in sis to!

O Rio não per deu, po rém, par te al gu ma de sua im por tân -cia, des de a par ti da do Go ver no Fe de ral. Deve ter ga nho, sal vo noter re no da cri mi na li da de, eis que os mem bros do Go ver no Fe de ralsa bem se de fen der con tra o rou bo e o as sal to. A Ci da de Ma ra vi lho safoi sim ples men te li be ra da de al gu ma por ção (mui pe que na) de seuimen so peso bu ro crá ti co – o Di nos sa u ro ain da con ser van do seu rabo e as pa tas tra se i ras mer gu lha das na Gu a na ba ra. Hoje, é o es ta do doRio de Ja ne i ro o se gun do da fe de ra ção em po pu la ção e po der eco nô -mi co (com 17% do PIB na ci o nal). Con ci li ar tra ba lho e pra zer é ago ra o pro ble ma mag no dos ca ri o cas. So mos mes tres, aliás, nes sa arte ad -mi rá vel – o que mu i to nos hon ra nes ta épo ca cru el que des co bre osli mi tes hu ma nos da ci vi li za ção in dus tri al. E a cri se da cri mi na li da de e cor rup ção, ali men ta da por uma su ces são de pés si mos go ver nos de -ma gó gi cos, não foi cer ta men te pro vo ca da pela mu dan ça. Não há re -la ção ób via de ca u sa a efe i to en tre os dois even tos.

A ou tra Idéia Do mi nan te de Bra sí lia – que é a de cri ar umins tru men to ar ti fi ci al do Esta do para des vi ar, em di re ção ao Oes te, oflu xo das mi gra ções in ter nas que se der ra mam para o Sul, à pro cu ra detra ba lho e de me lho res con di ções de vida – foi ru de men te pos ta à pro -va. Essa idéia nas ce ra, como se sabe, ao tem po da Incon fi dên cia Mi -

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13 Em Po lí ti ca e Estra té gia, vol. IV, n º 1, 1986.

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ne i ra, e não vou re pe tir aqui a his tó ria ul tra co nhe ci da da que les que asus ten taram.14 Qu a tro dé ca das são su fi ci en tes para jul gar os efe i tos, po -si ti vos ou ne ga ti vos, da trans fe rên cia da ca pi tal so bre o as pec to fun da -men tal do de sen vol vi men to bra si le i ro. O tem po cor reu o su fi ci en te para re ti rar da ci da de o ar ti fi ci a lis mo que, du ran te o lon go pe río do pre pa ra -tó rio, so freu como pe cha prin ci pal. Foi o pró prio rá pi do cres ci men tode mo grá fi co da ci da de o que va lo ri zou e cer ti fi cou a jus te za do pro je tomu dan cis ta. Bra sí lia pos sui, na data em que es cre vo, seis ve zes mais ha -bi tan tes do que ima gi na do nas mais ex tra va gan tes fan ta si as de seus cri a -do res. A po pu la ção imi gran te vo tou com os pés, como se diz...

Evi den te men te a res pos ta, nes te caso, não é fi nal, mas po de -mos cons ta tar, pela com pa ra ção dos re cen se a men tos de 1960, 1970,1980 e 1991, um mo vi men to de mo grá fi co pon de rá vel no sen ti do dedes vi ar a vaga que se pre ci pi ta para São Pa u lo e ou tros es ta dos prós pe rosdo Bra sil me ri di o nal. Os ma pas de mo grá fi cos men ci o na dos aci ma in di -cam que a ten dên cia exis te. Em 40 anos, a po pu la ção do Dis tri to Fe de ralpas sou de 0 a qua se três mi lhões ou mais, com o en tor no go i a no ten dosido igual men te afe ta do como de mons tra o cres ci men to es pan to so deGo iâ nia por exem plo. Qu i nhen tas mil pes so as vi ve ri am atu al men te naárea do Pla no Pi lo to e nos ba ir ros ime di a tos, de clas se mé dia ou alta, em tor no do lago, e sem re la ci o na men to ne ces sá rio com o Go ver no. A ci -da de bem aco lhe os apo sen ta dos, es ti mu la o co mér cio e atrai os pro fis -si o na is li be ra is, ex tra va san do o res to numa sé rie de “ci da des sa té li tes”,“nú cle os ban de i ran tes” e “can dan go lân di as”, con ce bi das para ab sor vero ex ce den te de tra ba lha do res e pro fis si o na is de toda es pé cie que, aosmi lha res, imi gram cada ano. A in fluên cia cul tu ral e os re cur sos edu ca ci o -na is e mé di cos de Bra sí lia se fa zem sen tir, não so men te so bre o hin ter -land do nor te de Mi nas Ge ra is e sul de Go iás, mas so bre um raio demais de dois mil qui lô me tros, até o Ama zo nas e o Nor des te. A po lí ti ca

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14 Li mi to-me a re cor dar, a fim de cor ri gir uma dis tor ção ge ra da por pre con ce i toside o ló gi cos, o pa pel que de sem pe nhou Plí nio Sal ga do na di vul ga ção do ide al damar cha para o Oes te. Em 1933, o lí der da re cém-fun da da Ação Inte gra lis ta Bra si -le i ra pu bli cou seu li vro A Voz do Oes te e, anos mais tar de, o Pre si den te Jus ce li noKu bits chek re co nhe ce ria o pa pel do po lí ti co e es cri tor na ci o na lis ta ca tó li co e au to -ri tá rio, numa car ta em que, se re fe rin do a Bra sí lia, acen tua que a mu dan ça de Ca pi -tal “fôra pres sen ti da des de o sé cu lo XVIII e pre pa ra da pelo gri to que você, Plí -nio, deu, con cla man do to dos para a mar cha rumo Oes te”...

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ha bi ta ci o nal do Go ver na dor Ro riz foi cri ti ca da por ten der a es ti mu laressa mi gra ção para as ci da des sa té li tes, atra vés da con ces são gra tu i tade ter re nos a an ti gos re si den tes.15 Mas o que cres ce na Ce i lân dia ouem Sa mam ba ia – in sis to nes te ar gu men to – é o mes mo que de i xa deinun dar as fa ve las de ou tras gran des ci da des me ri di o na is do país. Dequal quer for ma, o mo vi men to mi gra tó rio é ine vi tá vel. A não ser quecriás se mos um sis te ma de pas sa por te in ter no, como nos pa í ses es ta li -nis tas, não pa re ce fac tí vel co i bi-lo. O Bra sil é uma de mo cra cia, ca rac -te ri za da pela im pu ni da de e pela anar quia, não é um Gu lag tro pi calcomo aque le que se cri ou em Cuba. Nes te país, o trân si to (por en -quan to) é li vre, a co mu ni ca ção e o trans por te igual men te – e es pe re mosque as sim per ma ne çam.

De ti da no prin cí pio da dé ca da de 60, a fe bre da cons tru -ção vol tou a agi tar Bra sí lia, acen tu an do-se a par tir de 1970 com atrans fe rên cia do Cor po Di plo má ti co e con ce den do à nova ca pi talum pou co de gla mour que ain da lhe fal ta. Nos anos 90, nova ex pan -são. A pró pria “cri se” dos anos 80 pou co de te ve o cres ci men to e,ao fi nal do sé cu lo, gra ças ao Pla no Real do Pre si den te Fer nan doHen ri que Car do so, que fi nal men te res ta be le ceu o equi lí brio eco nô -mi co, bem como a re du ção do con tro le es ta tal so bre a pro du ção e o co mér cio, o cres ci men to da in dús tria au to mo bi lís ti ca en cheu o trá -fe go da ci da de com um nú me ro de ve í cu los ma i or do que a po pu la -ção ori gi na ri a men te cal cu la da para a Ca pi tal. No mo men to em quees cre vo, a in dús tria de cons tru ção se ace le ra, jun to com a pes te daes pe cu la ção imo bi liá ria cuja tra di ção mal sã tem afe ta do ou trasgran des me tró po les bra si le i ras. Cri ou-se um con fli to dos cons tru to -res e es pe cu la do res com os am bi en ta lis tas e ur ba nis tas que ten tampre ser var o tra ço ori gi nal da vi são de Lú cio Cos ta de uma ci da deapra zí vel, com o me lhor ní vel de “qua li da de de vida” da na ção. É lí -ci to as sim ad mi tir que, no iní cio do novo mi lê nio, es te ja a ci da dede fi ni ti va men te con so li da da como uma das prin ci pa is me tró po lesda na ção, ca mi nhan do para o ter ce i ro lu gar em po pu la ção e trá fe goaé reo.

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15 É ver da de que essa ge ne ro si da de es ta tal é ge ral men te len ta: meu ca se i ro le voude zes se is anos para con se guir um lote no Ri a cho Fun do, pró xi mo ao Nú cleoBan de i ran te da ca pi tal.

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∗ ∗ ∗A con cep ção de Bra sí lia como “ca pi tal ro do viá ria” ex pri -

miu-se, ao tem po do Pre si den te Ku bits chek, pela cons tru ção da Be -lém-Bra sí lia. O gran de he rói des bra va dor, ad mi rá vel ban de i ran te mo -der no das es tra das, foi Ber nar do Sa yão, que sa cri fi cou a vida nes seem pe nho. O pro je to flo res ceu du ran te a pre si dên cia de Mé di ci, empro je tos que aca ba ram, aliás, dan do em co i sa al gu ma, no pro pó si tode abrir à ocu pa ção do ho mem ci vi li za do o mais vas to va zio de mo -grá fi co ha bi tá vel, a úl ti ma “fron te i ra hu ma na” do pla ne ta – con si de -ran do evi den te men te que o Ca na dá, a Rús sia e a Aus trá lia dis põemde áre as ma i o res, po rém me nos adap tá ve is à ocu pa ção ur ba na. Umarede ro do viá ria de al guns mi lha res de qui lô me tros, con ce bi da comoins tru men to de co lo ni za ção, foi ini ci a da a par tir do foco pla nal ti noao en con tro das fron te i ras vi zi nhas, e ao lon go das três prin ci pa is ba -ci as hi dro grá fi cas da na ção. Isso per mi te a um ar gen ti no al can çar Be -lém e Ma na us por es tra da as fal ta da, uma dis tân cia como a de Ma drida Mos cou. O con ti nen te sul-ame ri ca no está sen do in te gra do do ladodo Atlân ti co, gra ças a Bra sí lia.

A con clu são inar re dá vel é que, na cons tru ção da nova ca pi tal,o item ro do viá rio no Pla no de Me tas de JK e a ins ta la ção de uma in dús -tria au to mo bi lís ti ca, que es ti mu lou de modo de ci si vo o sur to de sen vol -vi men tis ta das duas dé ca das do “mi la gre”, 1955/1975 – fa zem par te deum todo que pode ser de fi ni do em ter mos ge o grá fi cos. Foi o Pla nal toCen tral o prin ci pal be ne fi ciá rio, fi can do o país fi nal men te in ter li ga dopor ter ra, com um efe i to gi gan tes co so bre o po ten ci al agrí co la e pas to ril da eco no mia. Tive a sen sa ção fí si ca da imen sa trans for ma ção re a li za dase com pa ro o pa no ra ma da área en tre Belo Ho ri zon te e Bra sí lia, 700 km de es tra da, que tra fe guei pela pri me i ra vez em 1965, quan do se po diaatra ves sar uma hora de cer ra do, cem qui lô me tros sem ver alma viva ouape nas um pa u pér ri mo bar ra co de pau-a-pi que – e o es pe tá cu lo des semes mo per cur so trin ta anos de po is. Tudo está ago ra cul ti va do, be lasfa zen das su ces si vas, pos tos de abas te ci men to, res ta u ran tes, vi las emcres ci men to e mes mo ci da des in te i ra men te no vas como Ca ta lão, Cris ta -li na ou Três Ma ri as. Estra da – Au to mó vel – Bra sí lia – é o Pla nal to Cen tral que pros pe ra! Em cer to sen ti do, essa ob ses são au to mo bi lís ti ca que to mou con ta do bra si le i ro e está trans for man do o país em um dos prin ci pa is

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pro du to res de ve í cu los do mun do, tem como con tra par ti da ne ga ti va oúni co erro que jul go se deva atri bu ir a Lú cio Cos ta em seu pro je to, re pi to, o de não ha ver in te gra do ao Pla no um sis te ma de trans por te co le ti vo,rá pi do so bre tri lhos.

Lon ge de mim a in ten ção de cri ti car os cons tru to res da ci da dee mais lon ge ain da o de le van tar qual quer res tri ção à con cep ção sin gu lar de Lú cio Cos ta. O crí ti co age fre qüen te men te como um eu nu co, aque leque sabe como fa zer mas não pode... O Pla no Pi lo to e o Re la tó rio que o acom pa nha são pro dí gi os de sim pli ci da de e bom sen so, con den sa dos na ex pla na ção da idéia-mes tra que de ter mi nou todo o de sen vol vi men topos te ri or da ci da de. As fa lhas co me ti das e os ví ci os que jus ti fi cam mu i tasdas que i xas pa re cem-me ser o re sul ta do, qua se in va riá vel, de de tur pa -ções da ori en ta ção ori gi nal. É exem plo cla mo ro so o caso das áre as co -mer ci a is, mal es pa lha das pela W-3, Nor te a Sul, pe los se to res co mer ci a isdas Su per qua dras e por vá ri os se to res ou áre as in dus tri a is. Co me ça ram a sur gir pe que nas áre as co mer ci a is nas Qu a dras re si den ci a is em tor nodo Lago, im pos tas pela con ve niên cia na tu ral. E os gran des shop pings sees tão li vre men te es ten den do, se gun do os re qui si tos da con cor rên cia econ su mo.

Mais gra ve é o pro ble ma das cha ma das “in va sões”. Tí pi ca dain co e rên cia bra si le i ra é a Ce i lân dia. O nome re fle te uma ex tre ma iro nia.O ba ir ro, que con ta hoje já mais de um mi lhão de ha bi tan tes, di zem, foies ta be le ci do pela Co mis são para Erra di ca ção das Inva sões (CEI). Opro pó si to era evi tar algo como as fa ve las do Rio e S. Pa u lo. Mas, com otem po, trans for mou-se na ma i or fa ve la do Dis tri to Fe de ral. Para as pes -so as que gos tam mu i to de in vo car o slo gan pér fi do de “jus ti ça so ci al”,uma vi si ta à Ce i lân dia é bas tan te ins tru ti va. Re la ti va men te aban do na dape los ad mi nis tra do res, in clu si ve do PT, a área re gis tra o ma i or ín di ce decri mi na li da de e po bre za da Ca pi tal, em fla gran te des men ti do à pre ten sãodos cri a do res do Pla no de evi ta rem, ter mi nan te men te, os gue tos e adis cri mi na ção eco nô mi ca atra vés de um zo ne a men to que mis tu ras se asclas ses so ci a is. Ao mes mo tem po, a per mis si vi da de tão ca rac te rís ti ca denos sa po lí ti ca pa tri mo ni a lis ta e cor po ra ti vis ta tem per mi ti do o flo res ci -men to de aglo me ra ções ilí ci tas, su jas, fe i as, hi gi e ni ca men te de fi ci en tes edes pro vi das de tí tu los le ga is em áre as no bres da ci da de, como jun to àAve ni da das Na ções, o ba ir ro di plo má ti co; na Vila Pla nal to, mu i to

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pró xi ma ao pró prio cen tro do Po der go ver na men tal, a Pra ça dos TrêsPo de res; e jun to à re pre sa do Pa ra noá. Uma vez ins ta la das, a re mo çãodes sas “in va sões” tor na-se po li ti ca men te in viá vel...

Ou tro pro ble ma: o de não ha ver sido de sen vol vi do des de oiní cio, como de se ja va Lú cio Cos ta, o “co ra ção” da ci da de dos dois la dos da Pla ta for ma Ro do viá ria. Bra sí lia ain da ca re ce de sua “ter ce i ra di men -são” – a do cen tro das ar tes e di ver ti men tos, a área gre gá ria cen tral, tãoim por tan te no pro je to ori gi nal e con ce bi da com o pen sa men to na an ti ga rua do Ou vi dor ca ri o ca, nas tra ves sas de Ve ne za, no Pic ca dily Cir cuslon dri no, no Ti mes Squa re no va yor ki no, no Champs-Elysées pa ri si en se,no Strö get de Co pe nha gue, nos ba za res das ci da des ára bes e em mu i tasou tras ar té ri as cí vi cas e po pu la res que de co ram ci da des bra si le i ras maisan ti gas. Cu ri ti ba, por exem plo, so lu ci o nou es tu pen da men te esse re qui si tode uma urbs de cen te men te pla ne ja da e ad mi nis tra da. Se ria a área es pe ci al -men te re ser va da aos pe des tres, esse ser tão des pre za do em nos sa Ca pi tal su pos ta men te de mo crá ti ca. As pe que nas ruas de tu ris ta e tran se un teoci o sos, es tre i tas, ale gres e mo vi men ta das, com res ta u ran tes, ci ne mas,an ti quá ri os, lo jas de arte, bu ti ques, ca ba rés, etc. Esses cen tros se es tãode sen vol ven do es pon ta ne a men te nos su per mer ca dos. É la men tá vel,pois a idéia ori gi nal de Lú cio Cos ta era de um ba ir ro de di ver sões noes ti lo tra di ci o nal, com ru e las ao ar li vre e mu i to mais pi to res co e agra -dá vel do que qual quer Park shop ping. Uma área ide al para esse ba ir ro“boê mio” se me afi gu ra ser o vas to es pa ço va zio (sem pre ame a ça do de in va são ilí ci ta) na pon ta su des te da Asa Sul, en tre a Ave ni da das Na çõese o fim da L-2 Sul.

Evi den te men te, não é fá cil pla ne jar numa épo ca como a nos sa,de rá pi das trans for ma ções tec no ló gi cas. Belo Ho ri zon te, Can ber ra eDe lhi fo ram no vas ca pi ta is de se nha das já no sé cu lo XX, mas an tes doau to mó vel. Os cri a do res de Bra sí lia ima gi na ram uma me tró po le ro do -viá ria, mas eis o pa ra do xo: qua ren ta anos de po is já se vê que não fo rampre vis tas, nem a nos sa atu al ex plo são au to mo bi lís ti ca, nem a era mu i topró xi ma em que o au to mó vel, pelo me nos em suas con di ções atu a is, setor na rá ob so le to – subs ti tu í do pelo trans por te co le ti vo rá pi do e pelohe li cóp te ro. É im per doá vel que, num país sub de sen vol vi do, ca ren te dere ser vas im por tan tes de hi dro car bo ne tos, não se te nha des de o iní ciopre pa ra do a ca pi tal para o me trô de su per fí cie – o mais de mo crá ti co, o

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mais prá ti co e efi ci en te, o me nos po lu i dor de to dos. Por que essa exi gên ciade todo o mun do pos su ir um ve í cu lo pró prio? E vol to a le van tar a ques tão: por que não se pen sou em trens me tro po li ta nos, como o fi ze ram al guns dos par ti ci pan tes do Con cur so de 1956, tais como M. M. Ro ber to e aCons tru téc ni ca, que po di am ha ver sido fa cil men te tra ça dos, bas tan doini ci al men te duas li nhas para so lu ci o nar o pro ble ma? Por que não seima gi nou cal ça das ro lan tes ou tri lhas de bi ci cle tas, que exis tem em mu i tasci da des eu ro péi as? Lú cio Cos ta su ge riu, pos te ri or men te, um mo no tri lho,li gan do, nas ex tre mi da des do DF, Ta gua tin ga a So bra di nho. Per cor ren doas duas asas da ci da de, li gan do-as ao Eixo mo nu men tal e, pos te ri or men te, às ci da des-sa té li tes do lado Nor te e do lado Sul, à me di da que fos semsen do cons tru í das, tal sis te ma res pon de ria ao con ce i to de “Jus ti ça so ci al”,ter mo tão bo ni to para cam pa nha ele i to ral, mas tão pre cá rio quan do setra ta de exe cu ção prá ti ca. No mo men to em que es cre vo, ini ci a do commu i ta fan far ra, ar re gi men ta-se o me trô en tre as fa mo sas obras não con -clu í das de todo o vas to ter ri tó rio na ci o nal, as qua is, pas mem to dos, avul -tam num to tal de des pe sa su pe ri or ao mon tan te da dí vi da ex ter na. Em2001, ain da está por ter mi nar.

Num país po bre onde só co me ça o ho mem da clas se mé dia aas pi rar à pos se de um car ro, eis que o pe des tre foi es que ci do. Não sóes que ci do, mas hu mi lha do, per se gui do, atro pe la do, mor to. Isso não obs -tan te as pro mes sas de Lú cio Cos ta de que o au to mó vel não se ria mais oini mi go mor tal do ho mem. Bra sí lia é uma ci da de sem cal ça das. As pou -cas que hoje exis tem mais se as se me lham a pi ca das, che i as de bu ra cos emon tu ros, in ter rom pi das por an da i mes ou pis tas de alta ve lo ci da de. Ogran de or gu lho da No va cap foi ser uma ci da de sem si na is lu mi no sos.Era um tabu. O ca pri cho ra pi da men te se tor nou gro tes co em vir tu de da ina ta in dis ci pli na dos mo to ris tas tu pi ni quins. Os si na is de trá fe go sópos te ri or men te co me ça ram a apa re cer, por vol ta dos anos 90. Fun ci o ná riopú bli co obri ga do a fre qüen tar, em cer ta épo ca, dois Mi nis té ri os emla dos opos tos do Eixo Mo nu men tal, tive que de sis tir do sa u dá vel pas se iode dez mi nu tos, pois do con trá rio aca ba ria, ou no Hos pi tal de Base, ouno Cam po da Espe ran ça. Como há pou cas pas sa re las, o pe des tre é con -de na do a uma cor ri da de vida e mor te con tra os Fit ti pal di e os Se nasgo i a nos que se pre ci pi tam a cem ou 140 qui lô me tros por hora. Aliás, aspas sa re las e as pas sa gens sub ter râ ne as (ra ras são es tas lim pas, se gu ras e

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sem che i ro de uri na) são pou co uti li za das por que, no Bra sil, “ma cho não tem medo de au to mó vel”... A de su ma ni da de con tra o pe des tre se es ten deao pró prio mo to ris ta. O pla ne ja dor-mor evi den te men te não po dia pre ver, por mais oti mis ta que fos se, essa ex plo são – se te cen tos mil ve í cu los,mais do que o nú me ro es ti ma do, em 1956, para a po pu la ção da NovaCa pi tal, do mes mo modo como não é res pon sá vel por um dos maisal tos ín di ces de aci den tes de trá fe go do mun do. Já men ci o na mos, maisaci ma, essa con se qüên cia do de sen vol vi men to bra si le i ro. A bem daver da de, acen tu e mos, po rém, que na mi nha ex pe riên cia é Bra sí lia, atu al -men te, a úni ca ci da de do País dos Pa pa ga i os onde o Có di go de Trân si toestá ti mi da men te fin can do ra í zes, a pon to de co me çarem as pas sa gensde pe des tres (“ze bras” como são cha ma das em ou tras ter ras) a se remres pe i ta das pe los au to mó ve is.

O es té ti co tam bém do mi na o fun ci o nal no de se nho ro do viá rio,como nos cha ma dos “ba lões” que fre qüen te men te são elíp ti cos, em vezde re don dos, vi o lan do uma re gra co me zi nha de en ge nha ria de es tra dasse gun do a qual o raio de uma cur va se deve man ter cons tan te. O ba i la dodos au to mó ve is em tre vos, bam bolês, ba lões e vi a du tos é re al men tefas ci nan te e de efe i tos fu tu ris tas. Vira e tor na, e dá a vol ta, e con tor na, e vol ve, e cir cun da – uma ma ra vi lha! Mas é di fí cil dis ci pli nar o pan de mô nio de mo to ris tas agres si vos e mal tre i na dos, ori un dos dos Gran des Ser tões, Ve re das, do cer ra do. A im po si ção do Có di go Ro do viá rio ocor re comafli ção, mas acon te ce. Viva os “par da is” ele trô ni cos!

Evi den ci am-se ou tros as pec tos de um pla ne ja men to cla u di -can te no de ta lhe. Impres si o na, por exem plo, a mo no to nia ar qui te tô ni ca,o que tan to in flui so bre a psi que do mo ra dor. Para um povo que se quer ima gi na ti vo e exu be ran te, o re sul ta do é pí fio. Pa re ce que o que se de se jaé im por a ra ci o na li da de ge o mé tri ca na base de um igua li ta ris mo so ci a lis taque es pan ta, mes mo no mun do or wel li a no de 1984. Oscar Ni e me yerpro di ga li zou sua ge ni a li da de plás ti ca nas cur vas sen su a is do Alvo ra da,no sim bo lis mo mís ti co da Ca te dral, na so bri e da de mo nu men tal dosar cos do Ita ma raty. Mal ra ux, es tu pe fa to, pro cla mou a re in ven ção daco lu na que a ar qui te tu ra “mo der na” ha via es que ci do. Admi to que ossol da di nhos ver des, en fi le i ra dos de cada lado do Eixo Mo nu men tal para de fen der os Mi nis té ri os, con tri bu am para a har mo nia e a be le za queeno bre cem o co ra ção ofi ci al de Bra sí lia. Mas por que di a bo!, me per -

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gun to ou tra vez, a úni ca for ma ad mis sí vel para todo o res to da ci da de –edi fí ci os co mer ci a is, ban cos e blo cos re si den ci a is - seja o da ca i xa defós fo ros, em pé, de i ta da ou vi ra da de lado? As úni cas ex ce ções queco nhe ço são o edi fí cio da Ca i xa Eco nô mi ca e a Pro cu ra do ria-Ge ral daRe pú bli ca. Será que as op ções aber tas ao ar qui te to co mum, den tro dosli mi tes das exi gên ci as fun ci o na is, são tão po bres? Não é isso, en tre tan to, o que nos en si na Lú cio Cos ta quan do, num en sa io fa mo so, ob ser va que, den tro dos li mi tes de um pro ble ma fun ci o nal, se abrem mu i tas op çõeses té ti cas ao bom ar qui te to.

A es té ti ca exi ge o vi dro que dá trans pa rên cia e le ve za, con -for me pos tu la do con sa gra do da ar qui te tu ra do cha ma do “es ti lo in ter -na ci o nal”. Mas o bri se-so le il pode ser igual men te es té ti co e ex pres si voda ve ne ra ção re li gi o sa pe los ma nes de Le Cor bu si er ou Mies van derRobe. Num cli ma tro pi cal como o nos so, os gran des edi fí ci os en vi -dra ça dos e mal are ja dos vi ra ram es tu fas, obri gan do ao use dis pen di o -so e ines té ti co de apa re lhos ex ter nos de ar-con di ci o na do. No gran di -lo qüen te “Pa lá cio do De sen vol vi men to”, cer ta vez que lá en trei, o arcon di ci o na do não fun ci o na va por que o sis te ma elé tri co, so bre car re -ga do, es tou ra ra e os ele va do res pa ra ram. A tem pe ra tu ra atin giu, noscor re do res, 50° cen tí gra dos. Que iro nia! Os que não dis põem depres tí gio ofi ci al, têm mes mo de suar o ca lor ar den te des se pre con ce i -to da Ba u ha us que, afi nal de con tas, cons tru ía para a frí gi da Eu ro panór di ca onde pre ci o sa é a luz so lar. Edi fi ca da so ci a lis ti ca men te paraser uma aglo me ra ção ide al sem clas ses, a ci da de mu i tas ve zes ape nasuni for mi za por ba i xo. A casa ba ra ta não tem, ne ces sa ri a men te, queser hor ren da. Bas ta um pou co de ima gi na ção por par te do ar qui te to.Nem o w. c. dos em pre ga dos tão mi nús cu lo que a por ta bata na tam pado tro no, obri gan do a gor da co zi nhe i ra a nele sen tar-se de lado. Pa ra -fra se an do Ma da me Ro land, eu ex cla ma ria, con tri to, “Ó ar qui te tu ramo der na, em teu nome quan tos cri mes se co me tem!”

Bra sí lia tem sido acu sa da de fria, mor tal, de ses pe ran te. Todaci da de nova as sim o é. E, como já no ta mos, a fal ta da “ter ce i ra di men -são”, gre gá ria e co mu ni tá ria, de que se que i xa va Lú cio Cos ta, re sul ta deum erro de exe cu ção. Mas, as sim mes mo, a au sên cia de ca lor hu ma no ede acon che ga men to e esse sen ti men to de trans plan ta ção ar ti fi ci al dasmas sas que são tri tu ra das na “má qui na de mo rar” (a ex pres são é de Le

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Cor bu si er), são con se qüên ci as dos pre con ce i tos ide o ló gi cos im pos tos àclas se mé dia. Uma per gun ta en tão se im põe: será que os ri cos, que mo ramna área do Pla no Pi lo to, es tão pre pa ra dos para esse am bi en te de ca rá teror wel li a no que os ar qui te tos con ce be ram numa ana crô ni ca an te vi são de1984? Não será esse meio, ar ti fi ci al men te ar re gi men ta do, de gue tospro fis si o na is, os par la men ta res num blo co, os ge ne ra is em ou tro, osdi plo ma tas num ter ce i ro, os juí zes na que lou tro, os ban cá ri os nes tasu per qua dra XX e os fun ci o ná ri os do Mi nis té rio da Agri cul tu ra na YY,o que ex pli ca ria, em par te, a an gús tia de Bra sí lia? Tal vez seja ver da de i raa qua li fi ca ção do crí ti co ita li a no Bru no Zevi, que achou a ci da de kaf ki a naquan do a vi si tou há 40 anos. Cu ri o sa men te, a gen te mais mo des ta, opro le tá rio e o can dan go fo ram re fu ga dos para as ci da des sa té li tes onde,em suas ca si nhas e bar ra cos, num am bi en te me nos “so ci a lis ta” po rémbem mais bra si le i ro, go zam dos pra ze res do in di vi du a lis mo bur guês...Mas acho gran de men te exa ge ra da essa crí ti cas, e quem não gos ta de vi -ver em “máqui nas de mo rar” sem pre se pode trans fe rir para as pe nín su -las do ou tro lado do lago... Tais dis tor ções são cor ri gí ve is com o tem po,pois só a ex pe riên cia e a páti na do tem po é que ama ci am e aque cem oscon tor nos. Roma é tão de li ci o sa men te aco lhe do ra por que três mil anosde his tó ria aman sa ram suas ru í nas de már mo re e al ve na ria cor-de-rosa.Com seus dez mi lhões de ha bi tan tes, é Lon dres um con jun to apra zí velde enor mes al de i as que se in te gram umas nas ou tras, não digo numa das mais be las, mas, cer ta men te, a mais apra zí vel me tró po le do mun do. Oin glês é prag má ti co, gos ta de seu con for to, não pla ne jou ma jes to sa egi gan tes ca men te como o Pa ris de Ha us mann – mas nun ca de i xou de ori en -tar e adap tar o cres ci men to da ci da de aos re qui si tos da con jun tu ra e àscon di ções da or dem es pon tâ nea li be ral. Con cluo a crí ti ca des te se toracen tu an do que a ju ven tu de que mora em Bra sí lia, e não obs tan te aau sên cia de pra ia, cos tu ma ado rar a ci da de.

Para cor ri gir a bru tal fri e za ur ba na ha ve ria o re cur so ime di a toda ar bo ri za ção ou do que se cha ma, mui apro pri a da men te, de “ur ba ni -za ção”: plan tar gra ma dos, can te i ros, so bre tu do ár vo res e ala me das parapas se ar. Per cor ram uma das qua dras ur ba ni za das, como a SQS 114 porexem plo, e ve re is re a li za do o ide al ex pres so de Lú cio Cos ta que se ins pi rou, ori gi na ri a men te, no seu pró prio Par que Gu in le, em La ran je i ras, no Rio.Pou cos fo ram os pre fe i tos – Set te Ca ma ra, Plí nio Can ta nhede, Ro riz –

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que se de di ca ram sin ce ra men te ao es for ço de hu ma ni zar a as pe re za pelo re cur so tão sim ples da ve ge ta ção Os exe cu to res do Pla no vi o la ram aí acon cep ção fun da men tal do ur ba nis ta, vi o la ção que não se ex pli ca pormo ti vos de or dem fi nan ce i ra, mas pela idi os sin cra sia pre da tó ria dobra si le i ro mé dio que de di ca uma ge ne ra li za da hos ti li da de à ár vo re. Emen tre vis ta ain da vá li da à re vis ta Man che te, de agos to de 1974, Lú cio Cos ta apre sen ta uma lis ta ex ten sa das co i sas que ain da es tão por fa zer em Bra sí lia– e a cur to pra zo! Ter mi na a lis ta com o con se lho: ar bo ri zar, ar bo ri zar,ARBORIZAR! Vin te e cin co anos não são mu i tos para que cres çam asár vo res! Nos sos ne tos te rão, um dia, a opor tu ni da de de opi nar so bre oque foi fe i to e, em ca pí tu los an te ri o res, lem brei a tor ren te opo si ci o nis taque se der ra mou so bre São Pe ters bur go, Was hing ton, Otta wa e Can ber raem oca siões se me lhan tes..

Pa ra le la men te aos de fe i tos, in cor re ções e in su fi ciên ci as deta len to de de se nhis tas a ad mi nis tra do res, há os des vi os ori un dos de uma con cep ção su pers ti ci o sa, ex tre mis ta e fa ná ti ca. Bra sí lia ofe re ce o qua dro de uma ci da de kaf ki a na em vir tu de, pre ci sa men te, dos pro ble mas desim ples co mu ni ca ção no que se pre ten dia ul tra car te si a no. À pri me i ravis ta tudo pa re ce sim ples, de uma sim pli ci da de apo lí nea como a doPart he non – tal qual a do Re la tó rio de Lú cio Cos ta: dois ei xos, um ei xão mo nu men tal, se to res es pe ci a li za dos, duas asas re si den ci a is, 120 su per -qua dras to das si mé tri cas e tudo nu me ra do. Mas quan do se vive e en trano por me nor, co me çam as frus tra ções. A gen te se per de nos su búr bi os,nas ci da des sa té li tes, até mes mo nas pis tas cen tra is, ver da de i ros la bi rin tosque nem Te seu, ar ma do com o fio que Ari ad ne apa i xo na da lhe ofe re ceu,se ria ca paz de des trin çar. Um dos ma i o res en tu si as tas de Bra sí lia e oma i or ar tis ta do de se nho in dus tri al bra si le i ro, Alo í sio Ma ga lhães atri bu ía,mui cor re ta men te, a an gús tia que às ve zes se apo de ra do bra si li en se àfal ta de co mu ni ca ção numa ci da de ul tra-ra ci o nal. A fal ta de co mu ni ca çãonão é ape nas de na tu re za so ci al, de vi do à po bre za cul tu ral, à au sên cia de ame nas cal ça das ou pra ças de en con tro e con fra ter ni za ção – como asque Lú cio Cos ta pro je tou. Tal qual em Tó quio, onde as ruas não têmno mes e as ca sas não têm nú me ro, ár dua é a ta re fa de en con trar o en de -re ço pro cu ra do.16 Cabe sa li en tar que Bra sí lia é uma ci da de de con tí nua

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16 Mas em Tó quio, pelo me nos, as de le ga ci as de po lí cia são oni pre sen tes e ser vemtam bém para lo ca li zar os en de re ços.

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mi gra ção, ra zão pela qual si na is ou in di ca ções ade qua das são tan to maisne ces sá ri as. As pla cas exis tem, mas são pou cas e in vi sí ve is à no i te. Nãohá ló gi ca. Ou, por ou tra, a ló gi ca do pla ne ja dor su per car te si a no deve ter sido tão su til, tão re fi na da, tão trans cen den te que a não al can ça mos...Qual novo Cu ru pi ra, o en car re ga do da si na li za ção re ve la um ver da de i rosa dis mo. Mes mo pro vi dos de ma pas, le van ta men to ae ro fo to gra mé tri co,bús so la e com pu ta dor, en con tra mo-nos na di fí cil si tu a ção do ex plo ra -dor Mun go Park, pro cu ran do a de sem bo ca du ra do rio Ni ger, ou Ron -don e Ro o se velt des co brin do seu rio ama zô ni co. O pior é que não hátam pou co a quem in da gar pelo ca mi nho. Se en con tra mos um can dan golo cal, não sa be rá in di car o tra je to an si o sa men te pro cu ra do e, à nos saper gun ta agas ta da “en tão o se nhor não sabe mes mo nada?”, res pon -de rá ri so nho, como na ane do ta: “Não sei nada, não se nhor, mas nãoes tou per di do”...

Nas ci da des sa té li tes o de se jo de com pli car as co i sas e des pis tar o vi si tan te atin ge a ní ve is ver da de i ra men te sa tâ ni cos. Esta mos di an te deum qua dro fu tu ris ta que anun cia as pi o res vi sões de Hux ley ou Orwell.No Gu a rá de mo rei, cer ta vez, uma hora para en con trar uma casa de nº134, Blo co D, Con jun to 10. Não ha via qual quer in di ca ção, nin guémsa bia de co i sa al gu ma, nem o vi zi nho, nem o far ma cêu ti co, nem o jor na -le i ro, nem o po li ci al – e a ló gi ca da dis po si ção dos con jun tos, blo cos eca sas era mais es pes sa do que a dos iga ra pés da Ama zô nia. Ima gi nemmeu hor ror quan do fui ocu par mi nha man são na SMPW (tra du ção doin glês pelo com pu ta dor: Se tor de Man sões Park way)! Com pos to de cen to e tan tos “con jun tos”, com uma mé dia de dez ou doze lo tes dis tri bu í dosem duas dú zi as de “qua dras”, a área co los sal ocu pa uma ex ten são qua seigual à de todo o Pla no Pi lo to . Para si na li za ção, cada qual que se ar ran je!Não adi an ta co lo car pla ca ou si nal par ti cu lar, por que os pos tes elé tri cos, nas en cru zi lha das, já es tão tão so bre car re ga dos quan to os to tem-po les dosín di os ca na den ses.

De qual quer for ma, uma ci da de que se cons tru iu “em rit mode Bra sí lia” não po dia evi tar, sem dú vi da, os in con ve ni en tes dos can te i ros de obras. Mas es tes eram enor me men te agra va dos pela dis pli cên cia mu -ni ci pal. Pa ra í so do Su jis mun do e Éden es tu pen do do Re la xil do – eramlama e en chen te no ve rão chu vo so, po e i ra no in ver no seco, pa pel nogra ma do ver de, lixo nas cal ça das, bu ra co nas pis tas, de tri tos de toda

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es pé cie em cada can to de su per qua dra, imun dí cie en tre os edi fí ci os dose tor co mer ci al... a ra ta za nas oni pre sen tes. Na Eu ro pa oci den tal, emcon tras te, até os re sí du os das obras são em bru lha dos em plás ti cos, ees tes, cu i da do sa men te en co ber tos com ta bi ques – para pre ser var decon ta mi na ção a pu ri ta na lim pe za dos tran se un tes. Eis aí um pon to emque mu i to te mos que nos edu car. Como acen tu a va o slo gan do re gi me mi -li tar, “povo lim po é povo de sen vol vi do”. O pla ne ja men to deve ser con -ce bi do ger ma ni ca men te, indo até às úl ti mas con se qüên ci as em seus por -me no res e aca ba men to. Aca ba men to é an tô ni mo de re la xa men to. Mas está me lho ran do, está me lho ran do, pos so tes te mu nhar e pôr mi nha mão no fogo nos de ba tes com os ca ri o cas, mais fiéis do que eu aos en can tosda Ci da de Ma ra vi lho sa. Meu tes te mu nho tem 48 anos de ida de e 23 dere si dên cia per ma nen te no Cer ra do...

Cer to, os pro ble mas de Bra sí lia são pe que nos quan do com pa -ra dos aos de ou tras gran des me tró po les. O que se pode, tal vez, cri ti car,em nos sa nova ca pi tal, é que, não obs tan te ha ver sido con ce bi da paraso bre pu jar o em bru te ci men to, a ar re gi men ta ção, a vi o lên cia, a in jus ti ça e a de su ma ni za ção das gran des me tró po les, não al can çou ain da esse so ber bo ide al. Não o fez, mas in di cou o ca mi nho. Esta mos indo para lá. Em SãoPa u lo, no Rio, Re ci fe, Por to Ale gre ou Belo Ho ri zon te, em con tras te,não se vê bem qual a sa í da. Nes se tipo de pro li fe ra ções can ce ro sas quesão hoje as aglo me ra ções ur ba nas, mons tros de mi lhões e mi lhões dese res amon to a dos, as sis ti mos ao es pe tá cu lo te ne bro so de mul ti dões as -sus ta das que se des per so na li zam. Ne las im pe ram a so li dão. O in di ví duofoge do es tra nho que pode ser um la drão, um as sal tan te, um ter ro ris ta,um psi co pa ta, um dro ga do, um se qües tra dor. To dos te mem o pe ri gomais ge ral: o de sas tre, o in cên dio, o as sal to, a po lu i ção. Nin guém se sen teres pon sá vel. De sa pa re ce o sen ti men to na tu ral de so li da ri e da de hu ma nae a ví ti ma de um atro pe la men to ou de um as sal to é aban do na da semque nin guém in ter ve nha. Qu an tas ve zes, em Co pa ca ba na, tive a sen sa çãode an gús tia com pa rá vel à que sen ti no Ca i ro, em La gos, Xang hai ou Cal -cu tá: de mul ti dões es pes sas, de vi o lên cia, de caos. Pa re ce di fí cil so bre na darso bre esta maré hu ma na que nos quer su fo car com sua pró pria mas saor te gui a na. Em Co pa ca ba na tra ta-se de um fre ne si di o ni sía co, ao pas soque, em Xang hai, a mas sa chi ne sa si len ci o sa, dis ci pli na da e uni for mi za da,

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ca mi nha ou cir cu la de bi ci cle ta como um for mi gue i ro azul-cin zen to que opri me como um pe sa de lo de fic ção-ci en tí fi ca.

Os ma les que acom pa nham a ur ba ni za ção de sen fre a da pa re cemcon fi gu rar uma es pé cie de fa ta li da de da na tu re za. É como a pro xi mi da dede um fu ra cão: sabe-se que vem, mas o má xi mo que se pode fa zer étran car a casa e es pe rar que pas se. As ad mi nis tra ções pa re cem im po ten tes para en fren tar o de sa fio, com um sen ti men to de afo ga men to di an te dospro ble mas que se acu mu lam. Em São Pa u lo, cons ci en te des sa si tu a ção,um pre fe i to teve um gri to de de ses pe ro: “São Pa u lo pre ci sa pa rar!” Eu -fo ri za da, po rém, por um cres ci men to ex plo si vo que se con fun de com ama ni fes ta ção de vi ta li da de, a opi nião pú bli ca in dig nou-se com o de sa ba fo.Em Nova York, a ma i or e mais rica ci da de, me ga ló po le da na ção maispo de ro sa do mun do, as au to ri da des con fes sa ram cer ta vez, com ummis to de ci nis mo e de ses pe ro, que ha vi am per di do o con tro le da si tu a ção, a qual só po de ria ser cor ri gi da por uma ma ci ça in ter ven ção fe de ral,cons ci en te de seus pro pó si tos. Mas a ver da de é que o pre fe i to Gi u li a nicon se guiu cor tar pela me ta de o ín di ce de cri mi na li da de e lim par, emsen ti do tan to abs tra to quan to con cre to, a área da Bro ad way e Ti mesSqua re. Os eto lo gis tas, com Kon rad Lo renz à fren te, já com pa ram aes pé cie hu ma na, con cen tra da nas me ga ló po les, àque la raça de lê mu resda Escan di ná via, os lem ming que, pe ri o di ca men te, se lan çam ao marnum co los sal su i cí dio co le ti vo, des ti na do a res ta be le cer o equi lí brio na tu ral.Par tin do de um pon to de vis ta bi o ló gi co, Lo renz cha ma a aten ção paraas con se qüên ci as ca la mi to sas da de vas ta ção do am bi en te. De nun cia ascons tru ções mo nó to nas, em sé rie, re pe ti das aos mi lha res de exem pla res, de uma fe i u ra e uma fri e za de es tar re cer, ver da de i ros “es tá bu los parabes tas hu ma nas”, que vão pou co a pou co con su min do os te ci dos sãosda so ci e da de e im pin gin do so bre o que res ta de cam pos, rios e flo res tasda San ta Mãe Na tu re za. Em sua obra imen sa de crí ti co e his to ri a dor das ci da des, de mons tra Le wis Mum ford que a nos sa era “pá leo-téc ni ca”pro gri de em to das as ciên ci as apli ca das, me nos no ur ba nis mo. Um de se -qui lí brio é as sim cri a do. Qu an to mais pro gres so tec no ló gi co, mais ca la -mi to so o re sul ta do so bre a ci da de. Assim tam bém, quan to mais rico opaís, ma i o res são seus pro ble mas ur ba nos, e quan to mais rica a ci da de,mais di fi cul da des en con tra em re sol vê-los. Por essa ra zão, jus ta men te, éque con si de ro o pro ble ma le van ta do não pelo Nor des te, mas pelo cres -

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ci men to da ci da de de São Pa u lo como o mais con si de rá vel de nos so de -sen vol vi men to na ci o nal. É aque le que não sa be mos ain da como so lu ci o nar.

Os sin to mas de um mal pro fun do são, de fato, múl ti plos: acri mi na li da de e a vi o lên cia em as cen são ir re pri mí vel, a de sin te gra ção dafa mí lia, as dro gas, as ne u ro ses sob to dos os seus as pec tos, de tal modoque a psi ca ná li se pa re ce ser uma das pro fis sões ur ba nas em mais no tá vel pros pe ri da de (Car los La cer da cos tu ma va cha má-la de “ma cum ba dosri cos”), a mi gra ção ir re freá vel de con tin gen tes ru ra is à pro cu ra da ilu são de uma vida me lhor, ver da de i ra ma na da de gado para os ma ta dou ros daci da de e fe li ci da de dos de ma go gos em pe río do ele i to ral. O que Ni etzschede no mi na va a Her den mo ral, a mo ral do re ba nho, é o que ori en ta (ou de -so ri en ta) essa mas sa des fi bra da. A ba der na ho mi ci da e van dá li ca, comoa das va cas lou cas de Por to-Ale gre, é a úni ca es ca pa tó ria.

Fe liz men te, pen sa do res das mais va ri a das dis ci pli nas es tãocha man do a aten ção para esse de sen vol vi men to fa tal de nos sa ci vi li za çãocomo con se qüên cia da ex plo são de mo grá fi ca da es pé cie pre da tó ria, mas a ques tão é sa ber se seus ape los se rão aten di dos em tem po. Há pou come nos de cem anos, es cre veu Ge or ge Ber nard Shaw que a po bre za exis -ten te nas gran des ci da des “é uma de gra da ção para os po bres que in fec ta toda a vi zi nhan ça e pode tam bém afe tar um país e um con ti nen te e,fi nal men te, o mun do ci vi li za do in te i ro, que não pas sa de uma gran deuni da de de vi zi nhan ça”. Mas Shaw era um so ci a lis ta fa bi a no, meio ro -mân ti co. Nun ca se deu con ta que era exa ta men te o La bour que es ta vaem po bre cen do a Grã-Bre ta nha, ao pro vo car a es tag na ção de sua eco no -mia. Antes de Shaw, Alé xis de Toc que vil le, vi si tan do Lon dres em 1833,es pan tou-se com o pa ra do xo da ma i or e mais rica ci da de do mun do, nopaís que en tão en ca be ça va o pro gres so mun di al, ser tam bém aque la queapre sen ta va o es pe tá cu lo mais aca bru nha dor da mul ti dão de in di gen tese mi sé ria dos slums. C. L. Sulz ber ger no tou que o sim ples es for ço parame lho rar as con di ções das me ga ló po les não é su fi ci en te e pode mes moser con tra pro du cen te. Argu men ta va o co nhe ci do co men ta ris ta ame ri ca nocom o caso de Lima, cu jas fa ve las es tão en tre as ma i o res e mais imun das do mun do – o me nor es for ço para cor ri gi-las pro vo ca, como ocor reudu ran te seus três úl ti mos re gi mes semi-di ta to ri a is e/ou cor rup tos, a des -ci da de ver da de i ras hor das de ín di os mi se rá ve is do Alti pla no an di no, osqua is pre fe rem es sas con di ções re vol tan tes da gran de ci da de ao ter ror

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da so li dão nos ári dos pla nal tos sob os Ne va dos. Inci den tal men te, Limacom pe tiu com São Pa u lo e com a ci da de do Mé xi co na cor ri da para o tí -tu lo de “ma i or ci da de do mun do” da po bre za. Hoje é La gos que quer ar -vo rar a co roa, con cor ren do com Mom bai, Ca i ro e Ka ra chi. Em Bra sí lia,como já acen tu a mos aci ma, está ocor ren do um fe nô me no se me lhan te,ain da que me nos gra ve: quan to mais o go ver na dor dis tri bui lo tes paraeli mi nar as “in va sões”, ma i or nú me ro de mi gran tes in va de a ca pi tal,pro ce den tes de Mi nas, Go iás e Nor des te, e cri an do no vas in va sões. Épor isso que a idéia de um Pla no ur ba no, con subs tan ci a do na No va cap,pos sui in dis cu tí ve is vir tu des pe da gó gi cas. Ha bi tua-nos a pen sar, a pre ver,a or ga ni zar o fu tu ro.

Acre di to nes se sen ti do que foi um erro po lí ti co, ori un do dami o pia de ma gó gi ca, dar ao Dis tri to Fe de ral um go ver no ele i to. A meuver, mu i to me lhor se ria con ce der ao Pre si den te da Re pú bli ca esse pri vi -lé gio, que mu i tas ca pi ta is de na ções ci vi li za da ain da de têm (como Lon dres,por exem plo), de es co lha do Go ver na dor ad re fe ren dum do Con gres so. Opla ne ja men to ur ba no, de na tu re za pu ra men te téc ni ca, exi ge um tra ba lhoope ra ci o nal, exe cu ta do com per sis tên cia e con ti nu i da de, sem aba losnem in ter rup ções e con tra-mar chas que ele i ções pe rió di cas, de basepar ti dá ria, pro vo cam. Sa li en te-se que os pro ble mas ur ba nos não são sónos sos. Eles es tão cres cen do mun di al men te, em al guns ca sos de pa í sesmais atra sa dos em pro por ções as sus ta do ras. Como es cre veu um edi to -ri a lis ta, “no rit mo em que vai o país, te re mos em bre ve mais ci da desgran des do que gran des ur ba nis tas”.

Se gun do os pos tu la dos car te si a nos, “o co nhe ci men to so bre oqual se pode es ta be le cer um jul ga men to in du bi tá vel deve ser não so men tecla ro, mas tam bém pre ci so”. Eis a per fe i ta de fi ni ção da cul tu ra da ra zãoprá ti ca. Para um povo de in tu i ti vos, mu i to dado à im pro vi sa ção de úl ti mahora e à mín gua de uma di fe ren ci a ção su fi ci en te das fun ções in te lec tu a is prag má ti cas, o mé to do de or ga ni za ção, pre vi dên cia, an te ci pa ção, con ca -te na ção ló gi ca de ca u sa e efe i to, cla re za e pre ci são nas de ci sões mu i tonos fa vo re ce, cor ri gin do aque la no tá vel ca rên cia psi co ló gi ca. Se gun doob ser va ção de Cle men ce au, gran de psi có lo go além de no tá vel es ta dis ta,o bra si le i ro é de ma si a da men te la ti no para re sis tir à ten ta ção de pre ci pi taros acon te ci men tos. O mé to do car te si a no pre ve ni ria esse pe ri go. Don de, re pi to, a im por tân cia pe da gó gi ca exem plar de Bra sí lia, pois, se hou ve

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fa lhas no de sen vol vi men to da nova Ca pi tal, fo ram elas, afi nal de con tas,pro ble mas de de ta lhe na exe cu ção, sem pre sus ce tí ve is de cor re ção, e não com pro me tem a re le vân cia da obra como pro cla ma ção de prin cí pi os,pro cla ma ção, digo, da can di da tu ra do Bra sil ao Pri me i ro Mun do.

Foi a pro fes so ra San dra Ca val can ti, tão li ga da ao cres ci men todo Rio de Ja ne i ro, que acen tu ou essa im pres são do ho mem como apren dizde fe i ti ce i ro, en re da do em sua pró pria má gi ca. O ur ba nis ta de hoje,es cre veu ela no Jor nal do Bra sil de 12-9-71, “de ve rá sa ber res pe i tar, nassuas con cep ções, o sen ti do da vida ver da de i ra men te hu ma na, se nãoqui ser con ti nu ar a ser, sim ples men te, o que tem sido até hoje, um en ge -nho so e ar tís ti co adi a dor de pro ble mas, um cru el in ven tor de so lu çõestran si tó ri as”. Ora, se a ci da de deve ser con si de ra da um “pro je to devida”, cabe aten tar para o sen ti do ori gi nal da pa la vra tech ne em gre go. Opla ne ja dor e o ad mi nis tra dor ur ba no re que re rão a in tu i ção do ar tis ta, aciên cia do téc ni co e a ex pe riên cia do pes qui sa dor, numa obra de or ga ni -za ção co le ti va em que os fa to res po lí ti cos, so ci a is e eco nô mi cos nun caper de rão de vis ta a meta prin ci pal que é o ho mem – o ci da dão li vre ares pon sá vel. O cres ci men to des ta na ção não mais com por ta pa li a ti vosgo ver na men ta is. O lam pe jo da ima gi na ção cri a do ra deve ser sa bi a men tecom bi na do com uma pes qui sa ope ra ci o nal – uma téc ni ca co le ti va degran des sis te mas que ape nas ori en tam a or dem ra ci o nal-le gal (We ber) e,es pon ta ne a men te (Mi ses), se or ga ni zam se gun do as re gras de um mer -ca do li vre de bens, de idéi as e de ações in di vi du a is (Ha yek). Mas paraisso é ne ces sá rio que a ad mi nis tra ção ur ba na trans cen da seus pró pri osta bus, ca pri chos e dog mas, seus exa ge ros e tra i ções, até mes mo suases pe ran ças utó pi cas. Alcan çar a sim pli ci da de do bom sen so é o cri té riosu pre mo na li ber da de de ini ci a ti va. Que o Arqui te to, com A ma i ús cu la,vol te a se pro nun ci ar di an te de um de sa fio ma i or. Fala-se mu i to hoje em “qua li da de de vida”. Con si de ro que Bra sí lia já al can çou esse ní vel en treas mais qua li fi ca das do Bra sil. Entre as ca pi ta is ar ti fi ci a is mo der nas quefo ram des cri tas nos úl ti mos ca pí tu los des ta obra, com pe te pro mis so ra -men te com Was hing ton e Can ber ra, jus ta men te nes se item de “qua li da dede vida”. Te nho esta mi nha im pres são con so li da da pela ex pe riên ciapes so al e pela opi nião de es tran ge i ros cul tos e im par ci a is que bem co -nhe cem o mun do.

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Bra sí lia se está ra pi da men te so fis ti can do, in clu si ve no pla nocul tu ral. Esta mos re a li zan do em trin ta ou qua ren ta anos o que de mo rou um sé cu lo e meio para ocor rer em Was hing ton e ain da não se re gis traem Can ber ra. O Cor po Di plo má ti co mu i to con tri bui para isso. A trans -fe rên cia das em ba i xa das para Bra sí lia nos anos se ten ta, com a ina u gu ra çãodo novo edi fí cio do Mi nis té rio das Re la ções Exte ri o res, in du bi ta vel men tea obra-pri ma da ar qui te tu ra de Ni e me yer, mu i to es ti mu lou esse de sen -vol vi men to. Nes se sen ti do, de ve mos ho me na ge ar o tra ba lho do em ba i -xa dor Wla di mir Mur ti nho e do ar qui te to Ola vo Re dig de Cam pos, quese ocu pa ram pri o ri ta ri a men te do ar ran jo fun ci o nal in te ri or e da par te de de co ra ção in ter na do Ita ma raty. Mur ti nho igual men te es ti mu lou os pa í sesami gos a en tre ga rem a cons tru ção de suas mis sões a ar qui te tos de re no -me in ter na ci o nal. As em ba i xa das da Fran ça, Ale ma nha e Itá lia fo ramobras de pro fis si o na is de pres tí gio in ter na ci o nal. As da Grã-Bre ta nha,Espa nha, Peru e Chi le me re cem en cô mio par ti cu lar por sua qua li da de,po rém mes mo al gu mas de po tên ci as me no res se des ta cam por seu es ti lo ex cep ci o nal – e po de ría mos ar güir que, nes sa pers pec ti va, são as duasáre as de em ba i xa das de Bra sí lia fa vo re ci das como uma ver da de i ra “ex -po si ção” da ar qui te tu ra mo der na no que tem de me lhor.

Ao ina u gu rar a nova Ca pi tal, Jus ce li no de cla rou que, “há trêsanos, nes te mes mo lo cal, um lobo atra ves sou à fren ta de meu car ro.Seus olhos fi ca ram fos fo res cen tes à luz dos fa róis. Hoje, re ce bo três milcon vi da dos de ca sa ca”. So bre o pa pel de ci si vo que teve a trans fe rên ciapara a No va cap do cor po di plo má ti co es tran ge i ro, se di a do no Rio, comsuas pe ri pé ci as en tre o pi to res co e o im pres si o nan te, vale a le i tu ra daobra de Ma nu el Men des, O Cer ra do de Ca sa ca. Esse nos so ami go e gran dejor na lis ta ilus trou ade qua da men te o pa pel que Bra sí lia de sem pe nhou aoes ti mu lar nos so re la ci o na men to ofi ci al com di ri gen tes de pa í ses ami gos,as sim como já ha via fe i to com per so na li da des im por tan tes do mun dodas ar tes e, par ti cu lar men te, da ar qui te tu ra no pe río do de sua cons tru -ção. Cum pre sa li en tar que o pa pel “ci vi li za dor” que a ci da de tem exer ci -do no de sen vol vi men to do ser tão bra si le i ro, es tre i tan do o con ta to coma pe ri fe ria de nos sos vi zi nhos an di nos, e fa ci li tan do as co mu ni ca çõescom o Sul e o Su des te mais adi an ta dos de nos so pró prio país, só por sijus ti fi ca ria o mag no em pre en di men to da Pre si dên cia JK.

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∗ ∗ ∗Con cluo.O de se nho de Bra sí lia “nas ceu do ges to pri má rio de quem

as si na la um lu gar ou dele toma pos se: dois ei xos cru zan do-se em ân gu lo reto, ou seja, o pró prio si nal da Cruz”. Foi as sim que Lú cio Cos tades cre veu a ins pi ra ção pri mor di al do Pla no – “Ges to de sen ti do ain dades bra va dor, nos mol des da tra di ção co lo ni al”, pro cla mou o ilus treMes tre da ar qui te tu ra mo der na bra si le i ra. Há no sim bo lis mo de Bra sí liaalgo de trans cen den tal. É emi nen te men te prá ti co. É tam bém po lí ti co –o lu gar no mapa do Bra sil; a to ma da de pos se do in te ri or aban do na do.Mas é, so bre tu do, es pi ri tu al por que im pli ca uma mu dan ça de ati tu de. As duas co or de na das de po si ção e mo men to es tão cla ra men te sim bo li za das nas duas li nhas que se cru zam em ân gu lo reto, de se nho tre men da men tesig ni fi ca ti vo em sua so ber ba sim pli ci da de. A po si ção e o mo men topos su em um va lor na ci o nal de que, em tra ços lar gos, pro cu ra mos aqui -la tar nes te der ra de i ro ca pí tu lo de con clu sões. Pos su em tam bém um va loruni ver sal, tra du zí vel na lin gua gem sim bó li ca da ar qui te tu ra e do ur ba nis mo.Ci vi tas ubi sil va fuit, a Ca pi tal do ser tão, ao mes mo tem po em que sa tis fez a uma ne ces si da de emi nen te men te po lí ti ca da na ção, abriu pers pec ti vaspara a cul tu ra no novo mun do glo bal, cul tu ra que é cris tã e oci den tal em suas ra í zes his tó ri cas, téc ni ca e ci en tí fi ca em suas ba ses, uni ver sal emâm bi to e, acres cen te mos ago ra, li vre e de mo crá ti ca em seu es pí ri to. Oges to foi se me lhan te ao de Rô mu lo ao tra çar, se gun do o mito, a cruz do car do e do de cu ma nus na len dá ria Roma Qu a dra ta, a “ci da de eter na” quefun da va. Foi o ges to que se tor nou ha bi tu al nas vá ri as ou tras me tró po lesque os ro ma nos pos te ri or men te er gue ram em seu im pé rio, mu i tas dasqua is so bre vi vem como ca pi ta is de na ções eu ro péi as.

O pon to no mapa do Bra sil, com a to ma da de pos se do in te ri oraban do na do, pro cla ma a eta pa his tó ri ca, ou seja, o mo men to mais sig ni -fi ca ti vo do take-off no de sen vol vi men to eco nô mi co e cul tu ral da na ci o -na li da de. O Pla nal to Cen tral bra si le i ro, não lon ge do pon to de en con trodas três gran des ba ci as hi dro grá fi cas do ter ri tó rio, pode se trans for marno ber ço de uma nova pro vín cia na cul tu ra glo bal do novo mi lê nio. Mas há no sim bo lis mo de Bra sí lia igual men te algo de trans cen den tal, poisexi ge uma mu dan ça de ati tu de, uma con ver são, uma me ta nóia, uma pro -mes sa de ra ci o na li za ção do com por ta men to co le ti vo, a Entza u be rung de

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que nos fala We ber. A po si ção e o mo men to pos su em, des se modo, umva lor es pe ci al para a na ci o na li da de, o que, em tra ços lar gos e na pers pec ti va dos an te ce den tes his tó ri cos em ou tros con ti nen tes e em ou tras eras,pro cu ra mos ana li sar nos ca pí tu los des te es tu do, ago ra atu a li za do e re e di -ta do gra ças à cor te sia da Grá fi ca do Se na do.

Com o que, mu i to agra de ci do, nos des pe di mos de nos sospa ci en tes le i to res...

Pa u per tas car tae fi nem im po nit ver bo si ta ti.São Gre gó rio de Tours (A. D594).

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Mapa 1 Den si da de de mo grá fi ca do Bra sil em 1980

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Mapa 2 – Tras la da ção do cen tro de gra vi da de da po pu la ção bra si le i ra de 1872 a 1980

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O Ita ma raty. O pa lá cio do Mi nis té rio das Re la ções Exte ri o res é, cer ta men te, a me lhor obra de ar qui te tu ra de Bra sí lia

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De ca sa ca no cer ra do. Ina u gu ra ção de Bra sí lia. Foto de Rayr noud Fraj mund

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Ane xo IRe la tó rio so bre o Pla no Pi lo to de Lú cio Cos ta

José Bo ni fá cio, em 1823, pro põe a trans fe rên cia da ca pi tal para Go iás e su ge re o nome de Bra sí lia.

Dese jo ini ci al men te des cul par-me pe ran te a di re ção da Com -pa nhia Urba ni za do ra e a Co mis são Jul ga do ra do Con cur so pela apre sen -ta ção su má ria do par ti do aqui su ge ri do para a nova ca pi tal, e tam bémjus ti fi car-me.

Não pre ten dia com pe tir e, na ver da de, não con cor ro – ape -nas me des ven ci lho de uma so lu ção pos sí vel, que não foi pro cu ra da mas sur giu, por as sim di zer, já pron ta.

Com pa re ço, não como téc ni co de vi da men te apa re lha do, poisnem se quer dis po nho de es cri tó rio, mas como sim ples ma quis do ur ba -nis mo, que não pre ten do pros se guir no de sen vol vi men to da idéia apre -sen ta da se não even tu al men te, na qua li da de de mero con sul tor. E se pro ce do as sim can di da men te por que me am pa ro num ra ci o cí nio igual men te sim -pló rio: se a su ges tão é vá li da, es tes da dos, con quan to su má ri os na suaapa rên cia, já se rão su fi ci en tes, pois re ve la rão que, ape sar da es pon ta ne i -

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da de ori gi nal, ela foi, de po is, in ten sa men te pen sa da e re sol vi da; se o não é, a ex clu são se fará mais fa cil men te, e não te rei per di do o meu tem ponem to ma do o tem po de nin guém.

A li be ra ção do aces so ao con cur so re du ziu de cer to modo acon sul ta àqui lo que de fato im por ta, ou seja, à con cep ção ur ba nís ti ca dacidade pro pri a men te dita, por que esta não será, no caso, uma de cor rênciado pla ne ja men to re gi o nal, mas a ca u sa dele: a sua fun da ção é que daráen se jo ao ul te ri or de sen vol vi men to pla ne ja do da re gião. Tra ta-se de umato de li be ra da men te de pos se, de um ges to de sen ti do ain da des bra va dor,nos mol des da tra di ção co lo ni al. E o que se in da ga é como no en ten derde cada con cor ren te uma tal ci da de deve ser con ce bi da.

Ela deve ser con ce bi da não como sim ples or ga nis mo ca pazde pre en cher sa tis fa to ri a men te e sem es for ço as fun ções vi ta is pró pri asde uma ci da de mo der na qual quer, não ape nas como urbs, mas como ci vi -tas, pos su i do ra de atri bu tos ine ren tes a uma ca pi tal. E, para tan to, a con -di ção pri me i ra é achar-se o ur ba nis ta im bu í do de uma cer ta dig ni da de eno bre za de in ten ções, por quan to des sa ati tu de fun da men tal de cor rem aor de na ção e o sen so de con ve niên cia e me di da ca pa zes de con fe rir aocon jun to pro je ta do o de se já vel ca rá ter mo nu men tal. Mo nu men tal nãono sen ti do de os ten ta ção, mas no sen ti do da ex pres são pal pá vel, por assimdi zer, cons ci en te, da qui lo que vale e sig ni fi ca. Ci da de pla ne ja da para otra ba lho or de na do e efi ci en te, mas ao mes mo tem po ci da de viva e apra -zí vel, pró pria ao de va ne io e à es pe cu la ção in te lec tu al, ca paz de tor nar-se, com o tem po, além de cen tro de go ver no e ad mi nis tra ção, num foco decul tu ra dos mais lú ci dos e sen sí ve is do país.

Dito isto, ve ja mos como nas ceu, se de fi niu e re sol veu a pre -sen te so lu ção:

1 – Nas ceu num ges to pri má rio de quem as si na la um lu gar ou dele toma pos se: dois ei xos cru zan do-se em ân gu lo reto, ou seja, o pró -prio si nal da cruz. (fig. 1).

2 – Pro cu rou-se de po is a adap ta ção à to po gra fia lo cal, ao es -co a men to na tu ral das águas, à me lhor ori en ta ção, ar que an do-se um dosei xos a fim de con tê-lo no triân gu lo equi lá te ro que de fi ne a área ur ba ni -za da (fig. 2).

3 – E hou ve o pro pó si to de apli car os prin cí pi os fran cos datéc ni ca ro do viá ria – in clu si ve a eli mi na ção dos cru za men tos – à téc ni ca

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ur ba nís ti ca, con fe rin do-se ao eixo ar que a do, cor res pon den te às viasnatu ra is de aces so, a fun ção cir cu la tó rio-tronco, com pis tas cen tra is deve lo ci da de e pis tas la te ra is para o trá fe go lo cal, e dis pon do-se ao lon godes se eixo o gros so dos se to res re si den ci a is. (fig. 3).

4 – Como de cor rên cia des sa con cen tra ção re si den ci al, os cen -tros cí vi co e ad mi nis tra ti vo, o se tor cul tu ral, o cen tro de di ver sões, ocen tro es por ti vo, o se tor ad mi nis tra ti vo mu ni ci pal, os quar téis, as zo nasdes ti na das à ar ma ze na gem, ao abas te ci men to e às pe que nas in dús tri aslo ca is, e, por fim, a es ta ção fer ro viá ria, fo ram-se na tu ral men te or de nan doe dis pon do ao lon go do eixo trans ver sal, que pas sou as sim a ser o eixomo nu men tal do sis te ma (fig. 4). La te ral men te à in ter se ção dos dois ei xos,mas par ti ci pan do fun ci o nal men te e em ter mos de com po si ção ur ba nís -ti ca do eixo mo nu men tal, lo ca li za ram-se o se tor ban cá rio e o co mer ci al,o se tor dos es cri tó ri os de em pre sas e pro fis sões li be ra is, e ain da os am plosse to res do va re jo co mer ci al.

5 – O cru za men to des se eixo mo nu men tal, de cota in fe ri or,com o eixo ro do viá rio-re siden ci al im pôs a cri a ção de uma gran de pla ta -for ma li ber ta do trá fe go que não se des tina ao es ta ci o na men to ali, re -man so onde se con cen trou lo gi ca men te o cen tro de di ver sões da ci da de, com ci ne mas, te a tros, res ta u ran tes etc. (fig. 5).

6 – O trá fe go des ti na do aos de ma is se to res pros se gue, or de -na do em mão úni ca, na área tér rea in fe ri or co ber ta pela pla ta for ma een ta la da nos dois to pos, mas aber ta nas fa ces ma i o res, área uti li za da emgran de par te para o es ta ci o na men to de ve í cu los e onde se lo ca li zou aes ta ção ro do viá ria in te rur ba na, aces sí vel aos pas sa ge i ros pelo ní vel su pe -ri or da pla ta for ma (fig. 6). Ape nas as pis tas de ve lo ci da de mer gu lham, já en tão sub ter râ ne as, na par te cen tral des se piso in fe ri or que se es pra iaem de cli ve até ni ve lar-se com a es pla na da do se tor dos mi nis té ri os.

7 – Des se modo e com a in tro du ção de três tre vos com ple tos em cada ramo do eixo ro do viá rio e ou tras tan tas pas sa gens de ní vel in fe -ri or, o trá fe go de au to mó ve is e ôni bus se pro ces sa tan to na par te cen tral quan to nos se to res re si dên ci as sem qual quer cru za men to. Para o trá fe go de ca mi nhões es ta be le ceu-se um sis te ma se cun dá rio au tô no mo comcru za men tos si na li za dos, mas sem cru za men to ou in ter fe rên cia al gu macom o sis te ma an te ri or, sal vo aci ma do se tor es por ti vo, e que ace de aosedi fí ci os do se tor co mer ci al ao ní vel do sub so lo, con tor nan do o cen tro

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cívi co em cota in fe ri or, com as ga le ri as de aces so pre vis tas no ter ra ple -no (fig. 7).

8 – Fi xa da as sim a rede ge ral do trá fe go de au to mó vel, es ta -be le ce ram-se, tan to nos se to res cen tra is como nos re si dên ci a is, tra masau tô no mas para o trân si to lo cal dos pe des tres a fim de ga ran tir-lhes o uso li vre do chão (fig. 8), sem con tu do le var tal se pa ra ção a ex tre mos sis te -má ti cos e an ti na tu ra is, pois não se deve es que cer que o au tó mo vel, hojeem dia, de i xou de ser ini mi go in con ci liá vel do ho mem, do mes ti cou-se,já faz, por as sim di zer, par te da fa mí lia; ele só se “de su ma ni za”, re ad qui -rin do vis-à-vis do pe des tre fe i ção ame a ça do ra e hos til, quan do in cor po ra -do à mas sa anô ni ma do trá fe go. Há en tão que se pa rá-los, mas sem per derde vis ta que, em de ter mi na das con di ções e para co mo di da des re cí pro cas, aco e xis tên cia se im põe.

9 – Veja-se ago ra como nes se ar ca bou ço de cir cu la ção or de -na da se in te gram e ar ti cu lam os vá ri os se to res.

Des ta cam-se no con jun to os edi fí ci os des ti na dos ao po de resfun da men ta is que, sen do em nú me ro de três au tô no mos, en con tra ramno triân gu lo eqüi lá te ro, vin cu la do à ar qui te tu ra da mais re mo ta an ti gui -da de, a for ma ele men tar apro pri a da para con tê-los. Cri ou-se en tão umterr ra ple no tri an gu lar, com ar ri mo de pe dra à vis ta, so bre le va do na cam -pi na cir cun vi zi nha a que se tem aces so pela pró pria ram pa da auto-es -tra da que con duz à re si dên cia e ao ae ro por to (fig. 9). Em cada ân gu lodes sa pra ça – Pra ça dos Três Po de res, po de ria cha mar-se – lo ca li zou-seuma das ca sas, fi can do as do Go ver no e do Su pre mo Tri bu nal na base e a do Con gres so no vér ti ce, com fren te igual men te para uma am pla es -pla na da dis pos ta num se gun do ter ra ple no, de for ma re tan gu lar e ní velmais alto, de acor do com a to po gra fia lo cal, igual men te ar ri ma do de pe -dras em todo o seu pe rí me tro. A apli ca ção, em ter mos atu a is, des sa téc -ni ca ori en tal mi le nar dos ter ra ple nos ga ran te a co e são do con jun to e lhe con fe re uma ên fa se mo nu men tal im pre vis ta (fig. 9). Ao lon go des sa es -pla na da – o Mall, dos in gle ses –, ex ten so gra ma do des ti na do a pe des tres, apa ra das e a des fi les, fo ram dis pos tos os mi nis té ri os e au tar qui as (fig. 10). Os das Re la ções Exte ri o res e Jus ti ça ocu pan do os can tos in fe ri o res,con tí guos ao edi fí cio do Con gres so e com en qua dra men to con dig no, os mi nis té ri os mi li ta res cons ti tu in do uma pra ça au tô no ma, e os de ma isor de na dos em se qüên cia – to dos com área pri va ti va de es ta ci o na men to –,

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sen do o úl ti mo o da Edu ca ção, a fim de fi car vi zi nho do se tor cul tu ral,tra ta do à ma ne i ra de par que para me lhor am bi en ta ção dos mu se us, dabi bli o te ca, do pla ne tá rio, das aca de mi as, dos ins ti tu tos, etc., se tor estetam bém con tí guo à am pla área des ti na da à Ci da de Uni ver si tá ria com ores pec ti vo Hos pi tal de Clí ni cas, e onde tam bém se pre vê a ins ta la ção doObser va tó rio. A Ca te dral fi cou igual men te lo ca li za da nes sa es pla na da,mas numa pra ça au tô no ma dis pos ta la te ral men te, não só por ques tão de pro to co lo, uma vez que a Igre ja é se pa ra da do Esta do, como por umaques tão de es ca la, ten do-se em vis ta va lo ri zar o mo nu men to, e ain da,prin ci pal men te, por ou tra ra zão de or dem ar qui te tô ni ca: a pers pec ti vade con jun to da es pla na da deve pros se guir de sim pe di da até além da pla -ta for ma onde os dois ei xos ur ba nís ti cos se cru zam.

10 – Nes sa pla ta for ma onde, como se viu an te ri or men te, otrá fe go é ape nas lo cal, si tu ou-se en tão o cen tro de di ver sões da ci da de(mis tu ra em ter mos ade qua dos de Pac ca dilly Cir cus, Ti mes Squa re eChamps Elysées). A face da pla ta for ma de bru ça da so bre o se tor cul tu ral e a es pla na da dos mi nis té ri os não foi edi fi ca da, com ex ce ção de umaeven tu al casa de chá e da Ópe ra, cujo aces so tan to se faz pelo pró priose tor de di ver sões como pelo se tor cul tu ral con tí guo, em pla no in fe ri or.Na face fron te i ra fo ram con cen tra dos os ci ne mas e te a tros, cujo ga ba ri tose fez ba i xo e uni for me, cons ti tu in do as sim o con jun to de les um cor poar qui te tô ni co con tí nuo, com ga le ria, am plas cal ça das, ter ra ços e ca fés,ser vin do as res pec ti vas fa cha das em toda a al tu ra de cam po li vre para ains ta la ção de pa i néis lu mi no sos de re cla me (fig. 11). As vá ri as ca sas dees pe tá cu lo es tão li ga das en tre si por tra ves sas no gê ne ro tra di ci o nal darua do Ou vi dor, das dos clu bes, ca sas de chá, etc., te nham vis ta, de umlado e ar ti cu la das a pe que nos pá ti os com ba res e ca fés, e “log gi as” napar te dos fun dos com vis ta para o par que, tudo no pro pó si to de pro pi -ci ar am bi en te ade qua do ao con ví vio e à ex pan são (fig. 11). O pa vi men to tér reo do se tor cen tral des se con jun to de te a tros e ci ne mas man te ve-seva za do em toda a sua ex ten são, sal vo os nú cle os de aces so aos pa vi men tossu pe ri o res, a fim de ga ran tir con ti nu i da de à pers pec ti va, e os an da res sepre vi ram en vi dra ça dos nas duas fa ces para que os res ta u ran tes, clu bes,ca sas de chá etc., te nham vis ta, de um lado para a es pla na da in fe ri or, edo ou tro para o acli ve do par que no pro lon ga men to do eixo mo nu men tal e onde fi ca ram lo ca li za dos os ho téis co mer ci a is e de tu ris mo e, mais aci ma,

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para a tor re mo nu men tal das es ta ções ra di o e mis so ras e de te le vi são, tra -ta da como ele men to plás ti co in te gra do na com po si ção ge ral (figs. 9, 11, 12). Na par te cen tral da pla ta for ma, po rém dis pos to la te ral men te,acha-se o sa guão da es ta ção ro do viá ria com bi lhe te ria, ba res, res ta u ran tes,etc., cons tru ção ba i xa, li ga da por es ca das ro lan tes ao hall in fe ri or de em -bar que se pa ra do por en vi dra ça men to do cais pro pri a men te dito. O sis te -ma de mão úni ca obri ga os ôni bus na sa í da a uma vol ta, num ou nou trosen ti do, fora da área co ber ta pela pla ta for ma, o que per mi te ao vi a jan teuma úl ti ma vis ta do eixo mo nu men tal da ci da de an tes de en trar no eixoro do viá rio-re si den ci al – des pe di da psi co lo gi ca men te de se já vel. Pre vi -ram-se igual men te nes sa ex ten sa pla ta for ma des ti na da prin ci pal men te,tal como no piso tér reo, ao es ta ci o na men to de au to mó ve is, duas am plaspra ças pri va ti vas dos pe des tres, uma fron te i ra ao te a tro da Ópe ra e ou tra,si me tri ca men te dis pos ta, em fren te a um pa vi lhão de pou ca al tu ra de -bru ça do so bre os jar dins do se tor cul tu ral e des ti na do a res ta u ran te, bar e casa de chá. Nes tas pra ças, o piso das pis tas de ro la men to, sem pre desen ti do úni co, foi li ge i ra men te so bre le va do em lar ga ex ten são, para o li vrecru za men to dos pe des tres num e nou tro sen ti do, o que per mi ti rá aces sofran co e di re to tan to aos se to res do va re jo co mer ci al quan to ao se tor dosban cos e es cri tó ri os (fig. 8).

11 – La te ral men te a esse se tor cen tral de di ver sões, e ar ti cu ladosa ele, en con tram-se dois gran des nú cle os des ti na dos ex clu si va men te aoco mér cio – lo jas e ma gaz i nes, e dois se to res dis tin tos, o ban cá -rio-comercial, e o dos es cri tó ri os para pro fis sões li be ra is, re pre sen ta ções de em pre sas, onde fo ram lo ca li za dos, res pec ti va men te, o Ban co do Brasile a sede dos Cor re i os e Te lé gra fos. Estes nú cle os e se to res são aces sí ve is aos au to mó ve is di re ta men te das res pec ti vas pis tas, e aos pe des tres porcal ça das sem cru za men to (fig. 8), e dis põem de au to por tos para es ta ci o -na men to em dois ní ve is, e de aces so de ser vi ço pelo sub so lo cor res pon -den te ao piso in fe ri or da pla ta for ma cen tral. No se tor dos ban cos, talcomo nos dos es cri tó ri os, pre vi ram-se três blo cos al tos e qua tro de menoral tu ra, li ga dos en tre si por ex ten sa ala tér rea com so bre lo ja de modo aper mi tir in ter co mu ni ca ção co ber ta e am plo es pa ço para ins ta la ção deagên ci as ban cá ri as, agên ci as de em pre sas, ca fés, res ta u ran tes, etc. Emcada nú cleo co mer ci al, pro põe-se uma se qüên cia or de na da de blo cosba i xos alon ga dos e um ma i or, de igual al tu ra dos an te ri o res, to dos in ter -

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li ga dos por um am plo cor po tér reo com lo jas, so bre lo jas e ga le ri as. Dois bra ços ele va dos da pis ta de con tor no per mi tem, tam bém aqui, aces sofran co aos pe des tres.

12 – O se tor es por ti vo, com ex ten sís si ma área des ti nadaexclu si va men te ao es ta ci o na men to de au to mó ve is, ins ta lou-se en tre apra ça da Mu ni ci pa li da de e a tor re ra di o e mis so ra, que se pre vê de plan tatri an gu lar em em ba sa men to mo nu men tal de con cre to apa ren te até opiso dos stu di os e de ma is ins ta la ções, e su pe res tru tu ra me tá li ca commiran te lo ca li za do a meia al tu ra (fig. 12). De um lado o es tá dio e maisdepen dên ci as ten do aos fun dos o Jar dim Bo tâ ni co; do ou tro o hi pó dromocom as res pec ti vas tri bu nas e vila hí pi ca e, con tí guo, o Jar dim Zo o ló gico,cons ti tu in do es tas duas imen sas áre as ver des, si me tri ca men te dis pos tasem re la ção ao eixo mo nu men tal, como que os pul mões.

13 – Na pra ça Mu ni ci pal, ins ta la ram-se a Pre fe i tu ra, a Po lí ciaCen tral, o Cor po de Bom be i ros e a Assis tên cia Pú bli ca. A pe ni ten ciá riae o hos pí cio, con quan to afas ta dos do cen tro ur ba ni za do, fa zem igual -men te par te des te se tor.

14 – Aci ma do se tor mu ni ci pal fo ram dis pos tas as ga ra gensda vi a ção ur ba na; em se gui da, de uma ban da e de ou tra, os quar téis, enuma lar ga fa i xa trans ver sal o se tor des ti na do ao ar ma ze na men to e àinsta la ção das pe que nas in dús tri as de in te res se lo cal, com se tor re si dencialau tô no mo, zona esta re ma ta da pela es ta ção fer ro viá ria e ar ti cu la da igual -men te a um dos ra mos da ro do via des ti na da aos ca mi nhões.

15 – Per cor ri do as sim de pon ta a pon ta esse eixo dito mo nu -men tal, vê-se que fluên cia e uni da de do tra ça do (fig. 9), des de a pra ça do Go ver no até à pra ça Mu ni ci pal, não ex clui a va ri e da de, e cada se tor, poras sim di zer, vale por si como or ga nis mo plas ti ca men te au tô no mo nacom po si ção do con jun to. Essa au to no mia cria es pa ços ade qua dos à escalado ho mem e per mi te o diá lo go mo nu men tal lo ca li za do sem pre ju í zo dode sem pe nho ar qui te tô ni co de cada se tor na har mo ni o sa in te gra çãourba nís ti ca do todo.

16 – Qu an to ao pro ble ma re si den ci al, ocor reu a so lu ção decri ar-se uma se qüên cia con tí nua de gran des qua dras dis pos tas, em ordemdu pla ou sin ge la, de am bos os la dos da fa i xa ro do viá ria, e emol du ra daspor uma lar ga cin ta den sa men te ar bo ri za da, ár vo res de por te, pre va le -cen do em cada qua dra de ter mi na da es pé cie ve ge tal, com chão gra ma do

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e uma cor ti na su ple men tar in ter mi ten te de ar bus tos e fo lha gens, a fimde res guar dar me lhor, qual quer que seja a po si ção do ob ser va dor, ocon te ú do das qua dras, vis to sem pre num se gun do pla no e como queamor te ci do na pa i sa gem (fig. 13). Dis po si ção que apre sen ta a du pla van -ta gem de ga ran tir a or de na ção ur ba nís ti ca mes mo que va rie a den si da de, ca te go ria, pa drão ou qua li da de ar qui te tô ni ca dos edi fí ci os, e de ofe re ceraos mo ra do res ex ten sas fa i xas som bre a das para pas se io e la zer, in de pen -den te men te das áre as li vres pre vis tas no in te ri or das pró pri as qua dras.

Den tro des tas “su per qua dras” os blo cos re si den ci a is po demdis por-se de ma ne i ra mais va ri a da, obe de cen do po rém a dois prin cí pi osge ra is: ga ba ri to má xi mo uni for me, tal vez seis pa vi men tos e pi lo tis, esepa ra ção do trá fe go de ve í cu los do trân si to de pe des tres, mor men te oaces so à es co la pri má ria e às co mo di da des exis ten tes no in te ri or de cada qua dra (fig. 8).

Ao fun do das qua dras es ten de-se a via de ser vi ço para o trá fegode ca mi nhões, des ti nan do-se ao longo dela e fren te opos ta às qua dras àins ta la ção de ga ra gens, ofi ci nas, de pó si tos de co mér cio em gros so etc.,e re ser van do-se uma fa i xa de ter re no, equi va len te a uma ter ce i ra or demde qua dras, para flo ri cul tu ra, hor ta e po mar. Enta la das en tre essa via deser vi ço e as vias do eixo ro do viá rio, in ter ca la ram-se en tão lar gas e ex tensasfa i xas com aces so al ter na do, ora por uma, ora por ou tra, e onde se lo ca -li za ram a igre ja, as es co las se cun dá ri as, o ci ne ma e o va re jo do ba ir ro,dis pos to con for me a sua clas se ou na tu re za (fig. 13).

O mer ca di nho, os açou gues, as ven das, qui tan das, ca sas defer ra gens, etc., na pri me i ra me ta de da fa i xa cor res pon den te ao aces so de ser vi ço; as bar be a ri as, ca be le i re i ros, mo dis tas, con fe i ta ri as, etc., naprime i ra se ção da fa i xa de aces so pri va ti va dos au to mó ve is e ôni bus,onde se en con tram igual men te os pos tos de ser vi ço para ven da de ga so -li na. As lo jas dis põem-se em ren que com vi tri nas e pas se io co berto naface fron te i ra às cin tas ar bo ri za das de en qua dra men to dos quar te i rões epri va ti va dos pe des tres, e o es ta ci o na men to na face opos ta, con tí gua àsvias de aces so mo to ri za do, pre ven do-se tra ves sas para li ga ção de umapar te e ou tra, fi can do as sim as lo jas ge mi na das duas a duas, em bo ra oseu con jun to cons ti tua um cor po só (fig. 14).

Na con fluên cia das qua tro qua dras lo ca li zou-se a igre ja do ba ir -ro, e aos fun dos dela as es co las se cun dá ri as, ao pas so que na par te da

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faixa de ser vi ço fron te i ra à ro do via se pre viu o ci ne ma a fim de tor ná-loaces sí vel a quem pro ce da de ou tros ba ir ros, fi can do a ex ten sa área li vrein ter me diá ria des ti na da ao clu be da ju ven tu de, com cam po de jo gos ere cre io.

17 – A gra da ção so ci al po de rá ser do sa da fa cil men te atri bu in -do-se ma i or va lor a de ter mi na das qua dras como, por exem plo, às qua drassin ge las con tí guas ao se tor das em ba i xa das, se tor que se es ten de de am bosos la dos do eixo prin ci pal pa ra le la men te ao eixo ro do viá rio, com ala me dade aces so au tô no mo e via de ser vi ço para o trá fe go de ca mi nhões co -mum às qua dras re si den ci a is. Essa ala me da, por as sim di zer, pri va ti va do ba ir ro das em ba i xa das e le ga ções, se pre vê edi fi ca da ape nas num dosla dos, de i xan do-se o ou tro com a vis ta de sim pe di da so bre a pa i sa gem,ex ce tu an do-se o ho tel prin ci pal lo ca li za do nes se se tor e pró xi mo ao cen troda ci da de. No ou tro lado do eixo ro do viá rio-re si den ci al, as qua dras con -tí guas à ro do via se rão na tu ral men te mais va lo ri za das que as qua dras in -ter nas, o que per mi ti rá as gra da ções pró pri as do re gi me vi gen te; con tu -do, o agru pa men to de las, de qua tro em qua tro, pro pi cia num cer to graua co e xis tên cia so ci al, evi tan do-se as sim uma in de vi da e in de se já vel es tra -ti fi ca ção.

E seja como for, as di fe ren ças de pa drão de uma qua dra a ou trase rão ne u tra li za das pelo pró prio agen ci a men to ur ba nís ti co pro pos to, enão se rão de na tu re za a afe tar o con for to so ci al a que to dos têm di re i to.Elas de cor re rão ape nas de uma ma i or ou me nor den si da de, do ma i or ou me nor es pa ço atri bu í do a cada in di ví duo e a cada fa mí lia, da es co lha dema te ri a is e do grau e re quin te do aca ba men to. Nes te sen ti do deve-seim pe dir a en quis ta ção de fa ve las tan to na pe ri fe ria ur ba na quan to naru ral. Cabe à Com pa nhia Urba ni za do ra pro ver den tro do es que ma pro -pos to aco mo da ções de cen tes e eco nô mi cas para a to ta li da de da po pu la ção.

18 – Pre vi ram-se igual men te se to res ilha dos, cer ca dos de ar -vo re dos e de cam po, des ti na dos a lo te a men to para ca sas in di vi du a is, su -ge rin do-se uma dis po si ção den ta da de cre ma lhe i ra, para que as ca sascons tru í das nos lo tes de topo se des ta quem na pa i sa gem, afas ta das umas das ou tras, dis po si ção que ain da per mi te aces so au tô no mo de ser vi çopara to dos os lo tes (fig. 15). E ad mi tiu-se igual men te a cons tru ção even tu al de ca sas avul sas iso la das de alto pa drão ar qui te tô ni co – o que não im pli cata ma nho –, es ta be le cen do-se po rém como re gra, nes tes ca sos, o afas ta -

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men to mí ni mo de um qui lô me tro de casa a casa, o que acen tu a rá o ca rá -ter ex cep ci o nal de tais con ces sões.

19 – Os ce mi té ri os lo ca li za dos nos ex tre mos do eixo rodo viá -rio-re si den ci al evi tam aos cor te jos a tra ves sia do cen tro ur ba no. Te rãochão de gra ma e se rão con ve ni en te men te ar bo ri za dos, com se pul tu rasra sas e lá pi des sin ge las, à ma ne i ra in gle sa, tudo des pro vi do de qual queros ten ta ção.

20 – Evi tou-se a lo ca li za ção dos ba ir ros re si den ci a is na orlada la goa, a fim de pre ser vá-la in tac ta, tra ta da com bos ques e cam pos defe i ção na tu ra lis ta e rús ti ca para os pas se i os e ame ni da des bu có li cas detoda a po pu la ção ur ba na. Ape nas os clu bes es por ti vos, os res ta u ran tes,os lu ga res de re cre io, os bal neá ri os e nú cle os de pes ca po de rão che gar àbe i ra d’água. O Clu be de Gol fe si tu ou-se na ex tre mi da de les te, con tí guo à re si dên cia e ao ho tel, am bos em cons tru ção, e o Hatch Club na en seadavi zi nha, en tre me a dos por um den so bos que que se es ten de até à mar -gem da re pre sa, bor de ja da nes se tre cho pela ala me da de con tor no quein ter mi ten te men te se des pren de da sua orla para em bre nhar-se pelocam po que se pre ten de even tu al men te flo ri do e man cha do de ar vo re do.Essa es tra da se ar ti cu la ao eixo ro do viá rio e tam bém à pis ta au tô no made aces so di re to ao ae ro por to e ao cen tro cí vi co, por onde en tra rão nacida de os vi si tan tes ilus tres, po den do a res pec ti va sa í da pro ces sar-se,com van ta gem, pelo pró prio eixo ro do viá rio-residencial. Pro põe-se, ainda,a lo ca li za ção do ae ro por to de fi ni ti vo na área in ter na da re pre sa, a fim de evi tar-lhe a tra ves sia ou o con tor no.

21 – Qu an to à nu me ra ção ur ba na, a re fe rên cia deve ser o eixo mo nu men tal, dis tri bu in do-se a ci da de em me ta des Nor te e Sul; as qua drasse ri am as si na la das por nú me ros, os blo cos re si den ci a is por le tras, e fi nal -men te o nú me ro do apar ta men to na for ma usu al, as sim, por exem plo,N-Q3-L ap. 201. A de sig na ção dos blo cos em re la ção à en tra da da qua dradeve se guir da es quer da para a di re i ta, de acor do com a nor ma.

22 – Res ta o pro ble ma de como dis por do ter re no e tor ná-loaces sí vel ao ca pi tal par ti cu lar. Enten do que as qua dras não de vem serlo te a das, su ge rin do, em vez da ven da de lo tes, a ven da de quo tas deter re no, cujo va lor de pen de rá do se tor em ca u sa e do ga ba ri to, a fim denão en tra var o pla ne ja men to atu al e pos sí ve is re mo de la ções fu tu ras no de li -ne a men to in ter no das qua dras. Enten do tam bém que esse pla ne ja men to

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de ve ria de pre fe rên cia an te ce der a ven da das quo tas, mas nada im pe deque com pra do res de um nú me ro subs tan ci al de quo tas sub me tam àapro va ção da Com pa nhia pro je to pró prio de ur ba ni za ção de uma de ter -mi na da qua dra, e que, além de fa ci li tar aos in cor po ra do res a aqui si çãode quo tas, a pró pria Com pa nhia fun ci o ne, em gran de par te, como in -cor po ra do ra. E en ten do igual men te que o pre ço das quo tas, os ci lá velcon for me a pro cu ra, de ve ria in clu ir uma par ce la com taxa fixa, des ti na daa co brir as des pe sas do pro je to, no in tu i to de fa ci li tar tan to o con vi te ade ter mi na dos ar qui te tos como a aber tu ra de con cur sos para a ur ba ni za çãoe edi fi ca ção das qua dras que não fos sem pro je ta das pela Di vi são deArqui te tu ra da pró pria Com pa nhia. E su gi ro ain da que a apro va ção dospro je tos se pro ces se em duas eta pas – an te pro je to e pro je to de fi ni ti vo,no in tu i to de per mi tir se le ção pré via e me lhor con tro le de qua li da de das cons tru ções.

Da mes ma for ma quan to ao se tor do va re jo co mer ci al e aosse to res ban cá ri os e dos es cri tó ri os das em pre sas e pro fis sões li be ra is,que de ve ri am ser pro je ta dos pre vi a men te de modo a se po de rem fra ci o narem sub se to res e uni da des au tô no mas, sem pre ju í zo da in te gri da de ar -qui te tô ni ca, e as sim se sub me te rem par ce la da men te à ven da no mer ca doimo bi liá rio, po den do a cons tru ção pro pri a men te dita, ou par te dela, cor rerpor con ta dos in te res sa dos ou da Com pa nhia, ou, ain da, con jun ta men te.

23 – Re su min do, a so lu ção apre sen ta da é de fá cil apre en são,pois se ca rac te ri za pela sim pli ci da de e cla re za do ris co ori gi nal, o quenão ex clui, con for me se viu, a va ri e da de no tra ta men to das par tes, cadaqual con ce bi da se gun do a na tu re za pe cu li ar da res pec ti va fun ção, re sul -tan do daí a har mo nia de exi gên cia de apa rên cia con tra di tó ria. É as simque, sen do mo nu men tal é tam bém cô mo da, efi ci en te, aco lhe do ra e ín ti -ma. É ao mes mo tem po der ra ma da e con ci sa, bu có li ca e ur ba na, lí ri ca efun ci o nal. O trá fe go de au to mó ve is se pro ces sa sem cru za men tos, e seres ti tui o chão, na jus ta me di da, ao pe des tre. E por ter o ar ca bou ço tãocla ra men te de fi ni do, é de fá cil exe cu ção: dois ei xos, dois ter ra ple nos,uma pla ta for ma, duas pis tas lar gas num sen ti do, uma ro do via no ou tro,ro do via que po de rá ser cons tru í da por par tes – pri me i ro as fa i xas cen -tra is com um tre vo de cada lado, de po is as pis tas la te ra is, que avan ça ri amcom o de sen vol vi men to nor mal da ci da de. As ins ta la ções te ri am sem pre cam po li vre nas fa i xas ver des con tí guas às pis tas de ro la men to. As qua dras

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se ri am ape nas ni ve la das e pa i sa gis ti ca men te de fi ni das, com as res pec ti vascin tas plan ta das de gra ma e des de logo ar bo ri za das, mas sem cal ça men tode qual quer es pé cie, nem me i os-fios. De uma par te, téc ni ca ro do viá ria,de ou tra, téc ni ca pa i sa gís ti ca de par ques e jar dins.

Bra sí lia, ca pi tal aé rea e ro do viá ria; ci da de-par que. So nhoar qui-se cu lar do Pa tri ar ca.

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Lú cio Cos taEsbo ços para o Pla no Pi lo to de Bra sí lia

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Pla no Pi lo to fi nal de Bra sí lia

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Lú cio Cos ta em sua pri me i ra vi si ta ao Pla nal to

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Ane xo II

Entre vis ta de Gil ber to Frey re so bre Bra sí lia

ARTE, CIÊNCIA E TRÓPICO EM TORNO DE ALGUNSPROBLEMAS DE SOCIOLOGIA DA ARTE

Con fe rên ci as pro fe ri das, umas no Mu seu de Artede São Pa u lo, ou tras nas Uni ver si da des

de Re ci fe e da Ba hiaSão Pa u lo, 1962

Mar tins

P – Fora a ar qui te tu ra e a mú si ca, em que ou tras ar tes o Bra silde hoje está al can çan do tri un fos so ci o lo gi ca men te sig ni fi ca ti vos parauma ci vi li za ção lu so-tropical?

R – Os tri un fos al can ça dos por ar qui te tos bra si le i ros na ar qui -te tu ra mo nu men tal ou gran di o sa são tri un fos que dão hoje um re le vomun di al à arte do nos so País. Re le vo já al can ça do pela mú si ca – prin ci -pal men te pela de Vil la-Lobos.

Entre tan to, são vá ri as as ma ni fes ta ções de arte nas qua is oBra sil po de ria com igual su ces so es tar fa zen do sen tir sua pre sen ça decivi li za ção lu so-tropical na cul tu ra do ho mem mo der no: um ho mem

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cada dia mais vol ta do para o tró pi co. O mu ral é uma de las. O mó vel éou tro.

Não se com pre en de – in sis to nes se pon to – que es te ja par tindoda Eu ro pa, e não do Bra sil, a es ti li za ção das cur vas da rede ame rín dia,des de o sé cu lo XVI tão as si mi la da pela ci vi li za ção lu so-tropical que sede sen vol veu na Amé ri ca, ao seu con jun to de va lo res de uso co ti di a no.Esti li za ção em mó ve is mo der nos, ar ro ja da men te mo der nos – le ves eelás ti cos – e ao mes mo tem po hi giê ni cos e ar tís ti cos, con for tá ve is ebelos.

Era uma es ti li za ção – re pi to – que de via ter par ti do do Bra sil,de ar tis tas bra si le i ros, de pes qui sa do res bra si le i ros, se as Esco las deBelas Artes do Bra sil, em vez de pu ras aca de mi as de bom en si no, masen si no ape nas con ven ci o nal, vi es sem sen do tam bém cen tros de ex pe ri -men ta ção em que o Bra sil pro cu ras se dar às suas cri a ções mo der ni da dee uni ver sa li da de, se não to tal, para to das as áre as tro pi ca is do ori en te, daÁfri ca, da Aus trá lia, onde flo res cem ou co me çam a flo res cer ci vi li za ções mo der nas se me lhan tes à bra si le i ra. Uni ver sa li da de a va lo res e a téc ni casnão só de cons tru ção de edi fí ci os mo nu men ta is, como de mó vel e deva si lhame aqui já há sé cu los de sen vol vi das em for mas sim bió ti cas ouluso-tropicais de arte ou de qua se arte. São for mas es sas – re pi ta-se –em que se vem com bi nan do, para uso bra si le i ro, a pri mi ti vi da de ame ríndiaou afri ca na com a ci vi li da de eu ro péia ou his pa no-árabe. Elas se ofere cem aoar tis ta mo der no com uma ex tra or di ná ria ri que za de su ges tões.

Des ses ar tis tas ne nhum me pa re ce hoje mais aten to ao que há de va li o so em tais su ges tões do que o pin tor Alo í sio Ma ga lhães que, dapintura, vem se es pa lhan do por ar tes vi zi nhas – a grá fi ca, prin ci pal mente –sob o vivo de se jo de dar a es sas ar tes uma ex pres são vi go ro sa e au tên ticado Bra sil tro pi cal. Das suas for mas e das suas co res de na tu re za, deterra, de água, de pa i sa gem, de ho mem, de mu lher; e tam bém das suasformas e das suas co res já es ta bi li za das en tre a gen te do povo como coresbra si le i ras por meio de uma tra di ção de cul tu ra an tes fol cló ri ca queacadê mi ca. Esse é tam bém o afã de ou tros pin to res mo der nos do Bra sil. Em Alo í sio Ma ga lhães, po rém, se me lhan te afã vem se in ten si fi can doulti ma men te num em pe nho sis te má ti co de de sen vol ver uma arte grá fi ca tão re pre sen ta ti va do Bra sil e, ao mes mo tem po, tão uni ver sal men te mo -der na, quan to é a ar qui te tu ra de um Sér gio Ber nar des ou de um Hen ri que

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Mind lin, de um Lú cio Cos ta ou de um Oscar Ni e me yer, quanto con ti nua a ser ou vi da a mú si ca es plên di da da mo ci da de des se ve lho ainda com over dor dos ado les cen tes que é He i tor Vil la-Lobos. Ou a arte de jar dimde Ro ber to Bur le-Marx.

Daí me re cer um es pe ci a lís si mo elo gio da ini ci a ti va do até hápou co Dire tor da Di vi são Cul tu ral do Ita ma raty, o Mi nis tro Me i ra Penna– au tor de um su ges ti vo li vro so bre ur ba nis mo, em que o pro ble ma deBra sí lia é pos to em foco de ma ne i ra in te li gen te e idô nea – de pres ti gi arna Su í ça es tu dos e ex pe ri men tos de arte grá fi ca da que le ar tis ta bra si leiro,que já ini ci ou nos Esta dos Uni dos tra ba lhos de ve ras in te res san tes numaes pe ci a li da de ain da qua se vir gem da pre sen ça de um mo der no ou de um re no vador do nos so País. É que des ses ex pe ri men tos e es tu dos de AloísioMa ga lhães nos Esta dos Uni dos e na Su í ça deve re sul tar um li vro ilustradoem que se fará uma apre sen ta ção grá fi ca do Bra sil que será ela pró pria,ao mes mo tem po, nova e iné di ta, mo der na e bra si le i ra: ex pres si va ourepre sen ta ti va do Bra sil. Será um li vro, esse, do qual sem exa ge ro al gumse pode des de já di zer – à base dos ex pe ri men tos já re a li za dos pelo ar tistacons ci en ci o so que é Alo í sio Ma ga lhães – que mar ca rá ver da de i ra men teépo ca no de sen vol vi men to da arte bra si le i ra como arte de re per cus sãomun di al.

P – Que re la ção há en tre Bra sí lia e o que se deve con si de rarum sis te ma de ci vi li za ção lu so-tropical, que in clui, na tu ral men te, ar tesco muns, nas suas ten dên ci as ou nos seus ca rac te rís ti cos ge ra is, a vá ri asáre as?

R – Exce len te per gun ta. Para res pon dê-la, ou ten tar res pon -dê-la, eu te ria, po rém que es cre ver um en sa io.

Um li vro de ve ras in te res san te, so bre Bra sí lia, é o que aca ba de pu bli car no Rio o Mi nis tro J. O. de Me i ra Pen na, in ti tu la do Qu an doMudam as Ca pi ta is. Nele o au tor se pro põe “a abor dar o pro ble ma de um pon to de vis ta de di nâ mi ca ge o po lí ti ca, exa mi nan do os fe nô me nosrelati vos à per ma nên cia, mo bi li da de ou mul ti pli ci da de de Ca pi ta is”.

Des se pon to de vis ta é que vá ri as ca pi ta is, es co lhi das por issoou por aqui lo pelo Mi nis tro Me i ra Pen na como re pre sen ta ti vas ora da“per ma nên cia”, ora da “mo bi li da de” – prin ci pal men te a mo bi li da de –dan çam di an te de nós, nas pá gi nas de um en sa io ine ga vel men te eru di to,uma es pé cie de bal let so ci o ló gi co. Um atra en te bal let so ci o ló gi co do

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qual a prin ci pal fi gu ra se tor na Bra sí lia. Pois Bra sí lia – ad ver te logo àpágina 16 do seu en sa io o Mi nis tro Me i ra Pen na – “ex pri me o sal topitoresco que o Bra sil está dan do da car ro ça de boi ao avião; e está sendocons tru í da” em fun ção de fa to res de po si ção da nos sa ida de aé rea daHis tó ria do Mun do".

Mais do que isto: o au tor de novo e su ges ti vo li vro, so breproble ma tão se du tor de eco lo gia, con cor da com aque les que jul gampre ju di ci al ao Bra sil a per ma nên cia da sua ca pi tal no li to ral pelo fato deex pri mir essa per ma nên cia como uma in ca pa ci da de de de sen vol ver obra si le i ro “uma co le ti vi da de cons ci en te do seu des ti no e de cri ar no vasfor mas cul tu ra is adap ta das à ter ra em que nos es ta be le ce mos”. O ape go ao li to ral – re pre sen ta do pela ca pi tal da Re pú bli ca no Rio de Ja ne i ro –sig ni fi ca ria uma ma ni fes ta ção do “de se jo de não apa gar a lem bran ça dacul tu ra eu ro péia e do an se io, nun ca sa tis fe i to, de vol ta à Eu ro pa”: an se io que o au tor de Qu an do Mu dam as Ca pi ta is con cor da com o es cri tor Vi a naMoog cons ti tu ir “um dos mais an ti gos obs tá cu los ao ple no e de se ja doad ven to da nos sa ma tu ri da de”.

Até certo pon to, pa re cem-me jus tas es tas e ou tras con si de rações do Mi nis tro Pen na a fa vor da po si ção de Bra sí lia, em re la ção ao de sen -vol vi men to do Bra sil como uma ci vi li za ção cada dia mais ani ma da dodesejo de cri ar “for mas cul tu ra is adap ta das à ter ra em que nos es ta -belece mos”. Eu pró prio sou adep to e en tu si as ta da idéia de fi xar-se emBra sí lia a ca pi tal de um País cu jas fron te i ras eco nô mi cas pre ci sam deacompa nhar as po lí ti cas, na con so li da ção no in te ri or das for mas maisaltas do nos so sis te ma na ci o nal de vida.

Não de ve mos, po rém, per der de vis ta o des ti no do Bra silcomo par te efe ti va de um sis te ma não só na ci o nal como trans na ci o nalde vida e de ci vi li za ção: o re pre sen ta do pela ci vi li za ção que ve nho de no -mi nan do lu so-tropical. Nem tan to ao mar nem tan to à ter ra. Equi li bre -mo-nos en tre as duas res pon sa bi li da des: as que nos cha mam ao cen troda Amé ri ca e as que re cla mam nos sa so li da ri e da de com o Ori en teportu guês e com as Áfri cas lu si ta nas.

A pre sen ça do Bra sil no li to ral, numa es pé cie de co-capitalque com ple te a ação de ca pi tal si tu a da no cen tro do país, pa re ce-me que con tinua uma ne ces si da de es sen ci al aos in te res ses bra si le i ros. Não somosuma civili za ção com um des ti no ape nas me di ter râ neo, mas com um

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destino tam bém tran so ceâ ni co. A não ser que se pre ten da re pu di arquan tas afi ni da des pro fun das tor nam o Ori en te por tu guês e as áfri casportu gue sas par te de um só sis te ma de ci vi li za ção mo der na nos tró picos,do qual o Bra sil está des ti na do a tor nar-se o lí der mais avan ça do. Nos saper manên cia no li to ral, numa co-capital que com ple te Bra sí lia, nãorepre sen ta rá ape nas o de se jo de vol tar mos à Eu ro pa; e sim a nos sa in te -gra ção num des ti no que trans cen de o de sim ples po tên cia ame ri ca napara nos dar a res pon sa bi li da de de lí der do ma i or sis te ma mo der no deci vi li za ção tro pi cal. Uma ci vi li za ção que se es pa lha em ter ras tro pi ca isda Amé ri ca, do Ori en te e da Áfri ca, re pre sen tan do um es for ço do portu guês da Eu ro pa que pre ci sa de ser con ti nu a do por bra si le i ros, go e ses,luso-africanos. Inclu si ve com re la ção a ar tes que se jam ani ma das de umsen ti do lu so-tropical de ex pres são, fa vo rá vel à sua uni ver sa li za ção nomun do tro pi cal, sem pre ju í zo, é cla ro, de suas pe cu li a ri da des de ca rá teres pe ci fi ca men te re gi o nal ou na ci o nal, den tro des sa sua am pli tu de su pra -na ci o nal e in ter-regional.

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446 José Osval do de Me i ra Penna

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Índi ce Ono más ti co

A

Aba kâ (Ilkhans da Pér sia) – 94Abdur rah man III (kha li fa) – 142 Abreu, Ca pris ta no de – 326Adams, John – 218, 227Ado nai (deus he brái co) – ver Ado nisAdo nis (deus da Anti gui da de Clás si ca) –

43, 52Afro di te (de u sa grega) – 65Agache – 301, 302Ai-Man sur (kha li fa) – 142Ainu (bár ba ros) – 122, 129 Ajmer (prín ci pe de) – 268Akbar – 271, 274Akhe na ton (fa raó) – 14, 31, 39, 43, 44,

45, 46, 48, 49, 51, 52, 125, 330, 351Aksakov – 206Ala ri co, rei dos Go dos – 72 Alberti, Leon Bat tis ta (en ci clo pé di co) –

157, 165Ale xan dre, o Gran de – 57, 58, 59, 60, 62,

66, 67, 78, 79, 164, 171, 201, 202, 235,267, 285

Ale xis – 198Alfon so VI (fi lho de Fer di nan do) – 143,

144, 147Alfon so VIII – 143Algarotti, Fran ces co (con de) – 190, 200Al-Rachid, Ha run (ca li fa) – 287Amaterasú (de u sa do sol para os ja po ne -

ses) – 121, 133 Ambicatus – 285

Ame nhop his III (fa raó egíp cio) – 42, 43Ame nho pi ús IV (fa raó egíp cio) – 44Amon (deus egí pi cio) – 14, 31, 42, 43, 44,

49, 59Amoroso, Lima – 324Anang-Pal – 268Andrade, Car los Drum mond de – 388Andrada, José Bo ni fá cio de – 415Anna (tza ri na) – 204Apolo – 168Apraxin (al mi ran te) – 195Aqui les (he rói gre go) – 58 Aragão, Fer nan do de – 144 Aragão, Pe dro de – 143 Arcadius (im pe ra dor) – 286Aris tó te les – 61, 64, 83, 84, 341Arquime des – 64 Arsi noés, as – 60Ashikaga (fa mí lia) – 131 Atartürk, Ke mal Pa chá – 203, 293, 291,

294Aton (deus egíp cio) – 43, 44, 45, 46, 47,

49, 50, 51, 52Augusto – 79, 171, 235Auta (ar tis ta egíp cio) – 47

B

B. Higgins – 307, 312Ba ber, “o lião” – 270, 272, 274Bach, Jo nhann Se bas ti an – 172, 234Bagration – 203Bailly, A. – 77

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Bainville, Jac ques – 174Barbosa, Fran cis co de Assis – 338Barros, Ro que Spen cer Ma ci el de – 338Basileus de Cons tan ti no pla – 186Batu – 186Bayazit (Ba ja zet), “vul go re lâm pa go” –

287Bek (ar tis ta egíp cio) – 47Belcher, Do nald – 25Beloch, Isra el – 387Beloveso – 285Berckholtz – 203Be re ni ces, as – 60 Bering – 203Bernard SHAW, Ge or ge – 404Bernardes, Sér gio – 438Bernini – 170Bertolucci – 100Bischoff, No bert de – 291Bismarck – 175Bourbon (fa mí lia) – 104, 167, 204Bowers, Cla u de – 231Bramante, Do na to – 157, 166Branco, Cas te lo – 378, 382Breastead, J. H. – 43, 44, 52Brian-Chaninov (ca pi tão) – 205Brinckmann – 163Brodie, John A. – 276Brown, John – 230Brunellesco (ar qui te to) – 165Brunhes, Jean – 21, 22, 26, 27, 140Buckle – 206Buda – 125 Bühren – 202Burckhardt, Ja cob – 79Burle- Marx, Ro ber to – 370, 439Burnham, Da ni el – 233, 307

Bury – 59 By, John (co ro nel) – 247Bysas – 39, 73

C

Cal der – 351Calvert, A. F. – 148 Calvert, Ge or ge – 215Câmara, Set te, em ba i xa dor – 369, 399Cambises – 58Camões – 257Campos, Ma nu el – 407Campos, Ro ber to – 381, 382, 383, 384,

385, 386, 387Cantanhece, Plí nio – 399Cardoso, Fer nan do Hen ri que – 382, 392Carlos I (rei) – 215Carlos V – 140, 145, 147, 152, 158, 160Carlos XII – 188, 191, 193Carnarvon (lord) – 259Carroll, Da ni el – 219Castela, Isa bel de – 144, 145Catarina I – 171, 204Catarina II, a gran de – 200, 201, 203, 204Cavalcanti, San dra – 406César, Jú lio – 65, 76, 77, 235Champlain, Sa mu el – 245Cha pur II – 78 Chardin, Te i lhard de – 91Chin (im pé rio de) – 90 Chou (di nas tia) – 90Chur chill, Wins ton – 288Ci mon – 59 Cirene, Aris ti po de – 65 Ciro – 58 Clay – 229

448 José Osval do de Me i ra Pen na

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Cle men ce au, psi cólo go – 275, 405Cleó pa tra – 65, 66, 67Cleópatras, as – 60Cnido, Sos tra to de – 60, 64 Colbert – 161, 162, 171, 173, 174Collor – 382Colombo – 335Comte – 338Con fu ci us (fi ló so fo) – 90, 107Cons tan ti no (im pe ra dor) – 27, 31, 39, 57,

72, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 82, 85Co pér ni co (as trô no mo) – 64 Corção, Gus ta vo – 387Corneille – 167, 172Costa, Lú cio – 50, 302, 306, 308, 342,

343, 344, 345, 348, 353, 354, 366, 367,377, 378, 383, 384, 385, 387, 394, 395,396, 398, 399, 400, 408, 415, 436, 439

Costa, Octa vio, ge ne ral – 389Cos tan ti no (im pe ra dor ro ma no) – 330Crocket, Davy – 229Cunha, Eu cli des da – 326, 334Cunhara, Alber to Tor res – 338Custines (mar quês de) – 199

D

Dalhousie, Earl of – 247Dali – 350Da rio – 66Darwin – 206De Clerck – 260De nis – 389Descartes – 156, 167, 172, 234, 341, 345Devier – 202Dias, Antô nio – 358Dickens, Char les – 229Di o cle ci a no – 72, 78

Di o ní sio – 63 Disraeli – 274Diwans – 274Dje hu ti més (ar tis ta egí pi cio) – 47Dom Hen ri que (in fan te) – 257Dostoievsky – 204, 206Duluth – 246Dürer, Albrecht – 155 Dzedong, Mao – 95, 101

E

Edu ar do VII (prín ci pe de Ga les) – 249Eisenhower – 175El Mayor, San cho (pai de Fer di nan do) –

143 Eli el Sa a ri en – 305Ellicott, Andrew – 226Enéas – 76 Engert, Elli da – 358Era sis tra to (mé di co) – 64 Era tóst he nes (geó gra fo e cos mó gra fo) –

64 Erman – 44 Escher – 350Esterhazy – 203Eu cli des (ma te má ti co) – 64 Evenson, Nor ma – 343, 347

F

Fagundes, La u ra Reis – 387Falero, De mé trio de – 64Faoro, Ra i mun do – 338, 385Farhat, Emil – 385Fatih, Meh met (o Con quis ta dor) – 75 Fe li pe II – 29, 140, 145, 147, 158, 322Fe li pe III – 148

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is 449

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Ferdausi – 66 Fer di nan do (pri me i ro rei de Cas te la) –

143 Fer di nan do III (são) – 143Fer di nan do VII – 147 Ferreira, Oli ve i ros – 385Fi gue re do – 382Flo ris V (con de) – 38Fouquet (mi nis tro) – 161Fra jmund , Rayr noud – 413Francesca , Pi e ro del la (pin tor) – 155, 165Francfort, H. – 48Fran cis co I – 147 Franco (ge ne ral) – 148, 294 Franklin, Ben ja min – 170Fre de ri co da Prús sia – 99Fre de ri co II – 171Freud – 52 Freyre, Gil ber to – 329, 333, 334, 344,

346, 353, 437Frobisher – 246

G

Gabriel, Jac ques-Ange (ar qui te to) – 164,175

Gár cia (fi lho de Fer di nan do) – 143 Garnier, Tony – 304Ge i sel – 382Genghiz-Khan – 269, 270, 273, 274Ghasni, Mah mud de – 268Ghor, Mo ha med de – 268Ghyas-Ud-Dintuglak – 269Giedion, Si eg fri ed – 159, 167, 170, 304,

348Gi us ti a ni ni (co man dan te ge no vês) – 82 Goethe – 65 Gogol – 206

Golovin (al mi ran te) – 191Gonçalves, Ney – 357Gorbachev – 187, 208Gordon – 202Gou lart – 389Granet – 109 Grant, W. J. – 225, 232, 280Grão-Mongóis (di nas tia) – 270, 272Gre gó rio VII – 157Grey, Ge or ge (sir) – 259Grif fin – 305, 306, 307, 312Gropius, Wal ter – 305, 350, 352, 353Grousset, René – 93, 97, 177 Grunwald, Cons tan ti no de – 205Guilherme (rei da Prús sia) – 175Gu i lher me, o Ta ci tur no – 38Guimarães, Fá bio de Ma ce do So a res –

21, 25

H

Haeckel – 206Halford, Wil li am – 262, 263Hamilton, G. H. – 200, 201, 218 Han (di nas tia) – 90, 91, 110 Hannibal – 202, 286Hannover (cor te) – 204Hardinge (lord) – 274, 276Hardouin-Mansart (ar qui te to) – 163Haussmann, Ge or ge – 165, 175, 177, 232Hayek, Fri e drich – 347Hayworth, Rita – 369Head, Edmund Wal ker (sir) – 249Hegel – 206, 351, 352He gé si as (fi ló so fo) – 65 He le na (san ta) – 80 He lió po lis – ver On

450 José Osval do de Me i ra Pen na

Page 439: O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

Hen ri que IV (pri me i ro Bour bon de Fran -ça) – 144, 160

Hér cu les (he rói gre go) – 58He ró do to – 110 He ron (mé di co) – 64He róp hi lo (mé di co) – 64Hideyóshi (es ta dis ta) – 132Hitler – 208Holanda, Sér gio Bu ar que de – 335, 385Holzmeister (ar qui te to) – 291Ho me ro – 42, 59Horemberg – 49 Howard, Ebne zer – 304, 352Howard, John (pri me i ro-mi nis tro) – 312Hsi, Kang – 99Hsi, Tsu (im pe ra triz) – 100Hulägu – 94Humayun (im pe ra dor) – 270, 271, 279Hux ley – 401

I

Ieyasú, To ku ga wâ (es ta dis ta) – 131, 132Ino cên cio III – 157Irving, Was hing ton – 228Isa ías – 47 Ivan III, o gran de – 186Ivan, o ter rí vel – 186, 189

J

Jackson, Andrew – 229James, Henry – 236Jansen (ur ba nis ta) – 289Jeanne D’arc – 228Jefferson, Tho mas – 216, 218, 220, 221,

224, 228, 237Jehan, Xá (“rei do mun do”) – 272, 282

Jehangir – 271, 284Je rô ni mo (São) – 79 João Vl, dom – 339Johnson, Tho mas – 219Jorge V – 274Jousseley (ur ba nis ta) – 289Judaeus, Phi lo (fi ló so fo) – 65Jung, C. G. – 110 Jus ti ni a no – 74, 80, 82

K

Kai-Chek, Chi ang (ge ne ral) – 100, 101Ka i dú– 94Kali – 267Kanatos – 186Kanaudje (rei de) – 268Kang Hsi – 169Kant – 234Karamzin (his to ri a dor) – 204Kaufmann – 203Keikí, To ku ga wâ – 133 Ke mal Ata turk – 330Ke mal Pa chá – 331Kemal, Mus ta fá – 27, 32Key nes, lord – 379Keyserling, Her mann de – 103, 272Khan, Aba kaí – 98Khan, Geng hiz – 92, 94, 103Khan, Khirz – 270Khan, Ku blai – 92, 93, 94, 95, 96, 97Khan, Nu rat chí – 98Khayyam, Omar – 274Khilji, Kutb-ud-din (Ala di no) – 269Kiang, Yang Tse – 101Kiev – 186, 188, 196Kin, os – 95

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is 451

Page 440: O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

Kruger, Pa u lo – 259Ku bla ik han – 330Ku bits chek, Jus ce li no – 15, 18, 40, 331,

333, 334, 337, 345, 349, 353, 366, 367,368, 373, 377, 381, 388, 389, 393, 407

Kuomintang – 101Kwammu (im pe ra dor) – 125, 127, 330

L

Llo sa, Luiz Var gas – 379La Fayette – 216, 220La Fontaine – 169, 171La Monthe-Cadillac – 246Lacerda, Car los – 329, 404La e li us – 171Lagus – 60 Lake (Lord) – 273Lambert, Jac ques – 334, 340Lao-Tsé (fi ló so fo) – 90Lauisse, Ernest – 174Lavedan, Hen ri – 61, 84, 156 Lavisse – 176Le Brun (ar tis ta) – 161, 162, 168Le Corbusier– 50, 279 305, 313, 352, 398Le Fort (mi nis tro da Sa xô nia) – 198, 202Le Nôtre, André (ar tis ta) – 161, 162, 164,

165, 172, 181, 223Le Vau (ar tis ta) – 161, 162Lech Wales, pre si den te da Po lô nia – 386Lee, Ro bert – 231Leibniz – 172Lemaltre, Ju les – 58L’enfant, Pi er re Char les (ma jor) – 220,

221, 222, 224, 225, 226, 232, 233, 234,237, 239, 278

Lenin – 195, 207Levi, Rino – 360, 361, 362

Lévis-Strauss, Cla u de – 336Li cí nio – 72 Ligeti, Paul – 351Lincoln – 224, 230, 231, 237Líria (du que de) – 198Lloyd Wright, Frank – 234Lodi, Ibra him – 270Lodi, Si kan dar (Ale xan dre) – 270, 272Loh, Yung – 97, 103, 104, 107Long, Kien – 99Lorenz, Kon rad – 403Lorrain, Cla u de – 166, 167Lott – 389Louvois – 171Luís, o gran de – 161Luís XIII – 160, 170Luís XIV – 24, 99, 153, 160, 161, 162,

163, 164, 167, 168, 169, 170, 171, 173,175, 176, 178, 179, 180, 195, 197, 273,330, 351

Luís XV – 24, 176Luís XVI – 176Lutyens, Edwin L. (ar qui te to) – 276, 278,

279, 302, 307

M

Maat (de u sa da ver da de e da jus ti ça paraos egíp ci os) – 43

Macartney (lord) – 99Macdonald, John (sir) – 250Mackenzie, Ale xan der – 246Mac Kim, Char les – 233MacKinder, Hal ford – 34, 188Macmillan, Ja mes – 233Madison, Ja mes – 217, 228, 237Magalhães, Alo í sio – 400, 438, 439Magno, Car los – 143

452 José Osval do de Me i ra Pen na

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Mahatma Gandhi – 260Mahmut – 293Ma ho met II – 82 Mahratas – 273Maintenon (mar que sa de) – 164Malraux, André – 334, 335, 349, 385, 397Manchú (di nas tia) – 98Mandela – 260Mangú (Gran de-Khan) – 94 Mannerheim (ba rão) – 207Mansart – 172Marcha-Vardhana (Rajá de Ka na ud je) –

268Mar co Antô nio – 65, 76, 79Mar co Au ré lio – 158Ma ria Anto ni e ta – 24Marshall, John – 225Martineau, Har ri et – 229Martins, Ives Gan dra – 385Marx – 206Mary (ra i nha) – 215Ma-Tchen, Ssê – 110Ma u ri che au-Bre a upré – 162, 168Ma u rí cio Ro ber to – 344Max Bill – 348, 349Mé di ci – 382, 389, 393Mehmet II – 293Me i ji (di nas tia) – 322Meimberg, Íris – 378Men ci us (fi ló so fo) – 90, 101, 108Mendoza, Apu le yo – 379Me ne lau – 59Meñendez, Pe dro – 215Menshikof – 192, 205Michelet – 171Mi gue lân ge lo – 157, 158, 341Mikailov, Pe dro – 191

Mileto, Hi pó da mo de – 38, 57, 60, 61,341

Milligen, Ale xan dre Van – 75 Milman, Ba ru chi – 357Minamoto, os – 129, 130 Minamoto, Yo ri to mô – 129, 130, 131Mindlin, Hen ri que – 363, 364, 439Ming (di nas tia) – 96, 97, 98, 100, 107Mirabeau – 178Mi ram La tif – 333, 334Mithridates – 286Mo i sés – 52 Monck (lord) – 250Monroe, Ja mes – 228Mons, Anna – 202Montaner, Car los Alber to – 379

Montcalm (mar quês) – 246Moog, Vi a na – 325, 326, 440Moore, J. J. – 300Mumford, Le wis – 40, 155, 156, 165, 167233, 343, 403Mumtaz-I-Mahal – 271Murtinho, Wla di mir (em ba i xa dor) – 407Musset – 149 Mutasin – 287Mutsuhitô (im pe ra dor) – 133

N

Na po leão – 164, 165, 205, 235, 246Na po leão III – 177, 346Ne cao – 58 Ne fer ti ti (es po sa de Akhe na ton) – 46, 47,

52Nehru – 281Nesselrode – 203Neutra, Ri chard – 354

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is 453

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Nevski, Ale xan dre – 200Newton – 172Nicholson – 273Ni e me yer, Oscar – 312, 345, 365, 368,

384, 397, 407, 439Nietzsche – 162, 404Nocret, Jean – 167Novaes, Pa u lo – 358Novgorod – 186Nut mo sis (ar tis ta egíp cio) – 47

O

O’ Malley, King (mi nis tro) – 301, 302,303, 304

Okubo (mi nis tro) – 133 Olmsted, Fre de rick L. – 233Omar (kha li fa) – 64 On (deus egíp cio) – 43Orange (con des e prín ci pes de) – 38Orwell – 401Osi ris (deus egíp cio) – 51Östermann (ma re chal) – 202

P

Pachá, Mus ta fá Ke mal – 288, 289, 290,292, 293, 294, 296

Paim, Antô nio – 338, 385Palanti, Gian Car los – 364Pa le ol o go, Cons tan ti no Dra ga sés (im pe -

ra dor) – ver Cons tan ti noPalladio, Andrea – 155, 221 Par mê nio (ge ne ral) – 66 Pa u lo III – 158 Pe dro II, dom – 32Pe dro I, dom – 329Pe dro, o Gran de – 28, 29, 33, 39, 171,

178, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 192,

193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200,201, 202, 203, 204, 207, 209, 210, 293,294, 321, 322, 330

Peet, Eric – 48Peets, Elbert – 222Pei, I. M. (ar qui te to) – 234Pelayo – 142 Pendlebury, John – 45Penna, José Osval do de Me i ra – 14, 17,

18, 439, 440Pereira Passos – 232Pé ri cles – 59, 171, 235, 351 Petrie Flinders, Sir – 351Petrovna, Eli za beth – 200, 203, 204Peyrefitte, Ala in – 99Philip, John son (ar qui te to) – 346Pig na ta ro (imi gran te ita li a no) – 337Pinheiro, Isra el – 18, 323, 333, 337, 338,

339, 367, 368, 369, 377, 381, 384Pinheiro, João – 337, 338Pinochet – 294Plo ti no – 65 Plu tar co – 76 Po lí bi os – 73Polo, Mar co – 95, 101Pom bal (mar quês de) – 338Possochkov (ju ris ta) – 196Poussin, Ni co las – 166, 167Pra e tex ta tus (hi e ro fan te) – 76 Pretorius, Andri es Wi lhel mus Ja co bus –

258Pritivraj (úl ti mo mah ra jah) – 268Pro có pio – 74, 82Pro teu (mi to lo gia gre ga) – 59 Psa mé ti co (fa raó egíp cio) – 58Pto lo meu – 60 Ptolomeu, Cla u dio (as trô no mo) – 64

454 José Osval do de Me i ra Pen na

Page 443: O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

Ptolomeus, os – 33, 63Pushkin (po e ta) – 192, 195, 202Putin – 187

Q

Quadros, Jâ nio – 383, 388, 389

R

Ra (deus so lar egíp cio) – 43Ragousinski, Savã – 202Rainha Vitória – 247, 248, 249, 251, 255,

274Rambaud – 75 Ramirez, San cho – 144 Ra mi ro – 144 Ra mi ro II – 142, 146 Ramos, Gu er re i ro – 324Ra-Mo sis – ver Ram sésRam sés – 52Randolph, John – 230Rap ha el – 157 Rasmussem, S. E. – 103Rasputin (mon ge) – 206Rei do Ponto – 286Rei Midas – 285Reis, Aa rão – 342Remo – 77 Rhodes, Ce cil (sir) – 259Rhodes, Di no cra tes de – 60, 61, 62Ribeek, Jan Van – 258Riche li eu (car de al) – 160, 162, 167, 173,

205Roberts (lord) – 261Rocha, João Hen ri que N. – 357Rochambeau – 216Rodrigues, Nel son – 388

Rodriguez, Ri car do Vé lez – 385Rohe, Mies Van der – 305, 346, 352, 398Romanoff, So fia – 187, 198Rô mu lo – 23, 57, 76, 77Roosevelt, Frank lin – 236Roriz – 392, 399Rousseau – 174, 195, 202, 235, 335, 345

S

Saariren, Eli el – 84, 234, 301Sa int-Hi la i re – 336Saint-Simon – 160, 171, 173, 174, 338Samson, Ge or ge (sir) – 124 , 128San cho (fi lho de Fer di nan do) – 143Sancho, o Bra vo – 147 Sangallo – 157Santo André (após to lo) – 192 São Paulo – 286Sarney – 379, 382Sayão, Ber nar do – 333, 373, 393Sayyd (di nas tia) – 270Scamozzi, Vin cen zo – 374Schwartzman, Si mon – 385Sci pião – 171 235Scott, Ri chard (sir) – 249Seguier (chan ce ler) – 174Selim – 293Selkirk (lord) – 246Shepherd, Ale xan dre – 231, 232Sheremetief (ge ne ral) – 191Sitte, Ca mil lo (ar qui te to vi e nen se) – 83,

304, 305, 352 Six to V – 158 Skowronska, Ca ta ri na – 202Smith, John (ca pi tão) – 215, 216So li mão, o Mag ní fi co – 293

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is 455

Page 444: O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

Solon – 235Soothill, Rev. W. E. – 112 So pa ter (fi ló so fo) – 76 Soper, Ale xan dre – 128 So ter – ver Pto lo meuSpencer, Her bert – 338Spengler – 156 Sta lin – 385Stuart (di nas tia) – 176Stuart Mill, John – 388Stuart, Da vid – 219Sul li van – 352Sully – 205Suzdal – 186Swinton, G. S. C. – 276

T

Taff, Wil li am Ho ward – 233Taine – 171, 175Tai-Ping, os – 100Tairá, os – 129 Talleyrand – 170Tamanini, Fer nan do – 385Tamerlão – 270, 272, 274, 287Tanetsugú, Fu ji wa rá – 126 Tang (di nas tia) – 90, 91, 123, 124, 127,

128Taylor, G. R. – 304Tchu-Tsai, Yelu – 95Te mís to cles – 61Tenno, Jim mu (pri me i ro im pe ra dor ja po -

nês) – 122 Teó cri to (mé di co) – 64Te o dó sio (im pe ra dor) – 75, 80Thorsby, Char les – 300Tii, (Ra i nha – Mãe) – 47 Timmermann – 202

Ti mur-Lenk, “o coxo” – 270, 273Titiano – 171Tocqueville, Alé xis de – 178, 234, 404Todleben – 203Tolly, Bar clay de – 203Tolosa, Ra i mun do de – 287Tours, São Gre gó rio de – 409Toy, Phi li bert le – 160Trotski – 207Tuglak, Fi ruk – 269Turenne – 171, 205Turguenev – 206Turner, Ge or ge (sir) – 298Tu tank ha mon – 49 Tuth mo sis III (fa raó egíp cio) – 42, 43Tuti (ar tis ta egíp cio) – 47Tut més – 52Tut-Mo sis – ver Tut més Tzu, Lao – 105, 108, 112

U

Uccello – 155Uvarov (mi nis tro) – 206

V

Vallaux, Ca mil le – 21, 22, 26, 27, 28, 30,140, 207, 236

Valois (fa mí lia) – 178Vargas, Ge tú lio – 32, 379Vasco da Gama – 257Vauban – 172Venturini, Ro bert – 347Ves pa si a no – 62 Vianna, Fer nan do Se ga das – 358Vianna, Oli ve i ra – 385Vi a tor – 155

456 José Osval do de Me i ra Pen na

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Vignola, Gi a co mo Ba roz zi – 155, 158Vikramaditya, Chan dra gup ta – 268Villa-Lobos, He i tor – 439Villehardouin (o cro nis ta das Cru za das) –

80 Vi tó ria (ra i nha) – 31Vi tru vi us – 154 Vladimir – 186, 196Voltaire – 199, 246Von Der Goltz – 207Von Mengden – 202

W

Walcott – 227Washington, Ge or ge – 164, 179, 216,

218, 219, 220, 221, 223, 225, 227, 23,235, 237, 238

Wãth (pa dre) – 272Weber – 194, 195, 205, 406, 409Webster – 229Weisbrod – 198Wertheimer, Oscar – 66Wickelmann – 234Wild, Jo seph – 300William Holford, lord – 347Witte – 203

Wol fe – 246Wooley, Le o nard – 48Wright Lloyd, Frank – 305, 353Wright, Phi le mon – 246

X

Xá, Ba ha dur – 273Xá, Mu ha mad – 269Xá, Na dir – 272Xá, Sher – 270Xá, Xá-in – 270Xe nop hon tes – 84Xhiva – 267Xiaoping, Deng – 95, 101, 102

Y

Yeltsin – 187Yuan (di nas tia) – 95, 96Yuanchang, Chu – 97Yudenich – 207

Z

Zäringen (du que de) – 38Ze nó do to (gra má ti co) – 64Zeus (deus gre go) – 39, 60Zevi, Bru no (crí ti co ita li a no) – 348, 399

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is 457

Page 446: O desejo de construir, um dos mais fortes na natureza dos príncipes ...

Qu an do Mu dam as Ca pi ta is, de José Osval do de Me i ra Pen na, foicom pos to em Ga ra mond, cor po 12, e im pres so em pa pel Ver gê

Are ia 85g/m2, nas ofi ci nas da SEEP (Se cre ta ria Espe ci al deEdi to ra ção e Pu bli ca ções), do Se na do Fe de ral, em Bra sí lia.Aca bou-se de im pri mir em se tem bro de 2002, de acor do

com o pro gra ma edi to ri al e pro je to grá fi co doCon se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral.