O desporto e a imunidade: as “constipações” do...
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10 Novembro 2010 * www.revdesportiva.pt
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O desporto e a imunidade: as “constipações” do atleta
Introdução
O exercício físico caracterizado pelo tipo,
intensidade, duração e frequência das ses-
sões, influencia as respostas fisiológicas do
organismo, causando grandes alterações na
sua dinâmica. Simultaneamente, a resposta
imunológica influencia o estado de saúde,
primordial para o rendimento desportivo.
Os vários estudos longitudinais e transver-
sais (1,2,3,4) originaram algumas conclusões:
- A actividade física moderada pode me-
lhorar a função imunológica
- O exercício físico de alta intensidade
prejudica, ainda que temporariamente, a
competência imunológica
- A prática regular de exercício de inten-
sidade moderada parece reduzir o risco
de sintomatologia respiratória
- O aumento da actividade fisica nos
não-atletas está relacionado com a di-
minuição do risco de infecções das vias
aéreas superiores (IVAS)
- O esforço prolongado e intenso cau-
sa alterações na imunidade, que se re-
flectem em stress fisiológico e supres-
são imunológica
- Atletas com exercício físico regular e inten-
so têm aumento do risco de IVAS durante
os períodos de maior intensidade e mesmo
algumas semanas após as competições.
A relação entre a intensidade do exercício
físico e a sensibilidade às infecções tem sido
abordada por alguns autores (1,5). A relação
traduzida por uma curva em forma de J foi
proposta por Nieman em 1994 (6) “Gráfico 1”, na
qual se indicava que o exercício de intensida-
de moderada tinha efeito protector contra as
infecções, ao passo que o exercício de inten-
sidade elevada tinha efeito pernicioso ao au-
mentar o risco e número de infecções. Esta
conclusão resultou da análise de estudos
transversais e longitudinais, realizados com
maratonistas, homens e mulheres sedentá-
rios, assim como em outro tipo de atletas.
No entanto, o estudo realizado em 24 na-
dadores (8 do sexo masculino e 16 do sexo
feminino), sujeitos a treino intenso durante 4
semanas, verificou-se que 10 destes nadado-
res desenvolveram IVAS, mas tal aconteceu
em 9 atletas bem treinados e apenas em um
diagnosticado com síndroma de excesso de
treino (índices elevados e persistentes de fa-
abstract
A actividade física moderada e regular pode melhorar a função do sistema imunológico. Exer-cício intenso e prolongado causa imunosupressão, ainda que temporária, mas suficiente para predispor a maior risco e severidade de infecções respiratórias. Existem, contudo, outras si-tuações clínicas que pelos seus mecanismos fisiopatológicos, podem ser confundidas com processos infecciosos nos atletas. A abordagem terapêutica destas situações é diferente, real-çando-se os aspectos preventivos que nos atletas devem ser uma constante.
Moderate and regular sports activity can improve the immunological system. High intensity and prolonged exercise causes immunodepression and, although temporary, it could be enough to predispose to a bigger risk and severity for airway infections. There are, however, other clinical conditions, based on their physiopathological mechanisms, can simulate the infections in the athletes. The therapeutic attitude is different in these situations and the preventive aspects in the athletes must be a constant.
Exercício, Imunosupressão, Infecções das vias aéreas superiores,Prevenção; (Exercise, Immunosupression, Upper respiratory infections, Prevention.)
Drª arminda GuilhermeImunoalergologia – CHVNGaia/EspinhoResponsável da Consulta de Imunodeficiências Primárias
palavras-chavekeyworDs
» Rev Medicina Desp in forma, 1 (6), pp.10-12, 2010
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diga e diminuição do rendimento na natação) (7). Este estudo demons-
trou menor incidência de IVAS nos nadadores mais fatigados em re-
lação aos nadadores bem treinados, o que vem contrariar a teoria da
curva J. Moreira, A. et al (3) sugerem que os atletas de elite poderão
ter menor susceptibilidade às IVAS. A análise dos planos de treino
de vários atletas de corrida de fundo, onde se incluíam atletas de elite,
permitiu que C. Malm (1) propusesse a curva S para relacionar a carga
de exercício com o risco de IVAS. A análise dos treinos referentes
aos dois meses anteriores à participação na maratona, revelou que o
risco do atleta exposto a carga de treino baixa (< 32Km/semana) foi
semelhante à do atleta de elite (mais de 120Km/semana de corrida),
inferior ao exposto a carga elevada, mas superior ao exposto a carga
moderada. Por outro lado, outros autores concluíram que existe risco
aumentado de IVAS nos corredores sujeitos a treino intenso ou após
conclusão da maratona (2).
Ris
co d
e in
fecç
ão
baix
o
méd
io
al
to
ligeiro moderado intenso
Intensidade do exercício
Gráfico 1 - Adaptado de Nieman et al (1994)
A imunodepressão induzida pelo exercício tem origem multifactorial,
dependendo de mecanismos relacionados com os sistemas neurológi-
co, imunológico e endócrino que interagem entre si. No caso particular
do atleta, há determinantes individuais que o podem predispor mais fa-
cilmente ao estado de imunodepressão, e consequentemente, às IVAS.
- A idade (atletas mais jovens com sistema imune mais imaturo)
- O estado de saúde inicial (estar em “boa forma física”), respei-
tando-se as necessidades suficientes de sono e descanso
- O estado nutricional do indivíduo: admite-se que a suplemen-
tação com a associação das Vitaminas C, D e beta caroteno, antes
e após as maratonas, pode prevenir os sintomas respiratórios (8).
Os agentes probióticos, de que são exemplos o L. rhamnosus GG,
o L. fermentum VRI-003, poderão ter interesse, pois há trabalhos
a referir o decréscimo significativo no número de dias com sin-
tomas de IVAS e a tendência para quadros clínicos mais leves (3).
As bebidas e os alimentos ricos em carbohidratos e glutamina
também poderão ter interesse (8).
- O estilo de vida do atleta pode também influenciar a maior pre-
disposição para infecções, não só respiratórias, mas também de
outros sistemas, nomeadamente do cutâneo e génito-urinário (9):
situações de convivência em grupo e relacionadas com viagens e
alojamento com atletas de outras regiões.
Atletas alérgicos
A atopia é também um dos factores individuais, que tanto pode
influenciar essa predisposição, como ser confundida com as in-
fecções respiratórias. A alergia faz parte de um grupo de doenças
com origem numa reacção excessiva e inadequada do sistema
imunitário aos antigénios. Estas respostas de “hipersensibilidade”
causam doenças. As reacções de tipo I, ou de “hipersensibilidade”
imediata, têm a sua origem na produção de anticorpos IgE contra
antigénios (ou alergénios) que se encontram nas superficies muco-
sas, pele, conjuntivas e aparelho respiratório e gastrointestinal. Os
indivíduos com predisposição a produzir estas IgE são chamados
atópicos. Há uma proporção muito elevada de jovens atletas que
ainda não foram diagnosticados como alérgicos e em Portugal, de
acordo com o estudo ISAAC (International Study of Allergy and
Asthma in Childhood), a prevalência de rinite em indivíduos entre
15 e 25 anos de idade é cerca de 39.6% (10). Normalmente são jovens
que “ andam constantemente constipados” com rinorreia anterior
aquosa, espirros em salva, obstrução nasal de maior ou menor in-
tensidade, prurido nasal, por vezes em associação a queixas ocula-
res (vermelhidão, prurido e lacrimejo). Existem sinais que podem
apoiar o diagnóstico como a prega transversal no nariz, os círculos
escuros debaixo dos olhos (olheiras) e o sinal da saudação alérgica.
Podem ser sintomas toleráveis ou interferirem com as actividades
diárias, nomeadamente escolares, desportistas ou até de lazer. Deve
ser sempre avaliada a eventual existência de asma associada, espe-
cialmente em casos de rinite moderada /grave e/ou persistente.
Hiperreactividade das vias aéreas
É um estado de aumento da sensibilidade (ou irritação) das vias
aéreas, desencadeada por factores específicos (como os alergé-
nios) ou inespecíficos (químicos ou fisicos), podendo ser erra-
damente reportada como um episódio infeccioso. O ambiente
específico de cada tipo de desporto associa-se a alterações da
reactividade ou sensibilidade das vias aéreas induzida pelo exer-
cício, confundindo-se muitas vezes com IVAS (11). Durante o
exercício físico, a evaporação da água das vias aéreas, ocasiona a
formação de fluidos hiperosmolares, a inalação de partículas po-
luentes e o efeito do ar frio no caso dos corredores e a inalação
de cloraminas nos nadadores, condicionam o principal “gatilho”
fisiopatológico do desencadear da chamada hiperreactividade
brônquica ou nasal pós-exercício. A rinite induzida pelo exercício,
à semelhança da rinite alérgica, caracteriza-se clinicamente por
espirros, prurido nasal, rinorreia e/ou escorrências posteriores,
congestão/obstrução nasal e anosmia ocasional. Muito frequen-
temente associam-se sintomas oculares, auditivos e da orofaringe.
Infecções das vias aéreas superiores
As infecções respiratórias virais (rinofaringites) de predomínio ou-
tono-inverno constituem um grave problema de saúde mundial,
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em crianças e em adultos e representam a forma mais prevalente
e patogénica de doença infecciosa. Resultam do desequilíbrio en-
tre os mecanismos de defesa pulmonares e a pressão microbioló-
gica. Normalmente as formas de contágio são através de gotículas
(espirros, material e superfícies contaminadas), são auto limitadas
(7-14 dias) e têm evolução benigna. Os vírus mais frequentemente
implicados são os Rhino e Coronavirus, enquanto os Parainfluenza,
Adenovírus e VSR têm maior trofismo pelas vias aéreas inferiores.
A sintomatologia consiste habitualmente em congestão nasal, com
rinorreia (vulgar pingo com “fungares” constantes), indisposição ou
mal-estar geral, cefaleias, mialgias, odinofagia, sensação de pressão
auditiva, tosse e febre (38-40 ºC).
Figura 1- Mucosa nasal normal (cima) e inflamada (baixo)
Tratamento
O tratamento deve ser primariamente sintomático, com controlo
e vigilância da febre. Podem ser prescritos antipiréticos, anti-infla-
matórios não esteróides, eventualmente anti-histamínico, oral e
não sedativo, e descongestionantes nasais. As lavagens frequentes
das cavidades nasais com líquidos hiper ou hipoosmolares podem
estar indicadas. Se a obstrução se torna muito intensa e incomoda-
tiva deve prescrever-se um corticoide tópico nasal. Se a rinorreia é
o sintoma mais predominante é útil a utilização de anticolinérgico
intranasal. Deve ser instituído maior descanso, principalmente se
houver suspeita de infecção pelo vírus Ebstein-Barr onde a para-
gem desportiva é mandatória, pelos riscos de sobrecarga e ruptura
esplénica (12). A infecção vírica pode atingir o coração, causando
miocardite e/ou pericardite. Não deve ser prescrito o antibiótico
enquanto não houver sinais e sintomas que alertem para provável
sobreinfecção bacteriana (que só acontece em cerca de 0.5-2% dos
casos). Os antibióticos são ineficazes nas infecções virais, as quais
são a causa da grande parte da patologia respiratória, podendo au-
mentar as resistências bacterianas. É, todavia, certo que em certas
infecções virais a sobreinfecção bacteriana é causa de agravamento
do quadro clínico, e neste caso o uso de antibióticos deve ser ponde-
rado e iniciado ainda que empiricamente. Não devem ser prescritos
antibióticos de largo espectro, excepto se houver justificação clínica.
Imunoestimulantes
A alta prevalência de infecções respiratórias, o seu custo socioeco-
nómico e o problema das crescentes resistências bacterianas justi-
ficam a visão preventiva. Os chamados imunoestimulantes foram
introduzidos no mercado nos anos oitenta. São preparados de ori-
gem bacteriana (extractos ou lisados), têm a capacidade de estimu-
lar uma resposta imunológica específica e não específica, actuando
sobre as células polimorfonucleares e sobre os macrófagos e sobre
as células natural killer (NK) através da estimulação inicial do tecido
linfóide do intestino. São administrados por via oral, exercendo a
sua acção através do contacto inicial com o gut associated lymphoid
tissue (GALT), a partir do qual a informação é transmitida ao sis-
tema imunitário. A sua utilização reduz a frequência e a gravidade
das infecções, funcionando como adjuvantes dos antibióticos. Po-
dem mimetizar uma constipação nos primeiros dias de toma, mas
sem efeitos secundários relevantes (5). Os efeitos clínicos tornam-se
mais notórios a partir do 3º mês. Por vezes recomenda-se a sua uti-
lização duas vezes/ano para aumentar a capacidade de protecção.
Na prática clínica, estes produtos não são ainda totalmente aceites e
a sua comparticipação pelos serviços de saúde nacionais foi descon-
tinuada, apesar dos resultados evidentes da sua utilização na pre-
venção de infecções respiratórias, redução do uso de antibióticos,
melhoria na qualidade de vida, diminuindo o absentismo escolar,
laboral e lazer. Estes factores globalmente conduzem à redução de
custos directos e indirectos de saúde e assistência social (5). Há ainda
autores que defendem e recomendam a imunização anual, no Ou-
tono, para o vírus influenza em atletas de elite (9).
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