O Devir Revolucionário e as Criações Políticas_GILLES DELEUZE A TONI NEGRI

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8/6/2019 O Devir Revolucionário e as Criações Políticas_GILLES DELEUZE A TONI NEGRI http://slidepdf.com/reader/full/o-devir-revolucionario-e-as-criacoes-politicasgilles-deleuze-a-toni-negri 1/7 O DEVIR REVOLUCIONÁRIO E AS CRIAÇÕES POLÍTICAS ENTREVISTA DE GILLES DELEUZE A TONI NEGRI  Tradução: João H. Costa Vargas  Em sua trajetória intelectual, o problema do político parece ter es- tado sempre presente. De um lado, a participação nos movimentos (pri- sões, homossexuais, autonomia italiana, palestinos), e, de outro, a cons- tante problematização das instituições se seguem e se entrelaçam em sua obra, desde o livro sobre Hume até aquele sobre Foucault. A que se deve essa contínua abordagem da questão do político e como é que ela ainda se mantém no centro de sua obra? Por que a relação movimento-instituição é sempre problemática? Eu estava mais interessado nas ações coletivas do que nas repre- sentações. Dentro das "instituições", há todo um movimento que se dis- tingue tanto da lei quanto dos contratos. O que procurava em Hume era uma concepção inovadora da instituição e do Direito. No começo me in- teressava mais pelo Direito que pela política. O que me agradava em Ma- soch e Sade eram suas concepções inusitadas — do contrato segundo Ma- soch, da instituição segundo Sade, ambas relacionadas à sexualidade. Ain- da hoje, o trabalho de François Ewald para restaurar uma filosofia do Di- reito me parece essencial. O que me interessa não é a lei, nem são as leis (a primeira é uma noção vazia, as outras são noções cômodas, fáceis), e mais que o Direito e os direitos, é a jurisprudência. É a jurisprudência que é verdadeiramente criadora de direito: seria necessário que ela não fi- casse confinada somente aos juizes. Já se pensa em fixar o direito da bio- logia moderna: mas tudo na biologia moderna — as novas situações que ela cria, os novos acontecimentos que ela torna possível — é tema de ju- risprudência. Não é de um comitê de sábios, moral e pseudocompetente que precisamos, mas de grupos de usuários. É aqui que passamos do di- reito para a política. Essa passagem à política, no que me concerne, ocor- reu com maio de 68, na medida em que mantinha contato com proble- mas precisos, graças a Guattari, graças a Foucault, graças a Elie Sambar. O Anti-Édipo foi todo ele um livro de filosofia política. Esta entrevista foi publi- cada em Futur antérieur, Nº 1, primavera de 1990.  67 

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    O DEVIR REVOLUCIONRIO E ASCRIAES POLTICAS

    ENTREVISTA DE GILLES DELEUZE A TONI NEGRI

    Traduo: Joo H. Costa Vargas

    Em sua trajetria intelectual, o problema do poltico parece ter es-tado sempre presente. De um lado, a participao nos movimentos (pri-ses, homossexuais, autonomia italiana, palestinos), e, de outro, a cons-tante problematizao das instituies se seguem e se entrelaam em suaobra, desde o livro sobre Hume at aquele sobre Foucault. A que se deveessa contnua abordagem da questo do poltico e como que ela aindase mantm no centro de sua obra? Por que a relao movimento-instituio sempre problemtica?

    Eu estava mais interessado nas aes coletivas do que nas repre-sentaes. Dentro das "instituies", h todo um movimento que se dis-tingue tanto da lei quanto dos contratos. O que procurava em Hume erauma concepo inovadora da instituio e do Direito. No comeo me in-teressava mais pelo Direito que pela poltica. O que me agradava em Ma-soch e Sade eram suas concepes inusitadas do contrato segundo Ma-soch, da instituio segundo Sade, ambas relacionadas sexualidade. Ain-da hoje, o trabalho de Franois Ewald para restaurar uma filosofia do Di-reito me parece essencial. O que me interessa no a lei, nem so as leis(a primeira uma noo vazia, as outras so noes cmodas, fceis), emais que o Direito e os direitos, a jurisprudncia. a jurisprudncia que verdadeiramente criadora de direito: seria necessrio que ela no fi-casse confinada somente aos juizes. J se pensa em fixar o direito da bio-logia moderna: mas tudo na biologia moderna as novas situaes queela cria, os novos acontecimentos que ela torna possvel tema de ju-risprudncia. No de um comit de sbios, moral e pseudocompetenteque precisamos, mas de grupos de usurios. aqui que passamos do di-reito para a poltica. Essa passagem poltica, no que me concerne, ocor-reu com maio de 68, na medida em que mantinha contato com proble-mas precisos, graas a Guattari, graas a Foucault, graas a Elie Sambar.O Anti-dipo foi todo ele um livro de filosofia poltica.

    Esta entrevista foi publi-cada em Futur antrieur,N 1, primavera de 1990.

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    Voc interpretou os acontecimentos de 68 como sendo o triunfodo Intempestivo, a realizao da contra-efetuao. J nos anos anterioresa 68, no trabalho sobre Nietzsche, e mesmo um pouco mais tarde, em Sa-cher Masoch, o poltico reconquistado como possibilidade, acontecimen-to, singularidade. H curtos-circuitos que abrem o presente sobre o futu-ro. (E que modificam, ento, as instituies?) Mas depois de 68, sua avalia-

    o parece adquirir nuances: o pensamento nmade se apresenta sempre,no tempo, na forma da contra-efetuao instantnea; no espao, somenteum "devir minoritrio universal". Mas o que ento essa universalida-de do intempestivo?

    que, cada vez mais, eu estava sensvel a uma distino possvelentre o devir e a histria. Nietzsche dizia que nada importante ocorre semuma "nuvem no-histrica". No uma oposio entre o eterno e o his-trico, nem entre a contemplao e a ao: Nietzsche fala daquilo que ocor-re, do acontecimento mesmo, ou do devir. que a histria compreendeo acontecimento, sua efetuao em certos estados de coisas, mas o acon-tecimento em seu devir escapa histria. Sem a histria a experimenta-o permaneceria indeterminada, no condicionada mas a experimen-

    tao no histrica. Em um grande livro de filosofia, Clio, Pguy expli-cava que h duas maneiras de considerar o acontecimento, uma que con-siste em negligenciar o todo do acontecimento, em confinar a efetuaodentro da histria, o condicionamento e a degradao dentro da histria,e outra em reconstituir o acontecimento, se instalar nele como dentro deum devir, em rejuvenescer e em envelhecer nele ao mesmo tempo, empassar por todos os seus componentes ou singularidades. O devir no histria; a histria marca somente o conjunto de condies por maisrecentes que sejam das quais desviamos para "devirmos", quer dizer,para criarmos alguma coisa de novo. exatamente o que Nietzsche cha-ma de Intempestivo. Maio de 68 foi a manifestao, a irrupo de um de-vir em estado puro. Hoje a moda denunciar os horrores da revoluo.

    E no h muita novidade nisso: todo o romantismo ingls est impregna-do de uma reflexo sobre Cromwell muito anloga quela que se faz so-bre Stlin nos dias de hoje. Dizemos que as revolues tm um futuro som-brio. Mas estamos constantemente misturando duas coisas, o devir das re-volues na histria e o devir revolucionrio das pessoas. No se trata dasmesmas pessoas nos dois casos. A nica chance dos homens est no devir-revolucionrio, o nico movimento capaz de esconjurar a vergonha ouresponder ao intolervel.

    Me parece que Mille Plateaux, que considero uma das grandes obrasfilosficas deste sculo, tambm um catlogo de problemas no resolvi-

    dos, principalmente no domnio da filosofia poltica. Os pares conflitivosprocesso-projeto, singularidade-sujeito, composio-organizao, linhas defuga, dispositivos e estratgias, micro-macro etc. tudo isso no somen-te permanece em aberto, mas tambm constantemente redescoberto,

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    com uma impressionante disposio terica e com uma violncia que fazlembrar o tom das heresias. No tenho nada contra tal subverso, muitoao contrrio... Mas s vezes me parece tratar-se de uma nota trgica, alionde no sabemos a que leva a "mquina de guerra".

    Sou sensvel ao que voc disse. Acho que Flix Guattari e eu per-manecemos marxistas, talvez de modos diferentes, mas permanecemos. que no acreditamos em uma filosofia poltica que no esteja centrada

    na anlise do capitalismo e de seus desenvolvimentos. O que mais nos in-teressa em Marx a anlise do capitalismo como sistema imanente, queno cessa de expandir seus prprios limites, e que os encontra toda vezem uma escala aumentada porque o limite o prprio Capital.Mille Pla-teaux indica muitas direes, entre as quais as trs seguintes so as princi-pais: antes de tudo, nos parece que uma sociedade se define menos porsuas contradies que por suas linhas de fuga ela irradia por todo lado, e muito interessante tentar seguir as linhas de fuga que se desenham.Tomemos o exemplo da Europa de hoje: os polticos ocidentais tiverammuita dificuldade para constru-la, os tecnocratas tiveram muito trabalhopara uniformizar regimes e regulamentos; mas o que ameaa surpreender,por um lado, so as exploses que podem ser produzidas entre os jovens,

    entre as mulheres, em funo da simples expanso dos limites (a qual no "tecnocratizvel"), e de outro, ( muito engraado falar isso) essa Eu-ropa que j est completamente ultrapassada antes mesmo de ter comea-do ultrapassada pelos movimentos que vm do Leste. Essas so impor-tantes linhas de fuga.

    H uma outra direo emMille Plateaux, que no consiste mais emsomente considerar as linhas de fuga em detrimento das contradies, masem pensar as minorias em detrimento das classes. Por ltimo, uma tercei-ra direo, que consiste em procurar o estatuto das "Mquinas de Guer-ra", que no se definiriam de forma alguma pela guerra, mas por uma cer-ta maneira de ocupar, de preencher o espao-tempo, ou de inventar no-vos espaos-tempos: os movimentos revolucionrios (no analisamos su-

    ficientemente, por exemplo, como a OLP precisou inventar um espao-tempo no mundo rabe) e tambm os movimentos artsticos so tais m-quinas de guerra.

    Voc diz que tudo isso tem um ar trgico, ou melanclico. Achoque sei por qu. Fiquei muito tocado pelas pginas de Primo Levi, ondeele explica que os campos nazistas introduziram em ns "a vergonha deser homem". No porque, diz ele, somos todos responsveis pelo nazis-mo, como nos quiseram fazer acreditar, mas porque fomos corrompidospor ele: at os sobreviventes dos campos fizeram concesses para nomorrer, verdade, mas fizeram. Vergonha por haver existido homens quese dispuseram a ser nazistas; vergonha por no ter sabido como impedi-lo; vergonha por ter feito concesses: tudo isso Primo Levi chama da "zona

    cinzenta". E experimentamos essa vergonha de ser homem nas situaesmais insignificantes: ante um pensamento muito vulgar, ante um progra-ma de variedades no rdio ou na TV, ante o discurso de um ministro, ante

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    as falas de "bons-vivants". uma das razes de ser mais relevantes da fi-losofia, o que a faz necessariamente uma filosofia poltica. No capitalismos h uma coisa universal, que o mercado. No h Estado universal, jus-tamente porque h um mercado universal no qual os Estados so os fo-cos, so as Bolsas. Ele no mais universalizante, homogeneizante; umafantstica indstria de riqueza e de misria. No h Estado democrticoque no esteja comprometido at a raiz com esta fabricao de misria

    humana. A vergonha que no dispomos de qualquer meio realmente efi-caz de preservar, e mesmo desenvolver as transformaes em ns mes-mos. Em que se transformar um grupo, como ele se reinserir na hist-ria: o que impe um perptuo "cuidado". No mais dispomos de umaimagem do proletariado da qual bastaria tomar conscincia.

    Como o devir minoritrio pode ser poderoso? Como a resistnciapode se tornar uma insurreio? Ao ler seus livros, fico sempre na dvidacom relao s respostas para tais perguntas , mesmo encontrando emsua obra, invariavelmente, um estmulo que me obriga a reformular teri-ca e praticamente essas mesmas perguntas. E assim, quando leio suas p-

    ginas sobre a imaginao e as noes comuns em Spinoza, ou quando leio em Image-Temps a sua descrio da composio do cinema revolu-cionrio nos pases do Terceiro Mundo, compreendo com voc a passa-gem da imagem fabulao, prxis poltica, tenho quase a impressode ter achado uma resposta... Ou ser que estou enganado? Existiria ummundo no qual a resistncia dos oprimidos poderia se tornar eficaz e ointolervel definitivamente eliminado? Existiria uma maneira atravs daqual a massa de singularidades e de tomos que todos somos poderia seapresentar como poder constituinte, ou, ao contrrio, deveramos aceitaro paradoxo jurdico segundo o qual o poder constituinte s pode ser de-finido pelo poder constitudo?

    As minorias e as maiorias no se distinguem pelo nmero. Uma mi-

    noria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria um modelo aceito: por exemplo, o europeu mediano, adulto, masculi-no, residente em cidades... Uma vez que uma minoria no tem um mode-lo, um devir, um processo. Podemos dizer que a maioria Ningum.Todos, em um aspecto ou em outro, esto em um devir minoritrio queleva caso trilhado a caminhos desconhecidos. Quando uma minoriacria modelos para si, porque ela quer se tornar majoritria, e essa cria-o sem dvida inevitvel, tendo em vista sua sobrevivncia ou salva-o (por exemplo, atravs da criao de um Estado, de um reconhecimento,da imposio de seus direitos). Mas seu poder vem daquilo que ela soubecriar, e que entrar mais ou menos no modelo, sem dele depender. O po-vo sempre uma minoria criativa e que assim permanece mesmo quando

    conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir porque no se dono mesmo plano. Os maiores artistas (sem serem artistas populistas) se di-rigem a um povo, e constatam que "falta o povo": Mallarm, Rimbaud,

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    Klee, Berg. No cinema, os Straub. O artista s pode se dirigir a um povo,ele precisa profundamente de seu envolvimento, ele no tem como cri-lo, ele no pode. A arte que resiste: ela resiste morte, servido, fo-me, vergonha. Mas o povo no pode se ocupar com a arte. Como entose cria um povo, em meio a que sofrimentos abominveis? Quando umpovo se cria, atravs de seus prprios meios, mas de uma maneira querecupera alguma coisa da arte (Garel diz que o museu do Louvre, ele tam-

    bm, contm muito desse sofrimento abominvel), ou ento de maneiratal que a arte recupera o que a ele faltava. A utopia no um bom concei-to: h uma "fabulao" comum ao povo e arte. Seria necessrio retomara noo bergsoniana de fabulao para dot-la de um sentido poltico.

    Em seu livro sobre Foucaulte tambm em sua entrevista para o Ins-titut National de 1'Audiovisuel, voc se prope a aprofundar o estudo so-bre trs prticas de poder: o Soberano, o Disciplinar, e sobretudo aqueledo Controle sobre a "comunicao", o qual, hoje, est para se tornar he-gemnico. De um lado, este ltimo cenrio remete mais alta perfeioda dominao que incide tambm sobre a palavra e a imaginao, mas de

    outro, ede uma maneira nunca antes vista, todos os homens, todas as mi-norias, todas as singularidades so potencialmente capazes de retomar apalavra e, com ela, um grau mais alto de liberdade. Na utopia marxianados Grundrisse, o comunismo se configura justamente como uma organi-zao transversal de indivduos livres, sobre uma base tcnica que garan-te as condies dessa organizao. O comunismo ainda pensvel? Na so-ciedade da comunicao, ele , talvez, menos utpico que outrora?

    certo que entramos na era das sociedades de "controle", que noso mais exatamente disciplinares. Foucault , no mais das vezes, consi-derado como o pensador das sociedades da disciplina e de sua tcnica prin-cipal, o confinamento (no somente o hospital e a priso, mas a escola,a fbrica, o quartel). Mas, de fato, ele um dos primeiros a dizer que esta-

    mos deixando para trs as sociedades disciplinares, que j no somos maisisso. Entramos na sociedade de controle, que no mais funciona por con-finamento, mas por controle contnuo e comunicao instantnea. evi-dente que no deixamos de falar de priso, de escola, de hospital: essasinstituies esto em crise. Mas se elas esto em crise, precisamente noscombates de retaguarda. Vo surgindo, aos poucos, novos tipos de san-es, de educao, de assistncia. Os hospitais abertos, as equipes de as-sistncia atendendo a domiclio etc. apareceram j h muito tempo. Po-demos prever que a educao ser cada vez menos algo fechado, distintado meio profissional tambm fechado, e que ambos desaparecero em fa-vor de uma terrvel formao permanente, de um controle contnuo exer-cido sobre o operrio-estudante ou sobre o profissional universitrio. Que-

    remos acreditar que se trata de uma reforma da escola, quando na verda-de se trata de uma liquidao. Em um regime de controle nunca se destricompletamente qualquer coisa. Voc mesmo, h muito tempo, analisou

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    uma mutao do trabalho na Itlia, ocorrida com as formas de trabalhotemporrio, domiciliar, que depois se afirmaram (o mesmo ocorrendo comnovas formas de circulao e de distribuio de produtos). A cada tipode sociedade, evidentemente, podemos encontrar um tipo de mquinacorrespondente: mquinas simples ou dinmicas para as sociedades de so-berania, mquinas energticas para as sociedades disciplinares, as ciber-nticas e os computadores para as sociedades de controle. Mas as mqui-

    nas nada explicam. necessrio analisar os agenciamentos coletivos en-tre os quais as mquinas so apenas uma parte. Frente s possveis formasde controle incessante, em praa pblica, pode ocorrer que os mais du-ros confinamentos nos paream pertencer a um passado agradvel e be-nevolente. H muito com que se preocupar nas pesquisas sobre os "uni-versos da comunicao". verdade que, antes mesmo das sociedades decontrole terem se organizado plenamente, as formas de delinqncia oude resistncia dois casos distintos j aparecem. Por exemplo os ca-sos de pirataria ou os vrus de computador, que substituiro as greves eo que chamvamos no sculo XIX de "sabotage"1. Voc pergunta se associedades de controle ou de comunicao no suscitaro formas de re-sistncia capazes de dar novas chances a um comunismo concebido co-

    mo "organizao transversal de indivduos livres". No sei, talvez. Masisso no ocorrer em funo de as minorias poderem retomar a palavra.Talvez a palavra, a comunicao esteja podre. Elas esto completamenteimpregnadas do dinheiro: no por acidente, mas por natureza. necess-rio subverter a palavra. Criar sempre foi coisa diferente de comunicar. Im-portar, talvez, criar vacolos de no-comunicao, interruptores, para es-capar ao controle.

    Em Foucault e em Le Pli, parece que o processo de subjetivaorecebe mais ateno que em outras obras suas. O sujeito o limite de ummovimento contnuo entre um interior e um exterior. Que conseqn-

    cias polticas tem essa concepo de sujeito? Se o sujeito no pode serresolvido na exterioridade da cidadania, ele pode instaur-la na potnciae na vida? Ele pode tornar possvel um novo pragmatismo militante, aomesmo tempo "pietas" em relao ao mundo e construo radical? Quepoltica pode prolongar na histria o esplendor do acontecimento e dasubjetividade? Como pensar uma comunidade sem fundamento mas po-tente, sem totalidade mas, como em Spinoza, absoluta?

    Podemos, de fato, falar de processos de subjetivao quando con-sideramos as diversas maneiras atravs das quais os indivduos ou as cole-tividades se constituem enquanto sujeitos: tais processos tm valor na me-dida em que, ao ocorrerem, escapam tanto dos saberes constitudos quantodos poderes dominantes. Mesmo se eventualmente engendram novos po-

    deres, evocam novos saberes. Em seu surgimento, todavia, eles tm umaespontaneidade rebelde. No h, neles, qualquer retorno ao "sujeito", ouseja, a uma instncia dotada de deveres, de poder e de saber. Mais que

    (1) Sabotagem era origi-

    nalmente o ato pelo qualos operrios colocavam o"sabot" (tamanco) nasmquinas, com o intuitode trav-las. (N. do T.)

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    de processos de subjetivao, podemos falar de novos tipos de aconteci-mentos: acontecimentos que no se explicam pelos estados de coisas queos suscitam, ou nos quais incidem. Eles vm tona por um instante, e este momento que importante, a oportunidade que deve ser agarra-da. Ou ento poderamos falar simplesmente do crebro: o crebro que o exato limite de um movimento contnuo reversvel entre um interiore um exterior uma membrana entre eles. Novas dinmicas cerebrais,

    novas maneiras de pensar no se explicam pela microcirurgia; ao contr-rio, a cincia que deve se esforar para descobrir o que h no crebro eque nos faz pensar de tal ou qual maneira. Subjetivao, acontecimento,crebro me parece que so a mesma coisa. Acreditar no mundo oque mais nos falta; perdemos o mundo; ele nos foi tomado. Acreditar nomundo tambm suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que es-capem do controle, ou ento fazer nascer novos espaos-tempos, mesmode superfcie e volume reduzidos. o que voc chama de "pietas". aonvel de cada tentativa que so julgadas a capacidade de resistncia ou,ao contrrio, a submisso a um controle. So necessrios, ao mesmo tem-po, criao e povo.

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    N 28, outubro 1990pp. 67-73

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