O Diabo No Trem Baiano - rl.art.br · 3 Coroné Nézinho di Carnaíba do Sertão, seguido de seu...
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Zésouza
O
Diabo
No
Trem
Baiano
(2012)
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Jurado de morte o coroné
Nézinho viaja de São Paulo a
Juazeiro da Bahia no Trem
Baiano.
Povoados,vilas e cidades
passam pela janela do trem
enquanto a histórias e lendas
desses povoados,vilas e
cidades passam pelo
corredor desse trem...
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Coroné Nézinho di Carnaíba do Sertão, seguido
de seu fiel escudeiro Zédizefa, saltou do bonde e
entrou no Mercado Publico sacudindo a bengala e
sentindo o cheiro gostoso da fartura. Chapéu
branco e aquela alegria, que São Paulo oferecia,
de poder andar de camisa de manga comprida. E foi
a Banca do Sergipano que ali tinha as coisas do
gosto do povo do norte: fubá de milho, feijão de
corda, manteiga de garrafa, castanha de caju
torrada, goma pra fazer tapioca, licor de
jenipapo, rapadura, pinga e muito mais. E o
Sergipano sabia noticias de todo o canto daquele
norte, que na verdade é o nordeste,que chegavam no
sul, que na verdade é o sudeste.
Depois de contar que os moleques amarraram um
bode no sino da estação de Carnaíba do Sertão, e
que o bicho berrou e pulou a noite toda batendo o
sino e assombrando meio mundo. Depois de contar
que na vila da Massaroca muita gente viu o Saci-
Pererê montado num jegue. Depois de contar que um
retirante chegou no Juazeiro com tanta fome que
comeu dez canecas de mungunzá. Depois de contar
perguntou:
- O coroné tá contente?... O distrito tem é
mais nove votantes...
Coroné Nézinho regalou o olho
interrogativamente. Olhou pro Zédizefa, olhou pro
Sergipano, sacudiu a bengala. O Sergipano contou:
- A pois que Severino Cabeça de Égua, voltou
pra Carnaíba... Ele mais a família e mais os três
genros, e é tudo gente que sabe escreve o nome...
É gente que vota...
Coroné Nézinho nem contou até dois e puxou
Zédizefa pelo braço e rumou pra casa.
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Coroné andando de lá pra cá, de cá pra lá,
batendo com a ponta da bengala no assoalho da
sala. Zédizefa debruçado na mesa entre jornais,
envelopes, tinteiro, pena, mata borrão, lápis,
borracha e cadernos, finalmente encontrou o que
procurava:
- Tá aqui... A última carta que Zé do Bode
mandou...Carnaíba do Sertão no dia vinte...
- Pule isto.
- Estou pegando na pena...
- Oxente! Pule os começos.
- O trem da Leste matou um bode de
Quinzinho...
- Pule isso... Getulio Vargas preocupado com
monopólio do petróleo e o besta preocupado com um
bode... Siga.
- Democraticamente nas nossas democracias
perdemos um eleitor a pois que o Toínho roubou a
mulher do Lalau e ele mais ela tomaram a garupa do
trem da Leste no rumo dos mundos de São
Paulo...Vou terminando mais essa pedindo as
devidas desculpas pela letra...
- E não falou da chegada de Severino Cabeça de
Égua mais a família na Carnaíba?
- Falou não.
- É... Pega o caderno e veja quantos eleitores
nós temos no distrito.
Zédizefa abriu o caderno e mostrou:
- Veja o último número com os olhos do senhor.
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Coroné leu o numero, bateu a bengala e
perguntou:
- Nessa conta, você já tirou o Toínho?
- Sim... Sempre que chega uma carta com
informação, lá da Carnaíba...Já boto os números em
dia.
Coroné andou, desandou, foi ali, voltou
praqui, pensou e decidiu:
-É...Zé do Bode não sabe manejar com as
democracias... Os adversários tão é rindo de nossa
cara... Lesbão, que é o cabo eleitoral deles na
Carnaíba, tá é lavando a égua...A pois eu mais tu
tamos voltando pra Carnaíba do Sertão...
Zédizefa levantou tremendo e perguntando:
-O coroné tá doido?
Coroné olhou o Zédizefa de cima a baixo e
disse:
- Tá se borrando seu cabra frouxo!
O coroné não tava em São Paulo nem a passeio e
nem em serviço e sim por recomendação médica.
Relaxamento de sistema nervoso. Que tudo começou
quando o coroné discutiu política com um cabra de
nome Epifanio. E a discutição foi violenta. No
outro dia o Epifanio vinha pelo caminho da
Carnaíba pro Juazeiro com um bode de cabresto.
Coroné viu e logo teve o pensamento: Epifanio
vende o bode, compra um revolver e vem matá eu.
Coroné matou o Epifanio. Claro! Legítima defesa.
No sertão o cabra macho não tem o direito de se
defender, ele tem é o dever. Depois dos qüiproquós
com o delegado e com o prefeito, foi então que o
médico do partido e da família aconselhou: vá pro
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sul, tire um tempo lá em São Paulo e de tempo ao
tempo pra o acontecido se perder no esquecimento.
Aconteceu que um parente de Epifanio andou
falando na feira do Juazeiro e o que ele falou se
espalhou, pela Rua da Apolo, Rua da Vinte Oito,
Rua do Cais, no Mercado, na Estação da Leste, no
Alagadiço, no Quidé, no Alto do Cruzeiro,na
Maringá, no Piranga, No Angari e se espalhou pelos
distritos da Massaroca, do Juremal e na Carnaíba
do Sertão. O que ele falou foi:
- O dia que coroné Nézinho voltar ele vai vê o
diabo no Trem Baiano... O diabo no Trem Baiano.
A casa se respirava Nordeste, alias, respirava
Bahia, na verdade respirava a Juazeiro. Nas
paredes os retratos da Ponte Presidente Dutra, da
bonita Estação da Leste, da Catedral de Nossa
Senhora das Grotas. A carranca, esculpida em
madeira, num canto da peça. Calendários de casas
de comercio de Juazeiro e até um de Carnaíba do
Sertão.Da cozinha a mistura de cheiros de coentro,
nós moscada, gengibre, azeite de dendê, leite de
coco, de peixe, de carne de sol.
Coroné Nézinho sentado a cabeceira da mesa.
Junto ao fogão Vandinha e Leninha pilotando as
panelas. Belinha ajeitando os pratos e talheres na
mesa. Num canto sentados os três maridos tomando
uma cachacinha composta com carqueja e umburana.
Afastado,recostado na parede, o Zédizefa.
Vandinha a irmã mais moça e a mais forte mexia
o vatapá e enquanto dava muque falou:
-Se Nézinho tá querendo ir, que vá até
Pirapora de trem e vá prá Juazeiro de vapô.
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Coroné bateu a bengala no chão e falou:
- Eu vou, mas é no trem da Leste. Imagina; se
embarca no Benjamin Guimarães que vai parando em
tudo que é porto?
Zédizefa entrou na conversa:
- O mais bom é se pegar o Vapozinho...O
Vapozinho Saldanha Marinho corta água...
Dona Belinha olhou por trás das lentes grossas
de seus óculos e deu a ordem:
- Zédizefa... Limite se.
Leninha fez sinal para Zédizefa botar lenha no
fogo e disse:
- Com o Nézinho e com jegue não se
discute...Só digo uma...Já deixa escrito como vai
dividir sua roça, porque seus três filhos vão
brigar...
Coroné sacudiu a mão no ar falando:
- Cuide a moqueca pra não queimar.
Dona Belinha, baixinha gordinha, míope mas
enxergava longe. A única que não morava em São
Paulo, morava no Rio de Janeiro a Capital Federal
onde era funcionária do Senado Federal, veio
acompanhada do marido no trem noturno de luxo
chamado Santa Cruz especialmente para aquela
reunião. Pois dona Belinha disse:
- Zédizefa chegue perto e bote
atenção...Nézinho tá com sessenta anos, tá viúvo,
tá com os filhos criados,tá vacinado contra a
febre amarela...Qué voltar pro sertão, gosta da
caatinga, pois a vontade é sua...
- Vou e vou no Trem Baiano...
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- Pois me avise com certeza o dia que você vai
embarcar no Brás...Avise-me mesmo, que eu tenho
que passar uns telegramas... Uns telegramas...
-Avisarei.
Dona Belinha apontou o Zédizefa e disse:
- Você, quando chegarem na Carnaíba do Sertão,
tome providencias pra organizar uma dança de São
Gonçalo...É promessa:vinte quatro rodas...E fique
atento; se não acontecer nada com o Nézinho nessa
viagem tem mais uma promessa, tá entendendo?
- Sim senhora.
- Pois Zédizefa a promessa é a seguinte: você
vai ser Penitente do Juazeiro...
Zédizefa pulou pra trás apontando para o
próprio peito:
- Eu?...Penitente?...A meia noite?
- A meia noite de Sexta-Feira Santa no
Cemitério...
- Batendo de chicote nas minhas costas...
Uma hora da madrugada de uma quarta-feira o
coroné entrou na plataforma da Estação do Norte,
ou Estação Roosevelt ou Estação do Brás sacudindo
sua bengala, seguido pelo Zédizefa que carregava
uma mala em cada mão e equilibrava uma trouxa na
cabeça.
Pouca gente na plataforma, a maioria gente que
estava de passagem; passageiros que chegaram a São
Paulo nos trens da Santos - Jundiaí ou nos trens
da Sorocabana.
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Os funcionários da Central do Brasil;
conferentes, carregadores, manobreiros, guarda-
chaves,reparadores e camareiros já se moviam para
organizar o trem de prefixo “RP4”.
Caminharam para a ponta sul da plataforma,
coroné avaliou e deu a ordem:
- Mais ou menos aqui vai encostá o último
carro... Deixe a bagagem ai.
Largou as duas malas lado a lado e em cima a
trouxa. Os dois saíram olhando os movimentos.
Montado numa mala um sujeito de botas, calças
muito largas, camisa amarrotada, lenço colorado no
pescoço, tomando chimarrão. Zédizefa olhou e falou
baixinho pro coroné:
- Uma cabaça com um canudo... Parece que é chá
de cisco...
Coroné chegou perto e o gaucho ofereceu um
mate:
- Buenos dias seu! Aceita um amargo?
- Não sinhô não... Amargo já basta às
amarguras da vida... Tá vindo do Sul e tá indo pro
Norte?
- Mas báh!...Venho do Rio Grande
tche!...Estação Touro Passo, é na fronteira com a
Argentina... Vou pra Curvelo nas Minas Gerais
buscar uns touros zebus...
Coroné bateu na aba do chapéu e disse:
- Pois tenha uma boa viagem.
Afastaram-se e Zédizefa perguntou:
- O sinhô entendeu o que ele falô?
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- Oxente!...Ele é contrabandista de touros pra
Argentina.
Na ponta norte da plataforma um grupo grande
de pessoas; homens, mulheres e crianças. Muita
bagagem,roupas folgadas e cheirando a fumaça.
Coroné parou olhando e um conferente explicou:
- Índios... São bugres do Mato Grosso...O
Serviço Nacional do Índio deu cavalos, comida e um
guia...Tirou eles da selva e mandou andarem
caminhando pelo Brasil mais ou menos durante três
anos pra se civilizarem...
- Então?
- Aprenderam a fumar, beber, jogar e roubar...
- Tão civilizados...
Zédizefa olhou a mulata alegre e disse:
- Oxente!...Vendedora de acarajé...
- Cale sua boca...É uma mãe de santo.
Mãe Taninha de Santo Amaro ou Mãe Taninha de
Maro Maro, sorriu, fez sinal pra o coroné. Os dois
se aproximaram e ela:
- Bom dia meu senhor...Muito axé...Estou
precisando de sua ajuda...Pois que antes de
começar esta viagem...Não vê que eu vou pra Santo
Amaro...Antes de subir no trem eu recebi uma
obrigação de jogar os búzios pra um viajante... E
olhe que o meu guia apontou o senhor.
Respeitosamente o coroné tirou o chapéu e
avisou:
- Primeiramente que faça uma boa viagem, e
olhe que daqui a Santo Amaro tem um pedaço de
chão...E deverasmente devo avisar que não sou de
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crença de Candomblé...Desconfio de padre, mas sou
crente nos santos...Que sendo do Juazeiro tenho fé
em Nossa Senhora das Grotas, a pois que morando na
Carnaíba do Sertão sou devoto de Santa Terezinha e
nos aperreio eu recorro mesmo é pro santo São
Gonçalo que é um santo de fé e força no sertão da
Bahia.
- Se avexe não, coroné...Nada vai tirar suas
obrigações de fé...É só um brilho de luz no
caminho da viagem de vocês dois...
- E meu ordenança, cabra que serviu no Tiro de
Guerra do Juazeiro, pode assistir?
-Deve...
Coroné e mãe Taninha de Maro Maro sentaram num
dos bancos da plataforma afastados um do outro pra
ela poder jogar os búzios em cima do banco.
Zédizefa ficou de pé,com os braços cruzados, ora
olhando a bagagem ora olhando os búzios.
Remexendo os búzios ela foi dizendo:
- Um de vocês vai chegar no fim da viagem
dentro de um caixão...Dentro de um caixão...O
perigo sai daqui no mesmo carro...Na cidade do B,
mas que B briga com A e A briga com B tem
recomendação pra o coronel ser gente de
atenção...O caminho que é largo vai fechar mas o
caminho estreito vai tá aberto...Não confie no
homem do pau seco, nem no homem do pau lavrado e
também não no homem do pau ferro...O perigo é o
homem do rabo alegre...O passarinho no pau, aceite
disfarce e dê pro cachorro...Conte ao homem dos
sete “P”...No fim do caminho bote em meu nome uma
oferenda debaixo de um pé de umbu...No caminho
junte as coisas da oferenda; licor da fruta que dá
no pau que tem na cidade da igreja do Ó, leve um
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doce amarelo da Princesa do Norte e o charuto da
cidade das guerras de espadas de fogo...Num caixão
um de vocês vai chegar...
Mãe Taninha recolheu os búzios e agradeceu
dizendo:
- O importante é ter fé...Se um dia chegar em
Santo Amaro me visite pra gente comer uma
maniçoba...
Coroné botou o chapéu na cabeça:
- A pois fico muito agradecido e digo, se um
dia passar na Carnaíba do Sertão, chegue pra comer
um bode assado...
Uma locomotiva de manobras encostou o trem na
plataforma. Zédizefa correu para marcar lugar.
Ocupou o ultimo banco do lado direito do ultimo
carro. Coroné entregou a bagagem pela janela.
Logo a plataforma ficou cheia de gente e
muitos apressados embarcando para conseguir lugar.
Entrou na plataforma o grupo de moças,
alegres, com uma fita azul no pescoço; o símbolo
do grupo religioso “Filhas de Maria” iam em
romaria para Aparecida do Norte
Um carregador na frente pedindo licença entre
os passageiros espalhados na plataforma, seguido
por outro carregador empurrando um carro com uma
caixa grande de papelão onde estava escrito:
Estação Catuti (EFCB). Chegou ao vagão de bagagens
onde um conferente e o bagageiro do trem,
seguraram a caixa com muito cuidado e colocaram
num canto do vagão onde não tinha perigo de dano.
Nas bilheterias da estação as filas e os
bilheteiros consultando tabelas, calculando e
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tirando passagens para dezenas de destinos. Numa
das bilheterias um viajante pediu:
- Uma ida e volta de primeira classe até
Tabuas.
O bilheteiro, novo, nervoso consultando
tabelas até que um colega ajudou:
- Tabuas; trocou de nome há muito tempo... É
Joaquim Felício.
Dois homens carregando barras de gelo, no
ombro, para o vagão restaurante.
No compartimento do correio no vagão de
bagagens o estafeta ajeitava as malas de
correspondências e empilhava os pacotes de jornais
de maneira a facilitar a entrega nas estações.
Jornais para distribuidores e jornais para
assinantes em cidades, vilas e povoados ao longo
da ferrovia.
Com respeito os viajantes que estavam na
plataforma foram dando passagem ao homem
deficiente. Sem as duas pernas, amputadas bem em
cima na coxa, caminhando com os braços. Rosto de
home decidido, as mãos protegidas por grossas
luvas de couro, nas costas uma mochila. Sem
auxilio segurou o balaustre da plataforma do carro
e embarcou. Carro de segunda classe. Com agilidade
subiu para o banco. O Ervateiro de Lajedo Alto.
Foi vaqueiro e dos bons, numa vaquejada de muito
serviço o cavalo tropeçou numa pedra e caiu em
cima de uma laje e quebrou a perna direita, o
cavalo levantou e ele ficou pendurado com a perna
esquerda no estribo, assustado o cavalo disparou e
ele rebentou a outra perna.Com mulher e cinco
filhos, vaqueiro sem as pernas a luz que Deus lhe
deu foi: de dois em dois meses viajava de Lajedo
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Alto a São Paulo carregando ervas, casca de
arvores e sementes para chá. Junto dele um
carregador que colocou um saco debaixo do banco e
outro na frente.
Entrou no mesmo vagão e sentou ao lado do
Ervateiro de Lajedo Alto a Pimenteira de Jequi,
outra sertaneja que lutava pela vida; viúva com
oito filhos cultivava pimentas em Jequi, e fazia
conservas e também torrava pimentas, que trazia
para vender em São Paulo.
No ultimo carro embarcou o sujeito magrinho,
sapatos brancos, calças e paletó branco, gravata
vermelha, bigode fininho, ocupou o banco a frente
do banco onde estavam o coroné e Zédizefa. Botou a
mala em cima do banco pra marcar o lugar, olhou
pra Zédizefa e disse:
-Bom dia...O conterrâneo faz um favor...Repare
minha mala...Vou comprar cigarros...Pois que viajo
pra Paulistana no Piauí...Faço um servicinho que
aqui no sul não tá tendo...Lá no norte, ano que
vem é ano de eleição...
O sujeito saiu e o coroné disse pra Zédizefa:
- Você entendeu?...Preste a atenção nesse
cabra... O bicho é pistoleiro...Pistoleiro de
Paulistana no Piauí.
Entraram no carro duas mulheres, uma muito
bonita e a outra rindo e dizendo graças, Zédizefa
correu pra ajudar o carregador a botar as malas
dentro do carro. Viraram o encosto de um banco e
ocuparam, sentaram num banco e botaram a bagagem
no banco defronte elas, marcando dois lugares.
Zédizefa voltou e contou pro coroné:
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- A formosa vai pra Campo Formoso e a jocosa
vai pra Jacobina.
Coroné sacudiu a cabeça:
- Jocosa de Jacobina e Formosa de Campo
Formoso...Quengas de alto quilate...Você,
Zédizefa, nem fique assanhado que você não tem
categoria de dinheiro e nem sexual pra dá conta...
Entrou no carro um padre, muito vermelho,
óculos de lentes grossas. Zédizefa bateu no braço
do coroné. Padre em trem e no último vagão era
superstição nas ferrovias do Brasil;azar. Coroné
sacudiu a mão:
- Se preocupe não...Já ele desce...É Padre de
Aparecida.
O Padre de Aparecida sentou, abriu a grande
pasta de couro, tirou um livro encadernado com
papel preto e começou a ler com muita atenção. A
Bíblia? Não, Seara Vermelha de Jorge Amado.
Entraram no ultimo carro um grupo de oito
homens a maioria loiros de olhos claros,
descendentes de alemães;uma Equipe de Bolão de
Santa Rosa no Rio Grande do Sul.
Embarcou o Telegrafista de Iramaia.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí voltou
para o carro, tentou tirar prosa com as
duas;Jocosa de Jacobina e Formosa de Campo
Formoso, mas elas não deram trela e ele foi pro
seu banco.
Um manobreiro engatou a locomotiva no trem.
Um guarda-freio correu a examinar mangueiras
de freios, engates e as correntes de segurança.
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Ainda tinha filas nas bilheterias.
No ultimo carro embarcou o Engenheiro de
Mafra.
Embarcaram o tio e três sobrinhos, meninos na
faixa dos doze a quinze anos, iam passar as férias
na fazenda do avô no norte das Minas Gerais, lá
nos mundos de Montes Claros, bem longe do barulho
de São Paulo e da prisão no apartamento, na
liberdade correndo nos burros, no meio de gado,
cabras, galinhas, lá na estação de Uratinga.
Na locomotiva o foguista; o Zé do Brás, mulato
alto e forte, jogador de futebol, carnavalesco,
viciado no jogo bicho, membro da diretoria da
associação do bairro e pai de doze filhos, abriu a
fornalha e alimentou o fogo com várias pasadas de
carvão.
O maquinista, seu João Limpa Trilhos, limpando
as mãos com uma estopa, olhou os manômetros, olhou
a imagem de Nossa Senhora Aparecida colocada no
suporte do regulador de pressão.
Na bilheteria um viajante querendo passagem
para estação Quatis e o bilheteiro perdido nas
tabelas, o agente ajudou:
- É na Rede Mineira de Viação...Vende até
Barra Mansa e lá ele troca de trem...
Coroné Nézinho examinou o interior do carro,
já estava quase lotado, tinha mais de quarenta
pessoas.
O canto de um galo ecoou na plataforma, um
carregador apressado levando duas gaiolas para o
vagão de bagagens e a seu lado o Criador de
Galinhas de Cotegipe.
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O chefe de trem fez sua ultima observação no
carro de bagagens e foi para o escritório da
estação.
Os camareiros ajudavam os passageiros a se
acomodarem.
O Cego de São Cristovão em Sergipe, entrou no
primeiro carro de segunda classe apoiado num
grosso cajado. Sentou num banco do meio do carro.
Os óculos grandes e muito escuros.
Uma batida de sino ecoou na plataforma
anunciando que dentro de cinco minutos o trem
partiria.
A Velinha de Buenópolis acompanhada do neto
embarcou no último carro, seguida do carregador
com as duas malas, ela carregando debaixo do braço
um travesseiro e uma manta. Logo de noite na
subida da Serra da Mantiqueira faz frio.
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança
embarcou no primeiro carro de segunda classe e
sentou no primeiro banco do vagão. Botou pra baixo
do banco a mala cheia de dinheiro.Olhou para o
Cego de São Cristovão em Sergipe e coçou a testa.
O Cego de São Cristovão coçou o nariz.
O agente se posicionou perto do sino, o
maquinista debruçado na janela da locomotiva
olhando a plataforma da estação. O relógio bateu
às duas horas da madrugada de quarta-feira, o
chefe de trem parado junto o último carro fez
sinal para o agente. O agente deu duas badaladas
no sino, o chefe de trem trinou o apito e o
maquinista acionou o apito da locomotiva.
Regulador aberto, e chiaram os cilindros da
locomotiva 353 uma Baldwin, conhecida pelo pessoal
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da Central do Brasil pelo apelido de Velha
Senhora. O trem partiu da Estação do Norte.
Um vagão pra pequenas cargas, carro bagagem-
correio, cinco carros de segunda classe, um carro
restaurante e sete carros de primeira classe.
O chefe de trem começou a examinar as
passagens pelo ultimo carro:
- Por favor, todas as passagens...As
passagens.
Primeira parada em Vila Matilde onde aumentou
a carga. Um clandestino se pendurou no ultimo
carro.
Parada rápida em Itaquera.Embarcou um sargento
da Policia Militar e sentou no ultimo banco, do
lado esquerdo, do ultimo carro. O Pistoleiro de
Paulistana no Piauí não gostou de ver a farda. Um
camareiro foi recolher o passe livre, o sargento
avisou:
- Desembarco em Suzano.
Parou em Guaianazes onde mais gente subiu e
saltou o Clandestino de Vila Matilde.
Estação Ferraz de Vasconcelos, no último carro
de primeira classe embarcou o sujeito alto, roupa
escura e óculos de sombra, mala branca onde estava
escrito com letras grandes:Pau Seco. Zédizefa leu
e bateu no braço do coroné:
- O Homem de Pau Seco.
- Oxe!... É Pau Seco, um povoado que tem
estação lá perto de Jacobina...E você agora tá se
preocupando com barbado?
- Foi Mãe Taninha de Santo Amaro que...
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- Esqueça o que ela falou...
As dez pras três da madrugada e o trem parou
em Poá, muita gente na plataforma. No último carro
embarcaram o Gigolô de Poá e o Soteropolitano
Afetado, pra alegria das duas: Jocosa de Jacobina
e Formosa de Campo Formoso, afinal, era pra eles
que elas estavam marcando os dois lugares.
O trem continuou a viagem e alguém perguntou:
- Que horas é o café?
- Quando começar a clarear o dia...
- O dia clareia já lá em São José dos
Campos...
- Nada!...O dia clareia a gente vai tá em
Aparecida.
Parada de um minuto na estação de Calmon
Viana.
O camareiro entrou no vagão avisando:
- Vai chegar em Suzano... Suzano cidade das
flores...
Suzano o sargento da Policia Militar
desembarcou e ocupou o banco o Farinheiro de
Quicé.Coroné Nézinho simpatizou com o novo
viajante.
Em Jundiapeba a plataforma cheia de balaios
com verduras, carga pra São José dos Campos. O
Verdureiro de Jundiapeba ajudou a carregar e
correu a embarcar num dos carros de segunda
classe.
Mogi das Cruzes, muita gente pra embarcar, a
maioria na segunda classe e gente que ia para o
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norte. O agente da estação disse para o chefe de
trem:
- Aqui em Mogi, quem não é japonês é
nortista...
No ultimo carro embarcou um casal japonês e
Zédizefa perguntou ao coroné:
- É verdade que mulher japonesa tem a coisa
atravessada?
- Você vá ali e pergunte pro marido dela...
Engenheiro Cesar de Souza com a plataforma
cheia de sacos de repolhos pra carregar, carga pra
São José dos Campos.
Estação Sabaúna entre os viajantes que
embarcaram, embarcou a dupla de violeiros “Os
Violeiros de Sabaúna” que se acomodou no primeiro
carro de segunda classe.
Parou na estação Luiz Carlos onde embarcou no
ultimo carro o Casal de Artistas de Luiz Carlos.
Ela de sapatos com os saltos muito altos, rosto
pintado, grandes brincos, colar de perolas,
fumando com uma piteira de mais de dois palmos.
Ele vestindo um terno cor de rosa com uma flor
vermelha na lapela. O Soteropolitano Afetado
exclamou:
- Cruuuzeees! Que mau gosto...Caaafoooniiicee.
A Artista de Luiz Carlos, sacudiu a piteira
dizendo:
- Nem ligue meu bem...Nós somos artistas.
Soteropolitano Afetado riu e falou:
- Figurantes.
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Zédizefa pegou a caneta tinteiro e uma folha
de papel e foi pedir autografo. A Artista de Luiz
Carlos contou:
- Filmamos as cenas externas ai em Luiz Carlos
e vamos para o Rio de Janeiro, filmar nos estúdios
da Atlântida Cinematográfica...
Zédizefa voltou a seu lugar contente. Coroné
perguntou:
- Oxe!...O que eles escreveu ai nesse papel?
Zédizefa sorriu:
- Autografo...O senhor não entende disso...
Em Guararema embarcou no ultimo carro o
Alambiqueiro de Guararema e sentou ao lado do
Farinheiro de Quicé. Sentou e já iniciou conversa:
- Vou pra Brumado na Bahia...Sabe? Eu tenho um
alambique de cachaça...Na região de Brumado
fabricam uns alambiques de cobre muito bons...Eu
vou comprar...
O camareiro percorreu o trem avisando:
- Jacareí... Próxima parada é Jacareí ...
Jacareí, água de jacaré, a Athenas Paulista,
no último carro embarcou o grupo, alegre e
barulhento de jovens de uma equipe de basquete.
Zédizefa perguntou:
- Coroné... O que é jogo de basquete?
- Ora...Jogo de basquete...É um jogo que você
não vai entender...
Duas horas de viagem o trem se aproximava de
São José dos Campos a cidade tecnológica. O
camareiro avisando:
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- São José dos Campos, saída pela porta da
frente...
Passageiros desembarcando, passageiros
embarcando, o chefe de trem parado na porta do
vagão de bagagens olhou o movimento e comentou com
o agente:
-Agora fica com a lotação completa... Em
Pindamonhangaba e Aparecida desce bastante
gente...
Desembarcou a equipe de basquete, mas embarcou
uma equipe de ciclistas. As bicicletas no vagão de
bagagens. Iam para um encontro de ciclistas em
Pindamonhangaba.
O trem saiu de São José dos Campos, e sete
quilômetros, depois, parada muito rápida em
Engenheiro Martins Guimarães.
Chegando em Caçapava, Zédizefa abriu a janela
e debruçou olhando o movimento na plataforma. O
viajante, sujeito magrinho, barba grande,
acompanhado de outro sujeito, chegou perto da
ultima plataforma do trem e antes de embarcar
avisou ao companheiro:
- Assim que eu chegar em Pau Lavrado eu te
mando um telegrama...
Zédizefa escutou. O Homem de Pau Lavrado
embarcou e sentou ao lado do Homem de Pau Seco.
O trem saiu de Caçapava e os garçons começaram
a se movimentar. Hora do café. Na frente um
carregando dentro de uma grande bandeja as xícaras
e pires. O segundo carregando os açucareiros,
pratos com pão fatiado e potes com manteiga e o
terceiro carregando os bules com café e leite:
23
- Café... Quem vai tomar café?
Afobado o Zédizefa puxou a mesinha que estava
dobrada junto à parede do carro, levantou o tampo
e moveu a alavanca de fixar. Coroné olhou de canto
de olho:
- Eita! Que o bicho tá com fome.
Os raios de sol iluminando o Vale do Paraíba,
lá longe os prédios de Taubaté. A Velha Senhora
bufando os cilindros e vencendo distancias. Dentro
do trem o cheiro gostoso de café com leite pão e
manteiga.
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto
Esperança, tirou da mala uma guampa, um pacote de
erva mate, a bomba de metal e começou a preparar o
terêrê.Olhou para o Cego de São Cristovão coçou o
nariz, o Cego coçou a testa.
- Chegada a Taubaté...Taubaté, saída pela
porta da frente...
Do ultimo carro desembarcou o casal de japonês
que tinha embarcado em Mogi. Embarcou, afobado,
buscando um lugar junto à janela o Caixeiro
Viajante. Duas malas grandes. Ocupou o banco onde
viajaram os japoneses.Esperou o trem continuar a
viagem e começou a trabalhar, botou uma mala sobre
o banco, abriu e tirou um pacote, deixou a mala
sobre o banco, marcando o lugar e saiu andando
dentro do trem e distribuindo Almanaque do
Biotônico e o livrinho com a estória do Zeca Tatu.
O revisteiro percorrendo o trem:
- Jornais... Revistas...
Coroné Nézinho pediu:
24
- Dois jornais; a Folha e o Estado... Uma
revista “O Cruzeiro”, pra mim vê o “Amigo da
Onça”...E deixe escolher um bilhete de loteria...
Zédizefa perguntou:
- Coroné...Pra que dois jornal ?
- Oxe!...Eu sou um homem político, em cima de
minha mesa tem que ter muitos jornais...
O Caixeiro Viajante de Taubaté pediu ao
revisteiro:
- Tem o Guia Levy?
O camareiro avisando a chegada em
Pindamonhangaba:
- Pindamonhangaba...Passageiros que vão para
Campos do Jordão desembarque... É
Pindamonhangaba...
O Telegrafista de Iramaia contava ao
Engenheiro de Mafra:
- Venho do Rio Grande do Sul...Estação Vinte
Pinheiros, é na linha de São Borja...Faz quatro
anos que eu moro em Iramaia... Meu primeiro filho
era muito doente com uma alergia a frio e
umidade...O médico disse pra mim e minha mulher
que o bom era a gente ir pra um lugar quente e
seco...Eu era telegrafista da Viação Férrea do Rio
Grande do Sul...O médico se interessou e conseguiu
pra mim vir pra Leste...O guri melhorou...Já tenho
uma filha que nasceu em Iramaia...
O trem parou na estação Moreira Cesar, os
minutos passando, passageiros curiosos. Alguém
disse:
25
- É cruzamento... Tá esperando o Santa Cruz
que vem do Rio de Janeiro.
Na segunda classe o coronel Ponciano
Pantaneiro de Porto Esperança incentivou os
Violeiros de Sabauna:
- E seu moço toca uma moda pra alegrar a
viagem.
Os Violeiros de Sabauna se entusiasmaram,
pegaram as violas:
- Gente...Nós vamos tocar uma moda de
viola...Chama; Festa do Divino em Sabauna...Até a
gente aproveita e convida...A festa do divino em
Sabauna é muito boa, divertida...
O Santa Cruz passou em Moreira Cezar apitando
e batendo o sino.
O trem chegou em Roseira, poucos passageiros
na plataforma, parada rápida.
- A próxima parada é Aparecida...Aparecida...
Oito horas e trinta minutos o trem entrou no
recinto de Aparecida batendo o sino.
O Padre de Aparecida fechou o livro, levantou
e tirou a mala do porta bagagens. Coroné Nézinho
viu e ficou contente.
Zédizefa se apressou a descer do trem, queria
comprar uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida.
Desembarcaram as Filhas de Maria. Um grupo de
romeiros, vindo de Bauru; várias crianças vestidas
de anjo. O grupo de irmãs de caridade que vinham
de cidades do norte do Paraná.
Zédizefa se distraiu olhando o movimento e já
teve que embarcar com o trem em movimento. Entrou
26
no carro e viu sentado no lugar onde vinha o Padre
de Aparecida outro padre. Coroné, que era
supersticioso, falou de mau humor:
- Outro...Esse vai com a gente até o fim... É
o Padre de Petrolina...
Cinco quilômetros depois de Aparecida a cidade
das garças brancas:
- Guaratinguetá a capital do fundo do vale.
Embarcou na segunda classe um grupo grande de
homens, a maioria era velhos; integrantes de um
clube do jogo de truco. Iam para um torneio de
truco em Cruzeiro.
Coroné levantou e começou a andar pelo
corredor do carro pra espichar um pouco as pernas.
Sorrindo pra um, cumprimentando outro, bateu prosa
com a Velinha de Buenópolis.Ela contou:
- Vim nesse trem semana passada...Todos os
anos eu venho...Pra levar esse meu neto pra passar
as férias com a gente...
Bateu prosa com líder do grupo de jogadores de
bolão de Santa Rosa. O líder do grupo contou:
- Santa Rosa é ponta de ramal no norte do Rio
Grande do Sul...Bolão é um divertimento bom...A
gente vai pra Juiz de Fora...Meu filho é sargento
e tá servindo no Quarto Regimento de Cavalaria de
Juiz de Fora...Ele organizou um clube de bolão e
mandou nos convidar...
Estação Engenheiro Neiva, na plataforma muitos
tarros de leite que funcionários se apressaram a
carregar no trem. Ao lado do trem o grito:
- Pamonha...Pamonha que tá quentinha...
27
Eta que Zédizefa abriu janela, afobado, pra
comprar pamonha.
- Próxima estação é Lorena...Lorena baldeação
para o ramal de Piquete...Lorena...
Lorena das palmeiras imperiais.
- Agora ele tá perto da Barra do Piraí...
- Nunca...Ele ainda roda mais de duas horas
dentro do estado de São Paulo...E depois tem que
passar Volta Redonda...
Caderneta de anotações na mão um garçom entrou
no último carro perguntando:
- Almoço... Quem vai almoçar no carro
restaurante...Almoço...
Coroné Nézinho levantou a mão. Pediu:
- Dois...Um pra mim e outro pra esse cabra que
já tá doido de fome...
O garçom sorriu, anotou e entregou duas
fichas:
- Ficha amarela...Quando chamar a ficha
amarela o senhor, por favor, se dirija ao
restaurante.
Conversavam os dois companheiros de banco;o
Homem de Pau Lavrado e o Homem de Pau Seco:
- Pau Lavrado é um lugar bom...Fica pertinho
de Catu...Pertinho de Alagoinhas...Que naquela
região chove...Eu tenho dois filhos que mora em
Caçapava, daí eu venho visitar eles...
- Eu to morando em Ferraz de Vasconcelos, que
eu to trabalhando...Pau Seco é no sertão de
28
Jacobina e a chuva ta faltando... Que quando volta
a chuva eu volto pra lá...
- Pois então o conterrâneo não tá indo de vez?
- To não...Eu to indo nesse trem com o
compromisso de uma missão... To indo nesse trem
com o compromisso de uma missão...
Cachoeira paulista, a bonita estação a margem
do Paraíba do Sul. Embarcou mais um grupo de
jogadores do truco, gente que ia para o torneio de
Cruzeiro.
- Cruzeiro...Saída do ramal de Três
Corações...Próxima estação é Cruzeiro...
A faixa branca, esticada no alto, com letras
pretas a saudação aos participantes do torneio de
truco.
Os Violeiros de Sabauna, se prepararam para
desembarcar e se despediram dos companheiros de
viagem:
- Gente; obrigado pelo incentivo...Não
esquece...Vão na Festa do Divino de Sabauna...
Lavrinhas e os meninos na volta do trem
gritando:
- Carambola...Carambola baratinha...
Vila Queimada, parada rápida, o Caixeiro
Viajante de Taubaté jogando pela janela almanaques
e livrinhos com a estória do Zeca Tatu, pra
alegria dos meninos.
- A chegar em Queluz...Queluz...
- Agora ele vai sair do estado de São Paulo...
- Mas ainda tá longe da Barra do Pirai...
29
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança
ia atento a conversa dos dois caboclos que
viajavam no banco do lado. O Sergipano de Malhada
dos Bois contando pro Sergipano de São José da
Mata:
- Tá com seis pra sete anos que vim eu mais
quatro irmãos...A gente saiu da Malhada dos Bois,
até com fome... Daí que nós chegou no Paraná, nos
grudou no serviço...A gente abriu o mato e fez
roça...O lugá é bom...Estação de trem no ramal do
Paranapanema...Agora eu vou em Malhada pra buscar
meu irmão mais moço e vou trazer dois
jegues...Jegue inteiro, que no Paraná eu vou fazer
mulas...Vou trazer um bode e umas cabras, que eu
gosto de criar...
A bonita estação de Engenheiro Passos, parada
bem rápida e saiu batendo o sino.
- Próxima estação é Itatiaia...
O garçom entrou no carro avisando:
- Almoço...Por favor os portadores de ficha
amarela...
Coroné Nézinho bateu no braço de Zédizefa:
- Bora lá matá a fome que tá matando você...
Carro restaurante muito limpo as mesas com
toalhas de linho muito brancas. Coroné e Zédizefa
sentaram numa mesa de canto. O garçom:
- Nossa opção; numero um é Filé a Oswaldo
Aranha...
- Esse mesmo...Pois mande dois e diga pro
cozinheiro botá bastante batata frita...E traga
uma jarra de vinho.
30
Na mesa ao lado o Telegrafista de Iramaia
contava para o Engenheiro de Mafra:
- Vinte Pinheiros têm o brete, embarcadouro de
gado...Minha mãe faz comida pra vender aos
tropeiros...Báh!Chegaram um grupo e a mãe só tinha
feijão e farinha...Fez feijão, fritou ovos e botou
na panela do feijão pra dá gosto...Os tropeiros
gostaram...E assim ela inventou o feijão de Vinte
Pinheiros...
Estação de Resende e o embarque de vários
cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras.
No ultimo carro o Gigolô de Poá, levantou,
tirou o espelhinho do bolso do casaco, se olhou,
tirou o pente do bolso detrás da calça, ajeitou o
cabelo. Foi tirar prosa com a Artista de Luiz
Carlos, ela deu o fora dizendo:
- Não sou quem você pensa... Não sou artista
da Boca do Lixo...Sou da Atlântida
Cinematográfica...
Estação Floriano com muitos tarros de leite na
plataforma, Vendedores de pastel cercando o trem.
Na plataforma de um dos vagões de primeira classe
um sujeito reclamava:
- Mais leite pra carregar...E o Expresso
Leiteiro?...Vou reclamar...
Pombal; mais tarros com leite. Vendedores de
bolo de coalhada.
O trem se aproximava de Barra Mansa, alguém
comentou:
-Tá perto de Volta Redonda...
- É verdade... A primeira é a Barra Mansa.
31
O Camareiro entrou no carro avisando:
- Próxima é Saudade...Saudade baldeação para o
ramal de Bananal...Saudade...
De Saudade a Barra Mansa, um quilômetro e meio
que o trem percorreu devagar, com cuidado que o
recinto de Barra Mansa , um recinto cheio de
vagões.
Barra Mansa, dezenas de operários vestindo
macacões embarcaram para uma viagem curta até
Volta Redonda.
Embarcaram um grupo de produtores de leite,
muitos falando alto e reclamando de alguma coisa.
Andavam em Barra Mansa reclamando do preço do
leite e dos horários do trem Expresso Leiteiro.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí fez sinal
chamando o Soteropolitano Afetado que rápido
levantou e deslizou na ponta dos pés, provocando
no Artista de Luiz Carlos o comentário:
- Saaaliiiiiiiieeeeeeeeenteeeeeeeeeee!
O Soteropolitano Afetado sacudiu os ombros e
quase sentou no colo do Pistoleiro de Paulistana
no Piauí, dizendo:
- Faaaaleeeeeeeee meu bom.
- Eu vou dormir um pouco, quando esse trem
passar na Barra do Pirai, você me chame, entendeu?
- Reeeeeeeeepiiiiiiiiiitaaaaaaaaa.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí falou
grosso:
- Vou dormir...Depois que passar Barra do
Pirai me chame...
32
- O meu bom! Seu pedido é uma
ordeeeeem...Durma em paz...Velareeeei o teu
sono...
De Barra Mansa a Volta Redonda dez
quilômetros. Chegando com muito cuidado no
complicado e movimentado recinto cheio de vagões
de minério, vagões cheios de carvão, vagões com
bobinas de aço. Locomotivas de manobras.
Volta Redonda, num dos carros de segunda
classe um negro alto, falou em voz alta:
-Companhia Siderúrgica Nacional.Independência
do Brasil...Viva o Getulio...Getulio Vargas o
Estadista Brasileiro...
Saiu de Volta Redonda, batendo o sino e
apitando.
Estação Pinheiral, a plataforma cheia de
tarros de leite. Na estação o cartaz de cinema
anunciando o filme com Oscarito e Grande Otelo.
Alguns vendedores de bolo de coalhada e pastéis de
mingau.
- Agora sim a gente tá perto da Barra do
Pirai...
- E depois é atravessar o Paraíba do Sul e
começar a subir a Serra da Mantiqueira...
- Mas só depois de Três Rios...Da Barra do
Pirai até Três Rios é mais de duas horas de
viagem...
O trem parou na estação do povoado de Vargem
Alegre.
Mãe Taninha de Santo Amaro que viajava no
primeiro carro de primeira classe, sentiu o sopro
no rosto, o cheiro. O sujeito branquelo, cabelo
33
cor de fogo que embarcou ficou parado no corredor.
Ela se apercebeu. Exu...O Exu subiu nesse
trem...Ele tá armando alguma coisa... Ela tirou da
bolsa um vidro com água de cheiro...
Camareiros apressados varrendo os carros e
despejando desinfetante no “WCS”. Preparando o
trem para entregar a outra equipe.
- Estação Barra do Pirai...Barra do
Pirai...Quem vai para o Rio de Janeiro pela linha
do centro desembarque...Barra do Pirai a saída
pela porta da frente...
- Moço, moço ajude-me...Eu vou pra Santana da
Barra...
- Santana da Barra, a senhora desce aqui e
embarca no que vem de Belo Horizonte...
- É Barra do Piraí, baldeação para a linha do
centro...
- Ei!...Eu vou para Pati do Alferes...
- Pati do Alferes é na Linha Auxiliar, o
senhor desce em Paraíba do Sul...
O apito poético e o tinir do sino da Velha
Senhora ecoando pela Barra do Pirai.Debruçado na
janela o maquinista seu João Limpa Trilhos
cuidando a linha e a plataforma cheia de gente. O
foguista, Zé do Brás, de pé entre a cabine e o
tender olhando a plataforma. Tinham vencido
trezentos e noventa e um quilômetros.
Dentro dos carros, passageiros se preparando
para desembarcar, conferindo bagagens de mão,
sacudindo o corpo para pegar animo.
34
Senhores viajantes bem vindos a Barra do
Pirai...Passageiros em transito e passageiros que
aqui embarcam, o serviço de alto falantes...
No ultimo carro os Artistas de Luiz Carlos se
prepararam para desembarcar, ele falou:
- Vamos para a capital... Adeus trem de
caipiras...
O Soteropolitano Afetado reagiu:
- Auuudáááciaaaa do Zeca...
Zédizefa desceu pra espichar as pernas andando
pela plataforma da estação.
Embarcou no último carro o mulato magro alto
com a camisa do Fluminense e ocupou o banco onde
viajaram os artistas; o Fluminense do Flamengo.
Funcionários apressados ajeitando o trem. A
Velha Senhora foi desengatada e seguiu faceira
para o depósito. A nova locomotiva foi engatada;
uma Texas.
Zédizefa voltou pra seu lugar dizendo:
- Agora a maquina é uma Techa...
Na segunda classe embarcou um grupo alegre e
barulhento de Mangueirenses, iam pescar. Coronel
Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança comentou:
- Vão pescar ou fazer samba? Levam pandeiro,
cuíca e cavaquinho...
O mulato com a camisa verde e rosa respondeu:
- E nas mochilas vai é muita pinga meu
senhor...
35
Alto, forte, pele queimada do sol, casaco de
couro o coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem,
caminhou firme batendo a bota na plataforma da
estação. Reuniu os três capangas;Diabo Ruim, Diabo
Mau e Diabo Péssimo, todos eles cabeludos e com um
bornal de couro a meia espalda, e deu as ordens:
- Uai! Eu vou no primeiro carro de primeira
classe, o Ruim vai comigo, o Mau vai no ultimo
carro e o Péssimo vai no primeiro carro de segunda
classe...Durmam de olho aberto, não dê prosa pra
estranho e tome cuidado com sorriso de mulher...
Na locomotiva o maquinista seu Zé Esquerdinha,
manco da perna esquerda, foi ponta esquerda do
Central e num clássico contra o Royal; Royal e
Central o clássico de Barra do Pirai, acabou numa
entrada forte ficando com a perna deslocada. Seu
Zé Esquerda conferindo os manômetros e válvulas de
escape.
O foguista Chico Gaiteiro, acomodando a lenha
no tender de maneira a facilitar seu serviço
durante a viagem. Chico Gaiteiro que nas horas
vagas tocava gaita e era diretor de um bloco de
carnaval.
Diabo Mau entrou no ultimo carro e o
Soteropolitano Afetado olhou a boroca a meia
espalda e ia comentar, mas a Jocosa de Jacobina
foi rápida e tapou a boca dele dizendo:
- Ele te come vivo...
- Deus te ouça...
Magro alto garboso em seu uniforme o chefe de
trem , jovem ainda, seu Alfredo, no vagão de
bagagens conferindo o mapa de passagens. Seu
Alfredo nas horas de folga era um trabalhador da
36
Doutrina Espírita. É de notar que a Doutrina
Espírita no Brasil teve entre seus simpatizantes
muitos ferroviários; era uma classe que muito
viajava e muitas vezes eram removidas de um lugar
pra outro levando suas idéias e crenças.
Na plataforma uma senhora gorda e nervosa
perguntando:
- Esse é o que vai pra Santos do
monte?...Santos do monte...
O camareiro apressou em auxiliar:
- Sim senhora... Santos Dumont...
Trem pronto para seguir viagem; vamos embora
que Belo Horizonte é longe e antes temos que subir
a Serra da Mantiqueira.
O serviço de alto falantes de Barra do Pirai,
o maior entroncamento ferroviário do Brasil,
informa...
No relógio da plataforma quatorze horas. A
batida do sino, o apito do chefe de trem, o apito
da locomotiva; e o trem saiu de Barra do Pirai
batendo o sino.
Na ultima plataforma do trem o Coletor
Zoológico que fazia o trajeto de Barra do Pirai a
Três Rios e vice versa recolhendo apostas do jogo
do bicho.
O Soteropolitano Afetado deslizou na ponta dos
pés e com a ponta dos dedos bateu delicadamente no
ombro do Pistoleiro de Paulistana no Piauí:
- Ei...Ó...Ei...Acorde...
37
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí acordou,
espichou os braços, olhou de cantos de olhos para
o Soteropolitano Afetado e disse:
- Tá...Vá, senão eu lhe dou um duro...
- E eu quero...
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no
WC, trancou a porta, lavou o rosto, passou o pente
no cabelo. Tirou do bolso interno do casaco o
revolver e conferiu as balas:
- Bem...Vou estudar esse trem de ponta a
ponta.
O garçom oferecendo:
- Cerveja...Guaraná...Sanduiches...
A palavra cerveja animou o grupo de jogadores
de bolão que viajavam de Santa Rosa no Rio Grande
do Sul para Juiz de Fora.
Os quatro meninos que agachados entre os
bancos jogavam o “Pega vareta” em cima de uma mala
deitada. O neto da Velinha de Buenópolis já estava
amigo dos três meninos que iam passar férias na
fazenda do avô. Pois os meninos vibraram com a
chegada do lanche.
Zédizefa, não perdeu tempo, comprou quatro
sanduiches e duas guaranás, o coroné sacudiu a
cabeça:
- Eita bucho!
Estação Aristides Lobo, vila a beira rio
produtora de tijolos e telhas. Na segunda classe o
grupo de Pescadores Mangueirenses se preparou para
o desembarque.
38
O Corretor Zoológico correu para pegar as
apostas.
Coronel Quim Quim Querendão de Quem Quem tomou
o gole de cerveja e olhou para o companheiro de
banco dizendo:
- To vindo do Rio de Janeiro, capital
federal... Fui comprar umas ferramentas, sabe?
O outro sacudiu a cabeça dizendo:
- É...Sei... Pá, enxada, arado...
- Não senhor!... Metralhadora de mão...
Parada em Bacia de Pedras, desembarcou a
professora que logo ficou rodeada de um grupo
barulhento de alunos.
O revisteiro percorrendo o trem e oferecendo:
- Jornais do Rio de Janeiro... Jornais da
capital federal...
Estação Demetrio Ribeiro, passageiros curiosos
abrindo as janelas. Cruzamento com o trem de
passageiros procedente de Belo Horizonte. O apito
das duas locomotivas ecoou nas serras próximas a
estação.
- A chegar em Barão de Vassouras...Baldeação
para o ramal de Jacutinga...
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no
carro o coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem,
engasgou com a cerveja e o Diabo Ruim regalou os
olhos.
Saindo com calma de Barão de Vassouras, logo a
ponte sobre o Ribeirão das Pedras e quatro
quilômetros adiante chegou à bonita estação de
Barão de Juparanã. Vendedores de pastel:
39
- Pastel com carne moída...Pastel doce...Tem
com goiabada e tem com mingau.
O Padre de Petrolina debruçou na janela e
comprou uma dúzia. Coroné Nézinho resmungou:
- Gula é pecado.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no
primeiro vagão de segunda classe. O Cego de São
Cristovão bateu com o cajado no assoalho do carro
e coçou a testa. Coronel Ponciano Pantaneiro de
Porto Esperança coçou o nariz e prestou à atenção
a reação do Sergipano de São José da Mata que
fechou o olho esquerdo e ficou alerta.
O trem continuou viagem, passou a Ponte do
Desengano, passou pela Pedreira do Paraíso, passou
a Ponte do Paraíso e parada rápida na estação do
povoado de Teixeira Leite.
Mãe Taninha de Santo Amaro ia aconselhando ao
Criador de Galinhas de Cotegipe:
- O senhor tem que ter na sua criação uma
galinha preta.
- Senhora eu crio galinhas de raça e a raça
que eu crio e leghorn branca...
- Mas o senhor pode criar uma preta...Toda a
fazenda, todo sitio, roça... É bom ter uma galinha
preta.
Estação Sebastião de Lacerda, o Caixeiro
Viajante de Taubaté jogou almanaques e livrinhos
do Zeca Tatu, pra meninada que estava na estação.
Tarde bonita, o clima agradável o trem
correndo numa região muito bonita. O Telegrafista
de Iramaia e Engenheiro de Mafra se juntaram ao
40
grupo da Equipe de Bolão de Santa Rosa pra tomarem
cerveja, conversarem e dar risadas.
- Quatro horas ele tá passando em Paraíba do
Sul, em seguida é Três Rios e ai já entra nas
Minas Gerais...
- Uai!...Eu vou atravessar Minas...
- Vai pra Montes Claros?
- Mais pra frente...Monte Azul...
Estação Andrade Pinto e no ultimo carro
embarcou sujeito descabelado, pés descalços;
maluco. O camareiro foi ao seu encontro:
- Moço...Desça que o senhor não tem passagem.
O Maluco de Andrade Pinto regalou os olhos:
- Cuidado seu ferroviário...Meu padrinho é o
Getulio... Getulio Vargas, presidente do Brasil,
ele manda na Central do Brasil...E eu vou é pra
Juiz de Fora...
- Você não tem passagem...
Um dos integrantes da Equipe de Bolão de Santa
Rosa, entrou na conversa dizendo:
- A gente paga a passagem dele...
O camareiro concordou:
- Tudo bem...Mas de pés descalços e com essa
roupa suja ele só pode ir na segunda classe...
O Maluco de Andrade Pinto reclamou:
- Porque segunda classe?
O camareiro falou firme:
- Se quiser, é na segunda classe.
41
O Maluco olhou os passageiros do carro e
concordou:
- Eu vou... Esse carro ta cheirando a defunto.
O Maluco de Andrade Pinto acomodado na segunda
classe e o trem continuou viagem.
Parada rápida em Vieira Cortês, o Caixeiro
Viajante de Taubaté jogou, pela janela, mais
almanaques e livrinhos. Soprou aliviado, fechou as
malas dizendo:
- Por hoje deu...Durmo em Três Rios e amanhã
no trem diurno eu sigo pra Belo Horizonte.
Camareiros avisando:
- Próxima estação é Paraíba do Sul...Paraíba
do Sul...Passageiros que seguem para o Rio De
Janeiro pela Linha Auxiliar é o ponto de
baldeação...Paraíba do Sul...
Os dois trens batendo o sino, chegando um por
cada lado da estação. Passageiros se preparando
para o desembarque.
- Saída pela porta da frente...
O relógio da plataforma mostrando dezesseis
horas. Movimento grande de viajantes.Carregadores
apressados, camareiros alerta e auxiliando.
De Paraíba do Sul a Barão de Angra, cinco
quilômetros em linha mista.
Em Barão de Angra embarcou a família de um
ferroviário em férias; o casal e quatorze filhos
com destino a Barbacena.
- A chegar em Três Rios... Três Rios...
42
Carga especial no vagão de bagagens; quatro
gaiolas com falcões mais um fardo com barraca e
utensílios. Assistindo o carregamento o Falcoeiro
de Três Rios que falou pro bagageiro:
- O destino é Joaquim Felício.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí voltou
para o seu lugar no ultimo carro.
Na plataforma o sujeito completamente bêbado,
as calças todas urinadas, ele mal podendo ficar de
pé, o camareiro atacou:
- O senhor não está em condições de
embarcar...
Formou a confusão, o agente da estação de
Fernandes Pinheiro que estava embarcando no trem
falou com o chefe de trem:
- Ele vai ali pra Fernandes Pinheiro... Eu
conheço ele... Meu vizinho e amigo...
O chefe de trem mandou acomodar o Bêbado de
Fernandes Pinheiro no vagão de bagagens, viagem
rápida, de Três Rios a Fernandes Pinheiro apenas
sete quilômetros.
Estação Fernandes Pinheiro; descarregaram o
Bêbado.
O trem passou a ponte sobre o Rio Paraibuna e
entrou no estado de Minas Gerais, logo parou na
estação de Serraria.
Duas professoras bonitas embarcaram no último
carro.
Os comentários entre passageiros:
- Agora já estamos em Minas...
43
- Mas ele ainda volta pro estado do
Rio...Afonso Arinos é no outro lado do rio.
Parada em Souza Aguiar e o coroné Nézinho
aproveitou e atravessou os carros até o carro
restaurante, onde sentou pedindo ao garçom:
- Já que tá começando a noite...Tem uma
canjinha de galo gordo?
- O senhor desculpe...Tem sopa de galinha com
macarrão...
O trem em sua viagem passou dois tuneis e
parou em Paraibuna. Embarcou um negro alto, forte,
uma enorme cicatriz no rosto, conhecido naquele
canto do mundo por sua valentia e seus
atrevimentos. O Cicatriz de Paraibuna entrou no
carro e viu o coronel Quim Quim Querendão do Quem
Quem e falou em voz alta e até com jeito atrevido:
- Uai sô!... E o demônio já anda de trem.
Diabo Ruim enfiou a mão na boroca para pegar o
revolver, mas o coronel fez um sinal pra ele
quietá.
Em Paraibuna um bonde atravessava o rio pra
levar passageiros para o povoado da outra margem.
Saiu de Paraibuna atravessou o rio e quatro
quilômetros andados; parou na bonita Afonso
Arinos.
Embarcou um grupo barulhento estudantes de
Juiz de Fora que tinham vindo fazer um passeio.
E agora o trem corria pra entrar na noite e
alguém comentou:
44
- Agora ele volta pra Minas e já começa a
subir...Sobragi já tá mais cem metros acima do
nível do mar que Afonso Arinos.
O camareiro avisando:
- Chegar estação Sobragi...Sobragi...
O Cicatriz de Paraibuna levantou e andou pelo
corredor do carro. Diabo Ruim alerta e o coronel
Quim Quim Querendão do Quem Quem também.
Estação Sobragi, correria na plataforma para
embarcar um homem ferido. Deitado sobre um colchão
o homem foi colocado no vagão de bagagens;
funcionário da ferrovia. Conserveiro, trabalhava
na conservação e manutenção da linha.
O Telegrafista de Iramaia comentou com o
Engenheiro de Mafra:
- Aqui na Central do Brasil chamam eles de
Conserveiros, na Leste chamam eles de Garimpeiros,
na Viação Férrea do Rio Grande do Sul, chamam eles
de Tucos...
O Engenheiro de Mafra sorriu e completou:
- Pois na Rede de Viação do Paraná e Santa
Catarina,eles são chamados de Turmeiros...
O trem saiu de Sobragi e o coronel Quim Quim
Querendão de Quem Quem levantou do banco caminhou
até o extremo do carro e fez sinal para o Diabo
Ruim. Diabo Ruim se aproximou:
- Diga...
- Uai!...Você já tá sabendo quem é o atrevido
da cara cortada?
- Sim... É o cabra que a gente tirou da Feira
de Pai Pedro...
45
O Criador de Galinhas de Cotegipe esticou os
braços contente e disse pra Mãe Taninha de Santo
Amaro:
- A primeira estação é Cotegipe... Graças a
Deus estou em casa... A senhora ta convidada pra
comer um frango com quiabo...
Mãe Taninha de Santo Amaro sorriu e convidou:
- O senhor também...Vá a Santo Amaro pra gente
comer uma maniçoba...
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança
levantou e andou de ponta a ponta do corredor do
carro. Foi, veio, foi e parou perto do Sergipano
de São José da Mata e perguntou:
- Vem de longe?
- Sim.
- Vai pra longe?
- Sim.
O camareiro avisando:
- Chegar em Matias Barbosa.
Em Matias Barbosa embarcou um grupo de
seguidores da Doutrina Espírita, iam para um
encontro de Centos Espíritas em Pedro Leopoldo.
O trem parou na estação Cedofeita onde
embarcou um grupo de rapazes barulhentos e
alegres; jogadores de um esporte pouco conhecido
chamado croquete. Sendo um deles de origem
irlandesa ensinou os amigos e seguido vinham de
Juiz de Fora pra Cedofeita onde um deles tinha um
sitio para jogar.
46
Na estação Retiro embarcou um cabo da Policia
Militar e o Cicatriz de Paraibuna ao ver a farda
resolveu ir ao WC.
- Próxima estação é Juiz de Fora...Juiz de
Fora... Saída pela porta da frente...
- Moço eu vou pegar trem da Leopoldina...
- Ta bem...O senhor desce aqui...A estação da
Leopoldina é do outro lado da linha...
No ultimo carro os jogadores de bolão,
levantaram, esfregando mãos e esticando braços:
- Tche!...Até que a gente tá chegando...Saímos
de Santa Rosa na sexta feira...Hoje já é quarta...
Plataforma iluminada e cheia de gente,
carregadores e camareiros atentos. Batida de sino
saudando a chegada do trem.
Um médico e dois enfermeiros carregando uma
maca caminhando apressados até o vagão de bagagens
para descer o Conserveiro de Sobragi.
Gente saudando gente, gente alegre pela
chegada. Um jornaleiro gritando:
- A Tribuna...
O Maluco de Andrade Pinto, desembarcou e subiu
num banco da plataforma onde começou um discurso
imitando Getulio Vargas:
- Trabalhadores do Brasil!...
Um guarda fez ele descer do banco.
Um carregador anunciando:
- Palace Hotel...Palace Hotel.
47
Andando pela plataforma com imponência o
senhor Juiz de Direito de Santos Dumont.
Desembarcou o Cabo da Policia Militar de
Retiro e o Cicatriz de Paraibuna saiu do WC. Mãe
Taninha de Santo Amaro notou.
Carregadas no carro de bagagens dez gaiolas
grandes com pombos correios.
Num canto da plataforma o Cego do Pito Aceso,
tocando uma sanfoninha. Pito Aceso bairro de Juiz
de Fora.
Terno preto, gravata branca, fumando cachimbo
embarcou na segunda classe o Juiz de Brigas de
Galos de Belo Vale.
Sentou ao lado de Mãe Taninha de Santo Amaro a
Dona de Uma Republica em Ouro Preto.
A delegação do Tupi Futebol Clube o Galo
Carijó embarcou na primeira classe. Também
embarcaram os locutores da PRB-3 Radio Juiz de
Fora. Ia para Sete Lagoas jogar contra o
Democrata.
O serviço de alto falante da estação da
Central do Brasil em Juiz de Fora informa a
partida do trem procedente de São Paulo...
O sujeito magro suspirou e disse ao
companheiro de banco:
- Agora estou perto de casa...
- O senhor vai pra onde?
- Santos Dumont...Eu embarquei em Barra do
Pirai...
- I eu...Eu venho de São Paulo e vou pra
Senhor do Bonfim...É no norte da Bahia.
48
Trem saindo com cuidado do recinto de Juiz de
Fora e os camareiros anunciando:
- Benfica... A próxima estação é Benfica...
Benfica saída para o Ramal de Lima Duarte...
Um passageiro apavorado e um camareiro
orientando:
- Não tem baldeação imediata...Trem pra Lima
Duarte só amanhã... Em Benfica tem hotel...Tem
pensão.
O trem parado em Benfica; alguém comentou
dentro do trem:
- No dia que aqui parou o primeiro trem, o
namorado da moça embarcou e ela pediu: bem fica e
ficou Benfica.
De Benfica a Dias Tavares cinco quilômetros.
Dias Tavares a plataforma cheia de tarros de
leite.
Dias Tavares a grande curva pra esquerda e dez
quilômetros a estação de Chapéu D’Uvas. Mais
tarros com leite.
Em Chapéu D’Uvas o peão de leitaria, com a
roupa muito suja e fedorenta, entregou a passagem
o camareiro e disse:
- Vou na plataforma do carro, que eu desço na
primeira...
O trem saiu de Chapéu D’Uvas fez a grande
curva para a direita.
- A próxima é Ewbank da Câmara...
De Ewbank da Câmara a Santos Dumont quatorze
quilômetros.
49
- A próxima é Santos Dumont... Santos Dumont
entrada para o Ramal de Mercês...
Santos Dumont a Princesa da Mantiqueira a
oitocentos e trinta e oito metros acima do nível
do mar.
Plataforma cheia de gente, correrias, gente
gesticulando, gente falando em voz alta.
No primeiro carro de primeira classe, a Dona
de Republica de Estudantes em Ouro Preto falou
para a Mãe Taninha de Santo Amaro:
- Eu estou achando que este trem esta
carregado de fluidos negativos...
- Ih está...Esse que tem a cicatriz no
rosto...Ele é bandido...
Coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem
reuniu os três capangas na plataforma da bonita e
simpática estação de Santos Dumont:
- Uai!...Esse bicho safado do focinho cortado
é aquele que nós tirou da Feira de Pai Pedro...
Ele tá com o diabo no corpo...
Dentro do trem alguém perguntou:
- Tá parado por quê?
- Tá esperando o trem que vem do Ramal de
Mercês...
Ilustríssimo senhor Juiz de Brigas de Galos de
Belo Vale passeando com garbo e soltando baforadas
do cachimbo na plataforma.
O apito da locomotiva, batendo o sino o trem
do ramal encostou no outro lado da estação e
passageiros apressados saltaram para a plataforma
50
e a maioria embarcando no trem para Belo
Horizonte.
A Mulher da Estação Boa Sorte se queixando
para o camareiro a sua má sorte:
- Perdi minha mala...
Num carro de primeira classe o viajante suando
frio, no colo um mapa de Minas Gerais e na mão o
Guia Levy, consultando horários de trens.
Alguém comentou:
- Vamos embora...Que agora a Mantiqueira fica
alta...Agora até Barbacena ele vai subindo...
- Três horas nós tá em Belzonte...
- Uai!...É de cinco pras seis...Ainda tem que
dividir em dois... Em Murtinho um vai pela linha
larga e outro pela linha estreita.
Estação Mantiqueira, plataforma cheia de
tarros com leite.
- E esse mundo de leite?
- Vai pro Rio de Janeiro...
Em Mantiqueira embarcou o Violeiro de
Mantiqueira e se acomodou no primeiro carro de
segunda classe.
Da estação Mantiqueira até a Parada Cabungu,
quatro quilômetros. Parada rápida em Cabungu.
- Aqui nasceu o Santos Dumont...Aqui é bonito
passar de dia...A linha férrea faz uma curva em
“S” e aqui é uma volta parecida com uma ferradura.
Na segunda classe o Violeiro de Mantiqueira
distraia os passageiros:
51
- Meu povo...Boa noite...Antes de tocar minha
viola eu conto uma estória... O sujeito chegou na
estação de Mantiqueira o trem já estava na estação
e ele falou pro agente:- Duas pa Lavrinhas... Duas
pa Lavrinhas...- O agente respondeu agora não
posso. To atendendo o trem...Depois que o trem
saiu o agente atendeu o sujeito:- Diga...- O
sujeito desanimado:- Eu queria duas passagens pa
Lavrinhas...
Parada rápida em Rocha dias.
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança
fumando um palheiro e dando gargalhadas das
estórias do Violeiro de Mantiqueira.
- O fiscal da saúde chegou na estação de
Mantiqueira e destapou o tarro, nadando no leite
dois lambaris, o fiscal olhou pro leiteiro e
perguntou brabo:- E isso?- O leiteiro encolheu os
ombros falando: - Uai! A vaca bebeu no rio...
De Rocha Dias a João Aires sete quilômetros e
a linha sempre subindo. Parada rápida em João
Aires.
E o Violeiro de Mantiqueira continuava
contando suas estórias:
- Gente...Minha mãe fazia pastel de mingau
preu vendê nos trens...Dai o passageiro ficou
devendo um cruzeiro...E o trem saindo, não fico no
prejuízo...Subi no trem e cobrei dele desde de
Mantiqueira até Barbacena...Ele pagou um e eu
paguei dez de passagens...
Em João Aires embarcou um grupo de alunos da
Escola Agrícola, tinham ido ali fazer
experiências.
E na segunda classe o Violeiro de Mantiqueira:
52
- Gente...Daqui a pouco é Barbacena...Sabe que
Barbacena tem casa de doido...Os doutores chama
manicômio...Ai os loucos combinaram de
fugir...Depois de muita reunião tava feito o
plano...A gente pula o portão da frente...Na noite
da fuga o líder foi ver a situação...Voltou
triste, desanimado... O plano falhou, esqueceram o
portão aberto.
- Próxima estação é Antonio Carlos... Antonio
Carlos... Saída para o Ramal da Rede Mineira...
Antonio Carlos movimento na plataforma, gente
desembarcando, gente embarcando, gente triste pela
despedida e o trem continuou viagem.
- Próxima estação é Barbacena... Barbacena
saída pela porta da frente...
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí, levantou,
sacudiu a roupa e entrou no WC. Do bolso da calça
tirou o lenço azul, dobrou e botou no bolso de
cima do casaco, enfiou uma pena de arara no lado
do chapéu e ficou esperando o trem parar.
Locomotiva batendo o sino o trem encostou na
plataforma cheia de gente. Gente descendo, gente
subindo, carregadores apressados.
O relógio da plataforma marcando vinte e duas
horas e trinta minutos.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí
desembarcou e o homem de terno escuro chegou perto
dele perguntando:
- Se ficar em Barbacena; você é A ou é B?
- Não sou A e não sou B... Sou C de conforme o
contrato.
- Uai!Muito bem... Já identificou o coronel?
53
- Já.
- Então vamos combinar o plano...
Barbacena Cidade das Rosas a mil cento e
trinta cinco metros de altitude.
No ultimo carro embarcou um enfermeiro
acompanhando um homem velho o Cangaceiro Doido de
Juacema. Com muita calma o enfermeiro sentou o
louco no canto . O Padre de Petrolina perguntou:
- Você vai acompanhar ele?
- Vou levar ele pra terra dele... É no sertão
baiano, passando Senhor do Bonfim... Estação
Juacema...
- E ele melhorou?
- Não senhor...
- Mas os médicos dizem que o clima de
Barbacena...
- Os médicos... Por isso que o povo
diz...Barbacena cidade dos loucos...
Na plataforma de Barbacena, numa ponta um
grupo de homens engravatados em altas conversas,
gente importante na cidade, entre eles um Deputado
Federal. No outro extremo da plataforma outro
grupo e também um Deputado Federal. Gente que
estava esperando o Trem Vera Cruz pra embarcar
para o Rio de Janeiro. Um grupo “Biista” o outro
“Andradista”.
- Vai partir o trem para Belo Horizonte...
Despedidas, gente embarcando, batida de sino.
54
Estação Alfredo Vasconcelos, descarregadas as
dez gaiolas com pombos correios e as instruções
para a hora de abrir e soltar os pombos.
De Alfredo Vasconcelos a estação Ressaquinha
treze quilômetros.Ressaquinha embarcou um cabo,
dois soldados conduzindo um desertor do Décimo de
Infantaria de Belo Horizonte.
Parada rápida em Hermilo Alves. De Hermilo
Alves a Carandaí nove quilômetros.
Em Carandaí o trem esperando para fazer o
cruzamento com trem Vera Cruz. Alguém comentou:
- Já estamos perto de Lafaiete...Em Lafaiete
esse trem se divide em dois...Um vai pela bitola
larga e outro vai pela bitola estreita...
- Isso não é em Lafaiete...É em Murtinho.
Apitando, batendo o sino o Vera Cruz passou
por Carandaí.
O trem para Belo Horizonte continuou a viagem
e logo chegou a Pedra do Sino.
Em Pedra do Sino uma mulher com vestido muito
sujo, cabelo desalinhado, pés descalços subiu no
ultimo carro, um camareiro apressou e fazer ela
descer. Ela deu um grito, olhou o coroné Nézinho e
apontando para ele disse:
- Desce desse trem... Eles vão matá você...
O camareiro segurou o braço dela e a fez
desembarcar.
Estação Cristiano Otoni, embarcou no ultimo
carro um padre para contentamento do Padre de
Petrolina e para descontentamento do coroné
Nézinho.
55
Em Buarque de Macedo embarcou, no primeiro
carro de primeira classe, um sargento e dois
soldados da Policia Militar,presenças que deixaram
o Cicatriz de Paraibuna preocupado.
O trem rodando na região rica em minérios e já
perto de Conselheiro Lafaiete.
- Essa hora o trem da bitola estreita tá
saindo de Lafaiete...Nos espera em Murtinho...De
Murtinho sai duas linhas a do Paraopeba que é a de
bitola larga e do Rio das Velhas que é estreita...
Zero horas e quarenta cinco minutos chegaram
em Conselheiro Lafaiete. Conselheiro Lafaiete das
minas de ferro. Conselheiro Lafaiete da Coudelaria
do Exercito.
Entrando com muito cuidado no recinto cheio de
vagões, locomotivas de manobra.Recinto de bitola
mista.
De Conselheiro Lafaiete a Gagé nove
quilômetros.
Gagé outro recinto movimentado com vagões de
minérios. Entrada para o recinto da Companhia de
Altos Fornos de Gagé.
Passageiros preocupados com a próxima.
- A próxima é Joaquim Murtinho...Ponto de
troca de trem...Passageiros que vão para Miguel
Burnier, Ouro Preto, Mariana, Itabirito e Sabará
desembarcar e trocar de trem...
- Por favor...Eu vou para Gongo Soco...
- Gongo Soco é no Ramal de Nova Era, troca de
trem...
56
O outro trem encostado na plataforma.
Carregadores oferecendo seus serviços. Passageiros
sonolentos, conferindo as bagagens.
Camareiros auxiliando e orientando. Gente
ainda com duvidas.
O trem da bitola larga continuou a viagem.
De Joaquim Murtinho a Congonhas do Campo nove
quilômetros. Os camareiros avisando:
- Chegar em Congonhas...Congonhas do Campo...
Pra alegria do coroné Nézinho o padre que
embarcou em Cristiano Otoni se despediu do Padre
de Petrolina e desembarcou.
Congonhas da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos
e sua escadaria com as estatuas de doze profetas,
feitas pelo Aleijadinho.
Parada rápida na estação Casa de Pedra.
- Próxima estação é Engenheiro Caetano
Lopes...Engenheiro Caetano Lopes...
Caetano Lopes o agente nervoso na plataforma e
nem o trem tinha parado perguntou ao chefe de
trem:
- Quantos passageiros para o Trem do Sertão?
Pulando para a plataforma da estação o chefe
de trem sacudiu a mão:
-Uai!...Só vendo no mapa de passagens...Só pra
Bocaiúva tem quarenta e nove...
-Não...Não precisa o numero exato...Proporção.
-Uai!...O normal deste trem...Oitenta por
cento é carga pra o norte...Tem um passageiro aí,
57
que vem de Jaguarão no Rio Grande do Sul e vai pra
Natal no Rio Grande do Norte...
- Coitado...Vai chegar em Natal no Natal...
Dentro do trem os passageiros começaram a se
remexer. Interrogações, comentários...Parou por
quê? O que esta acontecendo?
A notícia começou na segunda classe. Um
acidente ai na frente. Morreu gente...
No escritório da estação o agente avisou ao
chefe de trem:
- Acidente em Ibiretê...O da bitola estreita
tá esperando em Burnier... Vem um trem socorro de
Lafaiete e trás dois carros de passageiros pra
levar os da bitola larga das estações até Ibiretê.
Sem perder tempo desengataram a locomotiva da
frente do trem e engataram na cauda.
- Passageiros que vão para Ibiretê, Belo Vale,
Brumadinho...Desembarcam aqui e aguardem o que vem
de Lafaiete...
Nervoso o Juiz de Briga de Galos de Belo Vale
sacudia o cachimbo no ar dizendo:
- Vou comunicar a Diretoria da Central do
Brasil...
Prontos para dar ré pra trás, vamos direto a
Mutinho.
Zédizefa bateu no braço do coroné:
- Eita! Coroné...Que mulher porreta...Mãe
Taninha de Santo Amaro falou... O caminho que é
largo vai fechar mas o caminho estreito vai tá
aberto... O caminho que é largo vai fechar mas o
caminho estreito vai tá aberto...
58
- Oxente! Você endoidou?...Ela falou um
palavreado de candomblé...Até vou mijar.
O coroné entrou no WC, trancou a porta passou
a mão na testa, olhou para cima:
- O São Gonçalo...São Gonçalo meu santo
porreta eu to viajando nas confianças do
senhor...Vou chegar lá vou fazer dança de doze
rodas...Dança de doze rodas com fartura de bode
assado, farofa de carne do sol...
Enquanto isso em Miguel Burnier o agente e o
chefe de trem preparavam o trem da bitola estreita
para esperar a nova carga.A carga do trem da
bitola larga. Trem da estreita que em Burnier já
descarregou os passageiros com destino ao Ramal de
Ponte Nova e carregou os passageiros procedentes
do ramal.
- O controle de movimento vai aproveitar esse
trem pra fazer o Trem do Sertão...
- O trem tem três de segunda classe e quatro
carros de primeira classe...Sete carros...
- Vamos engatar mais dois de segunda classe e
mais três de primeira classe.
O trem da bitola larga chegou em Murtinho e
manobreiros apressados desengataram a locomotiva
da cauda e engataram na frente do trem. Vai embora
direto a Burnier, não para em Lobo Leite e não
para em Crockatt de Sá.
Trem da bitola larga chegando em Burnier, onde
o esperava o da bitola estreita.
Camareiros atenciosos e com paciência
orientando os passageiros:
59
- Em Burnier troca para o trem da bitola
estreita...Todos os passageiros.
Zédizefa saltou antes do trem parar e correu
pra marcar banco. Deu sorte porque os três últimos
carros estavam vazios. Marcou o ultimo banco da
direita do ultimo carro.
Na verdade a carga humana praticamente ocupou
os mesmos lugares que vinha ocupando no outro
trem.
Bagageiros e carregadores transferindo as
cargas e bagagens.
O Falcoeiro de Três Rios cuidando a
transferência das gaiolas com os falcões.
O bagageiro orientando os dois carregadores a
manejarem com muito cuidado com a caixa grande de
papelão onde estava escrito: Estação Catuti
(EFCB).
Mãos na cintura coronel Quim Quim Querendão do
Quem Quem, cercado dos três capangas olhava com
atenção ao Ervateiro de Lajedo Alto que se
deslocava com auxilio dos braços.Comentou:
- Uai sô!...Vocês já tinha assuntado esse
homem?
Diabo Péssimo sacudiu a cabeça, afirmativo:
- Sim sinhô...Tava vindo no meu carro...
- Pois assunte bem com ele...Quero informações
desse cabra...
O Cicatriz de Paraibuna de dentro do trem
espiava o coronel e os capangas:
- Esse coronel de merda anda com os macaco
dele...Eu sei o que eu vou fazer...
60
No ultimo carro o Padre de Petrolina disse em
voz alta:
- Eu tenho um segredo...Lá na Bahia vai ter um
problema...
O sujeito gordo, mãos nos bolsos, andando
nervoso pela plataforma resmungando. Esse atraso
pode a gente perder o Expresso Noturno da Leste.
Baldeação feita, cargas e passageiros
transferidos para o trem da bitola métrica; um
metro a distancia entre cada linha de trilhos.
Trem pronto pra avançar.
Parada rápida na estação de Engenheiro Correa.
- Próxima estação é Itabirito...Itabirito.
Mal o trem parou em Itabirito o Padre de
Petrolina desceu e foi buscar uma dúzia de pasteis
de angu. Coroné Nézinho comentou:
- Eita!...Gula é pecado.
Comentário que não inibiu o Zédizefa de
comprar seis pastéis de angu.
O Alambiqueiro de Guararema desceu para
comprar pastel e voltou com a novidade, contou pro
coroné Nézinho:
- Nós não vai precisar trocar de trem em Belo
Horizonte...Esse aqui vai até Monte Azul...
Coroné espichou o pescoço e falou baixo:
- Escute...Qual é o segredo do Padre de
Petrolina?
- Ainda não sei, não...
De Itabirito a Esperança quatro quilômetros.
61
Esperança, fim da bitola mista. Num canto
escuro da plataforma, louro, cabelo amarelo e
comprido,olhos azuis; Satanás Louro de Esperança.
De dentro do trem o Cicatriz de Paraibuna o
avistou e foi a seu encontro:
- Ei malandro...Que você tá nesse mundo?
- Esperança é o chão em onde é meu quartel...
- Bora cair no mundo...
- Meu mano eu fuji foi ontem da Penitenciária
de Neves...
- Então...Cai fora daqui...Eu pago a
passagem...Compra lá...Até Janauba.
Os dois embarcaram e o velho camareiro sacudiu
a cabeça. Esses dois dentro desse trem.
Estação Aguiar Moreira embarcou um cego e seu
cão guia na segunda classe. Depois que ele sentou
um camareiro levou o cão para o vagão de bagagens.
No vagão de bagagens carregaram cinco balaios
com folhas de ora pro nobis, uma folha usada na
culinária de Sabará.
De Aguiar Moreira a Rio Acima quinze
quilômetros.
Em Rio Acima embarcou na segunda classe um
grupo que chamou a atenção dos passageiros. Um
grupo de reizado.
Os primeiros raios do sol iluminando a
Mantiqueira e o trem chegou à estação de Honório
Bicalho. Os vendedores gritando:
- Jabuticaba... Jabuticaba que tá docinha...
62
E Zédizefa não perdeu tempo, baixou a janela
enquanto o coroné Nézinho resmungava:
- Eita!...Que é um bucho...
Da estação Honório Bicalho a Raposos dez
quilômetros.
Raposos; embarcou no ultimo carro de primeira
classe mais um grupo de reisado. Coroné Nézinho
até se admirou:
- Oxente!...Já tá no tempo de cantar reis?
Um dos integrantes do grupo contou:
- A gente vai a Sabará, pra um encontro de
reisado na igreja de Nossa Senhora do Ó.
Coroné contou que no Juazeiro se fazia o Boi
de Reis e explicou ser um tipo de boi bumbá.
O trem continuou sua marcha e Zédizefa bateu
no ombro do coroné:
- Eita coroné... Jabuticaba é fruta que dá no
pau...A cidade que vamos chegar tem a igreja do
Ó...
- Zédizefa, você tá ficando doido?
- Coroné...Mãe Taninha de Santo Amaro falou...
No caminho junte as coisas da oferenda; licor da
fruta que dá no pau que tem na cidade da igreja do
Ó...
- Zédizefa, você se bandeou pro lado do
candomblé de verdade... Vou mandar você pra
Salvadô...Pai de Santo Zédizefa...
Os camareiros avisando:
63
- Próxima estação é Sabará...Sabará baldeação
para o Ramal de Nova Era...Saída pela porta da
frente...
Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro
coroné.
Batendo o sino da locomotiva o trem encostou
na plataforma da estação de Nossa Senhora da
Conceição de Sabará.
Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra
Zédizefa.
Passageiros apressados que descem, passageiros
apressados que embarcam.
Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro
coroné.
O Padre de Petrolina marcou o seu lugar e
desembarcou caminhando ligeiro. Logo retornou com
uma garrafa de licor de jabuticaba
Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra
Zédizefa.
Sabará fundada pelo bandeirante Borba Gato.
Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro
coroné.
Os grupos de reisado reunidos na plataforma,
dando risadas, distribuindo alegrias.
Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra
Zédizefa.
Batida no sino da plataforma anunciando que
dentro de dois minutos o trem partiria.
Ligeiro o coroné tirou o dinheiro do bolso e
falou rápido:
64
- Tome, vá lá e compre seu licô de
candomblé...
- Mas se o coroné não quer...
- Vá e não discuta...
De Sabará a General Carneiro oito quilômetros.
Nesse trecho o que era boato dentro do trem se
confirmou.
- Passageiros que vão para Belo Horizonte
trocam de trem...Passageiros que seguem para o
sertão permanecem no trem...
A bonita estação de General Carneiro; prédio
triangular, sem janelas, várias portas, linhas e
plataforma pelos três lados.
Já encostado o trem que veio de Belo
Horizonte.
Camareiros ainda orientando os passageiros que
estavam com duvidas:
- Passageiros que seguem para o norte ficam
nesse trem...Passageiros para Belo Horizonte
desembarcam e tomam outro trem...
Alegria para os vendedores de pastel de angu,
o trem iria permanecer mais tempo na estação.
Padre de Petrolina comprou uma dúzia de
pasteis dizendo:
- Vou ver qual o melhor...Itabirito diz que é
o deles...General Carneiro...
Zédizefa também resolveu tirar a prova.
No trem que chegou de Belo Horizonte o
camareiro avisando:
65
- Troca de trem...Passageiros por favor passem
para o outro trem...
Turco Bidala, que em Belo Horizonte embarcou
cedo e como sempre teve o trabalho de espalhar uma
dúzia de malas debaixo dos bancos de um dos carros
de segunda classe, começou a trocar as malas de
trem, reclamando:
- Um drogas o Central di Brasil...Muito malas
pra carrega...
Um camareiro cuidando ele fazer a
transferência o que o deixava mais irritado:
- Eles vai querer que eu mande mala no carro
de bagagens e eu pago frete e lá vai meu lucro...
Malas com roupas e bugigangas para primeiro
vender na Feira de Pai Pedro e depois percorrer o
nortão das Minas Gerais, de povoado em povoado no
lombo de burro.
Corpo e alma curtida da luta dura nas
caatingas do sertão do médio São Francisco, o
Vaqueiro de Massaroca, chapéu e percatas de couro
cru correu a pegar lugar no primeiro carro de
segunda classe.
Manobreiros e os guarda freios organizando o
Trem do Sertão, aproveitando o tabuleiro que
chegou de Joaquim Murtinho e já carregado. Entre
os carros de segunda classe e primeira classe
engataram o carro restaurante e botaram mais um
vagão, vagão misto; metade para transporte de
cargas e uma metade destinada a transporte de
animais, este engatado na locomotiva.
O trem ainda parado em Carneiro, o pessoal do
restaurante começou a servir café. Café com leite,
pão e queijo.
66
No último carro o Cangaceiro Doido de Juacema,
regalou os olhos, levantou estabanado e puxou o
enfermeiro pelo braço até a plataforma do vagão e
nervoso perguntou:
- Moço...Tem algum coroné ai nesse carro?
- Tem não...Pode ficar tranqüilo...
- Esse trem já tá perto de Senhor do Bonfim?
- A gente tá indo...
Trem pronto para partir, com nova locomotiva,
equipagem de Corinto. Maquinista seu Zé dos
Curiós, foguista o seu Zé do Guarani. Zé dos
Curiós criador de curió e presidente do Clube de
Criadores de Curió de Corinto. Na sua janela da
locomotiva uma flâmula triangular do clube. Na
outra janela uma flâmula triangular do Guarani
Futebol Clube de Corinto do qual o foguista foi
ponta direita e torcedor fanático.
Chefe de trem o seu Chico Poeta, poeta e
escritor de crônicas, cooperador com os jornais de
Corinto, Curvelo e Pirapora.
Debruçado na janela da locomotiva o maquinista
puxou a corda do apito.
- Quem é o apressadinho?
- Zé Curió... A mulher botou ele pra dormir
com as gaiolas de curiós no quartinho dos fundos.
O agente passou a mão na testa, pegou o
telefone para solicitar:
- Controle... Movimento...General Carneiro...
Quero licença para o R5 avançar até Capitão
Eduardo...
67
Partiu de General Carneiro o R5 até Monte
Azul. O Trem do Sertão com setecentos e oitenta
passageiros.
O Engenheiro de Mafra contando ao Telegrafista
de Iramaia:
- Sai de Mafra, lá em Santa Catarina, no Trem
Bananeiro. O Bananeiro é o trem de passageiros de
São Francisco do Sul a Porto União da
Vitória...Pegou o apelido porque quase sempre leva
três quatro vagões com banana da região de São
Francisco e que vão para o Rio Grande do
Sul...Como a banana é fruta ela tem prioridade pra
viajar engatada em trem de passageiros...
Garçons apressados servindo café. Revisteiro
vendendo os jornais de Belo Horizonte. O chefe de
trem conferindo as passagens:
- Por favor! Passagens...Passagens...
Rumo ao sertão veredas que Minas não é uma; é
gerais.
No primeiro carro de segunda classe, lado a
lado o Gaucho de Touro Passo, tomando o chimarrão,
e o coronel Ponciano Pantaneiro de Porto
Esperança, e sentado no banco da frente e voltado
pra eles o Vaqueiro de Massaroca mascando um naco
de tabaco. Os três contando de suas atividades com
o gado em seus mundos e cada um com a sua
linguagem. Geada, frio, grito de quero quero,
minuano,terneiro...Chuva,tuiuiú,maromba,piranha,be
-zerro...Sol,calor, arribançã,seriema,mandacaru...
Estação Capitão Eduardo e desembarcou a bonita
professora que logo foi cercada dos alegres
alunos.
Estação Santa Luzia, os vendedores gritando:
68
- Olha a manga...Manga...É manga barata...
Padre de Petrolina e Zédizefa disputando quem
comprava primeiro e o coroné resmungando.
O trem correndo entre palmeiras de ouricuri e
macaúba.
Estação Riachão da Mata onde embarcou um grupo
de jogadores de truco, para participar de um
torneio em Matosinhos.
- Próxima estação é Vespasiano...Vespasiano...
Vespasiano,embarcou no ultimo carro o homem
alto, magro, careca, mala de couro e encontrou
vago o banco na frente do banco onde viajavam o
Homem de Pau Seco e o Homem do Pau Lavrado.Antes
de ocupar o banco, perguntou:
- Bom dia senhores...Essa cadeira tá sem dono?
O homem de Pau Seco respondeu:
- Tá sim...O povo que vinha ai já pulou...O
senhor vai pra onde?
O novo passageiro respondeu:
- Pois to indo pro sertão de Pernambuco...Nos
mundos de Petrolina... Estação Pau Ferro...
O Homem de Pau Lavrado sorriu dizendo:
- Eita!...Eu vou pro Pau Lavrado, ele vai pro
Pau Seco e o senhor pro Pau Ferro...
O Homem de Pau Ferro deu uma risada e virou o
encosto do banco dizendo:
- Antão... Viajamos conversando...
Zédizefa que estava prestando a atenção, bateu
no ombro do coroné Nézinho dizendo:
69
- E...O diabo tá fazendo a coisa...
- Oxente!...Zédizefa, que doideira é essa?
- Oxi...Mãe Taninha de Santo Amaro falou...
...Não confie no homem do pau seco, nem no homem
do pau lavrado e também não no homem do pau
ferro...
Coroné Nézinho passou a mão na testa, levantou
e foi pro WC. Trancou a porta e olhou pra cima:
- São Gonçalo meu santo forte...To viajando na
sua confiança...Faço vinte e quatro rodas de dança
com fartura até com buchada de bode, sarrapatel...
Estação Nova Granja onde o funcionário do
correio entregou ao agente da estação um grande
maço de cartas; corrente de Santo Antônio.
Em Nova Granja embarcou outro grupo de
truqueiros indo para o torneio de Matosinhos.
Estação Doutor Lund,das imensas paineiras,
embarcou mais jogadores de truco, sendo que este
grupo tinha bandeira e uma bonita rainha.
No corredor do carro o menino alegre,
brincando distraído com um ioiô.
- Próxima estação é Pedro Leopoldo...Pedro
Leopoldo...
Pedro Leopoldo o desembarque de vários grupos
de seguidores da Doutrina Espírita, procedentes de
vários lugares.
Zédizefa bateu no braço do coroné falando:
- Aqui nesse lugar tem um homem que fala com
os mortos...
70
- Zédizefa cale sua boca...Isso não se fala
dentro de trem...
Entre Pedro Leopoldo e Matosinhos a distancia
de dez quilômetros.
Matosinhos da grande festa anual do Bom Jesus.
Em Matosinhos desembarcaram os grupos de
truqueiros.
No momento que o trem saia da estação de
Matosinhos o tenente da Policia Militar, que
estava na plataforma, viu na janela de um dos
carros o Satanás Louro de Esperança. Esperou o
trem sair e foi ao escritório da estação passar
uma mensagem para Sete Lagoas.
Parada Peri Peri, na beira do trem uma mãe
nervosa recomendando a filha de quinze anos que ia
viajar sozinha para o chefe de trem. Parado na
plataforma do carro, recostado na parede, olhar de
carcará, carcará que pega, mata e come; o Gigolô
de Poá.
A mocinha entrou no carro assustada e sentou
no primeiro banco desocupado que encontrou.
O Gigolô de Poá entrou no carro distraído,
caminhando despreocupado. Parou perto da Mocinha
de Peri Peri. Ela assustada, ele começou conversa.
Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem com
os olhos fechados enxergando tudo dentro do carro,
bateu a sola da botina no assoalho do carro. Diabo
Ruim deu duas batidas.
O Gigolô de Poá, pediu pra Mocinha de Peri
Peri marcar o lugar pra ele, pediu licença e saiu
avisando que já voltaria.
O trem correndo entre matas de ipê amarelo.
71
Com uma garrafa de cerveja e dois copos o
Gigolô de Poá retornou. A Mocinha de Peri Peri
quase em pânico se encolheu, olhos com lágrimas. O
Gigolô de Poá com seu sorriso cínico começou a
ajeitar a mesinha do carro, num fio de voz a
Mocinha de Peri Peri disse:
- Moço eu não quero...
Ele continuou ajeitando a mesa e uma voz
trovejou nos seus ouvidos:
-Uai! A moça numqué, eu quero...
Dizendo isso o Diabo Ruim tirou a garrafa da
mão dele e tomou um gole no gargalo. Gigolô de
Poá, aprumou o corpo e com calma levou a mão ao
bolso interno do casaco para segurar a navalha.
Uma mão forte pousou no ombro dele;coronel Quim
Quim o Querendão do Quem Quem que avisou:
- Moço!...Tão chamando você lá no fim do
trem...
Parada rápida na estação de Arco Verde.
Estação Prudente de Morais onde descarregaram
muitas caixas especiais para carregar cobras
vivas. Em Prudente de Morais um caçador voluntário
mandava cobras para o Instituto Butantã.
- Próxima estação é Sete Lagoas...Sete
Lagoas...
Sete Lagoas, cidade ferroviária, das oficinas,
da fabrica de vagões. Plataforma com bandeiras e
flâmulas do Democrata cuja diretoria e torcedores
estavam esperando o “Galo Carijó” de Juiz de Fora;
Tupi Futebol Clube.
Dentro do trem alguém comentou:
72
- Já tamos em Sete Lagoas...No fim do dia ele
chega em Montes Claros...
- Mas não!...No fim do dia ele tá em
Buenópolis...Montes Claros é lá no meio da
noite...
- Uai!...Onde é o almoço?
- Almoço em Cordisburgo... E a janta é em
Buenópolis...
Um inspetor da Policia Civil do Estado de
Minas Gerais, acompanhado de um camareiro,
atravessou todo o trem observando os viajantes,
discretamente.
No ultimo carro o Cangaceiro Doido de Juacema
deu um grito:
- Eu mato!
Os passageiros ficaram assustados.
Apitando, batendo o sino o trem saiu de Sete
Lagoas da festa de Santa helena.
Depois que o trem saiu o inspetor da Policia
Civil e um capitão da Policia Militar do Estado de
Minas Gerais foram ao escritório do agente da
estação solicitar transmissão de mensagem para o
comando da Policia Militar em Curvelo
Estação Wenceslau Brás, o funcionário do
correio entregou um jornal para o menino que o
colocou numa bolsa de pano que levava a meia
espalda, ligeiro montou numa mula e tocou a
galope.
Estação Silva Xavier, na pequena plataforma,
muitas caixas com frutas e legumes que o bagageiro
73
apressou em carregar.Produtos para a feira de
Cordisburgo.
Embarcou um grupo de colonos descendentes de
alemães, vestidos de preto, religiosos da Igreja
Protestante, iam para um encontro de jovens em
Araçaí; encontro para estudo da Bíblia, jogar
“Knip” um jogo de tabuleiro e comer salsichão com
repolho.
O Telegrafista de Iramaia até ficou admirado:
- Pensava que só tinham colônias de alemães no
Sul...
O Pastor Evangélico de Araçaí sentou ao lado
do Padre de Petrolina.
A batida do sino ecoou no povoado de Silva
Xavier e o trem começou a sair da estação.
O Padre de Petrolina disse ao Pastor de
Araçaí:
- Vocês têm uma coisa boa...Vocês estudam a
Bíblia...
- É...Pra manter os fiéis unidos; a gente
canta, faz um almoço e faz jogos...Isto tudo
ajuda...
Estação Carvalho de Almeida, a seiscentos e
oitenta e três metros de altitude. Caixas e sacos
com frutas pra feira de Cordisburgo.
Embarcou mais um grupo de jovens evangélicos
para se unir ao grupo que vinha de Silva Xavier.
Depois que os dois grupos se saudaram cantando, o
líder do grupo de Carvalho de Almeida reclamou
para o pastor:
74
- O senhor tá nos devendo uma mesa de jogar
knip...
- Fica em paz...Já tá pronta...Na volta vocês
traz...
A Velinha de Buenópolis conversava com o
Enfermeiro de Barbacena:
- Vocês vão pra onde?
- Pro norte da Bahia...Ele é de
Juacema...Juacema é uma estação que tem entre
Senhor do Bonfim e Juazeiro...
- E ele já tá curado?
O Enfermeiro de Barbacena sacudiu a cabeça:
- Mais ou menos...Quando ele era menino o
bando de Lampião atacou Juacema...Fez misérias,
atacou até a estação...E ele ficou meio
destrambelhado e foi criando a mania, que é
cangaceiro...
O trem parou em Araçaí, o grupo de evangélicos
apressou a desembarcar. No momento que o Pastor
Evangélico de Araçaí ia sair do carro entrou o
Padre Velho de Araçaí, alem de não se saudarem,
ambos viraram o rosto. Padre Velho de Araçaí
sentou ao lado do Padre de Petrolina, resmungando:
- Seguidor de Lutero... Anda nas estações
juntando fiel...Em Silva Xavier tem uma colônia de
alemães...Fé?...Eles vão encher o bucho de repolho
e carne de porco e fazer joguinhos...Agora em
janeiro nós vamos fazer uma grande festa em
Araçaí...Festa de São Cristovão...
De Araçaí a Cordisburgo quinze quilômetros.
75
Coroné Nézinho espichando as pernas caminhando
no corredor do carro. Os quatro meninos brincando
com uma piorra. Coroné parou pra bater uma prosa
com o tio dos meninos:
- A pois, já tá perto da sua estação?
- Uai! Tá nadíca de nada...Nós vai pra
Uratinga...Depois de Montes Claros...Vai chegar de
madrugada...
Os camareiros avisando:
- Cordisburgo é ponto de almoço...Meia hora
pra almoço...Não percam a hora...É Cordisburgo...
Dois policiais militares em cada ponta da
plataforma. No centro da plataforma um tenente e
um sargento da Policia Militar de Minas Gerais.
O Pistoleiro de Paulistana no Piauí, olhou
pela janela, viu o movimento dos policiais. Tirou
o revolver do bolso e colocou dentro da mala:
- Tá tendo muita policia na beira deste
trem...A polícia de Minas é tão perigosa como a do
Pernambuco...Só vou precisar desse revolver na
Bahia...
Na estação a banca vendendo café e bolo.
Vendedores com seus tabuleiros na volta do trem,
vendendo pastel, arroz de leite, bolo...
Passageiros com fome e com pressa rumando para
os restaurantes, bares e pensões.
Coroné Nézinho e Zédizefa sentaram contentes
para almoçar arroz, frango com quiabo e feijão de
Cordisburgo, esse feijão era um segredo do
restaurante, que cozinhava apenas o feijão, e
separado assava carne de porco temperada, conforme
76
o numero de fregueses ele refogava o feijão com a
carne assada.
Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem,
reuniu os seus diabos e logo interrogou o Diabo
Péssimo:
- Você assuntou do sujeito sem as
pernas?...Aquele que caminha com as mãos...
- Uai!...Coronel mandou...Ele é dos mundos da
Bahia, dum povoamento chamado Lajedo Alto...
Coronel botou o dedo no peito do Diabo
Péssimo:
- Uai sô!...Ta lembrado não?...Lajedo Alto foi
onde você tomou uma sova de laço...
A Pimenteira de Jequi foi ao WC buscar uma
caneca com água para beber e ela e o Ervateiro de
Lajedo Alto, repartindo, os dois comendo com a
ponta dos dedos uma farofa magra...
Satanás Louro de Esperança mordendo um pastel
disse:
- Cicatriz tá tendo muito macaco da policia na
volta desse trem...
Boca cheia o Cicatriz de Paraibuna:
- Seja homem... Parece menino cagado...Eles
tão buscando um pistoleiro do Piauí...Ele fez um
acerto de serviço lá em Barbacena...
- Virge Maria! Como é que você tá sabendo?
- Eu tenho amigos ai dentro desse trem...
Enquanto os passageiros almoçavam os
ferroviários organizavam o trem para continuar a
viagem.A locomotiva foi desengatada e encostou na
77
carvoeira para abastecer de carvão e lenha. Um
camareiro subiu pela escada, no estremo do carro
de bagagens, e foi abastecer de água os
reservatórios dos carros.
De Cordisburgo até Maquiné vinte e um
quilômetros.Saiu de Cordisburgo apitando e batendo
o sino.
Chegando de vagar no recinto de Maquiné, na
segunda linha uma locomotiva e um vagão.
Um menino debruçado na janela gritou:
- Eiiitaaaaaaa qui é soldado!
Cicatriz de Paraibuna e o Satanás de Esperança
levantaram e atravessaram o trem correndo. Saíram
na porta da frente do primeiro carro de segunda
classe e rápidos como um gato subiram pela escada
do carro de bagagens e deitaram em cima desse
carro. O Cego de São Cristovão em Sergipe cuidou o
movimento deles.
O trem parou em Maquiné e muitos policiais
militares o cercaram. Um sargento e um cabo
entraram no primeiro carro e começaram a vistoriar
o trem.
Passageiros curiosos, muitas opiniões, algum
medo.
O Cego de São Cristovão no Sergipe foi para o
WC, trancou a porta. Tirou um toco de lápis do
bolso, e pegou um papel do WC, papel chamado de
papel de trem ou papel de se limpar. Os trens
levaram o papel higiênico para o interior do
Brasil. O Cego começou a escrever.
Trem revisado pelos policiais, ordens
gritadas:
78
- Em forma!...Pelotão sentido!...
O comandante avisou ao agente da estação que o
trem podia continuar a viagem.
O trem saindo devagar, o Cego de São Cristovão
no Sergipe abriu a janela do WC e entregou o
bilhete ao agente.
Cicatriz e Satanás desceram de cima do carro
de bagagens e ficaram na primeira plataforma do
trem, preocupados. Satanás de Esperança insistiu:
- Esses macacos tão atrás de nós...
Na locomotiva o foguista, seu Zé do Guarani,
debruçou na janela, olhou para trás e comentou:
- O trem da policia vem bem atrás do nosso.
Na plataforma da estação de Mascarenhas a Moça
Vendedora de Fofão, segurou seu tabuleiro com
alegria, pronta pra vender aos passageiros.
O trem encostando, devagar, na plataforma de
Mascarenhas, enquanto o trem com os policiais
entrou pela segunda linha.
Cicatriz e Satanás pularam para a plataforma.
Trem e estação cercados de policiais. Os dois
cercaram a Vendedora de Fofão. Cicatriz a segurou
pelo braço e ficou ameaçando com o revolver.
Gritos, janelas se abrindo, o agente da
estação tremendo na porta do escritório.
O Cego de São Cristovão desceu do trem e
sentou num dos bancos da plataforma.
A Vendedora de Fofão de Mascarenhas chorando.
Cicatriz de Paraibuna gritando:
79
- A policia que fique longe... A gente faz
negocio com o agente da estação.
E está formada a encrenca. Estação cercada
pela policia. A vendedora de Fofão de Mascarenhas
soluçando. O Cego de São Cristovão no Sergipe,
sentado e segurando o grosso bastão de madeira.
- Pelotão calar baionetas!...
Dentro do trem uma mulher desmaiou.
Satanás de Esperança gritou ao comandante da
operação:
- Suba no seu trem e volte pra Curvelo...A
moça morre...
O Soteropolitano Afetado desembarcou e
deslizou na ponta dos pés, dando gritinhos, até a
plataforma da estação. Cicatriz gritou:
- Onde você vai? Seu boiola...
- Meu quiiiiiiiriiiiiido, vou ajudar o
ceguinho.
- Ligeiro seu porra...
O Soteropolitano tentando ajudar o Cego que
nervoso não sabia o rumo. A Vendedora de Fofão de
Mascarenhas soluçando. Os dois bandidos cuidando o
movimento dos policiais. O Cego deu com o cotovelo
na barriga do Soteropolitano. Foi rápido; o Cego
levantou o bastão e deu na cabeça do Satanás, ao
tempo que o Soteropolitano num movimento de
capoeirista deu um pontapé no revolver que voou da
mão do Cicatriz e no mesmo instante deu uma
rasteira o fazendo rolar para baixo da
plataforma...
Vamos embora que a viagem é longa.
80
Estação Gustavo da Silveira, muitas caixas com
mangas pra feira de Curvelo. Cercando o trem um
vendedor gritando:
- É manga...Olha a manga...
- Próxima estação é Curvelo...Curvelo, saída
pela porta da frente... É Curvelo...
Curvelo a da Basílica de São Geraldo e da
Matriz de Santo Antônio. Curvelo da Exposição
Agropecuária.
No carro de bagagens, descarregaram os malotes
do correio, fardos de jornais, pacotes de
revistas, caixas feitas de lata com filmes para o
cinema. Um filme muito esperado com o Mazzaropi.
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança
no Mato Grosso, aproveitou que o trem estava
parado e foi até o ultimo carro cumprimentar o
Soteropolitano Afetado:
- Moço!...O senhor foi valente...Homem macho
de verdade...
- Ui!...O senhor não entendeu...Foi uma
recaiiiiiiiida...
De Curvelo até Capitão Evaristo quinze
quilômetros. Em Capitão Evaristo embarcou na
primeira classe uma mulher gorda, e um menino
entregou a ela,pela janela, uma pequena caixa que
ela botou debaixo do banco, na caixa um pinto cujo
pio ecoou no carro.
O trem reiniciou a viagem e com o embalo do
carro o pinto cada vez piava mais. A Mulher Gorda
de Capitão Evaristo puxou a caixa debaixo do banco
e colocou entre os pés e tapou com o vestido.
81
O trem chegando em Osório de Almeida o pinto
piando, o camareiro se aproximou da Mulher Gorda
de Capitão Evaristo e perguntou:
- O quê a senhora tem no meio das pernas?
Alguns passageiros riram e a mulher ficou
braba:
- Uai! Que isso seu moço? Eu escrevo um
bilhete pra Central do Brasil...
Trem parado na estação Osório de Almeida o
camareiro foi comunicar ao chefe de trem, que uma
passageira transportava animal dentro do trem.
Como o trem estava parado na estação o chefe de
trem comunicou ao agente. Os dois foram falar com
a Mulher Gorda de Capitão Evaristo.O agente:
- A senhora tem um pinto no meio das pernas?
A risada foi geral e a mulher ficou braba.
Quem acalmou tudo foi Mãe Taninha de Santo Amaro
que convenceu a dona do pinto deixar o pinto
viajar no carro de bagagens.
Estação de Cerradão o cruzamento dos dois
trens de passageiros, nas janelas dos dois os
curiosos.Em Cerradão embarcou na segunda classe um
sujeito meio esquisito com uma enorme mala, sentou
e segurou a mala no colo, abraçado e escondido
atrás da mala. Alguém comentou:
- Olha o mocorongo.
O trem correndo num retão sem fim e os
camareiros avisando:
- A chegar em Corinto...Corinto baldeação para
o Ramal de Pirapora...Corinto baldeação para o
Ramal de Diamantina... É Corinto e a saída pela
porta da frente.
82
Apitando e batendo o sino, saudando e pedindo
licença para entrar no recinto do entroncamento do
Centro das Gerais.
Camareiros orientando, carregadores oferecendo
seus serviços, passageiros apressados.
Já encostados na plataforma os dois trens dos
ramais.
Entre os passageiros que desembarcaram os
cento e sete índios; homens mulheres e crianças.
Iam pra Pirapora e de lá em lombo de burros
atravessarem o Goiás no rumo do Mato Grosso.
O homem suando com duas pesadas malas
perguntando:
- O trem pro Lassance ?
- Lassance é no Ramal de Pirapora...O trem
é...
Nova locomotiva, outra equipagem. Maquinista
tinha o apelido que era o nome da estação onde
nasceu e se criou;Cerradão.O foguista também tinha
o apelido que era o nome de seu povoado
natal:Corumatai. Dois fanáticos por pescaria,
quando não estavam de serviço andavam na beira de
algum rio ou córrego.
Um capitão,um tenente, um sargento e dez
soldados da Policia Militar de Minas Gerais
andando na plataforma. O Pistoleiro de Paulistana
no Piauí, espiou pela janela do trem:
- Mais policia na beira desse trem!
O Garimpeiro de Roça do Brejo embarcou na
segunda classe levando numa bolsa de couro um
porongo cheio de pedras semipreciosas e na costura
83
da cueca quatro diamantes. Ia para Montes Claros
onde o preço era melhor.
Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem
reuniu na plataforma os seus três diabos e deu
ordem ao Diabo Péssimo:
- Logo na tardinha esse trem vai parar em
Buenópolis pra janta...Tem uma birosca num beco
ali atrás da estação...Leve o Ervateiro de Lajedo
Alto pra esse beco...
No carro de segunda classe o Ervateiro de
Lajedo Alto e a Pimenteira de Jequi, repartindo
uma manga e ele contente que estava levando
bastante comida pros filhos.
Na plataforma da estação de Corinto uma pilha
de engradados de cerveja e refrigerantes de
guaraná, o bagageiro coçando a cabeça e o agente
avisou:
- Tem que carregar, vai pra Curumatai...Em
Curumatai vai ter corrida de mulas...
O novo chefe de trem o seu Cabo Caxias,
apelido que ganhou no quartel por ser muito
disciplinado e disciplinador e aliás como chefe de
trem continuava sendo. Cabo Caxias que em Corinto
liderava um grupo de criadores de pombo correio,
costume que ele adquiriu quando serviu no Décimo
Segundo Regimento de Infantaria em Juiz de Fora e
lá ele era encarregado do pombal. Como ferroviário
ele tinha a facilidade de enviar gaiolas com os
pombos pras várias estações, tanto na linha
principal, como as dos ramais. Sabendo as
distancias e combinando com os agentes a hora de
abrir as gaiolas, ficava fácil fazer avaliações de
desempenho dos pombos e também disputas.
84
No escritório da estação a noticia:
descarrilou um em Tocandira, de três a quatro
horas a linha tá desimpedida.
Noticia que entrou no primeiro carro de
segunda classe com a versão: Tombou três ou quatro
vagões. Chegou no ultimo carro com a versão:
acidente violento; morreram três ou quatro.
Três foguistas alimentando as fornalhas com
carvão e lenha, três maquinistas conferindo
manômetros, três trens de passageiros prontos para
sair do recinto de Corinto no centro das gerais.
- Controle de movimento...Estação Corinto
solicitando licença para o trem R5 avançar até a
estação Aporá... Aporá é Corinto.
O R5 saiu de Corinto batendo o sino.
- Uai! Agora já estamos nos rumos de Montes
Claros...
- Virgem santa!...Ainda tem muito sertão e
veredas... Daqui até lá tem pra mais de duzentos e
cinqüenta quilômetros.
- Eu já gosto mais é desse canto...
- Uai! Eu também...Eu gosto mais de Minas onde
não tem minas...
O chefe de trem conferindo as passagens:
- Passagens...Faz favor, todas as passagens...
Chegou junto ao Mocorongo de Cerradão que
continuava abraçado e escondido atrás da grande
mala. O chefe de trem perguntou:
- De onde o senhor vem?
- De lá.
85
- Para onde o senhor vai?
- Pra lá.
Estação Aporá com a vila da Turma de
Conserveiros da Via Permanente da Estrada de Ferro
Central do Brasil.
Na plataforma um grupo grande de garotos
cercou o revisteiro do trem para comprar gibis.
Parada Vaca Selada embarcou o muladeiro todo
paramentado com um colete todo enfeitado com
argolas, correntes e medalhas, o chapéu
também.Sentou ao lado de um desconhecido e já
contando:
- Vai é ter festança no Curumatai, eu vou é
pra namorar...Sempre eu namoro cinco seis...
Alguém falou em voz alta:
- Eh! Esse é cumedô de mula...
De Vaca Selada até Augusto de Lima quinze
quilômetros. Plataforma da estação Augusto de Lima
cheia de gente alegre, rapazes brincalhões e moças
enfeitadas, velhos atentos e velhas bisbilhoteira,
gente que ia para a corrida de mulas em Curumataí.
Na beira do trem o vendedor de mangas.
Na plataforma da estação o bagageiro abriu o
compartimento para carregar animais do carro de
encomendas e auxiliado pelo guarda-chaves colocou
a rampa de embarque. Carregou três mulas.
O Muladeiro de Vaca Selada tentou puxar prosa
com uma das moças mas o pai da moça puxou a moça.
O sol começando a descer para os lados do São
Francisco o trem correndo no sentido sul norte.
86
A Pimenteira de Jequi olhou para o Ervateiro
de Lajedo Alto e falou:
- To sentindo uma coisa ruim...To achando que
é mau pressentimento...Pode acontecê coisa ruim...
O Ervateiro deu uma rida:
- É coisa de fim de dia...Quando vem a noite,
vêm os medos...
Lá no primeiro carro de primeira classe o
coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem, fez
sinal ao Diabo Ruim:
- Uai!...Tem atenção, que nu que esse trem
parar, vai lá no primeiro carro e clareia a idéia
do Diabo Péssimo...Pra ele leva o tal Ervateiro do
Lajedo Alto no beco...
Bastante gente a estação do Curumataí. Uma
faixa de pano branco e escrito com letras pretas
as boas vindas aos participantes da corrida de
mulas.
Foi no momento que o trem parou que o
Muladeiro de Vaca Selada se fez de bobo e encostou
na moça, moça que mais que ligeiro deu com o
cotovelo na barriga dele, não gritou mas encheu os
olhos de lagrimas.
Desembarcou a comitiva de Augusto Lima.
Descarregaram as mulas.
De uma casa na beira dos trilhos o cheiro de
leitão assado misturado com cheiros de frituras.
O chefe de trem, seu Cabo Caxias combinou com
o agente de Curumutai:
-Sábado vou mandar uma gaiola com
pombos...Você larga eles domingo...
87
De Curumatai a Buenópolis quinze quilômetros.
A Velinha de Buenópolis suspirou aliviada,
levantou do banco, dobrou a manta e conferiu a
bagagem. O neto dela combinando com os três
companheiros de viagem que seguiam para passar as
férias na casa do avô em Uratinga, anotaram os
telefones e acertaram se visitarem depois que
retornassem a São Paulo.Amizade para o resto da
vida, iniciada dentro de um trem da Central.
O Diabo Péssimo pediu licença a Pimenteira de
Jequi para falar com o Ervateiro de Lajedo Alto,
ela levantou nervosa e foi ao WC onde entrou,
trancou a porta e começou a rezar nervosa.
Os camareiros avisando:
- próxima estação é Buenópolis...Buenópolis
ponto de refeição...Meia hora para a janta...
O apito rouco ecoou pela simpática Buenópolis.
Na plataforma um neto correndo para o abraço
com o avo.
A pimenteira de Jequi, engoliu em seco e
tremeu ao ver o seu amigo Ervateiro de Lajedo Alto
ser levado pelos dois diabos cabeludos.
Coroné Nézinho resolveu ficar no trem e comer
apenas uma fatia de requeijão moreno e tomar um
guaraná.
Também ficaram no trem o Homem de Pau Seco, o
Homem de Pau Lavrado e o Homem de Pau Ferro.
Comendo queijo e bebendo cerveja.
Zédizefa acompanhou o Padre de Petrolina e o
Telegrafista de Iramaia, já que este sabia o
restaurante que servia um bom feijão. O feijão de
Buenópolis, claro que cozido simples e só refogado
88
com torresmos fritos com o tempero, conforme
chegavam os fregueses.
O Pistoleiro de Paulistana no Piaui entrou na
birosca e viu o coronel Quim Quim o Querendão de
Quem Quem, parado num recanto escuro, esperando os
seus diabos.
No trem a Pimenteira de Jequi destapou a lata
da farofa, olhou mas resolveu não comer estava
nervosa.
Na plataforma da estação o Turco Bidala
tentava fazer negócio com o Garimpeiro de Roça do
Brejo:
- Quando Bidala vem de voltando do sertão, nós
se vê nu estação da Corinto...Bidala qué pedra
semipreciosa...
Na birosca do beco escuro, em cima da mesa a
garrafa com conserva de pimenta, a farinheira e as
travessas com feijão, arroz branco e vaca atolada.
O Ervateiro de Lajedo Alto comendo com gosto
enquanto o coronel Quim Quim falava:
- A pois eu tenho minha sede numa boa
roça...Eu tenho uma roça na estação do Quem Quem,
e ali tem plantação de jerimum, de macaxeira, de
milho, de quiabo, de tudo um pouco...Vaca de
leite, umas cabras...E ali tem as minhas mulas e
burros de minhas andaduras...Tá entendendo?
-Sim senhô...
- Uai! Eu vivo no mundo... Ando tangendo gado,
aqui, lá no Goiás, lá nos mundos da Bahia, trago
gado pra curral de carregar no trem, levo gado
pras paiadas...E até faço uns serviços de
política, assim; coisas de democracias...Tá
entendendo?
89
-Sim senhô...
- Quando to no mundo...Tem três...Um, dois,
três mocorongos...Mocorongos pra cuidar minha
roça...Uai! E cuidam?...Cuidam de saber quando tem
quermesse, quando é dia de feira... Tá entendendo?
-Sim senhô...
- Uai! Eu quero é um homem de fibra e coragem
e de minha confiança pra cuidar minha roça...
- Desculpe seu Quim...Eu desse jeito não poço
montar num burro, não posso tanger uma rêz...
- Uai!...Eu quero um homem que olhe com os
olhos, pense com a cabeça e fale com a boca.
A barra vermelha do sol mergulhando lá no Rio
das Velhas. O agente de Buenópolis pegou o
telefone seletivo; que intercomunicava as estações
do trecho Corinto a Montes Claros:
- Alô...Controle...Movimento é Buenópolis
solicitando licença para o R5 avançar a Joaquim
Felício...
A batida do sino, o apito do chefe de trem, o
rouco apito da locomotiva; o R5 partiu de
Buenópolis.
No último carro, o Homem de Pau Lavrado
apontou para o Homem de Pau Seco e contou ao Homem
de Pau Ferro:
- Nosso companheiro tá aperreado...Ele tá
nesse trem com a missão de saber se dentro desse
trem da Central do Brasil tem um coronel viajando.
O Homem de Pau Ferro tomou o gole de cerveja,
sacudiu a cabeça afirmativa:
90
-Oxente seu minino...O que já não falou seu
homem?...Eu descubro...Coronel eu conheço é pelo
cheiro...Já vou varar esse trem de ponta a ponta e
já descubro...
Os camareiros avisando:
- A próxima estação é Joaquim Felício...
O sujeito gordo olhou ao companheiro de banco
e disse:
- Morei em Joaquim Felício...Até fui goleiro
do Dinamite Futebol Clube...Tomei muito banho no
Riacho embaiasaia...Tenho saudades...
Joaquim Felicio ao pé da Serra do Cabral.
Desembarcou o Falcoeiro de Três Rios.Na plataforma
trinta engradados com garrafas de cachaça e o
agente avisou:
-Carrega...Vai pra Montes Claros...
O Bagageiro reclamou:
-Uai!Isso é carga pro trem misto...
De Joaquim Felicio a Catôni dezesseis
quilômetros.
Catôni embarcou passando trabalho uma senhora
segurando um filinho pela mão e outro no colo.
Entrou no carro de primeira classe, parado no
extremo do corredor o Gigolô de Poá com seu olhar
de carcará. Carcará pega, mata e come.Com os olhos
fechados o coronel Quim Quim o Querendão do Quem
Quem tava vendo.
No escritório da estação o agente solicitava a
licença para o trem avançar:
- Movimento...Catôni...Quero licença para o R5
avançar a Bueno do Prado...
91
O trem correndo por entre canaviais e no
primeiro carro da primeira classe a criança de
colo chorando a Senhora de Catôni tentando acalmar
e parado no corredor o Gigolô de Poá e seu olhar
fulminante. Ela embalou a criança, nada,
continuava chorando. Ela tirou o seio pra fora da
blusa e tentou dar de mamar, a criança recusou,
ela disse:
- Toma nenê, senão a mamãe vai dá pro
gatinho...
O Gigolô não perdeu tempo e:
- Miauuuuuuuu...Miauuuuuuuuu...
- Au au...
Gritou no ouvido dele o Diabo Ruim ao tempo
que o segurou pelos fundilhos e arrastou para fora
do carro. Voltou para o ultimo carro com dente
inchado e o olho roxo.
Bueno do Prado o trem foi invadido por um
grupo de cortadores de cana, cansados depois de um
dia de serviço, mas alegres e barulhentos.
De Bueno do Prado a Engenheiro Dolabela doze
quilômetros. O trem correndo e o camareiro viu o
vulto agachado em cima do engate entre dois
carros. Calças arriadas o Vaqueiro de Massaroca
ergueu-se desapontado:
- Eta seu moço!...Tava aliviando as tripas...
- Tem o WC senhor.
- Não sei fazê sentado...Só agachado.
Engenheiro Dolabela na plataforma quatro
cachorros presos com coleiras e correntes.
- Carrega sim... Vão pra Engenheiro Navarro.
92
Os cachorros carregados e embarcaram na
segunda classe os dois caçadores de tatu.Um deles
contou a um dos cortadores de cana:
- Tamos indo caçar tatu lá no Navarro...
- Tatu?...Cuidado com as cascavel...
De Engenheiro Dolabela até a estação Granjas
Reunidas apenas cinco quilômetros. A turma dos
cortadores de cana desceu, um deles falou a um dos
Caçadores de Dolabela:
- Avisa lá em Navarro que sábado tem baile
aqui nas Reunidas...
O trem rodou vinte quilômetros dentro da noite
morna no norte das Minas Gerais e chegou em
Engenheiro Navarro.
O Homem de Pau Ferro recorreu o trem e voltou
a o último carro contente e mostrando três dedos
disse ao Homem de Pau Seco:
- Seu minino...Um, dois, três...Três
coronés...Um no carro da frente, o outro no carro
do meio e mais um no ultimo carro...
O Homem de Pau Seco aproveitou que o garçom
estava no carro e já pediu mais cerveja. Tirou do
bolso uma folha de papel, um lápis e começou a
escrever um telegrama.
O trem entrou debaixo de uma forte chuva e os
camareiros avisando:
- Próxima estação é Bocaiuva...Bocaiuva...
O homem gordo comentou:
- Começou o tempo das chuvas...
93
- Uai, semana passada choveu demais da conta
lá em Janaúba...Chuvão que Jesus Cristo mandou...
- Sabe que eu gosto muito desse canto das
Minas Gerais...
- Uai, eu gosto mais de Minas onde não tem
minas...
Bocaiuva da maior festa religiosa de Minas
Gerais; Festa do Senhor do Bonfim.
Desembarcou mais passageiros, que embarcou.
O Engenheiro de Mafra em Santa Catarina
apertou a mão do Telegrafista de Iramaia, pegou
sua mala e desembarcou.
Zédizefa desceu e foi tomar um copo de caldo
de cana.
O Homem do Pau Seco entrou na sala dos
telegrafistas com o rascunho na mão pedindo:
- Por favor! Esse telegrama para a estação de
Juremal no município de Juazeiro da
Bahia...Compadre José mais chamado de Zé do Boi
Bumbá, aviso que Nézinho e Zédizefa tão indo no
trem...
No escritório da estação o agente solicitando:
- Movimento...É Bocaiuva pedindo licença para
o R5 avançar até Camilo Prates...
O trem saiu de Bocaiuva no momento que a chuva
estava parando.
Alguém comentou:
- Se Deus quiser a meia noite a gente já tá em
Montes Claros...Montes Claros a Princesa do Norte.
94
Zédizefa bateu no braço do coroné Nézinho:
- Eita...Ele falou na Princesa do Norte...O
senhô escutou?
- Oxe!...Se eu escuto as falas de todo o povo
que tá nesse trem eu fico com câimbra na orelha...
- A pois ele falou Princesa do Norte...
- E que doidera é essa?
- Mãe Taninha de Santo Amaro falou... Leve um
doce amarelo da Princesa do Norte...
- Eita...Você e seu candomblé...
- Tá...Eu não vou comprar...
- Compre...
Estação Camilo Prates.Mal o trem parou o
Cangaceiro Doido de Juacema levantou num upa e
correu para sair do trem. O Enfermeiro de
Barbacena ficou apavorado. O Pistoleiro de
Paulistana no Piauí e o jovem Fluminense do
Flamengo correram e seguraram-no. Precisaram da
ajuda de um camareiro e do guarda-chaves de Camilo
Prates pra levar ele de volta pra dentro do trem.
Estação Engenheiro Pires de Albuquerque, na
plataforma seis gaiolas grandes cheias de galinhas
para carregar a Montes Claros.
Na segunda classe embarcaram os seis
vendedores de galinhas, que no outro dia bem cedo
os amarrados de galinhas nos ombros e eles
gritando e vendendo galinha de porta em porta.
Estação Glaucilândia um grupo grande de
pessoas para embarcar. Um sujeito um pouco
envergonhado vestindo um terno muito amarrotado e
muito maior que ele, terno emprestado na ultima
95
hora. A moça sorridente, entre alegre e triste,
entre contente e preocupada. Um velho carrancudo e
uma velha encolhida, meia dúzia de irmãos da moça
e mais de uma dúzia de primos e primas. Embarcou
todo mundo no último carro e um primo mais
fofoqueiro contou:
- Fez mal pra minha prima... Tio obrigou a
casar... Casou hoje aqui em Glaucilândia na frente
do delegado e do juiz de paz...Minha prima é de
família tradicional...
Estação Antônio Olinto onde desembarcou os
recém casados e o resto da turma.
A plataforma de Antônio Olinto iluminada por
um lampião. De um ponto escuro um gaiato gritou:
- Cuidado Zé, ela vai te botá chifre...
O pai da moça puxou o revolver e deu um tiro
pro alto.
- Próxima estação é Montes Claros...Montes
Claros saída pela porta da frente.
Um trem encostando na movimentada plataforma
pra deixar mais de quarenta por cento da sua carga
humana.
Zédizefa não perdeu tempo e nem minuto
desembarcou e foi comprar um tablete de doce de
pequi;o doce amarelo da Princesa do Norte.
Montes Claros a troca de locomotiva e da
equipagem para levar o R5 nos últimos duzentos e
quarenta quilômetros da viagem.
Embarcou a Cafetina de Janaúba acompanhada de
cinco moças.
96
No trem correu a noticia que a linha já estava
desimpedida em Tocandira.
Embarcou um grupo de homens da confraria do
arroz com pequi, o líder contou ao coronel Quim
Quim o Querendão do Quem Quem:
- Nós tem o costume de reuni num sitio ai no
Canaci, ali nós canta música, ali nós faz
cavalgada e ali nós faz arroz com frango e pequi,
ali nós esquece um pouco da cidade...
No escritório da estação de Montes Claros o
telegrafista de plantão solicitou:
- Movimento... Montes Claros solicita licença
para o R5 até Canaci...Canaci, é Montes Claros...
O trem apitou e começou a sair da Princesa do
Norte.
Coronel Quim Quim convidou a Cafetina de
Janauba para irem tomar uma cerveja no carro
restaurante. Depois de acomodados ele falou:
- Uai, até que foi sorte de eu encontrar
você...Você tá levando umas bichinhas novas pro
seu rebanho?
- É coronel...Agora já vem o inverno das
chuvas...Já começa aparecer às comitivas de
vaqueiros...
- Que eu to querendo... Num vê que no arraial
o padre quer uma quermesse...Dinheiro pra pintar a
igreja, comprar mais bancos e cosas e losas... Cas
beatas e a rezadeiras ele arruma uns
troquinho...Eu ajudo, é que eu faço barraca pra
contentá os machos...Vô fazer um leilão; um barril
de pinga, um leitão assado, uma mula encilhada e
uma rapariga...E é bem nesse ponto que to contando
97
com teu conhecimento...Uma cabocla bonita,
cheirosa e enfeitada...
Na plataforma de Canaci na fraca luz de um
lampião os colegas da confraria do arroz com
pequi, dois tocando viola e cantando esperando o
resto dos companheiros.
Mal o trem parou e os membros da confraria que
vinham no trem desceram transbordando alegria.
De Canaci a Uratinga quinze quilômetros.
Uratinga o grande lampião da plataforma acesso
e mais cinco lampiões de alça que do grupo de
pessoas que esperava o trem. O homem velho,
inquieto que ia de ponta a ponta da plataforma,
esse era o avô. A avó sentada no banco, quietinha,
mas em pensamento rezando e pedindo para que Jesus
protegesse aquele trem. O resto do grupo eram tios
e primos. A o longe o apito da locomotiva. A
batida cadenciada dos pistões. A luz do potente
farol da locomotiva que galopava fagueira naqueles
terrenos onde se misturava cerrado e caatinga nos
mundos do norte das Minas Gerais. Agitaram os
lampiões, tremeram os corações. O trem chegando a
Uratinga, olhos curiosos varrem as janelas e lá do
último carro um grito:
- Vôôôôô!...
De Uratinga a Engenheiro Zander vinte e cinco
quilômetros.
Estação de Engenheiro Zander, o cheiro forte
de esterco misturado com a urina de gado. Na
segunda linha vagões carregados com gado e um
vagão com mulas.
Na segunda classe embarcaram quatorze
boiadeiros, dois deles com os berrantes a meia
98
espalda. Coronel Quim Quim, deslizou por dentro do
trem, afinal estava no mundo dele, pois estava
atento a tudo, foi ao encontro do capataz dos
boiadeiros:
-Uai, esse gado no trem?
- Gado magro...Não vai pros frigoríficos do
sul do estado...Vai prum pasto que já tá verdinho
lá em Espinosa...
De Engenheiro Zander a Orion vinte
quilômetros.
Estação Orion, embarcou com sua maleta de
couro a Parteira de Orion e antes do trem
continuar o coronel Quim Quim já estava ao lado
dela:
-Uai, e vai pra onde?
- Pois conto pro senhô que vou pro Quem Quem,
que a filha seu Tonho tá de bucho pronto pra dá a
cria...
-Uai!...E a parteira do Quem Quem?
- Pois conto pro senhô que ela hoje passou
aqui no trem indo pra Montes Claros, causo diqui à
filha dela foi picada de cobra...
De Orion a Caçarema vinte e um quilômetros.
Em Caçarema embarcou um sujeito contando um
causo triste; Um morador do lugar armou uma
armadilha pra pegar uma onça e botou como isca o
próprio filho e a onça matou a criança.
- Próxima estação é Quem Quem...A chegar em
Quem Quem.
Coronel Quim Quim foi ao carro de segunda
classe apertar a mão do Ervateiro de Lajedo Alto:
99
- Uai, palavra dada seu moço?
- Sim senhô! Palavra dada e confirmada...
Estação Quem Quem. Corronel Quim Quim desceu:
- Coisa mais boa é botá o pé no chão da gente.
O agente da estação perguntou:
- E ai? Viu o mar lá no Rio de Janeiro?
- Uai! Uma água besta que nem os bichos
bebe...
Estação Engenheiro Rochet. Um galo cantou.
Embarcou um grupo de homens; trabalhadores nas
lavouras de algodão.
A direita do trem a barra do dia e os
camareiros avisando:
- A chegar em Janauba...Janauba...
Janaúba dos gorotubanos.
A moça vendendo café pingado e Zédizefa não
perdeu tempo e tomou um.
O sujeito de terno preto, chapéu desabado em
cima dos olhos, entrou no ultimo carro e convidou
o Pistoleiro de Paulistana no Piauí:
- Aguardo você no carro restaurante...
O Pistoleiro esperou ele se afastar tirou a
mala do porta bagagens e disfarçado pegou o
revolver que escondeu dentro do casaco. Chegou no
restaurante perguntando:
- Como você sabia que eu tava nesse trem?
- Telegrama...Tenho um serviço pra você...
100
- Não quero conversa com os Clãs
Gorotubanos...
- Calma moço!...É serviço em Monte Azul...Em
Monte Azul a política ta pegando fogo...Tem um
Boca Branca abrindo muito a boca e os Boca Preta
querem fechar a boca do Boca Branca...
- Posso não...Tenho um serviço pra fazer nessa
viagem...
De Janaúba a Tocandira vinte e cinco
quilômetros. No restaurante os garçons
providenciando o café que quando o trem parasse em
Tocandira era o momento de vender o café já que os
biscoitos de araruta eram vendidos nas janelas do
trem.
Tocandira e dezenas de vendedores; meninos,
meninas, mulheres gritando e vendendo os biscoitos
de araruta.
Turco Bidala desceu pra acertar negócio de
compra de biscoitos:
- Bidala qué qui manda dez caixa biscoito pro
Belo Horizonte...
De Tocandira a Pai Pedro dezenove quilômetros.
O Enfermeiro de Barbacena disse para o
Telegrafista de Iramaia:
- Com a graça de Deus a gente consegue pegar o
expresso pra Salvador...
- Báh! Com tempo de folga...Dá pra tomar um
banho e ainda dá umas voltas em Monte Azul.
- Se não pega o Expresso, ai só os
paradores...
101
- Sim...Hoje é sexta...O Parador sai
domingo...
O Padre de Petrolina escutou a conversa e
disse:
- Eu tenho um segredo, mas só conto lá na
Bahia...
Coroné Nézinho sacudiu a mão:
- Oxe! Isso é padre pecador...
E o trem parou na estação de Pai Pedro. Muito
movimento na vila que era o dia da famosa Feira de
Pai Pedro.
Nervoso e agitado o Turco Bidala descendo as
malas, pedindo ajuda aos guris e já fazendo
propaganda:
- Fala no fera que Turco Bidala tá no Pai
Pedro...Tudo barato.
Na plataforma o bagageiro e o agente as voltas
com carga e descarga. Descarregam engradados de
cerveja, engradados de refrigerante. Carregam
sacos de feijão andu, caixas com queijo, balaios
com pequi.
De Pai Pedro ao Catuti vinte e dois
quilômetros.
Na estação do Catuti a comissão de espera. A
carroça com dois burros. O fazendeiro a mulher
dele, os filhos as filhas, empregados, alguns
vizinhos. Até a turma de conserveiros da linha,
encostou o trole na segunda linha e ficou na
espera.
O bagageiro e o guarda-chaves seguraram com
muito cuidado a caixa onde estava escrito: Estação
102
Catuti (EFCB). Na frente o fazendeiro afastando os
curiosos. Alguém comentou:
- Uai, com um radio desse dá pra escutar a
Rádio Nacional do Rio.
O trem deixou o radio em Catuti e os
camareiros começaram a avisar:
- Próxima é Monte Azul...Monte Azul confiram
suas bagagens...Monte Azul, passageiros que vão
prosseguir pela Lesta confirmem os horários na
estação...
- Ei moço...É hoje que sai o expresso pra
Salvador?
- Sim...Hoje é sexta-feira...
A locomotiva apitando e batendo o sino ,
pedindo permissão para chegar e saudando a cidade
de Monte Azul. Dentro do trem os passageiros se
movimentando. Uma etapa estava vencida.
No quadro de horários da estação; trens da
Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro para
Salvador: NS 2- sexta-feira- 11:55; RS 6- domingo-
13:40.
- Cuidado...Esse R6 é parador, sai daqui e
dorme em Caculé, muita gente dorme dentro do trem,
depois ele viaja até Iaçu e lá ele dorme e de novo
o povo dorme no trem...Fica sujo, fedorento...
Três dias e duas noites daqui a Salvador...
Coroné Nézinho batendo bengala, logo atrás o
Zédizefa com uma trouxa na cabeça e segurando duas
malas pesadas, encontraram uma pensão junto ao
Mercado:
- Bom dia meu senhor...Tamos querendo um banho
e depois um almoço...Só tamos de passagem...
103
- Bom senhor...Temos o banho e comida boa...Tá
viajando pro Norte?
- Vamos pros mundos da Bahia.
Banho tomado, tirada as poeiras do caminho,
coroné combinou com o dono da pensão:
- Olhe! Vamos largar nossa bagagem aqui...Que
a gente vai dá uma espiada no Mercado...Depois a
gente já vem pra almoçar.
O dono da pensão concordou esperou os dois se
afastarem e comentou com o Vaqueiro de Massaroca,
que estava sentado num canto tomando uma
pinguinha:
- Meus olhos não engana eu...Esse homem é
coronel...
O Vaqueiro de Massaroca contou:
- Coronel de posses e de mando político...Ele
é do mesmo meu município...A gente é do chão do
Juazeiro da Bahia...
O dono da pensão apressou a chamar um moleque
e enquanto escrevia um bilhete ordenou:
- Pega a mula e bem ligeiro que tu vai levar
esse bilhete pro coronel Zebedeu lá nas
Mamonas...E dê laço nessa mula que daqui lá é
vinte e cinco quilômetros...Você tem de chegá lá
antes do trem...
Coroné Nézinho e Zédizefa sentados pro
almoço.Na mesa arroz, farofa, leitão assado, couve
refogada e feijão. O feijão de Monte Azul, cujo
segredo era ser temperado com pequi.Sobre mesa
doce de quiabo. O dono da pensão chamou um moleque
e mostrou:
104
- Olhe bem pra aquele coronel ali...Você vai
no trem e mostre esse coronel ao coronel Zebedeu
que vai subir no trem em Dourados.
O dono da pensão foi à mesa do coroné e
perguntou:
- Tão bem servidos?
- Muito bom o feijão de Monte Azul...Diga-
me...E a política aqui em Monte Azul?
O dono da pensão olhou para todos os lados e
falou:
- Aqui é Boca Preta contra Boca Branca...E a
boca tá braba...E o bom é ficar de boca fechada...
- A pois, lá na Bahia tem o município de Campo
Formoso que também é isso de Boca Preta contra
Boca Branca...
Trem da Leste encostado em Monte Azul
carregado e pronto para iniciar a viagem.
Coroné e Zédizefa conseguiram o banco do
ultimo carro ao lado direito do trem, a mesma
posição que viajaram no outro trem. Nesse ultimo
carro embarcaram o Padre de Petrolina, o
Pistoleiro de Paulistana no Piauí, o Telegrafista
de Iramaia, o Enfermeiro de Barbacena com o
Cangaceiro Doido de Juacema, o Homem de Pau Seco,
o Homem de Pau Lavrado, o Homem de Pau Ferro, o
Fluminense do Flamengo, o Gigolô de Poá, o
Soteropolitano Afetado, a Formosa de Campo
Formoso, a Jocosa de Jacobina, o Farinheiro de
Quicé o Alambiqueiro de Guararema e a Mãe Taninha
de Santo Amaro que falou:
105
- Não gosto de viajar no ultimo carro, mas
recebi uma mensagem do meu Orixá, que aqui eu vou
receber uma incumbência...
No primeiro carro de segunda classe embarcou o
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança no
Mato Grosso, o Cego de São Cristovão no Sergipe, o
Sergipano de São José da Mata, o Sergipano de
Malhada dos Bois, o Ervateiro de Lajedo Alto, a
Pimenteira de Jequi e o Vaqueiro de Massaroca.
No escritório da estação o agente solicitando:
- Controle de movimento...Monte Azul quer
licença para que o NS 2 avance até Dourados...
Às onze horas e cinqüenta e cinco minutos o
NS2 saiu apitando e batendo o sino de Monte Azul
para atravessar os restantes quarenta quilômetros
dentro de Minas Gerais e entrar na Bahia. Um carro
de bagagens, três carros de segunda classe e
quatro de primeira classe, não levava carro
restaurante mas um dos carros de primeira era o
bar; um compartimento que ocupava um terço do
carro onde vendiam cerveja, refrigerante, café,
sanduiche,bife com batata frita. As estradas de
ferro espalharam pelo Brasil o papel de se limpar,
o sanduiche, o bife com batata frita e o
eucalipto.
Entre os trezentos e cinqüenta passageiros do
trem ia o moleque de recados do dono da pensão em
Monte Azul. Ia no ultimo carro cuidando o coroné.
Coroné Nézinho perguntou ao Zédizefa:
- Naquela fala de candomblé de Mãe Taninha,
tinha algum falatório de Monte Azul?
- Tinha não... Não fique com medo coroné...
106
- Oxente! E essa palavra, medo, não tem no meu
vocabulário geométrico...
- Desculpe...
- Olhe Zédizefa...Esse moleque que tá indo
aí...É pau mandado daquele dono da pensão...Fique
de olho...
O trem parou em Dourados, na plataforma muitos
balaios cheios de inhame para serem carregados até
Espinosa.
Com uma tapa olho,coronel Zébedeu subiu no
primeiro carro e abrindo portas com um safanão e
fechando com uma batida, Botinas rangedeiras
batendo no assoalho, atravessou o trem. No ultimo
carro o moleque de recados apontou o coroné
Nézinho e pulou do trem.
Mãe Taninha de Santo Amaro fechou os olhos e
fez uma prece. O Pistoleiro de Paulistana no
Piauí, segurou o revolver dentro do casaco.
Coronel Zébedeu parou diante do coroné Nézinho
perguntando:
- To falando com o senhor coronel Nézinho?
Coroné Nézinho levantou com calma e:
- Pois pergunto por que a pergunta?
- Uai! Respondo com a resposta...Não vê que eu
sou Zébedeu que de minha parte sou preocupado com
o meu povo de minha vila que tem o nome de
Mamonas...E estou precisando de uma ajuda do
senhor, que eu sei é um homem de muito prestigio
no Estado da Bahia...
-Oxe! Nem tanto...Mas no que eu puder...
107
- A complicação é que a coisa é a
seguinte...Essa estação tá no povoado de Dourados,
mas logo ali tá a progressiva, de progressos, vila
de Mamonas, que na verdade é que faz todo o
movimento da estação...E nós tá querendo que o
nome da estação passe a ser Mamonas...
- Oxe! Isto ainda tá em chão de Minas
Gerais...
- Uai! Os diretores da diretoria da Leste é na
Bahia...
Às treze horas e trinta e quatro minutos o
trem chegou em Espinosa. Coronel Zébedeu já amigo
do coroné, se despediu e disse:
- Volto de pés até Mamonas...Vinte
quilômetros...O povo merece o sacrifício...
Coroné Nézinho completou:
- Ano que vem tem eleição...
O trem saiu de Espinosa batendo o sino e se
despedindo das Minas Gerais.
O trem mal parou na estação de Iobi já na
Bahia e o coroné Nézinho não perdeu tempo e foi
perguntar ao Padre de Petrolina:
- Oxente! Seu padre já tá na Bahia...Qual o
seu segredo?
Padre de Petrolina riu e respondeu falando
alto para os outros passageiros do carro escutar:
- O segredo é... Quando esse trem chegar em
Iaçú vai ter uma noticia ruim...
Quatorze horas o NS2 saiu de Iobi, e quatorze
e cinqüenta chegou em Urandi.
108
Em Urundi muito movimento na estação, gritos
de viva, foguetes, bandeiras, discursos e
aplausos.
O movimento despertou curiosidade dos
passageiros do trem. O Cego de São Cristovão no
Sergipe até desceu pra assistir melhor
Embarcou no trem sua excelência
excelentíssima o nobre deputado JJ. Da plataforma
do carro fez a saudação:
- Repetitivamente eu repito que só um povo
nesse grande estado da Bahia vive no meu coração,
somente só o povo de Urundi...
Bateu o sino da estação anunciando a partida
do trem e o Cego de São Cristovão, afobado,
embarcou no ultimo carro e avisou ao camareiro:
- Vou nesse carro até a próxima estação, e
quando o trem parar eu volto pro meu carro...
O trem saiu de Urundi vencendo um trecho cheio
de curvas na Serra da Onça ou Saco da Onça.
Deputado JJ, saiu por dentro do trem saudando
os passageiros e quando entrou no último carro
abriu os braços e politicamente saudou:
- Como este mundo é pequeno...Com a maior
satisfação do mundo eu encontro nesse trem o
grande líder do sertão do São Francisco, coroné
Nézinho...
Coroné levantou e o grande abraço. Zédizefa
deu seu lugar para o nobre edil.
Dezesseis horas o trem se arrastando nas
curvas do Saco da Onça parou na estação de
Engenheiro Omar. A batida do sino da estação ecoou
na serra.
109
Parada perto da estação uma grande tropa de
mulas, com a mula rainha batendo o sino. Todas as
mulas com as bruacas carregadas, o tropeiro
terminando de organizar a tropa para seguir viagem
levando as mercadorias que apanhou na estação.
Os camareiros avisando:
- Próxima estação é Licínio de
Almeida...Licínio meia hora pra janta...
O trem chegando em Licínio de Almeida apitando
e batendo o sino. Plataforma cheia de
correligionários esperando o deputado JJ que da
plataforma do carro saudou o povo:
- - Repetitivamente eu repito que só um povo
nesse grande estado da Bahia vive no meu coração,
somente só o povo de Licínio de Almeida...
Foguetes, gritos de vivas. O deputado e seus
correligionários se afastaram da estação. Sua
excelência andava visitando as bases.
Moleques e mulheres vendendo milho assado,bolo
de fubá e os donos das barracas oferecendo as
comidas.
Na barraca, coberta com palhas de palmeiras,
as mesas rústicas, no canto o fogão a carvão,
coroné e Zédizefa sentaram pra comer uma farofa de
bode e o feijão de Licínio de Almeida: feijão de
corda temperado com coentro verde, cebola e
tomate.
Licínio de Almeida, troca de locomotiva e
equipagem. Maquinista o seu Laudelino que nas
horas vagas se dedicava ao serviço de alto
falantes da vila. Foguista o seu Ambrósio que
também era benzedor. Chefe de trem seu Juca
110
Festeiro, um entusiasmado organizador das festas
de São João em Licinio.
Vamos embora que de Licínio até Salvador são
setecentos e setenta quilômetros.
Cinco horas da tarde e o trem se despediu de
Licínio de Almeida apitando e batendo o sino.
Parada rápida em Palmeiras onde na segunda
classe subiram as duas Quengas Pobres de Palmeiras
que iam fazer a vida em Caculé.
O trem entrava na noite baiana.
- Próxima estação é Caculé...Caculé...
Dez minutos para as sete horas da noite o trem
encostou em Caculé. A estação numa margem do Rio
do Antonio e a vila na outra margem.Perto da
estação os pontinhos luminosos dos fogareiros a
carvão onde mulheres cozinhavam o milho verde. Os
vendedores de milho cercaram o trem.
Zédizefa debruçou na janela e comprou foi meia
dúzia de espigas de milho. E coroné:
-Oxe! Que bucho tem esse bicho...
Na segunda classe embarcou um grupo grande de
pessoas, tanto os homens como as mulheres,
vestidos de branco, pés descalços. Cinco tambores.
Integrantes de um grupo de umbanda.
Sete e quarenta da noite o trem encostou
apitando em Rio do Antônio. Desembarcou o Grupo de
Umbandistas de Caculé.
Embarcou, vestida de preto, mangas compridas,
na cabeça o lenço preto; A Beata de Rio do Antônio
reclamando:
111
- Agora todas as sextas-feiras esse povo vem
daí do Caculé e junta com um povo daqui e vão pra
beira do rio fazer batuque... Depois botam
feitiços nas encruzilhadas...
Oito horas e trinta minutos da noite o trem
encostou na plataforma de Malhada de Pedras. Na
plataforma gente alegre, a maioria jovens. Gaita,
violão e pandeiro. Embarcaram na segunda classe
iam para um forró em Catiboaba.
A Beata de Rio do Antônio já resmungou:
- É tudo pecadores... Povo que só pensa em
festa...Nem tem pensamento no senhor Jesus...
Nove e meia da noite, muitos lampiões na
estação de Catiboaba. O povo da vila esperando os
visitantes que iam participar do forró.
Dentro do trem alguém comentou:
- A vila de Catiboaba cresceu por causa da
Mineradora...Ai tem uma mina de magnetita...
O trem correndo na noite quente do sertão do
Sul da Bahia. Coroné Nézinho bateu no ombro do
Zédizefa:
- Diga...Naquele converse de Mãe Taninha de
Santo Amaro, não falava nada de Iaçu?
- Não sinhô... Causa de quê?
- Oxe! Esse Padre de Petrolina falou que lá no
Iaçu vai dá uma noticia ruim...
Os camareiros avisando:
- Primeira estação; é Brumado...Em Brumado a
saída pela porta da frente...
112
O Alambiqueiro de Guararema levantou do banco
contente, coroné Nézinho falou:
- Graças a Deus que o moço tá chegando...Tá
vindo pra levar um alambique?
- Verdade...Eu tenho uns primos que mora por
aqui...
Plataforma cheia de gente.
Para carregar no vagão de bagagens dois
caixões de defunto.
Uma mulher vestida de preto chorando e rogando
pragas embarcou na segunda classe.
O seu delegado acompanhado de um cabo e dois
soldados da Policia Militar da Bahia embarcaram.
Dentro do trem correu a noticia: uma briga no
povoado de Umburanas...Coisa de jogo de
dados...Morreu dois e tem outros cortados na
peixeira...
Doutor Médico de Brumado, anel de pedra
grande, óculos de aros de ouro embarcou na
primeira classe.
Onze da noite o trem chegou na estação
Umburanas. Logo o seu delegado e os policiais
foram cercados por gente que carregava lampiões.
Enquanto isso um clandestino subiu na parte de
trás da locomotiva.O Cego de São Cristovão no
Sergipe estava debruçado na janela e viu.
O bagageiro descarregou os dois caixões.
O Agente de Umburanas contou para o chefe de
trem:
- Jogo de dados...Jogo do bozó...Esse sujeito
dos dados ele anda de estação em estação armando
113
jogo...Os dados viciados...Matou dois, um é daqui
de Umburanas o outro é de Lapinha...
O trem saiu de Umburanas.
O garçom entrou no último carro e junto dele o
cheiro de fritura. Um prato com bife, ovo frito,
batatas fritas e arroz para o Padre de Petrolina.
Meia noite o trem apitou chegando na estação
Ouriveis.
No ultimo carro embarcou o Monge Doido de
Ouriveis; vestido com uma batina branca muito
suja, barbas compridas, cabelos muito
grande,pendurada no pescoço uma cruz, regalou os
olhos e gritou:
- Cuidado! O demo tá nesse trem...Virão muitos
falsos pastores pra pegar o dinheiro do povo...Tem
que acabar com os coronéis...
Coroné Nézinho ficou alerta e bateu no braço
de Zédizefa.
O Cangaceiro Doido de Juacema acordou com os
gritos do Monge e levantou do banco de um pulo e
espumando de brabo quis agredir o monge:
- Cale sua boca seu filho da puta...Monge
falso...O verdadeiro é Padre Cícero...Tu vai
morrer diabo...
O Enfermeiro de Barbacena tentando conter o
Doido, um camareiro apressou tirar o Monge de
dentro do trem. O Pistoleiro de Paulistana ajudou
o Enfermeiro a segurar o Cangaceiro. O Doido se
debatia, espumava pelos cantos da boca.
O Padre de Petrolina protegendo o prato com o
bife.
114
Zédizefa ajudou o Pistoleiro segurar o
Cangaceiro enquanto o Enfermeiro foi ao WC botar
um pouco de água num copo e preparar uma dose de
calmante.
O chefe de trem pediu ajuda ao Doutor Médico
de Brumado.
O Cangaceiro deu tapa no copo com o calmante e
fez força para se soltar.
O médico olhava para o doente e olhava para o
enfermeiro que olhava para médico e olhava para o
doente.
Os passageiros do ultimo carro agitados, o
Cangaceiro falando besteiras, o Padre de Petrolina
comendo batatas fritas. Mãe Taninha de Santo
Amaro, saiu de seu lugar, chegou junto ao
Cangaceiro ,estendeu a mão direita espalmada acima
da cabeça dele, fechou os olhos fez uma prece.
Cangaceiro respirou fundo, sentou calmo e fechou
os olhos.
O trem saiu de Ouriveis e o Monge Doido
debaixo do lampião da plataforma gritando:
- Vão pecadores...Vão pros quintos do
inferno...
Zero hora e trinta minutos o trem apitou na
estação de Tanhaçu.
Na plataforma de Tanhaçu o coronel Zé Severino
do Tanhaçu acompanhado de dois guarda costas. Dois
brutamontes, altos, fortes, gibão de couro, chapéu
de cangaceiro; um com o chapéu de aba virada
enfeitado com duas estrelas douradas, esse o
Tenente, o outro com o chapéu de aba virada
enfeitada com três estelas douradas, esse o
Capitão.
115
Antes de embarcar o coronel Zé Severino de
Tanhaçu passou as ordens:
- Capitão, vosmece vai na primeira
classe...Tenente vosmece vai na segunda classe...
Eu vou no primeiro carro do trem...
Coroné Zé Severino de Tanhaçu encontrou lugar
ao lado do Coronel Ponciano pantaneiro de Porto
Esperança e pediu a devida licença:
- Boa noite...O senhor permite que me assente
nessa ponta da cadeira?
- Boa noite senhor...Pode sentar... E qual o
nome de vossa estação?
- Aqui é Tanhaçu...Estou indo até o
Iaçu...Causa de política...Não sabe que um
deputado que é barranqueiro; das barrancas do São
Francisco, anda aqui na região...É deputado JJ...
E aqui nós já tem o nosso deputado que é
diamantino; da Chapada Diamantina...Nosso deputa
do Toninho...Nós vamos reunir no Iaçu pra ter uma
decisão decidida...
- Ainda lhe conto, às vezes tem que usar o
“artigo 38”...
- Não sabe que aqui na Bahia já tamos usando o
“artigo 45”... Pistola de guerra, é tiro dado e
jacu deitado...
- Ainda pergunto, tá muito caro um deputado
aqui na Bahia?
- Não sabe que não tá não... Caro aqui na
Bahia é oficial da Policia Militar...Aqui na nossa
região andou um finado capitão que tava abusando
de moça solteira, que tava abusando de mulher
casada, que até tava acobertando ladrão de
116
bode...Pra fazer o serviço a gente conseguiu um
cabra lá das Alagoas e cobrou um mundo de
dinheiro...
- Ainda lá no Mato Grosso o que tá caro é
advogado...Lá em Porto Esperança desceu do Trem do
Pantanal dois advogados com conversas de
integração de posse, terras da união, avaliação de
terras e outras conversas... Seu doutor pegue o
Trem do Pantanal e volte pra Campo Grande que é de
onde o senhor veio...Não, que nós estamos montados
na lei...Apearam eles da montaria e pra não deixar
prova do caso, deram um talhos em cada um e
jogaram no igarapé pras piranhas...
O Cego de São Cristovão coçou o queixo e o
coronel Ponciano Pantaneiro coçou a testa e falou
para o coronel Zé Severino de Tanhaçu:
- Ainda nesse trem o dito deputado JJ andou um
pedacinho de chão...E encontrou nesse trem, lá no
último carro, um coronel lá das barrancas do São
Francisco...
Coronel Zé Severino regalou os olhos:
- Coronel correligionário de JJ, barranqueiro,
e nesse trem... Não sabe, quero sua licença, vou
dá uma orientação pros meus meninos; Capitão e
Tenente.
Uma hora e quarenta e três minutos e o trem
encostou na plataforma da estação Francisco Souza.
Em Francisco Souza embarcou a mulata gorda
acompanhada do jovem desfigurado. Coronel Zé
Severino foi tirar uma prosa com ela, afinal
Francisco Souza era um povoado de suas influencias
políticas:
117
- Não sabe que minha comadre Maria vai de
viaje?
- Boas noites seu coronel Severino...Então to
levando esse meu minino pra Iramaia...Então que
ele tá tendo uma dor, ali nele, por debaixo da
costela...Já se fez tudo tipo de chá...Então já se
fez todo tipo de benzedura...Melhorou não...Agora
ai na Iramaia tem um curandeiro, que diz veio do
sertão do Ceará...Então tão dizendo que o
curandeiro até faz milagre...
- Não sabe, e ai em Francisco Souza, como anda
o povoado?
- Então o seu coronel não sabe... A Madalena
botou chifres no marido, coitado do Tibério...Foi
com um guarda-freio da Leste...
- Não sabe que Madalena já tá perto dos
cinqüenta...
- Então, seu coronel o último fogo é o pior...
- Não sabe, que é verdade... E o resto?
- Então, roubaram um bode e cinco cabritas de
seu Inocêncio...
- Será gente daí de Francisco?
- Não sabe... Tão desconfiando de um povo ai
de Contendas...
Duas horas e vinte minutos o trem chegou a
Contendas. Em contendas o pai e a mãe entregaram
aos cuidados do chefe de trem os quarto meninos de
idades entre nove e quatorze anos que iam para
Cachoeira passar as férias na casa da avó. Um
camareiro levou os quatro meninos e acomodou no
ultimo carro.
118
Três horas e quinze minutos o trem apitou em
Sincorá.
Chapéu de vaqueiro, gibão de couro, calças
regaçadas até o joelho, calçando alpercatas o
coronel Pantaleão de Sincorá embarcou na segunda
classe e no corredor encontrou o coronel Zé
Severino de Tanhaçu:
- Bom dia compadre Severino...
- Não sabe que também um dia bom pro
senhor...E vamos pro Iaçu?
- É...Recebi o telegrama, que vai ter essa tal
reunião...
- Não sabe...Nesse trem tá ai dentro um
coronel que o cujo é gente do JJ...Já mandei
assunta...Diz que vem de viagem viajada...
- É...Viaje viajada...Eu sou é Pantaleão de
Sincorá, eu tenho dificuldades de acreditá...
Quatro horas e vinte oito minutos o trem
encostou na plataforma de Jequi. Na luz do lampião
da plataforma o grupo de crianças; os oito filhos
da Pimenteira de Jequi.Escuta a alegria:
- Manhiiiiiiiiiiiiinha!
O trem saiu de Jequi e o coronel Pantaleão de
Sincorá sentado ao lado do Cego de São Cristovão
ia contando suas mentiras:
- A bandida da onça entrou na encerra das
cabritas e eu dei de mão no punhal e pulei dentro
da encerra, a onça gateou, agachou, armou o pulo e
pulou.Esperei ela na ponta do punhal, cravei
direto no coração, ela só deu um berro e caiu
morta...
119
- Coronel; e onça berra?
- É... Essa berrou.
Pintando a barra de um novo dia. Cinco horas o
trem parou em Lapinha. Quatro sujeitos apressaram
em subir no trem. Um ficou parado na porta do
primeiro carro, dois ficaram do lado de fora do
trem um de cada lado e o outro entrou pela ultima
porta e atravessou o trem buscando alguém, chegou
no primeiro carro e disse ao companheiro:
- Não tá não.
O Cego de São Cristovão chamou um deles e
perguntou:
- O moço tá buscando quem?
- Um safado matou um tio meu, hoje, lá em
Umburanas... Caso de um jogo de bozó...A gente
pensou que ele tava nesse trem...
- Vou dizer pro moço...Sentado atrás da
locomotiva tem um clandestino que subiu lá na tal
Umburanas.
Os quatro sujeitos não perderam tempo,
correram dois de cada lado do trem até a
locomotiva. No amanhecer de Lapinha, um grito, um
tiro, a batida do sino da estação, outro grito, o
apito da locomotiva, mais um tiro.
- Próxima estação é Iramaia...Iramaia para
vinte minutos pro café...Não vão perder o horário,
olha quem perder esse trem, depois só na segunda
feira às cinco da tarde, dorme em Iaçu e vai
chegar terça de noite em Salvador...
O Telegrafista de Iramaia respirou aliviado,
estava chegando em casa pra ver a esposa e os
filhos...Uma semana viajando...Santiago do
120
Boqueirão e Vinte Pinheiros, lugares de sua
infância e juventude, ficaram lá muito longe, lá
nos campos do sul.
Cinco e meia o trem chegou na estação de
Iramaia onde já pronto para iniciar viagem rumo
sul o trem RS3.
O RS3 com dez vagões apinhados de gente, trem
superlotado a grande maioria retirantes fugindo da
seca.
A notícia ruim; não está chovendo no sertão.
Coroné Nézinho e Zédizefa apressaram até uma
das barracas que vendiam comida, onde o Padre de
Petrolina já estava atracado num prato de feijão.
O feijão de Iramaia, feijão de corda verde
cozinhado com macaxera e carne de sol.
Coroné e Zédizefa esqueceram os medos da
viagem e se regalaram com um café preto
acompanhado de cuscuz e ovo frito. O coroné viu a
fila grande de pessoas diante de uma casa e
perguntou ao dono da barraca que vendia comida:
- Oxe!...E essa fila de povo?
- É povo que vem consultar com o
curandeiro...Tá vindo gente até de Salvadô...
- O povo tá melhorando?
- Não sei se o povo tá melhorando, mas o
comercio tá melhorando.
Iramaia troca de locomotiva e equipagem.
Maquinista o seu Manoel, homem quieto, calado,
benzedor famoso em Iramaia. Foguista o seu Zé das
Pipas, esse nas horas vagas fazia pipas pra vender
pra meninada. Chefe de trem o seu Capitão, tinha
esse apelido porque quando menino muito cedo ficou
121
sem pai e sem mãe e acabou se criando solto nas
praias de Salvador, metido nos chamados grupos de
capitães de areia, a sorte dele foi o velho padre
da Igreja do Bonfim que recolhia os meninos de rua
e mantinha um abrigo onde os orientava e obrigava
a estudar.
Dentro do trem tomando café com sanduiches a
Jocosa de Jacobina perguntou para a Formosa de
Campo Formoso:
- E quando você vai enfrentar o coroné
Nézinho?
- Nas instruções que eu recebi, é em Iaçu...
O Chefe Político de Iramaia do partido do
deputado JJ recebeu os coronéis; Zé Severino de
Tanhaçu e Pantaleão de Sincorá e os três foram
para uma barraca afastada tomar café com cuscuz e
ovo frito e discutir a situação. Coronel Pantaleão
de Sincorá deu a idéia:
- É... A gente pega esse coroné barranqueiro,
que tá no trem, pra dá um exemplo...Que esse
coroné anda aqui é fazendo pirraça...Barranqueiro
anda é de vapor pelo São Francisco...
O Chefe Político de Iramaia interrompeu:
-Gente...Temos que ser ponderados...
Coronel Pantaleão de Sincorá não gostou de ser
interrompido e nem contrariado, sacudiu os braços:
- É...Eu vou tomar uma pinga com umburana de
cheiro...E continuo com a idéia de fazer um
acontecimento com esse tal coroné...
Coronel Severino de Tanhaçu, concordou:
122
- Não sabe...Eu também quero pinga...E nós
vamos continuar com nossa idéia e o nosso plano...
O Chefe Político de Iramaia não perdeu foi
tempo e correu a sala do telegrafo da estação,
redigiu um telegrama e pediu ao telegrafista:
- Faça o favor transmita esse telegrama com
dois “U”, urgente urgentíssimo, para o deputado
Toninho...
Seis horas e dez minutos o trem saiu de
Iramaia, apitando e batendo o sino.
Seis horas e trinta minutos estação Juraci.
Embarcou a subdelegada Donana de Queimadinhas, um
soldado da Policia Militar e um casal jovem, a
moça muito envergonhada. Coronel Severino de
Tanhaçu foi assuntar com a subdelegada:
- Donana,muitos bons dias...Não sabe...Anda de
viagem?
- Bom dia seu coronel...Ando de serviço...O
moço aí foi lá em Queimadinhas e roubou a
moça...Estou levando pra casar de papel
assinado...
O trem saindo de Juraci, Zédizefa debruçado na
janela vendo um aguadeiro tocando uma tropa de
jegues carregando as latas com água. Coroné
perguntou:
- Oxe! Zédizefa, naquela fala candomblezeira
de dona senhora de Santo Amaro, tem algum
acontecimento em Iaçu?
- Tem não senhô...O que tá faltando é: O
perigo é o homem do rabo alegre...O passarinho no
pau, aceite disfarce e dê pro cachorro...Conte ao
123
homem dos sete “P”...No fim do caminho bote em meu
nome u...
- Chega!...Eu to é cismado com esse tal Iaçu.
Na segunda classe o coronel Pantaleão de
Sincorá contando para o coronel Ponciano
Pantaneiro:
- É... Daí que a danada da onça deu um
pulo...Eu agachei e cacei ela da cola...É...Que na
hora eu tive foi força e rebolei ela e bati com a
cabeça dela no tronco do pé de umbu...É...E lá no
seu lugar, esse onde o senhor mora, tem muita
onça?
Coronel Ponciano Pantaneiro sorveu um gole de
tererê, sorriu e contou:
- Tem alguma, mas eu até não mato...Eu gosto
muito das bichinhas...Quando eu era menino meu pai
deu uma pra mim cuidar...
- I é? Seu bichinho de estimação era uma onça?
- Uma, não, duas...
Sete horas e quinze minutos o trem apitou na
estação de Machado Portela.
Parado na plataforma o mulato alto que chamava
a atenção por estar vestindo um dólmã militar de
cor azul.
Um homem embarcou no trem e procurou a Donana
Subdelegada de Queimadinhas:
- Bons dias Donana...Tá um diz que diz que a
senhora tá casando os ajuntados...
- Sim, pela moral e pelos bons costumes e a
família tem que ter organização organizada...
124
- Pois uma prima minha roubou um meu irmão e
minha mãe quer que tenha um casamento de lei...
- Sim...Junte os dois que na segunda-feira eu
venho buscar eles, pra casar na delegacia...
Na plataforma da estação de Machado Portela o
coronel Zé Severino de Tanhaçu conversou com o
mulato de dólmã e deu a ordem:
- Embarca no ultimo carro e fica alerta...
O Mulato de Dólmã Azul de Machado Portela
entrou no último carro. O Pistoleiro de Paulista
no Piauí ficou alerta. O Padre de Petrolina fez o
sinal da cruz.
O trem saiu de Machado Portela e o coroné
Nézinho bateu no braço de Zédizefa:
- Oxe!...Zédizefa, você está com o seu
revolver?
- Tá na mala... O coroné mandou deixar na
mala...
- Pois tire da mala...Bote o revolver em sua
cintura, esconda com a camisa...Espere minha
ordem...Não vai fazer besteira dentro desse
trem...
Os camareiros avisando:
-A primeira estação é Queimadinhas e tem a
baldeação para Itaité... Queimadinhas...Itaité...
Na plataforma da estação, terno de linho
branco, bengala com cabo de ouro, grande anel no
dedo, cabeleira branca bem penteada; Doutor
Laudares de Itaité. Não era doutor, era coronel,
mas não gostava que o chamassem de coronel.
125
Subdelegada Donana de Queimadinhas desceu e na
plataforma apertou a mão de Doutor Laudares de
Itaité:
- Continuo na luta pra pôr moral e bons
costumes nesse povo...
No ultimo carro embarcou um sujeito de terno
verde e gravata vermelha.
O Líder Político de Iramaia desceu do trem
para saudar o Doutor Laudares de Itaité, que
perguntou:
- Qual o motivo dessa reunião? Reunião de
ultima hora...
- Os contrários já estão em movimento pra
eleição do ano que vem...
Doutor Laudares de Itaité sacudiu a bengala e
falou:
- E deputado Toninho e o partido que fiquem
bem espertos...Que não tá bom não...Pedi nomeação
de um telegrafista, nada, pedi nomeação de duas
professoras,nada, pedi uma escola pra Itaité,
nada, pedi pra aumentar o posto policial,
nada...Desse jeito...E estou sabendo que deputado
Toninho falou de boca grande dentro do Palácio de
Ondina em Salvadô, que a Bahia tem que acabar com
os coronéis...Desse Jeito...
- Coro...Digo: Doutor Laudares; vamos
embarcar, que o trem já vai sair...
- Vamos...Na primeira classe...
- Não...A gente ta vindo de segunda...Causa
que o coronel Zé Severino de Tanhaçu, comprou
passagem de segunda...
126
- Responda...Tem alguém no mundo mais
miserável que Zé Severino?... Passou, mais eu, foi
é dois dias em Salvadô, sabe o que ele comeu em
dois dias? Dois acarajés...E ele tem dinheiro e
não é pouco...
O sol queimando a caatinga e o dia já estava
quente.
Coroné Nézinho que já estava tenso,mais tenso
ficou depois que Zédizefa colocou o revolver na
cintura.
Oito horas e quarenta e cinco minutos chegou
na estação Tamburi.
Os quatro meninos que viajavam de Contendas
para passar as férias em Cachoeira, debruçaram nas
janelas para ver um grupo de meninos de Tamburi
que jogavam pião perto dos trilhos ao lado do
trem.
Equilibrando uma moringa na cabeça e
carregando outra na mão direita uma mulher de pés
descalços caminhava na beira do trem vendendo
água.
Coronel Severino de Tanhaçu reuniu na
plataforma com seus dois capangas, o Capitão e o
Tenente e mais o Mulato de Dólmã Azul de Machado
Portela e deu instrução:
- Vão todos os três no último carro e esperem
o meu sinal...
Estabanado o Zédizefa debruçou na janela pra
ver os meninos jogando o pião e quase deixou o
revolver cair.
Os três; Capitão, Tenente e o Mulato de Dólmã
Azul de Machado Portela entraram no ultimo carro.
127
O Padre de Petrolina fez o sinal da cruz. Mãe
Taninha de Santo Amaro fez uma prece.O Cangaceiro
Doido de Juacema cuspiu com raiva. O Pistoleiro de
Paulistana no Piauí acariciou o cabo do revolver.
Coroné Nézinho pensou pedindo proteção a São
Gonçalo do Amarante.
Nove horas e quarenta e cinco minutos o trem
apitando na chegada a estação de João Amaro.
Passageiros curiosos abriram janelas. O Padre
de Petrolina fez o sinal da cruz e correu a fechar
as venezianas das janelas onde viajavam os quatro
meninos de Contendas. Mãe Taninha de Santo Amaro
evocou a proteção dos orixás. O Pistoleiro de
Paulistana no Piauí segurou o revolver e correu
pra dentro do WC, trancou a porta e ficou escorado
na parede espiando pela janela. Zédizefa segurou o
revolver e o coroné segurou o braço dele.
Até bonito de ver; cercando o trem o coronel
Amarante de João Amaro, montado num bonito jegue
que estava arreado a capricho, seguido de seus
quarenta jegueiros. Os jegueiros montados em pelo,
sentados na traseira do jegue, os pés quase
arrastando no chão, todos de alpercata, roupa de
couro e laço de fita azul branca e vermelha, as
cores da Bahia, no chapéu.
Parados nas plataformas do trem; o chefe de
trem. Os camareiros e os guarda-freios.
Boné vermelho o agente da estação de João
Amaro estava na plataforma da estação alerta a
tudo que estava acontecendo.
Coronel Amarante de João Amaro apeou do jegue.
Pernas bem arqueadas, baixinho com apenas um metro
e sessenta. Doutor Laudares de Itaité é que sempre
dizia:- Se Amarante tivesse um centímetro a mais,
128
seria o dono da Bahia.- Coronel Amarante de João
Amaro que não sabia mais quantos anos tinha e a
certidão de batismo já tinha amarelado o papel e
apagado as letras, foi homem que correu atrás do
bando de Lampião, correu atrás da Coluna Prestes,
filho de pai e mãe, os dois que pegaram nas armas
pra lutar ao lado de Antonio Conselheiro lá em
Canudos.
Foi o Doutor Laudares de Itaité que chegou na
plataforma do carro com o braço estendido
saudando:
- Muitos bons dias ao coronel Amarante...
Coronel Amarante de João Amaro com um papel
não mão caminhou em direção ao Doutor dizendo:
- Boas seu Doutor Laudares...Chame o resto dos
nossos companheiros...A reunião vai ser na minha
fazenda...O deputado Toninho mandou esse
telegrama...O deputado tá vindo aí num trem
especial...Desce o pessoal, vamos beber água do
Paraguaçu...Vamos pra minha fazenda comer um
sarapatel...O sarapatel de João Amaro; o melhor do
mundo...
O trem descarregou os coronéis com os seus
planos e seus capangas e continuou a viagem.
O chefe de trem entrou no carro de bagagens,
tirou o boné, passou a mão na cabeça, respirou
aliviado, estava um pouco tonto.
Coroné Nézinho deu ordem ao Zédizefa:
- Bote seu revolver na mala...
- Passou o medo coroné?
- Oxe! Respeite...
129
- Desculpe coroné...
- Guarde seu revolver na mala...Tenha
cuidado...
No momento que Zédizefa segurou o revolver a
Jocosa de Jacobina deu uma risada. Zédizefa
voltou-se para olhar a Jocosa, e distraído apontou
o revolver para o Pistoleiro de Paulistana.
O camareiro atravessando o trem, caminhando
apressado, abrindo e fechando portas com energia,
despertando a atenção e a curiosidade dos
passageiros. Os comentários:
- O que aconteceu?
- Coisa grave.
- Foi lá no último carro.
O camareiro entrou no carro de bagagens e
segredou no ouvido do chefe de trem que bateu na
testa, botou o boné dizendo:
- No último carro...
Chefe de trem e o camareiro atravessando os
carros, apressados, abrindo e fechando portas com
energia, aumentando a curiosidade e mais
comentários:
- É coisa ruim...
- Só o que ta faltando...Agora o trem atrasa.
O chefe de trem abriu a porta do último carro,
levantou a cabeça, regalou os olhos. A locomotiva
apitou. O camareiro entrou no último carro.
O foguista abriu a tampa da fornalha e o calor
na cabine ficou insuportável, mas tinha que jogar
carvão para alimentar o fogo.
130
No ultimo carro os passageiros com olhos bem
abertos e curiosos olhando para o chefe de trem
que falou:
- Senhores passageiros, por favor sua
atenção...A próxima estação é Iaçu...Iaçu a
entrada da Linha do Centro...Passageiros; que vão
para Itaberaba, Rui Barbosa e Barra tem baldeação
imediata...Tem um problema; de Barra pra frente à
Linha do Centro esta interrompida...Passageiros;
que vão para o trecho Barra a Senhor do Bonfim
terão que seguir via Salvador...
A primeira a reclamar foi a Jocosa de
Jacobina, acompanhada da Formosa de Campo Formoso.
O sujeito de terno verde e gravata
vermelha;levantou nervoso e perguntando:
- Eu vou para Miguel Calmon, tenho que fazer a
volta lá por Bonfim?
O Padre de Petrolina sorriu e disse:
- Eu falei que no Iaçu ia ter noticia ruim...
Para entender; naquela região da Bahia as
linhas da Leste formavam um triangulo com os
vértices nas estações Iaçu, Senhor do Bonfim e
Mapele em Salvador. Sendo a base deste triangulo o
trecho de Iaçu até Salvador com a distância de
trezentos quilômetros.
O chefe de trem passou para o outro carro e o
camareiro começou a dar o seu aviso:
- Iaçu o trem para meia hora pra almoço...Meia
hora para o almoço em Iaçu...
O homem de Pau Ferro olhou para o Homem de Pau
Seco e comentou:
131
- O senhô vai ter que fazer a volta em
Bonfim...
- É...Eu já ia fazer a volta...Minha missão é
ir no trem do Juazeiro...
Na plataforma da estação, passageiros que
ainda não tinham entendido o problema de linha
interrompida, cercaram o agente da estação que com
calma explicava:
- Quem vai pras estações Itaberaba, Itaiba,
Capivara, Rui Barbosa,Jequitibá, Poços e Barra,
podem ocupar aquele trem, ali, que é o M6, que
onze meia sai daqui...A linha esta interrompida
entre as estações de Barra e Piritiba...
O caboclo magro, alto, ficou nervoso, atirou o
chapéu no chão reclamando:
- Eu vou é pra Piritiba...Eu vou fazê à volta
pra pegá o Trem da Grota lá no Bonfim...A Leste é
a porra da peste!
Iaçu as barracas de comida, barraqueiro
gritando oferecendo, cozinheiras suando na beira
do fogo.O cheiro forte do óleo de dendê. A baiana
do acarajé. A tenda da moqueca. Uma cabrita com o
sino no pescoço e os dois cabritinhos, atrás
comendo restos de comida no meio das barracas. Um
cego pedindo esmolas. A mulher magra com a criança
no colo pedindo uma ajudinha.
Coroné e Zédizefa procuraram a tenda do feijão
do Iaçu; feijão de corda refogado com pedaços de
lingüiça frita. Na frente da tenda, numa tabua que
já tinha servido de lateral de um vagão da Leste,
escrito a carvão com letras mal feitas; Tenda Ção
Juzé. E coronel sentou contente olhando a travessa
132
com o feijão, a farofa de carne de bode, a garrafa
com manteiga e a garrafa com pimenta.
Foi na tenda Ção Juzé que o coronel Ponciano
Pantaneiro de Porto Esperança encontrou o
Sergipano de São José da Mata e falou:
- Poço lhe fazer uma pergunta?
- Sim.
- Escutei você falando pro seu conterrâneo que
você está vindo do Paraná...Eu pergunto: no Paraná
você trabalhava com derrubada de mato?
- Sim.
Num canto da tenda Ção Juzé a Jocosa de
Jacobina perguntou para a Formosa de Campo
Formoso:
- Agora tudo mudou...A gente vai junto com
esse coroné Nézinho até Bonfim...Você vai
enfrentar ele aqui? Ou no Bonfim?
A Formosa de Campo Formoso abriu a bolsa,
tirou um punhal com o cabo de ouro e a lamina de
prata, escondeu o punhal debaixo da blusa entre os
seis e disse:
- A ordem é, aqui...
Iaçu troca de locomotiva e troca de equipagem.
Maquinista seu Juca da cocada preta, esse tinha
nove filhos legítimos e mais seis adotados, pra
manter esse mundo de gente ele e a esposa
reforçavam o orçamento fabricando cocadas,
facilitava é que os cocos ele trazia de Salvador
na locomotiva. Foguista o seu Turino, doido por
futebol e dono de um time amador em Iaçu. O chefe
de trem, o seu Ventura homem ligado ao
Espiritismo, médium de um centro espírita em Iaçu.
133
Zédizefa distraído mais a frente, o coroné
mais devagar que recém tinha enchido o bucho, num
beco entre duas barracas, a Formosa de Campo
Formoso segurou o braço do coronel, que tremeu
assustado. Ela puxou-o para o beco enquanto com o
dedo na frente da boca murmurou:
- Fique calado.
Coroné Nézinho suou frito e sentiu uma
tontura. Com muita calma a Formosa tirou o punhal
do peito e olhando nos olhos do coroné tirou o
punhal da bainha bem devagarzinho. Ele olhou o
punhal e tremeu com os olhos cheios de lágrimas,
ela perguntou:
- O senhor conhece esse punhal?
- Muito... Foi de meu falecido pai...Papai deu
de presente a um grande amigo...
- Esse amigo, de seu falecido pai, tá
precisando de um favor seu...
- Oxente!...Pois diga...
- Ele é envolvido na política de Campo
Formoso...Ele é dos Boca Branca...Os Boca Preta de
Campo Formoso tão em perseguição de morte contra
ele...Ele tá escondido no lugar que o senhor
sabe...Ele quer munição pra vinte homens.
- Diga pra ele que de hoje a uma semana eu
pessoalmente em pessoa vou descer do Trem da Grota
na estação de Fumaça com munição pra quarenta
homens... E diga pra ele que o telegrafista da
estação de Itinga é gente de minha confiança...
Na estação o agente ainda estava atendendo
passageiros que não estavam conformes com a
134
interrupção do trecho Iaçu Bonfim. O sujeito de
terno verde e gravata vermelha, pediu:
- Já que eu vou no trem de Juazeiro, eu quero
reservar um leito de Mapele a Bonfim.
Na locomotiva seu Juca da cocada preta, com
uma estopa limpava os metais do painel e o
foguista, seu Torino acionava a bomba para pôr
mais água na caldeira, seguro nos balaustres entre
o tender e a cabine um guarda-freio, contou:
- Pegaram o guarda-chaves de Vaslândia comendo
uma cabrita atrás da estação...
Seu Torino deu uma risada e contou:
- Aquele sujeito é um artista, ali em Lajedo
Alto ele fez umas assas de pano e queria se jogar
lá do alto do morro...Lá em Itatim ele roubava as
galinhas do agente, fazia galinha ao molho pardo e
ainda levava uma prova pro agente...Quando ele
morou em Manoel Vitorino,no São João ele inventou
de fazer guerra de espadas, a espada estourou na
mão dele, ficou mais de um mês no hospital de Cruz
das Almas...
Apitando e batendo o sino o trem saiu de Iaçu
rumo ao Recôncavo Baiano.
Tranqüilo o coroné Nézinho falou pra Zédizefa:
- To doido pra chegar na Carnaíba e conversar
com o Zé do Bode...
- Era bom se tinha um telefone aqui no trem
pro senhô já ir falando com ele...
Coroné Nézinho virou bem o rosto, olhou bem
pro Zédizefa e falou:
135
- Esse Enfermeiro de Barbacena, que vai mais
nós nesse trem, ele vai é deixar um doido no
sertão e trazer outro...Olha a doidice que você
falou: um telefone pra eu falar de dentro de um
trem com um sujeito lá no Juazeiro...
- Coroné, eu não to doido não, o senhô não
duvide dos inventamentos que o homem inventa...
O povoado de Vaslandia, o homem vendendo água
fresquinha.
Embarcou no ultimo carro a mulher toda de
preto segurando um rosário e acompanhada de um
rapaz com jeito de maluco. O Padre de Petrolina
fez o sinal da cruz. Mãe Taninha de Santo Amaro
fez uma prece.
De Vaslandia a Lajedo Alto sete quilômetros. O
apito do trem ecoou no alto do morro que enfeita a
vila de Lajedo Alto. Junto à estação os grupos de
meninos jogando pião. Na plataforma da estação uma
mãe ansiosa, cercada dos filhos, olhando as
plataformas dos carros. Caminhando com as mãos, o
Ervateiro de Lajedo Alto apareceu e um grito soou
na beira do trem:
- Paaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiinhhhhhhhhhhhooooo...
No quadro de avisos da estação: A partir da
próxima semana os trens NS1 e NS2 voltarão a
trafegar com carros-dormitórios.
Doze e quinze saiu o NS2 de Lajedo Alto.
No ultimo carro a Mulher de Preto de
Vaslandia, rezava num sussurro que chamava a
atenção dos outros passageiros:
- Agora dez Ave-Marias,pra Nossa Senhora de
Candeias...
136
O Soteropolitano Afetado que andava pelo
corredor do carro espichando as pernas, perguntou:
- Oi...O quê a senhora reza tanto? Medo de
andar de trem?
- Não moço...É esse minino que é um minino
bom, mas de vez enquanto ele tem um encosto
ruim...E quando o demônio encosta nele, daí ele
fica com mania de matar um...E eu rezo pra ele não
ter encosto aqui dentro do trem...
O Padre de Petrolina escutou a conversa e
resolveu ir até o carro restaurante.
Itatim, na plataforma, cinco gaiolas grandes
cheias de pombas. Carrega que vão pra Salvador.
O Criador de Pombas de Itatim embarcou no
último carro e sentou ao lado de Mãe Taninha e
logo puxou prosa e contou suas estórias:
- Eu crio pombas e levo pra vender em
Salvador...Tinha um vizinho meu que armava
arapucas pra pegar minhas pombas...Mas eu fiquei
sabendo, e eu botei uma casa de abelhas dentro da
arapuca do safado, as abelhas mandaram ele é pro
hospital...
Povoado de Serra Grande. Em Serra Grande
embarcou o homem alto vestido de branco, olhar
estranho, entrou no último carro. O Criador de
Pombas de Itatim bateu no ombro de Mãe Taninha e
falou:
- O Alucinado de Serra Grande...É de família
rica...Mais de uma vez já criou problemas nos
trens...
O Soteropolitano Afetado comentou:
137
- Já vinha o Obsedado de Vaslandia, agora o
Alucinado de Serra Grande.
O trem parou na estação Taperi e logo começou
a recuar. Os moleques do,lugar se pendurando no
trem para irem até Santa Terezinha. Recuou um
quilômetro e parou na plataforma de Santa
Terezinha.
Santa Terezinha, muitos sacos com amendoim
empilhados na plataforma.
Passeando na plataforma o senhor delegado e
dois soldados da Policia Militar.
A moça vendendo os pacotinhos com amendoim
cozido na casca. O Padre de Petrolina e Zédizefa
não perderam tempo.
No ultimo carro embarcou o homem muito magro,
alto, careca, olhos vidrados; o Cismado de Santa
Terezinha. A Jocosa de Jacobina sorriu e comentou:
- Esse carro até parece um hospício.
A Mulher de Preto de Vaslandia rezando e
rezando enquanto o filho dela, dito Obsedado de
Vaslandia olhava sem parar pra um lado e outro.
O Padre de Petrolina e Zédizefa preocupados em
comer amendoins.
O Criador de Pombas de Itatim contando para
Mãe Taninha:
- A senhora sabe...Aí no Itatim teve um amigo
meu que também criava pombas pra vender...Se ele
tinha uma encomenda de pombas pretas e ele não
tinha pomba preta...A senhora sabe; ele pintava as
pombas de preto...O povo queria pomba branca, ele
ajeitava, pintava pombas de branco...Descobriram
138
foi é aí em Cachoeira de São Felix, jogaram ele
com roupa e tudo dentro do Paraguaçu...
Na segunda classe o coronel Ponciano
Pantaneiro sentou ao lado do Sergipano de São José
da Mata:
- Moço tá na hora de nós conversar...Eu sou do
Mato Grosso...Ponciano, pantaneiro de Porto
Esperança...Tenho uma fazendinha em Porto
Esperança, é dez mil hectares, e essa tá povoada
de gado...Que o Rio Paraguai passa em Porto
Esperança, que Porto Esperança é estação de trem
na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, na Linha
do Pantanal que vai pra Corumbá...Eu Ponciano,
subindo o Rio Paraná tenho uma posse de terra, que
é selva pura, é quarenta mil hectares de chão...Eu
já estou derrubando o mato...Ano passado eu vim no
Sergipe e enchi um carro de trem de homens...Agora
eu estou indo pra trazer é dois carros; mais ou
menos cem homens...Esse cego que vai ai é meu
guia...
- Esse cego, enxerga mais que nós dois
juntos...
- Que todo esse trem...No Sergipe eu fico na
estação de Rita Cacete...Ali na pracinha tem um
barzinho e ali eu fico um mês recrutando
gente...Lá na selva, lá no meio do mato,lá no Mato
Grosso, pra segurar mais de duzentos machos com
respeito e ordem eu preciso de um ajudante, homem
de minha confiança...
-Desculpe...Esse dito cujo tal vai é ter que
ter uns dez ajudantes...
Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto
Esperança, sacudiu a mão contente:
139
- Então...Estamos nos entendendo... Eu quero
contratar o chefe da guarda e quero que ele
escolha os dez ajudantes...
Treze horas e quarenta e cinco minutos o trem
chegou batendo o sino na estação de Castro Alves.
Embarcou na segunda classe, com uma sacola
feita de pano, cheia de livretos o sujeito que
enquanto ia entregando livretos aos passageiros
dizia:
- Permitam que eu me apresente; eu sou o Poeta
Menor de Castro Alves a terra do Poeta
Maior...Estou viajando a Salvador onde aos
domingos no Mercado Modelo eu comercializo meus
modestos livros, com minhas simples criações...
Enquanto o Poeta Menor de Castro Alves ia
tentando vender seus livretos, o trem saiu de
Castro Alves onde um grupo de moças bonitas chamou
a atenção do Zédizefa; uma abanou e ele quase caiu
pela janela.
Quatorze e quinze o trem parou na estação do
povoado de Genipapo.
A Mulher de Preto de Vaslandia falou:
- Aqui em Genipapo tem a capelinha de São
José, eu tenho que vir aí pagar uma promessa.
Com duas malas grandes e pesadas embarcou na
segunda classe o Vendedor de Garrafadas de
Genipapo. Não perdeu tempo, uma mala botou debaixo
do banco a outra ele abriu e já ofereceu:
- Meu povo, boa tarde, boa viagem, garrafada
pra curar qualquer doença...
São folhas, raízes, cascas de plantas
medicinais em infusão na cachaça.
140
Coronel Ponciano Pantaneiro chamou o Vendedor
de Garrafadas e pediu:
- Tem alguma, assim, que, sabe não é...Uma que
levante.
- Essa é a que mais vende...A minha é a melhor
garrafada pra levantar cacete em todo o
Brasil...Tem é capim barba de bode com casca de
catuaba...
Quatorze horas e quarenta minutos o trem parou
em Petim, chamou a atenção dos passageiros um
grupo de meninos que disputavam corridas usando
pernas de pau, ali ao lado dos trilhos.
O Cangaceiro Doido de Juacema acordou, de um
salto parou de pé e começou a falar doidices:
- Galo Doido, Bigode e Zé do Juremal vão pelo
meio...Língua de Fogo e Rei do Baião vocês dêem a
cobertura...É pra matar tudo que é coronel...
O Cismado de Santa Terezinha levantou e cruzou
os braços.
O Alucinado de Serra Grande deu uma gargalhada
que ecoou dentro do carro.
O Obsedado de Vaslandia começou a dar socos no
ar.
O trem parado em Petim, os passageiros
começaram a ficar impacientes:
- Parou por quê?
- Só falta ter acidente na linha...Agora que
já ta pertinho de eu chegar... Eu vou pra Cruz das
Almas.
141
O Enfermeiro de Barbacena acalmou o Cangaceiro
Doido e o Padre de Petrolina com muito jeito pediu
para o Cismado sentar.
Zédizefa desembarcou e foi ver as corridas dos
meninos com as pernas de pau.
Os quatro meninos que vinham de Contendas para
Cachoeira, quiseram descer, mas o camareiro não
deixou.
O apito de uma locomotiva e o bater ritmado
dos cilindros anunciaram que um trem se aproximava
vindo do lado de Salvador. Soltando um penacho de
fumaça preta, apitando e batendo o sino, passou em
Petim o pequeno trem especial;locomotiva e um
carro. Na frente da locomotiva a bandeira do
Brasil e a bandeira da Bahia, na plataforma de
trás do carro, abanando com os dois braços
estendidos o deputado Toninho que ia para a
reunião em João Amaro.
Estação Manoel Vitorino; o ultimo carro foi
invadido por três mulheres e trinta e duas
crianças de várias idades; meninas e meninos,
todos alegres, barulhentos. Não tinha lugar pra
todos,uma das mulheres falou:
- A gente vai pra perto...Cruz das Almas.
Uma das mulheres contou para a Mulher de Preto
de Vaslandia:
- Nós vamos pra Cruz das Almas, na casa de
minha irmã, que a gente vai fazer um caruru pra
São Cosme e Damião...
- Eu sempre, faço, lá em Vaslandia, no mês de
setembro...
142
- E que a gente não pode fazer em setembro...
Mas promessa de caruru pra Cosme e Damião tem até
o fim de dezembro...
A Mulher de Preto de Vaslandia contou:
- Eu tenho promessa de ir a Salvador pro
caruru de Santa Bárbara...
A Jocosa de Jacobina bateu no braço da Formosa
de Campo Formoso e comentou:
- A vida dessa mulher é rezar e pagar
promessa.
O camareiro avisando em todos os carros:
- Chegando a Cruz das Almas... Cruz das Almas
baldeação para Conceição do Almeida...
Quinze horas e vinte minutos o trem encostou
na plataforma de Cruz das Almas.
Desembarcaram as três mulheres e as crianças
que vinham de Manoel Vitorino.
Na segunda classe embarcou o Fabricante de
Espadas de São João, contou ao camareiro:
- Vou pra perto...Desço em Salvador Pinto...
Ali tem muito bambu bom...Passo o domingo cortando
e ajeitando os pedaços...
O Cismado de Santa Terezinha resmungou em voz
alta:
- Vamos embora com esse trem antes que esse
povo maluco de Cruz das Almas jogue uma espada de
fogo aqui dentro.
Coroné Nézinho olhou firme pro Zédizefa e
perguntou:
143
- Esqueceu seus compromissos?
Distraído, Zédizefa, perguntou:
- Ó...E o que foi?
- E Mãe Taninha falou: e o charuto da cidade
das guerras de espadas de fogo...
Zédizefa deu um soco na cabeça, levantou,
desceu do trem e correu até o bar da estação pra
comprar um charuto.
Apitando o trem saiu da Capital do Fumo e
Cidade das Espadas.
Estação Salvador Pinto,ali embarcou um grupo
grande de pessoas, alegres, barulhentas; adultos e
crianças. Uma velha explicou o motivo da viagem:
- A gente vai pra Cachoeira...Vai ser uma
reunião de família e amigos pra gente comer
maniçoba...Domingo tem maniçoba pra família...
Dezesseis e dez o trem chegou em São Felix.
Plataforma cheia de gente. Passageiros
desembarcando, passageiros embarcando.
Na segunda classe embarcou um grupo de jovens,
liderados por mestre Zézinho; grupo de capoeira
que ia a Salvador participar de uma roda de
capoeira no Largo do Mercado.
O cheiro do dendê, na estação o tabuleiro, da
baiana sorridente e bonita, com acarajé, abará,
cocada e quindim. O Padre de Petrolina e o
Zédizefa foram os primeiros a chegar junto ao
tabuleiro.
O Rio Paraguaçu, a ponte metálica, na outra
margem a Cidade Heróica de Cachoeira.
144
A manobra do trem que saiu de ré de São Felix,
atravessou a ponte, entrou de ré numa rua da
cidade. Apitou e de frente avançou para encostar
na plataforma de Cachoeira. Plataforma cheia de
gente. Acabara de chegar o trem procedente de
Salvador.
Embarcou o Poeta Pornográfico de Pouco Ponto,
este fazia livrinhos com estórias de putaria e
ilustrava com desenhos que alegravam os fregueses.
Embarcou e não perdeu tempo, começou a escolher os
possíveis compradores e a oferecer. Zédizefa
comprou dois; A Donzela que o Jegue Descabaçou e o
Garanhão de São Felix.
No ultimo carro embarcou a mulata alta,
cintura fina, não caminhava; dançava. O perfume
invadiu o carro. Os homens regalaram os olhos. Mãe
Taninha respirou fundo e disse ao Criador de
Pombas de Itatim:
- Perigo... Muito perigo...Essa daí é uma
Iaba... Iaba é diaba disfarçada de mulher...
- A chegar em Conceição de Feira...Conceição
de Feira tem a baldeação para Feira de
Santana...Baldeação para o Ramal de
Feira,passageiros para Tupinambá, Jacaré, São
Gonçalo dos Campos...
Dezessete e quinze o trem chegou à movimentada
estação de Conceição de Feira.
Na segunda linha um vagão para ser engatado no
trem. Vagão com carga especial; jegues que o trem
de Feira de Santana veio juntando nas estações do
pequeno ramal.O vagão seguiria até Afligidos.
Na plataforma os grupos e alguns já embarcando
no trem. Os grupos de pessoas que acompanhavam os
145
jegues. Era gente que ia para uma corrida de
jegues no domingo em Afligidos.
O agente da estação e o chefe de trem
combinaram em engatar o vagão com os jegues na
cauda do trem. Chega em Afligidos não tem que
fazer manobra.
Estação Desterro, embarcou com duas malas
grandes o Santeiro de Desterro,entalhava imagens
de santos, de orixás e até imagens de pessoas em
poses pecaminosas. Vendia suas imagens nas feiras
de Salvador.
Anoitecendo e muito movimento na pequena
estação de Afligidos. O trem foi recebido com uma
salva de foguetes. Era a véspera da corrida de
jegues, véspera de festa grande no povoado.
As luzes da cidade de Santo Amaro e o
camareiro:
- Chegando em Santo Amaro...Santo Amaro...
Na plataforma o grupo de moças vestidas de
branco cantando e esperando a Mãe Taninha. Mãe
Taninha desceu do trem e a Iaba sorriu alegre.
Na segunda classe embarcou o grupo grande de
componentes de um grupo de samba de roda,
cantando, batendo no pandeiro e tamborim.
Dezoito horas e quarenta e cinco minutos o
trem saiu de Santo Amaro.
- A chegar em Buranhem...Buranhem baldeação
para o ramal de Catuiçara...Baldeação para Terra
Nova e Catuiçara...
O ramal de Catuiçara, dos engenhos do
Recôncavo.
146
O trem correndo pelo meio de canaviais e
apitando anunciando a chegada em Buranhem.
Já encostado na plataforma o trem procedente
de Salvador com destino a Catuiçara.
Na plataforma, vestido com uma batina feita de
sacos de açúcar, muito encardida, cabelos
compridos e barba muito grande; o Monge Maluco de
Catuiçara querendo viajar a Salvador. O camareiro
não o deixou embarcar por não ter passagem. O
chefe de trem viu os dois discutindo e foi
participar da conversa, o Monge pediu:
- Chefe, leve-me a São Salvadô...
O chefe de trem sorriu, pensou e concordou:
- Eu pago tua passagem...Embarca na segunda
classe e vai quieto.
O Monge Maluco de Catuiçara,era assim chamado
pelo povo. Não era maluco, era desprendido das
coisas materiais, andava pelas feiras nos povoados
da beira do ramal e nos engenhos de açúcar sempre
calmo, pouco falava.
Dezenove e quinze e minutos o trem apitou e
saiu de Buranhem.
Parada muito rápida em Pouco Ponto. O Poeta
Pornográfico de Pouco Ponto desembarcou e na
plataforma a mulher dele esperando e logo ordenou:
- Passe o dinheiro...
Estação Cinco Rios, embarcou o grupo de jovens
alegres do Pastoril de Cinco Rios. A maioria do
grupo ficou no penúltimo carro, no ultimo carro
apenas dois. Uma moça de túnica azul e uma coroa
dourada na cabeça e um jovem de camisa vermelha e
segurando uma lança dourada.
147
O trem continuou a viagem.
No ultimo carro a Iaba olhou para os dois
jovens do Pastoril de Cinco Rios e fez sinal para
o Cismado de Santa Terezinha que levantou e disse:
- O senhor Dom Pedro Segundo e a senhora
rainha Princesa Isabel, voltando pra acabar com
essa republica corrupta de coronéis...Morte aos
coronéis...
O Cangaceiro Doido de Juacema levantou,
estendeu os braços e começou a gritar ordens ao
seu bando imaginário:
- Primo de Corisco, Mané Beiçudo, chama o
bando...Embora seus molenga...Ai vem os
macacos...Bota bala no cano...Água nas cabaças que
a caatinga é grande...
A Mulher de Preto de Vaslandia, tremeu e
começou a rezar em voz alta, rezando sem pausa:
- AveMariacheiadegraças...
O Alucinado de Serra Grande subiu pra cima do
banco e entrou na conversa:
- Volta o trem, lá em Serra Grande tem um
curral cheio de jegues e uma panela cheia de
feijão de corda.
O Padre de Petrolina abriu a mala de onde
tirou o livro de missas e começou a ler um salmo
em voz alta.
O Criador de Pombas de Itatim, levantou
ligeiro e saiu do carro.
Zédizefa ficou alerta.
148
Coroné Nézinho com as duas mãos no bolso do
casaco; a direita segurava o revolver e a mão
esquerda segurava a imagem de São Gonçalo.
A Iaba batendo palmas e indo de ponta a ponta
do carro, requebrando e andando na ponta dos pés.
O Enfermeiro de Barbacena tentando fazer o
Cangaceiro Doido tomar um calmante, mas ele:
- Não posso beber, to numa reunião
importante...Junte as coisas, apaga o fogo,
desmancha o rastro...Vamos matar coronel...
- Vem de volta pra Serra Grande pegá uma
panela de feijão de corda com carne de bode pra
comê no Largo do Pelourinho com o Rui Barbosa e o
Getulio Vargas...
O trem se aproximando de Candeias, um
camareiro atravessando o comboio, apressado, para
ir contar ao chefe de trem o tumulto no ultimo
carro.
Nervosa a Jocosa de Jacobina começou rir as
gargalhadas.
O Pistoleiro de Paulistana, de pé, segurando
embaixo do casaco, o revolver.
A Iaba dançando, a Mulher de Preto rezando, O
Padre lendo o salmo, coroné Nézinho de olhos bem
abertos.
Cangaceiro Doido continuava:
- Leve uma carta pro bispo do Juazeiro, que eu
tenho, que é de recomendação de padre Cícero Romão
da Republica do Cariri...
O Cismado de Santa Terezinha aplaudiu:
149
- Pede muito dinheiro...A igreja do Juazeiro é
muito rica, os terrenos da cidade são todos
dela...
O trem chegando em Candeiais.
A Iaba bateu palmas e gritou:
- Comandante, e o valente Maneca de Vaslandia?
A mãe do rapaz deu um suspiro e desmaiou.
Cangaceiro Doido ordenou:
- Maneca de Vaslandia, pega a lança e mata o
coronel ali...
Apontou o coroné Nézinho.
O Obsedado de Vaslandia deu um pulo tirou a
lança prateada da mão do rapaz do Pastoral de
Cinco Rios.
A Formosa de Campo Formoso correu a socorrer a
Mulher de Preto que estava desmaiada. Zédizefa se
postou na frente do coroné. O Padre de Petrolina
segurou o Obsedado, a Iaba tentando segurar o
padre.
Vinte horas o trem parou em Candeias. Chefe de
Trem e o Agente da estação, correram ao lado do
trem até o ultimo vagão que estava transformado
num hospício. O chefe de trem parou na porta do
carro e disse:
- Vou fazer uma prece e pedir ajuda aos bons
espíritos...
O agente deu volta dizendo:
- Vou chamar a Policia Militar...
150
O Padre e a Iaba abraçados, estendidos no chão
do corredor. O Obsedado lança em riste, em cima de
um banco. O Cismado de Santa Terezinha batendo
palmas...
O Monge Maluco de Catuiçara desceu do trem e
correu até o ultimo carro, subiu pela ultima
plataforma.Abriu a porta, entrou, do bolso, tirou
uma grande cruz de madeira, segurou a cruz com as
duas mãos acima da cabeça.
Cangaceiro Doido baixou a cabeça e sentou. O
Padre levantou sacudindo a poeira. O Obsedado
soltou a lança e voltou a seu lugar. Silencio
dentro do carro a Iaba gritou:
- Candeias! Aqui eu fico.
Saiu do carro deixando um cheiro forte de
enxofre.
O Monge Doido chegou na porta do escritório da
estação e perguntou ao agente:
- Tem janta?
O agente sorriu, sacudiu a cabeça:
- Tem, deixa eu liberar o trem.
O trem deixou Candeias e logo os camareiros
começaram a avisar:
- Próxima estação é Mapele... Mapele... Saída
para a linha de Alagoinhas...Mapele...Atenção;
passageiros para Sergipe e Alagoas...Passageiros
para Alagoinhas, Serrinha, Itiuba, Bonfim e
Juazeiro... Baldeação...
Sempre tem os que querem mais explicações:
- Moço...Eu vou pra Salvador...
151
- Quem vai pra Salvador fica nesse trem...
- Tá longe de Salvador?
- Vinte quilômetros...
Um passageiro, óculos na ponta do nariz, um
lápis e um guia levy, estudando horários de trens.
A luz do farol da locomotiva refletiu nas
águas da Baia de Aratu. A tabuleta na beira dos
trilhos anunciando a estação Mapele.
Mapele o trem NC1 procedente de Salvador e com
destino a Juazeiro já estava encostado na
plataforma.
Carregadores, camareiros e passageiros
apressados movimentando a plataforma de Mapele.
Zédizefa com as malas e a trouxa na cabeça.
Coroné Nézinho sacudindo sua bengala.
Um camareiro auxiliando e mostrando um carro
de primeira classe avisando:
- Esse carro tem bastantes lugares vagos...
Os últimos cinco carros eram dormitórios.
Então o coroné nesse trem não ocupou o ultimo
carro do trem, mas ocupou o ultimo carro de
primeira classe, também ocuparam esse carro os
passageiros que vinham no ultimo carro do trem de
Monte Azul.
Trem com locomotiva e equipagem da estação de
Serrinha. Maquinista o seu Valdomiro, mais
conhecido por; seu Valdô, nascido e criado na
estação de Picos no município de Itiuba; seu Valdô
presidente da Confraria do Caxixe. O foguista o
jovem Jovelino; jogador de futebol, capoeirista e
namorador. Chefe do trem o seu Venâncio, conhecido
152
a boca pequena como “O Comunista”, na verdade ele
muito estudava, muito militou pela causa Comunista
e por tal foi até muito perseguido.
Passageiros acomodados, batida do sino, apito
do chefe de trem, apito da locomotiva; o trem saiu
de Mapele.
Troca de trem tão rápida, uma etapa vencida,
mais uma etapa a vencer. Não deu nem tempo de
pensar. O certo é que já estavam acomodados e
rumando ao sertão.
Inicio de viagem tranqüila no trecho Mapele a
Alagoinhas. Talvez nem tão tranqüila, pois
exatamente nesse trecho ferroviário tinha uma
guerra declarada e não divulgada.
Dois contraventores exploradores do jogo do
bicho e de jogos de bingo tanto em Salvador e
Alagoinhas, como nas cidades e vilas no trecho
ferroviário entre as duas cidades. Cada um deles
com seu “quartel general” em uma estação dos
extremos da linha. Zé do Bingo com sua sede em
Água Comprida e o Carlinhos de Narandiba com sua
“fortaleza” num bonito sitio em Narandiba.
O jogo do bingo explorado em barracas bem
simples; coberta com uma lona, o contorno um
balcão grosseiro feito com uma taboa de trinta
centímetros de largura, onde pintavam a cartela.
Andavam brigando por causa de pontos em
Salvador. Zé do Bingo inovou e construiu uma casa
de jogos em seu sitio; casa de luxo. Pois o
Carlinhos de Narandiba contratou um grupo de
mercenários e mandou atacar a tal casa.
O trem passou o Tunel de Mapele. No ultimo
carro de primeira classe um grupo de quatro
153
homens, vestidos de camisas pretas e afixados na
altura do peito, fitas de Senhor do Bonfim, com
alfinetes. Uniforme dos homens de confiança do
Carlinhos de Narandiba. Num dos carros de segunda
classe iam outros quatro vestidos do mesmo jeito.
O trem parou em Água Comprida. Na plataforma
da estação e em pontos próximos; homens vestindo
camisas brancas e amarradas no braço esquerdo de
cada um três fitas de Senhor do Bonfim ; uma azul,
outra vermelha e uma branca.
Água Comprida desembarcaram muitas pessoas,
gente de posse, homens e mulheres;freqüentadores
da casa de jogo do Zé do Bingo. Discretamente os
legionários de Carlinhos Narandiba cuidaram os
movimentos.
Estação Goes Calmon, parada rápida, embarcou o
Nado Bozó, esse fazia jogos de bozó nas feiras de
cidades, vilas e povoados ao longo da linha desde
Salvador ao Juazeiro, e ao longo dessa linha ele
conhecia muita gente.Embarcou mas não estava indo
para alguma feira, embaçou como espião dos
legionários do Carlinhos Narandiba.
Estação Parafuso. Embarcaram o Zé do Parafuso
e seu grupo, doze homens.Zé do Parafuso, negro
alto, magro, rosto e braços cheios de cicatrizes,
a maioria talhos de navalha.Se acomodaram, todos
juntos, num dos carros de segunda classe.
Nando Bozó, viu, notou que ninguém do grupo
condizia nem mala, nem sacola,nem pacotes nas
mãos. Levavam as navalhas nos bolsos. Correu até o
ultimo carro de primeira classe e fez sinal ao
Chefe dos Legionários do Carlinhos Narandiba. O
Chefe levantou e os dois foram conversar no fim do
corredor do carro. Bozó contou:
154
- Cuidado...Subiu o Zé do Parafuso e mais
onze...Turma da pesada... Vão de mãos livres; as
navalhas tão nos bolsos...Pode acreditar; tão
trabalhando pro Zé do Bingo...
- A meu bom!...Aqui nesse trem da Leste a
gente vai em oito e lá em Narandiba tem mais vinte
homens... A gente é vinte e oito...Eles é
doze...Não ataca Narandiba não...
- Cuidado...Ataca...Veje; só o Zé do Parafuso,
na última festa de lavagem do Bonfim, ele botou
foi dez marinheiros pra correr...Não foi “PM”, foi
marinheiro...Ataca e ataca mesmo...
- O que mais que ocê viu nesse trem?
- Sei não, se tem interesse... Aqui nesse
carro tá viajando um coroné do sertão...Coroné
Nézinho de Carnaiba...
- Interessa... A gente pode precisar de alguma
estratégia e até coloca o velho na roda...
Camaçari e muita gente alegre, barulhenta, de
dois grupos de samba de roda, embarcou, iam a uma
festa de samba em Mata de São João.
O Chefe dos Legionários desceu e correu a sala
do telegrafo onde rápido redigiu um telegrama para
o seu líder em Narandiba e um telegrama ao
delegado de Mata de São João.
De Camaçari até Dias d’Ávila onze quilômetros.
Em Dias d’Ávila, na plataforma, musica de flauta,
tamborim e pandeiro, torcedores e dois times de
futebol amador que embarcaram para Alagoinhas
onde, no domingo, iria ter um grande torneio.
Parada rápida em Amado Batista onde embarcou o
sujeito de terno preto e chapéu caído acima dos
155
olhos. Embarcou no ultimo carro de primeira
classe.
Nando Bozó viu e logo fez sinal ao Lider dos
Legionários. Os dois conversaram na plataforma
entre os dois carros, Nando Bozó avisou:
- Cuidado...Esse daí que subiu agora é o
Pilantra de Amado Bahia...Esse cara é dedo duro, é
mercenário, é chantagista, é seqüestrador... E eu
já vi ele conversando com o Zé do Bingo, os dois
almoçando num restaurante do Mercado Modelo...
- A meu bom!...Ele tá nesse trem pra armar uma
pra cima de eu...
- Certeza...Ele tá querendo te seqüestrar, pra
depois fazer chantagem...
- A meu bom!...Vou fazê meu plano...Ele me
seqüestra...Meus homens seqüestram o coroné
Nézinho...
Jacupema, desembarcou o Riscador de Milagres
de Jacupema, numa mão a mala e na outra o rolo de
telas. Dividia suas semanas entre Salvador onde
negociava os seus quadros e Jacupema onde se
inspirava e desenhava, geralmente trabalhava ou na
plataforma da estação ou na frente da igreja.
Os meninos vendendo cajá e o Padre de
Petrolina junto com o Zédizefa abriram as janelas.
Mata de São João desembarcaram os grupos de
samba de roda vindos de Salvador e Camaçari.
Acompanhado de dois soldados da Policia
Militar o delegado embarcou na segunda classe e
convidou o Zé do Parafuso e seu grupo para
desembarcarem e ficarem encostados na parede da
156
estação. Nando Bozó e o Chefe dos Legionários,
parados nas plataformas dos carros espiando.
Os soldados não encontraram armas com o grupo.
O delegado perguntou:
- Onde vocês vão?
Zé do Parafuso respondeu:
- Alagoinhas...Futebol...A gente torce pro
time do Gato Preto...
- Gato Preto Futebol Clube...Embarca e vai sem
criar problemas...
O delegado tirou o telegrama do bolso e
rasgou:
- Telegrama falso...Filhos das putas...
O trem chegando em Pojuca, Nando Bozó parado
numa das plataformas dos carros. O apito do trem
ecoou na cidade. O Pilantra de Amando Bahia chegou
junto ao Bozó o segurou pelo braço, mostrou o
brilho do fio da navalha e convidou:
- Vem...Pula fora desse trem...Espião de
merda...Pula quietinho seu boiola...
De Pojuca até Irapui apenas três quilômetros.
Em Irapui embarcaram os quinze elementos se
dizendo serem de uma equipe de futebol amador e
que seguiam para Alagoinhas.
O Chefe dos Legionários do Carlinhos
Narandiba, notou a falta do Nando Bozó e também do
Pilantra de Amado Bahia.
Estação de Catu. Embarcou a mulata bonita,
sapatos de saltos altos, cintura fina, bunda
grande e redonda. No braço esquerdo, amaradas as
três fitas de Senhor do Bonfim. Rosa Morena do
157
Catu. Carregando uma pesada bolsa e um birimbau.
Rebolando provocante entrou no ultimo carro de
primeira classe.
O Chefe dos Legionários viu as três fitas no
braço dela e entendeu. Ela estava ali pra apoiar a
turma do Parafuso. Na bolsa as navalhas.
O trem chegando perto da estação de Pau
Lavrado. O Homem de Pau Lavrado, suspirou, suou
frio, tremeu, e se preparou para desembarcar.
Trem parado em Pau Lavrado o Homem de Pau
Lavrado desceu do trem e do escuro um grito:
- Você voltou seu filho de uma égua...
Um tiro,outro tiro, um grito, o apito do trem
e o chiar dos cilindros.
De Pau Lavrado a bonita vila de Sitio Novo,
oito quilômetros. Rosa Morena do Catu começou a
desfilar no corredor do carro. O Pistoleiro de
Paulistana ficou alerta. Coroné Nézinho bateu no
braço do Zédizefa.
O trem entrando no recinto ferroviário de
Sitio Novo. Rosa Morena ao passar no banco onde
estava o Chefe dos Legionários, deu um pulo, um
grito e armou o fiasco dizendo:
- Descarado...Sem respeito...Passou a mão na
minha bunda...
Pego de surpresa o Chefe dos Legionários até
ficou gago, tentou argumentar:
- E...Eu?...Você é doida...Negra safada...
- Respeite...Eu tenho nome seu safado...
158
O trem parou em Sitio Novo, um camareiro e o
chefe de trem correram a ver o que estava
acontecendo na primeira classe.
Zé do Parafuso e seu grupo deram o jeito de
desembarcarem.
Os legionários de Carlinhos de Narandiba que
estavam na segunda classe também desceram.
Enquanto o chefe de trem tentava acalmar a
Rosa Morena de Catu, entrou no carro o Zé do
Parafuso e gritou:
- Oi!...O que tem minha prima Rosa?
Rosa sorriu, o escândalo estava pronto,
gritou:
- Esse descarado pegou minha bunda...
Mão erguida o chefe de trem pedia calma. Zé do
Parafuso concordou:
- Fique tranqüilo seu chefe do trem... Esse
safado e os amigos dele vão descer...
Enquanto isso o chefe dos do grupo de Irapui,
que se dizia time de futebol amador, correu ao
escritório da estação e pediu:
- Um telegrama pra Narandiba...Tão esperando
na estação...
Em Sitio Novo desembarcou o Chefe dos
Legionários e seu grupo. Na plataforma o agente
pedia que os dois grupos tivessem calma. Rosa
rebolando, sorrindo e tocando o berimbau.
Os dois grupos, um com oito elementos e o
outro com doze seguiram para o bonito Largo da
Igreja, ali junto à estação. Nas fracas luzes dos
lampiões brilharam os fios das navalhas.
159
O trem continuou sua marcha. Na locomotiva o
maquinista, seu Valdô, convidou o foguista
Jovelino a entrar na Confraria do Caxixe. O
foguista sorriu e respondeu:
- O seu Valdô eu gosto mesmo e de namorar...
Na frente do trem a luz fraca de um lampião. O
maquinista puxou a alavanca do regulador de vapor
e começou a acionar os freios gritando:
- Filhos de uma jumenta.
Um grupo, de homens que viajavam no sentido
contrário ao do trem, em um trole, saltou e muito
rápido tiraram o trole de cima dos trilhos.
O trem diminuiu a marcha de repente.
Passageiros curiosos abriram as janelas. De uma
das plataformas dos carros o Chefe do Grupo de
Irapui viu o trole e o grupo à beira dos trilhos.
Voltou pra dentro do carro avisando:
- Gente... A barra tá limpa...
Estação de Narandiba; e o Grupo de Irapui
desembarcou pronto a atacar a Fortaleza do
Carlinhos.
De Narandiba a Alagoinhas oito quilômetros. Os
camareiros avisando:
- Vamos chegar em Alagoinhas... Em Alagoinhas
descem os passageiros que seguem para
Sergipe...Alagoinhas a saída é pela porta da
frente.
Vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos
o NC1 encostou na plataforma de Alagoinhas.
O vendedor de laranjas de umbigo gritando:
- Laranja da boa...Laranja de Alagoinhas.
160
As laranjas já descascadas e o Padre de
Petrolina junto o Zédizefa correram a comprar.
Desembarcou as barulhentas equipes e suas
torcidas, do futebol amador. Recebidas pelas
também barulhentas torcidas dos times locais:
Ferroviário, Agulha e Gato Preto.
Na plataforma um passageiro abordava um
camareiro querendo informações de qual o dia e
horário do trem noturno de luxo; o Estrela do
Norte, entre Salvador e Aracaju.
Milagre, o Zédizefa recusou o convite do
coroné Nézinho pra ir jantar no carro restaurante.
O coroné convidou o jovem magro com a camiseta do
Fluminense do Rio; o Fluminense do Flamengo.
Coroné contente no carro restaurante. Gostava
de comer nos trens de Juazeiro; arroz, batata
frita, bife, ovo frito e o diferencial, a salada
de cebola e tomates, produzidos no Vale do São
Francisco:
- Então o moço é do povoado do Flamengo?
- Sim senhor...O senhor conhece o Flamengo?
- Oxe!...Conheço e muito... Nas políticas a
gente anda naqueles cantos ali tudo... E agora o
moço mora no Rio de Janeiro?
- Sim senhor...O sertão não tem trabalho...
- E o moço faz o quê? La no Rio.
O Fluminense do Flamengo sorriu e respondeu:
- Caço gatos...De noite os gatos namorando faz
muito barulho nos telhados dos prédios dos
ricos...Os ricos pagam e eu caço...Eu tenho minhas
armadilhas...
161
- Oxente!...E você caça e mata os bichos?
- Sim senhor... Mato e tiro o couro e vendo
pras fabricas de tamborins...A carne eu vendo no
meu carro de churrasquinho...
Na plataforma da estação o Homem de Pau Seco,
andando de um lado a outro procurando alguém ou
alguma coisa.
Um grupo alegre de rapazes e moças embarcou,
seguiam para o baile do Clube das Oficinas em
Aramari.
O trem saiu de Alagoinhas na noite quente do
sertão,o cheiro forte da caatinga.
O Padre de Petrolina lendo o romance “O Crime
do Padre Amaro” de Eça de Queiroz.
Zédizefa recostou a cabeça na parede do carro
e começou uma soneca, que ninguém é de ferro.
A Jocosa de Jacobina, a Formosa de Campo
Formoso, o Soteropolitano Afetado e o Gigolô de
Poá, iam jogando baralho; biriba.
As vinte e três horas e vinte minutos o NC1
apitou entrando no recinto da estação de Aramari.
Aramari das oficinas da Leste. Plataforma cheia de
moças e rapazes. Era noite de baile.
O Homem de Pau Seco foi até o escritório da
estação e perguntou ao agente:
- Que noticias o senhor fala do Rabo Alegre?
O agente, sorriu, sacudiu a mão:
- A ultima noticia; é que ele estava lá em
Santa Luz...
162
De Aramari a Ouriçanguinhas vinte quilômetros.
Em Ouriçanguinhas embarcou um grupo grande sendo a
maioria rapazes e moças, que seguiam pra um forró
de pé de serra em Água Fria. Nesse grupo chamava a
atenção uma cabocla que vestia uma blusa cheia de
rendas e enfeitada de muitos botões coloridos.
Estação de Irai onde embarcou um grupo de
rapazes que também iam pro forró de Água Fria. Um
deles muito exibido olhou a Cabocla da Blusa
Enfeitada de Ouriçanguinhas e tomou prosa:
- Eita que é bonita de enche os olhos...
Ela sacudiu os ombros falando:
- Vá se catá seu besta!
E ele mais que ligeiro respondeu:
- Elogiei foi o arreio...
Uma hora e trinta da madrugada o trem chegou
na estação de Água Fria, e ali pertinho da estação
no galpão grande o som da musica; sanfona, violão
e estribo. A luz dos lampiões ofuscada pela poeira
do arrasta pé. E o trem descarregou mais alegria
pro forró; moços e moças e vários engradados com
garrafas de cerveja.
Os vendedores andando a beira do trem vendendo
caju ou pacotes de castanha de caju torrada.
Zédizefa e o Padre de Petrolina compraram frutas e
é lógico, castanhas.
Da vila de Água Fria a o povoado de Catana,
nove quilômetros.
Bem perto da estação de Catana, uma cobertura
de palha, sem paredes, iluminada por lampiões e a
poeira levantando no ritmo do bate coxas. É forró
163
de Catana, e uma velha com um balde na mão joga
água no chão pra diminuir a poeira.
O trem parou em Catana era uma hora e quarenta
e cinco minutos.Do ajuntamento do forró saíram
dois vultos em direção ao trem: Uma cabocla
puxando um caboclo pelo braço. Decidida ela
empurrou ele pra embarcar no trem e ela também
subiu.
O trem ia saindo de Catana e no forró alguém
gritou:
- Virge minha Nossa Senhora... Maria de Calu
roubou o noivo da Vivi...
Lamarão, na plataforma iluminada por dois
lampiões um grupo de vaqueiros com suas roupas de
couro. Na segunda linha um vagão carregado com
cavalos e na plataforma os fardos com os arreios.
Vaqueiros de Lamarão que seguiam pra festa de
vaquejada em Salgadalia.
Perto da estação o claro dos fogareiros a
carvão das vendedoras de milho cozido e milho
assado.
O Homem de Pau Seco desceu apressado, comprou
um milho assado e foi ao escritório da estação
perguntar:
-Bom dia...Diga onde anda o Rabo Alegre?
- O Rabo Alegre estava em Santa Luz...
Manobra rápida a locomotiva desengatada do
trem e foi à segunda linha engatar o vagão com os
cavalos.
De Lamarão a Quingi sete quilômetros. E Na
chegada em Quingi o foguista avisou ao maquinista:
164
- Tem que bebe água...
- Ei... A água que tem não dá pra chegar em
Serrinha?
- Não dá, não...
Quingi, o foguista abriu a tampa do tender
enquanto o bombeiro manobrava a mangueira de
abastecimento e contava pro maquinista:
- Sabe, seu Valdô, noite passada o agente
escutou barulho na plataforma, levantou e foi
vê...Um garimpeiro comendo uma jeguinha. Encostou
a bichinha na plataforma...
- Falando em garimpeiro...Dois garimpeiros da
turma de Picos vieram a Itiuba levar compras...E
na volta, lá na decida, o trole correu demais e na
curva ele saiu de cima dos trilhos...Um quebrou o
braço e outro enfiou a cabeça na ponta de um
dormente...
- Ué uma vez os garimpeiros, aqui do Quingi,
colocaram o trole de rabuja no Rabo Alegre...O
trem correu e na entrada do recinto do Lamarão o
trole saltou de cima da linha...
Os garimpeiros que eles se referiam eram os
funcionários da conservação e reparos da linha.
De Quingi a Serrinha quinze quilômetros. O
foguista perguntou a o maquinista:
- Já é domingo...Hoje tem reunião da
confraria?
A Confraria do Caxixe. Um engenheiro da Leste,
foi pra França se especializar em locomotivas
passou na França só meio ano, veio com sotaque
Frances. Com mania de Frances ele criou a
confraria do champanhe; onde se reuniam pra beber
165
champanhe, fumar cachimbo e jogar gamão. Seu
Valdô, muito gozador, fundou a confraria do
caxixe; onde se reuniam pra beber caxixe,fumar
palheiro e jogar o rapa.E a coisa começou de
brincadeira e acabou pegando, que assim a turma de
amigos se reunia.
Os camareiros avisando:
-Serrinha...Saída pela porta da
frente...Chegando a Serrinha...
Movimentada a plataforma de Serrinha. O Padre
de Petrolina e Zédizefa correram ao Bar da Estação
pra tomar café com bolo de macaxeira.
Em Serrinha a troca de locomotiva e equipagem.
Equipagem sediada em Bonfim. Chefe de trem o seu
Ubirajara Sanfoneiro, que nas horas vagas tinha um
conjunto musical que tocava nos forrós de pé de
serra na região de Bonfim. Foguista o seu Romeu
Sacristão, quando jovem foi sacristão e ainda
ajudava na igreja.Maquinista o seu João das
Feijoadas, ele e a família todos os domingos
faziam a melhor feijoada sertaneja em Bonfim e
vendiam por porções. Feijoada sertaneja que além
das carnes levava maxixes, pedaços de macaxeira e
pedaços de jerimum.
Embarcou no trem um grupo entusiasmado que
seguia para participar da vaquejada de Salgadália.
Na plataforma a pilha de caixas de cerveja, a
pilha de caixas de refrigerante e as latas com
gelo, o conferente avisou ao bagageiro:
-Carrega...Pra Salgadália.Tem vaquejada...Um
dia as vaquejadas da região de Serrinha serão
famosas...
166
Uma carga de ultima hora; caixão de defunto.O
conferente, nervoso, perguntou:
- Para onde vai o caixão?
O homem gordo respondeu:
- É pra um finado falecido tio meu, lá em
Acauã...
- Credo em cruz!...Esse caixão só vai chegar
em Acauã amanhã as cinco da tarde...O finado
defunto já vai tá fedendo...
- Se preocupe não...Meu finado falecido tio
ainda não tá bem morrido, que lá de tempos em
tempo ele revira os olhos da cara...
Zédizefa viu carregar o caixão e foi avisar ao
coroné Nézinho:
- Coroné...O caixão tá no trem...Um de nós vai
chegar nele, lá em Carnaiba...
- Oxente!...Zédizefa cale sua boca...
Trem com nova Maria Fumaça, passageiros
acomodados, alguns ainda no Bar da Estação. O
agente bateu o sino anunciando a partida.
Três horas e cinqüenta minutos o trem chegou
em Agenor de Freitas.
Um viajante comentou:
- Esse lugar é diferente...A estação tem o
nome de Agenor Freitas e a vila tem o nome de
Barrocas...
O velho magro de barba branca falou:
- É três horas...As oito a gente tá em
Bonfim...
167
- Tá não...Vai tá no Bonfim às dez e
meia...Que esse pedaço de mundo eu conheço
bem...Eu corto lenha pra Leste e já andei nessas
estações todas desde Serrinha até Bonfim...
O trem parado em Agenor Freitas e os
passageiros começando a ficar inquietos e
curiosos. Opiniões:
- Quebrou a Maria Fumaça...
- Capaz de sê acidente na linha...
A luz do farol, logo o barulho de um trem
vindo do norte. Quando se aproximava da entrada do
recinto de Agenor Freitas já se escutava o som de
musica no ultimo carro. Alguém gritou:
- Tá chegando o Rabo Alegre.
O Rabo Alegre, trem misto com quatro vagões
tanques que tinham carregado água pra populações
da beira da linha, dois vagões carregados com
fibra de sisal, dois vagões com caroços de
mamonas, o ultimo carro, um carro de segunda
classe.
No ultimo carro o chefe de trem; seu Maneco
que no primeiro banco acomodava seu escritório e
sua cozinha; uma caixa de madeira com as roupas e
papéis do trem, noutra caixa, uma panela e um
fogareiro a álcool.
Tocando sanfona o Cego Nanias, tocando viola o
guia de cego, Negrinho Juca. Rebolando, andando e
cantando no corredor a Maria da Leste, uma negra
gorda, e desbocada, que era viajante assídua
daquele trem, vivia de negociar produtos de beleza
e perfumes nos bregas de beira trilhos. Produtos
de beleza franceses legítimos; fabricados em Feira
de Santana.
168
Maria Canivete, branquéla, cabelo amarelo.
Outra costumeira naquele trem, ia vendendo pra os
meninos de beira trilhos; pião, bolinhas de gude,
rolos de cordão pra soltar pipa, gibis velhos e
canivetes. Com canivete às vezes ela conseguia
namorar com algum menino que já estivesse se
iniciando nas artes do sexo. O que um menino não
faz por um canivete?
Num dos bancos empilhadas gaiolas de
passarinhos. Canarinhos, bicudos, bico de lacre,
curiós. Tanta zoada que até os passarinhos
cantavam.
Chapéu de palha o Zé dos Jabotis, cigarro
apagado no canto da boca, dançando no corredor com
a Maria Canivete. Zé dos Jabotis ia comprando nas
estações do trecho jabotis que depois ele vendia
na Feira de Itiuba. A carne de jaboti era
apreciada em Itiuba.
Num canto amontoado um casal e doze filhos que
iam para o sul fugindo da seca e todos eles
viajando apenas com uma passagem; coisas do Rabo
Alegre.
Noutro canto um grupo jogando dominó.
Zé Vira Lata, esse ia de feira em feira onde
montava seu jogo: empilhava latas vazias de azeite
e com seis bolas de pano (feitas de meias),
distante dez passos o jogador tinha que derrubar
todas as latas.
Outro costumeiro do Rabo Alegre era o Biluca
Bicheiro que viajava recolhendo apostas do jogo do
bicho.
Apitando o Rabo Alegre parou em Agenor de
Freitas. Vestindo uma camisa vermelha o sujeito
169
saltou do ultimo carro e correu até a plataforma
onde encontrou o Homem de Pau Seco.
Debruçado na janela o Zédizefa viu o encontro
e resmungou:
- O Homem do Rabo Alegre, que Mãe Taninha
falou...
O Homem do Pau Seco disse ao Homem do Rabo
Alegre:
- Tava preocupado...Pensei que nós não ia se
encontrá...
- É... O Rabo Alegre nunca anda no horário...E
onde tá a nossa vitima?...Coroné Nézinho...
- Tá na primeira classe... Já lhe mostro
ele...
De Agenor Freitas a Salgadália dezessete
quilômetros.
Salgadália, as barras do dia lá no horizonte.
Perto da estação uma barraca enfeitada de
bandeiras e onde uma sanfona alegrava o ambiente.
Uma faixa branca com letras pretas saudava os que
vinham para a vaquejada.
Muita gente barulhenta desceu do trem.
Descarregadas as bebidas e o gelo.
O dia clareando e o trem NC1 chegando em
Itareru.
Itareru, perto da estação os fogareiros de
carvão e o cheiro de passarinhos assados. Zédizefa
e o Padre de Petrolina foram os primeiros a
comprar espeto de passarinho.
A notícia se espalhou dentro do trem de boca
em boca. O trem tinha que esperar que ajeitassem o
170
aparelho de chaves (sistema de troca de linhas) na
saída do recinto.
Os garimpeiros fazendo força com pás e
alavancas para trocar um trilho quebrado. Muitos
passageiros desceram do trem e foram olhar os
homens trabalhar. Zédizefa e o Padre de Petrolina
também foram.
Coroné Nézinho desceu pra espichar as pernas,
caminhando devagar se afastou um pouco do trem, um
cachorro chegou perto dele, cheirou o ar e ficou
ali. Notou que alguém se aproximava, voltou-se e
viu o Homem do Rabo Alegre com dois espetos de
passarinhos assados, ofereceu:
- Coroné aceita um...Aceite...
- Oxe!...Bondade do moço...quero não...
- Eita seu coroné...Aceite que é de bom
grado...
Coroné aceitou, segurou o espeto enquanto o
Homem do Rabo Alegre deu volta falando:
- Eita! Esqueci de dá o dinheiro pro menino...
Coroné Nézinho, olhou o passarinho assado,
sentiu o cheiro, água na boca. Aproximou o espeto
da boca, viu o cachorro olhando com olhar de fome.
Pensou, olhou o passarinho, olhou o cachorro.
Jogou o passarinho pro cachorro. O cachorro mordeu
o passarinho e caiu morto. Nervoso o coroné olhou
pros lados e voltou ligeiro para o trem.
O feitor da turma de conservação de linha,
avisou ao guarda-freio:
- Fala, lá, pro maquinista que já pode
alevantar a pressão...Aqui já tá quase pronto.
171
Os passageiros que estavam espalhados no
recinto da estação de Itareru, começaram a voltar
para o trem. Padre de Petrolina e Zédizefa, vinham
voltando ao trem quando a Morena Bonita de
Itareru, que embarcou na segunda classe piscou
para o Zédizefa, que ficou contente,
tímido,indeciso. O Padre o encorajou:
- Vai tirar uma prosa com a menina...Vai...
Era uma das funções do Padre, estimular o
“Crescei e Multiplicai-vos”. Zédizefa foi.
Coroné Nézinho viu o Padre de Petrolina
embarcar sem o Zédizefa e foi perguntar:
- Diga, seu Padre, e Zédizefa?
O Padre sorriu e respondeu:
- Está lá na segunda classe conversando com a
moça mais bonita deste trem...
O trem saiu de Itareru apitando. Os garçons
começaram a servir o café da manhã. Na manhã morna
do sertão o gostoso café preto com pão e ovo
frito.
Coroné conversando com o Farinheiro de Quicé
que contente ia contando:
- Pois seu coroné, desde minino eu tinha a
vontade de ter uma casa de farinha...Meu tio tinha
uma casa de farinha em Bonfim...Só vontade de
minino...Casei bem novo, tinha dezoito anos...E
vim pro Sul...Em Suzano fui trabalhar de ajudante
numa metalúrgica...Fui aprendendo e melhorando de
posição...Soldador, torneiro mecânico...Já tinha
vinte três anos lá em Suzano...Tá com dois anos eu
vim em Quicé vender uma terra que meu falecido pai
deixou...Minha mulher e meu filho não deixou
172
não...A gente vem pro Quicé e você monta nossa
casa de ferinha...Com a licença do meu patrão e
ajuda dos colegas de serviço, lá na metalúrgica, a
gente fez as maquinas...Ralador de mandioca,
tacho, prensa...Já botei tudo num vagão de
trem...E agora se Deus permitir vou fazer minha
casa...
Coroné sorriu contente e interrompeu:
- Deus vai ajudar...Que bonito...
O trem viajando entre plantações de sisal,
apitando e chegando a Santa Luz.
Plataforma cheia de gente. Muitos que tinham
saído de um forró.Moças com a maquiagem borrada,
Rapazes com a roupa desalinhada. Uma moça com os
sapatos na mão que os pés estavam cheios de
bolhas.
Próximo a estação muitas tropas de jegues.
Jegues; alguns carregados com fardos de fibra de
sisal para ser carregada em vagões.
No trem alguém comentou:
- Esta região tem uns jegues bonitos...
- Ó si tem...Eu cá tenho um amigo que cria
jegue com muito capricho...
Zédizefa continuava no carro de segunda classe
proseando com a Moça Bonita de Itareru.
Embarcou na segunda classe um poeta, o Poeta
de Cordel de Mafrense. E sem perder tempo
aproveitou para oferecer os seus livros:
- Meu povo, to aqui de novo...
Na plataforma da estação o Homem de Pau Ferro
encontrou o Homem do Rabo Alegre e disse:
173
- O plano falhou...O coroné deu o passarinho
prum cachorro...
- Falhou...Eu vou matar ele depois de
Bonfim...Que lá naquelas caatingas eu tenho onde
me esconder...Depois que o trem passar em Bonfim
eu acabo com o coroné Nézinho...
Carga especial para carregar no vagão que uma
metade carregava carga em geral e a outra metade
era pra o transporte de animais: quinze bodes. O
agente avisou ao chefe de trem:
- Carrega os bodes...Hoje tem festa do bode em
Queimadas.
O trem saiu de Santa Luz e o Poeta de Cordel
de Mafrense continuou sua propaganda:
- Pessoal não levem a mal...Sou piauiense,
moro na estação Mafrense...A Leste tem três
estações no Piauí; Paulistana, Acauã e
Mafrense...Eu nasci em Acauã, casei em Paulistana
e moro em Mafrense...Um dia vocês vão lá pra gente
comer uma galinha de angola...Bom eu tenho um
livro muito lido que é; O Diabo no Trem Baiano...
Estação Rio do Peixe. Na plataforma para
embarcar o seu Cabidela. Para carregar quatro
gaiolas cheias de galinha, uma panela e um
fogareiro a carvão. Levava galinhas vivas para
vender na feira de Queimadas. O freguês trazia uma
vasilha, ele degolava a galinha juntava o sangue
na vasilha , depenava a galinha, abria e entregava
o sangue e a ave para o freguês fazer sua Galinha
de Cabidela. Galinha de Cabidela ou galinha ao
molho pardo,prato apreciado no norte de Bahia.
174
Além das gaiolas com as galinhas, mais doze
bodes que iam para a festa do bode de queimadas. O
bagageiro do trem reclamou:
- O vagão já tá cheio de bodes...Capaz de não
ter lugar...
Um dos donos dos bodes já gritou:
- Oxente! Dê seu jeito...O meu bode vai...
Conseguiram acomodar as cargas e o trem
continuou sua viagem.
Coroné Nézinho doido pra falar com o Zédizefa
e o dito cujo lá na segunda classe de prosa com a
Morena Bonita de Itareru.
Estação de Queimadas, as bandeiras e a faixa
anunciando a festa do bode. Muita gente
desembarcando.
O Poeta de Cordel de Mafrense aproveitou e
ofereceu:
- Esse meu livro conta uma historia
verdadeira, dessa terra brasileira, um tal
acontecimento, que nunca vai cair no esquecimento.
Povo brasileiro, eu falo de Antonio
Conselheiro...Estação de Queimadas, chegavam às
tropas armadas...Canudos nunca se rendeu...
O agente da estação de Queimadas pegou o
telefone seletivo, que comunicava com o controle
de movimento e todas as estações do trecho e
solicitou:
- Movimento...Queimadas solicita licença para
o NS1 avançar até Jacuricí...
Em Jacuricí duas batidas no sino anunciou que
estava com licença o trem. Na parede da frente da
175
estação, a parede voltada para a plataforma, o
sino, o lampião e o quadro de avisos onde estava
escrito; Trem NS1, procedente de Salvador, com
quarenta minutos de atraso.
Na plataforma a moça bonita, enfeitada e
segurando contra o peito o envelope que tinha num
dos cantos desenhado um coração, em outro uma
flor, era uma carta que ia enviar pelo trem para o
namorado em Juazeiro.Carta que começava assim: Meu
amor; estou pegando na pena para dizer...
Perto da estação uma mulher e seus cinco
filhos esperavam o trem no qual vinha uma carta do
marido que estava em São Paulo trabalhando. Carta
que pouco dizia, mas junto vinha o dinheiro para
as despesas do dia a dia.
Reunidos um pouco afastados, pai, mãe e
irmãos, todos tristes,para se despedirem do filho
mais velho que partia para Juazeiro onde iria
trabalhar na Navegação do São Francisco.
O menino que desceu do jegue, amarrou a rédea,
no varal, estava ali esperando o jornal.
Uma dezena de carroças. Carroças típicas do
Nordeste; duas rodas, o eixo, e do eixo dois
suportes verticais nos quais se apóia o lastro,
lastro simples sem guardas.
Grupos de moças faceiras e rapazes barulhentos
que estavam ali para verem o trem.
A família, vários membros, que estava contente
esperando o parente que estava vindo de São Paulo
passar as férias em Jacurici.
O menino com o tabuleiro tapado com o
guardanapo limpinho e que vendia amendoim cozido
na casca.
176
O grupo de meninos que jogava bolinha de gude.
A cabra com o sino no pescoço que subiu a
plataforma e passou por entre as pessoas.
Fuçando na beira dos trilhos uma porca e os
seus leitões.
A o longe o barulho do trem. O apito da
locomotiva; e um menino gritou:
- É seu João da Feijoada.
Os meninos de beira trilho conheciam as
locomotivas por seus apitos e conheciam os
maquinistas das locomotivas.
Na entrada sul do recinto, junto aos aparelhos
de mudança de vias, o guarda-chaves, segurando a
bandeira verde, dando entrada ao trem no recinto.
Na plataforma da estação o agente com uniforme
amarelo e quepe vermelho.
Oito horas no relógio do escritório. O trem
NC1 chegando em Jacurici.
Jacurici onde foi carregado o meteorito de
Bendengó para ser levado pra Salvador no ano de
mil oitocentos e oitenta e sete.
Parada de dois minutos, alegria, tristeza, vai
carta, fica carta, desce gente, sobe gente.
Coroné Nézinho preocupado, precisando falar
com o Zédizefa e ele lá na segunda classe de prosa
com a Morena Bonita de Itareru.
Locomotiva bufando na rampa e os camareiros
avisando:
- Chegando em Itiuba...Itiuba...
177
Manhã de domingo na cidade dos bons carnavais,
muita gente na estação. Para embarcar uma equipe
de futebol amador e sua fiel torcida..
Zédizefa ficou triste ao se despedir da Morena
Bonita de Itareru que desembarcou.
Coroné Nézinho, regalou os olhos.Não era
possível. Estaria sonhando. Respirou fundo,
tremeu, sorriu. A sua frente, entrando, no carro o
nobre adversário,o Lesbão. Lesbão cabo eleitoral
do partido adversário em Carnaiba do Sertão.
Lesbão carregando uma pasta feita de couro de
bode, sorriu:
- Nobre adversário coroné Nézinho, muitos bons
dias...Uma alegria encontrar o nobre adversário...
Coroné levantou, apertou a mão de Lesbão
dizendo:
- Bom dia a você...Qual o motivo do milagre?
- Pois meu nobre adversário coroné
Nézinho...Ando eu cá em compromissos sociais e
tais...Vim aqui na Itiuba comer uma maxixada com
meus parentes...E agora to indo pro Bonfim, que
hoje tá casando uma prima minha...
- Nobre adversário seu Lesbão tome assento
nesse lugar que é de Zédizefa, cujo dito anda de
papos com raparigas lá segunda classe...
Na plataforma da estação as moças vendendo
artesanato feito com a palha de ticum. O
Soteropolitano Afetado, comprou uma bolsa e já
acertou uma encomenda grande de bolsas e sacolas
para pegar na volta.Iria levar para comercializar
em São Paulo.
178
Zédizefa voltou para a primeira classe, o seu
lugar estava ocupado, mas o coroné ordenou:
- Fique por perto...Temos que conversar...
Lesbão remexeu-se e perguntou:
- Com certeza o coroné vai precisar de um mês
para se inteirar das políticas da Bahia?
Olha a malicia da pergunta. Ele que vá
pensando assim. Coroné respondeu:
- Oxe!...Depois que Samuel Morse inventou o
telégrafo, a gente sabe é tudo de tudo que é
canto...Ademais que em São Paulo chega os jornais
do Brasil inteiro... E ainda tive a sorte de nessa
viagem encontrar o deputado JJ... Deputado JJ foi
esperar eu lá no sul da Bahia...
Lesbão coçou a cabeça, tinha provocado a onça
com vara curta. Remexeu na sua pasta e falou:
- Até que to trazendo meu caderninho das
anotações das democracias democráticas...
Eita que até num trem da Leste o Lesbão vem
tirar prova da gente. Mostro pra ele que eu também
to com meu caderninho e em dia:
- Zédizefa, tire de dentro de minha mala a
minha modesta pasta onde estão meus anotamentos
republicanos e democráticos.
O trem saindo de Itiuba, apitando e batendo o
sino, e Zédizefa tirou a pasta da mala. Pasta
bonita de couro envernizado, alças metálicas e
fechos de metal amarelo. De canto de olho o coroné
cuidou o Lesbão que disfarçado olhava para a
janela do carro. Coroné começou remexendo seus
papéis:
179
- Oxe!... Minha pasta não tá ajeitada...Tudo
misturado...Um retrato que tirei no Palácio dos
Bandeirantes... Telegrama do governador...Retrato
no Palácio do Catete na capital federal...Eu
viajando de São Paulo pro Rio de Janeiro no trem
Santa Cruz junto com deputados do Rio Grande do
Sul...Oxente!...Aqui tá meu caderninho...
Lesbão respirou aliviado e perguntou:
- Onde começa?
Os dois analisando os seus cadernos e coroné
respondeu:
- A gente pode começar pelos não confirmados.
- Tá bem...Aqui: Zé da Grota Seca, pra nosso
partido ele afirmou e confirmou...
- Oxente, no meu caderno o Zé da Grota Seca
também afirmou e confirmou...Não é democrata...O
nobre adversário concorda?
- Sim senhô...Pra ele só o dever de pagar os
impostos...Não vai te pipa da água, escola pros
meninos, ajuda, de nosso partido, nenhuma...
- E do nosso também...
Os dois discutindo a política do distrito e o
trem chegando na estação de Picos. Os meninos
vendendo imbus.Zédizefa e o Padre de Petrolina
correram a comprar.
A mulher magra alta com uma lata na cabeça e
outra na mão, auxiliada por um menino, oferecia:
- Olha o caxixe...Caxixe bom e barato.
Caxixe, bebida de Picos; feita com o caroço do
imbu mais ouricouri, moídos e misturados com
farinha e cozidos com água.
180
De Picos a Quicé dezoito quilômetros. Da
janela do carro o Farinheiro de Quicé avistou o
prédio novinho e pintado de branco, que a mulher e
o filho tinham construído e onde ele iria
construir seu sonho e seu futuro.
Quicé o grupo de jogadores de um time de
futebol amador embarcou para ir até Cariacá.
Estação Cariacá, na plataforma alguns sacos
com maxixes para serem carregados.
A o lado dos trilhos um grupo de meninos
jogavam bola com uma bola de meia. Bola de meia;
enchia uma meia, velha, com pedaços de pano.
O NC1 se aproximava de Bonfim e os camareiros
avisando:
- Vai chegar em Bonfim... Bonfim, baldeação
para o Trem da Grota... Passageiros para
Pindobassú, Campo Formoso, Jacobina, Miguel Calmon
e Barra...Vai chegar em Senhor do Bonfim...
A carga humana se agitou. Mais uma etapa
vencida. O trem apitando e batendo o sino encostou
na plataforma de Bonfim.
Plataforma cheia de gente. Carregadores e
camareiros ajudando e informando.
Lesbão se despediu do coroné Nézinho e se
afastou dizendo:
- É coroné...Setenta por cento dos eleitores
do distrito são do meu partido...
Escutar isso dentro de um trem da Leste.
Precisava agilizar as democracias de Carnaiba do
Sertão. Antes tinha que falar com o Zédizefa:
181
- Seu Zédizefa, diga o que falou Mãe Taninha
de Maro Maro...
- Ela falou... Um de vocês...
- Eita! Deixe os primeiramentes e vá pros
finalmentes...
- O perigo é o homem do rabo alegre...O
passarinho no pau, aceite disfarce e dê pro
cachorro...Conte ao homem dos sete “P”...No fim do
caminho bote em meu nome uma...
- Pode parar...Quem é o homem dos sete “P”?
- Eiii! Sei não...
- Pois dê seu jeito e descubra...
Coroné falou com tal firmeza que Zédizefa saiu
tonto, desceu do carro e zanzou pela plataforma
entre os viajantes. Parou perto do Poeta de Cordel
de Mafrense, avistou parado perto do trem o
Pistoleiro de Paulistana, bateu no braço do Poeta
e apontou o Pistoleiro dizendo:
- Aquele, ali, é seu conterrâneo...É de
Paulistana...
O Poeta sorriu e falou:
- To sabendo...Vou fazer um poema pra
ele...Perigoso Pistoleiro Parte da Paulicéia Para
Paulistana no Piauí...
Zédizefa repetiu e contou os “Ps”:
- Perigoso Pistoleiro Parte da Paulicéia Para
Paulistana no Piauí...
Correu ao encontro do coroné e afobado falou:
182
- Já sei é o Pistoleiro de Paulistana no
Piauí...Conte os “P”... Perigoso Pistoleiro Parte
da Paulicéia Para Paulistana no Piauí...
Coroné ficou contente e perguntou:
- Oxe!...Sete P...Quem contou a você?
Faceiro Zédizefa bateu no peito:
- Coroné...Eu sou um homem inteligente...
Sabendo quem era o dito Sete P o coroné
obedeceu ao estomago e apressou o Zédizefa:
- Bora comer um almoço, que o trem só para
meia hora.
No Restaurante perto da estação o almoço:
carne de sol frita, feijão verde, farofa,
vinagrete e a garrafa com manteiga.
A locomotiva desengatada do trem e o
maquinista seu João da Feijoada puxou o regulador
de vapor e marchou rápido para o depósito. Viagem
feita ele estava apressado para ir pra casa onde
ele sabia já tinha a fila de fregueses com as
panelas na mão para levarem a melhor feijoada de
Senhor do Bonfim.
Em Senhor do Bonfim o trem trocou de
locomotiva e equipagem. Equipe do depósito de
Juazeiro. Maquinista e foguista, dupla antiga e
muito amiga, porém, opostos na paixão pelo
futebol. Maquinista seu Zico do Veneza e o
foguista seu Beto do Olaria. Olaria e Veneza duas
equipes do futebol amador de Juazeiro da Bahia.
Chefe do trem o seu Noé da Cacumbu. Cacumbu escola
de samba do carnaval juazeirense.
Em Bonfim o trem trocou de prefixo e passou a
ser o PC3.
183
Também encostado na plataforma o trem de
prefixo MCS5, o Trem da Grota.
Andando de ponta a ponta da plataforma,
cachimbo no canto da boca, bengala cabo de prata;
o senhor Juiz de Jacobina.
Caminhando ligeiro, arrastando as alpercatas,
batina desbotada o velho padre de Saúde.
Carregando os seus instrumentos os componentes
da bandinha dos “calças curtas” de Miguel Calmon
O grupo barulhento de ferroviários,
funcionários da Oficina da Leste na estação
França,jogadores de handebol.
Um dos camareiros do Trem da Grota contou para
um passageiro:
- É um jogo que um engenheiro das oficinas
andou trazendo do estrangeiro...Jogam lá em França
e no Calmon...Vieram, aqui no Bonfim, mostrar o
dito...É um futebol jogado com as mãos...
- Falando em jogo...O que aconteceu com esse
trem no domingo passado?...Lá em Ibiraúna...
- Foi uma briga por causa de negócio de
futebol...O trem parou em Ibiraúna pra janta e um
grupo de jogadores de futebol que ia de Jacobina
para Miguel Calmon, brigou com o dono de uma
barraca de comida...
Dentro do Trem da Grota o homem de Pau Seco,
debruçado na janela conversando com o Homem do
Rabo Alegre, que estava na plataforma da estação e
dizia:
- Pode ir descansado, logo ai eu já dou o
jeito no coroné...
184
- Você pode tomar o rumo do Pau Seco...Lá você
pode ficar amoitado um tempo...
- Eu to com o pensamento de pular pro outro
lado do São Francisco...Se precisar eu vou pro Pau
Seco, lá tem muita moça bonita?
- Si tem...E tem forró de levantá pó...Sabe o
que é forró do levanta pó?...Lá no Pau Seco a
gente baixa bem a luz do lampião e fica bem
escurinho que é pra dançar agarradinho...
- Na estação da Massaroca esse trem faz o
cruzamento com o trem que vem do Juazeiro...E lá
que é bom de dá o jeito no coroné, sabe? O povo tá
distraído com o movimento e dá pra gente se
escafedê no meio da caatinga.
Agitou-se a plataforma da estação, aproximando
se o momento de sair o Trem da Grota. A negra
gorda sorridente,pés descalços, bolsa com uma alça
rebentada, perguntando:
- Qual é o da Grota?
Era a Raizera de Paiaia, vendia raízes
medicinais na feira. A caatinga é pobre em folhas
mas é rica em raízes.Era mulher muito simples mas
tinha muito prestigio pois era uma grande
rezadeira de reza de fechar corpo. Muito coronel
do sertão, muito político, até gente da policia
procurava ela lá no povoado do Paiaia pra ela
fazer a tal reza. Uma reza difícil feita na hora
de meio dia no meio de umas grandes moitas de
mandacaru. E todas as semanas ela trazia raízes
para vender em Bonfim, só assim ela viajava de
trem e comia no carro restaurante e repetia:
- Bife, batata frita, ovo frito, farofa e
vinagrete, isso é que é comida de gente.
185
O Enfermeiro de Barbacena desesperado de um
lado a outro procurando o Cangaceiro Doido de
Juacema. Finalmente o encontrou sentado num carro
de segunda classe do Trem da Grota falando:
- Vamos pra Jacobina que a Coluna Prestes já
tá em Miguel Calmon...Prestes tá jogando dominó
com o prefeito...
Correria no último minuto; os feiristas das
estações da Linha da Grota que aos fins de semana
vendiam na feira de Bonfim. Gente que era freguês
da Leste e conhecia as maneiras de despachar
mercadorias. Despacha com guia vermelha; ou seja a
mercadoria era pesada lá no destino onde o frete
também seria pago. Ao conferente da origem bastava
apenas descrever na guia os volumes.
Seu Zézinho das Ovelhas de Acuri, com suas
caixas limpinhas de carregar a carne de ovelha.
Era um sonhador,um lutador que teimava em criar
ovelhas na caatinga no povoado de Acuri. Trazia as
carnes e peles pra vender em Bonfim. E como os
trens que vinham de Barra para o Bonfim faziam o
ponto de almoço no Acuri, lá ele vendia
churrasquinho de ovelha.
Seu Bicudo das Taiobas, com suas caixas onde
levava, cará, folha de taioba, maxixe, folha de
bredo e vinagreira. Esse ainda levava o que não
conseguiu vender na feira de Bonfim para vender na
feira de Pindobassu.
Com suas latas de carregar requeijão o Juca do
Requeijão de Caém, como sempre muito falante e
dizendo para o bagageiro do trem:
- Requeijão do Caém o melhor da
região...Requeijão do Caém, melhor não
186
tem!...Domingo que vem quem não vem é eu, domingo
tem corrida de jegues no Caém...
Na calçada da estação o limpo tabuleiro da
Baiana do Acarajé; e Zédizefa encostou pedindo um
enquanto o coroné resmungava:
- Eita! O diabo recém almoçou...
O homem cego, que estava parado perto do
tabuleiro da baiana, bateu com a bengala na perna
do coroné, que se voltou ligeiro. O cego
disfarçadamente levantou os óculos e o coroné
exclamou:
- Eita! Agora você virou cego!
- Coroné Nézinho...To é disfarçando...A
polícia de Bonfim, tá é todinha querendo o meu
pescoço...
- Eita!...Você vai na Micareta de Jacobina e
arranja confusão, vai na Jecada de Miguel Calmon e
arranja encrenca, vem no São João de Bonfim e
arranja briga...Já fez a paz com o delegado de
Saúde?
- Nunquinha... Não quero conversa com aquele
chifrudo... Sabe que o prefeito de Saúde tá
botando chifres nele?
- Você toma cuidado...
- Coroné! Eu vi na Micareta de Jacobina, o
prefeito de Saúde brincando com a mulher do
delegado...
- Tome cuidado...
- Todo o povo viu...Depois eles estavam no Bar
da Leste,na estação de Jacobina, bebendo cerveja e
187
comendo bode assado...Mas coroné, trocando de
conversa, o senhor não tá querendo o meu serviço?
Coroné pensou,respondeu:
- Não.
- Coroné! O senhor dentro desse trem, tá é
correndo perigo...O senhor querendo eu vou junto
com o senhor até Carnaíba...
Coroné olhou o homem montado num jegue e
levando a cabresto seis jegues transportando
tarros de leite, exclamou:
- Eita, que Bonfim é bom de produzir leite...
Aqui é bom de chuva... Ruim de chuva é o
Juazeiro...Não carece de você ir mais eu...
- O coroné é quem sabe...To aqui, é só subir
nesse trem...
- Eu to viajando com a proteção de São
Gonçalo...
- Olha coroné... Em política e jogo o São
Gonçalo enfia a viola no saco...
- Olha...Eu vou precisar de você...Serviço
limpo, serviço de cristão...Agora na eleição a
gente vai trabalhar pra botar um deputado federal
aqui da região...Eu quero você pra ser meu guia
nesse pedaço de mundo que vai daqui do Bonfim até
Peritiba, nessa beira de trilhos...
- Coroné...Tem um porém...Eu já to de
compromisso com um candidato a deputado
estadual...Moço de família organizada; tem um
filho oficial da Policia Militar, tem um filho que
é Juiz de Direito, tem um primo que é padre e é lá
da Diocese de Salvador, outro primo é coronel do
Exército...Mas é gente do seu partido...
188
- Gente de Jacobina?
- Gente de minha terra...Calça Curta...Gente
de Miguel Calmon...
- Eita, você é de Calmon?!
- Sou...Sou calça curta... O senhor pode
contar comigo...
- Pois de hoje a um mês, você venha pra
Carnaíba, que daí a gente já vai começar os
primeiramentes...
- Coroné eu to querendo uma ajuda...
- Pois diga...
- Eu quero uma passagem no Trem da Grota pra
Jacobina...Eu to é sem dinheiro...
- Vamos lá que já compro uma passagem pra
você...
- E coroné... Um dinheirinho pra eu comer na
viagem...O trem para pro almoço na estação de
Fumaça e lá tem um bode frito com vinagrete e
farofa...
- Eita! Você e Zédizefa só pensam em comida...
Um grupo de índias pataxós da estação Missão,
pés descalços, fumando e vendendo artesanato na
plataforma enquanto um camareiro batia palmas de
mãos e avisava:
- Embarca que o trem já vai...
Confusão num dos carros de segunda classe; o
Galista de Itacurubi querendo levar um galo de
rinha dentro do carro e o camareiro dizendo que o
galo viajaria no carro de bagagens.
189
A Jocosa de Jacobina se acomodou no banco e
disse para a Formosa de Campo Formoso:
- Menina, já nessa hora os nossos amigos tão
lá em Jacobina no Bar da Leste, o bar da estação,
bebendo e preparando pra fazer uma serenata quando
a gente descer desse trem.
- Que horas esse trem chega lá?
- Quatro e meia...Daqui de Bonfim até Jacobina
são seis horas de viagem.
Dez horas e cinqüenta minutos o Trem da Grota
saiu da plataforma de Bonfim com licença para
avançar até a estação de Missão.
Preparar para partir o trem de Juazeiro. Um
grupo de homens vestidos de vaqueiro, grupo
barulhento, embarcando, seguiam para a Corrida dos
Vaqueiros de Carrapichel.
Onze horas o trem saiu de Senhor do Bonfim,
apitando e batendo o sino.
Coroné Nézinho sentou contente e o Zédizefa
bateu no ombro dele avisando:
- Coroné...O senhor tem que falá com o Sete
P...
- Eita, Zédizefa...Tava até esquecido...Onde
tá o dito Sete P ?
Zédizefa apontou falando:
- Logo ali...
Coroné Nézinho levantou e foi conversar com o
Pistoleiro de Paulistana. Pediu licença, sentou ao
lado do Pistoleiro e contou:
190
- Eita!...Moço acredita que eu tenho uma
história...Naquela estação que trem parou pros
garimpeiros ajeitá o trilho...Ali onde vendem
passarinhos no espeto...
- Sei...Itareru...
- Parece que é esse nome...A gente já passou é
mais de cem estações...
- Mais de duzentas coroné... Continua...
- Pois um sujeito deu pra eu um
passarinho...Dei o passarinho pro cachorro...O
cachorro mordeu e morreu...Se mordo eu, morro
eu...
- Eh!...Coroné! Esse sujeito tá no trem?
Coroné apontou e respondeu:
- O cabra de camisa vermelha, ali na ponta do
carro.
Pistoleiro de Paulistana olhou bem para o
Homem do Rabo Alegre e depois falou ao coroné:
- Tá bem...Viaje com cuidado.
Coroné voltou para seu lugar e o Pistoleiro de
Paulistana, tirou lápis e papel do bolso; começou
a redigir um telegrama.
O trem chegando na estação de Carrapichel,
muita gente na volta da estação. Dia de festa em
Carrapichel; corrida de vaqueiros. A pista de
corrida embandeirada. Corrida de cavalos com
vários participantes na corrida.
O Pistoleiro de Paulistana desceu e ligeiro
foi ao escritório da estação solicitar:
- Quero passar um telegrama urgente...
191
O trem chegando na estação Catuni. Chamou a
atenção dos passageiros, o grupo de cavaleiros que
estavam perto da estação em fila de duas colunas.
O cavaleiro da frente segurando a imagem de São
Gonçalo. Procissão montada de São Gonçalo.
O Homem do Rabo Alegre levantou e foi para o
WC. Trancou a porta, pegou o revolver e conferiu
as balas. Aproximava-se a hora de liquidar com o
coroné.
Meio dia e quinze, vários urubus voando em
círculos acima da vila de Jaguarari. O trem
chegando e soltando fumaça que subia na vertical.
Na plataforma o senhor subdelegado, revolver
na cintura, acompanhado de dois ajudantes;
vestidos de gibão de couro, cintos, com
cartucheiras, cruzados no peito, na cintura
revolver e punhal, atravessado nas costas o fuzil.
O trem parou em Jaguarari o Pistoleiro de
Paulistana desceu e correu ao encontro do
subdelegado a quem mostrou uma carteira, falsa, de
policial especial de Minas Gerais.
Pistoleiro, subdelegado e os dois ajudantes
subiram no trem e no carro de primeira classe
apontou o Homem do Rabo Alegre dizendo:
- É ele...
Do bolso tirou um papel e entregou ao
subdelegado no mesmo momento que os dois
auxiliares do subdelegado seguravam o Homem do
Rabo Alegre, falou:
- A folha corrida do sujeito...
Desembarcaram o Homem do Rabo Alegre, e junto
o Pistoleiro e o subdelegado. O Pistoleiro falou:
192
- Delegado, o senhor é um homem muito
conhecedor, mas eu vou avisar...Esse aí é cabra
que gosta de reagir à prisão... E esse vai
reagir...
Subdelegado, sorriu, apontou os urubus e
falou:
- Os bichinhos também precisam comer...Com
certeza, ele vai reagir...
No calor do Sertão do Médio São Francisco,
muita gente na estação de Juacema. Irmãos, primos,
esposa, filhos, netos, genros, noras, enfim os
parentes que esperavam ansiosos. A esposa mostrava
o papel:
- Aqui o telegrama...Telegrama do hospital de
Barbacena...Barbacena nas Minas Gerais, dizendo
que ele tá curado...Não é mais doido.
Doido de medo ia o Enfermeiro de Barbacena à
medida que o trem se aproximava de Juacema.
Doze horas e quarenta minutos o trem parou na
estação de Juacema. Parentes curiosos viram o
parente chegar à plataforma do carro, erguer o
braço e gritar:
- Fico contente de vê vocês, mas já quero
sabê...Quem foi que mandou eu lá praquele hospício
de doidos?...
Treze horas e vinte minutos o trem encostou na
pequena estação Flamengo. A moça vendendo quebra-
queixo e o Padre de Petrolina comprou antes que o
Zédizefa.
O Fluminense do Flamengo se despediu do coroné
e pulou contente para o chão onde nasceu,
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Treze e cinqüenta e cinco o trem encostou na
estação do povoado de Barrinha.Embarcou o casal
que vendia café no copo e beiju:
- Pode tomar descansado, depois a gente pega o
copo...A gente vai nesse trem até a Massaroca e
volta no outro...Tem beiju com recheio doce e tem
beiju com recheio salgado...
Quatorze horas e trinta minutos os dois trens
chegando em Massaroca. Os meninos vendendo imbus.
O cheiro de bode assado. Perto dos trilhos o
carrinho de churrasquinho de bode, churrasquinho
passado no vinagrete e enrolado na farofa.
Movimento na estação.
Quinze horas e quinze minutos encostou na
estação da vila de Juremal. Zédizefa avistou um
grupo de conhecidos e correu pra descer.
Coroné Nézinho avistou o velho Manoel Benzedor
e chamou pra ele chegar perto da janela:
- Boas tardes seu Nézinho...
- Amem...Seu Manoel pra semana to vindo aqui
no Juremal, pra mode do senhor reforçar minha
benzedura de corpo fechado...
O trem continuou, Zédizefa embarcou contente:
- Coroné, já no domingo que vem, vai é tê a
festa do bumba meu boi...I eu venho...
- Eita!...Você só pensa em festa e comer.
E camareiro avisando:
- A próxima estação é Carnaíba do Sertão...
De pé recostado na janela, Zédizefa tremia de
alegria, chegavam em Carnaíba.
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Às dezesseis horas o trem parou na estação da
vila de Carnaíba.
Depois de cento e dez horas de viagem e rodar
por cima de trilhos três mil e quarenta
quilômetros o Coroné Nézinho tava de volta no seu
chão.
O trem continuou,os camareiros avisando:
- A próxima é Juazeiro...Juazeiro da Bahia.
O Pistoleiro de Paulistana, levantou,
espreguiçou resmungou:
- Terra quente que braseiro, é o Juazeiro, a
gente chega e sente o que qué, o cheiro bom de
mulhé... Chego no Juazeiro como uma moqueca de
surubim...As melhores cozinheiras do mundo não são
melhores que as de Juazeiro...Vou passar a noite
num brega...Amanhã é todo o dia num trem pra
chegar em Paulistana...
Ainda na estação de Carnaíba o Zédizefa
segurando as malas falou pro coroné:
- Eita...Mãe Taninha de Santo Amaro se
enganou...Ela falou que um ia chegar no caixão...
- Zédizefa...Movimente-se...Você vai dá o
jeito de fazer a oferenda...Ei não gostou da
história, vá reclamar lá em Santo Amaro...Maro
Maro.
FIM.
19 de maio de 2012- Capão Seco- Rio Grande- RS.