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O diálogo entre caiçaras e africanos através da produção e circulação de objetos utilitários e seus símbolos – séculos XIX e XX
CAMILLA AGOSTINI Pós-doutoranda em História – UFF/CNPq
A região de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, teve sua expressão
econômica fortemente ligada à dinâmica portuária e ao comércio para exportação. Os
momentos históricos de maior vulto talvez tenham sido aqueles ligados à produção mais
significativa da cana na região, na segunda metade do século XVIII; e, posteriormente,
com a cafeicultura. Isto considerando os empreendimentos “oficiais”. Não menos
importantes para seus portos, e até mesmo ainda mais, foram as dinâmicas “oficiosas”,
como a do tráfico ilegal de escravos na primeira metade do século XIX.
Estabelecimentos que atuavam como intermediários nessas dinâmicas
“oficiosas” não foram incomuns na costa norte paulista, como pode ter sido o caso do
sítio arqueológico São Francisco, tal como abordado em Agostini (2011). No entanto, o
interesse aqui é perguntar, para além dos portos, engenhos de cana, propriedades
cafeicultoras ou mesmo daquelas com características ilícitas, onde estão as casas
simples, de pau-a-pique ou alvenaria, espalhadas pelas praias, moradias de pessoas
comumente designadas pela historiografia como “livres e pobres”.
Jaime Rodrigues se refere à população “livre e pobre” como o “homem livre,
assalariado, ou que vivia de seu próprio trabalho, sem vínculo constante com um único
patrão, como artesãos, pequenos comerciantes, roceiros, ou pescadores, por exemplo
(RODRIGUES, 2005: 176)”. Esta multiplicidade de personagens que não
representavam esferas do poder político e econômico não era de médios ou grandes
proprietários, ou, no outro extremo, também não era de escravos. Constituía uma
população miscigenada que vinha se formando desde os primeiros contatos de europeus
com grupos indígenas. Diegues (2001: 54) faz uma interessante observação sobre estas
populações cujas economias operavam em um nível doméstico ou artesanal –
atualmente chamadas tradicionais. O autor lembra que elas de fato nunca foram
independentes, isto é, sempre estiveram articuladas aos sistemas hegemônicos, como o
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escravocrata brasileiro ou o feudal no caso europeu. Ou ainda, mais recentemente, ao
próprio sistema capitalista. Importante é pensar, como chama atenção o autor, que estas
formas dominantes desaparecem, mas elas não. Sempre existiram. Historicamente
sempre se readaptando, operando novas articulações.
Desde pelo menos o século XVIII, um grupo de artesãs (no feminino, pois eram
mulheres em sua maioria esmagadora), “livres e pobres”, esteve espalhado por
pequenos núcleos populacionais ou mesmo em habitações mais isoladas nas praias das
proximidades do centro de São Sebastião, como as praias Deserta, Porto Grande, e,
principalmente, a do bairro São Francisco. É de se notar que em mapa de 1861-8
(Figura 1), assim como em outra representação cartográfica anterior, datada de 1819, o
bairro São Francisco aparece com o registro de considerável aglomeração de habitações
– além do Convento de Nossa Senhora do Amparo (construído por franciscanos em
1664 e ainda nos dias de hoje patrimônio da cidade) –, afastado cerca de 8km do centro
de São Sebastião por certo “vazio” ou baixo adensamento populacional.
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Figura 1: Localização do bairro São Francisco, acerca de 8 km do centro de São Sebastião. Marcado em vermelho, a cima, o bairro São Francisco; em laranja, abaixo, o centro de São Sebastião.1
Nesta “aglomeração” certamente conviviam lado a lado inúmeras artesãs que
ganharam fama com sua atividade de “viver de fazer louça”, ou, como foram
conhecidas no século XX, como as paneleiras de São Sebastião. Os muitos fornos que
ardiam como parte do processo produtivo destas artesãs chegaram a dar nome a uma das
principais ruas na época (há quem diga que não se trata de referência a uma rua
específica, mas ao núcleo do bairro de maneira geral) (Figura 2). Sem registros em
placas atualmente, a Rua do Fogo tem seu nome guardado na memória da população
local até os dias de hoje, reportando à atividade dessas louceiras no passado.
Figura 2 – Antiga Rua do Fogo no bairro São Francisco, cidade de São Sebastião.2
Junto às paneleiras também faziam parte daquele pequeno fragmento de
sociedade residente no bairro São Francisco pescadores, roceiros, constituindo
provavelmente uma população caiçara em formação. Para este trabalho cabe ressaltar o
contexto da ilegalidade de locais vizinhos ao bairro, que deveriam receber africanos
após a lei de 1831, e pensar como esta população “livre e pobre”, de pescadores,
1 Arquivo Nacional – F4 MAP 410 / So. Sebastião Island to Bom Abrigo Island (1861-8); Arquivo Nacional – OG MAP 88 / Côte du Brésil – Mouillage de L´Ile Sn.Sebastião (1819). 2 Fonte: acervo do Departamento de Patrimônio da Prefeitura de São Sebastião.
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roceiros, artesãos, entre outros, interagia com esta dinâmica ilícita, assim como com a
forte presença africana e afrodescendente na época.
Rodrigues (2005: 174) indaga se o medo das elites da “africanização” da
sociedade brasileira, frente a uma demografia que impunha este legado de formas
estéticas, em costumes, sonoridades, sabores, formas de articulação política,
religiosidades, etc., teria se dado da mesma forma entre os estratos mais baixos da
sociedade, não afrodescendentes. Observar pequenos detalhes do cotidiano ajuda a
pensar possíveis respostas a esta pergunta. Considerar a sutileza de significados
implícitos em materialidades cotidianas, como, por exemplo, na estética de panelas de
barro que circulavam em cozinhas oitocentistas é o caminho escolhido aqui para
investigar esta questão.
É possível dizer que há uma espécie de senso comum, ou talvez melhor dizendo,
uma tendência entre os arqueólogos – pesquisadores que tradicionalmente se dedicam
ao estudo dessas materialidades – que os utensílios de barro de produção local (ou seja,
não industrializados ou importados: geralmente as cerâmicas não-torneadas e sem outro
tratamento de superfície que não o alisamento) eram produzidos por escravos neste
tempo do cativeiro, particularmente nos contextos das fazendas, engenhos, unidades
domésticas etc. (AGOSTINI, 1998; SYMANSKI, 2006, 2010; SOUZA, no prelo;
SOUZA E SYMANSKI, 2009). Ainda na década de 1980 Dias Jr. (1988) define um tipo
de cerâmica que surge no período colonial, designada pelo autor como neobrasileira,
que apresentaria características europeias (bases planas e alças) incorporadas a
cerâmicas com manufaturas de um legado indígena. Nesta cerâmica o autor chama
atenção ainda para a possibilidade da contribuição africana com as diversas formas de
decoração incisa.
Um questionamento sobre a conceituação deste tipo cerâmico foi bem delineado
por Souza (2008). Cabe aqui apenas ressaltar que independente da nomeclatura
tendenciosa e generalizações que o termo abarca, vêm sendo amplamente aceitos
estudos que reforçam a possibilidade da influência africana na grande diversidade
decorativa proporcionada pelas incisões, ponteados, entre outras técnicas, nos utensílios
de uso doméstico produzidos com o barro no período escravista no Brasil, nos contextos
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mais variados (SOUZA e SYMANSKI, 2009; SOUZA e AGOSTINI, 2012,
SYMANSKI, 2008, 2010; JACOBUS, 1997; AGOSTINI, 1998).
As considerações feitas neste trabalho buscam entender as interações entre certa
população “livre e pobre” e africanos junto com seu legado a partir de utensílios como
estes mencionados a cima. O conjunto de objetos estudado é procedente principalmente
de uma propriedade vizinha ao núcleo de produtoras de panelas do bairro São Francisco,
além de outras nos arredores. O caso, referido no início deste texto – do sítio
arqueológico São Francisco –, foi estudado como um exemplar intermediário na
recepção de africanos recém-chegados, particularmente durante tráfico ilegal de
escravos (AGOSTINI, 2011), assim como nos seus pormenores paisagísticos
(BORNAL, 1995, 2008).
O conjunto de objetos identificados procedente desta propriedade (junto a vários
documentos sobre este caso em particular, que permitiram seu estudo) – servirá,
portanto, de principal amostra para essa região. Comparações com coleções referentes a
escavações vizinhas indicam que se trata de uma amostra compatível com outras
ocorrências nos arredores. 3 Uma matrícula de escravos datada de 1844 respondendo às
exigências de leis sobre a cobrança da meia siza4, junto com levantamentos
demográficos feitos por outros autores, auxilia no estabelecimento de uma estimativa da
presença africana e afro-brasileira em São Sebastião, e, comparativamente, em cidades
como a Corte, ambas no litoral da região sudeste brasileira. Os mapas populacionais
produzidos pela província de São Paulo, também na primeira metade do século XIX,
contribuem para um levantamento das produtoras de objetos tais como os encontrados
3 Todas as coleções utilizadas como base de análise deste texto fazem parte do acervo da Fundação São Sebastião, recuperadas em escavações coordenadas por Wagner Bornal. Detalhes de todo o do material analisado, que em parte resultou nas interpretações apresentadas neste texto podem ser encontrados em Agostini (2011). 4 Meia Siza foi um imposto criado a partir da chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808, que cobrava 5% sobre todas as transações mercantis envolvendo escravos ladinos (nascidos no Brasil). AESP - Coleção das Leis do Império do Brasil de 1842. Tomo V, Parte II. Rio de Janeiro, 1865, pp.201-207. Reimpresso na Typographia Nacional – Arquivo Histórico do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Sebastião-.
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no sítio arqueológico em questão, permitindo traçar um perfil social destas
personagens.5
Neste sentido, com informações sobre as produtoras de panelas e as próprias
panelas será observada a sugestão dos trabalhos arqueológicos sobre a influência
africana na produção destes objetos. No caso deste estudo, contudo, não como uma
influência direta (sendo africanos(as) ou crioulos(as) as pessoas que as
confeccionavam). Este enfoque desvia da possibilidade interpretativa que estabelece
uma linha direta entre os sentidos do que é produzido por interesses “pessoais” de quem
produz (frequentemente incidindo sobre inferências acerca desses objetos como reflexo
de expressões identitárias); mas permite observar dinâmicas simbólicas e formas de
interação social entre diferentes personagens no tempo do cativeiro.
Vejamos, afinal, quem eram essas mulheres que “viviam de fazer louça” na
primeira metade do século XIX, o que elas estavam produzindo e possivelmente em
diálogo com quem ou com o quê. A designação caiçara tem, segundo dicionários
clássicos brasileiros, certa conotação negativa, tais como “vagabundo”, “malandro”,
“desbriado”, “mandrião” (BARBOSA, 1999; AURÉLIO, 1975), tendo sua origem
etimológica também um sentido pejorativo, mas referente às cercas: do tupi, “cerca
tosca” (CUNHA, 1982). Talvez por esse motivo sejam raras as auto referências em
documentos anteriores ao século XX, quando provavelmente este termo ganha novas
significações. Contudo, não serão foco deste trabalho as políticas e processo de
formação identitária desta(s) população(ões), ainda que possa ser uma contribuição para
observar aspectos de sua história e mesmo levantar algumas questões sobre a sua
participação na sociedade escravista, tão pouco considerada academicamente.
Mas, enfim, por que seriam caiçaras as louceiras oitocentistas de São Sebastião
e não, por exemplo, africanas ou escravas de uma maneira geral? Quem permite esta
sugestão são os referidos mapas populacionais. De um total de 168 ceramistas arroladas
ao longo de quase 30 anos, sendo algumas passíveis de serem acompanhadas no tempo,
é possível resumir de forma objetiva e esquemática suas características gerais:
5 Arquivo Público do Estado de São Paulo, maços populacionais, São Sebastião, 1800-1829, microfilme.
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1) 70% das pessoas arroladas como louceiras eram mulheres, maioria viúvas e
solteiras.
2) Maioria esmagadora dos 30% de homens arrolados como chefes das famílias que
“viviam de fazer louça” tinham mulheres na unidade doméstica que podiam
estar executando o serviço.
3) 47,95% eram de cor branca; 44,52% pardas, com apenas cerca de 8% de negras,
sendo nenhuma africana.
4) Majoritariamente nascidas no local (90,6% das ceramistas com a naturalidade
identificada)
5) Podem ser consideradas como pessoas de poucas posses, sendo seu rendimento
anual menor que 15$000 réis em mais da metade dos casos em que o lucro anual
foi registrado, sendo o maior lucro registrado em um caso, de um ganho de
51$200 réis.
6) Muitas vezes contavam com a presença de agregados em seu núcleo doméstico;
53,85% (35 de 65) desses agregados eram menores de 15 anos. Cerca de 73%
das pessoas que viviam como agregadas eram mulheres, assim como os escravos
que eram representados por cerca de 71% de mulheres também.
7) Dentre os 52% dos escravos das ceramistas que tiveram suas naturalidades
registradas treze eram africanos e nove eram crioulos; dentre os agregados 92%
eram naturais da região, mais particularmente da cidade de São Sebastião, assim
como eram as próprias ceramistas em sua maioria.
8) Onze eram as crianças menores de 15 anos registradas como agregadas; quinze
as escravas nesta mesma faixa etária; além dos 216 filhos, netos, bisnetos,
irmãos ou sobrinhos arrolados menores de 15 anos. Dentre os escravos (total de
42 distribuídos entre as 168 ceramistas) 34,09% deles eram crianças, sendo
21,43 entre 0 e 5 anos. Dentre os agregados 27,7% (18 de 65) estavam entre 0
e 5 anos.
Estas artesãs, possuidoras de baixos recursos, brancas e pardas em sua maioria,
herdeiras de uma tradição local por serem ali nascidas, tinham uma peculiaridade.
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Abrigavam em suas unidades domésticas um número considerável de crianças,
incluindo escravas e agregadas em idade improdutiva. O fragmento da história de duas
africanas, Francisca e Catharina (ambas naturais de Angola), possivelmente mãe e filha,
escravas de uma louceira nas primeiras décadas do século XIX, é interpretado em
Agostini (2010). Nesta leitura a incorporação da pequena Catharina no núcleo produtivo
desta louceira, por exemplo, é questionado. A pequena africana tinha apenas três anos
no primeiro arrolamento desta unidade, que contava, além de Francisca – escrava
africana adulta com a mesma naturalidade de Catharina –, com mais três escravas, duas
agregadas brancas e um agregado “negro” em 1813. Francisca e Catharina desaparecem
da relação de dependentes da referida louceira no mesmo ano.
Catharina serve de exemplo para vários outros casos em que artesãs de poucas
posses deveriam estar sustentando crianças cativas, ou no mínimo as abrigando,
ajudando a garantir, como pode ter sido este caso, vínculos familiares escravos. Esta
situação sugere a possibilidade da existência de uma rede de solidariedade entre
determinada parcela de uma população caiçara – de mulheres viúvas e solteiras – e os
africanos e afrodescendentes da região.
Esta interação também pode ser pensada a partir das miudezas produzidas nestas
unidades “doméstico-produtivas” e circuladas até mesmo dentro dos casarões, fazendas,
engenhos, etc., mas sempre, claro, nas suas cozinhas sobre os fogões, nunca sobre as
mesas das salas de jantar. Como mencionado, os próprios utensílios recuperados em
escavações arqueológicas auxiliam neste olhar.
A diversidade de decorações das cerâmicas a partir da incisão, do ponteado,
entre outras técnicas, que como referido anteriormente sugerem alguma influência
africana, forma inúmeras composições estéticas no corpo das panelas encontradas no
entorno no bairro São Francisco.
Nesta diversidade de composições não é incomum encontrar alguns motivos –
ou signos – específicos que são intencionalmente reproduzidos, compondo desenhos
que se repetem de forma idêntica, ou compondo desenhos com as mais diversas
combinações com outros motivos variados, que por sua vez não se repetem, parecendo
uma produção mais aleatória. Esta observação sugere que tais motivos (ou signos) que
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são intencionalmente reproduzidos podem ter sido um referencial específico, carregando
consigo algum sentido ou significado. Um dos motivos que chama a atenção é um
conjunto de semicírculos concêntricos, como o sinal de dispersão de uma onda (Figura
3).
Figura 3 – Motivo de semi-círculos concêntricos Figura 4 – Escarificação Macua,
foto Christiano Jr., segunda metade do século XIX Acervo: Biblioteca Nacional
Esta representação apresenta forte semelhança com uma escarificação
comumente produzida nas faces de homens de um grupo conhecido como Macua, na
região de Moçambique, ao longo de todo o século XIX, segundo apontam fontes
iconográficas, manuscritos e a literatura de viajantes (SOUZA e AGOSTINI, 2012). A
literatura arqueológica é farta no questionamento sobre a possibilidade de identificações
objetivas de artefatos, relacionando-os a identidades específicas associadas, numa
relação um-a-um, como se fosse possível atribuir um rótulo étnico às coisas. As
identidades não são objetivas e estáticas, mas primordialmente relacionais (BARTH,
1970), e o caso em questão ajuda a pensar neste sentido. Ou seja, na subjetividade e
flexibilidade das identidades; na manipulação, incorporação e adaptação de símbolos
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referentes a identidades específicas não apenas contextualmente, mas também no âmbito
desta(s) relação(ões) contextualmente estabelecida(s).
Neste sentido, no caso da possibilidade de mulheres caiçaras – que ao que parece
viviam em estreito diálogo com as “comunidades escravas” – estarem produzindo
signos africanos (no caso Macua) parece interessante pensar em uma situação de
interação social e reinterpretação simbólica, no lugar de uma auto expressão identitária
materializada nas panelas.
Outro elemento deve ser levado em conta nesta dinâmica: a produção destes
objetos (e seus símbolos) estava direcionada para o comércio, portanto, é preciso
considerar quem os adquiria e sua demanda. Isto é, quais as características deste
mercado atendido pelas artesãs de São Sebastião. É notável a demografia do tráfico de
escravos para a região sudeste, que tem para o período após 1811 (até 1850) um
crescimento vertiginoso de 14.993% na importação de escravos da África Oriental
(FLORENTINO 1995: 87), período de recorrência do “signo Macua” em São
Sebastião; quando na região os Moçambiques eram o quarto grupo numericamente mais
expressivo no registro de traficantes e senhores (v. AGOSTINI, 2011).
O motivo específico da escolha do “signo Maua” ou seus possíveis significados
implícitos talvez não sejam possíveis de se saber mais de 150 anos depois. Um tempo
transcorrido, marcado por inúmeras razões para o acúmulo de silêncios, esquecimentos
e transformações. Mas alguns aspectos que podem ter impulsionado estas escolhas
estéticas fazem pensar.
Brancante (1981: 436) observa a entrada de talhas, panelas e potes registrados na
alfândega do Rio de Janeiro, na segunda década dos oitoccentos, procedentes de São
Sebastião. Por sua vez, Azevedo Marques apontou que São Sebastião estava entre os
mais importantes centros de exportação desses utensílios, com a participação das
louceiras do bairro São Francisco (apud. Brancante, 1981: 436). Já nos primeiros anos
do século XX, a Comissão Geográfica do Estado de São Paulo ressalta a existência da
indústria artesanal de utensílios cerâmicos de São Sebastião, registrando a continuidade
desta tradição na região (apud. BORNAL, 2008: 161).
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Para se ter uma ideia do volume exportado por este comércio de miudezas,
através do porto de São Sebastião – fortemente dominado pelas ceramistas do bairro
São Francisco – só no ano de 1830 foram vendidas, inclusive para a Corte, pelo menos
68.000 peças de barro. No período entre 1829 e 1834 o lucro com essas vendas somou
dez contos de réis no total. Sete contos de réis a mais do que o valor gasto na
importação das caras louças europeias; o que significa um grande volume unidades de
peças cerâmicas sendo levadas e distribuídas para outras localidades, já que tinham um
preço bem mais baixo que as estrangeiras.6
Portanto, estas artesãs, particularmente no século XIX, respondiam não apenas a
um mercado local, mas a demandas como a da própria Corte, por exemplo, como
apontado por Brancante. Imagens como a que Mary Karash (2000:19) cria, nas quais
viajantes deveriam achar que chegavam à própria África ao desembarcarem no Rio de
Janeiro, se somam a assertiva de Reis et. al. (2010: 71) de que esta era “a maior cidade
africana nas Américas ao longo da primeira metade do século XIX”.
Ao que parece, as ceramistas caiçaras estavam não só em diálogo com seus
vizinhos africanos e afro-brasileiros, mas também com uma rede e demanda maior, para
além dos limites do singelo bairro São Francisco, influenciadas possivelmente também
pelas manifestações estéticas africanizadas das ruas de cidades importantes como o Rio
de Janeiro que exibiam em profusão roupas, penteados, marcas corporais, sonoridades,
sentidos nada europeus (KARASCH, 2000: 19). Este “lugar comum” de uma estética
africanizada dominante publicamente nas ruas e particularmente nos espaços de serviço
pode ter propiciado um contexto geral no qual seria socialmente aceito que utensílios de
cozinha, por exemplo, também carregassem as exóticas insígnias de uma estética que,
ainda que subalterna, dominava a cidade.
Até mesmo no Brasil Central podiam com facilidade ser encontradas miudezas
com expressões como estas, ou com uma estética reconhecidamente “africana”, como
foram os produtos que “lembravam a África”, observados por Saint Hilaire em uma
venda destinada aos escravos.
6 A exceção do ano de 1832 cuja relação não foi encontrada. APESP, Ofícios Diversos, Ordem C.O.1277 para os anos de 1830-1833; Ordem C.O.1278 para os anos de 1834-1837.
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Se por um lado africanos – ou escravos de uma maneira geral – teriam interesse
em consumir esta estética, ou mais particularmente algumas insígnias com significados
que lhes eram familiares, haveria também a possibilidade de um senso comum (na
esfera pública inclusive) de que estas expressões materializadas em diferentes suportes,
das mais diversas maneiras, incluindo nos utensílios de cozinha, seriam perfeitamente
condizentes com os parâmetros da sociedade brasileira naquele período, receptora de
uma multidão de africanos que chegavam a todo instante do além-mar. Assim, as
panelas do bairro São Francisco acabariam como suportes de uma estética cujo
referencial era africano, reinterpretada na diáspora pela população caiçara, no caso de
São Sebastião.
Esta linha de pensamento parece se reforçar quando se verifica a diminuição ou
mesmo desaparecimento destas decorações no século XX (BORNAL, 1995: 89;
SHEUER, 1982), quando a presença africana já havia sido diluída por mais de
cinquenta anos do fim do tráfico. Souza e Symanski (2009) notam o desaparecimento da
decoração ao longo do tempo, em Mato Grosso, paralelo ao processo de crioulização na
região, ratificando a influência africana nessas formas de decoração da cerâmica
utilitária.
Figura. 5 – Paneleiras em São Sebastião, no início do século XX – diversidade de formas dos vasilhames.
Fonte: Acervo do Departamento de Patrimônio da Prefeitura de São Sebastião
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Enquanto a decoração passa a ser menos expressiva no século XX, as formas
dos utensílios parecem ser mais variadas (SHEUER, 1982), aproximando-se de peças de
inspiração europeia, tais como chaleiras e outras peças com alças. Seria importante a
recuperação de amostras datadas da segunda metade do século XIX, observando os
diferentes momentos deste processo. É relevante ressaltar a carência de pesquisas
arqueológicas para o período/contextos do pós-abolição, por exemplo, assim como a
pouca atenção deste campo de pesquisa em identificar a experiência de libertos.
O foco em personagens liminares na sociedade, como foi o caso de muitos
libertos, categorias sociais menos valorizadas nas pesquisas, como algumas incluídas na
chamada população “livre e pobre” – que precisam sempre de uma definição contextual
–, caso de comunidades caiçaras em formação, entre outros, permite a valorização de
múltiplas experiências na sociedade escravista brasileira. Parece assim relevante o
cruzamento destas experiências, considerando a pluralidade de personagens que
conviviam e negociavam suas vidas lado a lado, no cativeiro ou na liberdade. Foi neste
sentido que este trabalho tentou contribuir.
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