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O Diário de Aurora Campeã

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O Diário de Aurora

Campeã

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JaneiroNas nuvens

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Sexta-feira,5 de janeiro

Está tudo bem! (Se não me tivesse tornado hiperponde-

rada em relação ao aquecimento do planeta e se não tivesse

a preocupação de salvar as árvores, encheria esta página de

pontos de exclamação para ilustrar a verdadeira intensidade

da minha felicidade.) Está tudo tão bem, que me pergunto

se será possível sentir-me assim tão feliz! A ponto de não

ter nada para contar. Nada. Agora faço parte daquele tipo

de pessoas que não têm nada para contar. Faço parte de um

tipo de pessoas. Eu! Isso é algo novo na minha vida. Eu, que

sinto tantas vezes que os extraterrestres se esqueceram de mim

na Terra, após uma viagem intergaláctica (sim, sim, tirando

o facto de o E.T. ser mesmo feio, identifiquei-me durante

muito tempo com esta personagem. É uma tristeza. Se tinha

de me identificar com uma personagem de um filme, seria

preferível reconhecer-me na personagem feminina que beija

o Chad Michael Murray, o Daniel Radcliffe ou o Zac Efron,

mas pronto… tudo isso pertence ao passado, porque agora

faço parte de um tipo de pessoas! Iupiiii!).

Esta manhã, quando acordei, liguei a minha nova tele-

visão. (A que a minha mãe me ofereceu no Natal, para pôr

no meu quarto. Coloquei-a exatamente à frente da minha

cama, o que é muito prático.) E apanhei mesmo o videoclipe

que queria ver! É um videoclipe superbom! Mas não sei de

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que grupo é, pois, sempre que o vejo, falho o momento em

que anunciam o nome do grupo, e depois parece que há sem-

pre alguma coisa que me distrai quando o nome reaparece,

lá mais para o fim do videoclipe. (Só tem um defeito: a rapa-

riga do videoclipe tem um peito bastante generoso e per-

feito, e isso não é representativo de todas as raparigas na vida

real. Mas é apenas uma questão de gosto…) Enfim, aguardo

sempre impacientemente os videoclipes deste grupo (não o

peito, esse, continuo à espera dele desde os meus onze anos e

não há meio de aparecer…). Quando carreguei no botão do

on e o videoclipe que eu queria ver apareceu no ecrã, soube

que seria um dia fantástico. Que a vida me dava exatamente

o que eu queria, no momento em que eu queria. Iupiii! Que

poderosa!

9h54No momento exato em que, tenho a certeza, ia final-

mente ver o nome do dito grupo aparecer na televisão, a

minha mãe entrou de rompante no meu quarto, para me

anunciar que hoje tenho consulta no dentista.

Bom, é evidente que nem tudo podem ser rosas na vida

das pessoas-felizes-que-não-têm-nada-para-contar. É nor-

mal que, na vida desse tipo de pessoas (no qual me incluo),

existam pequenas contrariedades, como sermos incomoda-

das no momento em que íamos ficar a conhecer o nome do

nosso novo grupo preferido e/ou sermos obrigadas a ir ao

dentista.

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Talvez seja, se é que posso fazer uma pequena crítica à

minha vida presente absolutamente perfeita, um pequeno

inconveniente causado pelas férias que a minha mãe tirou

durante esta época natalícia. Ela queria mesmo que resolvês-

semos tudo antes do regresso ao trabalho e às aulas. «Tudo»

significa: dentista para mim, ginecologista para ela, mercearia

para ambas, etc., etc. Isto significa também que insistiu para

fazermos uma limpeza geral da casa e que me obrigou a limpar

o meu quarto. Agora que está tudo limpo e arrumado, tenho

dificuldade em encontrar o que preciso. Tentei explicar-lhe a

minha teoria do caos organizado (teoria: eu encontro tudo o

que preciso no meu próprio caos, porque tenho um sistema de

não-arrumação que percebo perfeitamente e, quando arrumo

o quarto, procuro as minhas coisas), mas ela limitou-se a olhar

para mim e a responder-me que não tinha lógica nenhuma

(segundo a lógica dela, pensei eu, mas não lhe disse) e que ia

ter de arrumar o quarto na mesma. A minha ameaça de con-

tactar a Comissão de Proteção de Menores não a preocupou

minimamente, dado que ela começou a rir-se, dizendo para

lhes ligar, porque eles estariam certamente de acordo com ela,

se fossem lá a casa ver o meu quarto. (Puffffff!) Se eles estives-

sem de acordo com a minha mãe, quer dizer que a designação

de «Comissão de Proteção de Menores» é totalmente inade-

quada.

Mas pronto, esta crítica é de somenos importância, pois

divertimo-nos imenso durante a época natalícia. E longe de

mim a ideia de querer eclipsar tudo isso.

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Começámos por festejar o Natal em casa da minha avó

Laflamme, a mãe do meu pai, que me deu uma prenda fabu-

losa. Deu-me fotografias do meu pai para criarmos juntas um

livro de recortes sobre a vida dele. Não me apaixonei pela

arte de reunir recortes, mas tenho de admitir que criei (com

a ajuda da minha avó, da minha mãe e do namorado dela, o

François) o livro de recortes mais bonito do mundo!

Cortámos as fotografias do meu pai, colámo-las e puse-

mos imensas decorações a toda a volta. É estranho que uma

coisa feita em honra de alguém falecido seja tão viva. Foi

o François quem fez este comentário. E eu não podia con-

cordar mais com ele. Aliás, este comentário deixou-me bas-

tante pensativa. E fez-me tomar a seguinte decisão: quero

conservar uma imagem viva do meu pai. Como sempre fiz.

Recusando deixar-me levar pela tristeza que a sua partida

me causou.

Foi por isso que, de comum acordo, eu, a minha avó e a

minha mãe deitámos fora todas as fotografias onde ele estava

no caixão e as do enterro. No início, o François perguntou-se

se não nos iríamos arrepender, mas nós achamos que não nos

vamos arrepender.

Foi também por esse motivo que, quando a minha

avó me propôs ir pôr umas flores no túmulo do meu pai

(o que eu não voltei a fazer desde a sua morte, ou seja, há

seis anos, quase sete) no cemitério da igreja, mesmo à frente

da casa dela, eu recusei. O túmulo dele não me diz nada.

É apenas uma pedra. O meu pai era muito mais do que isso.

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E ainda é. É uma recordação. E mesmo que em tempos tenha

minimizado a importância desta morte, compreendi ampla-

mente o seu significado ao fazer o livro de recortes. E as ima-

gens dele que escolhemos são tão bonitas! Muitas vezes, ao

virarmos as páginas, desatamos a rir, de tão engraçada que

ficou a nossa montagem.

Enquanto fazíamos o livro de recortes, a minha mãe

dava imensas ideias. Foi a primeira vez que a vi assim, desde o

falecimento do meu pai. Ela não chorou. O pescoço dela não

ficou vermelho. Ela, que passava a vida a chorar e se recusava

a falar sobre este assunto, contou histórias deliciosas que eu

nunca a tinha ouvido contar.

Como, por exemplo, esta: eles estavam de viagem na

Flórida, antes de eu vir ao mundo. A dada altura, passaram

perto de uma árvore, que o meu pai achou que tinha uma

forma original, e pediu-lhe para tirar uma fotografia, com

ele encostado à árvore. Enquanto a minha mãe tirava a foto-

grafia, centenas de formigas treparam pelo meu pai acima,

que deu um salto para longe da árvore, sacudindo-as com

as mãos. A árvore estava pejada de formigas! E eles tiveram

um dos maiores ataques de riso das suas vidas! AH, AH,

AH, AH, AH, AH, AH, AH! Superengraçado! É mesmo o

meu estilo! (Perguntei à minha mãe porque é que ela não

tinha tirado uma fotografia do meu pai com as formigas, e

ela disse-me que tinha sido incapaz, porque não conseguia

parar de rir.)

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E esta não foi a única história que tive a honra de ouvir.

Ouvi uma série delas! Foi… digamos… mágico.

14h50Estou deitada na cadeira do dentista. A higienista oral

raspa-me vigorosamente os dentes com uma espátula, ilumi-

nada por um candeeiro com uma luz demasiado brilhante. Na

sala ao lado, um instrumento faz um barulho «zuiiii, zuiiiiii»,

que me dá cabo dos tímpanos.

Tivemos de esperar uma hora. E eu fui obrigada a ler

revistas antigas sem interesse nenhum, já meio rasgadas.

Detesto ir ao dentista (não por causa das revistas, mas sobre-

tudo porque não é… digamos… uma atividade agradável).

Ainda por cima, acho que aqueles instrumentos fazem um

barulho agudo. (Ninguém percebe esta minha expressão, é

como quando a língua toca em algo metálico e faz uma espé-

cie de guincho.) Como se não bastasse, os higienistas orais

armam-se sempre em parvos comigo. Ralham-me sempre,

porque não uso suficientemente o fio dentário e blá, blá, blá.

E tenho sempre cáries.

14h52Higienista oral: Passaste umas boas festas?

Isto é outro problema. Fazem conversa quando temos a

boca bem aberta, cheia de instrumentos lá dentro. Esforço-me

por responder com um som que quer dizer sim:

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– Iimm.

Se eu não tivesse os dedos dela na boca, poderia ter res-

pondido algo mais elaborado. Tipo: «Fui a casa da minha avó

Laflamme. Depois fui visitar os meus avós Charbonneau.

E fomos a casa da família do François.» Poderia ter falado da

minha relação com o François, com quem estive sempre de

pé atrás, porque pensava que era diabólico, mas que aprendi

a conhecer e que, afinal, até acho bastante simpático. Mas,

pronto, tenho de admitir que achei que três Natais era mui-

tíssimo cansativo… Voltámos para casa ontem e tenciono

descansar no fim de semana.

Mas não posso dizer nada disto à higienista, seria dema-

siado complicado, dada a falta de disponibilidade da minha

língua e a impossibilidade de fechar a boca para articular as

letras b, f, i, m, p e v.Higienista oral: Isso é ótimo. Com a tua idade (olha para

a minha ficha) – tens quinze anos, não é? – já deves ter um

namoradinho, não?

Lancei-lhe um olhar, mas não lhe respondi. Por que

razão os adultos usam o diminutivo «inho», sempre que que-

rem perguntar se temos namorado? Pior do que isso, porque

é que querem conhecer esse pormenor da minha vida privada

(não o facto de o meu namoradinho ser «inho» ou não, mas

o facto de eu ter ou não um namorado, ponto final)? Sin-

ceramente, é superenervante. E faz-me ranger ainda mais os

dentes do que o «zuiii, zuiii» do instrumento que provém da

sala ao lado.

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Bom, ela não tem absolutamente nada que ver com

isso mas, no que toca à minha vida amorosa, está tudo

bem. (Siiiiiiiiiiiim!) Antes das festas, aproximei-me muito

do meu ex, o Nicolas, de quem sou agora amiga. Aliás,

durante as férias de Natal, trocámos alguns e-mails (estri-

tamente amicais) para desejar um «Feliz Natal» (amigavel-

mente).

E, desde aí, sim, tenho um talvez-namorado, o Iohann.

Bom, não dissemos isso, assim, com todas as letras, mas

falámos várias vezes ao telefone durante as férias de Natal e

ele disse-me coisas muito simpáticas (iuuuupiiiii). Antes do

Natal, beijámo-nos.

O que é mais estranho é que eu cheguei a pensar, no

início do ano letivo, que ele era ladrão. Pufff! Foi mesmo

uma parvoíce da minha parte, mas foi a minha mãe que

me meteu essas ideias na cabeça! Quando mudei para uma

escola pública, porque a minha escola privada fechou por

falta de inscrições, a minha mãe começou a ficar nervosa e

a pensar que eu podia ser vítima de intimidações e de rou-

bos por parte de certos alunos. E o Iohann roubou-me um

casaco de malha, empurrava-me contra os cacifos e tudo, e

eu confundi os métodos de sedução dele (pouco ortodoxos,

admito) com ladroagem. Dah! Sou mesmo tolinha! Princi-

palmente se pensarmos que ele me roubou o meu casaco

de malha para lhe dar sorte durante um jogo de futebol

(que fofooooo)… mas pronto, eu não percebi até ele me

explicar. (Admito que nunca teria conseguido chegar a esta

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conclusão sozinha, sem uma explicação da parte dele…

O mundo masculino ainda tem demasiados segredos para

mim.)

Resumindo, durante as férias de Natal, ele telefonou-me

imensas vezes. É completamente diferente do meu ex, o

Nicolas. Ele também me beijou antes das férias do Natal

(no ano passado, o meu primeiro beijo, no qual penso por

vezes com saudade…), mas não tínhamos trocado núme-

ros de telefone e o Nicolas não me ligou durante as férias.

Cruzámo-nos por acaso e fui eu que lhe liguei (depois de

ele me ter dado o número, mas fui eu que lhe liguei). Este

ano, quando entrei para a mesma escola que o Nicolas, des-

cobri que a nossa história não tinha qualquer importância

para ele, pois ele tem… digamos… um «amorómetro» muito

ativo. (Tradução: ele passa de uma namorada para a outra em

tempo recorde.)

Como só cheguei ontem da minha maratona de Natal,

ainda não o voltei a ver, mas a ideia é encontrarmo-nos ama-

nhã. Na verdade, não se trata de um encontro propriamente

dito, mas ele disse-me que tinha um jogo de basquete (ele

joga futebol e basquete, o que é superdesportivo e fixe!) e eu

disse-lhe que ia lá vê-lo. A Kat aceitou ir comigo.

– Auuuuu!

A higienista oral, que me raspa os dentes com um

pequeno instrumento pontiagudo, acabou de me magoar

mesmo a sério na gengiva! E pensar que aceito que me

façam isto voluntariamente! (Suplício imposto pela minha

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mãe, diga-se em abono da verdade.) Lancei-lhe um olhar

ameaçador.

Higienista oral: Toma, morde aqui. (Ela mete-me um

tubo na boca para aspirar a saliva e recomeça com a espátula.)

Tu não usas o fio dentário, como eu te disse para fazeres na

última vez?

Eu: Eh… Nãw é berdade.

Porque será que as higienistas orais nos fazem pergun-

tas quando estamos numa posição em que é absolutamente

impossível falar?

Higienista oral: Eu disse-te que tinhas de usar o fio den-

tário mais vezes. Isso evitaria que tivesses uma acumulação

tão grande de tártaro. Talvez devesses comprar uma escova

de dentes elétrica. Limpa muito mais a fundo e evita imensos

problemas, como a placa, o tártaro e as cáries.

Eu: Entãw pwr que raiw bendem as wutraz?

Higienista oral: O quê?

Eu: Pwr que raiw bendem as wutraz?

Higienista oral: O quê?

Ela tira o instrumento da minha boca.

Eu: POR QUE RAIO VENDEM OS OUTROS TIPOS

DE ESCOVAS DE DENTES?!!!!!!!

Higienista oral (voltando a pôr o instrumento dentro da

minha boca para continuar a trabalhar): Calma. Vendem-nas,

porque a escova de dentes elétrica ainda não é muito apre-

ciada. Há pessoas que ainda não as sabem utilizar ou, então,

não gostam das vibrações.

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Eu: Ew nãw gwztw das bibraçwez.

Higienista oral: Bom. Tens de usar mais vezes o fio den-

tário. Pelo menos, uma vez por dia.

Eu: Uma bez pwr dia? Nwnguém faz izzw!

Empurro a mão dela para poder falar, articulando todos

os sons possíveis que uma boca pode articular.

Eu: Na verdade, quando uso o fio dentário todos os

dias, fico com a impressão de que o fio não tem nada. É um

bocado… desmotivador. Mas quando fico uma semana sem

o usar, o fio fica cheio de coisas, por isso, parece-me que vale

a pena.

Higienista oral: Bah!

Eu: Mas a senhora faz isso todos os dias?

Higienista oral: Claro que sim! Mesmo quando chego a

casa às 4 horas da manhã!

Eu (perplexa): É obrigada a dizer isso porque trabalha

para um dentista?

A higienista oral abana a cabeça (isso quer dizer que tenho

razão, que estou errada ou que a minha pergunta não merece

sequer resposta? Impossível de adivinhar), faz-me voltar a abrir

a boca e continua a raspar o tártaro. A seguir, acrescenta:

– Se queres ter dentes saudáveis, tem de ser.

Nota para mim mesma: Meter os dedos na boca de

uma pessoa para a impedir de falar é uma boa maneira de ter

a última palavra. Não esquecer (apesar de ser muito estranho

da minha parte, se utilizasse este truque no meu dia a dia).

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14h57A higienista oral continua a tirar-me o tártaro. Estamos

em silêncio há um minuto, quando acrescento:

– Maz e ze eu fwr… digamwz… acwmpar?

Higienista oral: Hã?

Eu: Az pezzwas uzam w fiw dentáriw quwndw vbãw

acwampar?

Higienista oral: Olha, ouve, talvez não sejas obrigada a

levar o fio dentário, se fores acampar.

Eu: Maz e ze eu fwr acwampar… digamwz… durwante

duaz zemanaz?

Higienista oral: Tu gostas muito de acampar, hã?

Eu: Eztá dwida? Ew deteztw bazer campizmw!

Higienista oral: Começa mas é a utilizar o fio dentário!

Depois disto, ela parou completamente de falar comigo,

e magoou-me tanto com a espátula, que tive vontade de lhe

morder. Principalmente porque estava na posição ideal. Mas,

se eu lhe mordesse, ela podia defender-se com a espátula.

Hum… É capaz de não ser boa ideia.

15h15Depois desta dolorosa prova, vou ver o dentista. Um

homem grisalho, de olhos azúis, com uma camisola de médico

branca, mesmo muito branca. (Tenho a certeza de que é fos-

forescente.) A minha mãe está ao meu lado.

Dentista: Bom dia, Aurora! Então, ouvi dizer que a tua

higiene dentária deixava muito a desejar…

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Eu: Bem, quanto a isso… Francamente! É um exagero!

Dentista: Vamos ter de marcar uma consulta, porque

tens uma cárie.

Eu: É mesmo necessário marcarmos consulta este ano?

Acho que preferia esperar que houvesse progressos tecnológi-

cos. Tipo, um líquido que fizesse desaparecer a cárie, ou talvez

mesmo um laser. É que, honestamente, há avanços tecnológi-

cos em todas as áreas, mas tenho a impressão de que, a nível

dentário, é bastante lento. Nada de especial. Em qualquer caso,

dado que não há nenhum avanço há… imenso tempo… pre-

feria esperar, porque deve estar prestes a acontecer. Cheira-me.

Vejo que a minha mãe encolhe os ombros à higienista

oral, como se lhe dissesse que não é responsável pelas minhas

palavras.

Enquanto o dentista fala comigo, sem que eu preste

muita atenção, a higienista oral vasculha uma gaveta e tira

uma escova de dentes (não elétrica) e duas caixas de fio den-

tário (o que me parece algo agressivo).

Eu: Se a escova de dentes elétrica é mais eficaz do que as

outras escovas de dentes, porque é que oferecem uma escova

de dentes não elétrica como prenda?

Higienista oral: Gostamos disto. Que os nossos clientes

voltem. Aliás, tu vais voltar muitas vezes, se não começares a

utilizar o fio dentário.

Eu grito-lhe (exclusivamente por telepatia) que a detesto.

Acho que ela me responde (sempre por telepatia) que é recí-

proco.

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Enquanto começo a ser assombrada por uma imagem

de mim própria com os dentes amarelos e pretos, a higienista

oral explica à minha mãe que eu tenho mesmo de começar

a usar o fio dentário mais vezes ou, pelo menos, a fazer uma

boa higiene oral, por causa do ph da minha saliva, que parece

ser mais ácido do que o da maioria das pessoas, ou algo assim.

15h45No carro, com a minha mãe.

Passo a língua pelos dentes, que estão todos lisinhos.

Mãe: Compreendeste o que ela disse? Espero que come-

ces a usar o fio dentário mais vezes.

Eu: Parem de me aborrecer com a história do fio dentá-

rio! Já chega! Já percebi.

Mãe: Com que então, tens a saliva ácida?

Eu: Ei! A culpa não é minha, hã?! Tu é que me fizeste!

Ninguém te mandou pôr-me neste mundo, para depois te

queixares de que eu tenho a saliva ácida e que isso te vai

sair caro em cuidados dentários! Lembro-te que tenho o teu

ADN! Estas coisas são genéticas!

Mãe (a rir): Não é preciso enervares-te, minha menina.

Estava a brincar! (Ela olha para mim.) De qualquer modo,

pelo que eu percebi, não são os cuidados dentários que me

vão sair caros, mas sim o fio dentário! Ah, ah, ah!

Eu: ARRRRRRGGGGGGG!

A minha mãe chora de tanto rir (acho que ela é mesmo

um público fácil de conquistar com as suas próprias piadas),

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mas (apesar de me sentir meio insultada) vê-la rir-se assim

tanto, também me faz rir.

Nota para mim mesma: No futuro, nunca mais associar

o prazer de ver um bom videoclipe com a certeza de que terei

um dia perfeito.

Nota para mim mesma n.º 2: Na vida, tentar encontrar

uma causa mais consistente do que a de tentar convencer as

pessoas a usar fio dentário, tipo a paz no mundo, ecologia ou

a justiça social.

Apontar na agenda (urgente): Tentar revolucionar o

mundo com novas tecnologias mais avançadas no domínio

dos cuidados dentários.

Sábado,6 de janeiro

Neva, neva, neva. É estranho, pois, até ontem, ainda

não tinha voltado a nevar desde dia 13 de novembro. A neve

tinha, finalmente, acabado por derreter. Parece que todos

os esforços que nós fizemos (e por «nós» entenda-se os seres

humanos, apesar de não excluir de forma alguma os extrater-

restres – se eles existem, talvez também se tenham esforçado,

mas, dado que a tecnologia não permite entrar em contacto

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com eles, não podemos saber exatamente que esforços terão

feito) para contrariar o aquecimento global deram finalmente

frutos! Ufa! Escapámos de boa!

11h34Liguei ao Tommy para ver se queria vir assistir ao jogo

de basquete comigo e com a Kat, mas o pai disse-me que ele

só voltava amanhã de casa da mãe (que mora superlonge).

A seguir, liguei ao Jean-Félix (o melhor amigo do Tommy,

com quem nos damos desde que eu e a Kat andamos na

mesma escola que eles) para o convidar a juntar-se a nós,

mas ele já tinha um programa familiar qualquer. Desligou

com um «Até segunda-feira», o que me provocou uma revo-

lução na barriga, ao pensar que as férias terminam já ama-

nhã.

14h01A Kat veio ter a minha casa para irmos ver o jogo de bas-

quete. Ela disse que fazia isso por mim, porque não gosta por

aí além de ver jogar basquete (bom, eu também não, mas o

Iohann vai jogar e eu tenho de partilhar os interesses do meu

futuro-se-calhar-já-namorado).

Chegamos ao ginásio da escola e a Kat diz-me:

– Seja como for, espero que saibas que faço isto por ti.

Vir à escola dois dias antes do começo das aulas… no fim de

semana, ainda por cima!

Eu: Obrigada… És a minha melhor amiga!

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14h15Um pouco mais à frente, vemos três raparigas que con-

versam, a rir. É a Frédérique Lalonde, a Nadège Potvin-Mar-

tineau e a Roxanne Gélinas, as amigas do Iohann.

A Frédérique é loira, com grandes madeixas cor-de-rosa.

A Nadège tem o cabelo preto, os olhos pretos e um ar duro,

enquanto a Roxanne é ruiva (a única das três que tem o cabelo

da sua cor natural). Estas três raparigas vestem-se com imenso

estilo. Olho para elas e sinto-me um bocado mal vestida. Para

assistir a um jogo de basquete, optei por um estilo bastante

descontraído, enquanto elas estão superbem vestidas (talvez

eu devesse ter feito o mesmo, já estou arrependida…).

Eu: Parecem fixes, as amigas do Iohann.

Kat: Achas? Bah… parecem umas catatuas, na minha

opinião!

Eu: Hã?

Kat: Na escolha das cores, nos sons agudos, na falta de

massa cinzenta.

Eu: Tens queda para dizer mal das pessoas.

Kat: Bem, as pessoas que se acham melhores do que as

outras enervam-me. Desde que chegámos, ainda não pararam

de olhar para nós, de dizerem segredinhos e de se rirem.

Eu: Não estamos num daqueles filmes de domingo

à tarde, Kat. Deve ser coincidência. Deve haver um cartaz

engraçado algures atrás de nós.

Viro-me e vejo apenas os bancos e um cartaz da festa do

Dia das Bruxas, que ainda não foi retirado.

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Kat: O Jean-Félix era amigo da Nadège e contou-me

que, quando ela se começou a dar com aquele grupo, no

oitavo ano, deixou de lhe falar.

Eu: Que chato!

Kat: Pelo menos, nós somos as melhores amigas do

mundo para todo o sempre.

Eu: Sim, isso nunca aconteceria connosco.

Relembro a única zanga que eu e a Kat tivemos. Foi no

ano passado. Revelei (a um público restrito, apenas porque

estava superorgulhosa dela e me escapou) que a Kat era boa

no «Dance, Dance Revolution», dado que tinha treinado

com o jogo «Britney Spears Dance Beat» na Playstation.

Como ela me tinha pedido especificamente para não falar

no assunto, ficou zangada quando eu revelei esta informa-

ção de natureza ultrassecreta. A Kat sempre teve uma série

de «regras» (que eu considero demasiado exageradas), um

código de conduta que devemos manter à frente dos rapa-

zes, diferente do que temos quando estamos apenas as duas,

para evitar que nos considerem totós. E, segundo ela, o

«Britney Spears Dance Beat» é um jogo «vergonhoso», por

isso eu era a única pessoa que podia saber que ela tinha o

jogo em casa. Felizmente, fizemos as pazes. Porque a Kat

é a minha melhor amiga. E agora, mesmo que ache que

determinado segredo não merece ser segredo, fico calada.

É sagrado.

Apesar de tudo, estas três raparigas parecem mesmo

fixes. São hiperpopulares na escola e devem ter uma vida

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muito fixe, superpreenchida. Têm imensos amigos. Toda a

gente as adora. Nunca passam despercebidas. Toda a gente

repara nelas na escola. Deve ser especial… essa sensação de

que todos nos conhecem e que quem não nos conhece gosta-

ria de nos conhecer.

14h23Kat: O Iohann vem ver-te antes do jogo?

Eu: Ehhh… Não sei.

Kat: Foi ele que te convidou?

Eu: Bem… ele disse-me que tinha jogo. Não foi exata-

mente um convite.Kat: Mas tu andas com ele?

Eu: Acho que não. Beijámo-nos e ele ligou-me algumas

vezes. Mas… não tivemos tempo de nos encontrar e não vol-

támos a falar sobre o… tu sabes.

Kat (a apontar para a direita): Ele está ali!

O Iohann entra no ginásio, vestido com umas bermudas

e uma T-shirt com o nome da escola nas costas.

Eu (um bocadinho excitada, a murmurar ao ouvido da

Kat): Age como se nada fosse.

Kat (a murmurar): Bem, somos para aí uns quinze alu-

nos suficientemente doidos para vir à escola antes do final das

férias. De resto, só cá estão os pais. Lamento desiludir-te, mas

é difícil agir como se nada fosse.

Eu: Faz de conta que estou a contar-te uma piada super-

engraçada.

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Kat: Hã?

Eu: Ri-te!!!!!

A Kat começa a rir demasiado alto. A Frédérique, a

Nadège e a Roxanne viram-se para nós de repente e eu baixo

a cabeça.

O Iohann aproxima-se de mim.

Ele: Oi.

Eu: Oi.

Ele: Foi fixe teres vindo.

Eu: Iá, fixe.

E isto, por mais ridículo que pareça, foi o resumo da

nossa conversa antes de ele se juntar à equipa para o início

do jogo.

14h45Durante o jogo, faço uma lista de todas as coisas inte-

ligentes que poderia ter respondido a «Foi fixe teres vindo».

«Adoro basquete e estou desejosa de ver o teu talento!»

(E rematava com um piscar de olhos malandro.)

«O prazer é todo meu! É importante apoiar a equipa

da escola!» (E rematava com um sinal de fixe com o polegar

levantado.)

«Espero que jogues bem e que eu não tenha feito este

caminho todo para nada.» (Hi, hi! Nunca diria uma coisa

destas!)