O Discurso Do Jornal Jose Rebelo

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O DISCURSO DO JORNAL

JOS REBELO

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Ao Rui Andr

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APRESENTAOEste livro , antes de tudo, a expresso de um investimento terico que se iniciou em 1983 quando, ento na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, decidi criar uma cadeira intitulada Discurso dos Media para o terceiro ano da Licenciatura em Comunicao Social. A mesma temtica foi desenvolvida a partir de 1991, agora j no Instituto de Cincias do Trabalho e da Empresa, no mbito das cadeiras Sistema dos Media e Prticas Discursivas, do Mestrado em Comunicao, Cultura e Tecnologias da Informao, e do curso de Ps-graduao em Jornalismo, lanado conjuntamente pelo ISCTE e pela Escola Superior de Comunicao Social. Ao preparar uma dissertao de Doutoramento em Sociologia, os instrumentos de anlise discursiva que, entretanto, tinha aperfeioado, revelaram-se de importncia capital: forneceram-me o quadro metodolgico de natureza transdisciplinar da sociologia, linguistica, semitica, pragmtica -, adequado ao estudo da propagao e massificao de um discurso ideolgico no democrtico como o do salazarismo 1. Por

A dissertao de Doutoramento denominada Contribuio para o estudo das prticas discursivas do salazarismo foi defendida, no ISCTE, em Janeiro de 1998, e editada por Livros e Leituras, em Novembro do mesmo ano, com o ttulo Formas de Legitimao do Poder no Salazarismo.

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isso, grande parte dos conceitos apresentados nas pginas que se seguem foram ilustrados com exemplos retirados do corpus Salazar. Mas este livro , tambm, a expresso da minha paixo pelos jornais. Muito jovem entrei no Repblica como jornalista profissional. O Repblica de Carvalho Duarte e de Artur Ins. Mais tarde, exilado em Frana, entrei no Le Monde. Como enviado especial, primeiro, e correspondente permanente, depois, cobri para este jornal os acontecimentos polticos em Portugal durante uma boa quinzena de anos. E, sobretudo, vivi experincias jornalisticamente inesquecveis durante o chamado Vero quente de 1975. Quando prevalece o princpio da leitura rpida. Da leitura em diagonal. Quando prevalece o princpio da informao em simultneo, prprio, para dizer como Hermnio Martins, de uma sociedade tecnomrfica. Quando ao tempo diferido se sobrepe o tempo directo. Quando cada um de ns avassalado por essa presso do instante, apetece parar. Para reflectir. Numa das suas crnicas publicadas no Pblico, Eduardo do Prado Coelho dava conta de uma revista francesa significativamente chamada Don Quixote que propunha, num dossier especial, solues para um futuro mais lento. Ficmos assim a saber que, no Peru, o direito sesta est legislado desde os anos oitenta e que uma tentativa de suprimir esse direito provocara, de imediato uma greve da funo pblica. Ficmos igualmente a saber que na ultra tecnolgica Califrnia, a Fundao Long Now programa constituir uma Biblioteca do Tempo Longo. E que, na Holanda, se fundou a Sociedade europeia para a Cronobiologia que defende a causa dos ritmos biolgicos. A partir da Prado Coelho formulava diversas sugestes quixotescas, nomeadamente: que o minuto de silncio passasse a ter dois minutos, que se incrementasse o turismo imvel, que a 13 semana passasse a fazer parte do calendrio. Tudo sugestes, acrescentava, com o objectivo de nos permitir ler devagar. Ora bem, a proposta contida neste livro , justamente, a de fornecer mecanismos de leitura desconstructiva versus compreensiva do jornal. Lancemo-nos, ento, o desafio

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de tentar descobrir como que o jornal diz o que diz e porque que o jornal diz o que diz. Lentamente. Na conscincia de que a rapidez pode ser uma das estratgias mais eficazes para nos esconder o como e o porqu.

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1 - OBJECTIVIDADE E DISTANCIAMENTO

Tal como o campons da Europa mediterrnica pe um colar de alhos em volta do pescoo para afastar os espritos malignos, tambm o jornalista invoca a objectividade para se defender de eventuais acusaes de parcialidade. Afirma-o Gaye Tuchman 2. Na sequncia de uma investigao que conduziu junto de um jornal dirio americano. Tuchman concluu, por outro lado, que a tctica jornalstica de escapar crtica implica um cuidado especial em valorizar "factos" considerados incontornveis e

inquestionveis e em colocar as aspas nos stios mais adequados 3. Gaye Tuchman no alimenta iluses sobre a razo pela qual tal "facto" ou tal personalidade ou no notcia: a razo, assegura, ideolgica. Numa obra

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Cf. A objectividade como ritual estratgico: uma anlise das noes de objectividade dos jornalistas, in Jornalismo: Questes, Teorias e Estrias, org. de Nelson Traquina, Vega, Lisboa, 1993.3

Intervindo num colquio sobre "O 25 de Abril revisitado pelos media internacionais" organizado pelo jornal Dirio de Lisboa, em Abril de 1990, Dominique Pouchin que, na altura da revoluo de Abril, trabalhava no Le Monde, contou o episdio seguinte: "Em 1976, a sociedade de redactores do Le Monde convocou uma reunio e Hubert Beuve-Mry que, apesar de ter deixado a direco do jornal seis anos antes, era sempre convidado, quis nesse dia usar da palavra. Levantou-se e disse, rpida e discretamente, com a sua voz sombria: Fiquei um pouco inquieto quando li o jornal, h dias, porque vocs tm uma estranha maneira de pr aspas. Li legitimidade revolucionria sem aspas e legitimidade democrtica com aspas. Gostaria que pusessem as aspas no seu lugar". Cf. Mesquita, Mrio e Rebelo, Jos, O 25 de Abril nos Media Internacionais, Afrontamento, Porto, 1994, pp.182-183.

7 significativamente intitulada Making News 4, Tuchman sustenta, sem ambiguidades, que a ideologia que faz com que certas ocorrncias irrompam no campo da informao, enquanto outras so repelidas para fora desse campo. E a mesma autora acrescenta que, para conferir escolha um tom de iseno, isto , para camuflar a razo verdadeira, invoca-se, nos meios profissionais, a figura do "critrio jornalstico". Remonta segunda metade do sculo XIX, poca em que surgiram, pela primeira vez, grandes orgos de comunicao de massas destinados a extensos e variados pblicos, o culto da "objectividade" e da "independncia" do jornalismo. Anteriormente, os jornais pouco mais eram que simples instrumentos de debate poltico e religioso, ou suportes de ideias aprofundadas no mbito de pequenos grupos. Em Paris, por exemplo, existiam, em 1848, cerca de 450 clubes de reflexo e mais de 200 jornais. Por vezes, as figuras de proprietrio, de editor e de redactor, convergiam numa s e mesma pessoa, o "intelectual orgnico", de Gramsci, auto-investido na misso de interpretar, condensar, explicitar e defender os anseios da classe com a qual se identificava 5. Este tipo de jornalismo que Jrgen Habermas qualifica de "literrio" corresponderia, segundo o filsofo alemo, a uma fase de evoluo da imprensa em que o fim lucrativo era relegado para o ltimo plano. E a falncia formalmente assumida como instrumento de financiamento de um projecto poltico ou ideolgico 6... A industrializao, implicando a descida acentuada de alguns custos de produo nomeadamente do preo do papel, aliada melhoria das redes de transporte, ao alargamento do espao pblico, expanso do alfabetismo - aumentando o universo de leitores potenciais assim como os respectivos campos de interesse -, em suma, o desenvolvimento do capitalismo que, segundo Yves de la Haye, utilizou os meios de4

Free Press, New York, 1978.

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Sobre o conceito de intelectual orgnico em Gramsci, cf.Almeida Santos, Joo de, Os intelectuais e o poder, Fenda, Lisboa, 1999.6

Cf. L Espace Public archologie de la publicit comme dimension constitutive de la socit bourgeoise, Payot, Paris, 1986, p.190.

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comunicao social como "lubrificantes das novas relaes sociais de produo, de consumo e de troca" 7, explica as profundas alteraes entretanto verificadas. Em Frana, Mose Millaud lana, a 1 de Fevereiro de 1863, Le Petit Journal, vendido a 5 cntimos. No ano seguinte, sai para a rua o Dirio de Notcias, de Eduardo Coelho, a 10 ris 8. Na Gr-Bretanha a imprensa popular definitivamente consagrada com a fundao do Evening News, em 1881, e do The Star, em 1888. Crescem exponencialmente as tiragens. Em 1900, Le Petit Parisien torna-se, com catorze anos de existncia, o maior dirio do mundo distribuindo cerca de um milho e meio de exemplares. No comeo da Segunda Guerra mundial, Paris-Soir ultrapassa os dois milhes, volume que, mais perto dos nossos dias, um jornal japons, Asahi Shimbum, multiplica por cinco. Empenhados numa lgica de expanso constante, factor indispensvel captao de publicidade, logo, ao sucesso da empresa, os grandes jornais vocacionam-se para atingir todo o tipo de destinatrios, sem distino de classes ou de opes polticas. A objectividade jornalstica apresenta-se, ento, sublinha Mrio Mesquita, enquanto construo resultante de uma nova estratgia comercial da Imprensa, j que a extenso e diversificao dos pblicos aconselham uma nova atitude, que se traduz num relato dos acontecimentos que seja vlido para todos os leitores e no apenas para este ou aquele indivduo ou grupo de indivduos 9. chamada "imprensa de opinio" - expresso que passa a abranger pouco mais do que os orgos oficiais dos partidos polticos - sucede a "imprensa de informao" que pretende limitar-se apresentao de "factos". "O facto sagrado, o comentrio livre", tal o lema do chamado jornalismo "independente" claramente evidenciado no projecto original do Dirio de Notcias que

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Dissonances critique de la communication, La Pense Sauvage, Paris, 1984, p. 42. Realce para a rapidez com que o novo modelo se implantou em Portugal. Em louvor da Santa Objectividade, Jornalismo e Jornalistas, N 1, Lisboa, 2000, p. 23.

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no nmero zero, editado em 29 de Dezembro de 1864

, proclama: "Eliminando o

artigo de fundo, no discute poltica, nem sustenta polmica. Regista com a possvel verdade todos os acontecimentos, deixando ao leitor, quaisquer que sejam os seus princpios e opinies, o coment-los a seu sabor". Ao jornalista/"intelectual orgnico" sucede um jornalista investido no estatuto de agente moderador e divulgador. identificao com uma classe sucede a identificao desideologizada com a sociedade no seu todo. Ao apelo vanguardista sucede a defesa da norma contida no senso comum. actividade "literria" do redactor, sucede um trabalho considerado, este sim, especificamente jornalstico: "trabalhar a informao, separ-la, rev-la, pagin-la", afirma Habermas, "passa, frequentemente, a ser mais importante do que guardar fidelidade a uma linha cuja manuteno estava ligada eficcia do discurso literrio" 11. Desenham-se estratgias de concorrncia que implicam a simplificao dos contedos e o recurso espectacularizao (o lead, a linguagem icnica, os grandes ttulos, a iluso da interactividade). Consolida-se um jornalismo do presente que, conferindo a prioridade palavra do protagonista, relega para segundo plano a enunciao de causas ou a previso de consequncias. Causas e consequncias que, naturalmente, implicariam interpretao: justamente o que se pretende evitar. Desenha-se, enfim, a tendncia, que se confirmaria com o decorrer dos anos, segundo a qual o sucesso de um jornal deixa de estar ligado ao nome de um jornalista talentoso e sim ao de um editor hbil e ousado. Separando, formalmente, a notcia do comentrio, e endeusando o jornalismo de reportagem ou de investigao, a escola anglo-saxnica contribuiria, decisivamente, para o avolumar desta fico da objectividade e, correlativamente, para reforar o mito do leitor-activo. Colocado perante uma mensagem isenta de conotaes, este exerceria

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Analisado por Jos Manuel Tengarrinha em Histria da Imprensa Peridica Portuguesa, Portuglia Editora, Lisboa, 1965, pp. 186-187.11

L Espace Public, op. cit., p. 193.

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livremente o seu poder criativo interpretando a mensagem em causa de acordo com a sua viso das coisas. Assim sendo, o "acontecimento" constituiria a "matria prima", o recurso energtico do eco-sistema da informao, o antecedente cronolgico da notcia que, por seu lado, asseguraria a sua materializao. Um jornal, ou, de uma maneira geral, um suporte de comunicao12

, funcionaria como elo de ligao entre o "acontecimento",

situado a montante, e o "pblico", a juzante. Funcionaria como uma espcie de duplo funil, apto para captar os factos no seu prprio local de ocorrncia, para os encaminhar na direco do centro e, em seguida, para os redistribuir. Da a noo de jornal como espelho da realidade, como transportador do real. Da a noo de jornal ou de jornalista convertido numa espcie de satlite, pairando sobre o mundo, capaz de tudo captar, com o seu olhar panptico, e de tudo transmitir sem reelaborao nem constrangimentos. Da ttulos como "A Voz", o "Correio da Manh", "Le Nouvel Observateur", "Les Echos", etc.. Ladeando a crtica dessa suposta escrita de grau zero, parafraseando Roland Barthes que: 1. A "realidade social" no a superfcie lisa, o conjunto perfeitamente articulado, homogneo e coerente que vises idealistas pretenderam impr e que o aparelho da informao se limitaria a revelar. 2. O "acontecimento" no existe de per si. Ele est no ponto de convergncia da ocorrncia com a respectiva percepo. 3. Os media no so meras estruturas tecnolgicas particulares. So, simultneamente, sujeito e objecto do ambiente que os rodeia. So aparelhos sociais institucionalizados, como refere Enric Saperas12

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, uma escrita neutra, isenta de qualquer dimenso interpretativa, observemos

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,

geradores de

O uso do termo suporte, muito frequente em estudos de imprensa, no inocente: denota, com efeito, a vertente mecanicista de comunicao detectada em certos autores como Jakobson.13

Le degr zro de l criture, Seuil, Paris, 1972, p. 56. Cf. Os efeitos cognitivos da comunicao de massas, Asa, Porto, 1993.

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mediaes simblicas pelas quais se hierarquiza, se tematiza a realidade social. Recorrendo a uma noo tornada comum em sociologia da comunicao, os media, se no nos dizem como que devemos pensar, indicam-nos, pelo menos, sobre o que devemos pensar. 4. O olhar do jornalista no o do historiador que se confronta com acontecimentos j esgotados no tempo. Nem o do dirigente poltico gerador de verdades adaptadas s estratgias e s tcticas que adopta em cada momento. O jornalista no aquele sujeito exterior e distante, armado de uma independncia, de uma neutralidade sem falha. Entre ele e o objecto da sua interveno no h verdadeiro distanciamento. Nem espacial, nem temporal, nem cultural, nem sociolgico. At porque, como salienta Paul Ricoeur narrar j reflectir sobre os acontecimentos narrados 15. O jornalista transporta, em si, a Lebenswelt, conceito que Habermas retirou da fenomenologia de Husserl para designar aquele nvel profundo de um grupo, de uma colectividade, onde se enrazam linguagens, normas e comportamentos comuns16

. Inscreve-se, pela

sua prpria praxis, na realidade que descreve e estabelece, com o jornal para o qual escreve, uma relao mimtica que o conduz a reproduzir o lxico e os valores desse mesmo jornal. Actua, assim, duplamente, como protagonista de um discurso dialgico e como parte de um colectivo profissional com regras e projectos prprios 17.

A realidade social no uma superfcie lisa. O "acontecimento" no existe de per si. O jornalista no aquele sujeito exterior e distante, armado de uma15

Temps et rcit II La configuration dans le rcit de fiction, Seuil, Paris, 1984, p. 92.

Em Thorie de lagir communicationnel, Fayard, Paris, 1987, Habermas disserta longamente sobre os fundamentos da Lebenswelt - termo que se pode traduzir pela expresso mundo vivido ou vivncia do mundo e sobre as relaes entre Lebenswelt e sistemas sociais, em particular os sistemas de comunicao.17

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Cf. de Jos Rebelo Imagens de um pretrito Imperfeito, in O 25 de Abril nos Media Internacionais, op. cit.

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independncia, de uma neutralidade sem falhas. Os media no so meras estruturas tecnolgicas particulares... Estas consideraes, tecidas em redor do fazer jornalstico, funcionam como pontos de partida para rpidas incurses em domnios que julgamos capitais para uma melhor desconstruo do tal discurso da objectividade. Um primeiro domnio tem a ver com a problemtica da leitura ou da compreenso do real. Um segundo com a diversidade de actores que intervm na produo de informao. Um terceiro com os complexos processos de retroaco que condicionam a gnese e o desenvolvimento das empresas jornalsticas e dos seus contedos.

1. 1. DE GADAMER A HABERMAS: DOIS PARADIGMAS DE LEITURA DO REAL

Na esteira de Heidegger e da sua teoria do "crculo hermenutico", Gadamer considera que a "leitura" de um texto e, generalizando ns, a "leitura" do real, pressupe um projecto prvio, um projecto de "leitura" que existe por antecipao. O sentido que se retira dessa "leitura" guiado pelas expectativas geradas, antecipadamente, pelo projecto que, por sua vez, se vai modificando, se vai reconstruindo, em funo da sua aplicao a cada situao concreta com a qual entra em relao dialctica 18. Esse projecto que vai guiar a nossa "leitura" do real, exprime-se pelos prconceitos de que cada um de ns est armado. Positivos uns, negativos outros. Uns e outros construdos no decurso do processo histrico. "No acto de compreender", precisa Gadamer, "entra sempre em jogo uma pr-compreenso em si mesma imbuda da marca da tradio determinante, na qual se situa o intrprete, e dos pr-conceitos formados no mbito dessa tradio" 19.

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, precisamente, neste vai e vem projecto-objecto-projecto que se inspira a ideia desenvolvida por Heidegger de crculo hermenutico.19

Langage et vrit, Gallimard, Paris, 1995, p. 110.

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A histria , alis, para o filsofo alemo, a instncia ltima que tudo determina: "No a histria que nos pertence, ns que lhe pertencemos", afirma. E acrescenta: "Bem antes de chegarmos compreenso de ns prprios atravs da meditao reflexiva, ns compreendemo-nos de maneira irreflectida no seio da famlia, da sociedade e do Estado em que vivemos" 20. Pertencendo ns histria, sendo ns da histria parte integrante, impossvel para ns dela nos distanciarmos. Impossvel para ns olh-la, observ-la, de fora. Citemos, de novo, Gadamer: "No podemos escapar ao devir histrico, no podemos criar essa situao de distanciao que objectivaria o passado" 21. A mesma impossibilidade de distanciao caracterizaria as "cincias do esprito" que Gadamer ope s "cincias da natureza". E caracterizaria as "cincias do esprito" j que os respectivos contedos no seriam mais do que conjuntos de efeitos histricos. Inscritas na histria, as "cincias do esprito" alimentar-se-iam da tradio acumulada. Constituiriam seus pressupostos todas as formas de autoridade fundadas na e pela tradio. Note-se que, para Gadamer, a autoridade surge como algo de natural. "A autoridade", esclarece, "no encontra o seu fundamento ltimo num acto de submisso e de abdicao da razo, mas num acto de aceitao e de reconhecimento: reconhecemos que o outro nos superior na sua perspiccia e na sua capacidade de julgar, que o seu julgamento nos ultrapassa e prevalece sobre o nosso" 22. Temos pois, de acordo com o paradigma de Gadamer, que ns somos o que somos e ns pensamos o que pensamos. No podemos ser seno o que somos e no podemos pensar seno o que pensamos. Porque o que somos e o que pensamos determinado pela histria. Pela tradio. Pela autoridade imanente. Passemos, agora, ao paradigma de Habermas.20

Vrit et mthode: les grandes lignes dune hermenutique philosophique, Seuil, Paris, 1976, p. 115. Citado por Paul Ricoeur in Du texte l action essais d hermenutique, Vol. II, Seuil, Paris, 1986. Vrit et mthode, op. cit., p. 118.

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noo de pr-conceito como factor estruturante da compreenso do real, prpria ao modelo de Gadamer, ope Habermas a noo marxista (de um marxismo revisto pela escola de Frankfurt) de interesse, ou melhor, de interesses23

. Destes h os

que, dissimulados por ideologias pretensamente desinteressadas, devem ser, no seu entender, desmascarados por uma filosofia crtica. Assim, s "cincias do esprito" entendidas por Gadamer como cincias da cultura, como cincias da tradio, ope Habermas as "cincias crticas" cuja tarefa essencial consistiria em discernir, a partir da anlise das regularidades observveis pelas cincias sociais empricas, relaes de antagonismo, de dominao ideologicamente dissimuladas. Consistiria em revelar a dependncia do sujeito relativamente aos constrangimentos institucionais. Consistiria em canalizar o reconhecimento dessas formas de dependncia no sentido de uma libertao desse mesmo sujeito. Habermas recusa a convergncia de tradies e a consequente consensualidade que o modelo de Gadamer pressupe. Recusa a imposio ou a glorificao do passado como fonte do ser e do saber. Recusa, enfim, o conceito gadameriano de autoridade que associa no aceitao, no ao reconhecimento, mas sim violncia institucional ou

institucionalizada.

Regressemos ao discurso da objectividade e do distanciamento. Fcil ser concluir que nem um nem outro dos paradigmas aqui muito resumidamente expostos lhes reconhece validade. Com Gadamer, diramos que o fazer jornalstico assenta em pr-conceitos que exprimem, em cada momento, a tradio e a autoridade comummente reconhecidas.

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Em Connaissance et intrt (Gallimard, Paris, 1976), Habermas considera a existncia de um pluralismo de esferas de interesse das quais se destacam trs, cada uma delas estruturando um grupo de cincias: a esfera do interesse tcnico (ou aco instrumental) que regula as cincias emprico-analticas; a esfera do interesse prtico (ou aco comunicativa) que regula as cincias histrico-analticas; a esfera do interesse pela emancipao que regula as cincias sociais crticas.

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Com Habermas, diramos que o fazer jornalstico assenta em esferas de interesses que exprimem, em cada momento, posies ideolgicas mais ou menos dissimuladas.

1. 2. A DIVERSIDADE DE ACTORES NA PRODUO DE INFORMAO "Media e intelectuais: uma autonomia ameaada" era um dos temas inscritos na agenda do Parlamento Internacional dos Escritores quando este se reuniu em Lisboa, em 1994. Pensar-se-ia que a ameaa referida incidiria tanto sobre os media como sobre os "intelectuais". O equvoco foi, no entanto, levantado pelo investigador francs Patrick Champagne, encarregado de introduzir o debate. Afinal a ameaa, contra a qual o dito Parlamento era convidado a insurgir-se, incidia, apenas, sobre os "intelectuais". Melhor ainda: a autonomia dos "intelectuais" estaria ameaada pelos media. Para chegar a esta concluso algo maniquesta, Patrick Champagne ops o "campo dos media" ao "campo dos intelectuais". O primeiro seria constitudo por jornalistas mais ou menos ignorantes (abriu, claro est, as devidas excepes), obcecados pela busca incessante da notcia, pela "cacha" que faz vender o jornal ou aumentar a audincia do programa radiofnico ou televisivo. No segundo, encontrar-seiam os escritores, praticamente impedidos de se fazer ouvir, sujeitos a opes jornalsticas de cariz mercantilista, expostos a regras castradoras do pensamento que obrigam, por exemplo, a resumir uma obra em dois pargrafos ou em dois minutos. E da a proposta que, solenemente, formulou: deveria o Parlamento Internacional constituir uma espcie de "conselho" ao qual caberia uma dupla funo. Por um lado encaminhar os jornalistas para tal ou tal escritor (note-se que, ao longo da sua exposio, Patrick Champagne associou sistematicamente as categorias de "escritor" e de "intelectual" excluindo desta ltima a de "jornalista") em funo dos objectivos enunciados pelo profissional da informao. Por outro lado, alertar o escritor/intelectual para as estratgias de comunicao e de manipulao que os novos media, sobretudo os audiovisuais, praticariam.

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Um ano mais tarde, o mesmo Patrick Champagne debruou-se de novo sobre o estatuto do jornalista e a prtica do jornalismo 24. Adoptando, agora, um tom mais moderado, Patrick Champagne considerou que a imagem social do jornalista oscila entre dois polos: O polo positivo - o grande reporter, o jornalista de investigao, o grande comentador poltico; O polo negativo - o corrupto, o paparazzi que, por motivos comerciais, invade a vida privada do cidado. A polmica ou a crtica ao papel e s funes dos media e, consequentemente, dos jornalistas, basear-se-ia, na sua opinio, em dois argumentos: - Desproporo entre a capacidade crtica dos jornalistas e a importncia dos instrumentos que a tecnologia, cada vez mais sofisticada, coloca ao seu dispr; - Desenvolvimento de uma forma de poder - a mediocracia - cujos agentes no so controlados pela vontade popular expressa no voto. Incompetncia e impunidade, portanto. Ao acentuar este duplo aspecto sobre o qual residiria o poder nocivo dos media25

, Patrick Champagne inscreve-se num

movimento protagonizado por socilogos que se reclamam do pensamento de Pierre Bourdieu e cujos trabalhos - Contre-feux, Les nouveaux chiens de garde, juntamente com Sur la tlvision, assinado pelo prprio Bourdieu 26 - se encontram reunidos numa coleco de pequeno formato e de preo reduzido intitulada Liber-Raisons d'Agir 27. Em Les nouveaux chiens de garde, Serge Halimi recorre expresso usada, em 1932, por Paul Nizan, para denunciar os filsofos por ele apelidados de "ces de guarda" que,24

A dupla dependncia. Algumas observaes sobre as relaes entre os campos poltico, econmico e jornalstico, in Hermes N 17/18, Paris, 1995, pp. 215-229.25

Muitos so os casos apontados como exemplos desse poder nocivo: suicdio, em 1936, de Pierre Salengro, ministro socialista da Frente Popular; suicdio, em 1993, de um outro ministro socialista francs, Pierre Bregovoy; acidente mortal que vitimou a princesa Diana e o seu acompanhante, em 1997, etc.26

Todos eles j editados em Portugal pela Celta.

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O objectivo dos mentores da iniciativa o de criar uma espcie de biblioteca popular de cariz manifestamente panfletrio.

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ao abrigo do que consideravam ser uma reflexo filosfica, mais no fariam do que proteger o capitalismo. Os "novos ces de guarda", no entender de Serge Halimi, seriam os jornalistas empenhados em defender, directa ou indirectamente, o poder dominante. Se nos abstrairmos das formas mais radicais da polmica aqui traada28

,

diremos que ela tem origem na grande proximidade entre os campos. Campos que se cruzam. Campos que, por vezes, se confundem. justamente neste ponto que assenta um dos aspectos mais controversos da anlise dos media efectuada pelo grupo de Bourdieu, nitidamente espelhada na interveno em Lisboa de Patrick Champagne, aquando da reunio do Parlamento Internacional dos Escritores. A oposio "campo dos media"/"campo dos intelectuais", tem cada vez menos sentido. Atestam-no Daniel Defert e Franois Ewald que, no dcimo aniversrio da morte de Michel Foucault, compilaram, num espesso volume de trs mil pginas, todos os textos, todas as entrevistas e todos os prefcios relativos ao filsofo francs. Num balano a essa obra, publicado no Magazine Littraire, em Outubro de 1994, pode lerse a seguinte afirmao de Franois Ewald: "diverti-me a sublinhar, nas entrevistas em que pediam a Foucault para se definir, as ocasies que ele aproveitava para dizer 'o que eu no sou': eu no sou filsofo, eu no sou historiador, eu no sou estruturalista. Uma das suas identificaes positivas : eu sou jornalista". No "campo dos media" cruzam-se, pois, jornalistas, dirigentes polticos, escritores, advogados, juzes. Todos eles formadores de opinio. Muitos deles em busca de uma maior visibilidade social. A este propsito, so particularmente interessantes duas entrevistas publicadas no Expresso Revista de 24 de Setembro e de 8 de Outubro de 1994. A primeira, de um clebre advogado americano, William Kunstler, especialista em causas que envolvem polticos radicais de esquerda. A segunda, de Jacques Vergs, um advogado28

Em O jornalismo segundo Bourdieu (um volume editado pela Fayard, em 1999, com as caractersticas dos que constituem a coleco Liber-Raisons dAgir, pequeno formato e baixo preo), Daniel Schneidermann, jornalista do Le Monde, convida os jornalistas a passarem ao contra-ataque. Chegou o tempo de levantar a cabea, proclama.

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francs no menos clebre, tanto pelos constituintes que aceita defender, como pela sua estratgia de utilizao dos media enquanto instrumentos de contestao da filosofia ocidental do direito, da ordem e do Estado: "A justia como a guerra, nunca limpa", declara Jacques Vergs que acrescenta: "No h justia, h justias". Relembrando o caso dos "terroristas" argelinos e angolanos conclui: "Um terrorista condenado aqui seria certamente declarado heri noutros locais e noutros tempos". Kunstler insiste, por seu lado, na necessidade de trazer para a rua os processos em curso, ou melhor, os seus processos, por natureza extremamente melindrosos. "As questes revolucionrias tratam-se na rua. Ou seja, sada do Tribunal, nas escadas, em conversa com a imprensa", confessa o causdico americano. E tratam-se na rua, esclarece, para influenciar o juiz ou condicionar os jurados. Sobre os jurados, Kunstler no esconde, alis, um certo pragmatismo ou, at mesmo, uma certa displicncia: "Procura-se constituir um grupo de 12 pessoas que reuna as condies de inteligncia e iseno. discutvel que tais pessoas existam, ou que o sistema as possa detectar. Mas ainda que assim fosse, nenhuma garantia existe de que elas se mantenham puras at ao fim do julgamento. Nenhum isolamento as impedir de perceber em que direco sopram os ventos". Mais ainda que um cptico, Kunstler no alimenta, quaisquer iluses sobre as virtualidades do sistema. Por isso afirma, peremptrio: "Um assassino, se for popular, no um criminoso". semelhana de Kunstler, tambm Vergs preconiza a publicizao dos processos. Embora por razes diferentes. Menos confiante na possibilidade de influenciar o tribunal, Vergs espera tirar, dessa publicizao, efeitos para o futuro: "um experiente advogado de defesa sabe, pela prtica, que este tipo de processos esto antecipadamente julgados, seja qual for o regime, democrtico ou totalitrio, seja o governo de esquerda ou de direita. Neste contexto, a defesa trabalha para o futuro, e por isso que eu defendo sempre que estes processos sejam filmados".

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Outro aspecto que aproxima os dois advogados a percepo do tribunal como um espao cnico. Um espao de representao. Onde o "fazer crer" mais importante que o "crer". Diz Kunstler: "Naquele 23 andar do edifcio federal de Chicago, aprendi que o tribunal como um palco. Aprendi como usar o meu corpo e a minha voz. Aprendi que os 12 indivduos do jri eram pessoas, primeiro, e jurados depois. Aprendi a manifestar o meu lado com o qual os jurados se podiam identificar, a ser convivial, nunca arrogante. Chicago ensinou-me que a oposio ao "establishment" - o qual se destina a assegurar, por meios justos ou injustos, que no haja nenhuma reestruturao significativa da ordem scio-poltico-econmica - no tem a mnima chance de vencer se no lutar to duro como o prprio sistema." Corrobora Vergs: "A defesa deve ser encarada como uma obra de arte - uma criao". Entre ns, as mesmas teses so assumidas pelo que se acordou chamar "a nova vaga da justia" que encontra expresso, por exemplo, no juiz Antnio Martins que julgou o chamado "caso Beleza", na juiza Filipa Macedo e no juiz Ricardo Cardoso, ambos ligados ao "caso Emaudio". Todos determinados pela vontade mais ou menos oculta, ou claramente afirmada, de afirmar um protagonismo no espao pblico. Neste desfiar de actores que, a diferentes nveis, intervm no processo de produo de informao / opinio, uma palavra para aqueles que, no espao pblico, so identificados com tal ou tal corrente poltica ou ideolgica. Referimo-nos aos chamados opinion makers que em Portugal, por exemplo, tm vindo a assumir uma importncia crescente, nomeadamente por razes ligadas inovao tecnolgica e por razes ligadas a estratgias empresariais. Com as novas tecnologias, a informao contnua, a informao em directo, prevalece no dia-a-dia das redaces. Ao tempo diferido vai-se sobrepondo o tempo real. Gradualmente, acentua-se a tendncia para a simultaneidade entre o momento da ocorrncia e o da respectiva divulgao, susceptvel de reduzir a funo do jornalista

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de mero relator, reduzindo a sua capacidade de comentar, de interpretar. Donde, linha aberta para o recurso aos opinion-makers. Mas ao recorrer aos opinion-makers, as empresas de comunicao social podem visar outros objectivos: 1. Criao da iluso de pluralidade. 2. Transferncia de responsabilidades para o exterior da prpria empresa. 3. Desencadeamento de jogos de espelho entre media(s) e respectivo(s) pblico(s): os media constituindo painis de comentadores externos segundo a representao que eles prprios constroem do(s) seu(s) pblico(s); o(s) pblico(s) encontrando coincidncia entre os paineis que lhe so proporcionados e a representao que tem (ou tm) dos seus rgos de comunicao social preferidos. 4. Contrapartida a apoios, habitualmente discretos quando no confidenciais, obtidos junto de organizaes polticas, culturais, religiosas etc. A anlise da gnese e do estatuto dos opinion makers dever ainda ter em conta que estes: 1. Constituem, por vezes, focos de tenso no contexto das redaces, sobretudo quando beneficiam de honorrios claramente superiores aos nveis salariais dos jornalistas. 2. Podem contribuir para desencadear, no interior da prpria classe dos jornalistas, uma reflexo positiva sobre o exerccio da respectiva profisso. 3. Funcionam em circuito fechado, isto , constituem grupos reduzidos, de lenta renovao. 4. Entregam-se prtica de leituras recprocas que induz efeitos de estandardizao dos contedos. 5. Situam-se, frequentemente, na convergncia de uma vertente meditica e de uma vertente poltico-partidria: valem politicamente enquanto sujeitos mediticos e valem mediaticamente enquanto sujeitos polticos.

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Centremo-nos, por fim, nos jornalistas propriamente ditos, ou seja, naqueles que fazem do jornalismo a sua efectiva actividade profissional 29.29

Embora a questo seja, aqui, abordada em termos abstractos, ser, talvez, oportuno fornecer alguns elementos que permitam uma primeira caracterizao do jornalista portugus. Esses elementos, obtidos atravs da Comisso da Carteira Profissional, assim como de inquritos classe lanados pelo respectivo sindicato e sociologicamente analisados por Jos Manuel Paquete de Oliveira, professor do ISCTE, e Jos Lus Garcia, assistente de investigao no ICS, mostram: 1. Progresso de portadores de carteira profissional: 700 profissionais em 1974; 1281 em 1987; 2374 em 1990; 3850 em 1994 e 4300 em 1997. O crescimento verificado at meados da dcada de oitenta explica-se, em grande medida, pela entrada de militantes partidrios em rgos de comunicao social do sector pblico e pela multiplicao de assessorias na administrao local e central assim como no sector empresarial pblico. Um segundo perodo, em que se acentua fortemente essa curva de crescimento, marcado pela liberalizao da rdio (1988), pela abertura de canais privados de televiso (1990/91), pela privatizao e modernizao do DN e do JN (1990 em diante) e pelo lanamento do Pblico (1990). Uma vez preenchidos os quadros reservados s assessorias, uma vez satisfeitas as necessidades imediatas dos novos rgos de comunicao social; uma vez desencadeada a crise na televiso pblica com a consequente limitao de novas admisses, regista-se uma desacelerao do crescimento, primeiro, e uma inverso do sentido da curva, depois. Hoje, o recrutamento de jornalistas ou, mais genericamente, de profissionais das cincias da comunicao, deve-se, apenas, ao preenchimento de vagas suscitadas pela normal rotatividade profissional. Rejuvenescimento: em 1990, mais de 2/3 dos interrogados tinha menos de 45 anos de idade (segundo dados da Comisso da Carteira Profissional, para o ano 2000, a proporo ser, actualmente, de 4/5) ; 44% entrara numa Redaco h menos de 10 anos e 59% h menos de quinze. Feminizao: em 1974, apenas algumas dezenas de mulheres exerciam a profisso. Em 1987, as mulheres j representavam 19,8% do total dos jornalistas inscritos no sindicato. Em 1994, o ndice de feminizao atingia os 30% e, em 1997, os 37%. Aumento dos nveis de escolaridade: os titulares de um bacharelato ou de uma licenciatura em reas ligadas comunicao social correspondiam a 6,5% do total, em 1988, e a 13% em 1992. Em termos globais o ndice de licenciados, nos diversos ramos do ensino superior, ultrapassava, em 1997, os 37%. Precarizao da relao de trabalho: segundo o 1 Inqurito aos jornalistas portugueses, realizado em 1990 19,4% dos inquiridos tinham contratos a prazo; 7,3 % no possuiam qualquer contrato; 62% faziam, habitualmente, horas extraordinrias; destes, 73% confessaram no auferir, disso, qualquer contrapartida financeira. Origem social vincadamente burguesa (dados de 1990): filhos de quadros tcnicos superiores ou membros de profisses liberais (burguesia dirigente ou burguesia profissional) 29,8%; filhos de quadros administrativos ou exercendo profisses de chefia (pequena burguesia tcnica ou de enquadramento) 22,1%; filhos de escriturrios ou de empregados da administrao pblica, da indstria e do comrcio, sem posies de chefia (pequena burguesia de execuo) 26%; filhos de operrios 19,6%; filhos de pequenos agricultores ou de assalariados agrcolas 2,6%.

2.

3. 4.

5.

6.

Da anlise das respostas ressalta, igualmente, que os jornalistas se subdividem em trs estratos. No topo, encontra-se um grupo extremamente reduzido, em nmero, mas dotado de grande visibilidade social. Os membros desse grupo so os principais responsveis pela imagem da profisso junto da opinio pblica. Quando em situaes de crise, optam pela lealdade entidade patronal, em detrimento de atitudes de desero ou de protesto. Constituem o chamado star system. Detecta-se, em seguida, um grupo de jornalistas recm chegados profisso. Jovens, aceitam sem relutncia especial situaes de precaridade contratual. So altamente motivados em termos de ascenso hierrquica: objectivo que relega para um plano secundrio quaisquer preocupaes de ordem deontolgica. Desenvolvem atitudes mimticas relativamente ao grupo de topo, isto , elite. O terceiro grupo, o grupo intermdio, formado por jornalistas mais antigos mas sem grandes expectativas de promoo.

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Importa relativizar o paradigma negativo do jornalista, tal como interessa questionar o conceito de autonomia absoluta do jornalista: o jornalista que corre mundo, qual justiceiro universal, que descobre tudo contra ventos e mars. O perfil do jornalista que procura insaciavelmente a "cacha", esboado por Patrick Champagne, corresponde a uma espcie que se rarifica. Porque se assiste a uma progressiva centralizao das fontes. Porque as novas tecnologias permitem, cada vez mais, que todos tenham acesso a tudo. Assim, para alm da obteno da notcia, em si, o importante, para o jornalista actual, passa a ser o seu tratamento, a maneira como a aproveita, as ilaes que dela consegue extrair. Por outro lado, o jornalista , na esmagadora maioria dos casos, um profissional assalariado e, como tal, sujeito a condicionamentos vrios. Condicionamentos econmicos inerentes situao da empresa jornalstica no mercado concorrencial. Condicionamentos ligados inovao tecnolgica, alguns dos quais j foram referidos a propsito da emergncia dos opinion-makers. Condicionamentos ligados evoluo da prpria profisso, nomeadamente: multiplicao de outras profisses na sua periferia compositores, revisores, paginadores, desenhadores, fotgrafos; especializaes no seu interior - jornalismo econmico, poltico, cultural, desportivo...

1. 2. 1. JORNALISTA / FONTES

Exceptuando o caso das agncias noticiosas cuja razo social , justamente, vender informao, a negociao entre fontes e jornais , sobretudo, simblica30

. O valor de

troca , de alguma forma, coincidente com o valor de uso. A fonte cede ao jornal uma informao que interessa a este difundir e que interessa a ela que seja difundida. A relao negocial salda-se, pela parte da fonte, na medida em que a difuso daRevelam acentuada acomodao social e profissional e aceitam que, sobre eles, recaiam as principais tarefas de rotina.30

Sobre a problemtica das fontes, cf. Wolf, Mauro, Teorias da Comunicao, Editorial Presena, Lisboa, 1992, e Santos, Rogrio, A negociao entre jornalistas e fontes, Minerva, Coimbra, 1997.

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informao por si transmitida feita nos termos que julga mais proveitosos. Salda-se, pela parte do jornal, na medida em que este verifica possuir informaes cuja qualidade e oportunidade lhe permite acompanhar, seno ultrapassar, a concorrncia. 31. A colheita de informaes fundamenta-se, portanto, em relaes mais ou menos precisas, mais ou menos vagas, entre pessoas, grupos ou instituies diversas, por um lado, e a empresa jornalstica ou os prprios jornalistas, por outro. Dir-se-, em resumo, que a circulao da informao, da fonte at ao destinatrio/leitor supe uma tripla estratgia: - a estratgia da fonte que faz chegar empresa jornalstica apenas as informaes que ela julga teis de colocar em circulao; - a estratgia da empresa jornalstica que d, apenas, guarida s informaes que julga adequadas ao seu projecto editorial e, por extenso, ao(s) seu(s) pblico(s); - A estratgia do destinatrio ltimo que manifesta disponibilidade em relao, apenas, s informaes susceptveis de integrar o seu quadro de referncia. Que a relao entre o jornal e a fonte (regular, intermitente, ocasional ou efmera) seja unilateral, estimulada ou solicitada, pelo jornal ou pela fonte, nada disso altera a questo central. E a questo central que, em torno dessa relao, se desenvolve a estrutura fundadora do sistema de comunicao de massas, constituda pelo jornalista, activo ou operacional, em relao com uma fonte ou com um stock de informaes. Tal como a informao, nela prpria, no tem sentido, tambm o jornalista isolado, extrado da sua estrutura, no existe. Frequentemente o seu "valor", sobretudo

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Desta grande proximidade, quando no imbricao, entre fontes e media, resulta a criao de empresas de consultoria encarregadas da preparao de dossiers de imprensa, da organizao de conferncias de imprensa etc. Assiste-se, ento, a uma alterao do estatuto da empresa jornalstica que passa a ser objecto de uma mediatizao a montante. Ao sair da fonte, a mensagem traz, j, ttulo e subttulo(s). E, se necessrio, foto com a respectiva legenda. Encontra-se, pois, em condies de ser imediatamente difundida pela empresa jornalstica que no lhe acrescenta nenhum "valor" e se assume, assim, face empresa consultora em comunicao, como empresa-relais.

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no caso do jornalismo especializado, aferido pela qualidade e quantidade de fontes com as quais estabelece laos de exclusividade. Destas, interessa destacar as fontes institucionais: rgos da administrao local ou central; partidos polticos; tribunais; polcia, bombeiros e hospitais; organismos parapblicos como, por exemplo, sindicatos, associaes patronais, cmaras do comrcio, da indstria, da agricultura; grandes instituies sociais como o exrcito, as igrejas, as universidades; associaes permanentes, encarregadas da organizao de manifestaes peridicas como feiras comerciais, exposies, colquios; grupos recreativos com as respectivas federaes e delegaes locais. A rede por elas constituda reflecte, de algum modo, a estrutura social e as formas de poder existentes numa dada regio. Ligadas vida poltica, econmica, social e cultural, tecem, com os rgos de comunicao social, relaes estveis e estruturadas, constantemente corrigidas pela prtica. A preponderncia da informao por si proposta, e aceite, permite-lhes contaminar o contedo dos media. Cabe-lhes, de facto, a iniciativa de propor muita da informao a difundir, assim como lhes cabe, repetidamente, a iniciativa de criar o(s) acontecimento(s) a que essas informaes se reportam. Quanto maior for a sua respeitabilidade, quanto maior for a oportunidade, a produtividade e a credibilidade das informaes que disponibilizam, tanto maior ser o interesse nelas depositado pelo jornalista. Em fontes deste tipo, generaliza-se a prtica da acreditao. A empresa, a administrao, a instncia econmica social ou poltica, confere crdito a um jornalista, reconhecendo-lhe capacidade para tratar informaes relativas a actividades por si desenvolvidas. Mas se o jornalista, ao ser acreditado, passa a beneficiar de uma relao privilegiada com a instituio acreditante, converte-se, por outro lado, em refm dessa mesma instituio. De acreditado pode passar a personna non grata. corrente, ento, a instituio que acredita exercer presses sobre a empresa jornalstica, no sentido de esta se fazer representar por um outro jornalista.

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Assim, directa ou indirectamente, a instncia-fonte "escolhe" os jornalistas com os quais vai trabalhar. Estabelece com estes uma relao de cordialidade que, por vezes, se confunde com formas de promoo social: acesso fcil ao gabinete do ministro, almoos frequentes com tal ou tal personalidade, reconfortante sensao de entrar num segredo s partilhado por quem goza de incontestvel confiana. Mas que susceptvel de produzir efeitos menos transparentes: possibilidade da fonte filtrar o que deve e o que no deve ser objecto de notcia ou de se eximir a ocupar o lugar da enunciao, transferindo para o jornalista ou para o jornal a responsabilidade do dito. Perante uma atitude de filtragem por parte da fonte, qual deve ser a resposta do jornal ou do jornalista? Deve respeitar o desejo de ocultao revelado pela fonte? Deve ultrapass-lo recorrendo, se for caso disso, a outras fontes? Por quem e por qu optar? Pela manuteno das relaes com a fonte? Por aquilo que entende serem os direitos do leitor? Sem nos alongarmos em consideraes de natureza deontolgica, cremos que a soluo depende da avaliao, feita pelo jornal ou pelo jornalista, da importncia daquilo que, caso a caso, est em jogo. Mais radical , todavia, a posio adoptada por Eliseo Vron, na anlise que faz repercusso, na comunicao social, do acidente ocorrido, em 1979, na central nuclear americana "Three Mile Island"32

. Diz ele que, mesmo na posse de informaes

incompletas, os media no devem nunca guardar silncio. A sua obrigao falar, acrescenta. As informaes emitidas podem revelar-se inexactas? Pouco importa: o nus das inexactides recair, sempre, assegura Eliseo Vron, sobre as instituies que apostaram no segredo. Mas as presses sobre os jornalistas no vm somente das fontes institucionais, alis, as mais fceis de identificar e as de mais fcil resposta. Inexplcitas, quase que desmaterializadas, bem mais insidiosas, so as provenientes de lobbies que defendem,

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Veron, Eliseo, Construire l vnement les mdias et laccident de three mile island, Minuit, Paris, 1981.

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j no instituies, mas os seus prprios interesses de grupo, ou as provenientes dos chamados lderes de opinio. Durante muito tempo, a sociologia da comunicao considerou o campo da recepo constitudo por indivduos isolados, expostos aco dos media. Estes funcionariam como uma agulha hipodrmica atravs da qual o contedo da seringa se espalharia, uniformemente, pelo corpo. No espao pblico, ainda hoje prevalece a mesma ideia de poder incontrolvel dos media. Da a confiana, por vezes cega, que um dirigente poltico, por exemplo, deposita na aco desenvolvida por um rgo de comunicao social. Confiana que s tem igual no vigor com que denuncia prticas jornalsticas que no se harmonizem com os seus interesses. Paul Lazarsfeld em The People's choice e Elihu Katz em The twostep flow of mass communication, dois clssicos das cincias da comunicao, verificaram que o processo de circulao da notcia no to simples. No interior dos grupos sociais encontram-se indivduos mais expostos ao conhecimento do que outros. Lderes dos seus grupos, transmitem, a estes, a informao a que foram mais sensveis, acrescida dos seus prprios comentrios. A questo complica-se, no entanto, quando se analisa mais em pormenor o estatuto e as funes de tais lderes. que, em muitos casos, eles no se limitam a transmitir a notcia recolhida de um rgo de comunicao social, acrescida dos seus comentrios. Dispondo da possibilidade de conhecer, antes do prprio jornalista, o futuro desencadear de uma dada ocorrncia, eles podem funcionar como fontes do jornalista ou do jornal. Podem estar, assim, na origem dos prprios fluxos de informao, geradores da notcia difundida qual acrescentam os seus comentrios. Para no considerar os casos em que a ocorrncia criada por eles mesmos. semelhana do que afirmmos, a propsito das presses exercidas por fontes institucionais, tambm no que toca s presses de lobbies ou de lderes de opinio, o grau de aceitabilidade deve ser funo de uma avaliao casustica. partida, no convir ao jornal ou ao jornalista entrar em situaes de ruptura. Qualquer eventual contemporizao no pode, todavia, pr em causa nem as convices do jornalista, nem

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o estatuto editorial do jornal, nem a representao que o jornalista ou o jornal construiram do seu pblico. Tratando-se de lderes de opinio, a avaliao ter, ainda, de considerar o papel por estes exercido enquanto portadores de pontos de vista e de preocupaes de grupos sociais; enquanto promotores de respostas, de reaces, a notcias relativas ao seu grupo ou que ao seu grupo possam, indirectamente, interessar; enquanto fontes exclusivas de determinados contedos.

1. 2. 2. JORNALISTA / MERCADO

O objectivo de uma empresa jornalstica, de dimenso comercial, consiste em criar riqueza traduzvel em benefcios, mais valias etc. Para que esse objectivo seja alcanado, necessrio que o saldo entre valor produzido e valor consumido seja positivo. Isto , que a relao entre receitas marginais e custos marginais seja superior unidade. Dito de outro modo. A fim de maximisar os seus benefcios, a empresa de comunicao de massas analisa constantemente as suas receitas marginais: o benefcio mximo quando as receitas marginais so iguais aos custos marginais e, consequentemente, quando um aumento de produo deixa de ser vantajoso j que o suplemento de receitas, assim obtido, passa a ser inferior ao correspondente suplemento de custos. Os rendimentos de uma empresa jornalstica esto, pois, ligados venda, audincia dos respectivos produtos. S que, enquanto produto, um jornal escapa concepo tradicional de troca econmica realizada num dado espao e num dado tempo e que se traduz numa alterao de haveres: aquele que vende perde o bem que, antes, possua; aquele que compra apropria-se de um bem que, antes, no tinha. Ora os media nunca perdem a "sua" informao, tal como os leitores ou os telespectadores nunca ficam detentores, em exclusivo, de uma qualquer informao. Diremos que o que est em causa no "mercado media" algo de diferente. O que os media vendem o acesso a uma informao. O que os leitores ou os telespectadores compram a possibilidade de aceder a essa informao.

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Em funo da representao sociolgica dessa audincia, assim os media tendem a configurar os seus contedos. Relao de adequao que nem sempre pacfica. O dever de informar e, duma forma genrica, os princpios deontolgicos da profisso de jornalista adaptar-se-o a esta necessidade de vender um produto? A contradio entre dever de informar e dever de fazer um produto vendvel (deveres de natureza diferente, alis) , por demais, evidente. Muitas das vezes, opera-se, ento, um jogo de influncias, uma relao de foras internas, ou, ainda, uma confrontao entre princpio do prazer e princpio da realidade que desemboca num compromisso, num modus vivendi diferente de caso para caso. Mas, sendo esta a necessidade primeira de uma empresa jornalstica de dimenso comercial, situada, portanto, no mercado da concorrncia, da resulta - sobretudo quando se trata de medias do mesmo tipo - um efeito de uniformizao. O que confirma a teoria de Baudrillard sobre a mais pequena diferena margina l33: o que os outros no tm, sublinha o socilogo francs, que faz a nossa diferena. Pressupe-se, portanto, que, para um determinado pblico, temos tudo aquilo que os outros tm. A relao entre media e mercado, expressa nas vendas ou nos ndices de audincia, introduz a ideia de marketing. Para os tericos do marketing na comunicao social, o produto-jornal no um fim mas um meio posto ao servio da satisfao da vontade dos leitores. Um media no se definir, apenas, a partir dos desejos de quem est encarregado de o conceber e de o realizar. Definir-se-, tambm, a partir das necessidades que emergem no exterior. Que emergem, em particular, nas populaes que ele pretende atingir, ou satisfazer. Eis-nos perante um conceito de marketing que, em vez de consagrar os jornalistas como principais actores na definio e produo dos contedos do jornal, ou da estao de rdio ou do canal de televiso - e o caso mais gritante nalgumas revistas especializadas, tal como nalgumas rdios locais lhes reserva um papel de executores,

33

Cf. La socit de consommation ses mythes, ses structures, Gallimard, Paris, 1983.

29

dentro de um quadro previamente fixado. Quadro que corresponde a um produto previamente definido, previamente determinado. Compreensvel, portanto, a reaco negativa que a dimenso marketing, cada vez mais espalhada, provoca em muitas Redaces. Porque prevalece, ainda, uma certa ideia de "poder" dos media, visto isoladamente, isto , autonomizado em relao a outros poderes, o poder do sistema poltico, o poder do sistema econmico, etc. Porque as funes de redaco e de impresso gozam, ainda, de um estatuto de "nobreza" relativamente s funes de gesto e de comercializao 34. Repare-se que falamos de empresa comercial. Outros objectivos e, portanto, outras relaes estaro presentes, por exemplo, numa empresa sem fins comerciais, virada, sobretudo, para a prestao de um servio pblico.

1. 3. PROCESSOS E EFEITOS DE RETROACO

Uma empresa jornalstica, enquanto sistema, uma espcie de "caixa negra" na qual os fluxos de entrada - matrias primas imateriais (as mensagens em estado bruto), matrias primas materiais (papel, tinta, etc.) e outros (trabalho, investimento, receitas, crditos, subsdios) - se combinam entre si, segundo um processo particular delimitado no tempo, para se confundirem num fluxo de sada concretizado pela produo em srie de jornais e pela concomitante realizao de rendimentos. Mas, e de acordo com o mesmo conceito de sistema, essa caixa negra, em que se articulam harmoniosamente os diferentes elementos da empresa jornalstica, est, por sua vez, em articulao com o meio envolvente 35.

34

Consequncia algo perversa: no Le Monde, at finais da dcada de sessenta, os salrios dos servios administrativos eram, em mdia, mais elevados dos que os da redaco. Partia-se do princpio de que os salrios dos redactores eram parte do respectivo ganho. A parte restante correspondia notoriedade inerente assinatura, identificando o autor do artigo.35

Sobre o conceito de sistema e sua aplicao ao estudo dos media, cf. Mathien, Michel, Le systme mdiatique, le journal dans son environnement, Hachette, Paris, 1989.

30

A instncia que assegura o interface entre a empresa jornalstica, entendida como sistema, e o meio envolvente, assume caractersticas de gate-keeping. Sendo assim, figura do gate-keeper, corresponde um papel bem mais vasto do que aquele que, insistentemente, lhe atribudo em sociologia da comunicao. Mais do que um mero seleccionador de ocorrncias, susceptveis de converso em notcias (operao habitualmente atribuda aos jornalistas), o gate-keeper o gestor do processo de adaptao das notcias s reaces suscitadas pela respectiva difuso. o agente regulador dos media. Para alm dos jornalistas, a instncia gate-keeper, ou instncia de regulao pode, por isso, incluir o conselho de administrao da empresa, os principais accionistas, o director da publicao, os membros de um comit de programas, de um conselho de redaco ou de uma sociedade de leitores (quando existam) e, at, grupos de presso - polticos, econmicos, culturais, religiosos - que financiem, explcita ou discretamente, o rgo de comunicao social em causa. A funo de regulao exercida pela instncia gate-keeper, acabada de descrever, exprime uma das principais caractersticas do sistema meditico: a retroaco. Diz Eliseo Vron que o destinatrio de um tipo de discurso faz parte das condies de produo desse discurso 36. O produto fabricado pela empresa jornalstica, enquanto sistema, vai contribuir para a modelao do sistema que lhe exterior, isto , o sistema envolvente37

. Do

sistema-envolvente, ou sistema-ambiente, partem, no entanto, sinais que, uma vez absorvidos pela instncia de regulao, so, por esta, acrescentados aos sinais que a mesma instncia de regulao recolhe no interior da prpria empresa jornalstica. O conjunto de sinais provenientes do interior e do exterior actuando sobre os pressupostos36

Le Hibou, Communications, N 28, Paris, 1978.

37

No conceito de meio envolvente preciso distinguir a noo audincia, por natureza abstracta, da noo pblico, por natureza concreta. Digamos, como Daniel Dayan, que a audincia ignora os seres. Esvazia o homem da sua substncia. Pode ser expressa por uma frmula do gnero: "no sei em nome de quem falo, mas conheo todas as suas caractersticas" (Les mystres de la rception, in Le Dbat, N 71, Gallimard, Paris, 1992).

3138

doutrinrios do jornal

originam a deciso da instncia de regulao que se repercute

nos sub-sistemas do jornal: concepo, fabrico, difuso, gesto e manuteno 39 Transmitida s diferentes fases de fabricao, a deciso vai acelerando, retardando ou transformando esta. Vai, em suma, criando o paradigma em que se inspirar a funo de newsmaking. Note-se que a rede de decises que regula os fluxos, que determina a utilizao dos stocks, que organiza as diferentes fases de fabrico, no se limita a verificar a boa aplicao das normas previamente fixadas e a introduzir, quando necessrio, os ajustamentos devidos. Do ponto de vista da teoria da informao, essa rede de decises gera informao que vai impedir a tendncia natural para a desordem, para a entropia.Segundo Abraham Moles (Thorie structurale de la communication et socit, Masson, Paris, 1985), a definio das polticas das instncias de regulao podem inspirar-se em doutrinas mais ou menos combinadas entre si. Esquematicamente: Uma doutrina demaggica ou publicista - O emissor dar ao receptor o que este espera que lhe seja dado ou o que ele, emissor, pensa que o receptor espera que lhe seja dado. O produto ser fabricado em funo da representao do receptor construda pelo emissor. Assim agindo, este procura garantir a maior audincia possvel. Uma doutrina dogmtica ou subliminar - A empresa est dependente de um grupo de presso interessado em utiliz-la como instrumento de propagao de um programa, de uma ideologia, de um qualquer partido poltico ou de uma qualquer sociedade religiosa. Uma doutrina piramidal - Fundada na ideia da separao do pblico, ou da audincia, em diferentes camadas sociais, cada uma das quais com os seus valores prprios. Difundir-se-o, ento, diferentes contedos dirigidos a diferentes camadas. Contedos dirigidos a uma camada superior, a elites, e contedos dirigidos camada inferior, a grande massa de consumidores. Uma doutrina ecltica ou culturalista - Baseia-se na possibilidade de dar a cada indivduo uma amostra de cultura correspondente a um reflexo fiel da "memria do mundo". Baseia-se no mito dinmico da informao objectiva, segundo o qual cada homem possuiria, em si, uma imagem em formato reduzido da cultura universal. Imagem alimentada, justamente, por essas amostras de cultura que, constantemente, iria recebendo dos media. Uma doutrina sociodinmica - Prevalece a ideia de que a quase totalidade das "notcias" pode situar-se, de maneira relativamente objectiva, numa escala de orientao passado versus futuro. O conjunto das notcias, segundo a respectiva orientao, vai influenciar a evoluo da sociedade: travando essa evoluo quando orientado para o passado, acelerando-a quando orientado para o futuro.39

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Poderia supor-se que cada sub-sistema est condicionado por uma lgica coerente que excluiria qualquer margem de liberdade, qualquer autonomia de funcionamento. Suposio verdadeira e falsa. Verdadeira porque, de facto, cada parte est ligada a uma outra e o prprio conjunto de partes, assim constitudo, assume uma unidade que insufla a sua prpria lgica nas partes constituintes. Verdadeira porque cada sub-sistema, ou seja, cada parte, assim como o conjunto por elas formado, objecto de decises da instncia de regulao. Falsa porque cada sub-sistema determina-se, tambm, segundo objectivos prprios e segundo a sua prpria capacidade de os executar. Cada sub-sistema dispe, portanto, de um grau varivel de autonomia interna, de uma certa margem de manobra, de uma certa capacidade de auto-organizao

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Diremos, ento, que a quantidade de informao fornecida ao sistema directamente proporcional ao nvel de neguentropia desses mesmo sistema.

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2 - O JORNAL COMO SUJEITO SEMITICO

O fazer jornalstico desenvolve-se em dois planos. No primeiro, o jornal procura narrar as notcias do dia. Cumpre a sua funo referencial ou, para utilizar uma expresso corrente, a sua funo informativa. Simultaneamente, porm, e num segundo plano, gera sistemas de valores - associados posio do jornal como sujeito da enunciao - que configuram a narrativa produzida. Esta, j no uma narrativa qualquer. a narrativa do jornal. Se no primeiro plano, o plano do rcit, prevalece o saber sobre "aquilo de que se fala", no segundo, o plano do discurso, prevalece o saber sobre "de que modo que se fala" e "porque que se fala". Na justaposio destes dois planos enraza-se a capacidade do jornal de, por um lado, a/re-presentar o real, construindo assim uma histria do presente, e, por outro, despertar e alimentar um hbito junto da clientela cuja espectativa satisfaz quotidianamente. Em virtude das regras e dos projectos que lhe so prprios, um jornal afirma-se socialmente, citando Eric Landovski, como um sujeito semitico40

, dotado de

personalidade jurdica mas tambm, graas ao estilo, ao tom, ao perfil que cultiva, de uma entidade figurativamente reconhecvel pelos leitores.40

La Socit Rflchie, Seuil, Paris, 1989, p. 157.

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Por isso, qualquer jornal extremamente prudente quando pretende mudar de formato, alterar a disposio das rubricas, introduzir ilustraes, usar a cor, etc.. Antes de tudo, vigora o princpio de no hostilizar o leitor, de no romper com habituaes subjacentes ao manuseamento e leitura. Primeiro exemplo. Tendo em conta o seu projecto editorial, de jornal virado para a intelectualidade e para os estratos da burguesia decisora, o Le Monde afirmou-se, desde a sua fundao, como um jornal difcil. Difcil pela linguagem utilizada. Difcil pela ausncia de ilustrao e de cor. Difcil pela dimenso dos caracteres tipogrficos, Difcil pelos reduzidos espaos ocupados pelos ttulos (compostos a poucas linhas e a poucas colunas). Um jornal difcil cuja leitura exigia esforo. E exigia, sobretudo, largos conhecimentos anteriores, de modo a decifrar siglas, a explicitar o que, frequentemente, no era mais do que sugerido. Porque o Le Monde era um instrumento de classe. Um sinal de privilgio. Caracterizava quem o lia. Caracterizava, at, quem o exibia, mesmo que no o lesse. No poderia, portanto, banalizar-se. Colocar-se ao alcance de qualquer. Ser compreendido por qualquer. S que, a crise econmica que se acentua com a dcada de setenta provoca, entre outras consequncias, uma alterao radical do mercado da publicidade. O Le Monde deixa de ter, como interlocutores, tal ou tal empresa, tal ou tal marca, interessada em anunciar tal ou tal produto. Passa a confrontar-se com centrais de compras que representam todo um conjunto de empresas, todo um conjunto de marcas. Que movimentam elevadssimos volumes de negcios. Entre o jornal e a entidade publicitria altera-se, ento, a relao de foras. J no o jornal quem impe as tarifas. Quem impe as datas de insero. Quem impe o modelo grfico do anncio. Ao jornal pouco mais lhe caber que aceitar. Aceitar as exigncias do representante do conjunto de empresas, do conjunto de marcas que, interessadas em

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divulgar produtos de gama alta, condicionam a escolha do suporte s caractersticas tcnicas deste: qualidade do papel, cor, profuso de ilustraes, etc. E o Le Monde tem de mudar. Mas devagar. Comea por inserir, na primeira pgina, desenhos humorsticos assinados por comentadores polticos, os clebres cartoons que, pela sua natureza, se situam entre o texto e a ilustrao propriamente dita. Depois cria espaos brancos, para arejar a paginao. Depois introduz a cor. Uma cor discreta, um azul claro que, discretamente, sublinha este ou aquele ttulo. Depois edita suplementos, que encarta no corpo do jornal, j em bom papel, j com belas e coloridas ilustraes. Mas, note-se, o suplemento no apresentado como um produto comercial. Dito de outra forma, o seu custo de produo no se repercute, pelo menos o que se proclama, no preo do jornal. No: o suplemente um brinde, distribudo gratuitamente ao leitor do jornal. E pouco a pouco, novos hbitos se vo criando. Eventuais resistncias se vo esbatendo. Um quarto de sculo aps ter-se iniciado, o processo de mudana da apresentao do Le Monde encontra-se, ainda, muito longe do seu termo. Segundo exemplo Tradicionalmente, o Dirio de Notcias era um jornal de grande formato. De sbito, contudo, revelou-se de manuseamento complexo. Talvez por causa da lotao cada vez mais preenchida dos transportes colectivos. Talvez por causa de novos hbitos do leitor. Talvez.... Criaram-se suplementos temticos de meio formato. Que agradaram ao pblico. E sondagens repetidas confirmaram esse agrado. No novo formato, o jornal seria de mais fcil leitura. Mais fcil de folhear. J no se incomodaria o parceiro de banco, no autocarro, no metro. E, certo dia, o DN surgiu impresso, todo ele, em formato mais reduzido. Mas, avisava-se: nada de opes definitivas. Tudo experincia. Tudo sujeito reao, positiva ou negativa do destinatrio.

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Segredo de Polichinelo. Se necessrio fosse, l estaria o Correio dos Leitores para assertar a evidncia. O certo que, com a mesma tonelagem de papel, com a mesma quantidade de tinta, duplicou-se ou o nmero de pginas ou a tiragem de cada edio. O que significa, potencialmente, maiores receitas de publicidade 41 ou maiores receitas de vendas. Tanto no primeiro como no segundo exemplo so razes econmicas, sobretudo ligadas ao mercado da publicidade, que esto em jogo. A habilidade, nas estratgias adoptadas, est em endossar ao leitor a responsabilidade da deciso. A relao jornal / leitor assenta, portanto, numa dinmica de imagens e numa dupla conivncia. 1. Assenta numa dinmica de imagens. Com efeito, diversas imagens podem, teoricamente, ser construdas na relao entre o jornal e o leitor ou, se se quizer, entre o emissor e o receptor. - O emissor pode construir uma imagem do receptor ou do conjunto de receptores que no coincide, necessariamente, com a imagem que cada um destes tem de si prprio. - O emissor pode construir uma imagem de si que no coincide, necessariamente, com a imagem de si construda por cada um dos receptores. - O receptor pode construir uma imagem do emissor, do seu papel, da sua funo que no coincide, necessariamente, com a imagem que o emissor constri de si mesmo. - O receptor pode construir uma imagem de si que no coincide, necessariamente, com a imagem de si construda pelo emissor. Para que haja efectiva relao jornal / leitor, concretizvel no acto de compra, necessrio, contudo, que a imagem do leitor junto do jornal e que a imagem do jornal junto do leitor apresentem uma zona comum. Quanto maior for essa zona comum mais se refora a relao de fidelizao leitor / jornal. A sua diminuio implica riscos de41

As tarifas de publicidade so frequentemente calculadas, no em cm/col., mas segundo a rea que ocupam relativamente ao total da pgina: meia pgina, um quarto, um oitavo, etc.

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conflito. A inexistncia de qualquer zona comum traduz-se pela ausncia de relao. Donde, pela no compra. 2. Assenta numa dupla conivncia. - Uma conivncia quanto aos contedos: ao definir o seu quadro de referncias ("de que que se fala", "como que se fala" e "porque que se fala") o jornal realiza aquilo que julga ser a vontade do leitor. Este, por sua vez, vai encontrar no jornal aquilo de que quer que se fale e da forma pela qual quer que se fale. - Uma conivncia quanto ao produto propriamente dito, ou seja, quanto ao aspecto do objecto-jornal: ao pensar o aspecto do objecto, o respectivo editor antecipa as sensibilidades estticas do leitor fiel. Este, ao confrontar-se com o jornal, actualiza um ritual que supe uma "primeira leitura", uma leitura em diagonal, no mbito da qual se avaliam espaos, se comparam ttulos e se percorre, com o olhar, as ilustraes; uma "segunda leitura" em que o olhar se retarda sobre tal "caixa" ou tal lead; uma "terceira leitura" em que se escolhem as rubricas e se isolam os textos que vo ser, efectivamente, lidos. Neste processo de mtua apropriao (em que o leitor se apropria do jornal, ao folhe-lo, ao v-lo, ao l-lo, e em que o jornal se apropria da ateno do leitor) consolida-se a envolvente mediaticamente estvel dos contedos informativos organizao espacial das rubricas, volume mdio dos ttulos42

, proporo das reas

ilustradas, distribuio da cor - que constitui o que poderamos chamar o relevo da pgina-jornal 43. Relevo que gera efeitos de real: ao estratificar e hierarquizar as leituras, ao normaliz-las atravs da imposio de categorias abstractas.42

Em La marque du titre dispositifs smiotiques d une pratique textuelle (Mouton diteur, La Haye, Paris, New York, 1981) Leo H. Hoek faz um levantamento exaustivo dos estudos j publicados sobre o ttulo, conferindo a esta problemtica a dignidade de disciplina cientfica que ele designa por titulogia.43

A importncia atribuda ao relevo da pgina-jornal tem levado alguns investigadores a quase confundirem anlise de contedo com anlise morfolgica de imprensa. Como se a morfologia dos jornais determinasse, inexoravelmente, os respectivos contedos. Das metodologias mais usadas para anlises deste tipo ressalta a de Jacques Kayser, exposta em Le Quotidien Franais (Armand Colin, Paris, 1963). Numa obra que se tornou clssica para os estudos de imprensa, Kayser prope uma complexa frmula de mise en valeur que combina e atribui coeficientes a variveis como comprimento e altura dos ttulos, existncia ou no de cor nos ttulos em questo, dimenso e peso relativo dos caracteres tipogrficos utilizados, comprimento, em cm/col., dos textos, localizao dos ttulos e respectivos textos (na 1 pgina ou nas pginas interiores e, nestas, em pginas pares ou em pginas mpares, ao alto, a meio da pgina ou

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2. 1. TTULOS REFERENCIAIS E TTULOS INFORMACIONAIS

Ao efectuar a "primeira leitura" de uma dada edio do jornal que regularmente adquire, o leitor depara, imediatamente, com ttulos invariantes, isto , com ttulos que j conhece de edies anteriores. So ttulos familiares que respondem a uma dupla pergunta: o que que h no jornal e onde que aquilo que h se encontra situado. Esses ttulos articulam-se segundo um eixo horizontal (Poltica Nacional, Estrangeiro, Economia, Desporto, Cultura, Sociedade, etc.) e segundo eixos verticais (Estrangeiro, Amricas, Canad, etc.). O eixo horizontal caracteriza-se pela fraca relao entre os seus elementos constituintes - apenas uma relao de contiguidade - e por se tratar de uma cadeia aberta, acrescentvel em qualquer momento. Em contrapartida os elementos dispostos ao longo de cada eixo vertical esto em relao de implicao cujo ponto de partida localizvel algures, no eixo horizontal. No plano da lngua, estes ttulos a que chamaremos referenciais no constituem frases, no remetem para uma qualquer frase existente no jornal, no resumem artigos. No plano da informao, no significam mas designam. So ttulos vazios no que respeita informao sobre as coisas, sobre os acontecimentos, sobre o "estado do mundo possvel". Um jornal que contivesse apenas destes ttulos, seria um jornal vazio de substncia, como se estivesse sujeito a uma censura drstica, total. Seria como que uma grelha espera de ser preenchida. No informam sobre o que se passa no mundo, informam sobre o prprio jornal e exprimem a dupla organizao desse mesmo jornal: a organizao temporal da sua publicao e a organizao espacial de cada nmero. Dupla organizao implicando queem baixo, esquerda ou direita, etc.), existncia ou no de ilustrao para cada conjunto ttulo/texto, importncia relativa do conjunto ttulo/texto na pgina em que est inserido ... Pelo empirismo de que se revestem, temos grandes reservas quanto a anlises deste tipo. Pressupem uma relao, nem sempre verificvel, entre destaque formal e importncia dos contedos. Em termos de significado o no dito , por vezes, mais importante que o dito. Pelo que, uma anlise quantitativa como a proposta por Kayser, pode incorrer num grave risco: o de, como escreve Greimas no prefcio ao livro de Dominique Memmi Du rcit en politique (Fundao Nacional das Cincias Polticas, Paris, 1986), ocultar em vez de revelar.

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os nmeros do jornal se sigam diariamente, mas que cada nmero no seja meramente a sequncia do anterior. Isto , que exista de um nmero para o outro algo de comum: a identidade, a memria do jornal que fideliza as clientelas. Mas que cada nmero constitua, de per si, uma totalidade, onde caiba a totalidade do mundo que se reporta. Porque informam sobre o prprio jornal, o mais referencial de todos os ttulos referenciais o prprio ttulo do jornal. Porque informam sobre a informao veiculada pelo jornal, constituem a meta-informao do jornal. Tendo em conta as suas caractersticas, os ttulos ou enunciados referenciais exigem a presena de outros ttulos ou de outros enunciados complementares. Digamos que o enunciado referencial representa o "tema" enquanto que o enunciado complementar representa o "rema". O segundo actualiza o primeiro. Gramaticalmente, o enunciado referencial um sintagma nominal enquanto que o enunciado complementar, ou enunciado de actualizao, um sintagma verbal: forma uma frase e estabelece a ligao com o real. A este ltimo enunciado chamaremos informacional. A ele corresponde o ttulo informacional 44. O ttulo referencial e o correlativo ttulo informacional constituem, no seu conjunto, um micro-sistema em que cada uma das partes supe a verificao da outra e em que se conjugam duas funes primordiais: a reproduo ou o reforo dos paradigmas e a produo de diferenas. A escolha dos paradigmas da responsabilidade do jornal. a expresso da identidade do jornal que o distingue dos restantes. a estrutura estvel, a estrutura normalizadora que marca a continuidade dos nmeros do jornal. J a produo de diferenas inerente bvia necessidade do jornal se renovar de um para outro nmero. O micro-sistema ttulo referencial / ttulo informacional oferece, assim, ao jornal, essa possibilidade espantosa de, de um dia para o dia seguinte, ser outro, continuando no entanto a ser o mesmo.

44

Cf., sobre ttulos referenciais e ttulos informacionais, de Maurice Mouillaud, Le titre et les titres, in Le Journal Quotidien, Presses Universitaires de Lyon, Lyon, 1989, pp. 115-128.

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Numa perspectiva dinmica, sublinhe-se que o micro-sistema est em constante renovao, reconstruindo-se em cada momento pela substituio da parte informacional. Sublinhe-se ainda que, em funo da actualidade ou de estratgias informativas mais variadas, assim um assunto que, antes, apenas justificava um ttulo informacional pode passar a justificar um ttulo referencial. E reciprocamente. At revoluo de Abril de 1974, raramente Portugal surgia nas pginas do Le Monde como, alis, nas pginas de outros jornais estrangeiros. De tempos a tempos, um ttulo informacional, articulado com o ttulo referencial Europa, dava a conhecer a existncia de fraudes nas legislativas, revelava os ltimos elementos apurados pela comisso internacional de inqurito ao assassinato de Delgado, denunciava os massacres cometidos em Moambique. Aps o 25 de Abril e, mais precisamente, aps os acontecimentos de 11 de Maro de 1975, o mundo descobriu Portugal. E, naturalmente, o Le Monde tambm. Diariamente, o Le Monde passa a incluir diversas pginas relatando confrontos polticos em Lisboa, manifestaes no Porto, tentativas separatistas nos Aores, actos violentos em Luanda, reaces em Washington, em Moscovo e na sede da NATO, em Bruxelas, relativamente a riscos de tomada do poder pelos comunistas. Diariamente, dezenas de ttulos informacionais submetidos a um ttulo referencial: Portugal. Acontece, entretanto, o 25 de Novembro de 1975. Altera-se a relao de foras em prejuzo da esquerda radical que, paulatinamente, afastada do aparelho poltico. Promulga-se a Constituio. Realizam-se as primeiras legislativas e presidenciais em contexto democrtico. Forma-se o primeiro governo constitucional. Normaliza-se o edifcio democrtico e o interesse jornalstico por Portugal vai esmorecendo. At que o ttulo referencial Portugal eclipsa-se do Le Monde e dos restantes jornais mundiais. Decididamente, a diacronia do acontecimento nos media uma. No real outra. Jornalisticamente, uma ocorrncia ganha, a dado momento, foros de acontecimento. Progride na curva ascendente do interesse: logo, objecto de um

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tratamento noticioso cada vez mais intenso. Atinge o ponto mais elevado da curva ascendente do interesse e inicia o seu percurso pela curva descendente do interesse. A partir de certa altura, porm, a ocorrncia deixa de ser avaliada em termos de curva de interesse e passa a ser avaliada em termos de curva de desinteresse. o momento crucial. o momento da mudana de registo. o momento da mutao qualitativa. Chamemos-lhe o momento Kairos45

. A ocorrncia j no suscita mais ou menos

interesse. Passa, sim, a suscitar mais ou menos desinteresse. Se a existncia de ttulo referencial marca a posio da ocorrncia nas imediaes (para mais ou para menos) do topo da curva de interesse. O momento Kairos aquele em que se d a morte jornalstica dessa ocorrncia. Nem ttulos referenciais, nem, salvo episodicamente, ttulos informacionais. Por isso a narrativa jornalstica composta de histrias inacabadas. Dia aps dia, o nome de Laurent Kabila surge, invariavelmente, nos ttulos dos jornais. A cara de Laurent Kabila -nos apresentada em inmeras fotografias. De repente, some-se o nome e some-se a cara. Nem a mnima aluso. E, no entanto, Kabila continua a viver (a governar?) em Kinshasa. O perigo existe para o leitor fiel do jornal, para qualquer leitor fiel de qualquer jornal, de ver o mundo em fragmentos.

2. 2. ANAFORISMO E CATAFORISMO

Se ao ttulo referencial, ou ao conjunto dos ttulos referenciais, que cabe a organizao temporal da publicao e a organizao espacial de cada nmero da publicao, ao titulo informacional, ou ao conjunto dos ttulos informacionais, que cabe estabelecer a relao entre o saber novo e o saber anterior e apresentar o texto referente informao nova que veicula (apresentao que implica, simultaneamente, justificar o texto e ser justificado pelo texto).45

Conceito trabalhado por Louis Marin no Seminrio Smantique des Systmes Reprsentatifs realizado, no ano lectivo 1990/91, na Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais, de Paris.

42

Esse movimento para trs, esse recurso ao saber anterior que fixa o quadro memorial de elementos necessrios compreenso da informao nova46

, opera-se

atravs de anforas, conceito desenvolvido por Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov 47. J o movimento para a frente, o movimento para o texto, texto ancoragem do ttulo e texto espelhado no ttulo, encontra frequentemente a sua manifestao em anforas de um tipo especial, que Jean-Franois Ttu designa por catforas 48.

2. 2. 1. APLICAO

Vejam-se os ttulos seguintes: 1. A nobre atitude de Portugal 49 A imprensa inglesa elogia a poltica seguida pelo nosso governo e reconhece os deveres que a segurana nacional nos impe(Dirio de Notcias, 11/1936)

2. Portugal no Estranjeiro A obra de Salazar antes e depois da guerra analisada pelo jornal La Croix(Jornal do Comrcio, 17/6/1943)

3. A ultima recepo na Casa de Portugal em Paris(D. N., 2/3/1934)

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Baseando-se na gramtica generativa, Leo H. Hoek distingue entre a competncia passiva, que tm todos os locutores de compreenderem os ttulos, e a competncia activa que tm certos locutores de os produzirem. Esta ltima, acrescenta o mesmo autor, no inata, deve ser aprendida e mantem-se muitas vezes em estado latente, La marque du titre, op. cit., p. 293.47

Diz-se que um segmento do discurso anafrico quando a sua interpretao exige que se recorra a um outro segmento do mesmo discurso: chamaremos interpretante ao segmento ao qual a anfora nos envia, Dictionnaire encyclopdique des sciences du langage, Seuil, Paris, 1972, p. 358. Nos ttulos que comportam nominalizaes claramente anafricas (a queda do dollar, por exemplo) melhor empregar o termo catfora j que a expanso sintagmtica (ontem, em todas as grandes praas internacionais o dollar perdeu [...]) se encontra no artigo que se segue, isto , aps a expresso condensada, Le discours du journal: contribution l tude des formes de la presse quotidienne, Tese de Doutoramento de Estado, Universidade de Lyon II, 1982 (exemplar policopiado).49 48

Sublinhado nosso. No original este segmento do ttulo aparece claramente destacado.

43 4. O interesse que Salazar desperta...(Dirio da Manh, 28/11/1939)

5. Palavras exemplares(Nao, 13/12/1947)

6. Lon de Poncins publicou ontem no Jour o ultimo artigo da sua reportagem sobre o nosso Pas(D. N., 4/7/1935)

No ttulo (1), d-se adquirido o conhecimento, por parte do pblico leitor, da atitude assumida pelo governo portugus que merece do jornal o epteto de nobre 50. Esse conhecimento supostamente j adquirido manifestado pelo artigo definido, de caractersticas anafricas A existente na primeira parte do enunciado-ttulo (A nobre atitude de Portugal) que, por conseguinte, nos impele a um movimento para trs, em direco ao nosso quadro de referncia, condio indispensvel compreenso do dito no ttulo. Repare-se que se o artigo fosse retirado do ttulo, este mudaria por completo de significado. No ttulo assim construdo (Nobre atitude de Portugal) no haveria conhecimento anterior, a no ser o da existncia de um pas chamado Portugal. A nobre atitude inscrever-se-ia, ento, na rea do saber novo, provavelmente explicitado no texto correspondente ao ttulo em questo. Acrescente-se que a transformao seria ainda mais visvel se, em vez de se suprimir o artigo A, este fosse substitudo pelo artigo indefinido Uma. Retomando o exemplo, sublinhe-se que a dimenso anafrica de A nobre atitude de Portugal traduz-se, no texto, pela inexistncia de qualquer frase que explique, claramente, de que atitude se tratou. Que justifique o epteto nobre. Apenas referncias indirectas cuja compreenso assenta no conhecimento antecipadamente adquirido a que aludimos no incio deste comentrio. Fica assim a saber-se, pela leitura do texto, que, segundo o Morning Post, Longe de merecer recriminaes, o GovernoTrata-se da deciso tomada pelo governo portugus de romper as relaes diplomticas com o governo republicano espanhol.50

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de Lisboa merece todos os encmios pela prudncia que revela perante a ameaa contra a sua prpria existncia que, certamente, adviria de um regime vermelho que triunfasse alm da fronteira. E que, para The Observatore, Em legtima defesa e para a sua prpria conservao impossvel a Portugal conservar-se neutro. No ttulo (2), estamos perante um anaforismo de tipo especial que designmos por cataforismo, isto , um anaforismo para a frente. Com efeito o artigo A, do fragmento A obra de Salazar, impele para a leitura do texto. Este movimento para a frente , alis, explicitamente indicado pelo prprio ttulo ao referir que a obra de Salazar analisada pelo jornal La Croix. Contrariamente ao exemplo anterior, toda a explicao est agora no texto: [...] quatro anos de segurana dentro de rigorosa neutralidade. Quatro anos durante os quais o Chefe do Govrno de Lisboa no tem deixado de ser o porta-voz autorizado e esclarecido da conscincia dos povos e dos govrnos que na sua conduta apenas so inspirados pela preocupao do bem estar da sua ptria, do seu progresso social, da sua elevao moral, de tudo o que nicamente se funda na s justia, nos direitos legtimos dos cidados e ao mesmo tempo nos deveres de governantes e governados, dos Estados e das Naes. No ttulo (3) verifica-se um duplo movimento: um movimento para trs, anafrico, expresso pela partcula a contida em na Casa de Portugal em Paris, e um movimento para a frente, catafrico, evidenciado pela partcula A de A ltima recepo. Enquanto que, no primeiro caso, se d como adquirido o conhecimento prvio do que a Casa de Portugal (sem o qual o enunciado ttulo seria ininteligvel), no segundo deixa-se para o texto a funo de fixao do sentido: [...] A Comoedia insere um longo artigo de Pierre Lagarde, intitulado em duas colunas: Quando M. Paul Valery, diante dos portugueses fala de Ditadura. Nesse artigo o autor comea por frisar nesta frmula breve o imenso interesse despertado pela festa de ontem: a multido dos grandes dias, ontem na Casa de Portugal. Mas o cataforismo pode realizar-se, tambm, atravs de construes interrogativas, depreendendo-se, ento, que a resposta est no texto. Pode realizar-se atravs de outras formas apelativas como as exlamaes ou as reticncias ou realizar-se,

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como nos ttulos (4) e (5), atravs de frases algo enigmticas porque retiradas de um contexto que se deixa apenas entrever. Nos exemplos escolhidos a decifrao do ttulo surge algures no texto. - em (4), quando se cita Luciano Berra autor de um artigo intitulado Prima era lo spirito publicado no jornal milans L'Italia: O que interessa [...] no estadista no tanto o mtodo como a doutrina nem tanto o temperamento como os conceitos filosfico, poltico, social e econmico, sbre os quais ele baseia a sua aco. ste o verdadeiro intersse que Salazar desperta...; - em (5) quando se l algum dos extractos do artigo publicado no jornal espanhol Arriba, transcritos pela Nao: Com uma claridade mediana, o Presidente do Conselho de Portugal esboou a tragdia do mundo, num esquema de evidncias [...]". Claro est que estes processos anafricos podem servir estratgias de manipulao relegando para o plano do conhecimento anterior, portanto indesmentvel e inquestionvel, aquilo que, afinal, no o . Analise-se o ttulo (6), autntico feixe de movimentos anafricos. Pela forma como est construdo, supe-se que o leitor j sabe quem Lon de Poncins, j sabe da existncia do jornal Jour, j sabe que Lon de Poncins escreveu uma reportagem sobre Portugal, j sabe que s faltava publicar um dos artigos dessa reportagem. A nica informao transmitida - o saber novo - que esse artigo, que ainda faltava, foi publicado ontem... 51 Comentando esta capacidade manifestada pelos enunciados-ttulo de gerar um discurso ideal, diz Jean Franois Ttu que o ttulo "Impe uma informao sem ter, previamente, que a justificar. [...] A informao justifica-se a si mesma pela forma sob a qual aparece" 52.

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Esta questo ser desenvolvida mais frente, no estudo do posto e do pressuposto enquanto estratgias enunciativas.52

Le Discours du Journal, op. cit., pp. 296-297.

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3. ESTRATGIAS ENUNCIATIVAS

Analisar o discurso de um jornal implica ter sempre presente um modelo de comunicao. Qual o modelo de que se parte para a anlise que se pretende fazer? Escamotear a questo significa passar ao lado do rigor cientfico minimamente exigvel. Por isso esclarea-se, desde j: postulamos uma relao de simbiose entre destinador e destinatrio, mediante a qual o destinador existe pela existncia do destinatrio e o destinatrio pela existncia do destinador; postulamos, em consequncia, a gnese hbrida dos contedos assim produzidos. Simbiose e hibridismo que rompem com a clssica noo de sistema de comunicao, linear e mecanicista, em que cada um dos seus elementos constitutivos gozaria de ampla autonomia. Antes de abordarmos as estratgias enunciativas presentes no discurso do jornal, propomo-nos apresentar, sucintamente, alguns aspectos da investigao americana no domnio das cincias da comunicao que culminou com a teoria dos efeitos, expresso acabada desse sistema linear e mecanicista, constitudo por elementos autnomos, que recusamos. Abordaremos, tambm, o modelo de Jakobson que se nos afigura uma soluo de compromisso entre teoria dos efeitos e funcionalismo. Abordaremos, por

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fim, o conceito de dialogismo em Bakhtine, numa dupla perspectiva: crtica do modelo jakobsiano e fundamento terico de algumas das posies que adoptamos. A clebre questo-programa formulada por Harold Lasswell nos finais da dcada de quarenta - Quem, diz o qu, atravs de que canal, a quem, e com que efeitos - ilustra bem a autonomia que era reconhecida s diferentes instncias do modelo de comunicao clssico. Autnomos, isolveis, cada um dos elementos da cadeia de comunicao poderia merecer um estudo prprio. E a investigao, segmentada, compartimentada, individualizada, atingiria o grau mximo de operatividade. Ao primeiro quem da pergunta corresponderia o estudo sociolgico dos meios e dos organismos emissores: jornalistas, vedetas da rdio ou de televiso e empresas jornalsticas ou de radio-televiso. As mensagens produzidas por essas fbricas de um gnero novo seriam passveis de uma anlise de contedo e corresponderiam ao qu da pergunta de Lasswell. O estudo dos canais ocuparia um terceiro captulo: reportar-se-ia ao conjunto das tcnicas que, em dado momento e numa dada so