O DPS Da Criança Em Contexto de Vida Institucional

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O desenvolvimento pessoal e social da criança em contexto de vida institucional elementos para uma análise da ecologia da interpessoalidade Paula Cristina Martins 1 [email protected] As dinâmicas interpessoais devem ser compreendidas em contexto, nas suas dimensões materiais e simbólicas, estruturais e conjunturais. Daqui decorre a importância de, no que se refere às instituições de acolhimento de crianças, se conhecer o seu funcionamento interno e a sua relação significativa com o meio circundante. O carácter construtivo da interpessoalidade na infância justifica a centralidade desta dimensão, com particular acuidade em contexto institucional, requerendo uma atenção cuidada e uma organização estratégica. 1. A ecologia das relações interpessoais em contexto institucional Quando falamos em relações interpessoais, frequentemente tendemos a focar- nos excessiva ou estritamente nas dinâmicas relacionais propriamente ditas, sejam elas entre adultos, entre crianças ou entre adultos e crianças. Ao fazê-lo, ignoramos que a compreensão deste fenómeno, particularmente em contexto institucional, requer, para além de uma análise intensiva, um olhar extensivo sobre a sua ecologia, isto é, sobre os factores que, directa e indirectamente, próxima e remotamente, o condicionam e explicam. Na verdade, se as instituições em si próprias e em particular as instituições de acolhimento se pretendem cada vez mais envolvidas no tecido social e comunitário em que se inserem, também as suas dinâmicas devem ser entendidas no quadro dos contextos mais vastos em que se incluem e nos quais participam. Assim acontece com as relações interpessoais no seio institucional. De facto, há um conjunto de condições de ordem estrutural e dinâmica, material e psicológica, de factores que exercem a sua influência de forma imediata ou mediada, próximos ou distanciados, e que configuram as dinâmicas relacionais. Concretizemos algumas destas influências: 1 Professora Auxiliar no Instituto de Estudos da Criança – Universidade do Minho

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Percursos pós-institucionaçlização

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  • O desenvolvimento pessoal e social da criana em contexto de vida institucional

    elementos para uma anlise da ecologia da interpessoalidade

    Paula Cristina Martins1

    [email protected]

    As dinmicas interpessoais devem ser compreendidas em contexto, nas suas dimenses materiais e simblicas, estruturais e conjunturais. Daqui decorre a importncia de, no que se refere s instituies de acolhimento de crianas, se conhecer o seu funcionamento interno e a sua relao significativa com o meio circundante. O carcter construtivo da interpessoalidade na infncia justifica a centralidade desta dimenso, com particular acuidade em contexto institucional, requerendo uma ateno cuidada e uma organizao estratgica.

    1. A ecologia das relaes interpessoais em contexto institucional

    Quando falamos em relaes interpessoais, frequentemente tendemos a focar-

    nos excessiva ou estritamente nas dinmicas relacionais propriamente ditas,

    sejam elas entre adultos, entre crianas ou entre adultos e crianas. Ao faz-lo,

    ignoramos que a compreenso deste fenmeno, particularmente em contexto

    institucional, requer, para alm de uma anlise intensiva, um olhar extensivo

    sobre a sua ecologia, isto , sobre os factores que, directa e indirectamente,

    prxima e remotamente, o condicionam e explicam.

    Na verdade, se as instituies em si prprias e em particular as instituies

    de acolhimento se pretendem cada vez mais envolvidas no tecido social e

    comunitrio em que se inserem, tambm as suas dinmicas devem ser

    entendidas no quadro dos contextos mais vastos em que se incluem e nos quais

    participam. Assim acontece com as relaes interpessoais no seio institucional.

    De facto, h um conjunto de condies de ordem estrutural e dinmica, material e

    psicolgica, de factores que exercem a sua influncia de forma imediata ou

    mediada, prximos ou distanciados, e que configuram as dinmicas relacionais.

    Concretizemos algumas destas influncias:

    1 Professora Auxiliar no Instituto de Estudos da Criana Universidade do Minho

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    X a localizao fsica das instituies, a sua distncia objectiva e o acesso relativamente aos servios, recursos e ao conjunto da comunidade em geral,

    condicionam a qualidade e a frequncia dos contactos e trocas que

    estabelecem com o meio envolvente. O isolamento que ainda caracteriza

    muitas das instituies constitui um factor de restrio da diversidade de

    experincias disponveis para as crianas em regime institucional.

    X A aparncia externa das instituies projecta uma imagem sobre o meio envolvente, condicionando os olhares que com que so olhadas e, em

    consequncia, as atitudes e disponibilidades dos interlocutores.

    X A organizao dos espaos interiores, o n, a dimenso e a funcionalidade dos compartimentos, assim como as regras da sua utilizao condicionam

    fortemente as dinmicas interpessoais no seio das instituies.

    X Os critrios e procedimentos de ordem funcional, as prticas institudas, as regras gerais de funcionamento, so igualmente decisivos.

    A ttulo de exemplo, refira-se o n de utentes das instituies para

    crianas e jovens se 12 crianas, 60 ou 100 o gnero da populao

    admitida, o leque etrio das crianas acolhidas se 0-6, 12-18 ou 0-18

    as problemticas das crianas NEE, problemas mentais e de

    comportamento so, entre outras, condies de absoluta relevncia.

    X Do mesmo modo, as concepes que as instituies e os seus intervenientes tm do seu papel e interveno, os modelos de actuao que perfilham, os

    objectivos que definem, as prticas que estatuem, consentem ou legitimam,

    so aspectos de extrema importncia na configurao das dinmicas

    relacionais no seio institucional.

    X A dimenso e a composio das equipas de trabalho, com implicaes no ratio utente-profissional, o clima e a satisfao no trabalho, a extenso da

    participao dos profissionais na vida da instituio, a sua formao, os

    processos e critrios de recrutamento e de seleco, so dimenses que a

    investigao provou serem determinantes das relaes interpessoais e, em

    ltima anlise, da qualidade do atendimento prestado e, portanto, das

    prprias instituies.

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    X Os moldes de relacionamento permitidos e activamente promovidos pelas instituies em relao s famlias da populao-utente, as trocas

    estabelecidas entre as instituies e a comunidade envolvente, o carcter

    activo-passivo das relaes quotidianas, a capacidade de articulao e

    coordenao das suas intervenes com outras entidades e pessoas

    relevantes, todos estes factores so fortemente explicativos da construo

    das relaes e do desenvolvimento interpessoal no mbito das instituies.

    Qualquer dimenso institucional , pelo exposto, susceptvel de ser analisada

    do ponto de vista da qualidade relacional que traduz, dentro e fora das suas

    paredes. A partir do estudo destes elementos, ainda possvel avaliar o grau de

    intencionalidade ou orientao estratgica da sua aco.

    Na verdade, a qualidade das relaes interpessoais reveste-se de importncia

    acrescida quando se trata de crianas e jovens. De facto, no constitui apenas

    uma dimenso da qualidade de vida e do bem-estar actual dos menores, mas

    tambm um vector de construo do seu desenvolvimento, portanto, um factor

    prospectivo com impacto ao nvel da sua organizao psquica e scio-afectiva.

    Admitido o carcter construtivo das relaes interpessoais na infncia e

    adolescncia, gostaria de salientar uma faceta da sua relevncia

    desenvolvimental, nomeadamente o papel que a interpessoalidade tem no

    desenvolvimento da identidade.

    2. Interpessoalidade e Identidade

    A instncia de definio da criana como pessoa, o seu referencial identitrio,

    de organizao psquica, o outro. Mas no um qualquer outro. No um outro

    abstracto, alheio ou indiferente. Pelo contrrio, um outro diferente porque

    sujeito e objecto de reconhecimento, o outro prximo e significativo, investido

    pelo afecto, o outro relativo, o outro para si. na relao com estes outros que a

    criana vai colhendo informaes sobre quem , construindo um conhecimento

    negociado, mais ou menos implcito sobre si prpria, compreendendo-se a partir

    da relao.

    Os olhares dos outros com vista para os olhos da criana (S, 1995b, p. 80)

    funcionam como espelhos. Olhares mltiplos e plurais, de diferentes pessoas,

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    inevitavelmente contrastantes e mesmo contraditrios, parciais, devolvem

    criana imagens diversas, desconexas, por vezes mesmo distorcidas.

    Formar um sentido de si integrado e coerente entre tantas imagens

    projectadas pela variedade de relaes que a criana entretm com o mundo

    sua volta, requer a presena e a orientao de um ou mais olhares significativos

    que restaurem a integridade da sua imagem, que assegurem a sua unidade e

    constncia, que garantam a sua coeso e continuidade. Porque assim que se

    constri a identidade, face ao espelho destes olhares imprescindveis que, no

    dilogo do vivido, permitem a construo interpessoal de uma verdade essencial

    sobre a criana (Martins, 2001a). A personalidade de cada um, o self, o ncleo

    organizador da sua identidade, tem assim uma textura relacional, construda no

    contexto de relaes fundadoras, necessariamente contnuas, duradoiras,

    investidas de significado pessoal para as partes envolvidas e significantes, ou

    seja, que contenham em si uma promessa implcita de futuro, que envolvam um

    sentido de valor prprio e sejam portadoras de sentido.

    Esta verdade relacional, este olhar partilhado por quem reconhece a criana e

    por ela reconhecido, progressivamente apropriado, recriado e transformado,

    interiorizando-se. Ento a imagem vai-se libertando do espelho enquanto a criana

    a inscreve dentro de si.

    O que acontece frequentemente nos percursos vivenciais das crianas e jovens

    que so objecto de medidas de acolhimento institucional, em particular, a falta,

    a perda ou a distoro destes olhares organizadores. Simultaneamente, estas

    crianas so submetidas a uma pluralidade de olhares descomprometidos

    pense-se na variedade de estranhos com que contactam e de intromisses ou

    aces invasivas que sofrem olhares que no permitem conhecer porque no se

    reconhecem mutuamente, que no engendram cumplicidades, e por isso, em vez

    de revelar ou confirmar a sua identidade, contribuem para a expor e fragmentar.

    Nas palavras da directora de um centro de acolhimento temporrio,

    O que que falha numa instituio? o olhar nico que uma me

    dirige ao seu filho ou aos seus filhos, so olhares nicos

    (Martins, 2004, p. 451)

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    E so estes olhares geralmente da me, mas no necessariamente que

    geram o sentido de valor pessoal, por um lado, e de pertena, de tal forma

    indissocivel da identidade pessoal, que, nas palavras de Cyrulnik (2000), no

    pertencer a ningum tornar-se ningum (p.85).

    Uma criana sem pertena sentida e reconhecida fica margem das estruturas

    e circuitos sociais institucionalizados que lhe permitem estabelecer trocas

    afectivas e vincular-se. A falta ou desorganizao das interaces quotidianas,

    estruturantes da representao do mundo e da personalidade, condicionam um

    sentimento de fluidez e desorientao pessoal e social; a criana, sem referncias

    consistentes, fora dos percursos definidos e normalmente prescritos para o

    crescimento, experimenta a pontualidade da sua existncia, sente-se perdida e

    desvinculada de si e dos outros, s, porque abandonada portanto em risco,

    intrapessoal, interpessoal e social mais alargado.

    3. A ambivalncia e complexidade relacional nos contextos institucionais

    O acolhimento institucional acresce e multiplica o carcter paradoxal das

    vivncias destes menores. Se se trata de um arranjo legalmente legtimo e

    socialmente necessrio, no pode iludir a sua complexidade do ponto de vista

    psicolgico, e em particular, relacional.

    Devem aqui ser equacionadas as relaes das crianas e jovens acolhidos com

    y os adultos da instituio

    y os seus familiares prprios

    y as outras crianas e jovens tambm em regime de acolhimento

    y o meio envolvente da instituio em que participam

    X Os adultos que trabalham na instituio tcnicos e demais colaboradores so investidos de um papel parental por determinao jurdica/administrativa e

    atribuio das suas competncias profissionais. uma tarefa racional,

    planificada, em que o afecto impresso na relao paterno-filial est ausente, e

    cujo desenvolvimento sujeito a restries. A disponibilidade e o envolvimento do

    adulto vectores cruciais do estabelecimento e manuteno de padres

    recprocos de interaco e de vinculao emocional progressivamente mais

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    complexos so, por razes de ordem afectiva e pragmtica, pessoal e

    contextual, claramente distintos no quadro das relaes informais e das

    instituies. Trata-se de uma relao contratualizada, que no cumpre os

    requisitos das relaes que fazem crescer, no dizer de Bronfenbrenner (2002),

    fortes, mtuas, a longo prazo e irracionais-emocionais. Por outras palavras, o

    contexto institucional no o espao onde se geram as relaes caracterizadas

    pela mobilizao de afectos profundos, com envolvimento em trocas recprocas

    altamente gratificantes, que engendram imagens positivas e sobrevalorizadas das

    partes e portadoras de altas expectativas que transfiguram o presente e

    projectam o futuro uma dinmica afectivo-relacional indispensvel motivao

    persistente e ateno preferencial criana. Pelo contrrio, os profissionais

    chegam mesmo a exprimir reservas sobre o seu envolvimento em relaes de

    proximidade com as crianas acolhidas, muitas vezes inevitvel, mas indesejado,

    receando a repetio traumtica da separao, terminado o perodo de

    acolhimento (Martins, 2004).

    Muitos so os relatos de dilogos e atitudes de crianas que, nas palavras de

    Eduardo S (1995a), vidas de pais, questionam insistentemente os adultos,

    procurando estabelecer/negociar vnculos privilegiados. As respostas dos

    profissionais so no sentido de adequar as suas expectativas realidade,

    procurando enquadrar devidamente a relao.

    Na prtica, negada criana a satisfao da necessidade de investir

    psiquicamente numa figura de vinculao, de construir uma relao onde se

    possa projectar e pensar. No fundo, so assegurados um afecto e uma

    disponibilidade em servio, racionais e racionalizados, sem relaes de pertena.

    Procurando evitar a fragmentao e a sucesso de rupturas relacionais dos

    midos, estes adultos suspendem a possibilidade e defendem-se do investimento

    afectivo da criana, to necessrio sua sobrevivncia psquica e ao seu

    desenvolvimento. Oferecem-se como modelos de referncia asspticos, que se

    pretendem profissionalmente envolvidos e pessoalmente descomprometidos

    (Martins, 2001b).

    X No que se refere s relaes com a famlia, o recurso, antes to frequente, aos conceitos de privao materna ou de separao no parece actualmente til

    compreenso, explicao e, sobretudo, interveno dos profissionais das

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    instituies, pelo que tem sido amplamente criticado e desvalorizado. Tanto a

    privao como a separao constituem designaes equvocas, susceptveis de

    categorizarem em condio idntica uma pluralidade de experincias/vivncias

    das crianas. Na verdade, os casos de afastamento ou de ausncia da me no

    so, geralmente, acontecimentos isolados ou isolveis, tendendo a associar uma

    variedade de situaes cambiantes, potencialmente disruptivas como conflitos

    familiares, a perda de um dos pais, a alterao das rotinas, a mudanas para

    ambientes estranhos, etc.

    Na verdade, at h bem pouco tempo, as relaes familiares das crianas em

    colocao institucional tm recebido uma ateno quase estritamente focalizada

    na figura materna, quando muito, incluindo o pai. Todavia, sabe-se que a rede

    mais alargada de familiares e amigos se reveste de uma grande importncia

    funcionando como estrutura de apoio quando as crianas/jovens deixam os

    cuidados residenciais. A famlia extensa e, em especial, as avs, tm revelado um

    grande potencial de influncia sobre as vidas dos menores nesta situao,

    desempenhando um papel importante na modelao de padres de

    relacionamento familiar.

    Tambm as relaes das crianas que esto em regime de colocao com os

    irmos no tm sido muito estudadas, apesar do conhecimento de facto de que

    uma elevada percentagem tem irmos e irms, alguns dos quais tambm

    colocados fora do contexto familiar. Apesar de tudo, a prtica das colocaes

    sensvel necessidade de contacto regular entre os membros das fratrias,

    procurando, sempre que possvel, juntar os irmos na mesma colocao, como

    uma forma de preveno de resultados negativos para as crianas. Estes laos

    afectivos funcionam como rede de suporte, preservando o sentimento de pertena

    destas crianas e ajudando-as a partilhar a adversidade (Parker et al., 1991).

    X Um aspecto relativamente negligenciado pelos profissionais neste domnio o das relaes de pares, cuja importncia assume mxima expresso na

    adolescncia, devendo, por isso, ser deliberadamente encorajadas, conforme o

    benefcio que se entender proporcionarem (Parker et al., op. cit.).

    Se o grupo de pares desempenha um papel importante na integrao

    institucional das crianas e na sua adeso s rotinas e disciplina propostas por

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    estas estruturas, proporcionando experincias promotoras do seu

    desenvolvimento social, a integrao e convivncia de cada criana num grupo de

    outras com idades semelhantes sua, cuja composio relativamente instvel,

    permanece um aspecto problemtico.

    X Por ltimo, as experincias no exterior da instituio e o conhecimento do mundo continuam a ser relativamente mais limitados nas crianas em regime de

    colocao institucional do que em meio natural de vida, limitando

    consequentemente o leque das suas relaes fora da instituio.

    Em jeito de sntese conclusiva

    Longe de vises simplistas e parciais que constroem imagens de idealizao do

    espao familiar e de demonizao dos contextos institucionais, o foco de equao

    deve ser sempre a qualidade das relaes estabelecidas entre a criana e o

    contexto em que se desenvolve qualquer que seja este contexto, a famlia ou a

    instituio assim como a medida em que este responde s suas necessidades.

    O que est em causa a construo de relaes estveis, contnuas, que

    tenham significado pessoal para as partes envolvidas e funcionem como

    referncia ou organizador da compreenso que o menor tem do mundo

    envolvente.

    Entende-se, por isso, a importncia de conhecer os ncleos de funcionamento

    familiar e as redes interpessoais de apoio prprias das culturas de onde as

    crianas so oriundas. A manuteno de redes de relaes prximas e duradoiras

    constitui um resultado importante da prestao de cuidados extra-familiares a

    crianas e jovens.

    Mas estas relaes no esto de modo algum adstritas me ou famlia. No

    caso de crianas cujo suporte familiar seja problemtico, e em particular se so

    objecto de medidas de proteco em contexto institucional, este imperativo torna-

    se responsabilidade das instituies que as acolhem. Em consequncia, a criao

    de oportunidades para o estabelecimento, continuidade e alargamento das suas

    relaes, numa perspectiva a longo prazo, e a modelao dos padres de relao

    so atribuio e dever das instituies, devendo, por isso, informar os seus

    principais objectivos (Quinton & Rutter, 1988).

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    Se o acolhimento institucional cruza o itinerrio de vida destas crianas e

    jovens, est com ele comprometido. No pode, pois, reduzir-se a uma experincia

    pontual ou a um acaso isento de implicaes, negando as ligaes que sirvam de

    ncoras do presente e se projectem com consistncia no futuro.

    Na verdade, o que deve estar em causa no a mimetizao pelos

    profissionais e pelas instituies das relaes parentais ou dos contextos

    familiares de vida. Pelo contrrio, compete-lhes assumir a sua diferena,

    procurando desenvolver e potenciar recursos funcionalmente equivalentes

    queles normalmente disponibilizados nas famlias, suprindo desta forma as

    necessidades desenvolvimentais dos menores sob sua responsabilidade.

    Compete-lhes ainda promover a formao de uma rede complexa e densa de

    pessoas, meios e actividades, geradora de uma multiplicidade de oportunidades

    para as crianas e jovens acolhidos (Ziehe, 1989).

    , pois, nossa ntima convico que o acolhimento institucional pode e deve

    constituir uma resposta positiva, com potencialidades que importa dinamizar e

    potenciar.

    Neste sentido, no deve ser um sector desvalorizado ou deprimido, um sistema

    de fim de linha, comprometido na imagem com o insucesso dos percursos de vida

    dos seus utentes. Admita-se o paralelo com outros homlogos: se o sistema

    judicial no se deixa deformar pelos problemas com que lida, respondendo a

    exigncias sociais de legitimidade, rigor e competncia, assim como o sistema de

    sade no se deixa contaminar pela gravidade das situaes que trata e pelo

    sofrimento inerente dos doentes, sujeitando a sua actuao a padres de

    qualidade, de formao e especializao contnua, tambm o acolhimento

    institucional deve pautar a sua actuao pelo profissionalismo e qualificao,

    reformulando a sua imagem. Mais do que o crime, a doena ou o mau-trato, o que

    est em causa o direito de acesso Justia, Sade e Proteco Social.

    De facto, o acolhimento institucional de crianas e jovens em risco deve ser

    entendido no quadro da promoo dos seus direitos, propcio emergncia de

    uma tica da qualidade. A experincia da precariedade e a deficincia das

    condies de vida que, frequentemente, caracterizam os percursos dos menores

    em risco j no legitimam uma qualquer prestao, entendida como um privilgio

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    por comparao com a sua situao depreciada, nas palavras de um tcnico to

    m que mais lhe vale uma deciso menos boa do que nenhuma deciso... Face a

    padres progressivamente mais elevados de exigncia tica e profissional,

    entende-se que a criana, como qualquer outra pessoa, tem direito a um

    atendimento de qualidade que a dignifique e promova o seu desenvolvimento e

    bem-estar.

    Os dispositivos institucionais para crianas e jovens em perigo participam desta

    necessria transformao de representaes. O discurso de desvalorizao que os

    envolve, extensivo aos seus profissionais, que tantas vezes o assumem e

    reproduzem, um subproduto da perspectiva assistencialista sobre a prestao

    deste sector e o estatuto dos seus utentes. A profissionalizao, a introduo de

    padres de qualidade nos servios prestados, o estudo das necessidades dos

    utentes de forma a adequar o perfil da sua actuao, a sistematizao das

    intervenes, a introduo de mecanismos de avaliao e monitorizao das

    prticas e resultados e a qualificao dos seus profissionais so medidas

    necessrias de uma reforma de mentalidades e de modos de aco neste

    domnio.

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