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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO JOSÉ PROVETTI JUNIOR CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ JUNHO - 2007 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO

JOSÉ PROVETTI JUNIOR

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

JUNHO - 2007

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO

JOSÉ PROVETTI JUNIOR

Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, como parte das exigências para obtenção de título de Mestre em Cognição e Linguagem.

Orientador: Frederico Schwerin Secco

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

JUNHO - 2007

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO

JOSÉ PROVETTI JUNIOR

Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, como parte das exigências para obtenção de título de Mestre em Cognição e Linguagem.

Aprovada em de de

Comissão Examinadora: _______________________________________________ Professor Sérgio Arruda de Moura – Doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro _______________________________________________ Professora Sylvia Beatriz Joffily – Doutora em Psicologia pela Universidade Louis Pasteur - França _______________________________________________ Professor Frederico Schwerin Secco – Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

(orientador) _______________________________________________ Professor José Glauco Ribeiro Tostes – Doutor em Química pela Universidade Estadual de Campinas

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A capacidade de imaginação da mente humana está tão

estreitamente ligada às condições perceptíveis da experiência,

que pelas próprias forças não consegue desviar-se delas um

passo sequer. Somente a forte pressão da refinada experiência

científica logra libertar o pensamento humano das suas

convicções habituais da causalidade.

SCHLICK, M. A Causalidade na Física Atual.

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Ao Meu pai, José Provetti e a minha mãe, Eliane

Maia R. Provetti que nos anos que se passaram

neste trabalho deixaram de ver a luz de Hélios e

desceram ao Hades.

A Minha tia-avó Adélia Menezes M. Gallo que

me deu o suporte necessário para aplicar-me à

pesquisa e atingir os resultados necessários

durante todo o processo.

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AGRADECIMENTOS

A Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e ao

Centro de Ciências do Homem (CCH), pelo oferecimento deste

curso, bem como aos professores e funcionários que nos deram

subsídios e condições materiais, respectivamente à elaboração

deste trabalho.

Ao governo do Estado do Rio de Janeiro pela bolsa de estudos.

A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a

realização deste trabalho.

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RESUMO

Esta dissertação visa identificar na filosofia de Platão as origens

do problema mente-corpo com base no significado dos conceitos

sôma (corpo) e psyché (alma).

O estudo dos conceitos alma e corpo nos textos platônicos é

decisivo na medida em que estes fundamentam o desenvolvimento

de toda a metafísica ocidental. A investigação do dualismo mente-

corpo na filosofia antiga esclarece historicamente algumas

formulações apresentadas pela Filosofia da Mente.

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SUMMARY

This essay aims to identify within plato’s philosophy the origins

of soul and body problems based on the significance of body and

soul conceipts.

The study of soul and body conceipts within platonic texts is

conclusive as regards being fundamental towards development of all

western methaphisics.

The investigation of mind-body dualism within ancient

philosophy enlightens historically a few formulations presented by

Mind Philosophy.

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SUMÁRIO

I. Introdução................................................................................... 1

II. Platão e sua Filosofia 2.1 O Contexto de Platão ............................................................. 3 2.2 A Formação de Platão ............................................................ 5 2.3 A Academia ............................................................................ 7 2.4 A Concepção de Natureza em Platão .................................... 7 2.5 Dialética e Diálogo ................................................................. 9 2.6 As Obras de Platão .............................................................. 10 2.7 Crítica do Conhecimento Sensível ....................................... 13 2.8 A doutrina das Idéias ............................................................ 14 2.9 A Presença de Platão na História do Pensamento .............. 15 III. A Alma e suas Estruturas em Platão 3.1 A Alma .................................................................................. 16 3.2 Atributos da Alma ................................................................. 53 3.3 Morfologia da Alma ............................................................... 76 3.4 Funções da Alma .................................................................. 77 3.5 Fisiologia da Alma ................................................................ 78 3.6 Patologias da Alma .............................................................. 85 3.7 Afecções da Alma ................................................................ 88 3.8 Alma e Interioridade ............................................................. 89 3.9 Alma e Matéria Inanimada ................................................... 92 3.10 Controle de Alma sobre Si ................................................. 98 IV. Conclusão ........................................................................... 103

VI. Referências Bibliográficas .................................................. 108

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I. INTRODUÇÃO

O que objetivo com essa dissertação é tentar compreender as relações

psyché-sôma (alma-corpo) em Platão. Essa motivação se fundamenta nas

dificuldades engendradas pela Filosofia da Mente para estudar, refutar ou

justificar a mencionada relação. Para me aproximar do assunto tentei analisar o

que o autor compreende por alma (psyché) e corpo (sôma) nas seguintes

obras: Timeu, Fédon, Fedro, A República, Apologia de Sócrates, Mênon,

Banquete, Sofista e Político. Embora seja uma pequena fração do conjunto das

obras de Platão, creio que essa amostragem seja suficiente para tentar

alcançar meu objetivo.

A metodologia utilizada foi a histórico-crítica, tendo como documentação

os supramencionados diálogos com vistas ao desenvolvimento de uma

investigação sob a ótica da História da Filosofia.

Como referência teórica em ordem decrescente segui os seguintes

autores: Reale (2004) que apresentou as reflexões da Escola de Tübingen-

Milão a respeito das chamadas doutrinas não-escritas de Platão; Vernant

(1990) que demonstra a metodologia para realizar uma análise sob a ótica da

História Psicológica, das Idéias e das Mentalidades; Mondolfo (1970) que

apresenta uma hipótese sobre a teoria do conhecimento que os pré-platônicos

utilizavam, bem como a questão da subjetividade entre os antigos; Jaeger

(1995) que desenvolve um acurado estudo sobre o processo de formação do

homem grego e os valores implicados até a época de Platão; Detienne (1998),

em especial, no que se refere à questão do uso da linguagem e como era a

vivência dela à época; e Coulanges (1998) o historiador que traça um excelente

retrato dos costumes e hábitos sociais do homem grego clássico.

A hipótese que defendo é que não é possível a um grego da época de

Platão conceber uma separação diametralmente oposta e radicalmente

incomunicável entre o que a tradição filosófica convencionou chamar de Mundo

Sensível e Mundo Inteligível, ou em outras palavras, aquilo que viria a

fundamentar a distinção atual na Filosofia da Mente entre o mental e o físico.

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No primeiro capítulo procuro contextualizar Platão em sua época,

apresentando os problemas epistemológicos com os quais se defrontava.

Pretendo também apresentar as fases dos escritos platônicos bem como a

cronologia de suas obras. É nossa intenção esquematizar alguns tópicos

essenciais do pensamento platônico, tais como a teoria das Idéias e a noção de

imortalidade.

O capítulo II visa investigar a natureza da alma a partir dos escritos do

filósofo ateniense. Para efeito desta pesquisa, procuramos dividir nosso estudo

em subitens, com vistas a permitir que o exame da psyché, tal como concebida

por Platão, pudesse ser realizado a partir de diferentes perspectivas. Neste

sentido, procuramos investigar a noção de alma a partir dos seguintes

aspectos: as estruturas da alma, as funções da alma, a fisiologia da alma, as

patologias da alma, as afecções da alma, alma e interioridade, alma e matéria

inanimada, controle da alma sobre si.

Finalmente, em nossa conclusão procuramos demonstrar como a noção

de alma para Platão define os problemas apresentados pelo dualismo mente-

corpo, e tentamos esclarecer alguns destes problemas à luz das novas

pesquisas realizadas recentemente por estudiosos da obra platônica,

notadamente a partir das novas interpretações da escola de Tübingen-Milão.

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II. PLATÃO E SUA FILOSOFIA

2.1 O CONTEXTO DE PLATÃO Referência econômico-cultural das sociedades helênicas do mundo

antigo, Atenas congregava integrantes de diversas cidades-estado do mundo

grego: comerciantes, banqueiros, artesãos e escravos, além de muitos bárbaros

de variada procedência, proporcionando aos habitantes da área urbana uma

enriquecedora vivência proveniente de várias culturas.

No Pireu, amplo e bem construído porto fortificado de Atenas, ocorriam

os intercâmbios comerciais e culturais mais intensos da região. Acontecimento

único na Grécia continental no que respeita às demais cidades-estado que

durante toda a sua história mantiveram a tradicional organização agrária.

A vivência religiosa em Atenas dividia-se em três modos básicos, a

saber, 1) a religião doméstica, fundada no patriarcado e na intensa relação

entre mortos e vivos, com plena liberdade do patriarca em adorar seus

antepassados; 2) a religião cívica, projeção da religião doméstica, tendo um dos

deuses do panteão olímpico como patrono, tinha na acrópole, com a lareira

comum, o centro de reunião de todas as famílias em torno da divindade

protetora da cidade e, em paralelo a estas, restritas a cidadãos do sexo

masculino e de posse de seus direitos cívicos, havia 3) os mistérios de Elêusis

e dos Órficos que se caracterizavam pela liberalidade de acesso a homens,

mulheres, cidadãos, estrangeiros e escravos, indistintamente. Primava por

ensinos restritos aos iniciados escalonados por meio de provas iniciáticas, de

profunda preocupação escatológica, e se diferenciava em relação às demais

devido às especificidades de seus ensinamentos e ao estilo de vida de seus

membros.

O ideal de sophrosyne, justa medida, justo meio, ingressou na

mentalidade helênica de modo a traçar um novo parâmetro de comportamento

social, fundando-se na simplicidade, austeridade e equilíbrio do cidadão em

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todas as particularidades de sua existência. Sua idéia central era o

mandamento do nada em excesso.

O pensamento filosófico iniciado na jônia do século VII a. C. foi

incorporado no dia a dia de Atenas como modo discursivo, após relativa

resistência de seus cidadãos. Em breve, porém, granjeou o interesse dos

atenienses e a filosofia, com o passar do tempo, virou um importante elemento

de interesse prático devido à necessidade de solucionar importantes questões

sociais, políticas e pertinentes a diversos campos do conhecimento humano.

A circulação das idéias decorrentes do pensamento filosófico

apresentou um importante impulso com a reintrodução da escrita no contexto

cultural helênico, fazendo com que alguns cidadãos letrados tivessem acesso à

argumentação filosófica por meio da circulação de pergaminhos, os livros da

época, contendo as doutrinas de variados físicos, como eram conhecidos os

filósofos pré-socráticos.

A escrita, por sua vez, trouxe nova perspectiva para a reflexão filosófica

relativamente às questões pertinentes à possibilidade do conhecimento e à

linguagem. A argumentação racional como novo paradigma discursivo em

contraposição às limitações da linguagem poética e outros fenômenos

vinculados aos hábitos decorrentes da escrita, são problematizados por uma

cultura que por mais de quatrocentos anos foi totalmente oral.

Na ágora (praça ou mercado), ocorriam discussões e questionamentos

sobre a origem e a essência dos fenômenos do mundo natural, phýsis, que

geravam interesse e preocupação entre os cidadãos. Tais discussões eram

acompanhadas da desconfiança constante dos poetas e sacerdotes

(representantes do antigo modo de se expressar, isto é, o oral), que viam nas

inovações filosóficas perigosa ameaça a seus interesses e modos de

subsistência.

Os chamados mestres da verdade, os sofistas, eram professores de

retórica, gramáticos, teólogos, poetas e alguns estadistas. Desenvolveram uma

profunda crítica à tradição e aos critérios gnosiológicos admitidos até então.

Geraram amplas e impactantes discussões entre seus contemporâneos em

torno da educação, da formação das leis, do estado, da cultura. Afirmavam

poder ensinar a arete (excelência), que se caracterizava pelo preparo do

cidadão no exercício político diante da Assembléia do Povo, de modo a

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conduzi-la com arte, segundo os interesses do grupo político ao qual o orador

pertencia (JAEGER, 1995: 335-385).

A família de Platão pertencia à aristocracia de Atenas e tinha como

ancestral o ilustre legislador Sólon, sendo também parente do personagem de

um de seus diálogos, Cármides e sobrinho do político de formação sofístico-

heraclitiana Crítias, um dos chamados trinta tiranos, grupo de aristocratas

atenienses que por ocasião da derrota da cidade diante de Esparta, na primeira

guerra do Peloponeso, participou do instituído governo e realizou uma série de

perseguições políticas.

2.2 A FORMAÇÃO DE PLATÃO Como cidadão ateniense de aristocrática estirpe, Platão teve a melhor

formação possível que um jovem de sua época poderia almejar. Em oposição à

nossa atual concepção de formação educacional, a dos helênicos em geral, e

dos atenienses, em específico, consistia na audição, memorização e recitação

da poesia grega tradicional, isto é, Homero, Hesíodo, Píndaro.

Por poesia deve-se compreender não apenas um conjunto de versos

normalmente direcionados ao enlevo estético, fantástico ou crítico, mas como

um modo de expressão fundado em uma métrica rigorosa e contendo

musicalidades específicas combinada a um comportamento gestual, em que a

palavra enunciada era acompanhada de um movimento corporal. Tal forma de

pensar e de se expressar era a característica predominante ainda à época de

Platão, em que a juventude e os cidadãos eram comumente educados, a ponto

de podermos dizer que Homero é reconhecidamente considerado o educador

por excelência do homem grego (JAEGER, 1995: 61-84).

Platão assim foi educado e pelo que é narrado pela historiografia, muito

se destacou naquela prática expressiva poética tanto quanto nas competições

esportivas, chegando também a ser, por duas vezes, vencedor nos chamados

jogos ístmicos (DURANT, 1996: 39).

Ainda jovem, interessou-se por filosofia, em especial sob influência de

seu tio, Crítias. Conheceu o pensamento de Heráclito e dos principais

pensadores jônicos; conheceu a filosofia de Anaxágoras, pensador que

assessorou Péricles nas reformas impetradas na política ateniense anos antes,

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Parmênides, os sofistas Górgias, Protágoras e outros que circulavam e

lecionavam em sua cidade.

Com vinte anos, aproximadamente, conheceu Sócrates e dele privou

dos ensinos com os demais cidadãos que apreciavam a arte filosófica do

mestre durante oito anos (DURANT, 1996: 39 e PASTOR & ISMAEL QUILES,

1952: 11) até a condenação deste à morte, pela Assembléia do povo, sob a

acusação de impiedade e corrupção dos jovens.

Tal acontecimento marcou determinantemente Platão de modo a

convencê-lo de que a democracia, como regime político, estava fadada ao

insucesso e que uma aristocracia filosófica devia assumir o comando da polis.

Vale ressaltar que Atenas tinha certa tradição reacionária às inovações trazidas

pela filosofia, de tal modo que o próprio Anaxágoras acima referido, precisou

fugir e abandonar seu discípulo, Péricles, para que não tivesse o mesmo

destino de Sócrates e posteriormente Aristóteles assim também procedeu.

Devido aos problemas ocorridos na tentativa de interceder por Sócrates,

Platão foi aconselhado a deixar Atenas e empreendeu uma longa viajem que

durou aproximadamente doze anos. Visitou templos, seitas, sábios, a tudo

observando e se instruindo. Começou indo ao Egito e à colônia grega no Norte

da África chamada Cirene; conheceu a antiga e agrícola cultura do Nilo, sua

vasta sabedoria em variados aspectos. Daí foi à Magna Grécia e travou

conhecimento com membros da escola pitagórica, lá permanecendo por algum

tempo estudando-lhes as doutrinas. (REZENDE, 1996: 44-45).

Em seguida foi para Siracusa, maior cidade e potência político-militar da

região centro-mediterrânea à época, aliada e fornecedora de trigo a Esparta e

suas aliadas e, consequentemente, inimiga de Atenas e seu império. Lá

estabeleceu profunda simpatia e amizade com Díon, o cunhado do tirano da

cidade, Dionísio, o Velho (REZENDE, 1996: 45). Tal amizade viria

posteriormente possibilitar as duas tentativas fracassadas de Platão para

implantar suas propostas político-filosóficas em Siracusa com o filho de Dionísio

e sobrinho de Díon, Dionísio II.

Alguns historiadores afirmam que Platão visitou a Judéia, vindo a

conhecer a tradição dos profetas, chegando até as margens do Ganges, na

Índia, onde teria aprendido as artes meditativa e mística orientais. (DURANT,

1996: 40).

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Platão retornou a Atenas em 387 a. C. com quarenta anos e toda a

bagagem cultural e antropológica adquirida em suas viagens.

2.3 A ACADEMIA De volta a Atenas Platão adquiriu uma propriedade junto ao jardim

dedicado ao herói Academo, de onde veio o nome dado à escola fundada pelo

filósofo em 387 a. C.

Caracterizou-se por ser um centro de pesquisas e ensino filosófico bem

como uma espécie de escola preparatória de cidadãos para o exercício político,

tal qual Platão havia aprendido na Magna Grécia com os pitagóricos. Daí

depreende-se que a filosofia não era um exercício de discussão teórica e

afastada dos problemas do dia a dia da cidade, mas uma forma de pensar, de

discussão de idéias, teorias explicativas da natureza, da sociedade e do homem

com repercussões pragmáticas no exercício da cidadania ateniense, uma vez

que no mínimo, cada cidadão em sua vida, deveria exercer um cargo público,

logo, necessariamente a vivência e a aplicação do que se aprendia na

Academia era necessariamente aplicada no exercício da cidadania. Vide o

exemplo de Alcebíades, Aristóteles e outros que influenciaram o pensamento

sócio-político, filosófico, jurídico e administrativo da época.

A Academia não se limitava ao ensino da filosofia platônica

especificamente, mas buscava levar a efeito investigações de caráter racional,

compreendido este como um modo específico de se expressar através da

linguagem, com regras e métodos dialéticos (REZENDE, 1996:45-46).

Depois disso a Academia passou por novas orientações de acordo com

a administração que assumia, mas sua tradição chegou até o período romano e

a ascensão do cristianismo como religião oficial de Roma, quando as escolas

filosóficas foram expulsas e proibidas de funcionarem em todo o Império.

2.4 A CONCEPÇÃO DE NATUREZA EM PLATÃO Uma das chaves interpretativas para se chegar ao entendimento do

pensamento de Platão é a compreensão de sua visão de natureza.

Diferentemente da nossa época, que ainda vê o mundo social humano

algo distinto e à parte do mundo natural, a despeito dos esforços de

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implantação de uma consciência ecológica holística, os gregos tinham uma

percepção especial de natureza.

Em grego, natureza é dita através do termo phýsis e significa natureza

ou maneira de ser de uma coisa (ISIDRO PEREIRA, 1990: 621). Para a cultura

helênica a percepção que se tinha de phýsis era uma integração indiferenciada

e interativa do que consideravam ser dimensões da realidade, a saber, o mundo

natural e sensível propriamente dito, envolvendo isso o que hoje chamaríamos

os grupos dos minerais, os animais e vegetais, compostos pelo conjunto

proporcional de substâncias que acreditavam estruturar o preenchimento de

suas formas naturais, a saber, água, fogo, terra, ar e éter; o mundo dos

homens, que basicamente se dividiam em gregos e bárbaros, os primeiros

organizados em polies, os segundos em tribos e como escravos de seus

governos; o mundo dos deuses olímpicos, compreendido como semi-tangível

e/ou inteligível, dependendo da época da história cultural helênica que se esteja

focando e, finalmente, o mundo dos mortos, o Hades, região para onde iriam

indistintamente as almas dos homens após a morte e lá manteriam uma

existência semelhante a que tinham enquanto vivos, junto aos seus familiares.

Platão, como grego ateniense do século IV a. C. não podia furtar-se ao

ideário comum de seu povo e de sua cidade, uma das mais tradicionais no que

respeita ao zelo religioso cívico e quanto às supertições atreladas a uma

verdadeira arte divinatória e mágica ainda existente à época e de ampla

utilização.

A visão que Platão tinha de natureza, partia do lugar comum de sua

cultura, isto é, a concepção complementar, interativa e circular das dimensões

naturais. No entanto, sua concepção se distingue da tradicional por se

fundamentar numa perspectiva filosófica decorrente da tentativa de explicação

racional, que tinha como base as novidades lingüísticas decorrentes dos

estudos gramaticais levados a efeito pelos sofistas e dos novos hábitos

decorrentes do uso da escrita.

Em seu livro intitulado Fédon (PLATÃO, s/d: 84), em um diálogo travado

com dois de seus discípulos, a saber, Símias e Cebes, Sócrates demonstra

como chegou por meio de suas pesquisas filosóficas de juventude, a descobrir

um novo modo de perceber a natureza. Através deste método desenvolveu

investigações mais seguras que as possibilitadas pelos filósofos físicos. Tal

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método se diferenciava do utilizado pelos físicos, na medida em que a busca da

verdade natural fundava-se no que Platão chamou de Idéia e não em um

princípio natural (terra, água, fogo, ar ou éter).

Desta maneira, a percepção que Platão defendia era basicamente a de

uma bipolarização básica, a saber, o sensível e o inteligível, tendo o primeiro

seu fundamento e razão de ser no segundo, de maneira complementar.

2.5 DIALÉTICA E DIÁLOGO Platão, no diálogo Fédon, defende a importância de manter o que é

mais precioso relativamente aos conhecimentos filosóficos no modo oral do que

no escrito, afirmando ainda que o filósofo verdadeiro se utiliza do escrito apenas

como recurso mnemônico, se é um filósofo sério (REALE, 2004: 54-66).

Sócrates desenvolveu uma técnica de investigação filosófica chamada

maiêutica, através da qual por meio de perguntas e respostas, o filósofo levava

seu interlocutor ao reconhecimento de que possuía opiniões e não

conhecimentos verdadeiros sobre o assunto tratado. Platão absorveu a técnica

do mestre e foi o primeiro a instituir o diálogo como método de expressão

filosófica.

O objetivo do diálogo, tanto em Sócrates como em Platão, visa o

despertamento do interlocutor/leitor para a consciência de sua ignorância

(REZENDE, 1996: 47). Para Sócrates, filho de parteira e de um escultor, e que

se dizia parteiro de almas, chamava este processo de maiêutica. Era uma ação

prevista para seqüestrar o interlocutor à ignorância de sua pretensa sabedoria

para uma experiência de conhecimento que era emocionalmente libertadora.

Platão, na medida em que se apropriou da maiêutica como forma de

acessar gradativamente a verdade por meio da dialética e assim acessar as

Idéias, desenvolveu o diálogo como modo discursivo de envolver não apenas

os freqüentadores da Academia, mas seus concidadãos. O diálogo é a forma

por excelência na qual a filosofia platônica é veiculada e, graças ao senso

estético de Platão, mesmo vertidos nas mais variadas línguas, eles mantêm um

impressionante misto de beleza e profundidade filosófica jamais comparável na

história do pensamento ocidental.

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2.6 AS OBRAS DE PLATÃO É o único autor da Antigüidade de que possuímos a quase totalidade de

suas obras.

Durante todo o século XIX houve uma acirrada discussão entre

especialistas para determinarem os critérios de autenticidade a serem aplicados

às obras platônicas, pois se desconfiava que algumas fossem de seus

discípulos ou de outros autores, de um período posterior a Platão.

Para não me deter numa discussão que não é pertinente à proposta

deste capítulo, porém, não posso deixar de informar algo a respeito. Decidi

apresentar a relação das obras atribuídas a Platão por épocas e por ordem

cronológica, baseado na catalogação feita por Íñigo (1981: 51-52) e por

Marcondes (1998: 54-55).

Os chamados diálogos da juventude foram escritos entre os anos 393-

389 a. C. e são: Apologia de Sócrates, Íon, Críton, Protágoras, Laquês,

Trasímaco, Lisis, Cármides e Eutífron, Hípias Menor, República (livro I) e Hípias

Maior.

Os chamados diálogos da época de transição foram escritos entre os

anos de 388-385 a. C. e são: Górgias, Mênon, EutIdemo, Crátilo, Menéxeno,

Banquete, Fédon, A República (Sobre a Justiça) e Fedro

Os ditos diálogos da maturidade foram escritos entre os anos de 385-

370 a. C. e são: Banquete, Fédon, República e Fedro.

Finalmente, os chamados diálogos da velhice, escritos entre os anos de

369-347 a. C., são: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu,

Crítias, Leis e Epínomis, Alcebíades I e II, Hiparco, Anterestai, Teages, Clítofon,

Mino e O Filósofo, considerados os últimos oito, de autenticidade discutível.

A obra de Platão durante algum tempo foi interpretada como sendo um

retrato fiel do pensamento de Sócrates, uma vez que este nada escreveu. Mas

os pesquisadores, em especial no século XIX, logo concluíram que os que mais

se aproximam do pensamento original de Sócrates são os chamados diálogos

da juventude que defendem, em geral, a memória de Sócrates, abordam temas

morais e são considerados aporéticos, isto é, não são conclusivos (REZENDE,

1996: 47).

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Os diálogos de transição assim são denominados pois versam sobre os

mesmos temas dos da juventude, porém assinalam certa tomada de posição de

Platão no que se refere aos fundamentos de sua filosofia.

Nos diálogos da maturidade o pensamento de Platão já está em franco

desenvolvimento e diferenciação do de Sócrates. É nestes que se apresenta a

característica de certa reformulação de alguns aspectos da doutrina, dando a

impressão, em alguns casos, de verdadeira ruptura e novo direcionamento, em

especial no que diz respeito à autocrítica que Platão põe em relação a famosa

teoria das Idéias.

Fora os diálogos, Platão ainda deixou cartas trocadas com discípulos,

em especial, com seus contatos em Siracusa (Sicília), onde tentou por duas

vezes implantar sua proposta filosófica de governo.

A respeito de que temas Platão escreve?

Seus diálogos falam sobre problemas de sua época, mas que se

interconectam profundamente aos de nossos tempos, uma vez que somos

herdeiros diretos da tradição epistemológica-política grega, com as adaptações

oriundas das civilizações romana e cristã. Sendo assim, vê-se o filósofo

investigar sobre a excelência, sobre os conceitos, questões éticas, sobre

Sócrates e o pensamento deste, o amor, as relações familiares, questões

políticas pertinentes aos regimes existentes em sua época, temas religiosos

como a imortalidade da alma e outros.

Num breve comentário, quero referir-me às doutrinas não-escritas de

Platão, referenciadas pela escola de história da filosofia de Tübingen-Milão, que

adoto como referencial teórico e um dos instrumentos metodológicos de

aproximação ao tema, para contextualizar as relações psyché-sôma (REALE,

2004).

A cultura grega à época de Platão ainda adotava a oralidade em

detrimento da escrita como prática usual e poucos se dedicavam à

aprendizagem desta, de maneira que seu ensino era relegado a particulares e

não um compromisso estatal como vemos em nossos dias. Platão não fugiu a

seu contexto. A bem da verdade, o filósofo expressou em vários pontos de sua

obra escrita a sua opinião sobre a grafia como desfavorável e como instrumento

não digno de registrar o que considerava ser o mais importante em seus

ensinos, como é visto, por exemplo, no Fedro:

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SÓCRATES: Quando chegaram à escrita, disse Thoth:

“Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria”. Respondeu Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da sua utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmitistes aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em conseqüência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios”.

SÓCRATES: O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras pintadas tem a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam das coisas como se as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entre os conhecedores mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamente censurado, necessita do auxílio do pai, pois não é capaz de defender-se nem de se proteger por si. (s/ d: 178-179).

Por que então ele escreveu os diálogos? Pelo que consta na

historiografia de seu pensamento e, em especial, na obra de Reale (2004), Para

Uma Nova Interpretação de Platão, os diálogos eram obras destinadas à

divulgação doutrinária externa, isto é, o que de fato não era tão relevante e

especial, mas que servia como chamariz para que o público soubesse os

elementos essenciais da filosofia platônica, trabalhando, por assim dizer, com o

que era habitualmente sabido, haja vista a imensa quantidade de referências a

elementos do cotidiano ateniense feita ao longo dos diálogos.

Os ensinos não-escritos eram destinados apenas aos membros da

Academia, considerados aptos, através de avaliação prévia de disposições

filosóficas e era a parte mais importante do ensino platônico, pois correspondia

ao que o mestre considerava ser o nexo explicativo de tudo o que sua

divulgação externa ventilava, isto é, os diálogos em si.

Durante muito tempo os ensinos não-escritos foram desqualificados e

sumariamente ignorados pelos especialistas e apenas no século XX, em

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especial, através dos trabalhos de Krämer e Gaiser na Alemanha e,

posteriormente, Reale na Itália, é trazida a questão para a discussão pública,

fundamentada nas referências de Platão em seus diálogos, dos discípulos

diretos da Academia, da tradição acadêmica posterior e dos doxógrafos da

Antigüidade. Segundo Reale (2004), Krämer e Gaiser puderam apresentar com

profundidade e desenvolver um novo paradigma interpretativo que desta

maneira indicou saídas sólidas para as aporias que o paradigma interpretativo

tradicional, fundado nos trabalhos de Schleiermacher, no século XIX, não

conseguia esclarecer.

Nesta media, no que se refere às obras de Platão, deve-se considerar o

conjunto dos diálogos, as cartas e os ensinos não-escritos coligidos junto às

referência supracitadas a respeito do assunto como importante ferramenta

interpretativa e complementar à compreensão dos ensinos escritos.

2.7 CRÍTICA DO CONHECIMENTO SENSÍVEL Pelo apresentado até o momento, dado que Platão fundamenta sua

teoria do conhecimento nas Idéias existentes no chamado mundo inteligível, vê-

se no autor uma profunda crítica aos conhecimentos oriundos das sensações.

Uma vez que o conhecimento sensível captado por meio dos órgãos do

corpo é ilusório, tudo o que se pode conseguir através dos sentidos são

imaginações fundadas em opiniões, nunca conhecimentos verdadeiros e

racionais como é apresentado pelo autor em seu diálogo Sofista:

ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso, que há, no

discurso, o seguinte... TEETETO: - O quê? ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação. TEETETO: -Sim, sabemos. ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma,

em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para designá-lo além de opinião?

TEETETO: - Que outra palavra haveria? ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se

apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito poderá ser corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra?

TEETETO: - Nenhuma outra. ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos,

discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado de espírito que designamos por imaginação, que é a

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combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes, falsas. (PLATÃO, s/d: 158).

No entanto, faz-se necessário extremo cuidado metodológico para

evitar-se excessos interpretativos nesta crítica, visto que em outras obras

Platão não só parte do sensível como elemento de iniciação a seu método

gnosiológico, como reconhece em diversos pontos de sua obra, a importância

da inter-relação harmônica entre o sensível e o inteligível.

2.8 A DOUTRINA DAS IDÉIAS A doutrina das Idéias surge como elemento de diferenciação

gnosiológica na Antigüidade, representando o deslocamento do centro de

atenção das pesquisas físicas pré-socráticas estabelecidas em torno de

elementos materiais como a água, ar, fogo para a dimensão gnosiológica do

inteligível.

A percepção do inteligível como dimensão existencial e a intuição de

Platão quanto à existência das Idéias, descrita no Fédon (PLATÃO, s/d: 84),

representa uma aquisição gnosiológica qualitativa e representativa de uma nova

percepção do real e seus critérios de verdade, através dos quais os helênicos

saíram de uma estrutura gnosiológica ancestral, a saber, a conceptibilidade, e

sob a influência da sofística, que marcara definitivamente a história do

pensamento ocidental, abandonaram paulatinamente o tradicional critério de

conhecimento adotado por eles até então, e passaram ao novo, a saber, o

princípio da cognoscibilidade. (MONDOLFO, 1970: 97-120).

Quais são as características das Idéias em Platão? Inteligibilidade, isto

é, as Idéias são objetos de conhecimento intelectual, apenas apreensíveis

através da inteligência, por conseguinte, não sensíveis; incorporeidade, no

sentido de que carece de definições rigidamente estabelecidas no delineamento

de seu contorno morfológico; existência real, isto é, não estão submetidas às

transformações do tempo e à multiplicidade de particularidades, sendo sempre

idênticas a si mesmas. Finalmente, a unidade, isto é, as Idéias são os

paradigmas sistêmicos de um conjunto de representações, por participação, na

multiplicidade sensível (REALE, 2004: 122).

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Logo, por exemplo, todo cão existente sensivelmente na diversidade

das raças e particularidade individuais, tem sua essência, seu ser verdadeiro no

mundo das Idéias, isto é, na Idéia de cão que garantiria e manteria o ser e

realidade de todos os sujeitos sensíveis (não uso aqui o termo indivíduos que

melhor expressaria a idéia, por ser uma noção desconhecida à época). Assim

todo o ente sensível nada mais seria do que uma cópia imperfeita, mutável e

inconstante do mundo inteligível, destinada a degenerar-se sob o influxo do

tempo.

2.9 A PRESENÇA DE PLATÃO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO O alcance e profundidade do pensamento platônico no ocidente são

extraordinários. Raros são os filósofos que se furtaram a se referirem a ele

direta ou indiretamente.

Vê-se sua influência atuar, desde a Antigüidade, a partir de em um de

seus mais famosos discípulos, Aristóteles. Os chamados médio-platônicos

tentaram refutar as críticas de Aristóteles a Platão. Os neoplatônicos

aprofundaram e desenvolveram a teoria das Idéias; a patrística e,

posteriormente, a escolástica reafirmou aspectos de sua doutrina com as

devidas adaptações ao pensamento cristão. Os racionalistas e empiristas, na

Idade Moderna, procederam à identificação das Idéias de Platão aos conceitos

de Sócrates. Kant se fundamentou na teoria das Idéias para criar sua maneira

de se referir à razão e a função que exercia. Hegel se inspirou nas Idéias para

formatar sua dialética da história. Os neokantianos da Escola de Marburgo

criaram e desenvolveram um método estrutural do pensamento. Os positivistas

reduziram fortemente a teoria das Idéias e procuraram extirpar do pensamento

platônico suas características animistas (REALE, 2004: 117-118).

A filosofia contemporânea desdobra-se em despotencializar a influência

platônica em seus diversos aspectos e extensões, identificando-a como origem

do que chama de praga metafísica cultural e nascedouro do dualismo alma-

corpo que caracteriza diversos aspectos das relações que temos para com o

mundo, o conhecimento, e outros aspectos de nossa percepção de mundo.

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III. A ALMA E SUAS ESTRUTURAS EM PLATÃO 3.1 A ALMA

A proposta deste capítulo é compreender como Platão vivenciava o que

chamava alma (psyché) e suas relações com o corpo.

A alma é considerada por Platão um ser. Na obra Sofista, a alma é um

ser que é real por trazer em si a capacidade de sofrer e causar ações sobre

qualquer coisa ou de qualquer coisa, caracterizando-se especificamente como

uma espécie de poder motor:

(Sofista) ESTRANGEIRO: – A seguinte: o que

naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir sobre não importa o que, ou para sofrer a ação, por menor que seja, do agente mais insignificante, e não por uma única vez, é ser real; pois afirmo, como definição capaz de definir os seres, que eles não são senão um poder. (PLATÃO, s/d: 139-140)

A alma é conduzida pelos princípios do desejo inato do prazer e pela

opinião que deseja o que é melhor:

(Fedro) SÓCRATES: - Devemos, além disso,

examinar o seguinte: em cada um de nós governam e conduzem, e nós os seguimos para onde nos levam: um é o desejo inato do prazer, outro a opinião que pretende obter o que é melhor. (PLATÃO, s/d: 142)

A característica principal da alma é a imortalidade. Possuiria também a

capacidade de mover-se sem sair de si e de mover as demais coisas com as

quais venha a manter contato.

(Fedro) SÓCRATES: - Partiremos do seguinte princípio: toda alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesma é imortal. O que a si mesmo se move, nunca saindo de si, jamais acabará de mover-se, e é, para as demais coisas que se movem, fonte e início de movimento.

Concluindo, pois, o princípio do movimento é o que a si mesmo se move. Não pode desaparecer nem formar-se, do contrário o universo, todas as gerações parariam e nunca mais poderiam ser movidos. (PLATÃO, s/d: 151)

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Platão afirma que há uma supremacia da alma dentre os demais entes

no que respeita à sua participação no divino. A alma possui uma Idéia no

chamado mundo das Idéias e nesta medida apresenta as mesmas

características que as Idéias, ou seja, são inteligíveis e incorpóreas. Dessa

maneira, as almas e as Idéias não são encerradas em limites determinados mais

ou menos rígidos como nos informa Reale (2004:167-180), a respeito da

percepção que os antigos tinham do conceito incorpóreo. Além disso, Platão

reforça a concepção de que a alma é um fenômeno natural, como se vê no

Fedro (s/ d: 152): SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer

outra coisa corpórea. e como tal, alma e Idéias são elementos naturais da phýsis

platônica com propriedades constitutivas semelhantes.

A alma seria guiada pela inteligência, que em grego pode ser expressa

com os termos noûs (νουσ), sýnesis (συνεσισ) e diánoia (διανοια), como é

visto em Fedro (PLATÃO, s/d: 153): SÓCRATES: - A realidade sem forma, sem

cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma.

Platão utiliza-se do segundo e do terceiro termos em seus diálogos para

expressar o que nós entendemos por alma-mente, sendo que, em geral, noûs é

empregado para designar a parte superior da alma, responsável pelo governo e

gestão do complexo trino da alma, isto é, pneyma (alma apetitiva), o thýmos

(alma irrascível) e o noûs, enquanto vinculada a um corpo sensível.

A alma apresentaria carência de certo tipo de alimento para

desenvolver-se, segundo Platão, e aquele seria obtido através de uma

procissão que ocorreria no que o autor chama de céu da verdade, onde a alma

seguiria um deus ao qual se afeiçoaria e se dedicaria à atividade de

contemplação das Idéias. Vale ressaltar que a contemplação é uma ação ativa

por parte da alma. Devido a sua própria estrutura, a alma não conseguiria

contemplar o que Platão chama de Ser Absoluto, sendo necessariamente

condenada a desconhecer e, por conseguinte, condenada à simples opinião e

nunca acessaria a Verdade propriamente dita, conforme vemos no Fedro,

(PLATÃO, s/d: 153) SÓCRATES: - Todas, após esforços inúteis, na impossibilidade

de se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto, caem e a sua queda as condena

à simples Opinião.

Embora afligida pelo insucesso na contemplação do Ser Absoluto, a

alma seria atraída fatalmente para o chamado céu da verdade devido à sua

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carência alimentar. Esse alimento, que seria o conhecimento verdadeiro das

Idéias, geraria na alma o desenvolvimento e robustecimento de suas asas, que

na simbologia platônica representariam a sabedoria e a inteligência conforme o

ideal de sophrosyné, isto é, justa medida. Permitiria à alma o equilíbrio

necessário para alçar um vôo mais seguro na procisão junto aos deuses e,

consequentemente, à libertação dos ciclos da palingenesia.

Conforme o Fedro, a alma seria perfectível, isto é, após sua criação

pelo deus através da contemplação das Idéias e das experiências como alma

encarnada em um corpo humano, a alma se robusteceria, se desenvolveria,

apropriando-se cada vez mais dos recursos que sua memória lhe

proporcionaria e, mais e mais ambientada às realidades verdadeiras, utilizar-se-

ia dela de maneira a garantir-lhe a fuga dos ciclos palingenésicos:

(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou

a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. [...] É somente fazendo bom uso dessas recordações que o homem se torna verdadeiramente perfeito, podendo receber em grau ótimo as consagrações dos Mistérios. (PLATÃO, s/d: 154)

Para o autor a alma seria passível de vincular-se a um corpo de modo

que justapondo-se a ele, à maneira de uma ostra à sua concha, vitalizá-lo-ia

comunicando sua capacidade de movimento, conforme vemos no Fedro

SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro que é o

nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha. (PLATÃO, s/d:

155). A alma seria considerada como uma réplica miniaturizada do kosmos

(universo compreendido como phýsis, isto é, o mundo dos homens, dos deuses,

dos mortos e o mundo natural, compreendido este por animais, plantas e

minerais). Para Platão e seus contemporâneos, de maneira geral, a perfeita

integração e interação entre os elementos da natureza permitia o

estabelecimento de analogias comportamentais entre seus elementos.

A alma, por meio de sua vinculação aos corpos humanos, se utilizaria

de uma linguagem. Para Platão (s/d: 175) (Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força

da eloqüência consiste na capacidade de guiar almas, aquele que deseja tornar-se

orador deve necessariamente saber quantas formas existem na alma.

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Ora, pelo domínio das técnicas pertinentes aos fenômenos de

linguagem que a língua grega proporcionava, a alma possuiria a propriedade

de guiar outras almas tanto quanto a si mesma.

O acesso da alma ao conhecimento estaria diretamente relacionado ao

uso de sua memória, acumulada ao longo de suas experiências, seja no Hades

seja no mundo dos vivos, além de manter patente a ela sua origem divina e seu

destino que é a perfeição, a excelência, a arete (excelência no que quer que o

indivíduo se dedique).

Um aspecto importante para a pesquisa sobre a alma em Platão é que

para ele, a alma seria construída por Deus de maneira a ser capaz de atingir

perfeita simetria com os corpos como é visto no Timeu (PLATÃO, s/d: 90):

Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo

estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do corpo

e o da Alma, harmonizou-os. Logo, a vinculação da alma ao corpo estaria numa

relação de pura simetria, não havendo possibilidade de antagonismos

substanciais entre eles.

Tal simetria se justificaria por sua composição interna, que Platão

afirma ser semelhante à composição da Alma do Todo. O que é a Alma do

Todo ou do Mundo e qual é seu papel na phýsis platônica? Que relação

mantém coma a alma humana?

A Alma do Todo foi a primeira criação do Deus1 para que pudesse

ordenar e dar beleza a tudo o que viesse a conter posteriormente, exercendo

então, o papel hegemônico na natureza platônica em relação ao corpo,

conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/ d: 86):

a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus não formou seu mecanismo numa data mais recente que a do corpo. Compondo assim, não toleraria que o termo antigo

1 Na edição que utilizei, a saber: PLATÃO (s/ d) . Timeu e Crítias ou a Atlântida . s/ ed. . São Paulo: Hemus. O autor se utiliza do termo “Deus” no sentido daquele que promove por meio de sua vontade a ação criadora que concerne à criação (confecção) da Alma e do Corpo do Mundo, enquanto usa o termo “deus(es)” para expressar aqueles que operam a criação (confecção) da alma e corpo humanos tendo como base as substâncias do Múltiplo e do misto harmônico de Uno e Múltiplo. Com base nos estudos desenvolvidos, não sei informar se esse Deus teria alguma relação com o Deus judaico, o que poderia reforçar a tese de Will Durant (1996: 40) quanto à possibilidade de Platão ter travado conhecimentos com a religião dos profetas enquanto viajou. O que posso afirmar é que o Deus que Platão se refere age como um demiurgo (ISIDRO PEREIRA, 1990:126), isto é, aquele que faz um trabalho manual, que forma, que produz, cria, na manipulação das substâncias dos Primeiros Princípios e constituição do kosmos, além de produzir as substâncias elementares para que os deuses produzissem as almas e corpos humanos.

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fosse submetido ao mais novo. [...] Mas Deus formou a Alma antes do Corpo: mais antiga pela idade e pela virtude, para comandar, e o corpo para obedecer.

A constituição da Alma do Todo foi proporcionalmente engendrara pelo

Deus, de modo a conter três substâncias elementares, a saber, uma indivisível,

uma divisível e uma terceira que seria o produto das duas anteriores, como

vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d: 85-86):

Eis que de que elementos e de que maneira: da substância indivisível, que se comporta sempre de maneira invariável, e da substância divisível, que está nos corpos, entre os dois, misturando-os, uma terceira espécie de substância intermediária, compreendendo a natureza do Mesmo e a do Outro. E assim formou-a entre o elemento indivisível dessas duas realidades e a substância divisível dos corpos. Depois tomou essas três substâncias e combinou-as em uma única forma, harmonizando à força com o Mesmo a substância do Outro, que se deixava a custo misturar. Misturou as duas primeiras com a terceira, e das três fez uma só.

Do que Platão nos apresenta, deduz-se que a Alma do Mundo é um

composto substancial e interativo do que é divisível, do indivisível e de um

terceiro elemento intermediário que ele não conceitua especificamente, mas

afirma conter as propriedades das duas primeiras substâncias

harmoniosamente misturadas e que para ele formam realidades naturais, como

declara no Timeu (PLATÃO, s/ d: 91): A Alma é então formada da natureza do

Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta da mistura dessas

três realidades.

Em seguida à construção da Alma do Todo o Deus constrói o Corpo do

Todo, que virá a constituir o kosmos, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d:

86): Mas a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus não formou seu

mecanismo numa data mais recente que a do corpo e nessa medida, a Alma do

Mundo é instalada no centro deste Corpo e estendida através dele para

além de seus limites de maneira a envolvê-lo completamente e constituída de

movimento intrínseco, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d: 85):

Quanto à Alma, tendo-a estabelecido no meio do corpo do Todo, estendeu-a através de todo o corpo, até mesmo além dele, envolvendo-o; círculo movimentado numa rotação.

Sendo a Alma esse misto substancial equilibrado, isto é, o Outro, o

Mesmo e a terceira substância, infere-se que a Alma guarde elementos de

contato entre as duas naturezas em questão, ou seja, a permanente (Mesmo) e

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a impermanente (Outro), intermediadas pela terceira substância. Nesta medida,

é possível à Alma do Todo a interiorização de tudo o que é corporal, isto é, tudo

o que é passível de ser identificado como coisas encerradas em limites

determinados mais ou menos rígidos como nos informa Reale (2004:167-180) a

respeito de como os antigos compreendiam o conceito de corpóreo. Por

conseguinte, quando isso ocorre, a Alma do Mundo é perfeitamente

harmonizada ao Corpo do Todo como vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d: 90-91):

Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo

estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do

Corpo e o da Alma, harmonizou-os.

Que razões levaram o Deus a acoplar a Alma ao Corpo? Pelo que

narra Platão no Timeu (s/ d: 80):

Tendo então refletido, percebeu que, do que é visível por sua natureza, nunca surgiria um Todo desprovido de inteligência que fosse mais belo que um Todo inteligente. E por outra, que o intelecto só pode nascer unido à Alma. Em virtude dessas reflexões, após ter colocado o Intelecto na Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para dele executar uma obra que essencialmente fosse a mais bela e melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado provável, deve-se dizer que o Cosmos, que é verdadeiramente um ser vivo provido de Alma e Intelecto, é assim gerado pela ação da Providência de um Deus.

Considerando que a Alma do Mundo tem por finalidade o exposto

acima, a composição de sua natureza substancial se justifica, uma vez que foi

projetada para dar inteligência e beleza a um Todo que supomos material já

que não havia corpos, e à Alma caberia a função de prover o Cosmos de

inteligência e beleza. No entanto, ainda cabe o questionamento: como se

processaria exatamente a concessão de inteligência e beleza da Alma do Todo

ao Corpo na constituição do Cosmos? Platão esclarece no Timeu (s/ d: 82-83)

conforme segue:

Ora, evidentemente, é necessário que o que

nasce seja corporal, e, portanto, visível e tangível. Nenhum ser sensível poderia nascer como tal se estivesse provado de fogo; nem sem algum sólido, e não existe sólido sem terra. Daí vem que, Deus, começando a construção do Corpo do Cosmos, principiou para construí-lo tomando fogo e terra. Mas é impossível que dois termos formem sós uma composição completa sem um terceiro. Pois é preciso que no meio deles haja alguma ligação que os aproxime. Ora, de todas as ligações, a mais harmoniosa é a que dá a si mesma e aos termos que ela une a mais completa das

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uniões. E aquela é a progressão que naturalmente a realiza da maneira mais harmoniosa. Pois quando de três números ou áreas ou sólidos quaisquer, o do meio é tal que o primeiro é em relação a si mesmo, o que é em relação ao último, e inversamente, o que o último é em relação ao médio, o médio sê-lo-á quanto ao primeiro e do último, o último e o primeiro, o lugar médio; temos necessariamente que todos os termos tem a mesma função, que todos desempenham uns em relação aos outros o mesmo papel, e neste caso, todos formam uma unidade perfeita. Se então o Corpo do Todo devesse ter sido um plano sem espessura, uma só mediação bastaria para atribuir-se a unidade e dá-la aos termos que a acompanham. Mas, com efeito, convinha que esse corpo fosse sólido, e, para harmonizar os sólidos, uma só mediação nunca bastaria: é necessário sempre duas. Assim Deus colocou o ar e a água no meio, entre o fogo e a terra, e dispôs esses elementos uns relacionados aos outros, tanto quanto seria possível numa mesma relação, de tal modo que o fogo é para o ar, o ar foi para a água, e o que o ar é para a água, a água o foi para a terra. Por esses procedimentos e com a ajuda desses corpos assim definidos em número de quatro, foi engendrado o Corpo do Cosmos. Por sua proporção, e por essas condições, é tão completo que, reunindo num único todo, pôde nascer indissolúvel por qualquer outra potência que não a que o uniu. [...] E assim o compôs, antes para que o todo fosse tanto quanto possível uma Alma perfeita, formada de partes perfeitas e, para que fosse única, nada restando de que pudesse nascer outra alma da mesma essência, e, enfim, para que fosse isento de velhice e doença. Pois ele bem sabia que num corpo composto, as substâncias quentes e frias e, de maneira geral, todas as que possuem propriedades energéticas, quando rodeiam esse composto por fora e o fazem demasiadamente, o dissolvem, aí introduzindo as doenças e a velhice, fazendo-o assim perecer. Eis por que causas e segundo que lógica Deus conformou esse Todo único, com o auxílio absoluto de todos os Todos, tornando-o perfeito e inacessível à velhice e às doenças.

É muito interessante observar como Platão descreve no Timeu (s/ d:

91-92), a dinâmica cognitiva da Alma do Mundo em relação aos dados

perceptivos e inteligíveis numa verdadeira teoria da relação Alma-Corpo e que

vale a pena ser reproduzida textualmente para melhor apreciação do leitor:

A Alma é então formada da natureza do Mesmo,

da natureza do Outro e da terceira substância. E composta da mistura dessas três realidades, move-se por si só em círculo, girando sobre si mesma. E na medida que entra em contato com um objeto que possua uma substância divisível ou com um objeto cuja substância seja indivisível, ela proclama, movendo-se, por todo o seu ser próprio, a cuja substância ele é idêntico e da qual ele difere. Mas difere, e relativamente a que, sob que relação, de que maneira e em que circunstâncias ele se remete às coisas que devem ter em suas relações mútuas uma ou outra dessas determinações ou modalidades, bem como suas relações

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com coisas que se conservam sempre idênticas. Ora, quando um raciocínio veraz e imutável, relativo à natureza do Mesmo ou à do Outro, é acusado, sem ruído nem eco, dentro daquele que se move a si mesmo, esse raciocínio pode ser formulado em relação às coisas sensíveis. Então o círculo do Outro caminha diretamente e transmite à Alma inteira informações sobre o sensível, e podem assim se formar nela opiniões que são sólidas e verdadeiras. Inversamente, quando esse raciocínio se forma em relação ao que é objeto de lógica, assim que o círculo do Mesmo está animado de uma rotação favorável, e lhe revela aquele objeto, a intelecção e a ciência se produzem necessariamente. E aquilo em que nascem essas duas espécies de conhecimento, quem afirmasse ser algo que não a Alma, tudo poderia estar dizendo, menos a verdade.

Uma vez compreendido o que é a Alma do Todo, o Corpo do Mundo e

o Cosmos, é importante procurar compreender a distinção entre a Alma do

Mundo e a alma humana para continuarmos a investigação em torno das

relações alma-corpo em Platão. Nesse sentido, vale recordar Platão, no Fedro

(s/ d: 174):

(Fedro) SÓCRATES: - E acreditas que seja possível

conhecer a natureza da alma sem conhecer o universo? FEDRO: - Se dermos crédito a Hipócrates, que é um

Asclepíades, nem sequer o corpo se pode conhecer sem tal método.

SÓCRATES: - Pois ele tem razão, meu amigo! Platão identifica a Alma do Todo com a alma humana, numa relação de

similitude, em escala diferenciada. Em que medida então são distintas as almas

do Mundo e a humana?

A alma humana se assemelharia à Alma do Mundo na medida em que é

constituída por elementos semelhantes, porém, de maneira desproporcional, o

que gera toda a diferença entre uma e outra. A alma seria constituída de

substâncias com propriedades características das forças naturais que o autor

chama de Outro, responsável pela indeterminação variável do grande-e-

pequeno2 no real, também chamado de Díade do grande-e-pequeno, e de uma

outra substância composta proporcionalmente, que o autor chama de misto do

Mesmo3 (também chamado de Uno Universal, responsável pela força natural da

2 Os termos grande-e-pequeno, de-terminação, Díade e Uno Universal são utilizados por Giovanni Reale em sua obra Para Uma Nova Interpretação de Platão (2004: 157-166), capítulo sétimo “A ‘segunda navegação’ na etapa final: a teoria dos Princípios Supremos (Uno e Díade Indefinida) e a sua função estrutural”. Os utilizo por acreditar que descrevem da melhor maneira possível as forças cósmicas ordenadoras da phýsis platônica. 3 Como é observado nas citações do Timeu nas páginas 19-22, os termos Mesmo e Outro a meu ver correspondem ao Uno Universal e Díade respectivamente, pois são os elementos

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de-terminação do real) e do Outro que proporciona à alma a capacidade de

movimentar corpos, à semelhança da Alma do Todo. Logo, a alma humana

para Platão é a combinação da substância do Outro adicionada ao misto

substancial proporcionalmente engendrado do Outro e do Mesmo. Em outras

palavras, o Outro representa a parte da natureza que equivale ao sensível e o

Mesmo, o que representa o inteligível.

Para Platão, em sua física, exposta no Timeu, o Outro significa a

Dualidade. O Mesmo significa a Unidade. O terceiro elemento é a fusão

proporcional dos dois elementos anteriores despotencializados, isto é,

equilibradamente harmonizados e com suas propriedades reduzidas para gerar

uma substância com características duplas e naturalmente intermediárias entre

os dois princípios naturais, ou seja, uma substância que viria a garantir a

comunicabilidade entre o Outro e o Mesmo e por conseguinte, a capacidade de

ceder movimento, própria à alma, como é visto abaixo:

A alma é então formada pela natureza do Mesmo,

da natureza do Outro e da terceira substância. E composta destas três realidades, move-se por si só em círculo. [...] disse essas palavras e, retornando à cratera na qual inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo, aí verteu os resíduos das primeiras substâncias e as misturou aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não havia mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado, dividiu num número de almas igual ao dos astros. (PLATÃO, s/d: 91, 100-101).

Vale ressaltar que os conceitos de Outro e Mesmo se relacionam ao

que Reale (2004: 156-166) nos informa quanto aos Princípios Supremos

Últimos da phýsis platônica, a Díade e o Uno, sendo a primeira o princípio de

variabilidade indefinida, isto é, do grande-e-pequeno, do indefinido ou infinito; e

o segundo o princípio de-limitador e de-terminador do ilimitado, indeterminado,

indefinido, igualizador do desigual, enfim, princípio de determinação formal que

normatizariam as relações na phýsis.

A alma se relacionaria com os corpos na proporção das afinidades de

suas partes constitutivas, como expresso no Timeu (PLATÃO, s/d: 91-92), no que

se refere à cognição.

substancias de composição da Alma do Mundo e da ordenação de seu Corpo, sendo, por conseguinte, proporcionalmente presentes na alma e corpo humanos.

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Assim, conforme vivesse o homem no mundo dos vivos, sua alma

poderia optar por levar uma vida dedicada aos prazeres sensíveis e desta

maneira influiria sobre sua natureza de maneira a acentuar sua porção do

Outro (Díade), e tornar-se-ia grosseira sua alma, impedindo-lhe de se alimentar

convenientemente e, consequentemente, mantendo-a nos ciclos

reencarnatórios. Se estivesse voltada para sua natureza divina, isto é, o

Mesmo (Uno), fortaleceria a terceira substância que se aproxima dos prazeres

de natureza divina, libertando-se assim, antecipadamente, das paixões

vinculadas à vida encarnada, conforme Platão menciona no Fédon (s/d: 54):

(Fédon) SÓCRATES: - E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, senão aquele que usasse no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres, unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem ao ouvido, e libertando-se do corpo inteiro, que perturba a alma e não deixa apreender a verdade quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se lançasse à cata das realidades verdadeiras, também em si mesmas, por si mesmas e sem mistura?

Para Platão, a alma seria passível de conhecer a si mesma e de ter o

conhecimento verdadeiro dos seres em si mesmos desde que acentuasse a sua

natureza divina e através dela, por identidade substancial, o conhecimento

verdadeiro de daria, conforme se vê abaixo:

(Fédon) SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a

prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele [o corpo] e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. (PLATÃO, s/d: 55)

Com base na declaração acima, Platão nos informa que a alma

encarnada pode acessar o conhecimento verdadeiro sem interferência dos

sentidos corporais. Isso se dá apenas na medida em que ela se afastar dos

sentidos como fonte única do conhecimento e valorizar seu elemento

constitutivo do Mesmo em detrimento do Outro, por identidade substancial e de

propriedades entre a alma e as Idéias. Dessa maneira, não é necessário que o

conhecimento se dê apenas por contemplação da Idéias, mas ocorrerá

também, através de si mesma (alma), isto é, por intermédio da concentração e

valorização do princípio de unidade que compõe a própria alma.

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Decorrente disso, é interessante notar que a alma humana, em certa

medida, também possui uma idéia do chamado mundo das Idéias, fonte de

onde decorrem por participação os múltiplos indivíduos existentes no mundo

sensível.

Através da consciência de sua natureza e de sua composição essencial

a alma poderia voluntariamente buscar, através do acentuamento de sua parte

divina, isto é, de sua porção essencial do Mesmo, identificar-se com os demais

seres (Idéias).

Platão define que a alma não sofreria necessariamente a ação da

ascese do pensamento (processo segundo o qual o autor afirma que o

pensamento progride de maneira escalonada, isto é, das coisas simples passa,

por indução, às mais complexas, das sensíveis às abstratas), isto é, em alguma

medida, a alma manteria a sua pureza substancial no sentido de não sofrer

mudanças substanciais decorrentes do processo de ascese:

(Fédon) SÓCRATES: - E assim esta viagem que

hora me foi prescrita é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer purificado.

Mas a purificação não é de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada e por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam? (PLATÃO, s/d: 55-56)

Pelo que foi constatado a respeito da criação da Alma e do Corpo do

Todo em relação ao Cosmos e o processo de criação da alma humana visto no

Timeu (PLATÃO, s/ d: 80; 82-86; 90-92; 100-101) e Fedro (PLATÃO, s/ d: 174)

e no Fédon (PLATÃO, s/ d: 55) sobre a possibilidade da alma ter acesso ao

conhecimento através de si mesma, por meio da ascese do pensamento,

enquanto encarnada no mundo sensível, os passos acima mencionados do

Fédon corroboram a posição de Platão quanto à possibilidade da alma poder

realizar relativa separação do corpo e assim alimentar-se de conhecimento

verdadeiro.

Obviamente a separação total e absoluta entre corpo e alma enquanto

encarnada é impossível pois, enquanto tal, a alma está vinculada ao corpo tal

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qual uma ostra à sua concha e, por similitude à Alma do Mundo, envolve e

atravessa seu corpo de maneira a estar localizada em seu centro e por meio de

todas as suas partes constitutivas. Logo, a ela seria impossível o apartar-se em

definitivo, a não ser pelo fenômeno da morte.

Uma vez que o pensamento é definido por Platão, no Sofista (s/ d: 158),

como diálogo da alma consigo mesma, percebe-se claramente o estatuto que o

pensamento possui para o filósofo, qual seja, o de um atributo da alma através

do qual ela é capaz de isolar-se das sensações para atingir o conhecimento

verdadeiro através da filosofia.

Ora, se há esta diferença entre a alma e o pensamento, por

conseguinte o noûs (inteligência, alma racional) seria em certo sentido, um

atributo da alma tanto quanto o pensamento, logo, seria distinto dela em algum

nível. Em que medida pode-se compreender tal distinção? Investigarei isso

mais a fundo no item Atributos da Alma.

Para Platão, a alma deve ter seus desejos pautados pela razão, porém,

quando isso não ocorre, o que ele chama o prazer do bem é esmagado e a

alma se dirige ao prazer que a beleza promete, guiada pelos desejos

intemperantes. O ascendente que esse desejo exerce sobre a alma é irresistível

e Platão o chama de Eros ou Amor, conforme é visto no Fedro (s/ d: 143):

(Fedro) SÓCRATES: - Quando o desejo, que não é

dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o prazer do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete e quando se lança, com toda a força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível, chama-se Eros ou Amor.

No que se refere à alma encarnada, o foco de seu interesse determina

a porção de sua natureza que será valorizada ao longo da vida e determinará

assim, a melhor ou pior qualidade das Idéias captadas por contemplação ou por

auto-conhecimento4 e, consequentemente, segundo Platão assinala no Fedro

(s/ d: 143), acima citado, a alma entrará numa espécie de inércia devido à

opção levada a efeito pelo interesse intemperante, conduzindo-a então, ao

desequilíbrio e a ações irracionais. Vale ressaltar que o problema da opção

4 Por auto-conhecimento não me refiro aqui ao processo de perscrutação interior que objetiva identificar possíveis falhas a serem repreendidas por mudanças de comportamento, mas o processo segundo o qual a alma em si, isto é, por meio de sua identidade substancial e qualitativa com as Idéias verdadeiras é capaz de vir a conhecê-las desde que consiga reduzir a influência dos sentidos oriundos do corpo sensível.

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intemperante que Platão assinala em detrimento da racional é que a alma por

essa escolha vincula-se à corporalidade do sensível e condiciona-se a manter-

se no que ele chama ciclo das reencarnações pela pouca afinidade

desenvolvida volitivamente para com o inteligível, que Platão chama de

natureza divina da alma.

Se a alma não fosse moldada através de uma educação conveniente, o

elemento pior de sua natureza poderia dominá-la e causar-lhe-ia amplos

transtornos. As características básicas dos referidos elementos anímicos

seriam, segundo a alegoria do cocheiro e de seus cavalos: a) o melhor cavalo –

amor à honestidade, sobriedade, pudor, amigo da opinião certa e dócil à

palavra de comando do cocheiro; b) o pior cavalo – imprudente, soberbo,

lascivo e obedeceria apenas com esforço; c) o cocheiro – é o que observa

objetos amáveis e sofre com os desejos oriundos dos dois cavalos, como se vê

no Fedro:

(Fedro) SÓCRATES: [...] Representá-la numa

imagem já é coisa que se possa fazer num discurso humano de menores proporções. A alma pode ser comparada com uma força natural e ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro.

(Fedro) SÓCRATES: O cavalo de melhor aspecto tem um corpo harmonioso e bonito; pescoço alto, focinho curvo; cor branca, olhos pretos; ama a honestidade e é dotado de sobriedade e pudor, amigo como é da opinião certa. Não deve ser batido e sim dirigido apenas pelo comando e pela palavra. O outro, o mau, é torto e disforme; segue o caminho sem deliberação; com o pescoço baixo tem um focinho achatado e a sua cor é preta; seus olhos de coruja são estriados de sangue; é amigo da soberba e da lascívia; tem as orelhas cobertas de pelos. Obedece apenas, e com esforço, ao chicote e ao açoite. (PLATÃO, s/d: 151,152 e 158)

Pelo depreendido da análise comparativa dos textos Fedro (PLATÃO, s/

d: 151, 152 e 158), o da República (PLATÃO, s/ d: 162 e 163) e Timeu

(PLATÃO, s/ d: 105 e 149), percebi que a simbologia utilizada pelo filósofo no

Fedro corresponderia a alguma espécie de matriz comportamental da alma em

seu processo de relacionamento com o conhecimento, no caso, as Idéias

verdadeiras a serem contempladas no chamado céu da verdade, enquanto

alma desencarnada e, após a encarnação, através da contemplação ou auto-

conhecimento proporcionados pelo exercício filosófico. Ao que parece,

conforme será visto adiante, essa matriz comportamental, compreendida pelo

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cavalo branco, pelo cavalo negro e pelo cocheiro, interagirá de maneira

espelhada com as demais estruturas, em especial com a estrutura anímica

descrita na República, a saber, o noûs, o thýmos e o pneyma, que compõem o

conjunto da psyché, isto é, da alma encarnada.

Outro ponto a ressaltar é a questão da procisão e de como ela se daria.

Nela, cada alma seguiria o fluxo das revoluções no céu da verdade (inteligível),

acompanhando um deus. Supomos que esta procisão representaria o período

de estada da alma no mundo inteligível, antes de encarnar pela primeira vez.

Porém, o que pretendo investigar é o que determinaria a opção por este ou

aquele deus ao iniciar cada nova procisão. Conforme se verifica no Fedro,

Platão informa que as revoluções seriam diferentes para os deuses, almas e

demônios5, visto que para os dois últimos, a jornada seria difícil devido à sua

natureza, pois esta prejudicaria a atenção do cocheiro em relação à

contemplação das Idéias; porém, cada um deles seguiria um deus, em grupo,

por eleição pessoal como Platão apresenta no Fedro (s/ d: 152-153):

(Fedro) SÓCRATES: A força da asa consiste em

conduzir o que é pesado para as alturas onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom. Por meio destas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem, enquanto que todas as qualidades contrárias, como o que é feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer. Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a dar ordens e a cuidar de tudo. O exército dos deuses e dos demônios segue-o, distribuído em onze tribos. Hestia é a única entre os seres divinos que permanece em casa. Cada um dos outros onze deuses é o guia, conforme a ordem de sua tribo. Há muitos e agradáveis espetáculos e caminhos no céu, por onde a grande família dos deuses, fazendo cada um deles o que lhe está afeto e seguindo-os aqueles que os podem seguir.

Quando se dirigem para o banquete que os espera, os carros sobem por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóboda dos céus. Os carros dos deuses que são mantidos em equilíbrio, graças à docilidade dos corcéis, sobem sem dificuldade. Os outros com dificuldade porque o cavalo de má raça inclina e repuxa o carro para a terra. Há então grande trabalho para a alma. [...]

5 Conforme ISIDRO PEREIRA (1990: 118), o termo demônio deriva do grego daímon (δαιµον), significando: deus(a), poder divino, destino, sorte e dentre outros sentidos, alma dum morto, sombra, gênio que acompanha um homem a uma cidade. Também, segundo Coulanges (1998: 7-28), o ancestral morto, enterrado sob a lareira doméstica, na casa grega, era cultuado como deus através do Lar, mantendo contato com os deus e olímpicos a respeito dos interesses dos parentes encarnados sendo cultuados até a quinta geração e consultados sobre todos os aspectos importantes da vida familiar e social. Em Vernant (1990: 27; 30-35; 66; 69; 80-81; 88; 95-98; 103; 113; 119; 120; 126; 143 e nota 53; 144; 297; 345) em que o termo é apresentado em suas múltiplas acepções segundo os estudos realizados pelo helenista francês.

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(Fedro) SÓCRATES: A sorte das outras almas é, porém esta:

Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. Ora levantam, ora baixam a cabeça, e, pela resistência dos cavalos, vêem algumas coisas mas não vêem outras. Outras há, porém, que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante.

Pelo que constatei a partir do texto, a escolha por um ou outro deus

estaria relacionada à capacidade de cada alma de observar (contemplar) o

melhor possível as Idéias que as alimentariam, gerariam e robusteceriam suas

asas e assim lhe possibilitariam um vôo mais equilibrado. A felicidade que

adviria desse conhecimento seria compatível com a capacidade adquirida pela

alma por meio da contemplação.

Sendo assim, a alma tem liberdade para escolher o deus ao qual

acompanharia nas revoluções, mas se não conseguisse manter-se em

formação até o banquete, pela fraqueza de suas asas, ela cairia e tal queda

acarretaria sua primeira encarnação humana no mundo dos vivos. Do contrário,

de vôo em vôo, a alma se fortaleceria e nunca conheceria o sofrimento da

reencarnação como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d: 153-154):

(Fedro) SÓCRATES: - É uma lei de Adrástea: toda

a alma que segue a de um deus, contempla algumas das verdades; fica isenta de todos os males até nova viagem e se seu vôo não se enfraquece ela ignorará eternamente o sofrimento. Mas, quando já não pode seguir os deuses, quando devido a um desvio funesto ela se enche de alimento impuro, de vício e de esquecimento, torna-se pesada e precipita-se sem asas ao solo.

Acredito ser a lei de Adrastéa uma das questões mais importantes

pertinentes à alma humana antes da encarnação. Através dela Platão nos

informa que a alma, no processo de contemplação das Idéias, processo este no

qual ela se alimenta de Idéias verdadeiras ou impuras, segundo seus

interesses. Optando por Idéias verdadeiras, a alma alimentada

convenientemente mantém o ritmo do vôo na procisão divina, atrás do deus de

sua preferência. Escolhendo Idéias impuras, a alma tem as asas da sabedoria e

da inteligência minguadas pela nutrição de baixa qualidade e, pesadas, caem

da procisão gerando uma nova encarnação. Segundo a declaração do filósofo,

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o que condicionaria a encarnação da alma seria o uso da liberdade de opção

em se alimentar por Idéias não verdadeiras e como conseqüência, o estado de

felicidade da alma, participante dos festins divinos e longe de uma vida humana

ou animal ou seu contrário, isto é, a vinculação da alma aos ciclos

reencarnatórios e às suas misérias múltiplas e variáveis está na razão direta da

quantidade e qualidade das Idéias contempladas.

A encarnação surge como elemento não necessário, desde que a alma

proceda à escolha pelas Idéias verdadeiras. É interessante notar que a

qualidade/quantidade das Idéias verdadeiras condiciona o gênero da vida

humana que a alma terá na encarnação, como é visto abaixo, no Fedro (s/ d:

154):

(Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no

primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal; aquela que mais contemplou gerará um filósofo, um esteta ou um amante favorito das Musas; a alma de segundo grau irá formar um rei legislador, guerreiro ou dominador; a do terceiro grau forma um político, um economista, ou financista; a do quarto, um atleta incansável ou um médico; a do quinto seguirá a vida de um profeta ou adepto dos mistérios; a do sexto terá a existência de um poeta ou qualquer outro produtor de imitações; a do sétimo, a de um operário ou camponês; a do oitavo, a de um sofista ou demagogo; a do nono, a de um tirano. Quem em todas estas situações, praticou a justiça moral, terá melhor sorte. Quem não a praticou cai em situação inferior.

Diretamente relacionado a este processo estaria o do desenvolvimento

das asas da alma que se nos apresentaria claramente como uma alegoria

referente à aquisição da sabedoria e da inteligência que, equilibradas,

permitiriam à alma seguir o deus de sua preferência nas revoluções de

conhecimento das verdades eternas até não mais reencarnarem (ou nunca

encarnarem); e gozariam da felicidade obtida através deste conhecimento.

A alma é passível de sofrer, como as crianças com o nascimento dos

dentes, como é visto no Fedro (PLATÃO, s/d: 156):

(Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas

começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao receberem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas.

Ora, se a alma sofre e tem “prazer”, é que de alguma forma possuiria

alguma espécie de sensibilidade que garante a comunicação interior-exterior,

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como é visto em Platão, no Timeu (PLATÃO, s/d: 91-92). Como isso se daria,

uma vez que a alma não possuiria nervos para padecer de tais estímulos por

ser distinta do corpo?

Remetendo-nos à composição substancial da alma por motivo de sua

criação pelo Deus, explica-se quase que totalmente a dinâmica cognitiva da

alma humana. A alma e o corpo humano foram construídos pelos deuses em

semelhança com a Alma e o Corpo do Mundo, com a diferença que a alma

humana não possui a mesma combinação substancial de Mesmo, Outro e da

terceira substância, misto das duas anteriores, que compõe a Alma do Todo. Ao

contrário, em sua composição, foram utilizadas apenas o Outro e a terceira

substância. Logo, isso explicaria a questão da alma estar submetida ao

envelhecimento, enquanto encarnada, pois na terceira substância, a metade

desta que é composta da porção do Mesmo, o que não é suficiente para

assegurar a imortalidade do organismo uma vez que uma porção e meia da

alma humana seria composta de Outro, o que a submete à temporalidade

enquanto em contato com o sensível.

É importante recordar que o Outro e o Mesmo, em Platão, no Timeu,

representam o complexo de forças fundamentais e universais, através das

quais, o autor fundamenta sua visão da natureza. Elas agem como os

elementos ordenadores do Cosmos, atuando de maneira simultânea e

complementar, isto é, como o misto da permanência e devir, o que Platão

chama de Primeiros Princípios, apresentados por Reale (2004: 156-166).

Esses Princípios são os fundamentos últimos da natureza,

concomitantemente imanentes e transcendentes no Cosmos, presentes por

meio de suas características próprias, a saber: o Outro ou Díade Universal,

representa a multiplicidade, tudo que é infinito, com aspecto não de-terminado6.

Logo, aquilo que se afasta do terminado, do fixo, do realizado. É o Princípio

relativo a tudo o que é sensível por estar continuamente submetido ao devir, à

mudança, à impermanência. O Mesmo ou o Uno Universal tem as

características opostas às do Outro, isto é, possui a qualidade terminadora,

permanente, eterna, imutável, idêntico a si mesmo.

Uma vez que a alma humana foi construída com as acima mencionadas

substâncias que lhe asseguram identificação de propriedades com os Princípios

6 Conforme Ferreira (1975: 423) de palavra latina que significa afastamento, extração.

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elementares da natureza platônica, em especial, a terceira substância que é

produto da mistura do Outro e do Mesmo, Platão nos informa no Timeu (s/ d:

91-92) a respeito da cognição de impressões sensíveis e/ou inteligíveis que

ocorrem justamente devido à afinidade substancial e de propriedades que a

alma apresenta e mantém com a natureza das informações que lhe

sensibilizem através do que Platão chama círculos do Outro ou, no caso da

alma humana, da terceira substância, conforme vemos na página 22 dessa

dissertação.

Uma vez que a alma e o corpo humano são análogos à Alma e ao

Corpo do Cosmos, comportando-se quase que completamente em semelhança

a eles, a alma humana em relação a seu corpo, enquanto encarnada, localizar-

se-ia para Platão, no centro do corpo e atravessando-o em todas as suas

partes, a ele justapondo-se como uma ostra à sua concha, chega a ir além dele

de maneira a envolvê-lo. De tal declaração de Platão, infere-se forçosamente

que a alma humana possui a forma do corpo que anima, uma vez que por

princípio substancial e de propriedades, a alma não teria condições para

delimitar em contornos fixos seus limites; ou seja, propriedade que apenas o

corpo, vinculado ao Princípio do Outro, sob o influxo vitalizador e inteligível da

alma e por ela mantido durante a encarnação, seria capaz de realizar.

A alma humana, mesmo não encarnada não é um composto substancial

amorfo porque, segundo Platão no Timeu (s/ d: 80) e na página 20 dessa

dissertação, a alma foi criada com a finalidade específica de prover de

inteligência e beleza ao que é visível, isto é, a tudo o que é composto apenas

pelo Princípio do Outro. Na República (s/ d: 406-415), no mito de Er, as almas

humanas são reconhecidas exatamente como eram em sua última vida terrena

antes da escolha de um novo gênero de vida. No Fédon, Platão confirma esta

descrição da alma humana no Hades, caracterizada tal qual foi em sua última

vida, mesmo em se referindo à pessoas famosas, há muito mortas,

corroborando assim a concepção de eidolon (duplo) que, segundo Isidro Pereira

(1990:167) significa fantasma, figura, retrato, e que Vernant (1990:116, nota 38)

descreve como sendo o duplo do homem, isto é, o espelho do corpo, uma cópia

(ou modelo) com as mesmas feições e especificidades morfológicas do corpo

recém morto. Em termos platônicos, poderíamos chamar esse eidolon de Idéia

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de homem, personalizada pela alma do sujeito em questão e produto de todas

as suas experiências anteriores.

Disso decorre, necessariamente, que a alma humana, enquanto

desencarnada, por afinidade substancial e de qualidades para com a Alma do

Mundo, possui um eidolon, uma imagem, uma figura através da qual é

reconhecida pelas características próprias que lhe constituíram a última

personalidade na existência terrena. Logo, é perfeitamente admissível que em

Platão, a alma humana desencarnada possua certa corporeidade.

Inventariando o exposto, percebe-se que a alma humana é: 1 – uma

miniatura da chamada Alma do Todo; 2 – Por identidade substancial e de

propriedades, ela é capaz de se relacionar com o sensível e o inteligível e deles

receber estímulos; 3 – é uma Idéia na medida em que no chamado mundo das

Idéias existe uma Idéia de homem que caracteriza a alma humana como tal; 4 –

tal como uma Idéia, a alma humana cede inteligibilidade e beleza ao sensível; 5

– pelo exposto nos itens 2, 3 e 4, a alma agrega em torno de sua substancia

ideal a terceira substância constitutiva de sua natureza, para constituir sua

corporalidade; 6 – esse duplo é o corpo através do qual a alma humana

participa da contemplação das Idéias e desenvolve as asas da sabedoria e da

inteligência; 7 – é o corpo inteligível aquele que proporciona a possibilidade da

alma ser metamorfoseada na nova personalidade que assumirá em sua futura

encarnação, condicionando a vivência como homem, mulher, animal ou outro

ser natural e, 8 – nesta medida, o eidolon, caracterizado através das

propriedades de suas substâncias constitutivas (Outro/Mesmo e a porção do

Outro), modela o futuro corpo.

Pelo que se conclui do inventário acima, enquanto encarnada, a alma

humana se justapõe a seu corpo sensível através do corpo inteligível que por

seu intermédio, recebem beleza, inteligibilidade. Enquanto desencarnada, a

alma por intermédio de seu eidolon manteria também as mesmas capacidades

cognitivas através da relativa corporeidade do duplo.

Platão se refere à possibilidade que a alma teria de ser guiada por uma

outra alma e ser capaz de guiar outras almas, por sua vez, através da

eloqüência do discurso, como é visto no Fedro (s/ d: 174):

(Fedro) SÓCRATES: - Com a arte retórica se passa

mais ou menos a mesma coisa que com a Medicina. FEDRO: - Como?

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SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente, que as duas artes se distinguem uma da outra pela natureza do seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra com a alma. Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outro infundir a convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos legítimos.

Ou seja, a arte de bem falar, a retórica, influiria nas decisões da alma e

seria passível de ser utilizada para guiar outras almas. Na descrição da

natureza anímica, Platão não deixou de prestigiar o papel da linguagem no

relacionamento entre as almas. A linguagem exerceria importante papel nas

relações da alma para com ela mesma e dela para com outra alma.

Neste ponto de nossa investigação vale recordar o sofista Górgias de

Leontinos (apud Romeyer-Dherbey, s/d: 45-48), contemporâneo de Platão e

que influenciou amplamente a reflexão filosófico-moral e política em Atenas e

que nos informa sobre a arte de curar através do discurso. Ora, o grego

clássico era um homem que se afirmava como cidadão em sua sociedade

através do discurso, isto é, a linguagem era o instrumento nivelador dos iguais

que os colocava ès tò méson (no centro) da ágora (praça ou mercado público).

Arrisco a dizer que a linguagem determinava-lhes a percepção do real (sensível

e inteligível, à época indistintos).

É neste sentido que a alma deveria ser objeto dos maiores cuidados

quanto à sua alimentação ideológica (compreendo ideológica como referente às

Idéias e não no sentido de conjunto de idéias de determinada escola ou

pensador), uma vez que ela se daria na e por meio da linguagem. A razão disto

se justifica exatamente pela característica variável que a linguagem apresenta.

Retornando à questão da composição da alma humana, fenômeno

existencial natural, ela seria constituída do Múltiplo, adicionado a um composto

proporcional de Uno e Múltiplo. Na simbologia platônica do Timeu (s/d: 85-86),

e no âmbito da teoria dos Primeiros Princípios, apresentada por Reale (2004:

181-193) se depreende que a realidade última da phýsis era composta pelo Uno

e pela Díade indeterminada, espécies de forças cósmicas no sentido de

princípios ordenadores que agiriam simultânea e complementarmente sobre a

totalidade da natureza.

O primeiro seria o princípio de-terminador e de-limitador, ou seja, o

Mesmo, base de tudo o que é inteligível; a segunda, isto é, a Díade

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indeterminada ou indefinida, seria a base de tudo o que é múltiplo (o Outro),

compreendido como tudo o que é sensível. A phýsis platônica seria

compreendida dos Primeiros Princípios (Uno e Díade) e o sensível, com suas

multiplicidades. A questão da phýsis ou natureza é muito importante para

compreender as relações corpo-alma para Platão.

Conforme a tradição filosófica, Platão seria o responsável por

estabelecer o dualismo através da divisão da natureza em dois mundos, a

saber, o sensível e o inteligível. O primeiro, teria sua realidade e fundamentado

no segundo, mais especificamente no que Platão chama de Idéias e, em

especial, na Idéia de Bem, conforme se vê em Pessanha (1996: 50-51; 53),

Durant (1996: 48-55), Marcondes (1998: 54-67), Japiassu & Marcondes (1991:

127) e Ismael Quiles (1952: 11-12). Para a tradição, representada em nossa

pesquisa pelos autores supracitados, as Idéias, como se vê em Pessanha

(1996: 50)

seriam os modelos eternos das coisas sensíveis. Embora Platão as chama também de “idéias”, elas não existem na mente humana, como conceitos ou representações mentais: ao contrário, existem em si, nem nos objetos (de que são os modelos), nem nos sujeitos, (que conhecem esses objetos). [...] Cada coisa corpórea e mutável seria o que ela é (uma cadeira, por exemplo) porque participa da essência que lhe serve de modelo (a cadeira-em-si, a essência ou “idéia” da cadeira). [...] a essência da cadeira permanece sempre a mesma, fora do tempo e do espaço.

Ou seja, o chamado mundo das Idéias seria uma realidade à parte do

sensível, embora seja sua matriz e possua uma realidade objetiva cedendo ser

aos elementos individuais do mundo sensível através de participação

metafísica. Dentre todas as Idéias, a do Bem seria aquela que agregaria a

capacidade máxima de generalização visada através do exercício dialético,

conforme é visto em Pessanha (1996: 53):

usando o conhecimento dialético, o filósofo pode atingir as essências eternas. E, seguindo as articulações que ligam determinadas essências a determinadas essências, vai conquistando essências cada vez mais gerais. Até que, por fim, contempla aquele absoluto, uma superessência. Na República, Platão o denomina de Bem. Ele seria a fonte de toda a luz, fazendo com que os objetos possam ser conhecidos e que nós possamos conhecê-los. É como o Sol.

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A distinção da realidade em mundo sensível e mundo inteligível, à parte

do tempo-espaço, desenvolveu ao longo do tempo e das inúmeras

interpretações das doutrinas platônicas, o que Rorty (1988: 25-62) chamou de

vocabulário mentalista baseado em metáforas oculares gregas e, devido a

estas, haveria se desenvolvido um entrave filosófico e lingüístico nas tentativas

contemporâneas de solucionar o problema das relações alma-corpo, como se

vê em Teixeira (2000: 65-89); em especial, no que concerne às chamadas

Teorias da Identidade, com graves embaraços às suas hipóteses e teorias

explicativas.

No entanto, no decorrer das pesquisas para o desenvolvimento dessa

dissertação me deparei com a obra do filósofo italiano Giovanni Reale, Para

Uma Nova Interpretação de Platão (2004), especialista em História da Filosofia

e que segundo Lima Vaz (REALE, 2004: 14), na introdução ao mencionado

livro, referencia outro trabalho de Reale, a saber, A História da Filosofia Antiga,

afirmando que esta é o instrumento de trabalho mais completo posto à disposição do

estudioso, tanto do ponto de vista da informação como da análise filosófica. Que

diferencial encontrei em Reale em relação às interpretações da tradição, para

compreender da phýsis platônica em questão?

A tese formulada no final dos anos cinqüenta do século XX, pela

chamada escola de Tübingen, tinha como expoentes, então, os dois

representantes mais significativos, os filósofos H.-J. Krämer e K. Gaiser que

defendiam a necessidade de se levar em consideração nos estudos

desenvolvidos em torno de Platão e do platonismo, o que eles chamaram de

doutrinas não-escritas. O que seria isso?

As doutrinas não-escritas correspondem aos ensinos orais de Platão,

ministrados na Academia. Como toda tradição oral, por carência de registros do

autor, sempre foi desconsiderada pelos pesquisadores, em especial, os que

adotaram o paradigma interpretativo de Schleiermacher, no século XIX,

fundado na autenticidade exclusiva de um certo grupo de diálogos como

referência e possibilidade de organização do chamado corpus platônico. No

entanto, Krämer e Gaisere , conforme atesta Reale (2004: 54-80) retomaram as

pesquisas em torno dos ensinos orais de Platão. Tendo como documentos

historiográficos o que o autor chama de tradição indireta (Idem: 81-97),

responsável pela conservação de indícios das doutrinas não-escritas no

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período Acadêmico, foi possível reconstruir o conteúdo dos ensinos orais, bem

como acompanhar a evolução deles no seio do platonismo ao longo do tempo.

Com o acesso ao conteúdo dos ensinos orais de Platão, Reale

apresenta uma série de vantagens decorrentes da adoção do novo paradigma

interpretativo, tais quais: uma nova visão sobre os escritos (diálogos), a solução

das aporias7 teóricas das doutrinas do filósofo que o paradigma tradicional não

consegue solucionar, o redimensionamento do filosofar como exercício de

sabedoria empírica para Platão, compreensão das mutações, acomodações e

falhas interpretativas introduzidas no corpus platônico e, o que mais chamou

minha atenção na proposta das Escolas de Tübingen-Milão, a possibilidade de

resolver os enigmas do platonismo, em especial, as relações entre corpo-alma.

Para Reale (2004: 176) a concepção de phýsis platônica se dividia e se

escalonava em ordem crescente, da seguinte maneira:

Plano do mundo físico

Plano dos entes

matemáticos

Objetos da musicologia

Objetos da astronomia pura

Objetos da Estereometria

Objetos da geometria plana

Objetos da matemática.

Plano das Idéias

Idéias gerais

Idéias particulares

Idéias generalíssimas ou Meta-Idéias

Números e Figuras Ideais

Plano dos Princípios

“Uno” e “Dualidade indeterminada”

Dadas as explicações acima, retorno à questão em pauta em nossa

investigação, qual seja, qual era a concepção que Platão tinha da phýsis e em

que medida os estudos de Reale trazem um diferencial ao problema assinalado

pela tradição filosófica, qual seja, o dualismo platônico entre sensível e

inteligível devido as Idéias serem consideradas como existentes fora do tempo-

espaço, gerando os mencionados entraves filosóficos citados anteriormente.

A despeito da discussão sobre a validade, permanência ou adaptação

do antigo paradigma interpretativo (schleiermachiano) ao novo, defendido pelas

7 Conforme Isidro Pereira (1990: 74): dificuldade para passar; falta, privação; [...] dificuldade, apuro.

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Escolas de Tübingen-Milão, decidi adotar o último devido às inumeráveis

vantagens interpretativas que viabiliza.

Segundo Reale (2004: 120), a teoria das Idéias é um dos sustentáculos

da visão de mundo platônica. No entanto afirma (Ibidem):

a teoria das Idéias corresponde à primeira etapa da “segunda navagação”, [contida no Fédon], enquanto a teoria dos Princípios constitui a etapa final e definitiva. As Idéias são alcançadas mediante os postulados que Platão introduz para superar a posição dos físicos; todavia, não se pode fazer uma defesa adequada da teoria das Idéias permanecendo no âmbito da própria teoria das Idéias (ou seja, examinando apenas as conseqüências que dela derivam). É necessário subir a postulados mais elevados, até alcançar o postulado adequado (que é, justamente, o postulado dos “Princípios primeiros e supremos”).

A necessidade à qual Reale se refere ele justifica (Ibidem) afirmando

que os Princípios redimensionam a interpretação e solucionam as aporias

mencionadas anteriormente. Nessa medida, o que seriam as Idéias para as

Escolas de Tübingen-Milão?

São elementos constitutivos da phýsis platônica com características de

inteligibilidade, incorporeidade (Idem: 123), o que as contrapõe

necessariamente ao sensível. Até este ponto, a tradição filosófica e o novo

paradigma concordam relativamente ao que significam as Idéias. Elas são,

segundo Platão apud Reale (Idem: 126): o verdadeiro ser, ser em si, ser estável

e eterno, ser que se põe num plano totalmente diferente do sensível. (Negrito do

autor).

É interessante observar que Reale (Idem: 128) assinala, no que se

refere à distinção dos dois níveis de existência feita por Platão, que as Idéias e,

consequentemente, o inteligível como um todo, é supra-físico. O que significa

isso? Segundo Ferreira (1975: 1350; 1348), supra é um prefixo latino, sinônimo

de outro prefixo da mesma língua, chamado super, que por sua vez significa:

excesso, aumento, posição acima, em cima ou por cima. Logo, supra-físico

corresponderia à noção de algo que está acima do físico ou numa posição

acima. O que não necessariamente supõe uma não comunicação entre os dois

níveis de existência. O problema da tradição é compreender como tal interação

ocorre, de modo que as Idéias, com suas características sejam próprias,

capazes de ser os arquétipos dos múltiplos existentes na dimensão física.

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Outra característica das Idéias é que elas são imutáveis em si e por si

isto é, são imutáveis e unas, não existem mais de uma e apenas uma Idéia

para cada espécie existente no sensível. Reale (2004: 130) afirma que devido a

essa classificação feita por Platão, a tradição filosófica a contar de Aristóteles

tendeu a tomar a Idéia em sentido hipostático, como se ela revelasse claramente

que a Idéia não é mais que a ontologização do conceito ou a entificação do

abstrato, ou seja, a hipostatização do universal. (Grifo do autor). Com isso,

Reale (Idem: 133) complementa que a imutabilidade das Idéias é a

característica que garante a estabilidade das Idéias como arquétipos da

dimensão física, pois:

o que muda não pode, ela mesma, mudar, caso contrário não seria a “verdadeira causa”, ou seja, não seria a razão última. (Grifo do autor)

As Idéias guardam outra particularidade que Reale (Idem: 136)

apresenta, qual seja, a unidade, e nos informa como segue:

Cada Idéia é uma “unidade” e, como tal, explica as coisas sensíveis que dela participam, constituindo desse modo uma multiplicidade uni-ficada. E, justamente por isso, o verdadeiro conhecimento consiste em saber uni-ficar a multiplicidade numa visão sinótica, que reúna a multiplicidade sensível na unidade da Idéia da qual depende. (Grifo do autor)

Em outras palavras, essa característica das Idéias é a que proporciona

a possibilidade de sintetização do múltiplo através da Idéia e assim encerra a

exposição sobre elas.

Sobre o dualismo da realidade platônica Reale (Idem: 139) afirma que

os pesquisadores em geral, fundados nas críticas de Aristóteles insistem

fortemente nesse “dualismo”, sustentando que a “separação” das Idéias das realidades

sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a sua função de “causas” e

assinala (Idem: 139-140) que em realidade:

as Idéias tem tanto de “imanência” quanto de “transcendência”; fato que muito frequentemente é descuidado ou silenciado. Para Platão, a transcendência das Idéias é justamente a razão de ser (ou seja, o fundamento) da sua imanência. As Idéias não poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não transcendessem o próprio sensível; e, justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento da sua estrutura ontológica imanente. [...] a transcendência

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das Idéias é, justamente, o que qualifica a função que elas cumprem de “causa verdadeira”. Confundir esses dois aspectos, ou nivelá-los de algum modo sobre o mesmo plano, significa esquecer inteiramente a “segunda navegação” e os seus resultados. (Grifo do autor)

Nesse sentido, observa-se a primeira distinção entre a tradição

filosófica e a do novo paradigma interpretativo, qual seja, não há oposição

radical e total incompatibilidade entre o estatuto imanente-transcendente das

Idéias em Platão, pois para que elas sejam o fundamento e causa do sensível,

necessário se faz que as Idéias tenham uma característica simultaneamente

dual como demonstrou Reale (Idem: 143):

Platão manteve uma firme e constante convicção sobre a existência de dois diferentes planos do ser e sobre essa convicção centrou sua mensagem filosófica. Mas o erro de muitos intérpretes consiste justamente no seguinte: em ter confundido tal distinção de planos e a proclamação da diferença estrutural de sua natureza com a absurda e indevida “separação”, em certo sentido considerando que as Idéias fossem “supercoisas” fisicamente e não metafisicamente separadas das coisas, como se elas não fossem mais do que o sensível mistificado e, como tal, contraposto ao sensível. Platão, com as Idéias, descobriu o mundo do inteligível como a dimensão incorpórea e metaempírica do ser. E esse mundo inteligível incorpóreo transcende o sensível, não no sentido de uma absurda “separação”, e sim no sentido da causa metaempírica (ou seja, da “causa verdadeira”; e portanto a verdadeira razão de ser do sensível. Em conclusão, o dualismo de Platão não é senão o dualismo de quem admite a existência de uma causa supra-sensível como razão de ser do próprio sensível, convencido de que o sensível, por causa da sua autocontrariedade, não pode possuir uma razão de ser total de si mesmo. Portanto, o “dualismo” metafísico de Platão não tem absolutamente nada a ver com o ridículo dualismo que põe o sensível como subsistente e, depois, contrapõe essa subsistência ao próprio sensível. (Grifo do autor)

Para melhor compreensão do que Reale expõe acima, analisarei

brevemente o significado das palavras metafísico e metaempírico, dado a

relevância das indicações feitas.

A palavra grega meta, segundo Ferreira (1975: 923) significa: mudança,

posteridade, além, transcendência e reflexão crítica sobre. Para Isidro Pereira

(1990: 365), a palavra tem as seguintes acepções: no meio, entre; com idéia de

lugar, por detrás, a seguir; com a idéia de tempo, a seguir, detrás de outro, seguindo-a.

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Por físico, conceitua Ferreira (1975: 634): relativo à física; referente às leis

da Natureza; corpóreo, material, natural. Para Isidro Pereira (1990: 621):

concernente à natureza ou ao estudo da mesma; estudo da natureza; natural;

proporcionado pela natureza, conforme a natureza. Para Japiassu & Marcondes

(1993: 104):

designa a realidade material, concreta, objeto de nossos sentidos, em contraste com a realidade psíquica, subjetiva, interior, bem como a realidade espiritual ou abstrata.

Para Japiassu & Marcondes (Idem: 165) metafísica(o) significa:

Na tradição clássica e escolástica é a parte mais central da filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A metafísica define-se como filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas determinações particulares; incluindo ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser Supremo.

Ora, no que se refere ao termo metafísica(o) percebe-se três posições

claras a saber, 1) a do uso cotidiano representada pela conceituação de

Ferreira; 2) a grega, representada pela conceituação de Isidro Pereira e 3) a

técnico-contemporânea de Japiassu & Marcondes.

Uma vez que o termo metafísica(o) foi cunhado por Andrônico de

Rodes, em torno do ano 50 a. C. conforme indicam Japiassu & Marcondes

(Ibidem) para identificar o conjunto das obras de Aristóteles que se seguiam à

Física e, por conseguinte, um conceito criado posteriormente ao autor e

sobretudo, dado o caráter contemporâneo que o termo assumiu, preferirei

analisá-lo sob o aspecto da composição da palavra em grego, acreditando

assim atingir algum entendimento sobre ela. Logo, considerando o sentido de

meta como no meio, entre; com idéia de lugar, por detrás e físico, no sentido de

concernente à natureza; conforme a natureza. Compreendo assim, por metafísico,

aquilo que concerne à natureza ou por outra, aquilo que permeia (estar entre) a

natureza, baseando nas informações que Reale nos concedeu até o momento

em nossa pesquisa.

Por empiria, conforme Japiassu & Marcondes (1993: 79), conceituam:

Experiência sensível bruta, antes de toda e qualquer elaboração. Para Isidro Pereira

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(1990: 184): experiência, prática. Logo, por metaempírico compreendo aquilo que

permeia a experiência/ prática.

Baseado na compreensão dos conceitos estudados, já é possível

compreender que a posição de Reale (2004: 143) sobre o caráter dual,

metaempírico e metafísico das Idéias é verdadeiramente bombástica

comparada à tradição filosófica! Ela assinala a possibilidade de dissolução da

tradicional concepção filosófica ratificada ao longo da História do Pensamento

Ocidental, a respeito do “dualismo” criado por Platão e denunciado por seu

discípulo Aristóteles.

Fundado na pertinência das observações feitas, para efeito de

realização desta pesquisa, assumi a compreensão da phýsis platônica sob o

prisma das Escolas de Tübingen-Milão. Assim procedo, uma vez que pela

adoção do novo paradigma inauguram-se novas possibilidades interpretativas

quanto aos problemas oriundas da relação mente-corpo, assinalados por Rorty

e Teixeira nas páginas 34 da dissertação.

A tradição filosófica assinala que através da dialética, de Idéia em Idéia

a alma ascende até chegar à Idéia de Bem, representada pela simbologia do

mito da caverna, na República (PLATÃO, s/ d: 267-272) e segundo Pessanha

(1996: 50). A Idéia de Bem como a superessência ordenadora do Cosmos,

para Reale (2004: 145) não é suficiente para solucionar a questão da

multiplicidade, pois Platão assinala a existência de conexão e de exclusão que

implicam a existência de nexos estruturais entre as Idéias. Por conseguinte, umas

Idéias se excluem e outras têm como condicionantes de sua existência outras

Idéias. Com isso, para Reale (Idem: 146):

Essas relações de exclusão não se limitam aos

contrários em si (como por exemplo par e ímpar), mas se estendem a tudo o que é conexo a cada contrário com relação ao outro, e vice-versa (o três é contrário ao par e ao que é conexo com o par, e vice-versa): e isso vale tanto para as Idéias tanto para as coisas que dela participam.

De acordo com esse raciocínio, Reale (Idem: 149-150) informa que

Platão percebeu a existência de duplas de Idéias coligadas como gênero e espécie.

Nessa medida, a dialética teria dois modos de ação, a saber, a generalização

para que se atinja o que Reale (Idem: 151) chama de visão sinótica da Idéia em

questão e na distinção e divisão, no encalço das articulações rumo à Idéia

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geral, demonstrando a existência de uma hierarquização das Idéias das mais

específicas às mais gerais.

Nesse sentido, Reale demonstra a existência de um problema na

concepção tradicional da teoria das Idéias que se caracteriza justamente na

explicação da relação necessária entre o uno e os muitos. Para introdução da

solução proposta pelo novo paradigma interpretativo, Reale (Idem: 157) sugere

que se parta da compreensão do que ele chama ser o modo de pensar dos

gregos. Para o autor, esse modo de pensar consiste na convicção segundo a qual

explicar significa unificar. (Grifo do autor) Isto é, Platão e seus

contemporâneos, bem como os filósofos anteriores a eles, buscavam a causa

última de explicação necessária da multiplicidade do mundo e, nesse sentido,

assim se expressa Reale (Ibidem):

tentavam explicar a multiplicidade dos fenômenos relativos ao cosmo justamente reduzindo-a à unidade de um princípio, ou de alguns princípios, unitariamente concebidos, e alcançava a expressão extrema (e, justamente por isso, muito instrutiva) nas doutrinas dos eleatas, que dissolviam a totalidade do ser, desembocando num verdadeiro monismo radical. (Grifo do autor)

Platão não fugiu ao espírito de sua época e a teoria das Idéias, mesmo

realizando certa redução do múltiplo, ainda guardava certa pluralidade, como

assinala Reale (Idem: 158):

Tenha-se presente que Platão admite Idéias não só para as coisas que chamamos realidades substancias (homens, animais, vegetais etc.), mas também para todas as qualidades e para todos os aspectos das coisas sinoticamente reagrupáveis (belo, grande, duplo, e assim por diante), de modo que o pluralismo do mundo das Idéias ( ou seja, o pluralismo das realidades inteligíveis) se mostra digno de bastante consideração, como já Aristóteles, em passagem citada, conceituava.(Grifo do autor)

Para Reale (Idem: 159), a teoria das Idéias não se constitui a instância

última da realidade:

O esquema de raciocínio que sustentava a

duplicidade de níveis de fundação metafísica é o seguinte. Como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera das Idéias, assim, analogicamente, a esfera da multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior esfera de realidade, da qual derivam as próprias Idéias,

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e esta é a esfera suprema e primeira em sentido absoluto. (Grifo do autor)

Ato contínuo, Reale informa que a mencionada esfera última seria a

dos Princípios Primeiros. A dúvida que resta a respeito deles é: por que Platão

admitiu dois Princípios e não um apenas?

Segundo Reale (2004: 162-164) nos informa:

A novidade de Platão, não no nível e ontologia das Idéias (dado que nesse plano ele explica ainda o múltiplo sensível com o outro múltiplo, o inteligível das Idéias), mas no nível de protologia, está, justamente, na tentativa de “justificação” radical última da multiplicidade em geral em função dos Princípios do Uno e da Díade indefinida, segundo um esquema metafísica bipolar.

Portanto, o problema do qual partimos resolve-se deste modo: a pluralidade, a diferença e a gradação dos entes nascem da ação do Uno, que determina o Princípio oposto da Díade, que é multiplicidade indeterminada. Os dois Princípios são, portanto, igualmente originários. O Uno não teria eficácia produtiva sem a Díade, embora seja hierarquicamente superior à Díade. (Grifo do autor)

Vale ressaltar que esses Princípios não seriam encarados como dois

exatamente, mas como uma espécie de síntese, uma vez que eles seriam

nulos isoladamente, conforme declara Reale (Idem: 165):

A ação do Uno sobre a Díade é uma espécie de de-limitação, de-terminação e de-finição do ilimitado, do indeterminado, do indefinido, ou, como parece que o próprio Platão já dizia, de igualização do desigual. Os entes que derivam da atividade do uno sobre a Díade são, portanto, uma espécie de síntese que se manifesta como unidade-na-multiplicidade, que é uma de-finição e de-terminação do indefinido e indeterminado. (Grifo do autor)

Logo, pelo que se depreende do exposto, a natureza platônica,

sinteticamente falando, seria dividida entre sensível e inteligível.

Analiticamente, no âmbito do inteligível, existiriam as Idéias e os Primeiros

Princípios. No entanto, Reale (Idem: 167-180), informa ainda, que haveria duas

outras dimensões naturais, a saber, Números Ideais e Números matemáticos

com a função específica de serem intermediárias às interações dos Princípios

para com as Idéias e destas para com o sensível.

Antes de tudo, Reale (Idem: 167; 168) esclarece que os chamados

Números ideais não são o que conhecemos como matemáticos, mas são o que

ele chama de metafísicos, isto é:

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Os números ideais são, portanto, as essências dos Números matemáticos e, enquanto tais, são “inoperáveis”, ou seja, não podem ser submetidos a operações aritméticas. Eles têm um status metafísico, deferente dos números matemáticos, justamente porque não representam simplesmente números, mas constituem a essência dos números. [...] Os Números ideais constituem, portanto, supremos modelos ideais. eles representam de forma originária, isto é, paradigmática, aquela estrutura sintética de unidade-na-multiplicidade que caracteriza todos os diferentes planos do real e todos os entes em todos os níveis. A essência do Número ideal consiste numa determinação e delimitação específica produzida pelo uno sobre a Díade, que é uma multiplicidade indeterminada e ilimitada de grande-e-pequeno.

Reale adverte que os Números ideais não se identificam totalmente

com as Idéias, mas possuem relações de estreita conexão. Para melhor

compreender as relações entre Números ideais e as Idéias, Reale (Idem: 170-

171) chama a atenção para um importante detalhe entre os gregos antigos:

Toeplitz demonstrou que para os gregos o número

é sempre pensado não tanto como número inteiro, ou seja, como uma espécie de grandeza compacta, mas como uma relação articulada de grandezas e de frações de grandezas, de logoi, de analoghoi. Se é assim, o logos grego mostra-se essencialmente ligado com a dimensão numérica e significa, portanto, fundamentalmente, “relação”. Consequentemente, para os gregos é totalmente natural traduzir as “relações” em “números”, e indicar com os números as relações, justamente por causa dessa conexão subsistente entre número e relação. Cada Idéia se situa numa posição precisa no mundo inteligível, de acordo com a sua maior ou menor universalidade e de acordo com a forma mais ou menos complexa das relações que estabelece com as outras Idéias (que estão acima ou abaixo dela). Essa trama de relações, portanto, pode ser reconstruída e determinada pela dialética, e, pelas razões explicadas, pode ser expressa “numericamente” (dado, justamente, que o número exprime uma relação).

Tal explicação torna inteligível as referências pitagóricas sobre a

identificação do princípio último constitutivo da natureza ser chamado de

número. Lembrando que Platão manteve contato com a Escola pitagórica na

Magna Grécia e que aquelas doutrinas muito influenciaram nosso filósofo,

vemos que Reale (Ibidem) completa a compreensão dessa dimensão da phýsis

platônica citando Gaiser:

A redução que das coisas concretas e perceptíveis pelos sentidos sobe até os números não é um processo de abstração, mas um adensamento do conteúdo de ser da

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realidade. As relações numéricas são o permanente imutável, e por essa razão são, para Platão, o verdadeiro ser que permanece em qualquer diferença ou mudança de qualquer coisa individual. Assim, na sinfonia dos primeiros números está originariamente contido todo o mundo.

Reale (2004: 173) explica a dimensão do que chama entes

matemáticos, que se localizariam entre os entes ideais e entes os sensíveis:

são imóveis e eternos, justamente como as Idéias (e os Números ideais), e, de outro lado, existem muitos da mesma espécie. Têm, portanto, ao mesmo tempo, um caráter fundamental das Idéias e um caráter que é típico das coisas sensíveis, e por isso são, justamente, “intermediários” inclusive entre as realidades inteligíveis e as realidades sensíveis, como veremos no Filebo e, sobretudo, no Timeu.

Com estas características duais, os entes matemáticos e os Números

ideais compõem assim, as dimensões intermediárias entre as instâncias

referenciais máximas da natureza platônica, quais sejam o sensível, as Idéias e

a dos Princípios primeiros.

Nos pré-platônicos a questão da explicação última da realidade física

ficou caracterizada por duas posições que Reale apresenta como a posição dos

unicistas, definida pela doutrina eleata da unicidade do ser e a posição

contrária, a dos pluralistas, fundada no pensamento de Empédocles,

Anaxágoras e Demócrito. Estes últimos assumiram o múltiplo como base última

da natureza. Para Reale (2004: 162-163) Platão inovou a questão não com a

teoria das Idéias, mas no nível protológico, com a tentativa de “justificação”

radical e última da multiplicidade em geral em função dos Princípios do

Uno e da Díade indefinida segundo um esquema metafísico bipolar (Grifo do

autor). Sendo assim, o ser da natureza foi compreendido por Platão como uma

metáfora bipolar com características duais, opostas por complementaridade.

Coloco em questão assim a existência do dualismo platônico, uma vez

que através do novo paradigma interpretativo a existência de um dualismo

radicalmente irreconciliável entre o sensível e o inteligível é posto como

improvável sob dois aspectos básicos, a saber: 1 – o cultural, pois o grego

comum contemporâneo de Platão apresenta uma percepção diferenciada da

nossa no que se refere à natureza e, quanto ao número, facilmente identificável

nos escritos pré-socráticos e em poetas como Homero, Hesíodo e nos trágicos.

Nesse enfoque ainda, acrescento que Platão inovou a concepção tradicional

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grega de phýsis por ter nomeado o que era compreendido por Hades ou Além

como mundo inteligível através da metáfora da segunda navegação

apresentada no Fédon, por meio da qual, em conjunção com a descrição do

mito de Er, na República, instituiu uma nova geografia da natureza. 2 – Nesse

outro aspecto, o que põe em suspenso a visão filosófica tradicional sobre o

dualismo em Platão, é aquele que desloca o centro de gravidade do

fundamento último da natureza, das Idéias para os Princípios primeiros,

dissolvendo as aporias geradas pela teoria das Idéias e alcançando o objetivo

visado à época, isto é, identificar a realidade última produtora e mantenedora da

natureza.

Uma vez que os Princípios Primeiros ordenam os graus da realidade

natural através da conseqüência de sua síntese (Uno e Díade), a questão do

dualismo entre sensível e inteligível transforma-se de algo antes antagônico e

irreconciliável, para uma visão sinótica complementar e interativa por oposição,

tal qual se vê em Reale (2004: 139-140):

as realidades empíricas são sensíveis, ao passo que

as Idéias são inteligíveis; as realidades físicas são mescladas com o não-ser, enquanto as Idéias são ser em sentido puro e total; as realidades são corpóreas, enquanto as Idéias são incorpóreas; as realidades sensíveis são corruptíveis, enquanto as Idéias são realidades estáveis e eternas; as coisas sensíveis são relativas, ao passo que as Idéias são absolutas; as coisas sensíveis são múltiplas, ao passo que as Idéias são unidade.

Com efeito, muitos estudiosos, repetindo ou desenvolvendo de várias maneiras as críticas movidas por Aristóteles [...], insistem fortemente nesse “dualismo”, sustentando que a “separação” das Idéias das realidades sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a sua função de “causas”.

Mas, na realidade, trata-se de puro preconceito teórico, a ser rigorosamente evitado, se se deseja compreender Platão.

Observe-se inicialmente que as Idéias têm tanto de “imanência” quanto de “transcendência”; fato que muito freqüentemente é descuidado ou silenciado. Para Platão, a transcendência das Idéias é justamente a razão de ser (ou seja, o fundamento) da sua imanência. As Idéias não poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não transcendessem o próprio sensível; e, justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento da sua estrutura ontológica imanente. Em resumo, a transcendência das Idéias é, justamente, o que qualifica a função que elas cumprem de “causa verdadeira”. Confundir esses dois aspectos, ou nivelá-los de algum modo sobre o mesmo plano, significa esquecer inteiramente a “segunda navegação” e os seus resultados. (Grifo do autor)

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O ato notável da abordagem realizada por Reale é a conjunção da

teoria dos Princípios Primeiros com as colocações feita por Platão no Timeu no

que se refere à identificação do Mesmo com o Uno e o Outro com a Díade. Tal

conjunção torna compreensível a afirmação de Platão no Fedro (s/ d: 174),

quanto à possibilidade de compreender a natureza da alma humana

conhecendo-se a natureza do universo, Princípios este muito difundido entre os

médicos da escola de medicina hipocrática.

Observa-se que a alma teria sido feita pelo Deus de maneira que tudo o

que é corporal tivesse a possibilidade de ser estendido para seu interior e,

desta maneira, a alma teria a capacidade de ajustar-se aos corpos, como

vemos no Timeu (PLATÃO, s/d: 90-91; 100-101):

Quando toda a construção da Alma foi realizada ao

agrado de seu autor, este logo estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do Corpo e o da Alma, harmonizou-os (p. 90)

A Alma é então formada da natureza do Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta destas três realidades, move-se por si só em círculo. (p. 91)

Disse essas palavras e, retornando à cratera na qual inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo, aí verteu os resíduos das primeiras substâncias e as misturou aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não havia mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado, dividiu num número de almas igual ao dos astros. (p. 100-102).

Estaríamos diante de uma menção de Platão à noção de eidolon

(ειδολον) grego? Eidolon(u) era uma palavra grega que significava fantasma,

simulacro/imagem, figura, retrato/imaginação e segundo vemos em Isidro

Pereira (1990: 167) e Vernant (1990: 116 na nota 38), de seu texto Mito e

Pensamento entre os Gregos. Os eidolai eram utilizados pela religião grega

para substituir, nos funerais, os cadáveres das pessoas que os parentes sabiam

estar mortas, mas que não foram encontradas ou de pessoas que haviam

desaparecido e, passado algum tempo, eram dadas como mortas. Algumas

famílias, em especial as esposas, inconsoladas, mandavam talhar em madeira

ou em pedra, em tamanho natural, um eidolon de seu cônjuge para através

dele, suprir sua ausência física no funeral e até mesmo em casa, conforme o

caso. Tal prática funerária e cultual se baseava na crença de que todo homem

possuía uma alma que, após a morte, apresentava-se no Hades com as

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mesmas características de quando viva e, no caso da ausência do cadáver, não

sendo possível sepultá-los, sua alma ficaria privada do culto dos ancestrais e,

carentes de descanso, não poderiam ter uma existência condigna com a sua

posição no mundo dos mortos.

Ficaria assim, a alma, presa entre os mundos dos vivos e dos mortos,

carente de alimento, vestuário, armas, presentes e preces pelo fato de estar

insepulta. Ora, dessa crença infere-se que havia certa similitude, se assim

podemos nos expressar, entre o corpo sensível (corpo tal qual o entendemos) e

o corpo inteligível8, ou eidolon (através do qual a alma se faria conhecer na

figura de sua pessoa), de tal modo que a alma manteria certas necessidades

típicas do vivente e atuaria na phýsis como um deus epictônio9 (επικτονιο -

subterrâneo), influindo nas decisões dos chefes de genos (famílias) nas polies

(cidade-estado), conforme atesta Coulanges (1998: 7-28) ser a crença comum

relacionada aos cultos da hestia (Lar, lareira doméstica) e dos mortos.

Com o objetivo de facilitar o entendimento através de uma

nomenclatura que expresse da melhor maneira possível o que compreendi dos

textos de Platão com base no novo paradigma interpretativo das Escolas de

Tübingen-Milão, doravante chamarei corpo inteligível ao eidolon, duplo,

enquanto a alma se encontra no Hades ou mundo inteligível; e corpo sensível,

àquele através do qual a alma encarnada se faz presente e perceptível aos

sentidos.

8 Esta inferência se sustenta não apenas com os argumentos antropológicos e historiográficos a respeito das crenças arcaicas e clássicas que Coulanges citado nesse parágrafo demonstram, mas também nos documentos historiográficos de Platão, isto é, no Timeu (s/ d: 85), República (s/ d: 406-415) e no Fédon, como um todo e na argumentação desenvolvida nas páginas 31-38 dessa dissertação, nas quais sugiro que o leitor se remeta para compreender o tema da representação da corporeidade inteligível da alma em Platão com base na tradição religiosa helênica. 9 Deus subterrâneo. O morto, ao ser sepultado na Grécia, por seus familiares, era venerado por eles, através do culto doméstico, religião primordial entre os povos hindo-europeus, ramo ao qual os helenos estavam ligados ancestralmente. Tal culto recebeu representação com o ingresso da deusa Hestia (lareira doméstica), no panteão olímpico quando os Micênicos ascenderam. O Lar se localizava no centro das casas e inicialmente os mortos eram enterrados embaixo dela. Posteriormente, o túmulo foi localizado no exterior da casa. Era responsabilidade das mulheres a manutenção do fogo do Lar que simbolizava a vitalidade existencial do genos. O sacerdote deste culto era o patriarca da família que oficiava livremente estabelecendo seus mistérios, cânticos e dias sacros. O Lar era considerado o “umbigo” de vinculação do homem à terra e simultaneamente, o portal dimensional através do qual os ancestrais e os vivos mantinham amplo e profundo contato. Nada de era decidido sem consulta prévia ao Lar, desde a ignação de um novo membro do genos (filho ou escravo), mulheres, por casamento, até as decisões econômico-militares. Este costume foi generalizado com a revolução do século VII a.C. com a criação das polis, onde existia a hestia koiné o Lar comum a todos os cidadãos na Acrópole e passou a Roma até a inserção gradual do cristianismo.

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Vale recordar que por corpóreo os antigos entendiam tudo o que era

compreendido e restrito em limites específicos, rígidos, como atesta Reale

(2004: 126):

é bom recordar o seguinte. “Corpo” (σωµα), em

grego, originariamente (por exemplo, em Homero) significava “cadáver”. Sucessivamente, a área semântica do termo incluiu o corpo inanimado em geral. Enfim, a área semântica do termo incluiu também objetos inanimados, os quais tem em comum com o corpo duas propriedades: a perceptibilidade (a visibilidade), por um lado, e o ser encerrado em limites determinados mais ou menos rígidos, por outro. É justamente a esta acepção do termo “corpo” que se liga a acepção mais madura do termo “incorpóreo” no âmbito do pensamento pré-socrático: “incorpóreo” significa o que não é palpável, nem visível, o que é privado de materialidade, de limitações e de confins, portanto, in-finito.

Platão inova radicalmente esse significado: o incorpóreo, para ele, transcende não só as características dos corpos físicos, mas a própria fonte material dos corpos físicos; transcende o próprio uno-todo-infinito em sentido melissiano e vem a coincidir com a causa não-física das coisas físicas. O incorpóreo torna-se uma forma inteligível e, portanto, ser de-terminado que age como causa de-terminante, ou seja, a causa verdadeira do real. (Grifos do autor)

Nessa medida, a corporeidade inteligível da alma humana será

compreendida através da analogia do corpo inteligível para com o corpo

sensível, sendo em realidade, para Platão, o primeiro a razão de ser do

segundo. Além disso, considerando que na constituição íntima substancial e de

propriedades da alma humana, a terceira substância, resultante do produto do

Mesmo e do Outro tem a capacidade de intercomunicação (interação)

simultânea, entre tudo o que é inteligível e sensível; o que, em decorrência das

propriedades oriundas da porção do Outro sob o influxo catalisador do Mesmo,

a terceira substância seria aquela que proporcionaria a vinculação da alma ao

estado de relativa corporeidade por encerrá-la, mesmo que em menor escala, a

certa limitação fixa em contornos mais ou menos fixos.

Por conseguinte, enquanto no Hades, a alma humana é reconhecida

com as características que lhe foram próprias em sua última existência

encarnada, através das delimitações estabelecidas por seu corpo inteligível de

maneira a caracterizá-la como a alma de Aquiles, ou de Heitor, por exemplo,

capaz de serem reconhecidas por outras almas que de suas companhias

privaram no mundo dos vivos.

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Uma vez que a ação racional da alma teria início por ocasião de sua

vinculação ao corpo, conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/d: 91; 105; 149):

e, pelo efeito de todas essas afeições, a alma,

quando de seu nascimento, quando acaba de ser encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente irracional. (p. 105)

Estes [os filhos do Deus], imitando seu autor, e tendo recebido dele o princípio imortal da alma, envolveram esse princípio com o corpo mortal que o acompanha; deram-lhe por veículo todo o corpo. Depois, conformaram nele uma outra espécie de alma, a espécie mortal. Esta comporta em si as paixões temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este poderoso atrativo para o mal, depois as dores. Causa de que abandonemos o bem, e depois ainda o medo e a pusilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar. Misturaram tudo isso à sensação irracional e ao amor pronto a tudo arriscar. E destarte compuseram pelos procedimentos necessários a alma mortal. Mas receando ainda macular o princípio divino, e na medida em que esta mácula não era absolutamente inevitável, separaram da alma imortal o princípio mortal e o alojaram numa outra parte do corpo. Para tanto, dispuseram um como que istmo ou limite entre a cabeça e o peito e colocaram entre eles o pescoço, a fim de separá-los. É no tronco, onde se chamou tórax, que instalaram a espécie mortal da alma. E como desta alma uma porção era por natureza melhor e a outra pior, dividiram ainda em dois alojamentos a cavidade do tórax; separaram-no como se separa o apartamento das mulheres e o dos homens e dispuseram entre eles o diafragma como repartição. A alma que participa da coragem e do ardor guerreiro, aquela que deseja a vitória, alojaram mais perto da cabeça, entre o diafragma e o pescoço. Isto, para que pudesse escutar a razão e, de acordo com ela, conter pela força a raça dos desejos quando esta último, rebelde às ordens e às prescrições que a razão lhe envia do alto da cidadela, recusa submeter-se de bom grado. (p. 149)

E na medida que entra em contato com um objeto que possua uma substância divisível ou com um objeto cuja substância seja indivisível, ela proclama, movendo-se por todo o seu ser próprio, a cuja substância ele é idêntico e da qual ele difere. Mas difere, e relativamente a que, sob que relação, de que maneira e em que circunstâncias ele se remete às coisas que devem ter em suas relações mútuas uma outra dessas determinações ou modalidades, bem como suas relações com as coisas que se conservam sempre idênticas. Ora, quando um raciocínio veraz e imutável, relativo à natureza do Mesmo ou à do Outro, é acusado, sem ruído nem eco, dentro daquele que se move a si mesmo, esse raciocínio pode ser formulado em relação às coisas sensíveis. (p. 91)

Dado o acima exposto, constata-se que a alma não foi criada com a

ação racional, ao contrário, esta é atribuída à alma apenas após sua vinculação

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a um corpo mortal. A partir deste momento, Platão informa que os deuses

realizam a mencionada ligação da alma a um corpo e nele conformam um outro

tipo de alma mortal. A alma mortal contém o princípio das sensações e da

chamada alma imortal, separaram a mortal e as localizaram em partes

diferentes do corpo sensível, quais sejam: na cabeça, instalaram a alma imortal

e no tórax, a mortal. Na alma mortal os deuses realizaram nova partição e a

localizaram no diafragma. Que nomes específicos dá Platão a essas três

almas?

A que Platão chama de alma imortal, por sua localização na cabeça,

chama de alma racional (noûs). A alma que ele chama de mortal e que foi

dividida em duas seções, o filósofo chama de impetuosa (thýmos) a que ficou

localizada no tórax e de apetitiva (pneyma), a que foi posta no diafragma. Pelo

que se depreende dos textos, em especial no Timeu, Fedro, Fédon e na

República, essa configuração trino-anímica existe apenas enquanto a alma se

encontra encarnada. Após a morte do corpo sensível, no inteligível, apenas o

noûs acompanha a alma até a necessidade de nova existência sensível. A

alma mortal, pelo que se constata, é dispersa com a morte.

Como visto anteriormente, a alma humana seria feita com as sobras de

substâncias da formação da chamada Alma do Mundo e manteria certa

semelhança a esta, porém, por falta da substância do Mesmo seria constituída

então, pelo Outro e o misto do Mesmo com o Outro; logo, seria feita por duas

substâncias ou princípios substanciais. Sendo feita estruturalmente desta

maneira, seria necessariamente um misto substancial, mas não um indivíduo

caracterizado por uma consciência, responsável por seus atos e que se

reconheceria como sujeito do conhecimento, ativa ou passivamente, como se

vê no Timeu (PLATÃO, s/ d: 80):

E por outra, que o intelecto só pode nascer unido à Alma. Em virtude dessas reflexões, após ter colocado o Intelecto na Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para dele executar uma obra que essencialmente fosse a mais bela e melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado provável, deve-se dizer que o Cosmos, que é verdadeiramente um ser vivo provido de Alma e Intelecto, é assim gerado pela ação da Providência de um Deus.

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Tal condição (ou algo dessa condição, considerando-se que os gregos

não disponham de percepção de sua individualidade e subjetividade10),

ocorreria somente a partir do momento em que o intelecto, compreendido como

o princípio de ordenação do cosmos e, por extensão, a faculdade do pensamento

humano, enquanto esta reflete a ordem cósmica, conforme conceituam Japiassu &

Marcondes (1993: 134) em relação à concepção clássica grega do termo, é

submetida ao exercício e esforço da contemplação no mundo inteligível,

objetivando o aperfeiçoamento de sua capacidade intelectiva e o acesso à

sabedoria para alcançar o que Platão chama de unidade racional dentre as

sensações, como se vê no Fedro (s/ d: 154):

(Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal; [...] A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções.

Pelo que Platão afirma, o intelecto foi colocado pelo Deus, na Alma do

Todo para que pudesse a Alma atingir o que o Deus objetivava. Ato contínuo,

projetando essa operação para a alma humana construída pelos deuses, o

intelecto aparece como um atributo concedido às almas para que se relacionem

inteligivelmente com os objetos de conhecimento sensíveis e inteligíveis

conforme o caso. Em outra passagem do Timeu vemos a confirmação de que

apenas a alma é capaz de possuir um intelecto e de exercer suas

potencialidades, uma vez que Platão (s/ d: 109) indica que os elementos físicos

fogo, água, terra e ar, por sua natureza constituída pelo Outro não são capazes

de possuí-la, como vemos a seguir:

[...] Pois de todos os seres o único ao qual cabe possuir a inteligência é a alma, deve-se-o proclamar, e é invisível, ao passo que o fogo e a água e a terra e o ar, todos os corpos, são naturezas visíveis.

10 Para aprofundamento sobre a questão da subjetividade e concepção de indivíduo na Grécia Arcaica e Clássica remeto o leitor a Mondolfo (1970: 10-120).

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Seria uma referência de Platão de algo semelhante a uma descrição

minuciosa de uma substância (a alma humana) que em dado momento de sua

criação recebe o intelecto como instrumento de ordenação do cosmo com a

faculdade de pensar nele acoplado? Se assim é em Platão, estaríamos diante

de algo como uma substância pensante, como mais tarde enunciaria

Descartes?

Considerando o que Platão sugere no Timeu (s/ d: 105): [...] e, pelo

efeito de todas essas afeições, a alma, quando de seu nascimento, quando acaba de

ser encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente irracional. Percebe-se

que a presença do intelecto, em sua função ordenadora do Cosmos, na alma,

não é garantia da existência e do uso da racionalidade. Ora, pelo que se

depreende do que Platão diz em outro passo do Timeu (s/ d: 181), verificando-

se à alma racional e localizando-a no corpo, a razão tal como o intelecto,

parece ser um dos atributos da alma, conforme se vê abaixo:

[...] A respeito da espécie de alma que é a principal em nós [noûs], deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos fez presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual dissemos que habita a parte mais elevada de nosso corpo. Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma nos eleva acima da terra, em razão de sua afinidade com o céu. [...]

O que se confirma, a meu ver, por outra referência de Platão, feita na

República (s/ d:169), na qual o autor diferencia o que chama de princípio

racional do princípio desejante, isto é, o noûs do binário thýmos-pneyma,

conforme se vê abaixo:

(A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra, chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos.

Em outra obra, o Sofista, Platão (s/ d: 140) especifica a distinção entre os

princípios racional e apetitivo assinalando seus objetos próprios de atuação,

conforme segue:

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(Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por meio da sensação, que estamos em relação com o devenir; mas pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devenir varia a cada instante.

Assinala Platão que o pensamento, outro elemento atribuído à alma

humana, é como que uma espécie de intermediário entre o intelecto e as

informações fornecidas pelo inteligível e/ou sensível. No entanto, no Mênon

(PLATÃO, s/ d: 63), o autor informa que a razão exerce na alma o papel de juiz

e critério necessário para que a alma atinja a felicidade, tendo como delimitador

ao seu não uso a infelicidade conseqüente de se conduzir conforme a opinião,

como se vê nas palavras de Sócrates:

Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.

Não sei exatamente aferir se Platão em sua época e em seu modo

helênico de pensar e experienciar o mundo concebeu a possibilidade de inferir

a existência de algo como uma substância pensante que tinha o pensamento, a

inteligência (noûs, decorrente do intelecto nela implantado pelos deuses) e a

razão como instrumentos, verdadeiros atributos acoplados à alma humana em

sua substancialidade constitutiva, descrita no Timeu, contudo é fato que a

descrição platônica sugere algo do gênero.

Sem maiores desdobramentos histórico-antropológicos que nos fariam

dispersar da temática ensejada na dissertação, vale a pena recordar que a

Grécia Clássica é produto de uma série de transformações sociais, políticas e

culturais que tiveram seu início aproximado, em torno do século VIII a. C. com a

criação da polis (cidade-estado), a reintrodução da escrita através da

incorporação do alfabeto siríaco-fenício com todas as conseqüências que

decorrem das mudanças mentais e sociais oriundas da passagem de uma

tradição oral para a tradição escrita, com todas as implicações e adaptações

tecnológicas necessárias a tal transposição aproximadamente na virada do

século IV para o III a. C..

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O estudo dos efeitos da reintrodução da escrita na sociedade grega é

extenso e não cabe em nossa atual pesquisa, o que nos faz sugerir ao leitor

interessado, que consulte helenistas como Detienne (1998: 48-84; 85-119;

1988), Havelock (1996: 11-44; 87-118; 187-218; 233-272; 327-356), Vernant

(1998; 1990), Jaeger (1995: 190-229; 230-249; 335-440; 763-989) e Mondolfo

(1970: 10-120) e Reale (2004). Nesses se percebe que a linguagem racional,

compreendida como um modo específico de representar e estruturar o mundo

em detrimento do que era usual socialmente, e efetivamente presente até a

época de Platão, isto é, a linguagem oral de fundo mítico e caráter eficiente,

representada pelos poetas.

Da palavra-diálogo, um dos modos discursivos entre os helênicos no

período anterior ao da reintrodução da escrita entre os séculos IX a. C.

(HORTA, 1970: 49) e VIII a. C. (DETIENNE, 1998: 59-60), emergiu a noção de

logos como discurso caracterizado pela eficiência comunicativa e liberalidade

normativa antes de sua codificação por Aristóteles. Ora, o discurso racional

para Platão seria expressão da alma que teria seu fundamento justamente em

sua parte que comanda, governa, intelige e se alimenta.

A consciência seria gerada pelo uso da razão e dos demais atributos da

alma e, nesta medida, a consciência seria a verdadeira realidade insubstancial

da alma que através dos tempos, exercitada na contemplação das realidades

verdadeiras e do Ser Absoluto, desenvolveria a felicidade como fruto da

harmonia da parte divina que haveria na alma. É algo a ser refletido e

pesquisado em outro trabalho.

Declara Platão que a alma habitaria o Hades, enquanto desencarnada,

procedente do mundo dos vivos e, contrariamente, habitaria o mundo dos vivos,

procedente do Hades, como é informado no Fédon (PLATÃO, s/d: 60):

(Fédon) SÓCRATES: - Há, pois, acordo entre nós

ainda neste ponto: os vivos não provém menos dos mortos, que os mortos dos vivos, ora, assim sendo, haveria aí, parece, uma prova suficiente de que as almas dos mortos estão necessariamente em alguma parte, e que é de lá que voltam para a vida.

Vale lembrar que o número de almas para Platão seria limitado à razão

diretamente proporcional ao número de astros da phýsis, e, desta maneira, os

mundos dos mortos e dos vivos se auto-alimentariam, patenteando-se assim, o

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princípio da palingenesia como elemento essencial de retro-alimentação da vida

nos seus dois planos existenciais interagiriam e complementar-se-iam

equilibradamente.

É necessário atentarmos para o fato de que o Hades seria uma espécie

de duplo do mundo dos vivos (ou talvez, quem sabe o contrário?), e que as

ações, escolhas e omissões das almas encarnadas se refletiriam causalmente

no seu estado futuro, após a morte do corpo sensível. Desta maneira,

diferentemente da tradição homérica, que atribuía às almas uma inconsciência

de si e seu redor, as almas em Platão são diretamente responsáveis por seus

atos e necessariamente, por sua felicidade ou infelicidade futuras, como é visto

no Fédon (PLATÃO, s/d: 70):

(Fédon) SÓCRATES: - E é perfeitamente claro,

para cada um dos outros casos, que o destino das almas corresponderá às semelhanças com o seu comportamento na vida?

CEBES: - Bem claro; e como não haveria de ser assim?

SÓCRATES: - Os mais felizes [...] serão aqueles cujas as almas hão de ter um destino e lugar mais agradáveis, serão aqueles que sempre exerceram essa virtude social e cívica que nós chamamos de temperança e de justiça e às quais eles se formaram pela força do hábito e do exercício, sem o auxílio da Filosofia e da reflexão?

Temos que considerar o que Platão declara quanto ao que chama vício

da alma, que segundo ele, não seria voluntário, mas uma má disposição da

educação ou do corpo sensível como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d: 176):

Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de

dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é.

Para Platão, citando Ésquilo em A República, a alma assemelhar-se-ia

a um campo a ser semeado: [...] cultivando em sua mente o solo fecundo em que

germinam os prudentes desígnios. (PLATÃO, s/d: 57). Ora, se é um campo a ser

semeado, alguém arroteará a terra, adubará, lançará as sementes de alguma

maneira e zelará até a colheita. Conforme visto acima, as almas influenciariam

e seriam influenciadas umas pelas outras e nesta medida seriam,

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simultaneamente, terra e lavrador constantemente. Daí a necessidade do

máximo cuidado para com a formação educacional da alma, que à época de

Platão ainda era predominante e fundamentalmente baseada na oralidade, com

crescentes acessos à escrita, para que não ficasse abandonada a qualquer

preguiçoso que a corrompesse por maus exemplos e palavras.

Sendo a alma também comparada à polis por Platão, que era dividida

em três classes, quais sejam, os comerciantes, trabalhadores braçais e

artesãos, os guerreiros e os guardiões, a alma seria explicada como sendo

formada por três partes, quais sejam, aquela que aprende ou raciocina (noûs), a

que se encoleriza ou age por impulso (thýmos) e a apetitiva ou vegetativa

(pneyma) como se vê na República (PLATÃO. s/d: 162-163):

(A República) SÓCRATES: - Eis, ó varão admirável!

Que se nos depara neste momento um pequeno problema a cerca da natureza da alma: se ela possui em si esses três princípios ou não.

Não nos será forçoso reconhecer – comecei – que em cada um de nós existem os mesmos princípios e modos de ser que na cidade? Pois de onde lhe viriam eles senão de nós mesmos? Considera a índole colérica e arrebatada: seria ridículo pensar que nas cidades a que ela é atribuída, como as da Trácia, da Cítia e em geral das regiões setentrionais, essa qualidade não lhe venha dos indivíduos. E o mesmo se pode dizer do amor ao saber, que é característica especial de nossas regiões, e da avareza, que costuma ser assacada aos naturais da Fenícia e do Egito.

Tal qual a polis, essas partes da alma se responsabilizariam, enquanto

e somente enquanto encarnada, por áreas e funções correspondentes aos

corpos físico e inteligível, quais sejam: a racional, localizar-se-ia na cabeça

(Platão foi o primeiro a sugerir que o cérebro era a sede da alma racional indo

contra a tradição médica helênica não hipocrática, que a localizava no fígado).

Sua função seria a de gerir parcimoniosamente, sob o ideal de sophrosyné, as

demais partes da alma, manter a saúde dos corpos e do conjunto anímico

(pneyma e thýmos), nutrindo-as e exercitando-se como um todo; se chama

alma noética ou simplesmente noûs como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d:

181):

A respeito da espécie de alma que é a principal em

nós, deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos fez presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual dissemos que habita a parte mais elevada de nosso corpo. Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma

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nos eleva acima da terra, em razão de sua afinidade com o céu.

A seguinte seria a que se encoleriza ou tem características de

impetuosidade, impulsividade e que se localizaria no tórax, mais

especificamente, no coração. Sua função seria a de auxiliar o noûs a

administrar as duas outras partes, defendendo-a contra assaltos e distúrbios

internos. Equivaleria na cidade-estado à função do exército de cidadãos. Platão

a chama de thýmos. Ela não mostra características de auto-suficiência como o

noûs, em vista de ser propensa à hybris (desmedida), como vemos em A

República: SÓCRATES: - exprimindo-se assim, é evidente que ele pensa em duas

coisas distintas, uma a increpar a outra: o princípio que raciocina sobre o bem e o mal

contra o que se encoleriza sem raciocinar. (PLATÃO, s/d: 171).

A terceira parte da alma seria a apetitiva ou vegetativa, que se

localizaria no complexo sistêmico corporal sensível situado no baixo ventre,

como se vê na República e no Timeu respectivamente:

(A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito

admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra, chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos. (PLATÃO, s/d: 169)

A parte da alma que tem o apetite do comer e do beber, e de tudo o que o corpo tem necessidade natural, os deuses alojaram na região que se estende depois do diafragma, e que é limitada pelo umbigo. Em todo esse espaço organizaram uma como que manjedoura para a nutrição do corpo. E lá ligaram esta parte da alma, como uma besta que deve ser bem alimentada, para a preservação da espécie humana. É então a fim de que, saciando-se sempre perto de sua manjedoura, situada o mais longe possível da parte que delibera, e causando-lhe o mínimo possível de transtorno (PLATÃO, s/d: 151)

A função da pneyma seria a de produzir energia, substâncias e riquezas

às demais partes da alma. Corresponderia às classes produtivas que não se

dedicavam à guerra nem à gestão. A energia que produzisse seria importante

para a manutenção do corpo sensível e devido a isso, e à semelhança com o

conceito primitivo de pneyma (sopro vital, vento, espírito, alento), que envolveria

a noção de vitalidade, identificamo-lo com o do princípio apetitivo da alma. É

importante assinalar que alma apetitiva seria considerada por Platão como alma

mortal, isto é, a parte do complexo anímico que se dissolveria no ambiente após

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escapar, pelo ferimento do corpo sensível ou pelas narinas e boca, por ocasião

de morte natural, no Timeu (PLATÃO, s/d: 149):

Depois, conformaram nele uma outra espécie de

alma, a espécie mortal. Esta comporta em si as paixões temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este poderoso atrativo para o mal, depois as dores, causa de que abandonemos o bem, e depois ainda o medo e pulsilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar.

É uma informação capital na medida em que se apresentaria como elemento

semi-sensível e semi-inteligível simultaneamente, e elo possível entre o corpo

inteligível e o corpo sensível.

Platão não é o primeiro a se referir à existência da pneyma como sopro

vital na Antigüidade helênica. Outros pensadores pré-socráticos já a conheciam

e, conforme se percebe, em analisando os textos desses filósofos fisicistas em

Kirk, Raven e Schofield (1994: 73-98, 145-166, 198-221, 223-248, 293-338 e

339-368),quando se referem aos filósofos como Tales de Mileto, Anaxímenes

de Mileto, Heráclito de Éfeso, Pitágoras e Filolau de Crotona e Empédocles de

Agrigento, que já o mencionavam em suas teorias.

Além dessa estrutura trina, isto é, alma noética, impetuosa e apetitiva,

vê-se que em Platão, a alma apresentaria ainda variantes comportamentais

elementares à semelhança dos governos das cidades-estados helênicas. Tal

comportamento seria definido sobre a base psicológica estabelecida pela

procisão no céu da verdade, ao seguir a alma um dos deuses do panteão

olímpico: Que parece haver tantas formas de alma quantas são as formas distintas de

governo. (PLATÃO, s/d: 178)

Estas disposições comportamentais, a saber, monárquica, aristocrática,

oligárquica, democrática e tirânica seriam contingentes e francamente

dependentes de dois fatores essenciais: o primeiro, a vontade da alma em

aderir a eles ou não; o segundo, da formação recebida pelos pais e da

sociedade onde a alma encarnaria por meio da educação, como visto no Timeu

(PLATÃO, s/d: 176):

Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito

de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é.

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Estas características da alma seriam contingentes e como tais,

mutáveis. Porém, determinariam sua maneira de encarar a sua própria

natureza, sua posição humana na sociedade e o tipo de comércio que viria a

estabelecer com a sabedoria, riquezas e prazeres do corpo. Isto por causa da

influência profunda que a cultura exerceria na forma de ser e de se relacionar

com a sociedade e com a phýsis. Afinal, a Grécia Clássica não era uma massa

cultural uniforme, mas sim composta por etnias aparentadas, em diferentes

níveis de desenvolvimento cultural, embora aparentados pela língua.

Devido a sua natureza, a alma é objeto de prazeres que lhe são

próprios e que estão vinculados ao modo pelo qual a alma os utilizará,

enquanto encarnada, como se vê na República de Platão (s/ d: 229): Aquele

cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará

inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo

verdadeiro e não fingido.

Como último traço a assinalar sobre a alma, nos referimos ao que

Platão indica na República: [...] O que eu queria fazer notar era isto: que em todos

nós, ainda nos mais morigerados, existe uma espécie de desejo temível, selvagem e

contrário a toda a lei, é essa a que se manifesta nos sonhos. [...] (PLATÃO, s/d: 346).

Platão está se referindo à existência de desejos terríveis, selvagens e contrários

a toda lei e que eclodiriam, implodindo as formas da alma relacionar-se consigo

mesma e com as outras na sociedade políade.

É de conhecimento de todos, os trabalhos de Michel Foucault em sua

trilogia História de Sexualidade, a saber, no volume I, Vontade de Saber (1998),

no volume II, O Uso dos Prazeres (1998) e no volume III, O Cuidado de Si

(1985: 13-14), em especial, nesta última, o autor descreve como os antigos

lançavam mão da oniromancia (arte de interpretação dos sonhos), em seu dia-

a-dia, bem como a consulta à hestia, antes de tomarem decisões que

consideravam relevantes, confirmando Coulanges (1998: 7-28) em relação ao

culto dos ancestrais. Era uma prática muito comum e regulamentada através de

tratados e que contava com profissionais especializados nesta arte.

Neste sentido, observa-se que Platão não deixa de lado essa

importante prática social em suas observações sobre a alma e suas relações

sociais, uma vez que ela manteria contato com outras almas encarnadas. O

íntimo contato com seus ancestrais através da héstia e a resposta dos deuses

olímpicos ou epiktônios seria essencial para a manutenção e a prosperidade do

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genos (família). No entanto, tal prática, como atesta Foucault, não era exclusiva

dos chefes de família. Homens, mulheres, crianças, escravos e velhos,

sonhavam e, nesta medida, seriam também, porta-vozes possíveis dos deuses,

individual e coletivamente.

O fato é que Platão patenteia tal prática observando que em muitos

momentos ela também se apresenta como manifestadora dos desejos mais ou

menos harmoniosos de quem sonha. Em certo sentido, poderia expressar o

desequilíbrio desta alma, dando mostras de sedição íntima em sua estrutura

trina, isto é, alguma revolta da pneyma ou thýmos ou simplesmente o descaso

para com a função primordial do noûs, que parece ser a opção mais razoável.

Neste sentido, observa-se que os sonhos e sua interpretação são como uma

espécie de termômetro que possibilitaria aos antigos avaliar as condições da

alma no que tange não só à sua formação, como quanto aos cuidados que

dispensaria a si na busca de melhor manifestar as qualidades cívicas previstas

na polis.

3.2 ATRIBUTOS DA ALMA

O pensamento é o primeiro dos atributos da alma ao qual Platão se

refere da coletânea de textos que estudamos. Ele é apresentado como o meio

de comunhão entre a alma e o Ser verdadeiro:

(Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por meio da sensação, que estamos em relação com o devenir; mas pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devenir varia a cada instante. (PLATÃO, s/d: 140)

Através do discurso, a alma seria capaz de negar ou afirmar algo e,

desta maneira, exerceria o juízo que, através do pensamento, Platão chama de

opinião e esta, quando se apresenta por intermédio da sensação, ele chama de

imaginação, como vemos no Sofista (PLATÃO, s/d: 158):

(Sofista) ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso, que há, no discurso, o seguinte...

TEETETO: - O quê?

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ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação.

TEETETO: - Sim, sabemos.

ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma, em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para �olda��-lo além de opinião?

TEETETO: - Que outra palavra haveria?

ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito poderá ser corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra?

TEETETO: - Nenhuma outra.

ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos, discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado de espírito que designamos por imaginação, que é a combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes, falsas.

O pensamento é apresentado como diálogo da alma com ela mesma e,

desta maneira, observa-se o atributo da linguagem como canal de extensão e,

em certo sentido, de determinação do real através do juízo, do valor e de

realidade atribuídos aos seres pelas almas no processo do conhecimento em

sua relação com o mundo. É diálogo consigo na medida em que se dá através

do discurso interno e Platão assim o designa como pensamento por

apresentar-se como um dos fenômenos comunicacionais da linguagem na

alma. Neste sentido, a linguagem é, em certa medida, canal de extensão da

interioridade da alma, uma vez que pode vir a ser expresso verbal ou

graficamente e, nesta medida, garantir o contato intersubjetivo, bem como a

transmissão do conhecimento entre as almas.

Ainda segundo Platão, a imaginação seria a combinação da sensação

(corporal sensível) e da opinião que, segundo o autor, seria a conclusão do

pensamento. A opinião teria a característica de nem sempre ser verdadeira,

devido a seu ponto de contato com a sensação, visto que, segundo o autor, a

imaginação seria um misto de opinião e sensação na medida em que ele

considera este como conhecimento não confiável e passível de equívocos, ela

pode ser algumas vezes verdadeira e outras não.

Um dos principais atributos da alma percebido ao longo da pesquisa foi

o da liberdade. Não exatamente como compreendemos hoje, eivada de

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individualismo, mas como autonomia deliberativa sobre determinadas

questões. Vemos, por exemplo, a liberdade da alma de se deslocar na abóbada

celeste por ocasião da procisão de contemplação da verdade. Além de

poderem escolher o deus que seguirão, teriam a liberdade de se deixarem levar

ou não pelo turbilhão da procisão, de lutarem contra sua natureza de maneira a

contemplarem melhor as Idéias ou simplesmente de passarem, conforme a

necessidade, por tal evento. Poderia optar por buscar ou não os alimentos que

lhe conviriam, isto é, os saudáveis e, consequentemente, possuiriam a

possibilidade de desenvolverem ou não suas asas e com isso, seriam ou não

felizes, como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d: 153):

(Fedro) SÓCRTAES: - O mesmo se dá com todas as almas que procuram receber o alimento que lhe convém. Quando a alma, depois da evolução pela qual passa, chega a conhecer as essências, esse conhecimento das verdades puras a mergulha na maior das felicidades.[...]

A sorte das outras almas é, porém esta:

Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas, perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. [...] Outras há, porém, que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante.

O sentido desta imagem parece-me, seria de que a alma no Hades ou

no mundo inteligível, teria certa dinâmica existencial focada no conhecimento

(sua alimentação própria) e este, por sua vez, se daria de maneira imediata,

isto é, direta, sem intermediação dos sentidos corporais físicos, desde que ela

fosse capaz de gerenciar suas tendências interiores.

O problema é que tal qual mencionamos acima, a respeito da escolha

que elas viessem a fazer por este ou aquele deus que a guiaria nas chamadas

revoluções divinas, parece-me que a alma viria a se incorporar das qualidades

e defeitos inerentes ao deus que optasse como patrono; uma vez que cada um

deles seria responsável por determinadas situações e fenômenos naturais

humanos ou não e, em verdade, esta escolha poderia ter a ver com a

capacidade de apreensão e compreensão das verdades eternas (Idéias) e sua

aplicação enquanto encarnadas. No aproximarem-se de sua essência

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existencial, isto é, de sua parte divina com a qual se identificaria; fruto desta

identificação, ela se libertaria mais e mais da possibilidade de reencarnação por

ter robustecidas suas asas, isto é, sua capacidade intelectiva e a maneira pela

qual se utilizaria do fruto de suas intelecções na vida prática, isto é em seu dia-

a-dia no inteligível ou no sensível.

Outro atributo da alma seria o da memória que lhe permite recordar-se

das verdades eternas que contemplou antes da vida humana, bem como de sua

educação e sabedoria após a morte do corpo sensível. Vale ressaltar que numa

sociedade oral, em processo de reintrodução da escrita como a grega clássica,

a memória e suas técnicas mnemônicas eram de extrema valia. Mesmo após a

época de Platão, a oralidade era muito valorizada e isto porque havia uma

diferença fundamental entre a nossa forma de encarar a memória e suas

propriedades e a deles. Platão entendia que as coisas mais importantes e

sérias não deveriam ser postas por escrito, uma vez que não seria interessante

que pessoas desqualificadas tivessem acesso a informações privilegiadas.

Embora Platão houvesse escrito muitos diálogos e seus livros sejam os mais

completos que temos de seu período, a realidade é que ele confiava mais na

memória que na escrita, o que declara em vários pontos de sua obra.

A memória era encarada entre os gregos como uma divindade e

regente de um grupo de deusas chamadas Musai (Musas) e estas, por sua vez,

eram responsáveis, cada uma, por determinado aspecto do que chamaríamos

hoje de conhecimento e, através de sua evocação, os poetas manifestavam,

sob os auspícios de Mnemosyne (Memória), o conhecimento do passado,

nunca os do futuro. Desta maneira, a visão clássica de memória se distingue de

nossa atual visão funcional e cumulativa, pois se baseava primordialmente em

técnicas mnemônicas visando a evocação e experienciação grupal, por meio da

palavra-eficiente poética e dos poetas, os oficiantes das Musai. Era esta, assim,

a forma de preservação do passado e das experiências que os ancestrais

haviam preservado entre os helênicos.

Neste sentido, para Platão a memória aparece como um dos atributos

da alma. A ausência dela seria considerada como um mal anímico grave e

correspondente a colocar o homem em pé de igualdade com os animais, uma

vez que estes não teriam contato com as Idéias no mundo inteligível antes da

nascerem em nova existência, como se vê em Fedro (PLATÃO, s/d: 154-155):

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(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou

a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve ser segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas evoluções. [...]

Como já disse, a alma humana, dada a sua própria natureza, contemplou o Ser verdadeiro. De outro modo nunca poderia entrar num corpo humano. Mas estas lembranças desta contemplação não se acordam em todas as almas com a mesma facilidade.

A perfectibilidade seria outro atributo conexo à memória, pois seria

através do acúmulo de conhecimentos verdadeiros e de vivências sob o signo

da Justiça e do Bem, em uma vida o mais filosófica possível, que a alma se

desvincularia de suas imperfeições e identificar-se-ia com sua natureza divina.

No entanto, vemos o quanto esse atributo é conexo à liberdade, visto a alma

dispor de liberdade para reduzir o poder de sua vontade ante o objeto desejado.

Parece-me que a alma seria tragicamente livre em Platão e afirmo isso,

uma vez que ela seria livre para aderir ou não ao movimento necessário e

irrevogável das revoluções divinas, no céu da verdade e uma vez que ela

precisaria da alimentação junto às Idéias verdadeiras. No entanto, neste

movimento coercitivo por natureza, a alma poderia esforçar-se por contemplar o

máximo possível, seguindo o deus de sua escolha ou simplesmente deixar-se-

ia levar, o que quase sempre acabaria na necessidade de reencarnar, uma vez

que perderia as fracas asas que desenvolvera. Desta feita, parece-nos que a

alma em Platão teria a liberdade como atributo de adesão aos movimentos

contingentes da Necessidade que a conduziriam fatalmente ao progresso e a

acumular conhecimentos verdadeiros, por contemplação ou experienciação,

enquanto encarnada.

Como se viu acima, a alma teria o atributo da liberdade de escolha

sobre os alimentos que sorveria. Desta maneira, vemos que no e através do

discurso/linguagem, a alma poderia habilmente curar-se ou envenenar-se,

conforme atesta Platão no Fedro (PLATÃO, s/d: 174):

(Fedro) SÓCRATES: - Tens de levar isso em conta

se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outra

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infundir a convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos.

Num sentido oposto ao atribuído à memória, a alma possuiria outro

atributo que lhe afetaria por ocasião da reencarnação, qual seja, o

esquecimento, como se vê no Mênon (PLATÃO, s/d: 61):

(Mênon) SÓCRATES: - Portanto, se sempre e em

todos os tempos se encontra em sua alma a verdade das coisas, não se segue daí que a alma é imortal? Se assim é, caro Mênon, enche-te de coragem e procura sem receio, sem descanso o que atualmente não sabes, isto é, aquilo que perdemos a lembrança e esforcemo-nos para o descobrir e de nos lembrarmos novamente dessas coisas.

São aparentemente paradoxais esses atributos. Ora, se a virtude da

memória manteria viva a origem, o destino e o conhecimento que a alma

adquiriu no Hades ou na Terra, porque ao reencarnar precisa beber do rio do

esquecimento, como se observa no Mênon?

(Mênon) SÓCRATES: - A alma, é pois, imortal;

renasceu repetidas vezes na existência e contemplou todas as coisas existentes tanto na terra como no Hades e por isso não há nada que ela não conheça! Não é de espantar que ela seja capaz de evocar à memória a lembrança de objetos que viu anteriormente, e que se relacionam tanto com a virtude como com as outras coisas existentes. Toda a natureza, com efeito, é uma só, é um todo orgânico, e o espírito já viu todas as coisas; logo, nada impede que ao nos lembrarmos de uma coisa, o que nós, homens, chamamos de “saber”, todas as outras coisas acorram imediata e maquinalmente à nossa consciência. A nós compete unicamente nos esforçarmos e procurar sempre, sem descanso. Pois, sempre, toda investigação e ciência são apenas simples recordação. (PLATÃO, s/d: 55)

Platão não expõe explicitamente sobre este tema, porém é depreendido

no Fedro e A República. No primeiro, ele se refere à procisão divina e à

ocasião em que a alma encarnaria pela primeira vez por não conseguir

acompanhar o ritmo das revoluções. Resumidamente a alma não teria ainda

experiências como ser humano e, nesta medida, não carregaria máculas de

suas ações. Após a primeira encarnação e segundo suas escolhas de vida,

precisaria pagar no Hades os males que cometeu ou receber as recompensas

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por seus atos meritórios, na ilha dos bem-aventurados. Depois, poderia retornar

a uma nova existência através do fenômeno da metempsicose11.

Quando Platão, no Fedro, explica a procisão divina, menciona a lei de

Adrastéia, que diz que nenhuma alma que não houvesse contemplado as

Idéias poderia encarnar em corpo de homem. Em seguida afirma que após a

primeira vida humana, uma vez pago os débitos dos erros e recebido as

recompensas da vida justa, a alma poderia escolher renascer como homem ou

animal conforme seu desejo. Ora, se ela tivesse procedido a escolhas

equívocas que a levariam à intoxicação de seu eidolon ou produzido dano a

outrem que a fizesse envergonhar-se de seu passado, como encararia a si

mesma diante da reprovação da sociedade, uma vez que para eles (helênicos);

o indivíduo só tinha consciência de si através do olhar do outro? Se o homem

grego tinha noção de si mesmo através do conceito que gozava perante seus

iguais, como poderia se adaptar, uma vez que a sociedade sabia o que fez ou

deixou de fazer? E como esta o encararia se nesta alma identificasse alguém

que fora nocivo a algum membro ou ao grupo? Desta maneira, o esquecimento

provisório se faria necessário como atributo viabilizador da renovação da alma

na figura de outra personalidade e suas novas oportunidades existenciais,

acredito.

Outro atributo de fundamental importância para a alma seria a razão,

conforme se vê em Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me

parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à

felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário. (PLATÃO, s/d: 63)

Ela seria um atributo diretamente vinculado à alma e à sua disposição,

conforme a vontade. Aqui me refiro à razão como capacidade discursiva, isto é,

uma determinada linguagem através da qual a alma optaria por se expressar.

A inteligência, o noûs, seria outro dos atributos da alma, como é visto

no Timeu (PLATÃO, s/d: 109):

Ora, tudo isso faz parte das causas adjuvantes de

que Deus se serve como auxiliares para realizar na medida do possível a idéia ótima. No entanto, todos estimam não

11 Metempsicose é uma doutrina reencarnacionista indo-européia que acredita na possibilidade do retorno da alma humana em corpos animais para que estas paguem pelos erros cometidos em outras existências. Há variações entre as versões indiana, egípcia e grega, embora profundamente aparentadas. Além de Platão, outro representante grego desta concepção é Pitágoras de Samos e, ao que parece, era um conceito relativamente popular à época.

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serem causas acessórias, mas as principais de tudo. Sim, são elas que fazem os corpos resfriar-se ou se aquecer, contrair-se, dilatar-se e símiles coisas. Mas é impossível que tais coisas tenham em algo o pensar e a razão. Pois de todos os seres o único ao qual cabe possuir a inteligência é a alma, deve-se-o proclamar, e é invisível, ao passo que o fogo e a água e a terra e o ar, todos os corpos, são naturezas visíveis.

O noûs parece ser distinto da razão, pois como vimos anteriormente

quanto à alma em seus elementos constituintes, o noûs seria a parte que

deveria governar por ser capaz de expressar a razão como linguagem de

comunicação, isto é, como maneira de expressar-se sob determinadas regras,

com determinados objetivos e que hoje, graças a Aristóteles, temos esse

conhecimento normatizado através da Lógica Formal. Como modo de vida da

alma, em detrimento das duas outras partes referidas pelo autor, enquanto

encarnada, quais sejam, a impetuosa e a apetitiva e, após a morte, na ausência

da apetitiva, permaneceria a mesma hegemonia do noûs sobre o thýmos. Neste

sentido, pelo que depreendi dos textos durante a pesquisa, parece-me que a

razão, tanto quanto a inteligência, constituir-se-iam como atributos da alma, em

especial, o noûs, como modo de discurso, a partir do século VII a. C., com a

reintrodução tecnológica da escrita e a passagem gradual da palavra-gesto oral

à palavra-diálogo passível de ser grafada.

Após a encarnação, a alma se veria necessariamente agrilhoada ao

gênero de existência que escolheu, às circunstâncias necessárias deste gênero

de vida como se vê em A República (PLATÃO, s/d: 407-415) e tornar-se-ia

privada do direito de fuga à vida, sob pena de punições no Hades e de

acentuamento de suas dificuldades pessoais geradas pelo ato em si, como é

visto em Fédon (PLATÃO, s/d: 51):

(Fédon) SÓCRATES: - É provável também que isto

te pareça maravilhoso e que te espantes ao saber que, para todos os homens, há uma absoluta necessidade de viver, necessidade invariável mesmo para aqueles para os quais a morte seria preferível à vida.

SÓCRATES: - Poder-se-ia, com efeito [...], encontrar nisso, pelo menos considerado sob essa forma, qualquer coisa de irracional. Todavia não é assim, e, muito provavelmente, aí não falta razão. A esse respeito há, mesmo, uma fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie de prisão o lugar onde nós, os homens, vivemos, e é dever não libertar ninguém nem permitir que alguém seja levado dali.” Formula essa, sem dúvida, que me parece tão grandiosa quão pouco transparente! Mas não é menos exato, Cebes, que aí se encontra justamente

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expresso, creio, o seguinte: os deuses são aqueles sob cuja guarda estamos e nós, homens, somos uma parte da propriedade dos deuses.

Quanto ao pensamento, no entanto, ele é apresentado como um órgão

da percepção racional da alma, logo, aquele seria um outro atributo vinculado à

razão, como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-55):

(Fédon) SÓCRATES: - Não é, por conseguinte, no

ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?

SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos sedentos: a sabedoria.

Um dos mais interessantes atributos da alma seria a possibilidade dela

conhecer a verdade dos seres em si mesmos por meio de si. Vale ressaltar

neste particular que para Platão, durante a vida, o acesso ao conhecimento

verdadeiro seria impossível, o que se conseguiria apenas após a morte do

corpo sensível uma vez que ocorreria um contato direto com as Idéias.

É uma característica da alma que participa da procisão divina

mencionada no Fedro ter que encarnar e experenciar diversas vidas humanas e

animais, conforme sua vontade, para ter acesso ao conhecimento verdadeiro

dos seres. O problema de alcançar os conhecimentos verdadeiros em vida seria

devido à enorme influência do corpo sensível, com suas exigências, às quais

impediriam a alma de concentrar-se sobre qualquer objeto de estudo. No

entanto, o conhecimento verdadeiro estaria lá na interioridade da alma, à

espera de ser convenientemente explorada por alguém preparado para isso.

Um outro atributo que Platão assinala e que seria essencial na alma é

que ela teria a capacidade ordenadora e causal de todas as coisas. Em que

sentido se pode compreender essa posição de Platão e em que parte de sua

aparecem referências sobre esse atributo?

A obra de Platão que introduz esse tema é o Fédon (s/ d: 82-90) onde o

autor apresenta sua experiência de juventude a respeito das pesquisas

filosóficas que empreendeu a partir de alguns físicos pré-socráticos. No

decorrer da exposição de Sócrates, Platão (Idem: 82-83) comenta sua

aproximação às doutrinas do filósofo Anaxágoras, conforme segue:

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Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de

Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se é assim, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo o que foi feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar conhecer a causa e da origem e morte das coisas, deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a melhor maneira pela qual ela existe.

Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxágoras o explicador da causa, inteligível para mim, de tudo o que existe. [...] Nunca supus que depois dele haver dito que o Espírito os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa além dessa e que é a que serve a cada uma em particular assim como ao conjunto.

Ao longo da narrativa, Platão informa que com o decorrer de seus

estudos sobre o pensamento de Anaxágoras, decepcionou-se, pois como

informa no Fédon (s/ d: 83-84):

À medida que avançava e ia estudando mais e

mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água e em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, e os tendões contraem e distendem os membros, e os músculos circundam os ossos com as carnes e a pele a tudo envolve!

Dar nome de causas a tais coisas seria ridículo. [...] Ardentemente desejaria eu encontrar alguém que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi possível, porém, adquirir esse conhecimento então, pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias, estimado Cebes, que descrevesse a segunda excursão que realizei em busca dessa causalidade? [Grifo nosso].

Ora, o que Platão assinala aqui é que diante da possibilidade de ter

encontrado na doutrina do Espírito de Anaxágoras a causa ordenadora do

universo, Platão teve esperanças de conhecer e compreender as conexões

necessárias e últimas de todo o existente. Contudo, diante dos

desdobramentos de suas pesquisas, constatou-se que o caminho assinalado

por Anaxágoras não foi levado adiante e como causa última do real foram

apresentadas, à maneira dos pensadores pré-socráticos, os tradicionais

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elementos acima mencionados, como os causadores de tudo o mais. Nesta

medida, parece, tudo havia retornado ao ponto de partida.

Reale (2004: 116-156; 157-166) apresenta a referência de Platão sobre

a segunda excursão, que chama de segunda navegação, como a indicação do

caminho que levou o filósofo à descoberta do inteligível como a fonte geradora

e mantenedora da realidade sensível, tendo como instâncias paradigmáticas,

as Idéias e como fonte última de ordenação do Cosmos, os Princípios

Primeiros do Uno e da Díade Universais.

O mais importante para a compreensão do atributo ordenador e causal

da alma adotado por Platão com base em seus estudos de Anaxágoras é

analisar em que medida se deu a apropriação do conceito de Espírito

(Inteligência). Esta apropriação foi realizada por nosso autor para assegurar o

acesso da investigação sobre a causa última de tudo, passando do que Reale

chama primeira navegação correspondendo às pesquisas dos pré-platônicos; e

a segunda navegação, empreendida por Platão com as teorias das Idéias e dos

Princípios primeiros para que seja possível aquilatar em que sentido Platão

adota o termo Inteligência/ Espírito assinalado acima.

Qual o termo que Anaxágoras utilizou no texto que Platão teve acesso?

No fragmento 12, de Simplício na Phys. 164, 24 e 156, 13 apud Kirk, Raven e

Schofield (1994: 382-383) é possível apreciarmos o texto em português da

doutrina de Anaxágoras ao qual Platão se refere acima:

Todas as outras coisas tem uma porção de tudo,

mas o Espírito é infinito e autônomo, e não se mistura com o que quer que seja, mas existe sozinho, de per si. Pois, se não existisse de per si, mas se misturasse com qualquer coisa, teria um quinhão de todas as coisas, se com alguma se misturasse; porquanto em cada coisa há uma porção de tudo, conforme já antes afirmei; e as coisas, que com ele se misturaram, opor-lhe-iam um obstáculo, de tal forma que não teria poder sobre coisa alguma, do mesmo modo que agora tem, existindo de per si. É que o Espírito é a mais sutil e a mais pura de todas as coisas e possui um conhecimento total de tudo e o maior poder. É o Espírito que dirige o que tem vida, quer seja maior ou menor. Foi o Espírito que também teve poder sobre toda a revolução, de tal modo que foi ele que, no início, lhe deu o impulso. Primeiramente, começou a mover-se a partir de uma pequena área, mas agora move-se sobre uma mais vasta e sobre uma ainda mais vasta se há-de mover. E é o Espírito que tem conhecimento de todas as coisas que se misturam e se separam e divIdem. E tudo o que estava para ser – o que era e o que agora é e o que há –de ser – a tudo o Espírito pôs em ordem, bem como a esta revolução que agora executam os astros, o Sol e a Lua, o ar e o aither,

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que estão separados. E foi esta revolução a causa de se haverem separado. E o espesso do úmido. Mas muitas são as partes de muitas coisas, e nenhuma coisa se separa ou distingue de outra por completo, exceto o Espírito. O Espírito é todo igual, quer se trate das maiores ou das menores quantidades dele, ao passo que nenhuma outra coisa é igual a qualquer outra, mas cada simples corpo é e era mais claramente aquilo de que possuía maior quantidade.

Embora em todo o corpo do texto acima, o tradutor tenha se utilizado

do termo Espírito para designar Inteligência, no original, em grego, constam

três palavras para designar a mesma idéia, quais sejam: noûs, gnômen e

psychén. A primeira significa faculdade de pensar, inteligência; sabedoria, reflexão;

pensamento, [...] alma, coração [...]; a segunda, juízo, talento, inteligência; a terceira,

mais abrangente, significa sopro da vida, alento; alma; vida; ser vivo; pessoa; [...]

alma humana; entendimento, conhecimento, prudência, conforme se vê em Isidro

Pereira (1990: 391; 115; 628). Das três, a que aparece mais vezes é noûs e,

por conseguinte, adotarei a compreensão do conceito que indica: faculdade de

pensar, inteligência e pensamento; uma vez que mais se adequa ao uso que

Platão dá em seus textos, em especial, no que se refere ao que ele chama de

alma racional, quando a alma humana é ligada a um corpo mortal.

Ora, segundo Reale (2004: 106):

Anaxágoras tinha razão ao afirmar que a

Inteligência é causa de tudo, mas não conseguiu dar a tal afirmação um fundamento adequado e uma consistência necessária, porque o método de investigação dos naturalistas seguido por ele não o podia permitir.

Afirmar que a Inteligência ordena e causa todas as coisas significa que ela dispõe todas as coisas da melhor maneira possível. Isso significa que a “Inteligência” e o “Bem” são estruturalmente conexos, e que não se pode falar da primeira sem falar do segundo. Portanto, pôr a Inteligência como causa implica eo ipso pôr o melhor (o Bem) como condição da geração, da corrupção e do ser das coisas. Mas Platão se mostra ainda mais explícito nas suas alusões; de fato, ele explica que quem adota essa perspectiva deve conhecer; além do “perfeito” e do “ótimo”, também o “pior”, porque a ciência do Melhor e do Pior á a mesma. E isso vale, em geral, para todos os fenômenos. Trata-se de uma forte alusão à polaridade dos Princípios primeiros (Grifos do autor)

Com o exposto acima, percebe-se claramente que o noûs que Platão

(s/ d: 82-83) se remete para designar a alma racional está fortemente fundado

na concepção de Inteligência-Espírito de Anaxágoras e que são mantidas suas

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propriedades ordenadoras e causais, enquanto alma encarnada e

desencarnada:

(Fédon) SÓCRATES: - Ora, certo dia ouvi alguém

que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar conhecer a causa da origem e morte das coisas, deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a melhor maneira pela qual ela existe. E pareceu-me ainda que a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e mais perfeito, porque desde que ela tenha isso, ela necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência.

Outro importante atributo da alma seria sua capacidade de transmitir ao

corpo sensível as características de seu ser, isto é, os corpos seriam

instrumentos maleáveis e moldáveis conforme a educação recebida através das

virtudes anímicas, como se vê na República (PLATÃO, s/d: 118):

Também aqui é necessário que a educação comece

desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira. [...] não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível.

Fruto de suas opções nutritivas, a alma desabrocharia e germinaria em

si o saber que carrega latente. Este é um de seus mais poderosos atributos

visto poder não apenas �olda��ha-la à felicidade, mas �olda�-la do ciclo das

reencarnações e �olda-la passível de privar da companhia dos deuses.

Conforme é visto na República, Indubitavelmente o saber é uma faculdade, e a mais

poderosa de todas elas. (PLATÃO, s/d: 220).

A capacidade que poderia chamar de manipulação plástica do

pensamento que a alma possuiria, conforme nos informa Platão em A

República, seria outro atributo e com ele a alma seria capaz de �olda-lo mais

do que a cera e qualquer outro material: Exiges poderes extraordinários de artista –

disse ele. –, no entanto, como o pensamento é ainda mais moldável do que a cera e

outros materiais do mesmo gênero considera plasmada a imagem. (PLATÃO, s/d:

372) Essa capacidade permitiria à alma atuar por meio de sua vontade através

do pensamento que se apresentaria como uma espécie de torno sob a ação da

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vontade, ou simplesmente da linguagem em ação, que para o grego clássico

era altamente plástica, isto é, constituía-se como algo observável pelo noûs e

que guardava certa objetividade e concretitude.

3.3 MORFOLOGIA DA ALMA Platão apresenta a alma nas descrições que faz, tendo como base, a

forma humanóide. O povo grego da época de Platão representava e vivenciava

a experiência da presença de seus mortos em seu dia a dia através do culto

doméstico e do Lar (lareira doméstica ou hestia), conforme é demonstrado por

Burkert (1993: 269-380; 525-572), Coulanges (1998: 7-28), Vernant (1990: 151-

192).

Através dos trabalhos dos autores acima citados, facilmente

compreende-se a concepção e vivência sócio-religiosa do conceito de duplo ou

eidolon.

A forma humanóide, segundo Platão, seria uma das opções possíveis

para a alma em uma nova encarnação. O critério de escolha relacionar-se-ia

aos interesses momentâneos da alma por ocasião do cômputo geral de sua

existência. Contudo, caso escolhesse outra forma que não a humanóide, e

Platão mostra como opção apenas a forma animal, esta teria que arcar com as

limitações próprias à forma escolhida e ao seu gênero de vida próprio.

Como vimos anteriormente no Fedro, a respeito da alimentação de

Idéias verdadeiras, a alma precisa realizar, para desenvolver as asas da

sabedoria e da inteligência e, manter-se sem a necessidade de encarnação em

um corpo mortal. Contudo, caso reencarne, ao longo de sua vida, precisa viver

de tal maneira que seja possível afastar o máximo possível as interferências

das sensações corporais sensíveis por meio dos exercícios filosófico, ginástico

e musical, com o objetivo de dar continuidade à referida alimentação de Idéias.

Nos dois casos acima mencionados, a alma busca ajustar seu ritmo,

harmonizando-se em termos estético e funcional, isto é, em termos de

identificação para com a essência divina das Idéias verdadeiras, essência esta

que a alma participa por identidade de substância e de propriedades em sua

constituição íntima e funcional, pois na medida em que estabelece o equilíbrio

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de suas asas, contempla mais e mais Idéias e assim se furta aos ciclos

reencarnatórios.

A busca do referido equilíbrio de ritmo é uma necessidade tanto para a

alma encarnada como para a desencarnada, pois conforme a feição de

desequilíbrio que nela se instale, a dinâmica intelectiva das Idéias sofre

alterações. Nesse sentido, no caso do corpo sensível, a harmonização entre

noûs, thýmos e pneyma é essencial, do contrário, a alma é capaz de gerar

alguma patologia ou o que Platão chama de fealdade moral ou morfológica, o

mesmo processo se aplicando em sentido inverso, isto é, rumo à saúde e

beleza.

3.4 FUNÇÕES DA ALMA

Em termos de sociedade grega clássica, uma das funções mais

importantes das almas humanas era a de ser intermediária nas relações entre

homens e deuses, enquanto desencarnada, conforme se vê nas indicações

feitas por Coulanges (1998: 7-28) no seu livro A Cidade Antiga.

As almas dos familiares mortos atuariam junto aos parentes vivos

através da intermediação dos interesses do grupo junto aos olímpicos. O

contato dos parentes vivos e mortos se dava através dos ritos do culto

doméstico, através dos quais os vivos solicitavam constantes orientações aos

mortos quanto aos seus afazeres diários, quando necessário, unindo assim,

todas as estruturas da phýsis num todo orgânico, como Platão menciona no

Banquete (PLATÃO, s/ d: 108):

É o liame que une o Todo a si mesmo. Graças a ele

é que existe a divinização, e também a arte dos sacerdotes relativa aos sacrifícios, às consagrações, às fórmulas sagradas, a todas as profecias, encantações, à magia em geral. Toda a comunicação que se estabelece entre os deuses e os homens, estejam estes acordados ou dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios12.

No mundo sensível ou no mundo inteligível, a principal atividade da

alma, por natureza, é a de dirigir, deliberar e tudo o mais do gênero.

12 Conforme Isidro Teixeira (1990: 888), em grego, gênio é sinônimo de daímon já apresentado anteriormente.

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A percepção é tratada por Platão como vinculada à relação da alma

com o corpo, na medida em que unidos, o que ele chama de comunidade

corporal, em sendo afetada por algo (dor e/ou prazer), submeter-se-ia à alma,

como é visto na República (PLATÃO, s/d: 198):

E também a que mais se pareça a um só indivíduo?

Quando, por exemplo, um de nós fere o dedo, toda a comunidade corporal, atraída para a alma como um centro e formando um só reino debaixo de sua suserania, sofre simultaneamente e em sua totalidade ao sofrer uma de suas partes; e por isso dizemos que o homem sente dor no dedo. E a mesma expressão se emprega quando qualquer outra parte do corpo tem uma sensação de dor ao sofrer ou de prazer ao acabar-se o seu sofrimento.

Depreende-se que a função principal da alma seria imprimir movimento

ao que a ela se vincula, em especial, a seu corpo sensível, enquanto

encarnada. Por meio desta ação, a alma alteraria a phýsis a partir de seu

próprio corpo sensível. Observa-se assim que deliberar, dirigir e aperfeiçoar o

mundo a partir de si mesma, por meio de ações conscientes cada vez mais

racionais, leva-la-ia à identificação essencial de sua natureza ao Ser Absoluto.

Esta seria a principal função da alma enquanto geratriz ordenadora da phýsis.

3.5 FISIOLOGIA DA ALMA

A alma possuiria um sistema de alimentação similar ao do corpo

sensível. Porém, a alimentação da alma propriamente dita, conforme Platão

assinala, apresentar-se-ia de maneira diferenciada da que é utilizada pelo corpo

sensível, pois a alma não se nutriria de alimentos sensíveis.

A alma nutrir-se-ia do que é Belo, Sábio e Bom, enfim de Idéias

principalmente e não de gêneros sensíveis. E baseada em seu atributo de

liberdade, a alma poderia vir a intoxicar-se através da alimentação do que é

mau e feio e, principalmente, pela ignorância, como se vê no Fedro (PLATÃO,

s/d: 152):

(Fedro) Expliquemos agora de que modo as almas

perdem as asas. A força da asa consiste em conduzir o que é pesado

para as alturas onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom. Por meio destas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem,

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enquanto que todas as qualidades contrárias, como o que é feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer.

A alma disporia de intuição natural para identificar seu alimento e, para

tanto, se disporia a assumir determinadas características que chamo

psicológicas, isto é, por ocasião dos banquetes divinos, a alma escolheria um

deus para seguir-lhe ao longo da subida para o chamado céu da verdade onde

se encontrariam as Idéias que viriam a �ivulga�-la como apresentado no Fedro

(PLATÃO, s/d: 157):

(Fedro) SÓCRATES: - E assim sucede a respeito de

cada deus. Cada um adora o deus de quem foi companheiro. Imita-o como pode enquanto não pervertido, e enquanto aqui vive, depois do primeiro nascimento. Deste modo, todos imitam o seu deus nas relações amorosas e nas outras. Cada um escolhe o seu amor de acordo com o respectivo caráter e passam a �ivulga�a-lo como seu deus, elevam-lhe uma estátua no seu coração, enfeitam-no para �ivul-lo e celebram os seus mistérios.

Ela saberia intuitivamente que carece de determinado alimento e por

isso seria coagida pela necessidade a proceder a tais revoluções, mas

necessitaria ser orientada por uma das divindades olímpicas, responsáveis pela

condução das almas ao banquete das Idéias verdadeiras. Conforme mencionei

acima, a alimentação se daria no Hades/inteligível, por contemplação de Idéias

verdadeiras. Platão não explicita este processo, porém, pelo que se depreende

da pesquisa até o momento, a visão era considerada o sentido mais privilegiado

entre os gregos, de modo que toda a sua estrutura gnosiológica se fundava na

visão, ou melhor, na metáfora ocular no que se refere à alma, fosse de maneira

empírica ou na do noûs, o que sustentaria a postura de Platão em informar que

a nutrição da alma se daria através da contemplação.

Uma dieta especial permitiria o desenvolvimento da inteligência e da

sabedoria, o que a conduziria à felicidade. A alimentação saudável, isto é, a

contemplação das Idéias verdadeiras, garante o desenvolvimento da

inteligência (noûs), e segundo Platão, assegura a encarnação humana,

conforme declara ele no Fedro (PLATÃO, s/d: 154):

(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou

a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades

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Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções.

Não é apenas no Hades que a alma se alimenta adequadamente.

Enquanto encarnada, desde que tenha suficientemente contemplado as Idéias

no céu da verdade antes de encarnar e tenha bebido pouco da água do rio

Lethes (Esquecimento), a alma pode alimentar-se, enquanto em contato com o

corpo sensível. Tal alimentação seria muito difícil devido a alma ser afetada

pela concupiscência do corpo sensível por motivo de sua composição

essencial, que conteria afinidade com o que é Múltiplo e o misto

Múltiplo/Mesmo. Por isso, enquanto encarnada, as sensações que atingiriam o

corpo poderiam, em certa medida, contribuir para a sua alimentação ou

intoxicação conforme priorizasse a alma se conduzir racionalmente, como é

visto em Fedro (PLATÃO, s/d: 155-156):

(Fedro) SÓCRATES: - Quando contempla o seu

amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre: modificam-se-lhe os traços do rosto, o suor aparece em sua fronte e um calor não conhecido corre pelas suas veias. Logo que recebe, através dos olhos, a emanação da beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da alma. Esse calor funde o que impedia a expansão da vitalidade, aquilo que, sob a ação do endurecimento, impedia a germinação. O afluxo do alimento produz uma espécie de intumescência, um ímpeto de crescimento no caule das asas. Esse ímpeto vai se espalhar por toda a alma.

O processo de desenvolvimento das asas da alma geraria sofrimento,

no sentido de angústias como o desenvolvimento de dentes causa desconfortos

às crianças. O processo poderia estagnar ou regredir, conforme a vontade da

alma de se alimentar com Idéias verdadeiras, bem como por suas tendências,

enquanto encarnada, conforme nos informa Platão no Fedro (PLATÃO, s/d:

156):

(Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas

começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao receberem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas. Quando contempla a beleza de um belo objeto e daí provém corpúsculos que dele saem e se separam, de onde se deriva a vaga de desejo, a alma encontra então o alívio para as dores e a alegria. Mas, quando está separada do amado, fenece. E as aberturas pelas quais saem as asas, também murcham e, fechando-se, impedem a germinação da asa, que presa no interior

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juntamente com a vaga do desejo palpitando nas artérias, faz pressão em cada saída sem abrir caminho.

A vontade da alma poderia ser obnublada, isto é, despotencializada

deliberada e voluntariamente, desde que abdicasse ao pudor e à razão, isto é,

segundo seu livre arbítrio, a alma simplesmente poderia não querer contemplar

as Idéias verdadeiras, e, neste caso, pelo que descreve Platão, ela se deixaria

levar pela rotação da procisão e se alimentaria das idéias de fealdade e de

ignorância, o que a tornaria pesada por afinidade com o sensível e a precipitaria

numa nova encarnação, como se vê ainda no Fedro (PLATÃO, s/d: 159):

(Fedro) SÓCRATES: - Se a melhor parte da alma é,

pois, a vitoriosa e os conduz a uma vida bem ordenada e filosófica, eles passam o resto da existência felizes e em concórdia, governando-se honestamente, escravizando a parte da alma que é viciosa e libertando a outra que é virtuosa. E ao morrer recebem asas e ficam leves porque venceram um dos três combates verdadeiramente olímpicos, o maior bem que a sabedoria humana ou a loucura divina podem proporcionar a um homem. Mas se se dedicam a uma vida em comum sem filosofia, e contudo honesta, pode suceder que os dois corcéis rebeldes os dominem num momento de embriaguez ou de desordem, os corcéis indomáveis dos dois amantes, apoderando-se de suas almas pela surpresa, os conduzirão ao mesmo fim.

Enquanto encarnada, a alimentação se daria através de atos e

discursos que, habilmente aplicados, poderiam proporcionar à alma a felicidade.

Daí se infere a importância que os helênicos davam à questão da palavra e à

maneira pela qual tratavam a sua plasticidade captada pelo noûs, de forma que

o falante, em agindo, escrevendo ou discursando era capaz de atuar sobre seus

ouvintes e/ou observadores, de maneira a gerar neles toda uma série de

sensações-emoções-reflexões que contribuíam para a alimentação de suas

almas e, conseqüentemente, para a libertação dos ciclos da reencarnação. Ao

mesmo tempo, e no sentido oposto, os efeitos poderiam ser desastrosos, o que

nos faz lembrar as palavras de Górgias de Leontinos ao enunciar as

propriedades que o logos apresentava em sua psicagogia13, ou ainda em

Heráclito de Éfeso (KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 1994: 193), quanto à

incompreensão dos homens relativamente aos discursos verdadeiros (logos), o

13 Arte desenvolvida por Górgias baseada na capacidade persuasiva do discurso de atuar sobre o ânimo do ouvinte de maneira a mostrar-lhe o outro lado das coisas e situações e fundamentava-se na noção de pharmakon (remédio,veneno e cosmético).

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que é corroborado por Platão no que se refere à proximidade das artes médica

e retórica, no Fedro (PLATÃO, s/d: 174):

(Fedro) SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente,

que as duas artes se distinguem uma da outra pela natureza do seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra com a alma. Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outro infundir convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos legítimos.

Neste sentido, as almas possuiriam disposição natural para guiarem ou

serem guiadas pela eloqüência do discurso e seriam propensas à felicidade

quando tudo submetessem à razão, como se vê no Fedro e no Mênon:

(Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força da

eloqüência consiste na capacidade de guiar as almas, aquele que deseja tornar-se orador deve necessariamente saber quantas formas existem na alma. [...] (PLATÃO, s/d: 175)

(Mênon) SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário. (Idem: 63)

Enquanto encarnada, as potencialidades da alma se encontrariam

adormecidas parcialmente. Neste estado, é como se a alma fosse um morto, no

sentido de semelhança a um cadáver. Quando está desencarnada, suas

potencialidades aflorariam e a alma agiria à semelhança de um ser vivo, isto é,

em posse de todos os recursos acumulados através dos tempos e experiências.

Esta imagem diz respeito ao estado de ignorância da alma quanto à sua própria

origem e natureza divina, pois desencarnada não teria mais o esquecimento

gerado pelo acanhamento das percepções sensíveis que os órgãos causariam

à alma enquanto encarnada.

Tal colocação de Platão possivelmente foi parafraseada de Heráclito

que assim se posiciona quanto ao assunto: De noite, o homem acende uma luz

para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão; em vida, está em contato com o que é

morto, quando dorme, e com o que dorme, quando acordado (KIRK, RAVEN &

SCHOFIELD, 1994: 213). A menos que, enquanto encarnada, a alma praticasse

a filosofia, que era encarada por Platão como um dos recursos possíveis para a

alma interessada em se libertar dos ciclos reencarnatórios, como que um

preparativo de exaltação da parcela divina da alma que em vida nutre-se

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convenientemente, e prepara-se para viver na companhia dos deuses na Ilha

dos Bem Aventurados.

A alma pode adoecer suas principais patologias seriam: a) demência

(loucura e ignorância); b) prazeres e dores excessivos (sendo que este é

considerada a mais grave segundo Platão, e c) sensualidade imoderada, como

se vê no Timeu (PLATÃO, s/d: 175):

Assim se produzem as doenças do corpo. As da

alma, que sobrevêm por conseqüência de disposições do corpo, tem os seguintes caracteres. Deve-se admitir que a doença própria da alma é a demência. Mas há duas espécies de demência: uma é a loucura, outra é a ignorância. Por conseguinte, toda afecção que comporta um ou outro destes distúrbios, deve ser chamada doença, e deve-se admitir que os prazeres e as dores excessivas são, para a alma, as mais graves das doenças.pois, feliz em extremo, ou sofrendo pelo efeito da dor, a paixão contrária, o homem, quando se apressa inoportunamente a atingir um objeto ou fugir de outro, é incapaz de ver bem ou de escutar bem seja lá o que for: torna-se desesperado e impróprio para o raciocínio. Ora, aquele no qual a semente á abundante e corre aos borbotões pela medula assemelha-se a uma árvore por demais carregada de frutos. Experimenta, a respeito de tudo, dores intensas e grandes prazeres, em seus desejos e nos produtos que daí nascem. Assim enlouquece, durante a maior parte de sua vida, pelo excesso de seus prazeres e de suas dores; tem a alma enferma e apaixonada pela ação do corpo.

A alma disporia de um órgão de percepção racional que seria o

pensamento. As sensações físicas a impediriam de alcançar a verdade e de ter

acesso ao real verdadeiro. Isto acontece porque o corpo sensível tenderia

naturalmente a voltar a atenção da alma para o mundo sensível e a conturbar

seu acesso ao mundo inteligível. Portanto, prejudicaria a alma por �ivul-la do

alimento inteligível de boa qualidade e a fornecer-lhe acesso mais facilitado ao

de baixa qualidade, encontrando dificuldades em distinguir o que é verdadeiro

da simples opinião como se vê no (Fédon): SÓCRATES: - Não é, por conseguinte,

no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade

de um ser? (PLATÃO, s/d: 54)

O sistema anímico poderia vir a obscurecer-se devido à influência de

características corporais sensíveis, se estas predominassem durante a vida

como encarnada, segundo Platão no Fedro (s/ d: 69), conforme se vê abaixo:

(Fédon) SÓCRATES: - Segundo me parece, pode-se

também supor o contrário: que esteja poluída, e não purificada, a alma que se separa do corpo; do corpo, cuja

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existência ela compartilhava; no corpo, que ela cuidava e amava, e que a trazia tão bem enfeitiçada por seus desejos e prazeres, que ela só considerava real o que é corpóreo, o que se pode tocar, ver, beber, comer e o que serve para o amor; ao passo que se habituou a odiar, e encarar com receio e a evitar tudo quanto aos nossos olhos é tenebroso e invisível, inteligível, pelo contrário, pela Filosofia e só por ela aprendido! Se tal é o estado, crês que essa alma possa, ao destacar-se do corpo, existir em si mesma, por si mesma e sem mistura?

[...] Sim, mas isso tem peso, meu caro; não o

duvIdemos: é denso, terroso, visível! E uma vez que é este o conteúdo da alma, por ele é que ela se torna pesado, atraída e arrastada para as coisas visíveis, devido ao medo que lhe inspira o que é invisível e o que chamamos de país do Hades; essa alma se prende aos monumentos funerários e às sepulturas, ao redor dos quais rondam como espectros sombrios. Essas almas, por terem sido libertadas, em estado de impureza, mas, ao contrário, de participação com o visível, são assim elas também visíveis!

Dentre os atos que obscureceriam a alma durante a vida, o principal

está relacionado com a morte voluntária, como é visto no Fédon (PLATÃO, s/d:

91):

(Fédon) SÓCRATES: - Desta maneira, pois, a alma

ordenada e sábia acompanha obedientemente ao guia, pois bem conhece a situação. Mas a alma que se agarra avidamente ao corpo, coisa que antes expliquei, permanece por muito tempo ainda adejando ao redor do cadáver e dos monumentos funerários, oferece resistência e sofre, e só se deixa levar pelo gênio sob violência e exigindo grandes esforços. Mas quando essa alma, afinal, chega ao lugar em que já se encontram as outras almas, cada uma destas imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela praticou uma das negras ações seguintes: ou matou injustamente alguém, ou praticou qualquer crime desse gênero, ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de almas. Por isso ninguém deseja ter a sua amizade e ser seu companheiro, nem servir-lhe de guia. Assim, essa alma erra desnorteada daqui para lá, em ignorância absoluta, durante certo tempo, e em virtude de uma necessidade fatal é levada a uma residência que lhe é conveniente.

Assim, devido às angústias derivadas dos hábitos sensuais adquiridos

em vida, a alma, no Hades, se veria profundamente perturbada.

Platão nos dá indicações sobre outros modos de alimentação anímica

através das quais a ingestão de Idéias se dá, auxiliando a alma a desenvolver-

se enquanto encarnada, rumo à saberia e à inteligência. Esses alimentos para a

alma, segundo Platão na República (s/ d: 114-115) seriam: imagens, atitudes e

palavras como se observa abaixo:

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Por conseguinte, não teremos de vigiar apenas os poetas, obrigando-os a expressar a imagem do bem em suas obras ou não �ivulga-las entre nós; será preciso fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir que exibam as formas do vício, da intemperança, da vileza ou da indecência na escultura, na edificação e nas outras artes criadoras. E aos que não se conformarem a essa regra será proibido exercer sua arte em nossa cidade, para que não venha a corromper o gosto dos cidadãos.

Pela intelecção, a alma é capaz de conhecer as coisas através do noûs,

que é uma faculdade que pode ser utilizada tanto para o bem, quanto para o

mal.

O noûs, quando utilizado para apreender bons alimentos

(ensinamentos), se purifica, aumentando indefinidamente sua capacidade de

apreensão e penetrabilidade. Do contrário tornar-se-ia cego e incapaz de

auxiliar a alma encarnada a discernir as Idéias verdadeiras das opiniões

verossímeis, como é visto na República (PLATÃO, s/d: 285-286):

Mas reconheço plenamente a dificuldade de aceitar que a alma de cada homem possui um órgão que esses ensinamentos purificam e reavivam quando está corrompido e cegado pelas demais ocupações e que, por ser o único capaz de contemplar a verdade, é mais precioso do que dez mil olhos.

3.6 PATOLOGIAS DA ALMA

Nesta seção, relacionarei algumas das enfermidades da alma que

Platão menciona nos textos estudados, procurando compreender sua

sintomatologia.

Basicamente existem três enfermidades que afetariam a alma, a saber:

1 – demência, gerada pela loucura e/ou pela ignorância; 2 – excesso de

prazeres e dores, considerados por Platão os mais graves por impedir que a

alma veja e escute bem qualquer coisa e, finalmente, 3 – a sensualidade

imoderada:

A alma poderia tornar-se viciada por exposição a uma má educação

que lhe geraria comportamentos e concepções de mundo que a intoxicariam e a

corromperiam.

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A ignorância seria para Platão a pior das doenças anímicas, pois a alma

se intoxicaria com nutrientes nocivos à sua natureza e, aos poucos, tornar-se-ia

demente como se nota no Timeu (PLATÃO, s/d: 176):

Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de

dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é.

É necessário recapitular que a patologia da alma acima mencionada, a

incapacidade de dominar a voluptuosidade (Ibidem), se relaciona diretamente à

pouca contemplação de Idéias verdadeiras por parte da alma.

Quando em contato com o corpo sensível, caso este tenha maior

ascendência sobre sua percepção de realidade, isto é, caso seja maior a

propensão da alma para as sensações, uma vez que a alma seria pouco dada

ao inteligível, seu noûs seria pouco desenvolvido por inanição de Idéias

verdadeiras.

A alma encarnada que privilegia a natureza sensível em detrimento de

seu contrário, e descuida da busca da harmonia rítmica que precisa estabelecer

nas relações do sistema trino-anímico, cai fatalmente em desarmonia,

comprometendo a interface entre os sistemas sensível e inteligível de seus

corpos, tornando-os anacrônicos e geradores de danos recíprocos conforme a

duração da hybris (desmedida). Isso fica bem claro no Timeu (s/ d: 178):

Inversamente, quando um corpo maior e mais

forte que a alma se encontra unido a uma inteligência pequena e débil, como há, naturalmente, no homem, duas espécies de desejos, um que vem do corpo, o da nutrição, o outro que vem do que há de mais divino em nós, o desejo de intelecção, os movimentos da parte mais forte o acarretam; engrandecem seu domínio próprio, e o da alma, tornam estúpido, difícil de instruir e pronto para o esquecimento, e produzem a pior das doenças, a ignorância.

Segundo a vontade da alma de viver segundo sua natureza ou segundo

a natureza do corpo sensível, pode ser gerada uma ilusão unilateral da

existência, isto é, a alma tende a tornar exclusiva uma das dimensões de

realidade como parâmetro de existência total. Adotando a dimensão inteligível

ou a sensível como única existente, a alma passaria a julgar e lidar com as

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coisas conforme tal perspectiva, desprezando a outra como Platão nos informa

no Timeu (PLATÃO, s/d: 178):

Contra essas duas doenças só há um remédio: não

mover nunca a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, a fim de que , defendendo-se uma contra a outra, essas duas partes guardem seu equilíbrio e sua saúde.

Outra patologia decorrente da ignorância seria o cometer atos injustos

contra outrem, pois conduziria a alma ao ostracismo no Hades, o que

acarretaria perturbações e remorsos por meio dos quais a alma que se sente

culpada passa pelo processo de marginalização no Além, pelo horror que causa

às demais almas, por ausência de afinidade entre elas.

A intoxicação da alma se daria, especificamente, pela ação da

linguagem que, ao modelar na inteligência (noûs) os ideatos, estes a

impressionariam/emocionariam de maneira a corromper-lhe os hábitos já

adquiridos pela educação e a encaminharia às atitudes degradantes, que lhe

gerariam distorções de vistas, dificultando-lhe o juízo sobre o que é conveniente

e gerariam sua perturbação no Hades, como visto no Fédon e na República

respectivamente:

(Fédon) SÓCRATES: - Mas quando essa alma,

afinal, chega ao lugar em que já se encontram as outras almas, cada uma destas imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela praticou qualquer crime desse gênero, ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de almas. Por isso ninguém deseja sua amizade e ser seu companheiro, nem servir-lhe de guia. (PLATÃO, s/d: 91)

(República) Não diremos pois, Adimanto, que as almas melhor dotadas se tornam particularmente más quando recebem má educação? Porventura os grandes crimes e a maldade refinada britam de alguma inferioridade e não da plenitude de uma natureza corrompida pela educação que recebeu? As almas fracas nunca serão capazes de grandes ações, quer no bem, quer no mal. (PLATÃO, s/d: 238)

Outro elemento patológico na existência sensível para a alma é a

prática de atos injustos. Através do exercício de qualquer injustiça, instala-se na

alma a desarmonia entre o sistema trino-anímico (noûs, thýmos e pneyma). Tal

ocorrência instala na alma a covardia, a ignorância e todos os demais prejuízos

que destes decorrem.

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3.7 AFECÇÕES DA ALMA

A alma receberia do corpo sensível a influência de amores, paixões,

temores, imaginações, guerras, dissensões e batalhas que lhe chagariam por

intermédio dos sentidos, como Platão menciona no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-

55):

(Fédon) SÓCRATES: - “Sim,é muito possível que

exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o raciocínio nos acompanha na busca. E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossas desejos! [...] Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam às necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças, e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda a sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissensões, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a causa original de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos!

No processo de purificação da alma, oferecido pelos chamados

Mistérios que Platão menciona apenas o pensamento seria afetado pelo corpo,

mas não a alma em sua natureza, como sugere no Fédon: E assim esta viagem,

esta que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo

acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa

dizer purificado. (Idem: 55-56).

O pensamento vicioso obscurece a alma e a mantém ligada ao mundo

dos vivos, de maneira a ser possível, inclusive, tornar-se visível aos encarnados

em determinadas circunstâncias. As perturbações geradas por ele poderiam

persistir após a morte do corpo sensível, constrangendo-a a sofrer estados

desagradáveis no que perdurariam no Hades.

A linguagem manifesta por meio do discurso é um canal de

comunicação entre a alma e o corpo sensível, na phýsis. É uma via de mão

dupla que afeta a alma e, por conseguinte, a phýsis, devido à função

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ideoplástico-modeladora-representativa que a linguagem produz na

comunicação por cessão de sentido/valor às coisas, e que possui aplicação

benéfica ou maléfica sobre a alma, conforme o uso da linguagem que a alma se

dedique no cotidiano.

Os estados íntimos da alma influenciariam decisivamente o corpo

sensível, garantindo-lhe saúde ou enfermidade, conforme sua capacidade de

adequação ao ritmo e à harmonia entre suas partes, isto é, a alma apetitiva, a

impetuosa e a racional. O uso da Música e da Ginástica, combinados a uma

vida filosófica, garantem à alma a felicidade, como sugere Platão na República:

E, como dizíamos, a influência combinada da Música e da Ginástica porá a ambos de

acordo, vigorizando e nutrindo a razão com boas palavras e ensinamentos, enquanto

modera e civiliza a cólera por meio da harmonia e do ritmo? (PLATÃO, s/d: 172)

Com o tempo e o fortalecimento de suas asas (sabedoria e inteligência), a alma

preteriria os prazeres corporais sensíveis daqueles se utilizando apenas na

medida do necessário, como é visto na República (PLATÃO, s/d: 229):

Aqueles cujos desejos o conduzem para o saber sob

todas as suas formas se entregará inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo verdadeiro e não fingido.

Neste sentido, a vida filosófica é capaz de conduzi-la ao ser existente e

invisível através do estudo, da educação, como Platão (s/d: 238) menciona na

República: Não diremos pois, Adimanto, que as almas melhor dotadas se tornam

particularmente más quando recebem má educação?

3.8 ALMA E INTERIORIDADE A alma em Platão apresenta estruturas relativamente autônomas entre

si, porém integradas, as chamadas almas apetitiva, impetuosa e racional.

Considerando as estruturas acima mencionadas, constata-se que o

conceito platônico de saúde anímica está diretamente vinculado à noção de

ritmo e harmonia, alcançadas pela alma que se dedica à educação musical,

como se vê na República (PLATÃO, s/d: 115-116):

SÓCRATES: - E a educação musical não será mais poderosa que qualquer outra, ó �esprez, porque o ritmo e a

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harmonia se introduzem no mais recôndito da alma e ali se aferram tenazmente, infundindo a graça na pessoa corretamente educada, porém não nas outras? E não será a pessoa que recebe a devida educação sob esse aspecto a mais sagaz em perceber falhas e omissões na arte e na natureza, e aquela a quem mais desagradarão tais deformidades? Por outro lado, não saberá louvar o que há de bom, recebe-lo com deleite e, acolhendo-o em sua alma, nutrir-se dele e fazer-se um homem de bem, ao mesmo tempo que repele e detesta o feio desde criança, mesmo antes de poder raciocinar? E assim, quando chegar a razão, a pessoa educada dessa forma a reconhecerá e acolherá com a maior alegria, como a uma velha amiga. Não é verdade?

Então, como sustento, nem nós nem nossos guardiães, a quem temos de educar, poderemos chegar a ser músicos enquanto não reconhecermos, onde quer que apareçam, as formas essenciais da temperança, da coragem, da generosidade, da magnanimidade e das outras virtudes suas irmãs, bem como das qualidades ou de suas imagens naqueles que as possuem, sem jamais �espreza-las tanto nas coisas pequenas como nas grandes, mas persuadidos de que o conhecimento de umas e outras é objeto da mesma arte e disciplina?

Ora, qual é a sentido da palavra ritmo? Em grego, rhythmós (‘ρυθµοσ -

ritmo), significando movimento regulado e compassado, ritmo, cadência,

medida, harmonia de um período e simetria (ISIDRO PEREIRA, 1990: 511).

Em sua multiplicidade fenomênica, a alma apresentar-se-ia como um

complexo orgânico de estruturas de natureza mista. Orgânico, pois os gregos

não tinham noção de mecanismo, o que ocorreria apenas após o século XVII; e

também pela concepção que eles tinham de phýsis, em que tudo fazia parte do

Todo. A estrutura anímica é parte da phýsis e esta é responsável por uma série

de atividades diretas e indiretas da alma, as quais assegurariam seu papel

existencial.

Desta maneira, como se constitui a noção de realidade para Platão;

através de que e em que medida essa noção se atualizaria na alma humana?

Platão apresenta uma versão da noção de phýsis, que se constituiria

em cinco dimensões interativas e totalmente complementares, a saber: o

sensível que teria características de tangibilidade, corporeidade e visibilidade,

mobilidade, temporalidade, a dos entes matemáticos, que segundo Reale tem

a característica fundamental de ser uma dimensão intermediária entre o

sensível e o inteligível devido a seus elementos apresentarem qualidades duais

das dimensões que mediatizam, isto é, são imóveis e eternos, justamente como

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as Idéias (e os Números Ideais), e, de outro lado, existem muitos da mesma

espécie (REALE, 2004: 173).

Na seqüência viria a dimensão das realidades inteligíveis ou Idéias,

intangíveis, invisíveis, incorpóreas, imóveis, eternas, mas perceptíveis por meio

do noûs (inteligência), a dimensão dos Números Ideais que:

são a essência dos números matemáticos e enquanto tais são inoperáveis, ou seja não podem ser submetidos a operações aritiméticas. Eles tem um estatuto metafísico, diferente dos números matemáticos, justamente porque não representam simplesmente números, mas constituem a essência dos números (REALE, 2004: 167). (Grifo do autor)

E, finalmente, com o status de realidade ordenadora última viria a

dimensão dos Primeiros Princípios, caracterizados pela Díade e pelo Uno

universais que, segundo Reale (2004: 176-178), são as forças cósmicas

ordenadoras por complementaridade simétrica e simultânea, de todas as

demais dimensões mencionadas anteriormente.

Desta maneira, tendo o real como pano de fundo e nele radicalmente

inserida a alma platônica constitui-se como o elemento natural ordenador do

mundo, agindo e interagindo recursivamente ad infinitum por meio do fenômeno

da linguagem (aqui compreendido no sentido amplo e irrestrito, isto é, todo e

qualquer sistema de signos exprimíveis pelo humano) e como tal, como

doadora de sentido a si e aos demais elementos naturais.

A concepção comum de ritmo está vinculada a movimento ou ruído que

se repete no tempo a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos, ou seja,

está relacionada a som, a freqüência. Para os helênicos, rhythmós é um

movimento regulado e compassado, uma espécie de cadência, medida,

harmonia de um período, simetria. Como se verificou acima, a interioridade

sistêmica da alma se caracterizaria pela proporção e simetria de seus

elementos funcionais. A tentativa de qualquer outra das duas partes (thýmos e

pneyma), em tomar o controle do complexo ao noûs acarretaria

necessariamente em desequilíbrio, desmedida, em hýbris.

O fato é que a alma se mantém num movimento de auto-investigação,

sendo auscultada, avaliada, de maneira a manter-se no ritmo, isto é, na

constante proeminência do noûs sobre o thýmos e o pneyma. Além disso, o

desenvolvimento natural da sabedoria e da inteligência afloraria nela o desejo

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pelo que é melhor e neste sentido, buscaria sua depuração através da

eurritmia. Euritmia, em grego, significa movimento rítmico, harmonia, cadência,

graça, dignidade, conforme se observa em Isidro Pereira (1990: 244). Neste

sentido, percebi que este conceito infere algo a mais que o ritmo apenas, isto é,

a euritmia sugere um movimento consciente, pleno de intencionalidade,

objetivando a precisão do movimento natural que é determinado pelo ritmo.

Não basta à alma o ritmo. É necessário um equilíbrio auto-consciente

conquistado por meio de sua alimentação, que se daria através da

contemplação das Idéias verdadeiras, discursos e exemplos.

O que estaria em questão no problema da interioridade da alma em

Platão? É a questão da dinâmica administrativa da alma em sua auto-gestão.

Platão nos apresenta uma complexa série de cuidados para com a alma que

vão do conhecimento íntimo de suas emoções até sua participação na vida

pública.

Os problemas do ritmo, da euritmia e da aritmia da alma revelam um

emaranhado de questões que nos levam em direção aos processos de auto-

conhecimento com vistas a exercer o controle sobre os pensamentos e as

emoções, a partir da ação consciente orientada pela educação.

É por isso que na partição trina da alma o noûs seria o único em

condições de governar. As demais partes, por suas características de

desmedida e parcialidade, estariam sujeitas às ondulações e movimentos dos

impulsos, desejos e ímpetos. Em poucas palavras, seriam determináveis e não

determinantes. O noûs, a partir do momento em que seria instalado na alma14,

seria determinante e como tal, seria passível de exercer e ordenar o campo da

interioridade anímica e, em conseqüência disso, exteriorizaria essa harmonia

calculada, tanto quanto possível, ao real.

3.9 ALMA E MATÉRIA INANIMADA

Acredito ser importante verificar neste momento da pesquisa o que viria

a ser compreendido por matéria e em que medida a alma se relacionaria com 14 É preciso ter em mente que para Platão a primeira encarnação da alma como humano só é possível após a primeira contemplação das Idéias verdadeiras por ocasião da procissão divina no céu da verdade e, nesta medida, o noûs não é propriamente dito a alma, mas um órgão da alma através do qual ela tem acesso ao inteligível através da linguagem racional, conforme vemos em Fedro e no Timeu.

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ela. A primeira referência ao assunto é encontrada no Fedro (PLATÃO, s/d:

152): (Fedro) SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer outra

coisa corpórea.

O que diferenciaria então, os seres sensíveis dos inteligíveis, uma vez

que ambos, guardadas as devidas proporções assinaladas anteriormente, são

em certa medida corpóreos?

Platão indica que a matéria assemelha-se a certo revestimento externo

que envolve e demarca os limites da alma, como observado no Fedro (s/ d:

155): SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro

que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha. Dessa

maneira, a psyché (alma compreendida em sua totalidade, isto é, noûs, thýmos

e pneyma) em relação à matéria, estaria na posição de forma ou modelo que

receberia o revestimento para delinear-lhe os contornos que a encerrariam num

determinado formato.

A psyché serve-se de um tipo de corpo, eidolon que seria revestido de

matéria sensível por ocasião da encarnação. Na ausência anímica, o corpo

sensível nada mais seria que matéria inanimada destinado a dissolver-se por

ausência de seu modelo.

Ora, havia duas revoluções divinas. Imitando a figura

do Todo, a qual é esférica, os deuses introduziram essas revoluções num corpo esférico. É o que agora chamamos de cabeça, que é a parte mais divina e que comanda todas aquelas que estão em nós. À cabeça os deuses uniram, submeteram e deram como servidor o corpo inteiro. E proveram que a cabeça pudesse participar de tudo que tivesse movimento. Então, a fim de que, circulando sobre a terra, a qual apresenta saliências e depressões de toda espécie, a cabeça não se embaraçasse em franquear aqueles e desviar das outras, deram a ela o corpo como veículo, a fim de que se movesse com mais facilidade. Daí vem o corpo ser alongado e ter gerado quatro membros longos e flexíveis, construídos por Deus para �tiliza�ta-lo. [...] Preciso era então que a parte anterior do corpo humano tivesse caracteres distintos e dissemelhantes da parte posterior. Por isso, em primeiro lugar, sobre a pele da cabeça os deuses dispuseram daquele lado o rosto, e sobre este repartiram os instrumentos que servem a todas as previsões da Alma. [...] Dentre todos esses instrumentos, conformaram primeiramente os olhos, portadores de luz, e implantaram-nos no rosto, aproximadamente pela seguinte razão. Esta espécie de fogo, que não é capaz de queimar mas apenas de fornecer suave iluminação, adequaram-no por sua arte a um corpo apropriado. Para este efeito, fizeram de modo que o fogo puro que reside dentro de nós, e que é irmão do fogo exterior, se escoasse através dos olhos de maneira sutil e contínua. Porém espessaram todo

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o olho, especialmente seu meio, de modo que não deixasse escapar nada do restante fogo mais grosseiro mas deixasse apenas filtrar um fogo perfeitamente puro. Assim que a luz do dia envolver essa corrente da visão o semelhante encontra o semelhante, funde-se com ele num todo e forma-se, segundo o eixo do olhar, um só corpo homogêneo. Onde quer que se apóie o fogo que jorra do interior dos olhos, encontra e choca-se com o que provém dos objetos exteriores. Forma-se assim um conjunto que tem propriedades uniformes em todas as suas partes graças à sua semelhança. Timeu (PLATÃO, s/d: 106-107)

Na descrição do processo de funcionamento do aparelho visual

sensível, Platão afirma que este fogo do interior da psyché seria irmão do fogo

comum, isto é, seria identificado como uma variante de um dos elementos da

phýsis, a saber, água, éter, terra, fogo e ar e que deste se distinguiria por não

queimar como ele, mas apenas projetar suave iluminação sobre o objeto de

observação, possibilitando sua visualização sensível.

O que vem a ser o corpo para Platão?

A primeira referência aparece no Fedro (PLATÃO, s/d: 151), que nos

apresenta dois tipos de corpos, a saber: (Fedro) SÓCRATES: - O corpo movido de

dentro é animado, pois que o movimento é a natureza da alma. Platão se refere aqui

a corpos que possuem intrinsecamente a capacidade de auto-locomoção

decorrente de sua própria natureza e, nessa medida, ela afirma que estes são

animados.

Uma outra questão a ser observada é a da semelhança do corpo

humano aos demais corpos naturais. Sem a psyché, o corpo humano é um

corpo desprovido de movimento como outro qualquer. Sua animação procederia

da alma, mas em especial, de certa parcela do complexo trino anímico que

seria a pneyma. Tal posição se justificaria pela afirmação de Platão no Mênon

(PLATÃO, s/d: 55), que diz que a alma humana seria imortal, mas que foge da

vida no sentido de deixar o corpo privado de sua presença e,

consequentemente, de sua vitalidade, movimento e agregação material própria

ao humano: (Mênon) SÓCRATES: - Dizem que a alma do homem é imortal e que ora

foge da vida, o que é falecer, e ora reaparece, entrando numa nova existência.

Observa-se também no Timeu (PLATÃO, s/d: 176), que a doença da

alma, que Platão chama de vício, ele atribuiu em parte, a uma má formação do

corpo sensível:

Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de

dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às

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pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é. Todo homem, de fato, tem o vício como inimigo, e o vício ocorre-lhe, apesar de tudo.

Nota-se assim que o corpo em si independe da alma enquanto

existente, na medida em que o considerarmos como uma massa de matéria

amorfa, isto é, carente da modelagem proporcionada pela alma como Idéia de

homem. Mas o homem só se constitui enquanto homem estando a psyché

ligada a um corpo sensível. A configuração deste, em Platão, parece não ser

controlada ou determinada conscientemente pela psyché no momento da

reencarnação. No entanto, há referências de que a alma pode aperfeiçoar um

corpo até certo limite por meio de suas excelências (aretai) e de seu caráter

vital, conforme vemos no diálogo A República (PLATÃO, s/d: 118):

Também aqui é necessário que a educação comece

desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira. Vou dar-te a minha opinião sobre o assunto, mas gostaria de saber se é confirmada pela tua. Não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas, pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível.

No Fédon, o corpo é mostrado como cárcere e túmulo da alma. Esta

atitude de Platão visava delimitar a posição do corpo como instrumento de

progresso e simultaneamente, instrumento de punição para a alma que não

conseguiu manter-se em contemplação e também para aquelas que foram

viciosas e malévolas em outras vidas. Por isso o suicídio é encarado como uma

afronta aos deuses, que criaram tanto a alma humana como o corpo, conforme

se vê em Fédon (PLATÃO, s/d: 50-51):

CEBES: - diz-nos pois, Sócrates, por que motivo se

pode certamente negar que seja permitido o suicídio? SÓCRATES: - A esse respeito há, mesmo, uma

fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie de prisão o lugar onde nós, homens, vivemos, e é dever não libertar ninguém nem permitir que alguém seja levado dali”.

Sendo um aparelho de aperfeiçoamento e punição, simultaneamente, o

corpo sensível deve ser utilizado por uma alma de maneira que ele não

atrapalhe no processo de conhecimento das Idéias verdadeiras, como se vê no

Fédon (PLATÃO, s/d: 53):

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(Fédon) SÓCRATES: - E quanto aos demais

cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessará em possuir uma vestimenta ou uma sandália de boa qualidade, ou que não se importará com essas coisas se a força maior duma necessidade não o obrigar a �tiliza-las?

Isto porque na situação acima descrita, a alma que desse mais atenção

às necessidades do corpo sensível do que às de sua própria natureza, veria

seu noûs obliterado e correria o risco de intoxicação, sendo impedida de

alcançar a verdade e a felicidade como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-55):

(Fédon) SÓCRATES: - Assim pois, companheiro [...]

se há verdade no que acabamos de dizer, que imensa esperança não existe para aquele que se encontra nesta altura de minha rota! Lá no além, se tal deve acontecer em algum lugar, ele irá possuir com abundância tudo aquilo que exigiu de nós a realização de um imenso esforço, em nossa vida passada. E assim esta viagem, esta viagem que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer purificado.

Segundo Platão, o corpo sensível por si mesmo geraria na alma alguns

obscurecimentos oriundos de sua natureza, enquanto ligado à psyché, tais

quais, divagações, irracionalidades, terrores, amores tirânicos e outros males

conforme vemos em Fédon (PLATÃO, s/d: 69):

(Fédon) SÓCRATES: - Ora, se tal é o seu estado, é

para o que se lhe assemelha que ela se dirige, para o que é invisível, para o que é divino, imortal e sábio; é para o lugar onde sua chegada importa para ela na posse da felicidade, onde divagação, irracionalidade, terrores, amores tirânicos e todos os outros males da condição humana cessam de lhe estar ligado, como se diz dos que receberam a iniciação, ela passa na companhia dos deuses o resto do tempo!

O pacto com o corpo sensível seria sempre um risco de sucesso ou

insucesso para a alma, conforme sejam conduzidas por ela, suas relações com

ele. Esta influência seria tão grave e importante que, caso seja negligenciada

pela psyché, poderia gerar-lhe um dos piores males que Platão menciona que

seria a crença de que o objeto da emoção seria mais real e verdadeiro, por ser

sensível, do que as realidades inteligíveis, como se observa no Fédon

(PLATÃO, s/d: 71):

(Fédon) SÓCRATES: - É que em toda alma humana,

forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a

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propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto dessa emoção é tudo o que há de mais verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o efeito de todas as coisas visíveis, não é?

CEBES: - Efetivamente. SÓCRATES: - e não é em tais afetos que no mais

alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo? CEBES: - De que modo, dize? SÓCRATES: - Assim: todo prazer e todo o

sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo assim com que ela se torne material e passe a julgar da verdade das coisas conforme as indicações do corpo. E pelo fato de conformar a alma ao corpo em seus juízos e comprazer-se nos mesmos objetos, necessariamente deve produzir-se em ambos, segundo penso, uma conformidade de tendências assim como também uma conformidade de hábitos; e sua condição é tal que, em conseqüência, ela jamais atinge o Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo corpo, onde em certa forma se planta e deita raízes. E por força disso fica desprovida de todo direito a participar da existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua forma.

Conforme se vê no diálogo Fédon (PLATÃO, s/d: 74-75), o corpo seria

uma roupagem extremamente necessária à libertação da alma de seus

equívocos passados e, como habilitador de uma melhor percepção que o noûs

pode alcançar; pois quanto mais acurada for a percepção noética, novas e mais

elevadas formas de expressão, percepção e realidade seriam desenvolvidas

pela psyché como se vê abaixo:

(Fédon) SÓCRATES: - “Contudo, segundo penso, as

coisas não se passam assim, Símias; e, portanto, deves tu também prestar atenção ao que vou dizer, pois no que respeita à argumentação precedente, todos podem facilmente perceber de sua ingenuidade. E vou provar isso: se é verdade que o desaparecimento de nosso tecelão, após haver usado uma multidão de tais vestuários e de haver tecido outros tantos, ocorre depois deles todos, mas antes daquele que foi sua última vestimenta, aí não se encontra menor motivo para afirmar que o homem seja inferior às suas vestes e mais frágil do que elas! Pois bem: essa mesma imagem, se não me engano é aplicável à alma em sua relação com o corpo. Quem fizer uso dela dirá (acertadamente, no meu entender) que a alma é coisa durável, e o corpo, por seu lado, é coisa frágil e de menor duração. Quem assim fizer, poderá acrescentar que, cada alma usa diversos corpos, principalmente se ela vive muitos anos, pois sendo o corpo, como é possível supor, uma torrente que se esvai enquanto o homem vive, a alma incessantemente renova o seu vestuário perecível. Mas, assim mesmo, é necessário que a alma, no dia em que for destruída, se revista com a última vestimenta que teceu e que seja esta a única anteriormente à qual tenha lugar esta destruição. Uma vez aniquilada a alma, o corpo patenteia desde logo a sua fragilidade essencial e, caindo em

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podridão, não tardaria a desaparecer definitivamente. Por conseguinte, não estamos ainda em condições de aceitar o argumento de que tratamos, e, assim, confiar em que mesmo depois de nossa morte nossa alma continue a existir em algum lugar

Neste sentido, segundo Platão, a velhice seria compreendida como um

período de paz e liberdade para a alma encarnada, pois as paixões seriam

enfraquecidas e a pneyma (alma apetitiva ou alento vital) e o thýmos (alma

impetuosa), vistos como tiranos seriam apaziguados dando finalmente ao noûs

maior autonomia conforme vemos em República (PLATÃO, s/d: 12):

E ele respondeu: “Sossega, homem! Com a maior

satisfação me livrei dele, como quem se livra de um déspota furioso e selvagem.” Essas palavras me tem vindo muitas vezes à lembrança e ainda hoje me parecem tão boas como quando as ouvi pronunciar. Pois é certo que a velhice traz consigo uma grande paz e liberdade; quando se embota o acicate das paixões, sucede exatamente o que dizia Sófocles: libertamo-nos não apenas de um tirano, mas de muitos.

No entanto, na razão diretamente inversa da liberdade e paz que

receberia a alma através do enfraquecimento corporal, este lhe geraria outros

temores pertinentes ao estado post mortem: as preocupações com as

conseqüências das suas ações ao longo da vida, uma espécie de revisão para

tentar atenuar os possíveis problemas que terá na vida futura, conforme vemos

na República (PLATÃO, s/d: 13): CÉFALO: - Por que há de saber, Sócrates, que

quando um homem se julga próximo da morte, entram-lhe no espírito temores e

preocupações que nunca experimentou antes.

3.10 CONTROLE DA ALMA SOBRE SI

Esta seção se fundamenta nas precedentes e visa explicitar a forma

pela qual a alma exerceria poder sobre si e as conseqüências deste sobre ela e

suas relações com o meio e às demais almas.

Como já fora visto na República, a alma em Platão seria comparada a

uma polis, tendo o governo a encargo do noûs, a defesa e patrulhamento

interno sob responsabilidade do thýmos e a produção de energia e manutenção

em relação com o corpo sensível em atividade reguladora produtiva através do

pneyma.

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O noûs exerceria o papel mais importante, na medida em que

determinaria o que poderia atingir a alma em termos ideais. Nesta medida,

observamos que seu papel não só se estenderia à administração interna, como

também à externa e, principalmente, à atuação consciente neste processo.

Platão nos informa que a alma, pode ser enérgica, bestial ou suave no

controle seletivo das Idéias que absorve, pois sabe que necessariamente

sofreria os efeitos de suas escolhas. Neste sentido, fica clara a importância

deste controle ser exercido pelo noûs, uma vez que apenas ele seria capaz de

avaliar com equilíbrio os efeitos positivos ou negativos das escolhas da alma.

No Sofista (PLATÃO, s/d: 139) vê-se que a posse e a presença de cada

uma das Idéias transformaria a alma dando-lhe uma determinada característica

própria, por exemplo, se a Idéia de justiça é ingerida, a alma assumiria as

propriedades de uma alma regida pela justiça e assim por diante como se vê a

seguir: (Sofista) ESTRANGEIRO: - Ora, não é na posse e na presença da justiça que

as almas assim se tornam justas; e na posse dos contrários que se tornam o contrário?

As características deste controle, isto é, da intensidade e rigor com o

qual seria feito o acompanhamento por parte do noûs, encontra-se a base

originária da personalidade na já mencionada configuração psicológica da alma

que seguiria um dos deuses na revolução divina da contemplação, conforme

vemos em Fedro (PLATÃO, s/d: 153): (Fedro) SÓCRATES: - A realidade sem

forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da

alma. E é na Idéia Eterna que reside a ciência perfeita, aquela que abarca toda a

verdade.

É neste sentido que o complexo cognitivo anímico melhor exerceria sua

função, fundamentando seu agir e pensar com razões necessárias e razoáveis

através do qual realizaria a estruturação de sua percepção tempo-espacial

objetivando atingir a alimentação ideológica adequada ao desenvolvimento das

asas da sabedoria e da inteligência para a alma. Para tanto, ela seria

impulsionada por sua identidade substancial para com as Idéias que a fariam

intuir ou reconhecer nos objetos sensíveis o Belo, o Bom e o Justo sempre se

harmonizando com essas Idéias verdadeiras.

Outro aspecto importante sobre a seletividade anímica, é a questão da

sabedoria adquirida através da ciência. A alma só seria sábia se ela soubesse

selecionar para si o melhor entre as Idéias, pois se tornaria capaz de governar-

se. Pelo que se depreende do exposto, existiriam Idéias nas quais a alma

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absorveria suas propriedades como parâmetros de comportamento, como por

exemplo, a temperança, a justiça, a coragem, a memória, a generosidade e

outras. Desde que a ingestão destas estivesse submetida à razão, conforme

vemos em Mênon (PLATÃO, s/d: 63), a alma seria feliz, conforme segue:

(Mênon) SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo

aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade.

Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.

O término da participação da alma nos ciclos reencarnatórios estaria

diretamente relacionada a como ela exerceria o controle sobre si em relação ao

corpo sensível, pois as dores e prazeres seriam detectados pela alma através

da ação da pneyma, sua parte mortal e intermediária entre os corpos sensível e

inteligível. A alma vegetativa, conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/d: 155),

não conteria opinião, raciocínio nem intelecção, mas teria sensações

agradáveis e dolorosas, além de desejos:

Depois, implantou neste suporte as diferentes

espécies de almas. E todas as espécies de figuras que cada espécie de ser deveria receber em seguida, distinguiu-as na própria medula imediatamente, e desde esta divisão inicial. E a espécie de medula que devia, como uma gleba, receber em si mesma a semente divina, conformou-a inteiramente esférica, e chamou a esta parte da medula encéfalo, porque após o acabamento de cada ser vivo, o recipiente que devia recebê-la seria a cabeça. Em contraparte, a porção que deveria receber o resto da alma, sua parte mortal, dividiu-a em figura a um tempo alongada e roliça, e a todas essas porções deu o nome de medula, e como que âncoras atirou os liames de toda a alma, e formou em torno da medula todo o corpo, após haver previamente condensado, em torno da medula, um revestimento ósseo.

A alma assim, mostrar-se-ia sempre passiva e sofreria tudo que atinge

o homem. É nesta medida que a alma seria afetada pelo corpo sensível e que

segundo a opção dela quanto à forma que conduziria sua vida, a pneyma

poderia ou não turvar a ação do noûs.

Para Platão, no Timeu, o vício que é para ele ignorância e,

consequentemente, uma doença da alma, não seria um ato intencionalmente

voluntário, mas sim uma má disposição do corpo sensível ou fruto de uma má

educação constituindo-se assim, como um dos maiores inimigos do homem:

Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de

dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente,

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faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É por efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é. (PLATÃO, s/d: 176)

É importante recordar que o controle que a alma exerce sobre si seria

uma questão de saúde, pois segundo o que viesse a acolher em seu seio, teria

conseqüências inevitáveis. O papel do noûs seria semelhante ao do médico que

seria responsável pela ciência do amor nos corpos, conforme se vê em

Banquete (PLATÃO, s/d: 92):

(Banquete) ERIXÍMACO: - A Medicina, com efeito,

para em poucas palavras, é a ciência do amor nos corpos relativamente a sua relação e evacuação, e aquele que nesses movimentos consegue estremar o bom do mau amor, esse é um bom médico. Aquele que suscita o aparecimento de amor onde não havia amor, e onde não obstante era necessário, e elimina um amor existente, quando pernicioso, esse inegavelmente, merece o título de excelente médico.

Toda a sabedoria do médico consiste em saber provocar o nascimento da amizade entre os maiores inimigos recíprocos existentes no corpo do homem, e fazer estabelecer-se um amor mútuo entre eles. Por maiores inimigos quero entender os maiores contrários que no corpo habitam: o frio e o quente, o amargo e o doce, o seco e o molhado, e assim por diante. Foi precisamente por haver alcançado esse ideal, por haver conseguido estabelecer amor e concórdia entre esses contrários, que Asclépio, nosso antepassado, fundou a nossa arte, segundo nos contam os poetas e no que eu creio firmemente.

É absurdo manifesto pretender que a harmonia consista em coisas diferentes; e por isso devemos pensar que Heráclito quis dizer que a harmonia resulta de coisas que antes eram contrárias, como o agudo e o grave, e que depois, pela habilidade da arte musical, se uniram. Pois a harmonia não provém do que ainda é contrário, não provêm do que ainda é agudo e do que ainda é grave; harmonia é concordância, é sinfonia, e a concordância, certa uniformidade. Esta não pode advir de elementos opostos que permaneçam opostos, pois coisas diferentes e contrárias jamais concordam entre si; e a harmonia, por sua vez, resulta de elementos opostos entre os quais se estabelece acordo.

Isto seria passível de ocorrer quando a alma fosse iludida por sua

incapacidade em distinguir os simulacros das Idéias verdadeiras pela má

utilização do seu noûs.

Daí viria a necessidade da alma, através do noûs, de interagir com o

complexo cognitivo anímico e, por meio do corpo sensível, com o ambiente

externo, tentando reduzir ao máximo as influências das sensações para poder

discernir entre o falso e o verdadeiro.

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Conforme se vê no Fedro, um homem governado pelo desejo seria

escravo e procuraria sempre no objeto de seu desejo extrair o máximo de

prazer, o que se caracterizaria como uma das enfermidades da alma: (Fedro)

SÓCRATES: - Necessariamente, um homem governado pelo desejo e escravo da

volúpia procurará no seu amado o máximo de prazer. (PLATÃO, s/d: 143).

É neste sentido que se deve compreender a ação libertadora da razão,

que proporcionaria ao homem a intervenção conscientemente objetiva da alma,

tornando-a assim, capaz de interromper o fluxo indeterminado dos desejos

intemperantes que, segundo Platão, costumaria sitiar a alma interna e

externamente.

Ao possuir o controle consciente e racional do processo existencial, a

alma seria capaz de furtar-se à animalidade das reações instintivas próprias à

natureza animal do corpo sensível e assim aprender a não retribuir uma

injustiça com outra. Logo, o cuidar de si, em se referindo à alma conduziria a

uma vida ótima e virtuosíssima (no sentido de areté).

Na medida em que a racionalidade fosse atuando sobre o corpo

sensível, a alma se harmonizaria passando do ritmo à eurritmia15. O controle

seletivo exercido pelo complexo cognitivo anímico iria se aperfeiçoando e

reduzindo as possibilidades de assalto por parte dos excessos sensíveis, que

agiriam sobre a economia da alma.

De maneira equilibrada, o complexo trino-anímico da psyché se

desenvolveria segundo sua especialização, garantindo a ordem e o equilíbrio

gerais. Assim sendo, dificilmente as chamadas por Platão doenças da alma

vindas do corpo, isto é, a demência, o excesso de prazeres e dores e a

sensualidade imoderada teriam guarida na alma vigilante. Isto por que o centro

de gravidade de seu pensamento estaria focado no que verdadeiramente

interessa à alma, isto é, o nutrir-se de Idéias verdadeiras, bons exemplos e

imagens, virtudes e filosofia.

15 É preciso ter bem claro que para Platão a percepção e a intelecção perfeitas seriam um meio termo regulado pela noção de Música.A harmonia Musical deveria refletir-se na saúde psicológica da pessoa como na saúde pública, no que se refere à cidade-estado, agindo assim por reflexo do interior para o exterior, conforme se vê em Timeu: [...] esta harmonia “musical” deve não só refletir-se na saúde psíquica da pessoa, como na “saúde” da própria República, sendo a sua noção de “ordem pública”. (PLATÃO, s/d: 87)

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IV. CONCLUSÃO

Para compreender o objeto de estudo desta dissertação vimos que a

concepção de natureza (phýsis), em Platão, corresponde à de sua cultura, isto

é, uma natureza encarada como um organismo vivo no qual o ser humano não

é algo à parte do todo mas, ao contrário, a phýsis que Platão chama de Cosmos

é a união do que o filósofo denomina Alma e Corpo do Todo (ou do Mundo) e

contém o que os gregos chamavam de mundo dos homens, dos mortos, dos

deuses e o que chamaríamos hoje de mundo natural, composto pelos reinos

mineral, vegetal e animal.

A natureza é compreendida em dois grandes blocos: o sensível,

contendo tudo o que é objeto de percepção sensorial e o inteligível, contendo

tudo o que é objeto de percepção intelectiva.

O inteligível comporta ainda subdivisões da realidade, a saber: o plano

dos entes matemáticos; o plano das Idéias, que engloba as Idéias gerais, as

Idéias particulares, as Idéias generalíssimas ou meta-Idéias e números-figuras

Ideais e, finalmente, o plano dos Princípios, contendo o Uno (ou o Mesmo) e a

Díade (ou o Outro).

O mundo sensível tem no inteligível sua fundamentação e razão de ser,

pois enquanto o primeiro está submetido às variações de geração e corrupção,

o segundo é eterno, imutável, estável, harmonioso e perfeito capaz assim de

garantir a existência do real como um todo.

A Alma e o Corpo do Cosmos foram construídos por um Deus, ser este

que não foi possível identificar nas obras de Platão estudadas nesta

dissertação. Esta formação se deu a partir de substâncias que o autor

identificou com os Princípios de sua phýsis, a saber: Uno (Mesmo) e Díade

(Outro). Esses Princípios são opostos, complementares e são o sustentáculo

último do real. A Alma foi construída com porções dessas substâncias mais

uma terceira que é a fusão proporcional dos Princípios do Uno e da Díade.

O objetivo da construção da Alma do Todo foi que ela viesse a

conceder beleza e inteligibilidade à matéria informe de maneira a ordená-la e

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nessa medida a Alma do Mundo foi modelada de maneira a ser perfeitamente

simétrica com o Corpo e capaz de ter estendido em si tudo o que é corporal.

Em seguida, o Deus constrói o Corpo do Todo e instala a Alma no centro do

Corpo estendendo-a através dele até seus limites para englobá-lo. Dado as

características próprias aos Princípios e à terceira substância o Corpo do Todo

é indissolúvel e não submetido às variações do tempo.

Deus não constrói a alma humana. Ele passa essa tarefa ao que Platão

identifica como deuses olímpicos que compuseram a alma e o corpo humano. À

semelhança do processo de criação da Alma e do Corpo do Cosmos os deuses

manipularam as substâncias dos Princípios, porém com a diferença de que não

havia mais a substância pura do Mesmo. Sobrou-lhes apenas a substância do

Outro e o misto do Mesmo com o Outro. A construção da alma e do corpo

humano assim se procedeu em semelhança com a da Alma e o Corpo do Todo,

deste diferenciando-se na medida em que devido à ausência da substância

pura do Mesmo, submeteu o corpo humano a uma porção maior do Outro e por

conseguinte mais próximo às mudanças e corrupções do devir, o corpo humano

é mortal.

Devido às semelhanças substanciais e de propriedades entre a Alma do

Todo e a alma humana, Platão admite uma identificação entre uma e outra com

base no princípio de que é possível conhecer a alma humana na medida em

que se esforce para conhecer o Cosmos, logo, conhecendo-se a Alma do

Mundo, conhece-se a alma humana e suas características. Daí decorre que, em

menor escala, tudo o que for aplicado à Alma do Mundo haverá de existir na

alma humana e vice-versa.

Nesta medida, a alma humana é um misto substancial do Princípio do

Outro com a terceira substância, fusão do Outro e do Mesmo. Seu objetivo é

conceder beleza e inteligibilidade à matéria de maneira a ordená-la. É simétrica

ao corpo, se estende através dele e o envolve de maneira circular. Por

semelhança, deduz-se que tenha sido instalada pelos deuses no centro do

corpo. A alma é um poder natural, uma força capaz de produzir movimento a

partir de si e de conceder-lhe aos corpos. É capaz de se acoplar a corpos. A

alma possui precedência e ascendência sobre o corpo de maneira que ele lhe é

subordinado por natureza.

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A alma é conduzida pelo desejo inato do prazer e pela opinião que

deseja o melhor; é imortal por participar do que Platão chama de divino, possui

uma Idéia no chamado plano das Idéias e devido a isso possui a característica

de ser simultaneamente inteligível e incorpórea, no sentido de não ser

encerrada em limites mais ou menos rígidos.

Ela é passível de sofrer a encarnação caso não se alimente

convenientemente, tem no fenômeno da linguagem, na eloqüência em especial,

um modo próprio para comunicação para guiar almas e ser conduzida por

outras almas.

A alma humana move-se em círculos e o número delas é proporcional

ao número de astros do Cosmos, logo, segundo a percepção grega e platônica,

as almas humanas têm um número fixo, pois ainda não existia a noção de

infinito aplicada à Astronomia.

A alma é capaz de conhecer os objetos do sensível e, em especial do

inteligível em si e por si, devido à sua natureza substancial e de propriedades

estarem relacionadas à composição íntima do sensível e do inteligível. Em

decorrência desses contatos com os dois planos da natureza a alma é capaz de

sofrer dores e ter prazeres. Habita o Hades ou o mundo inteligível enquanto não

encarna ou por ocasião da morte do corpo.

A alma tem a liberdade de optar pelo modo através do qual melhor se

alimentará através da contemplação das Idéias, escolhendo um deus do

panteão olímpico como paradigma comportamental que implicará

necessariamente no modo como cognitivamente se comportará. Sob o efeito de

seus atributos, a alma é considerada como o elemento de ordenação causal de

tudo que a cerca no Cosmos. A alma possui vontade e esta pode ser

potencializada através da utilização da razão no processo de conhecimento. A

alma é, pois diretamente responsável por seus atos e escolhas, recebendo em

conseqüência, a felicidade ou infelicidade delas decorrentes.

O pensamento é um dos atributos da alma. Enquanto atributo, ele não a

afeta substancialmente, mas apenas em termos de equilibração de suas partes

substanciais em relação com os planos sensível e inteligível.

A ascese do pensamento se dá através da contemplação e do acesso

ao conhecimento verdadeiro que progride de maneira escalonada por indução.

Por meio do pensamento, a alma é capaz de separar-se ou aproximar-se mais

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ou menos do sensível ou do inteligível por adensamento de uma ou outra parte

de sua natureza. O pensamento é considerado como diálogo da alma consigo.

É um intermediário entre o intelecto e os estímulos sensoriais. É um elemento

de comunhão entre a alma e o Ser Verdadeiro, pois é capaz de percebê-lo, bem

como ao que é permanente. Permite o contato intersubjetivo e a possibilidade

de transmissão de conhecimento.

O pensamento é um órgão de percepção racional, estando vinculado

assim, à razão. Serve à alma como uma espécie de torno anímico, modelando

na e pela linguagem os conteúdos a serem ordenados causalmente no

Cosmos. O pensamento é capaz de causar sensações, emoções e reflexões na

alma, representando os estímulos sensíveis e inteligíveis através da linguagem.

Essas representações (signos) são estruturadas em imagens, atitudes e

palavras. O pensamento pode se tornar viciado e nessa medida torna-se capaz

de gerar um adensamento da alma com base no reforço da substância do

Outro, vinculando a alma ao devir sensível.

O discurso é o meio através do qual a alma emite juízos sobre tudo

através do pensamento. Quando o juízo se dá na alma através do pensamento,

o autor o chama de opinião, quando se dá através da sensação, Platão o

chama de imaginação. A imaginação é a combinação da sensação e da

opinião. Esta é a conclusão do pensamento em dado juízo. Por ser vinculada à

sensação, a opinião pode ser verdadeira ou falsa.

A inteligência é outro dos atributos da alma para que ela se relacione

com o sensível e o inteligível. Foi instalada na Alma do Todo pelo Deus e por

semelhança, foi instalada na alma humana pelos deuses. Pelo depreendido na

pesquisa a alma humana é o único ser no Cosmos capaz de exercer a

inteligência. A presença dela não garante o uso da razão, pois a razão é uma

linguagem que foi criada na Grécia pré-socrática e paulatinamente inserida no

contexto social de Platão. A inteligência é distinta da razão, pois a primeira

governa a alma devido à sua capacidade de expressar a razão como

linguagem; permanece após a morte e exerce o papel ordenador e causal de

tudo. Proporciona acesso aos Princípios ordenadores e causais de tudo através

do pensamento.

A inteligência é considerada infinita, autônoma, não se mistura com

nada no sensível, existe de per si, e é a mais sutil e a mais pura de todas as

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coisas. Possui um conhecimento total de tudo, é o maior poder existente, é o

que dirige o que tem vida. É responsável por seu auto-movimento e o das

demais coisas existentes em contato com ela. Conhece todo o sensível,

conhece o passado, o presente e o futuro; é toda igual e dispõe todas as coisas

da melhor maneira possível. A inteligência é estruturalmente conexa à Idéia de

Bem, no sentido do melhor como condição da geração, da corrupção e do ser

das coisas.

A inteligência (noûs) é o guia da alma, e como tal, é um dos atributos

que os deuses lhe concedem no momento de sua construção. A alma tem

necessidade de alimentação com base nas Idéias e as atinge por

contemplação, que tem como finalidade auferir sabedoria para alcançar a

felicidade e para furtar-se aos ciclos da reencarnação.

A alma possui na memória o atributo necessário para se aperfeiçoar

através da contemplação de Idéias. Com a memória a alma acumula, elabora e

aperfeiçoa as experiências acumuladas em suas vivências no mundo inteligível

e no mundo sensível. Dado sua natureza substancial e de propriedades a alma

humana mantém contato com tudo o que é próprio ao Outro e ao Mesmo

através da substância mista Outro-Mesmo que a constitui intrinsecamente, o

que vem a ser a base e possibilidade de sua dinâmica cognitiva.

A razão é outro atributo da alma e deve orientar o desejo para gerar o

que Platão chama de prazer do bem. A ação racional da alma se inicia apenas

pela ocasião da alma ser vinculada a um corpo pela primeira vez. Ela exerce o

papel de juiz e critério necessário para que a alma atinja a felicidade.

A razão é também diretamente vinculada à alma e direcionada por sua

vontade. É uma capacidade discursiva: auxilia a alma a apreender parcialmente

a realidade de um ser através do conhecimento filosófico.

A alma em Platão é esse ser vivente em contato com o corpo através

da reencarnação, modelando a matéria por participação, gerando vida e

movimento por suas características substanciais e de propriedades, além de

atuar como elemento ordenador e causal da realidade através da linguagem,

exercendo o papel de verdadeira doadora de valor e sentido a tudo em todas as

relações que a alma mantém, enquanto encarnada ou desencarnada,

cumprindo seu papel de proporcionar à matéria beleza e inteligência.

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