O ENCONTRO DE JESUS COM A SAMARITANA Estudo bíblico...

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA O ENCONTRO DE JESUS COM A SAMARITANA Estudo bíblico-teológico de Jo 4,1-42 MARÍCIA LOPES GALVÃO Porto Alegre – RS Janeiro de 2005

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

O ENCONTRO DE JESUS COM A SAMARITANA Estudo bíblico-teológico de Jo 4,1-42

MARÍCIA LOPES GALVÃO

Porto Alegre – RS Janeiro de 2005

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MARÍCIA LOPES GALVÃO

O ENCONTRO DE JESUS COM A SAMARITANA Estudo bíblico-teológico de Jo 4,1-42

Dissertação apresentada à Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teologia, área de Concentração em Teologia Bíblica.

Orientador: Prof. Dr. Irineu José Rabuske

Porto Alegre – RS Janeiro de 2005

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UMA PALAVRA

É um dos sinais dos tempos, pelos quais o Espírito nos interpela, a irrupção

das mulheres no campo da teologia. Estávamos presentes nas Escrituras, na história e

na Igreja, mas um pouco invisíveis. Mulheres, mais do que outros sujeitos religiosos,

creram e transmitiram a fé à posteridade, como Maria, Isabel, a samaritana e tantas

outras. Entretanto, sua experiência de Deus, seu modo próprio de articular fé e vida e

de testemunhar a esperança nos desafiam a buscar novos caminhos e novas leituras

dentro de nossa Igreja. Agora, na força do Espírito, emerge mais e mais um rosto

feminino da graça, do testemunho e da Igreja. Isso ajuda todos os fiéis, varões e

mulheres, a encontrar um Deus maior e a ter experiência mais globalizadora dos

mistérios cristãos.

A teologia só será plenamente “teo-logia”, se for feita por varões e mulheres,

pois é como mulheres e varões que somos imagens e semelhanças de Deus.

Uma palavra de agradecimento a muitas pessoas que me proporcionaram

oportunidades para continuar buscando:

Primeiramente a meus tios Doroti e Gilberto Sebastião Stringüini Lopes que

tão amavelmente me acolheram em seu lar, em Porto Alegre.

A minha família: Belmar e meus filhos, Lucas e Giuliana, que entenderam e

aceitaram minha ausência em suas vidas, nestes dois últimos anos.

Ao dedicado e paciente Prof. Dr. Irineu J. Rabuske, meu professor e

orientador de dissertação.

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Ao amigo Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann, com seu entusiasmo,

paciência e carinho em me ensinar a língua grega e traduzir o texto do encontro de

Jesus com a mulher samaritana.

Aos irmãos PP. João Baptista e Luiz Quaini, pelo carinho e especial ajuda nos

estudos de Teologia.

E, acima de tudo, gratidão e ternura a Deus, Pai e Mãe, por ter aberto uma

porta para sua filha que bate insistentemente. Que sua bondade me conduza e me

conceda persistência!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 7

1 QUESTÕES DE FUNDO HISTÓRICO SOBRE O TEXTO DE Jo 4,1-42..... 10

1.1 A Palestina sob o domínio dos Persas ........................................................ 11

1.2 O reino do Norte .......................................................................................... 13

1.3 A Samaria e os samaritanos ........................................................................ 17

1.4 Os judeus não se dão com os samaritanos ................................................. 20

2 A MULHER EM ISRAEL NO TEMPLO DE JESUS ...................................... 27

2.1 A mulher na época de Jesus ........................................................................ 27

2.2 A mulher e sua situação econômica ............................................................ 29

2.3 A mulher e a família .................................................................................... 30

2.4 O noivado ...................................................................................................... 32

2.4.1 O noivado e suas implicações jurídicas ................................................ 33

2.5 O Casamento ................................................................................................ 33

2.5.1 Os direitos jurídicos .............................................................................. 34

2.5.2 A poligamia era permitida aos varões .................................................. 35

2.5.3 Casos de divórcio .................................................................................. 36

2.5.4 Motivos de repúdio ................................................................................ 37

2.5 Os Direitos religiosos da mulher ................................................................. 39

3 ANÁLISE DO TEXTO Jo 4, 1-42 ....................................................................... 41

3.1 Tradução de Jo 4, 1-42 ................................................................................ 41

3.2 Delimitação do texto – Jo 4, 1-42 ................................................................ 42

3.3 Notas introdutórias ao texto – Jo 4, 1-42 ................................................... 44

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3.4 Contexto amplo de Jo 4, 1-42 ............................................................................ 47

4 EXEGESE DE JO 4, 1-42 ..................................................................................... 54

4.1 Na fonte de Jacó (4, 5-6) .............................................................................. 56

4.2 Diálogo de Jesus com a Samaritana (4, 7-15) ............................................ 59

4.3 Revelação do culto verdadeiro (4, 16-26) ................................................... 71

4.3.1 Reação e pergunta da mulher ............................................................... 76

4.4 O diálogo de Jesus com seus discípulos (4, 27-38) ..................................... 87

4.4.1 o diálogo missionário com os discípulos .............................................. 91

4.5 O êxito da Missão na Samaria (4, 39-42) ................................................... 98

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 107

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INTRODUÇÃO

A Igreja grega designa com razão João como o teólogo1, pois nenhum entre

os apóstolos falou com ele. João é também um espírito contemplativo e intuitivo,

como o revela a maneira inusitada de seus escritos e do seu estilo2. Com lógos

encarnado ele viveu, ele pôde vê-lo e tocá-lo (cf. 1Jo 1,1), ele foi testemunha de seus

milagres e de sua pregação. Durante muitos anos, ele buscou penetrar no mistério da

revelação de Deus em Cristo, e esta contemplação se expressa em escritos que são

testemunho imediato daquilo que para o evangelista é a mais alta realidade.

Toda a teologia joanina, tanto doutrinal como ética, se move em torno de

Deus e de Cristo, caminho único para o Pai.

É dentro do Evangelho de João que iremos trabalhar e escolhemos o texto de

Jo 4, 1-42. Mas, o que nos interessa diretamente é o diálogo de Jesus com a mulher

da Samaria. Privilegiaremos, por isso, os versículos 16, 17 e 18. Faremos uma leitura

dos três versículos na ótica da teologia humanocêntrica3, apresentando a mulher

1 HAAG, Herbert. Dizionario Bíblico. Torino: Società Editrice Internazionale, 1960, p. 446. Cf. BROWN, R. El evangelio segun Juan, Madrid: Ed. Cristiandad, 1979, p. 55. 2 O Quarto Evangelho é atribuído a João, mas sabemos que sua redação passou por quatro ou cinco etapas, mas todas dentro da mesma escola joânica. A primeira etapa terá sido o Documento C, pequeno Evangelho escrito em aramaico, contando a vida de Jesus depois de seu batismo até as aparições do Ressuscitado. Teria sido escrito por volta do ano 50. A segunda, por volta de 60 a 65, tem um outro redator, escrito na Palestina e terá junto esse documento ao já existente. Cerca do ano 95, o mesmo redator provavelmente em Éfeso, em confronto dos judeus cristãos com os judeus restantes, retocou profundamente seu primeiro trabalho. Finalmente, nos primeiros anos do século II, um último redator fez a fusão das três redações anteriores por ele conhecidas. Cf. MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo, p.54; LÉON-DIFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo

JoãoI, p.18. BROWN fala de uma quinta etapa a cargo de uma pessoa distinta do evangelista, um amigo íntimo ou discípulo dele. Cf. El Evangelio segun Juan, p.37, 113 ss

3 A expressão teologia humanocêntrica leva em conta os múltiplos aspectos, como o político, o social, o sexual, o cultural e o racial. Faz-se uso dessa expressão, também utilizada pela teóloga Ivone

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samaritana dentro de um contexto marcado pela exclusão em que está inserida. E isso,

para nós, mulheres ocidentais, ainda não é muito diferente, quando falamos de

exclusão. De nenhuma forma queremos tornar-se inoportunos, uma vez que nosso

desejo é apenas deixar registrado que nós, mulheres, ainda sofremos diversos tipos de

exclusão dentro da sociedade em que vivemos. Luise Schottroff afirma que “é

possível observar um paralelismo entre essa compreensão dominante na história”4 e a

que nós, mulheres ocidentais, vivemos hoje.

O que observamos neste diálogo entre Jesus e a mulher? Que novidades o

texto joanino nos apresenta? Como se relaciona Jesus com a mulher estrangeira? Que

significa este encontro para nós, mulheres, hoje? Qual a mensagem de Jesus nesta

passagem?

Foi escolhido este texto de João como objeto de estudo, porque, na nossa

opinião, demonstra a vontade deliberada de Jesus em restituir à mulher o seu vigor

original e colocá-la de pé e livre diante de Deus e diante dos homens. A Palavra de

Deus é também uma mensagem de libertação da mulher, no seu íntimo mais

profundo, sem a qual todas as outras libertações seriam vãs. É ainda, uma mensagem

reveladora da significação dos diversos aspectos da vida feminina, na sua densidade

concreta e cotidiana, e, conseqüentemente, do mistério feminino. É também, e de

modo especial, uma consagração da mulher ao serviço do Cristo e da Igreja. Esta

Palavra é viva e eficaz, hoje mais do que nunca, nas discussões e reivindicações, por

vezes violentas, neste terreno. Atinge-nos, não somente no nível intelectual, onde se

erguem, sem dúvida, questões capitais, mas, sobretudo, no nível vital, quase diria

visceral, onde as mulheres modernas, tanto as cristãs como as não-cristãs, procuram

razões para viver sua fé.

Parece-nos que se trata apenas de deixar-nos encontrar pela novidade que é

sempre a Palavra de Deus; acolher diretamente as questões que ela provoca e, de Gebara, por pensar ser esta a expressão mais completa para expressar-nos sobre relações de gênero onde estão contidos relacionamentos humanos Homem-Mulher. Fazer uso dessa expressão teologia humanocêntrica significa colocar o homem e a mulher como centro da história e assim permitir que um e outro exprimam sua maneira de captar, de compreender o mundo, os valores, a fé, a divindade a partir de seu Sitz im Leben a partir de sua própria realidade, de sua experiência. Em Jo 4, 1-42, como a samaritana se relacionou com Jesus? A partir de sua experiência de vida. 4 SCHOTTROFF, Luise. Mulheres no Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 12.

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modo particular, receber na fé, na humildade e, na ação de graças, as respostas que

traz a todos nós, hoje, mulheres e homens.

Assim sendo, este trabalho se justifica pelo mesmo motivo que levou a

mulher samaritana a conversar assuntos diversos e íntimos com um homem

desconhecido, a curiosidade. A nós coube a curiosidade científica, sem deixar de ser

feminina, ao fazer a leitura de Jô 4, 1-42. E essa mesma curiosidade acadêmica

levou-nos a buscar novas formas de leitura para um texto bastante meditado e

estudado e a se perguntar: teria Jesus alguma pedagogia especial para buscar aquela

mulher pagã, fazer-se conhecer e ser reconhecido por ela? E se o fez, como

aconteceu? Em que parte do diálogo Jesus teve palavras só para ela?

As respostas a esses questionamentos serão delineadas ao longo deste

trabalho que buscará, no primeiro capítulo, analisar o contexto histórico do povo de

Israel frisando o início do conflito entre os samaritanos e judeus, conflito que

implicará no diálogo de Jesus com a samaritana. No segundo capítulo, enfocaremos o

tratamento dado às mulheres no tempo de Jesus, destacando a mulher e a condição

econômica, ela frente à família, o noivado e o casamento, e os direitos religiosos da

mulher daquele tempo. E, no terceiro capítulo, concentraremos nossas atenções em

analisar o texto de Jo 4, 1-42, em que faremos a tradução, uma delimitação do texto,

apresentaremos notas introdutórias e faremos uma apresentação mais ampla do

contexto do texto. Por fim, no quarto e último capítulo, examinaremos versículo por

versículo, visando uma exegese mais aprofundada do texto, onde apresentaremos

estudos e comentários a partir do texto original em grego.

De antemão, alertamos ao leitor que este trabalho não pretende ser um fim em

si mesmo, mas o início para estudos futuros, bem como servir de subsídio a quem

pretender estudar esse assunto e entender que, no diálogo entre Jesus e a samaritana, é

possível perceber a sutileza de Jesus em dar-se a conhecer e assim tranqüilizar o

coração daquela mulher que se sentia perdida e excluída. Ao trabalho então!

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1 QUESTÕES DE FUNDO HISTÓRICO SOBRE O TEXTO DE JO 4, 1-42

Neste capítulo trataremos de reconhecer alguns pontos da história do povo de

Israel. Este estudo nos levará ao tempo do exílio babilônico. É neste tempo que

encontraremos elementos históricos que esclarecem as causas da desavença entre

samaritanos e judeus, o que trará dificuldades no diálogo entre Jesus e a mulher

samaritana. De imediato, nos vêm algumas perguntas, quando lemos o texto de João:

Por que os judeus ortodoxos não gostavam dos samaritanos, como

observamos no v. 9? Que fatos históricos ocasionaram a indisposição entre esses dois

povos vizinhos?

Por que os judeus adoravam Deus em Jerusalém e os samaritanos no Monte

Garizim? É um fato da história que até os dias de hoje os samaritanos adoram

Yahweh no monte Garizim.

Como Jesus, homem judeu, conversa com uma mulher de terra não amiga,

uma mulher livre diante de todos os preceitos judeus, que proibiam a um homem

conversar com uma mulher em lugar público? Como Jesus e a mulher rompem esse

costume?

Não queremos ser ingênuos diante de tal texto joanino a ponto de lê-lo

pensando que é só isso que o texto quer dizer para os dias de hoje. Jesus rompe com

os costumes e eleva a mulher à categoria daquela que o escuta, que acredita nele e

vai catequizar o seu povo. O texto aborda muitas questões, pertinentes também aos

dias de hoje, como a do estrangeiro, a da universalidade da Boa-Nova. Mas a questão

ao nosso ver mais importante é esta: no diálogo que Jesus tem com a mulher, qual a

novidade que ele oferece àquela mulher? Parece pouco, mas, sobretudo para nós,

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mulheres, é importante saber que Deus nos fala através de seu Filho Jesus

Cristo. E este é o maior de todos os rompimentos tanto naquele tempo como também

hoje. O Deus de Jesus não toma partido. Ele vem para todos, sem discriminação,

inclusive para a mulher samaritana. E essas pessoas podem transformar a sua vida,

depois do encontro com Jesus.

A primeira tarefa é tentar responder a essas perguntas, de cunho histórico-

político sobre o povo judeu, sem a pretensão de ser exaustiva e nem esgotar o

assunto. É preciso contextualizá-las dentro de um tempo determinado, o que trará

respostas aos nossos questionamentos. Por isso é necessário descrever a situação do

judaísmo, no tempo de Jesus, a partir do contexto histórico passado pelo qual foi

moldado.

1.1 PALESTINA SOB O DOMÍNIO DOS PERSAS

No ano de 587 a.C., a Judéia foi conquistada pelos babilônios e se iniciou o

que se denomina exílio babilônico. Sob o reinado de Nabucodonosor, rei da

Babilônia, foi destruído o muro que cercava Jerusalém, incendiados o templo, o

palácio real e todas as casas da cidade. Toda classe alta da população foi deportada

para a Babilônia, sendo deixados somente alguns pobres do país, como viticultores e

agricultores (cf. 2Rs 25, 1-21; Jr 39, 1-10).

Os judeus levados para a terra alheia da Babilônia podiam ficar juntos e conservar sua fé no Deus de Israel. Impedidos de continuar o culto do templo, permaneceram, porém, fiéis à lei do seu Deus. Observaram o mandamento do sábado e da circuncisão como sinais pelos quais Israel se tornava, continuamente, consciente da sua eleição entre todos os povos. Através dessa prática, criou-se o fundamento mental e espiritual para se poder recomeçar na terra dos antepassados, após o fim do domínio babilônico5.

5 LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 11-12.

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Em 539 a.C., acaba o domínio assírio-babilônico e começa a era do domínio

persa com a vitória do rei Ciro, que se tornou soberano também da Mesopotâmia,

Síria e Palestina. Contrariamente a seus antecessores, os assírios e os babilônios, os

persas não forçaram mudanças na população, nem exigiam o reconhecimento de uma

única religião para todos, “mas ligaram sua política à situação local. Admitiram a

conservação das peculiaridades étnicas e permitiram a continuação da vida

tradicional dos povos”6. Permitiram que os judeus continuassem a ser judeus em sua

terra, desta forma conquistando a simpatia do povo dominado. Consta que o rei Ciro

ordenou a reconstrução do templo, em Jerusalém, para servir de local onde se

ofereciam sacrifícios e a devolução dos instrumentos culturais que Nabucodonosor

havia trazido do templo de Jerusalém (cf. Esd 6, 3-5).

Com o edito de Ciro, em 539 a.C., soou a hora da liberdade, mas não houve

grande entusiasmo entre os judeus exilados, poucos deles se valendo da permissão de

voltar para a pátria. “Voltaram para a Palestina principalmente os sacerdotes, os

empregados do templo, o povo humilde das cidades e aldeias. Muitos se tinham

estabelecido em Babilônia e estavam em boa situação; a eles não interessava

abandonar as vantagens conquistadas”7. Foi durante o quinto século que “os judeus

fixados na Mesopotâmia deram forte impulso para o crescimento da comunidade

judaica em Jerusalém”8. Sob o reinado de Artaxerxes, rei da Pérsia, veio da

Babilônia, esdras, um escriba versado na lei de Moisés (cf. Ne 2, 1ss) e juntos

começam a pôr em ordem a situação. Neemias se preocupou com a construção de

uma muralha ao redor da cidade de Jerusalém e pediu aos judeus que não se

casassem com membros dos povos vizinhos estrangeiros. Enquanto isso, Esdras

ensinou a lei aos habitantes de Jerusalém, promulgando-a em nome do rei. Essa lei

compreendia os cinco livros de Moisés, o Pentateuco9, que reuniam as antigas

tradições de Israel. Essa obrigação de seguir a Lei fio ratificada através de um

6 Ibidem p.12. 7 PAUL, André. O Judaísmo tardio. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 104. 8 LOHSE, op.cit., p.12. 9 Lohse, em nota à p.13, observa que o autor usa na obra toda a indicação 1 Moisés, 2 Moisés, etc. para indicar os livros do Pentateuco, que estamos acostumados a chamar com os nomes de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

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decreto imperial. Com isso a Lei de Israel tornou-se o direito comum persa para

Jerusalém e a Judéia. Assim o culto judaico estava sob a proteção do governo persa.

1.2 O REINO DO NORTE

A questão da Samaria é um capítulo à parte porque, mesmo sendo judeus, os

samaritanos eram tratados como estrangeiros, não seguidores das leis e costumes

judaicos. Os judeus do Sul, que também foram exilados, voltam para sua terra,

resolvem construir uma muralha em volta de Jerusalém, proíbem casamento com

estrangeiros e vizinhos e dizem querer reconstruir o Templo em Jerusalém, lugar

onde se devia adorar Javé. Os habitantes da Samaria, assim como todo o norte, após a

conquista pelos assírios, em 721 a.C., foi colonizado por estrangeiros, provocando

uma mistura com o resto da população (cf. 2Rs 17, 24ss). Eles trouxeram suas

crenças e seus deuses. “Seus descendentes adoravam Javé como o Deus do país (...).

Porém não foram reconhecidos pelos judeus como verdadeiros israelitas”10. Essas

atitudes tomadas por Esdras e Neemias em favor do Reino do Sul causaram desgosto,

inveja e desconforto aos samaritanos, que se sentiam como verdadeiros judeus como

seus pais e que agora eram desprezados, separados do Reino do Sul.

Essa separação brusca e o grande favorecimento de Jerusalém pelo rei persa causaram entre os habitantes da Samaria um grande sentimento de amargura, que contribuiu para um crescente distanciamento entre norte e sul. Tal distanciamento acarretou finalmente, a separação política das províncias da Samaria e Judéia11.

Para o povo judeu, que morava em Jerusalém, o povo da Samaria já não era

mais judeu, havia-se misturado com estrangeiros e perdido toda a sua pureza de raça.

Mas os samaritanos não viam a situação assim. Para eles havia o mais importante,

que era o fato de eles adorarem ainda o Deus de seus pais, mas como entrar em

Jerusalém para adorar o Deus Javé que também era adorado por eles? Com isso deve

10 Ibidem, p.13. 11 Ibidem, p.13.

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ter surgido neles a vontade de construir “um santuário próprio” no qual teriam seu

lugar para adorar Javé. A questão é bastante complexa porque,

os samaritanos pertenceram também à comunidade cultural de Jerusalém, pois somente assim se explica que os samaritanos e os judeus considerem igualmente os cinco livros de Moisés como sagrada escritura, não, porém, as demais partes do cânon veterotestamentário, os escritos proféticos e poéticos12.

Entre samaritanos e judeus havia ainda mais coisas comuns, como escreve

Champlin: “a circuncisão, a adoração a Javé como já citamos e as esperanças

messiânicas”13. Seja como for, o fato é que eram uma raça mestiça, dotada de uma

cultura e de uma religião híbridas e isso era um fato real para os judeus.

Lohse escreve que “consequentemente, a separação entre judeus e samaritanos

aconteceu depois da conclusão do Pentateuco e antes da definição dos limites

canônicos das outras partes do Antigo Testamento”14.

A Samaria foi helenizada por Alexandra Magno. Durante sua estadia no Egito

(332-331 a.C.), os samaritanos assassinaram Andrômaco, seu comandante em

Celesíria. Ao voltar ao Egito, ele puniu os culpados e assentou colonos macedônios

na Samaria. Os efeitos dessa colonização não são muito seguros. O historiador Flávio

Josefo conta que os samaritanos ganharam o favor de Alexandre Magno e com o seu

consentimento o povo samaritano pôde edificar o seu templo no Monte Garizim15.

Outros autores, porém, são da opinião de que é mais provável que a construção do

santuário dos samaritanos seja anterior ao reinado do imperador macedônico16. Sob

os fundamentos do templo de Zeus Hypsistos se descobriram os que poderiam ser os

restos do pódio daquele templo. Ao mesmo tempo há indícios da reconstrução e da

12 Ibidem, p. 14. 13 CHAMPLIN, Russell Norman. O novo testamento interpretado versículo por versículo. V. II. São Paulo: Ed. Candeia, 1995, p.321. 14 LOHSE, op.cit., p.14. 15 FLÁVIO JOSEFO, citado por LOHSE, op.cit., p.14. 16 Cf. LOHSE, op.cit., p.14.

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reocupação de Siquém, desde começos do período helenístico até o século II a.C.

Flávio Josefo afirma que Siquém foi destruída no mesmo tempo que o templo do

Garizim17. Apesar disso, se mantiveram o culto samaritano e o apego à montanha. Há,

portanto, muitas incertezas acerca das relações entre as sucessivas cidades gregas de

Samaria e de Sebaste e sobre a população de seus arredores, sem trocar o problema de

se a zona formava uma unidade política e administrativa.

A Siquém também era uma importante fortaleza. Daí a razão de Ptolomeu

lago tê-la arrasado, no ano de 312 a.C., quando teve de entregar a Antígono a região

de Celesíria, que havia conquistado recentemente. Uns quinze anos mais tarde (em

torno de 296 a.C.), Siquém, que sem dúvida havia sido reconstruída, foi novamente

devastada por Demétrio Poliocetes em suas lutas contra Ptolomeu Lago. A partir de

então, cessam as cessam as notícias específicas sobre a história da cidade. Políbio

atesta que Antíoco, o Grande, ocupou o território da Samaria, durante sua primeira e

segunda conquistas da Palestina (218 e 220 a.C.), nas nada se diz sobre o destino da

cidade18.

É interessante o fato de que a região da Samaria, tanto sob os Ptolomeus

quanto sob os Selêucidas, tenha constituído, como Judéia (reino do Sul), uma

província à parte, dividida em vários distritos. Em fins do século II a.C., quando os

Selêucidas foram incapazes de conter o expansionismo judeu, a Samaria foi vítima da

política de conquista empreendida pelos judeus. E, sob João Hircano (cerca do ano

107 a.C.), Siquém foi conquistada por seus filhos Antígono e Aristíbulo, depois de

um ano de assédio e totalmente devastada.

Alexandre Janeo ocupou a cidade em ruínas. Foi cortada dos domínios judeus

por Pompeu e nunca mais voltou a unir-se organicamente a eles. Augusto entregou a

cidade a Herodes. Não recuperaria nunca mais sua superioridade. Anteriormente

Siquém havia sido uma cidade pequena, porém relativamente forte; agora, sob

Herodes, foi consideravelmente ampliada, até o ponto de, com m perímetro de vinte

estádios, não ser inferior às mais importantes cidades. Herodes assentou nela seis mil

17 FLÁVIO JOSEFO, citado por LOHSE, op.cit., p.14. 18 POLÍBIO, citado por Emil SCHÜRER. Historia del pueblo judio em tiempos de Jesus II

Instituiciones políticas y religiosas. Madrid: Ed. Cristiandad, 1985, p. 222.

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colonos, alguns deles soldados licenciados, e gente dos arredores. Os agricultores

receberam excelentes lotes de terra. Além disso, as fortificações foram renovadas e

ampliadas. Finalmente, com a ereção de um templo a Augusto e outras magníficas

construções, a cidade alcançou os esplendores da cultura moderna de então. Herodes

deu à cidade restaurada o nome de Sebaste, em honra ao imperador que havia

assumido recentemente o título de Augusto19. Foram cunhadas moedas com uma

legenda especial e se inicia uma era especial, provavelmente no ano 25 a.C. A cidade

é mencionada também na literatura rabínica sob seu novo nome de Sebaste.

No tempo de Pilatos se produziu um certo mal-estar entre os samaritanos;

naquela oportunidade se menciona um “conselho dos samaritanos”, o que indica que

o território constava com uma organização política unitária20. No exército de Herodes

havia soldados de Sebaste que apoiariam os romanos contra os judeus, nos conflitos

desencadeados em Jerusalém depois da morte de Herodes. Na divisão subseqüente da

Palestina, Sebaste, junto com a região da Samaria,, correspondeu a Arquelau e, depois

do desterro deste, aos prefeitos romanos, logo a Agripa I durante algum tempo e de

novo aos procuradores. Durante este último período, as tropas procedentes de

Sebaste foram um importante elemento das guarnições romanas estacionadas na

Palestina. Ao estourar a revolução, Sebaste foi atacada pelos judeus. Com sua

população predominantemente pagã, não há dúvida de que a cidade permaneceu do

lado dos romanos, como fizera já por ocasião das perturbações que se produziram na

morte de Herodes. Os samaritanos, por seu lado, instalados nas imediações de

Siquém, adotaram uma atitude muito distinta. Reunidas no Monte Garizim,

planejaram sublevar-se, mas foram exterminados por um destacamento enviado por

Vespasiano.

Sob Septímio Severo, Sebaste se converteu em colônia romana. A partir de

então sua importância foi diminuindo ante a crescente prosperidade de Neápolis.

Eusébio se refere a ela simplesmente como “uma pequena cidade”21.

19 FLAVIO JOSEFO, citado por SCHÜRER, op. cit., p.223. 20 Idem, p. 224. 21 EUSÉBIO, citado por SCHÜRER, op. cit., p.225.

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Embora o templo do Monte Garizim tenha destruído por João Hircano,

no ano de 128 a.C., e nunca mais tenha havido tentativa de reconstruí-lo, os

samaritanos permaneceram fiéis ao seu lugar santo. Ainda hoje, a comunidade

samaritana celebra anualmente, nesse lugar, a festa da páscoa, segundo o costume

antigo, conservado por eles”22.

Nesse sentido, já é possível perceber que no diálogo entre Jesus e a mulher

samaritana, o problema que os separava era muito mais profundo que uma questão de

encontro de um homem judeu com uma mulher samaritana. Era uma questão de

antepassados, de desavenças, de guerras e separações. Para os judeus

aquela terra, a terra dos samaritanos, era terra de povos separados. E Jesus, como se

apresentava ele diante de toda essa controvérsia com os samaritanos?

1.3 A SAMARIA E OS SAMARITANOS

O Novo Testamento não nos dá uma indicação precisa sobre o que pensava

Jesus a respeito dos samaritanos. Vejamos apenas algumas passagens: Segundo Mt

10, 5-6, Jesus ordenou a seus discípulos: “Não torneis o caminho dos gentios, nem

entreis em cidade de samaritanos. Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de

Israel”. A mensagem de Jesus seria dirigida aos judeus?

Não haveria nenhuma universalidade em sua Boa-Nova? Sabemos que, antes

da Páscoa, a pregação de Jesus estava restrita aos judeus e somente Jesus

ressuscitado dá o mandato de pregar aos pagãos. Marcos, em seu evangelho, nos diz

que Jesus deu a ordem de ir por todo o mundo e anunciar o Evangelho e que aquele

que acreditasse seria salvo (cf. Mc 16, 15-16). Já o evangelista Lucas escreve que

Jesus, após tomar a decisão de se encaminhar para Jerusalém, enviou mensageiros à

sua frente, Estes, então, cumpriram a ordem do Senhor e entraram num povoado de

samaritanos, a fim de preparar-lhe tudo. E sucede que não o receberam, pois

caminhavam para Jerusalém. Como reação, os discípulos Tiago e João indignados

perguntaram ao Senhor se podiam ordenar que descesse fogo do céu para exterminá-

22 Cf. LOHSE, op. cit., p.14

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los. Jesus, porém, os repreendeu severamente (cf. Lc 9, 51-56). No entanto, se

constata, principalmente em Lucas, que os samaritanos são louvados, como por

exemplo, na parábola do bom samaritano, e no relato dos dez leprosos, em que

somente um samaritano se mostra grato23. Em geral, os sinóticos nada dizem de uma

permanência prolongada de Jesus na Samaria e muito menos de sua missão nesta

região.

E os Atos dos Apóstolos, nos informam que, devido a uma grande perseguição contra a comunidade de Jerusalém, houve uma grande dispersão em que todas, com exceção dos apóstolos, se refugiaram nas regiões da Judéia e da Samaria, onde começaram a desenvolver uma atividade missionária24.

De fato, houve grande êxito na missão de Filipe na Samaria, tanto que Pedro e

João foram até a Samaria para que o seu trabalho missionário fosse abençoado (At 8,

4-25). É da Samaria, porém, que vem o mago Simão que, “segundo os Padres da

Igreja, é tido como o primeiro herege e o primeiro ‘gnóstico cristão’”, como escreve

Blank25.

O episódio do encontro de Jesus com a samaritana deve ser considerado sobre

esse pano de fundo histórico para ser entendido. Há, porém, dúvidas quanto à

historicidade do fato, na forma em que nos foi transmitido. “Mesmo que quiséssemos

admitir uma tradição particular como núcleo histórico, não resta dúvida de que a

primazia corresponde à formulação teológico-tradicional do evangelista”26.

E, para finalizar, formulamos a pergunta: O grupo joanino teria ou não

interesse especial na primitiva missão cristã na Samaria? Para nós, hoje, nos resta

pensar que a resposta seria positiva. Importa ver que o texto quer mostrar que o novo

culto cristão veio, como culto, substituir tanto o culto de Jerusalém como o do monte

23 Cf. BLANK, Josef. O evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 301. 24 Ibidem, p. 301. 25 Ibidem, p. 302. 26 Ibidem, p. 302.

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Garizim. O evangelista teria bons motivos para colocar essa questão teológica entre

Jesus e a mulher samaritana, esta como representante do povo, considerado pagão.

A comunidade é formada por discípulos de João Batista (Jo 1,35s),

samaritanos (Jo 4,1-42), gregos-helenistas (Jo 7,35; 12, 12), pelos pobres e excluídos,

pelos judeus expulsos da sinagoga (Jo 9) e pelas mulheres. Esta comunidade sofre

dois momentos fortes de desagregação. O primeiro aconteceu com a expulsão da

sinagoga, que pode ser comparada a um novo cativeiro. Para isso basta comparar o

que consta em Is 40-55 e o que escreve Jo 9. E a segunda desagregação foi a ruptura

interna em conseqüência do escândalo diante da cristologia da encarnação (cf. Jo

6,66)”27. Ao comentar essa situação, Konings escreve o seguinte:

As comunidades joaninas estavam sofrendo a exclusão por parte do judaísmo de Jâmnia. Tal exclusão tinha conseqüências enormes, mais ou menos como a excomunhão na cristandade medieval. Para entender bem o peso da exclusão na sociedade judaica devemos imaginar a forte coerência e solicitude comunitária que existia quer no clã, quer na irmandade religiosa. Hoje em dia, coisa semelhante encontra-se ainda entre os árabes, os palestinos, os povos islâmicos, menos influenciados pelo individualismo que marcou os povos ocidentais. Pertencer ao grupo era questão de vida ou morte. O excluído tornava-se um pária, uma pessoa sem referência social, sem proteção e sem lastro econômico. Para os pobres, a excomunhão significava mendicância: para os ricos, a perda de prestígio e de suas relações sociais28.

Weiler escreve que a comunidade joanina “é uma comunidade de periferia: Jo

9 e a presença significativa dos samaritanos: Jo 4. Estes dois textos de Jo 4 e Jo 9 têm

algo em comum: tanto a samaritana quanto o ego anunciam Jesus como Profeta e

Messias”29. Não terá sido a presença dos samaritanos uma das causas da expulsão da

27 Cf. WEILER, L. Jesus e a samaritana. Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/Ribla, n. 14. Petrópolis: Vozes/São Leopoldo: Sinodal, 1993, p. 100. 28 KONINGS, Johan. Evangelho segundo João – Amor e fidelidade. Comentário bíblico. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 42. Comentando essa perda de honra, Konings observa que os judeus notáveis, as autoridades, davam mais valor ao seu prestígio junto aos homens que à glória que Deus destina a quem acredita em Jesus, p. 282. 29 Cf. WEILER, L. op.cit., p.100.

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comunidade joanina da sinagoga? A confirmação desta hipótese torna mais agudo o

conflito cultural-religioso da época30.

É uma comunidade de resistência, minoritária e perseguida. Daí por que seu

líder principal é uma figura anônima conhecida apenas por Discípulo Amado. Com

esse elemento importante da comunidade joanina esclarecem-se também a presença e

a liderança positiva da mulher que, em toda tradição bíblica e ainda hoje, aparece

como um símbolo de resistência.

O Evangelho, como Boa-Nova, foi escrito pela comunidade joanina como

uma forma de resistência coletiva contra as perseguições vindas de fora; por outro

lado, o escrito traduz uma mística de animação e confirmação da comunidade em

tempo de desagregação interna. Se objetivo principal é narrar alguns sinais de Jesus

(semeion) e não milagres (dynameis) como os sinóticos. Estes sinais são narrados

porque se tornaram significativos para a história da comunidade e têm a finalidade de

levar a uma integração entre fé e vida. “Estes sinais foram escritos para que creiais

que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo tenhais a vida em seu nome”

(Jo 20, 31)31.

1.4 OS JUDEUS NÃO SE DÃO COM OS SAMARITANOS

Aqui, contemplaremos mais de perto o que são os samaritanos, esse povo

excluído dos círculos judaicos. Por que a exclusão? Como eram os samaritanos do

século I de nossa era na concepção judaica? Uma outra pergunta se faz necessária,

que é da impureza dos samaritanos, pois eles eram considerados assim desde o

berço pelos judeus. Como Jesus, sabendo dessas questões, pede água para a mulher

samaritana, conversa com ela e em lugar público?

O historiador J. Jeremias escreve que,

30 Ibidem, p.100. 31 Ibidem, p.100-101.

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desde o momento em que os samaritanos se separaram da comunidade judaica e construíram seu templo sobre o Garizim (no mais tardar ao longo do século IV antes de nossa era), sérias tensões surgiram entre judeus e samaritanos32.

Do começo do século II antes de nossa era, temos o testemunho das palavras

cheias de ódio de Eclo 50,25-26: “Há duas nações que minha alma detesta e uma

terceira que nem sequer é nação [cf. Dt 32,21]: os habitantes da montanha de Seir, os

filisteus e o povo estúpido [cf. Dt 32,31] que mora em Siquém”33.

No período anterior a 150 a.C., Josefo nos dá notícias de que houve uma

disputa religiosa entre os judeus do Egito e os samaritanos, apresentada a Ptolomeu

Filometor (181-145 a.C.). Tratava-se da rivalidade entre os dois santuários de

Jerusalém e do Garizim34. No governo do asmoneu João Hircano (134-104 a.C.)

aconteceu o pico das discórdias entre esses dois povos porque Hircano se apossou de

Siquém e destruiu o templo dos samaritanos. Porém, em fins do século I antes de

nossa era, Herodes desposou uma samaritana, tentando assim desfazer a animosidade

existente entre as duas comunidades35. Em favor dessa hipótese há “o fato de os

samaritanos no reino de Herodes terem tido acesso ao átrio interior do Templo de

Jerusalém”36.

Parece que perderam esse direito com a morte de Herodes. Enquanto Herodes

reinou, perdurou essa “quase” trégua que durou aproximadamente doze anos.

Constata-se que sob a batuta do procurador Copônio (6-9 d.C.), a guerra continuava

entre judeus e samaritanos. Alguns samaritanos, durante as festas da Páscoa,

resolveram espalhar ossos humanos nos pórticos do Templo e no Santuário,

tornando-o assim impuro. Esse ato de vingança foi tão agressivo para o povo judeu

32 JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. Pesquisa de história econômino-social no período noetestamentário. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 465. 33 Ibidem, p.465. 34 Ibidem, p.465. 35 Ibidem, p.465. 36 Cf. Ibidem, p.465.

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que o historiador “Josefo, num gesto significativo, preferiu calar-se. Esta grave

profanação do Templo, que acarretou uma interrupção da festa da Páscoa, proveu de

um novo combustível o velho rancor”, escreve Jeremias. E podemos comprovar isso

nos dados do Novo Testamento, no desprezo com que Josefo fala dos samaritanos e

na severidade com que o antigo direito rabínico os trata. E isso se tornava mais

ostensivo, quando os judeus da Galiléia passavam pela Samaria para irem para as

festas religiosas em Jerusalém. Esse hábito de passarem por terras samaritanas

ocorria já no I século de nossa era e sempre ocorriam graves incidentes (cf. Lc 9,53;

Jo 4)37.

No século II de nossa era, as relações entre samaritanos e judeus melhoraram.

Conforme nos mostra a “Mishna na regulamentação das relações com os

samaritanos, esse povo foi julgado de modo mais tolerante do que no século I”38.

Essa relação, porém, teve outras rupturas, tanto que, no ano 300, a ruptura foi

completa e daí os samaritanos passaram a ser considerados como verdadeiros pagãos.

O relacionamento dos samaritanos com os judeus tornou-se tão extremado que,

os samaritanos, convertendo-se ao judaísmo, deviam submeter-se a nova circuncisão; os samaritanos responderam a essa determinação, tomando medida semelhante. Mais tarde o judaísmo proibiu totalmente a conversão de samaritanos39.

Voltamos ao primeiro século de nossa era, quando Jesus andava pelas terras

dos samaritanos. O evangelista Lucas narra o episódio em que os samaritanos não

recebem a Jesus. Sucedeu que Jesus devia ir para Jerusalém e para isso era necessário

enviar mensageiros á sua frente a fim de preparar-lhe pousada. Mas para isso deviam

atravessar um povoado dos samaritanos. E eles não foram bem recebidos neste

povoado. Indignados diante dessa atitude, Tiago e João estavam decididamente

dispostos a fazer com que descesse fogo do céu e os exterminasse. Jesus, porém, não

37 Cf. Ibidem, p. 466. 38 Ibidem, p. 466. 39 Ibidem, p. 466-467.

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concordou com isso e até os censurou dizendo-lhes que Ele não viera para perder,

mas para salvar as pessoas. E continuaram a vigor para outro povoado (cf. Lc 9,51-

56). E até lhe negaram água para beber (cf. Jo 4,9). Estes fatos revelam a ira dos

samaritanos contra os judeus. O fato da destruição do santuário de Garizim reanimava

o ódio constante entre essa população mesclada.

Concluímos que houve mudanças freqüentes nas relações entre o povo

samaritano e o povo judeu. Ora, como na época de Herodes, pareciam amenizar-se as

relações; ora a ruptura parecia completa. Para nós é importante saber como estavam

os samaritanos e os judeus na época de Jesus.

Além dos dados do Novo Testamento e de Josefo, são especialmente os comentários de R. Eliezer (cerca de 90 d.C.) que nos ajudam a esclarecer os fatos, pois, a respeito dos samaritanos, (...) ele defende energicamente a antiga tradição (...) Os samaritanos davam grande importância – como hoje ainda – ao fato de descenderem de patriarcas judeus40.

Essa descendência, porém, lhe era negada. Eram chamados pelos judeus de

“cutianos”, que eram uma das tribos instaladas como colonos na Samaria pelos

assírios, no século VIII antes de nossa era. Josefo explica que sua pátria é o país dos

medos e dos persas (Ant. XII 5,5, 257; cf. Ant. IX 14,3, 288). Eles foram

transplantados do país de Cutá, na Pérsia, para a Samaria41.

Chamar os samaritanos de cutianos era um costume predominante no século I

de nossa era, negando qualquer parentesco com os judeus. Embora fossem

desprezados pelos judeus, os samaritanos tinham em comum com os judeus o

conhecimento da lei mosaica e observavam suas prescrições com o mesmo zelo

meticuloso dos judeus. Isso, porém, em nada mudava a concepção que os judeus

tinham do povo samaritano, pois “eram suspeitos de culto idólatra por causa da

veneração no Garizim como montanha sagrada”42. Na questão entre samaritanos e

judeus o que mais os separava nas origens, na mistura de raças que houve com

40 Citado por JEREMIAS, op. cit., pp. 467-468. Ainda sobre esse tema SCHÜRER, op.cit., p. 220; COENEN, Lothar e BROWN, Colin. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 2233s. 41 Citado por JEREMIAS, op.cit., p. 468. 42 Ibidem, p. 468.

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o povo samaritano do que a questão posterior sobre a construção do santuário e a

adoração de Javé no monte Garizim. J. Jeremias, citando Schlatter, diz que “Não

houve, por exemplo, qualquer ruptura com a comunidade judaica do Egito, apesar da

existência do templo de Leontópolis, por não existirem lá impedimentos análogos”43.

Como conseqüência dessa separação, sabemos que os samaritanos do século I

de nossa era eram considerados como pagãos. “O acesso aos átrios interiores do

Templo, desde o ano 5 a.C., era-lhes proibido”44. Esse impedimento é muito antigo.

A Mishna proíbe aceitar dos samaritanos o imposto do Templo, sacrifício pelo pecado ou de reparação, assim como sacrifício de aves (para a purificação depois do parto e por ocasião da impureza mensal), e só permite aceitar ofertas por ocasião dos votos e dons voluntários que também eram aceitos dos pagãos45.

De fato, os samaritanos se assemelham aos pagãos para os judeus, tanto que

os tratavam como tais. Para R. Yuda bem Elai (cerca de 150 a.C., representante da

antiga tradição relativa aos samaritanos),

um samaritano não deve circuncidar um judeu, pois dirigiria sua intenção para a montanha do Garizim. Dentro da mesma linha encontramos a proibição de R. Eliezer aos samaritanos (cerca de 90 d. C.,) de comer pães sem fermento, feitos por um samaritano, na Páscoa, ‘porque os samaritanos não estão a par das precisões dos mandamentos’, e a de comer um animal morto por um samaritano, ‘porque a intenção do samaritano [durante o sangramento] está geralmente voltado para o culto dos ídolos’

46.

43 Ibidem, p. 468. 44 Ibidem, p. 469. 45 Ibidem, p. 469. 46 Ibidem, p. 469.

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Façamos, agora, uma pergunta bem feminina: Como seria o casamento se um

samaritano quisesse unir-se como uma judia? Neste ponto os judeus eram inflexíveis,

responde Jeremias.

Segundo uma informação tardia, mas merecedora de fé, nas últimas décadas antes da ruína do Templo foi posta em vigor uma importante determinação segundo a qual os samaritanos eram considerados ‘desde o berço’ (portanto, sempre) impuros em mais alto grau e portadores de impurezas47.

Entramos aqui numa questão que é de extrema importância para o povo judeu,

o ponto nevrálgico da pureza e impureza. O que os judeus consideravam puro e o que

para eles era impuro? Com certeza tratava-se de uma questão muito delicada para os

judeus, que consideravam as mulheres samaritanas “menstruadas desde o berço” e

seus maridos como perpetuamente maculados pelas menstruadas (cf. Lv 15,24). Por

causa desta disposição, qualquer lugar onde tivesse sentado ou repousado um

samaritano era considerado leviticamente impuro. A impureza se comunicava aos

alimentos e bebidas que tocassem esse local. Portanto, aquele que, durante uma

viagem através do território samaritano, deles aceitasse alimento ou bebida, nunca

poderia vir a saber se eles estariam ou não impuros. Além do mais, por sua causa

dessa disposição, o escarro dos samaritanos era tido como impuro; se, pois, houvesse

na cidade uma única samaritana, todos os escarros eram considerados impuros. Pela

razão indicada acima, uma disposição análoga transmitida pela Mishna pertence,

seguramente, ao século I: desconfiava-se de que os samaritanos se descartavam do

feto em caso de aborto nas “casas impuras”. Assim sendo, esses lugares enodoavam

com impureza de cadáver aquele que neles entrasse (Nidda. VII 4). Podemos

compreender o rigor ferino dessas disposições, lembrando-nos de que, se os

samaritanos, até o ano 8 d. C. mais ou menos, tinham acesso aos átrios internos do

Templo, não existia até essa data nenhuma razão levítica para a sua exclusão daquele

santuário48.

47 Ibidem, p. 470. 48

Ibidem, p. 470-471, nota 43.

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As relações, portanto, dos judeus com os samaritanos eram muito difíceis, tão

difíceis quanto as relações com os pagãos. Formavam um povo merecedor só de

desprezo, sendo muito apropriada a afirmação de João, em seu evangelho, de que “os

judeus não se dão com os samaritanos” (Jo 4,9). À luz dessa situação se pode, de

passagem, apreciar quão duras terão sido as palavras de Jesus aos seus ouvintes

quando apresentou um samaritano como modelo da gratidão, no episódio da cura dos

leprosos (cf. Lc 17, 17-19) e do amor ao próximo o socorro prestado pelo bom

samaritano (cf. Lc 10, 30-37).

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2 A MULHER ISRAELITA NO TEMPO DE JESUS

Para compreendermos o alcance do tratamento dado a Jesus pelas mulheres

que moram em Israel, precisamos fazer um estudo sobre como viviam essas

mulheres, a que leis estavam subordinadas, que tarefas realizavam, qual era o seu

cotidiano.

Para entendermos todo e qualquer acontecimento histórico temos que

remeter-nos para a época em que viviam essas mulheres que moravam em Israel.

A mulher que iremos apresentar, neste trabalho, é a mulher de todos os

tempos, porém ligada a costumes, a leis e preconceitos, mulher ora subordinada, ora

parecendo querer romper o casulo. É a mulher de Israel que apresentaremos aqui,

nos bastidores da vida, mas querendo o seu lugar no protagonismo da história.

2.1 A MULHER NA ÉPOCA DE JESUS

A família israelita antiga é de tipo patriarcal. Aí quase tudo se compreende a

partir do pai. Na genealogia de Jesus (cf. Mt 1, 1-17) só excepcionalmente aparece a

mulher. O pai goza de total autoridade sobre a “casa”, entendendo a comunidade de

sangue e de habitação, sobre todas as pessoas ligadas à família e sobre todos os

irmãos. O marido é o senhor da mulher. “No Oriente, a mulher não participa da vida

pública; o mesmo acontecia no judaísmo do tempo de Jesus, pelo menos entre as

famílias judaicas fiéis à Lei”, escreve Jeremias49. O seu tempo maior era gasto em

49

Ibidem, p. 473.

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casa com a família e quando saía à rua trazia o rosto encoberto por um manto. O seu

rosto era tão encoberto que não se reconhecia uma mulher na rua. Conta-nos

Jeremias que um “sumo sacerdote de Jerusalém não reconheceu a própria mãe,

quando lhe aplicou a sentença prescrita para a mulher acusada de adultério”50. Esse

costume da mulher encobrir os cabelos era tão acentuado que, se ela saísse para a rua

sem o véu, o marido tinha o direito de despedi-la sem ser obrigado a pagar a quantia.

A figura masculina representa todo tipo de poder na vida da mulher israelita.

Ele podia representar o poder de protegê-la como o poder de morte, caso surpreendida

em adultério, como mencionamos acima.

Na antiguidade israelita, impunha-se ao go’el (redentor) resgatar o parente que se tivesse, vendido como escravo e também como patrimônio que corresse o risco de sair do clã e de assegurar a vingança do sangue51.

Flávio Josefo escreve, em seu livro Contra Apião que,

A mulher, diz a Lei, é inferior ao homem em todas as coisas. “Ela deve obedecer não para se humilhar mas, para ser dirigida, pois foi ao homem que Deus deu o poder” (2,24). “Mulheres, escravos (pagãos), crianças” são quase sempre associados nas citações. Recomendavam-se aos homens a seguinte prece: “Louvado seja Deus que não me criou mulher”52.

A mulher que vivia em Israel em nada participava da vida pública. A

começar pelo fato de os homens serem proibidos de encontrar-se sozinhos com uma

mulher, olhar para uma mulher casada e nem mesmo cumprimentá-la. Era preferível

que a mulher não saísse de casa, especialmente se a moça fosse solteira.

50 Ibidem, p. 474. 51 MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 56. 52 FLAVIO JOSEFO, citado por MORIN, É., op. cit., p. 56.

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Eis o que diz Fílon, citado por Jeremias: “Negócios, conselhos, tribunais,

procissões festivas, reuniões de muitos homens, em suma, toda a vida pública com

suas discussões e assuntos, em tempo de paz ou de guerra, é feita para homens”. E as

mulheres de Alexandria, escreve o mesmo Filon, “são mantidas em reclusão: Não

passam além da porta do pátio. Quanto às moças, ficam confinadas nos quartos das

mulheres e, por pudor, evitam o olhar dos homens, mesmo de parentes próximos”53.

Sob o aspecto religioso a mulher também não tinha nenhum prestígio. Estava

sujeita a todas as proibições da lei, a todo o rigor da legislação civil e penal e mesmo

à pena de morte. Para os homens havia a obrigação de observar os mandamentos,

como, por exemplo, a peregrinação a Jerusalém. As mulheres eram dispensadas

destas leis religiosas. Também estavam dispensadas de aprender a lei: “Aquele que

ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão”54.

Alguns mestres preferiam queimar a Torá a ensinar às mulheres. As escolas de

aprendizagem da Torá lhes eram negadas. Só as jovens de classe social mais

privilegiada podiam estudar a língua grega. No templo elas tinham um lugar

reservado, separado dos homens. E elas também eram excluídas “nos dias de sua

purificação”; quando davam à luz a um filho eram consideradas impuras, levando

quarenta dias para a sua purificação quando nascia um filho homem e oitenta, se era

uma filha mulher.

2.2 A MULHER E SUA SITUAÇÃO ECONÔMICA

A condição econômica é um dos fatores que influenciam fortemente o

cotidiano da mulher que mora em Israel e que está entrelaçada com o costume local.

As mulheres dos meios populares não podiam levar uma vida totalmente retirada

como as da alta classe, rodeadas de domésticos. “Em muitos casos, por exemplo, a

53 FÍLON, citado por JEREMIAS, J. op.cit., p. 475. 54 MORIN, É. op.cit., p.56.

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mulher precisava ajudar o marido em sua profissão, talvez mesmo como

comerciante”55.

No campo, a mulher é mais livre dos costumes vigentes na cidade. Ela pode ir

à fonte sozinha, dedica-se com o marido e os filhos ao trabalho agrícola, vende

azeitonas à porta, serve a mesa.

Nada indica que as mulheres observassem de modo tão estrito no campo,

como na cidade, o hábito de cobrir a cabeça; pelo contrário, existia, sem dúvida, nesse

sentido, entre a cidade e o campo, uma diferença semelhante àquela que vemos na

população árabe da Palestina atual56.

2.3 A MULHER E A FAMÍLIA

A mulher, no tempo de Jesus, não participava da vida pública. Em casa, o seu

lugar vinha após o dos filhos varões e sua formação limitava-se ao aprendizado dos

trabalhos domésticos, costura e fiação e, especialmente, tomava conta dos irmãos e

também irmãs menores. Porém, numa tarefa, iguala-se aos irmãos: ambos tinham o

dever de cuidar do pai, quando ficasse idoso, de alimentá-lo e dar-lhe de beber, vesti-

lo e cobri-lo, lavar-lhe o rosto, as mãos, os pés. E mais uma vez a mulher ficava para

trás; diante do ponto de vista de sucessão, por exemplo, os filhos homens e seus

descendentes passavam à frente.

J. Jeremias, em nota de rodapé, dá a seguinte explicação para essa sucessão

diante do uso dos bens da família:

Se houvesse filhos, eles eram os únicos herdeiros. Cabia-lhes unicamente a obrigação de sustentar, com a herança paterna, até o

55 JEREMIAS, J. op. cit., p. 477. 56 Ibidem, p. 477.

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casamento, suas irmãs solteiras, e pagar-lhes um dote. Esse direito das irmãs era prioritário; por isso dizia-se que, se os bens são escassos, as moças devem ser sustentadas ainda que os filhos sejam obrigados a mendigar nas ruas57.

As filhas mulheres em Israel ficavam sob o poder paterno, até se casarem, e

dele dependiam totalmente. Toda a renda de seu trabalho pertence ao pai. Em outra

nota Jeremias escreve o seguinte: “É também ao pai que pertence o dinheiro de

punição, de humilhação, de degradação e de indenização por ter violado a filha”58.

E sobre esse assunto vejamos o que diz a Torá:

Se um homem encontra uma jovem virgem que não está prometida, e a agarra e se deita com ela e é pego em flagrante, o homem que se deitou com ela dará ao pai da jovem cinqüenta ciclos de prata, e ela ficará sendo a sua mulher, uma vez que abusou dela. Ele não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida (Dt 22, 28-29).

Com menos de doze anos, o pai em qualquer assunto legal: A aceitação ou

recusa de um pedido de casamento pertence exclusivamente ao poder paterno ou ao

de um representante seu.

Até ter a idade de doze anos e meio, uma jovem em Israel não tem direito de

recusar o casamento decidido pelo seu pai. Mais ainda: “O pai tinha o direito de

vender sua filha como escrava (...), mas somente até os doze anos”59. Os pais

chegavam a considerá-la como “fonte de renda”, diz o autor citado; “alguns casam a

filha e contraem grandes dívidas; outros a casam e recebem dinheiro por ela”60.

57 Ibidem, p. 478, nota 39. 58 Ibidem, p. 478. 59 Ibidem, p. 479. 60 Ibidem, p. 480.

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2.4 O NOIVADO

O noivado realizado na idade precoce de doze anos e meio, e noivados e

casamentos ainda mais precoces são comprovados. Na nota 54, Jeremias diz que

enquanto viveu, Agripa I fez duas filhas ficarem noivas: Mariana (nascida em 34-35)

e Drusila (nascida em 38-39). Mariana tinha no máximo 10 anos por ocasião de seu

noivado e Drusila, no máximo seis.

Esse noivado, que aconteceu precocemente, era realizado freqüentemente

entre parentes e isso não só no meio de notáveis onde o conhecimento das jovens

tornava-se difícil pelo fato de viverem muito à parte, excluídas do mundo. Jeremias

cita um fato em que “um pai e uma mãe discutiram acerbamente porque cada um

queria casar a filha com um rapaz de sua própria parentela”61. A idade normal para o

noivado era entre doze e doze anos e meio. Outra curiosidade a respeito do noivado é

que,s e por acaso na família só houvesse filhas mulheres, não havendo herdeiros

homens, estas eram conduzidas a contraírem o noivado com alguém de sua parentela.

A própria Torá ordenava que se casassem com parentes, na falta de herdeiros (cf. Nm

36, 1-12). No caso das classes mais abastadas, como os sacerdotes, esses tinham o

costume de escolher suas esposas nas famílias sacerdotais. O livro de Tobias (cf. 6,

10-13; 7, 11-12) mostra-nos um caso em que tal prescrição foi aplicada.

O pai da noiva exercia todo o seu poder sobre as filhas menores até se

casarem. A filha maior (acima de doze anos e meio) é autônoma: seu noivado pode

ser decidido sem o consentimento paterno. Entretanto, mesmo que a filha seja maior,

o pagamento do dote deverá ser efetuado ao pai da noiva. Evidentemente que todo

esse autoritarismo tão dilatado do pai leva-o naturalmente a considerar as filhas,

sobretudo as menores, como aptas ao trabalho e fonte de renda. Com o casamento os

pais faziam bons negócios com os noivos e recebiam grandes somas em dinheiro com

a venda de sua amada filha.

61 Ibidem, p. 480.

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2.4.1 O noivado e suas implicações jurídicas

Um contrato de casamento sempre precedia um pedido de casamento.

Vejamos o que diz Jeremias em nota 73:

A importância fundamental do contrato de casamento consistia na regulamentação das relações jurídicas entre cônjuges para as questões financeiras. Suas principais disposições eram: a) Determinação do que o pai da noiva devia pagar: bens parafernais (bens de usufruto, isto é, bens cuja propriedade ficava para a mulher e cujo marido tinha o usufruto), o dote (bens em moeda, quer dizer, bens que se tornavam propriedade do marido, mas cujo equivalente devia ser garantido à mulher no caso de rompimento do casamento). b) Estabelecimento do contrato do casamento, isto é, da quantia devolvida à mulher em caso de separação ou morte do marido62.

Concluído esse contrato, fica expressa a “aquisição” da nova pelo noivo,

juntamente com um presente oferecido pelo noivo. Assim, depois de bem formalizado

o noivado segundo a lei vigente, a noiva fica protegida e passa “a se chamar ‘esposa’,

pode ficar viúva, é repudiada por um libelo de divórcio e castigada de morte em caso

de adultério”63.

2.5 O CASAMENTO

Após um ano de noivado, consumava-se o casamento: a moça passava

definitivamente do poder do pai ao do marido. Ela saía da casa dos pais e ia morar na

casa dos pais do marido, o que representava uma tarefa difícil para a jovem esposa,

que nunca havia saído do seio de sua família para o convívio de pessoas

desconhecidas. Igualmente difícil porque enfrentará a hostilidade das outras esposas

que também moram na mesma casa.

62 Ibidem, p. 483. 63 Ibidem, p. 483.

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2.5.1 Os direitos jurídicos

Juridicamente, a esposa se distinguia de uma escrava: em primeiro lugar por poder conservar o direito de possuir (mas não de dispor) bens que trouxera consigo como bens parafernais; em segundo lugar, pela garantia que lhe dava o contrato de casamento, que fixava a quantia que se devia pagar à mulher, em caso de separação ou morte do marido64.

Diante desses direitos jurídicos, podemos fazer a seguinte pergunta: E a

concubina tinha algum direito? Jeremias responde assim a essa questão: “A

esposa dispõe de um contrato de casamento, a concubina não o possui”65.

Em sua vida de casada, a esposa possuía alguns direitos jurídicos, mas

também alguns outros direitos lhe eram assegurados por tradição. Observamos

alguns:

a) “Cabia ao marido provê-la de alimento, vestuário, habitação e cumprir

o dever conjugal”66.

b) “Era também obrigado a resgatá-la em caso de eventual cativeiro”67.

c) “Providenciar-lhe medicamentos necessários quando doente”68.

d) “E sepultura por ocasião do falecimento: até mesmo o mais pobre

tinha de providenciar pelo menos dois tocadores de flauta e uma

carpideira. Ainda mais: onde era costume haver discurso fúnebre no

enterro das mulheres, ele teria de providenciar”69.

64 Ibidem, p. 484. 65 Ibidem, p. 484. 66 Ibidem, p. 484. 67 Ibidem, p. 484. 68 Ibidem, p. 485. 69 Ibidem, p. 485.

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Constatamos que a mulher, que vivia em Israel, no tempo de Jesus, não se

encontrava desamparada, pois havia leis que lhe garantiam segurança, para bem

desempenhar o seu papel de mulher, dona de casa e mãe. Não deixamos de destacar a

sua submissão primeiramente ao pai e depois ao esposo, tudo isso como fruto de uma

cultura. Mas a essa mulher também se cobravam deveres como:

Devia moer, cozinhas, lavar, amamentar os filhos, fazer a cama do marido e, para compensar sua manutenção, tecer a lã e fiar; outras acrescentavam aos deveres de esposa, preparar a bacia para o marido, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés70.

A situação da mulher era de serva diante de seu senhor e marido. A mulher

tornava-se posse do marido, mas não sua escrava.

Diante dessa pesquisa sobre como vivia a mulher em Israel, no tempo de

Jesus, nos perguntamos se há grandes diferenças entre a mulher que vive em Israel e a

mulher que vive no Ocidente. Há muitas diferenças, mas uma característica

fundamental as mulheres do mundo inteiro têm em comum: servir

incondicionalmente. Mulheres servem a seus pais, maridos e filhos.

2.5.2 A poligamia era permitida aos varões

Ao homem cabia o direito de possuir uma segunda esposa, dependendo de sua

condição financeira ou até mais. “A esposa devia, portanto, tolerar a presença de

concubinas a seu lado”71. O que era mais freqüente, em se tratando de ter uma

segunda esposa, era que, quando o marido não se dava muito bem com a primeira

esposa, ele logo tratava de arranjar uma segunda, na esperança de viver melhor.

70 Ibidem, p. 485. 71 Ibidem, p. 485.

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2.5.3 Casos de divórcio

O direito de repudiar era, quase exclusivamente, do marido. No livro do

Deuteronômio 24,1 lemos o seguinte: “Se qualquer coisa de vergonhoso foi imputada

à mulher”. Shammai interpretava isso assim: “por mau procedimento, adultério”.

Hillel, cujo ponto de vista devia prevalecer, no tempo de Jesus, comentava: “por algo

vergonhoso como o adultério, mas também ‘por qualquer coisa’”72. Como se pode

ver, não importa qual o motivo, que podia ser caso de esterilidade, despreparo para o

trabalho na cozinha ou o encontro de uma mulher mais bonita ou jovem.

O direito de divórcio também favorecia o homem; porém, em alguns poucos

casos, a mulher também tinha o direito de pedir a anulação do casamento. Jeremias

aponta, entre outras razões, o seguinte: “(...) se, no momento do casamento, soubesse

que o marido exercia uma três profissões em questão, e tivesse se casado com a

condição explícita de que ele não abandonaria aquela atividade”73.

Há necessidade de explicar a questão dessas profissões consideradas

repugnantes para a época. Havia as leis jurídicas e estas deviam ser cumpridas, mas

havia listas de regras, listas de profissões que os pais deviam ensinar aos seus filhos;

também havia lista de profissões de ladrões. Urge considerar estas listas como

advertência às delicadeza, advertência que, na verdade, repousa sobre experiência

concretas desagradáveis.

Por outro lado, a mulher, a partir dos treze anos, só tinha licença para exigir o divórcio se o marido a obrigasse a compromissos abusivos à sua dignidade ou se o marido fosse atacado de lepra ou de pólipos; nos outros casos, o direito do divórcio cabia exclusivamente a ele74.

72 MORIN, É. op. cit., p.59. 73 Ibidem, p.410. 74 Ibidem, p.410.

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As profissões que causavam repugnância são: o coletor de excrementos, o

curtidor de peles e o escorchador, isto é, o que tira o couro do animal75.

Certamente que este estudo sobre a condição da mulher no Oriente, em

relação ao casamento, é muito importante, em se tratando da condição da mulher e

tendo em vista que o casamento e suas atribuições eram para toda a vida dessas

mulheres. No casamento, ela passava do poder quase absoluto do pai ao poder

autoritário do marido, ao qual devia estar submissa, sabendo que, por qualquer

motivo, podia ser repudiada pelo marido. Sua vida desenrolava-se entre as paredes da

casa. Por isso, ao ser repudiada por seu marido, “ele era obrigado a entregar à mulher

a fiança prescrita no contrato de casamento76”

2.5.4 Motivos de repúdio

“Na época de Jesus (cf. Mt 19,3), os shamitas discutiam com os hilelitas sobre a exegese de Dt 24,1, que menciona, como justo motivo para o homem repudiar a esposa, o caso em que ele encontre nela qualquer coisa de vergonhoso”77.

Para clarearmos essa questão, vejamos os dois textos enunciados acima:

“Alguns fariseus se aproximaram dele, querendo pô-lo à prova. E perguntaram: ‘É

lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo que seja?” (Mt 19,3).

Vejamos a resposta que lhe deu Jesus:

Não leste que desde o princípio o criador os fez homem e mulher? E que disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.

75 Ibidem, p.409. 76 Ibidem, p.487. 77 Ibidem, p.487.

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Eles, porém, objetaram: “Por que, então, ordenou Moisés que se desse carta de divórcio e depois se repudiasse?” Ele disse: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas desde o princípio não era assim. E eu vos digo que todo aquele que repudiar a sua mulher – exceto por motivo de ‘fornicação’ – e desposar uma outra, comete adultério” (Mt 19, 4-9).

Dada a forma absoluta das passagens paralelas – Mc 10, 11s; Lc 16,18 e 1Cor

7,10s – é pouco provável que os três tenham suprimido a cláusula restritiva de Jesus.

É mais provável que um dos últimos redatores do primeiro Evangelho a tenha

acrescentado, a fim de responder a certa problemática rabínica (discussão entre ‘Hillel

e Shammai78 sobre os motivos que legitimavam o divórcio), sugerida aliás pelo

contexto (v. 3) e que podia preocupar o meio judaico-cristão para o qual escrevia.

Ter-se-ia aqui uma decisão eclesiástica de alcance local e temporário, como foi a do

decreto de Jerusalém, acerca do rito mosaico, e que dizia respeito à região de

Antioquia (cf. At 15, 23-29).

O sentido de “pornéia” orienta a pesquisa na mesma direção. Alguns querem

a fornicação no casamento, isto é, o adultério, e assim acham aqui a permissão de

divorciar em caso semelhante. Nesse sentido, porém, seria de esperar outro termo,

“moicheia”. Ao contrário, no contexto, “pornéia” parece ter o sentido de Zenût ou

“prostituição”, como se encontra nos escritos rabínicos, o qual se aplica a toda união

tornada incestuosa, em virtude de um grau de parentesco interdito pela Lei (Lv 18).

Uniões legalmente contratadas entre pagãos ou toleradas pelos próprios judeus no

caso de prosélitos, deviam ter criado dificuldades nos meios judaico-cristãos

legalistas como o de Mateus, quando tais pessoas se convertiam. Daí a ordem de

romper essas uniões irregulares que não eram senão falsos casamentos.

Outras solução sugere que a licença concedida pela cláusula restritiva não se

refere ao divórcio, mas à “separação”, sem novo casamento. Tal provisão era

desconhecida do judaísmo, mas as exigências de Jesus levavam a mais de uma

solução nova e esta já é claramente suposta por Paulo em 1Cor 7, 11.

78 Entre os escribas judaicos contemporâneos de Jesus, podemos citar Hillel e Shammai, que viviam circundados pelos seus seguidores. É o que afirma, citando GNILKA, J., na nota 43, BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon

Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002, p.43.

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Nesta questão de divórcio, observamos que há muitos questionamentos

devidos aos diferentes povos que haviam o Oriente Médio. Muitas correntes

ideológicas se cruzavam e os judeus se perguntavam: qual é a verdadeira lei? Aquela

de Moisés? O livro do Deuteronômio diz:

“Quando um homem tiver tomado uma mulher e consumado o matrimônio, mas esta logo depois não encontra mais graça a seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente, ele lhe escreverá então uma ata de divórcio e a entregará, deixando-a sair de sua casa em liberdade. Tendo saído de sua casa, ela começa a pertencer a um outro, e se também este a repudia, e lhe escreve e entrega em mãos uma ata de divórcio, e a deixa ir de sua casa em liberdade (ou se este outro homem que a tinha esposado vem a morrer), o primeiro marido que a tinha repudiado não poderá retomá-la como esposa, após ela ter-se tornado impura: isso seria um ato abominável diante de Iahweh E tu não deverias fazer pecar a terra que Iahweh teu Deus te dará como herança” (Dt 24, 1-4).

Podemos concluir que a mulher vivia na insegurança em relação a sua

estabilidade no casamento. Por muito pouco o “objeto da compra” poderia ser

devolvido, o que representaria um dano enorme para a mulher, tanto moral quanto

material. Logicamente, toda essa exclusão era reflexo das prescrições da legislação

religiosa e de uma cultura discriminatória do sexo feminino.

2.5 OS DIREITOS RELIGIOSOS DA MULHER

A mulher em Israel está fortemente ligada às prescrições religiosas. Sob o

ponto de vista religioso, “a mulher não era igual ao homem. Devia sujeitar-se a todas

as proibições da Torá e a todo o rigor da legislação civil e penal, pena de morte

incluída”79.

Mas a mulher, no tempo de Jesus, possuía algum direito religioso? Flávio

Josefo responde o seguinte: “No Templo só lhes era permitido penetrar no átrio dos

79 JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus, p. 489.

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gentios e no das mulheres”80. Jeremias escreve que “elas podiam entrar no átrio

interno, mas somente para oferecer um sacrifício”81. Havia dias, porém, que nem

nessas partes as mulheres podiam penetrar, como “durante os dias de purificação

mensal e no período de 40 dias após o nascimento de um filho (cf. Lc 2,22), e de 80

dias se fosse menina”82.

Como se observa, a discriminação começava desde o nascimento: no parto de

uma menina a mãe ficava impura, e sem ter acesso ao átrio das mulheres, por oitenta

dias, ao invés de quarenta no do menino.

Jeremias cita uma série de mandamentos que não obrigam a mulher:

Ir em peregrinação a Jerusalém para as festas da Páscoa, de Pentecostes e das Tendas, abrigar-se nas tendas e agitar o lûlab por ocasião desta festa, tocas o shofar no dia do Ano Novo, ler a m’gillah (o livro de Ester) na festa do Purim, recitar diariamente o shema etc. Dispensavam-se também de estudar a Torá83.

Concluímos que o maior direito da mulher que vivia em Israel no tempo de

Jesus, em relação ao Templo, era o de escutar a Torá. Talvez em época muito antiga

tenham sido chamadas as mulheres para ler a Torá, mas, no tempo de Jesus, isso não

acontecia. Também não lhes era permitido o ensino. Em casa, à mesa, não

pronunciavam a benção e não tinham o direito de prestar testemunho, pois eram

consideradas mentirosas.

80 Citado por Jeremias, op. cit., p. 491. 81 Ibidem, p. 491, nota 134. 82 Ibidem, p. 491. 83 Ibidem, p. 491.

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3 ANÁLISE DO TEXTO JO, 4, 1-42

3.1 TRADUÇÃO DE JO, 4, 1-42

Vejamos, em primeiro lugar, a tradução do grego

1 Como Jesus soube que os fariseus ouviram que Jesus faz mais discípulos e batiza mais do que João, 2 embora, por certo. Jesus mesmo não batizasse, mas os seus discípulos, 3 deixou a Judéia e foi de novo para a Galiléia. 4 Foi preciso que ele andasse através da Samaria.

5 Vai, pois, para uma cidade da Samaria dita Sicar, perto do terreno que Jacó deu a seu filho José. 6 Ali havia uma fonte de Jacó. Jesus cansado da marcha (viagem), sentou-se assim perto da fonte. A hora era como [que] a sexta. 7 Uma mulher da Samaria vem buscar água. Diz-lhe Jesus: “Dá-me para beber”.

8 Os discípulos dele tinham ido para a cidade, a fim de comprar no mercado alimentos. 9 Diz-lhe, então, a mulher samaritana: “Como tu, sendo judeu, pedes de beber de mim, sendo mulher da Samaria?” (pois os judeus não se dão com os samaritanos). 10 Respondeu Jesus e disse a ela: “Se soubesses o dom de Deus e quem é o que te diz – dá-me de beber, tu pedirias a ele e ele te daria água viva”. 11 Diz-lhe a mulher: “Senhor, nem ao menos tens um balde e o poço é profundo; de onde, pois, tiras a água viva?” 12 Tu és maior do que o nosso pai Jacó, o qual nos deu o poço, e ele mesmo bebeu dele e os filhos dele e os animais dele?” 13 Jesus respondeu a ela: “Todo o que bebe desta água novamente terá sede. 14 Porém, aquele que beber da água de que eu lhe darei, não mais terá sede para sempre; mas a água que eu lhe darei, tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna”. 15 Diz a ele a mulher: “Senhor, dá-me essa água, a fim de não ter mais sede e não precisar vir aqui encher o balde”.

16 Diz-lhe Jesus: “Vai, para chamar o teu marido e vem cá”. 17 Respondeu a mulher e disse a ele: “Não tenho marido”. Diz-lhe Jesus: “Disseste corretamente que não tens marido; 18 pois tiveste cinco e o que agora tens não é teu marido, isso tens dito verdadeiramente.” 19 Diz-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és um profeta. 20 Nossos pais se prosternaram [para adorar] neste monte; vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde é preciso prosternar-se [adorar]”.

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21 Diz a ela Jesus: “Crê em mim, mulher, porque chega a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém vos prosternareis diante do pai. 22 Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação provém dos judeus. 23 Mas chega a hora e é agora na qual os verdadeiros adoradores se prosternarão diante do pai em espírito e verdade; pois o pai procura tais adoradores dele. 24 Deus é espírito e é preciso que os que o adoram o adorem em espírito e verdade”.

25 Diz-lhe a mulher: “Sei que vem o Messias chamado Cristo. Quando ele vier, ele nos anunciará tudo”. 26 Diz-lhe Jesus: “Sou eu, o que te fala.”

27 Nisso chegaram os discípulos dele e se admiraram porque falava com uma mulher. Ninguém, porém, disse: “O que procuras” ou “o que falas com ela?”

28 A mulher deixou o cântaro dela e foi à cidade e disse a todos: 29 “Vamos! Vede, o homem que me disse tudo quanto fiz. Não é este o Cristo?” 30 Saíram da cidade e chegaram perto dele. 31 Nesse meio tempo, os discípulos lhe pediram, dizendo: “Rabi, come!” 32 Ele, no entanto, disse a eles: “Tenho um alimento para comer que vós não conheceis”. 33 Os discípulos diziam uns aos outros: “Porventura alguém lhe trouxe para comer?” 34 Diz-lhe Jesus: “O meu alimento é que eu faça a vontade de quem me enviou e realize a sua obra”. 35 Não dizeis vós: Ainda quatro meses faltam e chega a colheita? Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos e vede as glebas, porque estão brancas e perto da colheita. 36 Já o ceifador toma o salário e ajunta fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre junto com o ceifador. 37 Porque nisto se verifica o ditado: um é o que semeia e outro é o que colhe. 38 Eu vos mandei colher aquilo em que não vos cansastes; outros se cansarão e vós aproveitastes a fadiga deles”.

39 Daquela cidade muitos dos samaritanos creram nele, por causa da palavra da mulher que testemunhou: “Ele me disse tudo quanto fiz.” 40 Os samaritanos chegaram a ele pedindo-lhe que ficasse com eles. E ficou ali dois dias. 41 E muitos mais creram devido à palavra dele. 42 E diziam à mulher. “Não mais por causa da tua palavra acreditamos. Nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”.

3.2 DELIMITAÇÃO DO TEXTO – JO 4, 1-42

A unidade da perícope 4, 1-42está situada entre o cap. 3, 1-36, que narra o

encontro de Jesus com Nicodemos, e a cura do filho de um oficial do rei, no cap. 4,

43-54. Nestas três narrativas parece que encontramos um tema comum: o evangelista

João coloca os temas como numa progressão de conversões, o encontro com

Nicodemos, um fariseu, homem da lei, representante do judaísmo, membro do

Grande Conselho (Sinédio); a conversão da mulher estrangeira, representante de um

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povo pagão, separado dos judeus e por último a conversão do oficial romano, também

homem estrangeiro, representante do povo estrangeiro e pagão. A unidade da

perícope é marcada pela chegada a Samaria e a saída dali para a Galiléia (4,3.43). A

seguinte (4,45-46a) terminará o ciclo das instituições, assinalando a volta a CANA,

onde havia começado84.

A perícope descreve como Jesus é acolhido na Samaria, região heterodoxa e

desprezada pelos judeus ortodoxos. Apesar disso tudo, essa região compreende sua

situação e acolhe o salvador. Conforme Mateos:

O tema central é o do Espírito, simbolizado pela água que dá Jesus, infundindo no homem nova vitalidade. O Espírito estabelece a relação com Deus como Pai, excluindo todo particularismo discriminatório, o que se refletirá no desaparecimento dos antigos cultos e templos, substituídos pelo amor leal ao homem, à imitação do Pai85.

A perícope 4, 1-42 tem início com dados locais e de ambiente, o que a

delimita dentro de um tempo e de um espaço. “Assinala-se o caminho de Jesus, a hora

e o lugar onde se encontrará durante a entrevista seguinte (4, 4-6)”86. A chegada da

mulher samaritana e o pedido de Jesus abrem o tema da água viva que Jesus dará (4,

7-15). O diálogo continua e Jesus pede à mulher da Samaria que chame o seu marido

e com isso se introduz o tema da substituição dos cultos antigos pelo culto novo e

Jesus declara à mulher sua messianidade e aí a nossa perícope chega ao ponto mais

alto de todo o diálogo (4, 16-26). A cena seguinte tem como ponto central o anúncio

da mulher aos de sua aldeia e a sua reação (4, 27-30). Durante o tempo em que a

mulher fala com seus compatriotas, Jesus conversa com os discípulos acerca da

comida e isso “o leva a anunciar a colheita abundante” (4, 31-38)87. A narração

continua com a declaração de fé dos samaritanos, que vão em busca de Jesus, que se

demora por dois dias naquela aldeia (4, 39-42).

84 Cf. MATEOS, J. O Evangelho de São João: grande comentário bíblico. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 206. 85 Ibidem, p. 206. 86 Ibidem, p. 206. 87 Ibidem, p. 207.

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3.3 NOTAS INTRODUTÓRIAS AO TEXTO JO 4, 1-42

1. A totalidade dessa narrativa (4,1-42) descreve somente um episódio no

caminho de volta de Jesus da Judéia para a Galiléia. Contudo, o evangelista tem

especial interesse neste fato acontecido na Samaria. Diversas razões puderam

contribuir para isso:

a) No quadro do relato evangélico, frente Pa crença superficial em

milagres, própria do povo de Jerusalém (2,23-25), frente à

incompreensão nos círculos da elite intelectual (Nicodemos 3,1-12) e

a malícia e suspeita dos fariseus (4,1-13), destaca com tanto maior

brilho a fé dos samaritanos pagãos, que abrem a Jesus seus corações e

suas casas (4,40s). “Falta de fé ou fé insuficiente no próprio povo de

Jesus por um lado, prontidão para crer nos representantes do mundo não

judeu por outro”88.

b) Na busca de revelar-se a seu povo, “este é o terreno em que pode

manifestar sua missão de Salvador do mundo (4,12; cf 3, 1-7)”. “A

tendência universalista é imanente a todo o Evangelho e vem destacada

com vigor para o círculo de leitores que está constituído principalmente

por cristãos vindos do paganismo”89.

c) Talvez se possa conjeturar que o autor do evangelho possuía um

interesse especial na missão na Samaria. “A ela se consagrou muito

cedo a Igreja primitiva, mais em concreto com Felipe, pertencente ao

grupo dos ‘helenistas’ (AT 8), e na Samaria teriam existido mais tarde

comunidades cristãs nada desprezíveis. Nelas teria podido ser contado

principalmente o episódio transmitido em Jo 4”90. Não é impossível

88 SCHNACKENBURG, R. El evangelio según San Juan: version y comentario. T. I. Barcelona: Herder, 1980, p. 492. 89 Ibidem, p. 493. 90 Ibidem, p. 493.

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pensar que o próprio evangelista tenha trabalhado também neste lugar,

uma vez que se revela bom conhecedor do lugar.

d) Outro tema tratado neste relato é o tema do culto, o lugar de adoração de

Deus (v.20). É uma questão bastante preocupante para o povo

samaritano e Jesus faz uma notável revelação sobre onde adorar a

Deus em verdade, que devia ser confortante e orientadora

precisamente para comunidades de alto nível cultural pressupostas pelo

quarto evangelho. O que Jesus diz à simples mulher samaritana (v.

23), o diz também a seus crentes posteriores que praticam já o culto

cristão e podem aceder a uma inteligência mais profunda.

2. A narrativa tem uma estrutura clara e bem montada. Ao evangelista não

interessa diretamente um influxo pedagógico e pastoral sobre aquela mulher, mas a

gradual auto-revelação de Jesus. Através do que Jesus realiza com a samaritana, Ele

quer conduzi-la à fé. Também em seus compatriotas mostra o evangelista o progresso

de sua fé (v. 42). Revelação e fé são, portanto, (como já em 2, 11-23; 3, 11) os dois

pontos de vista que dominam o relato. A intensificação da revelação se faz ver pelos

seguintes temas: “v. 9 Ioudaîos – v. 11 kyrie – v. 12 meízon ei toû patròs hemoun

Iakôb – v. 19 prophêtes – vv. 26.29 ho Iêsoûs Christós ho sotêr toû kósmou. A

sucessão é quase dramática”91. E no momento culminante da conversa, justamente

quando Jesus se revela como o Messias, o diálogo é interrompido devido à chegada

dos discípulos que tinham ido à aldeia buscar mantimentos. Neste momento, como

num outro cenário paralelo, a mulher deixa o cântaro e corre ao povoado. A cena

incidental com os discípulos (vv. 31-38) eleva a tensão para o final da narração,que

conclui com a confissão de fé dos sicaritas no Salvador do mundo.

3. Esta disposição idealizada com tanta arte não é motivo para pôr em dúvida

a historicidade do fato narrado. Antes, se poderia considerar a figura da samaritana

como uma alegoria do povo samaritano “adúltero”, infiel a Deus. E as surpreendentes

circunstâncias da vida desta mulher (vv. 17s) parecem sugerir isso.

91 Ibidem, p. 493.

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Contudo, nesta questão tão intrincada se deve proceder com cautela. A mulher samaritana desempenha na narrativa um papel pessoal nada insignificante, pois convoca a seus compatriotas a fim de que fossem conhecer pessoalmente Jesus (vv.28-30)92.

De nenhuma forma se poderá querer interpretar simbolicamente todas as

pessoas que figuram no evangelho de João. Isso faz com que vejamos a mulher

samaritana como uma mulher concreta e não como símbolo de um povo.

4. “A impressão de uma exposição profundamente simbólica surge a cada

passo no Evangelho de São João pelo fato de que no relato se tratam também temas

teológicos que se entremisturam com ele. Esta é a peculiaridade do evangelista, que

pôde influir já na seleção dos relatos”93.

Na perícope em estudo, o evangelista João trata três temas:

1º a “água viva” que Jesus somente dá (vv. 10-14);

2º o culto: adoração em espírito e em verdade (vv. 20-24);

3º o trabalho missionário: o trabalho da semeadura e a alegria da colheita. O

primeiro tema, o que o Redentor dá e promete aos fiéis percorre todo o Evangelho e

se expressa repetidamente sob diferentes símbolos (o dom do vinho em Cana, cap. 2;

o pão de vida no cap. 6, etc.).

O segundo tema (o culto) estava já latente em 2, 13-22.

O terceiro tema (trabalho missionário) está já sugerido pelo próprio relato

(atividade na Samaria) e só vem ampliado em sua perspectiva.

Contudo, estes temas de certo modo autônomos não devem impedir de ver

com claridade que o evangelista tem sempre diante dos olhos como tema principal a

auto-revelação de Jesus. Sua imagem de Cristo irradia-se nesta seção com novo

esplendor e permite perceber seu fundo mais profundo: a unidade de Jesus com

aquele que o enviou (v. 34).

92 Ibidem, p. 494. 93 Ibidem, p. 494.

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3.4 CONTEXTO AMPLO DE JO 4,1-42

Os capítulos 2,1-4, 42 de João contêm duas narrativas distintas e duas

passagens de discurso, tudo isso tendo comprovadamente um tema comum: passaram

as coisas antigas e se fez uma realidade nova (cf. 2Cor 5,17). Em 2, 1-10 a água é

substituída pelo vinho; em 2, 14-19 um novo templo é anunciado; o diálogo com

Nicodemos, no capítulo 3, é a respeito de novo nascimento; o diálogo com a

samaritana, no capítulo 4, faz o contraste entre a água do poço de Jacó e a “água

viva”; e entre os cultos de Jerusalém e do Garizim com a adoração em espírito e

verdade para a qual o tempo está maduro. Podemos, então tratar estes dois capítulos

como formando um ato ou um episódio único e complexo, consistindo em duas ações

significativas94.

Uma vez que os dois capítulos, o terceiro e o quarto de João formam um ato

único, para nós interessa o segundo discurso, o quarto capítulo de João, que possui

um diálogo dramático, onde Jesus se encontra com uma mulher da Samaria, junto ao

poço de Jacó; os discípulos também tomam parte desse encontro e no fim aparece um

grupo de samaritanos que também participam desse encontro. Podemos afirmar que

há três grandes cenários em movimento neste encontro de Jesus com a samaritana.

1º cenário: Jesus se encontra com a mulher;

2º cenário: durante esse encontro estão os discípulos que acompanhavam

Jesus, mas eles não estão mais com Jesus; eles foram para uma vila próxima, a fim de

comprar alimentos;

3º canário: os discípulos voltam e se encontram com Jesus; enquanto isso a

mulher samaritana está em Siquém. Anunciando que descobriu o Salvador.

94 Cf. DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p.; 394.

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São três cenários em constante movimento e com mudança de lugar. Só Jesus

permanece por algum tempo junto ao poço, mas ele também acaba se deslocando e

indo para a cidade dos sicaritas.

A parte principal do diálogo vai de 4,7 a 27. Consiste em duas partes,

divididas à altura do v. 15. O tema dos vv. 7-15 é água viva, expressão que, dentro da

ironia joanina característica, ao aparecer pela primeira vez não tem, aparentemente,

nenhum outro sentido senão seu sentido comum de ‘água corrente’, mas no v. 14

passa a significar a água da vida eterna. A água já serviu como símbolo, pois na

história de Cana representa a ordem inferior da vida de Cristo muda no vinho da vida

eterna. Em 3,5 é associada com o espírito como a fonte da vida superior95.

Aqui se deve esclarecer que existe um contraste entre a simples água do

batismo de João e a água do batismo de João que é também espírito. No trecho que

nos ocupa há um contraste explícito entre duas espécies de água: de um lado está a

água do poço de Jacó da qual beberam o patriarca e seus filhos (isto é, a nação

israelita)96 água que apenas satisfaz temporariamente; de outro lado está a “água que

jorra para a vida eterna”.

A água era símbolo da Torah, na tradição rabínica; ela purifica, mata a sede e

assim favorece a vida. Até parece que evangelista João lançou mão deste símbolo e

converte-o em desapreço das instituições do judaísmo comumente aceitas em seu

tempo. A Torah é de fato água, mas água que pertence à esfera inferior da existência,

jamais água para a vida eterna97. Esta “nova água” é apresentada por Jesus à mulher

samaritana.

Pelo símbolo da água esta perícopo de 4, 1-42 se prende à anterior, mas

95 Ibidem, p. 413. 96 Em nota ao pé da página 413, Dodd escreve que “não só Jacó e seus filhos, mas também – acrescenta o evangelista – seu rebanho. Esta água pertence à ordem material da criação e à vida animal do homem”. 97 Ibidem, p. 414.

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representa um progresso em relação à outra pelo fato de que, enquanto em 3, 5-8 se falava do começo da nova vida, o presente texto fala de sua continuidade, mediante a mesma concessão da ‘água viva’, pela qual os homens renascem para o reino do Espírito – a água que Cristo dá98.

A mulher samaritana parece não entender quando Jesus fala da água que

saciará sua sede para todo o sempre e ela pede dessa água: “Senhor, dá-me essa água,

a fim de não ter mais sede e não precisar vir aqui para encher o balde” (v. 15).

Evidencia-se aqui sua incapacidade “de penetrar além do sentido superficial”.

Conseqüentemente o diálogo toma um novo rumo. Retorna ao símbolo através do

qual foi apresentado o tema da nova vida na segunda das importantes narrativas com

as quais o primeiro episódio foi introduzido – o símbolo do templo purificado (isto é,

renovado, ou destruído e reedificado)99. O evangelista João não utiliza a palavra

“templo”, mas, observa Dodd, “há clara alusão aos templos judaico e samaritano, em

Jerusalém e no Garizim (4, 20-21)”100.

Nos vv. 16-18 há uma transição no diálogo. O diálogo entre Jesus e a

samaritana chega neste ponto a tornar-se quase dramático, ou seja, a samaritana é

levada a manifestar a vida irregular que ela está levando. Inesperadamente Jesus entra

em sua intimidade, na intimidade de sua vida, direto e franco.

Sem querer descobrir exatos equivalentes alegóricos para seus cinco maridos e seu amante, dificilmente estaremos errados se reconhecermos (com a maioria dos comentadores) uma alusão aos cultos sincretistas populares da Samaria, que combinavam a adoração do Deus de Israel com elementos pagãos duma forma que os profetas tinham estigmatizado como ‘adúltera’101.

A Samaria não era o único lugar a misturar a tradição judaica com elementos

estranhos, dentro de sua manifestação religiosa. As assim chamadas heresias

“gnósticas”, descritas por Irineu e Hipólito, testemunham a existência deles, e 98 Ibidem, p. 414. 99 Ibidem, p. 415. 100 Ibidem, p. 415. 101 Ibidem, p. 415. A palavra adúltera não se refere à samaritana.

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também demonstram como semelhantes sistemas sincretistas podiam ser usados como

base para formas aberrantes de propaganda cristã. Mesmo antes de Marcião forçar

todo o mundo cristão a encarar a questão fundamentalmente, deve ter havido um tema

de controvérsia, seja que os missionários cristãos se viram obrigados a tomar uma

posição quanto ao Antigo Testamento e a tradição judaica ‘pura’, seja que eles não

tenham feito uso adequado dos modos sincretistas do pensamento religioso ao

abordarem o público helenista102. Tais controvérsias primitivas podem ter origem na

insistência do autor em afirmar que “assim como entre o judaísmo ‘puro’ ou

tradicional e qualquer forma semelhante de sincretismo como poderia ser

representado pelos cultos samaritanos, o pregador cristão não precisa hesitar, ‘pois a

salvação vem dos judeus’ – assim a porta para o cristianismo é o judaísmo. Se são os

precursores das heresias “gnósticas” do século II que ele tem em vista, então sei

comentário é adequado: hymeîs proskyneîte hòn ouk oídate”103.

Mas, “tanto o templo de Jerusalém e o do Garizim, como o judaísmo puro e

tradicional, ou a versão ‘adulterada’ oferecida pelos cultos samaritanos, todas essas

formas de religião pertencem a tà kátós; estão na esfera da sárx”104.

Com Cristo é inaugurado um novo culto, “o culto en pneúmati, o culto em

agêsasa, isto é, no plano da plena realidade”105. Uma nova espécie de religião é

inaugurada, porém esta nova religião é simbolizada “pelo vinho de Cana, a ‘água

viva’ que ele dá e o novo templo que ele reedificará. É agora definida em termos

explícitos: é o culto de Deus en pneúmati (como diria um escrito helenista, en noí) e

também en alêtheia opera com o que é basicamente real”106. Esse novo culto que é

inaugurado com Cristo é claramente o

102 Ibidem, p. 415-416. 103 Em nota de rodapé, o autor Dodd escreve que “a divindade suprema dos Valentinianos é o incognoscível Bythos; a dos adeptos de Basílides, o Não-existente. O conteúdo deste versículo não é diverso do At 17, 23”. 104 DODD, op. cit., p. 416. 105 Ibidem, p. 416. 106 A forma gramatical, com uma única preposição regendo dois substantivos, indica que pneûma kaì

alêtheia forma um conceito único. Cf. Dodd, em nota de rodapé, p. 417.

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Correlativo do nascimento ek pneúmatos, pelo qual a pessoa se eleva da esfera da sárx, para a do pneûma. Em sua condição de regenerada, ela recebe, por um lado, perenes provisões de vida espiritual (‘água viva’) de Deus, e por outro presta a Deus o culto de natureza espiritual, devido a ele que é pneûma

107.

O diálogo entre Jesus e a mulher vai se tornando profundo a ponto de Jesus

declarar-se o “Messias”, com a implicação de que “Messias” significa não só o

mensageiro que anunciará certas verdades religiosas (4, 25), mas também o

inaugurador de uma nova era na religião, da qual se possa dizer, não apenas érchetai

hôra (4, 21), mas érchetai hôra kaì nûn estí (4,23). Isso nos introduz no que será o

tema central do diálogo que forma a conclusão de toda a cena (4, 27-42).

A mulher corre apressada em direção aos samaritanos para anunciar o que

ouviu e escutou com o coração e para dizer-lhes o que ela imagina ter encontrado

(anangéle hêmin hápanta). É interessante ver essa mulher que corre até o seu povo,

ela que antes correra atrás de amores, falsos amores. Hoje encontra aquele que pode

ser o seu amor verdadeiro. Sobre Jesus ela pode atestar que ele mostrou perfeito

conhecimento de seu próprio passado: conhecimento este que é pelo menos a

característica de um Profeta (4,19) e talvez mais. Parece-nos clara a intenção do

evangelista, porque através da mulher sucede o ‘chamamento’ desse povo-pagão-

judeu e ali Jesus fica por dois dias a pedido deles.

Na mesma hora em que a mulher corre até o seu povo, acontece que chegam

os discípulos e conversam com Jesus e essa conversa estava mostrando quanto mais

que isso significa a messianidade de Jesus, “através da idéia do alimento e da

satisfação da fome (4,31) – a contrapartida da água e da satisfação da sede. Jesus, que

dá a água viva, não tem necessidade de que alguém lhe dê alimento”108. Fazer a

vontade daquele que o enviou essa é a sua vida.

107 A esta altura o leitor helenista entenderia que o cristianismo é uma logikê ou noêtê treskeía oposta aos ritos materiais do paganismo popular, e ele pode estar bem aberto a semelhante mensagem. Quão diferente, afinal, seja o cristianismo joanino de qualquer mera ‘espiritualização’ da religião, ele ainda deve aguardar para perceber. É possível que ele tenha sentido a alusão de que o novo tempo para o culto espiritual é apesar de tudo um sôma 2, 21). Cf Dodd, em nota de rodapé, p. 417. 108 Ibidem, p. 418.

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Este tema, da dependência de Cristo para com o Pai, introduzido aqui tão delicadamente, é elaborado no discurso que segue no cap. 5, e brevemente resumido em 6, 57 apesteilèn me ho zôon patêr kagou zô

dià tòn patéra. Mas a conclusão da frase em 4, 35 é de um significado especial. Faz parte da vontade de Deus, pela qual Cristo vive, que ele leve a sua obra até o término (...). Sua missão é não apenas ensinar ou ‘anunciar’, mas completar a obra da salvação do homem109.

Tudo isso quer dizer “realizar a transformação da água em vinho, erguer o

novo templo, trazer (mediante sua descida e subida) a possibilidade do nascimento ek

pneúmatos, dar a água viva que jorra para a vida eterna”110. Permitir à humanidade

uma verdadeira vida em espírito e em verdade. E a grande esperança do judaísmo era

que Deus, no tempo que somente ele conhece, haveria de realizar esta grande

transformação da vida humana.

E no v. 4,35 “Não dizeis vós: ainda quatro meses faltam e chega a colheita?”.

Ao que Jesus replica: “Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos e vede glebas,

porque estão brancas e perto da colheita”. Já no v. 36 “o ceifador toma o salário e

ajunta fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre junto como ceifador”.

Como afirma Dodd:

Este trecho, é a contrapartida daquele dos Sinóticos (Mt 9, 35-10,1; Lc 10, 1-2) em que Jesus, enviando os discípulos, afirma-lhes: ho

therismòs polýs. Estabelece a urgência, a finalidade do aparecimento e da obra de Cristo tão inequivocamente como o faz aquele outro aforismo sinótico: éphthasen eph hymâs he basiléia toû theoû (Mt 12,28; Lc 11,20)111.

109 Ibidem, p. 418 e 419. 110 Ibidem, p. 419. 111 Ibidem, p. 419.

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Pode-se afirmar que todo o trecho de Jo 2, 1 a 4, 42 constitui um episódio

compacto na apresentação do ministério de Jesus Cristo. A idéia dominante da

perícope Jo 4, 1-42 é a inauguração de uma nova ordem de vida para a humanidade

através de encarnação do lógos. E essa idéia central é apresentada sob várias luzes

para que apresenta diversos aspectos e associada a outras idéias pertencentes à

teologia do evangelista João, de tal modo que se possa dizer que o episódio inteiro

contém todo o evangelho. Pode-se afirmar isso ao menos para aqueles que têm

suficiente conhecimento da estrutura interna do escrito joanino. Para as pessoas

menos instruídas o tema avança degrau por degrau, do conhecimento para o

desconhecido, para construir um cenário na estrutura complexa do cristianismo que

João apresenta no seu evangelho. Não se pressupõe muita coisa além do

conhecimento básico que se deve esperar que um leitor helenita sério e inteligente já

tenha. Isso não significa que o quarto Evangelho foi escrito para uma comunidade

helenista. João tinha formação helenística.

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4 EXEGESE DE JO 4, 1-42

4, 1 - “Como Jesus soube que os fariseus ouviram que Jesus faz mais discípulos e batiza mais do que João”.

Champlin escreve que:

Entre Iêsoûs e Kýrios a comissão preferiu a primeira. Se Kýrios estivesse presente no original, é improvável que um escriba a tivesse substituído por Iêsoûs, a qual ocorre duas vezes nas cláusulas seguintes. Por outro lado, em acordo com o uso crescente de Kýrios para ‘Jesus’, e para aliviar o estilo desajeitado, alguns escribas evidentemente substituíram o primeiro Iêsoûs. Tem-se conjeturado que originalmente o verbo égnô não contava com um sujeito expressado e que, subseqüentemente, alguns copistas inseriram Iêsoûs, e outros, Kýrios

112.

112 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. V. II. São Paulo: Ed. Candeia, 1995, p. 320.

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4, 2 – “Embora, por certo, Jesus mesmo não batizasse, mas os seus discípulos”.

4, 3 – “Deixou a Judéia e foi de novo para a Galiléia”.

O evangelista João dá como razão para que Jesus abandone o lugar onde

batizava na Judéia seu desejo de esquivar-se dos judeus. Quando ouve que os

fariseus souberam de seus êxitos, interrompe sua atividade e deixa a região . “Os

fariseus haviam submetido já João a um interrogatório a propósito de sua atividade

batismal (1, 24(); contudo, até aqui não ouvimos nada de uma postura hostil destes

homens tão influentes contra Jesus”113. O evangelista explica a mudança de lugar só

como uma decisão do Senhor. Para ele está Jesus sob o imperativo da hora, que lhe

foi fixada pelo Pai (cf. 2,4). Analisando-se outras passagens do evangelho de João,

constata-se que a idéia de necessidade, como nas palavras em que Jesus diz que “é

necessário que seja levantado o Filho do Homem” (3, 14), está claramente indicado

113 SCHNACKENBURG, R. op.cit., 495.

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que “se trata de cumprir a vontade ou os desígnios de Deus”114. Com isso se indica

que Jesus não quer ainda, conforme a vontade de seu Pai, que se chegue a um conflito

aberto com os círculos dirigentes do judaísmo. Para os fariseus devia ser insuportável

ver que Jesus recrutava mais adeptos que João Batista. Interessante é observar que o

evangelista é bem preciso, quando afirma que Jesus não batizava, mas quem batizava

eram os seus discípulos.

4, 4 – “Foi preciso que ele andasse através da Samaria”.

v. 4 – Em grego consta édei – foi preciso (rege acusativo com infinitivo). deî –

“é necessário, preciso”; “não uma necessidade geográfica, mas é a vontade ou

desígnios de Deus que estão envolvidos (Brown)”115. “O verbo ‘era [lhe] preciso’

(édei) supões um motivo de ordem teológica, como em outros trechos de João. Se

Jesus atravessa a Samaria é porque sua missão o exige segundo o desígnio de

Deus”116.

4.1 NA FONTE DE JACÓ (4, 5-6)

4, 5 – “Vai, pois, para uma cidade de Samaria dita Sicar, perto de terreno que Jacó deu a seu filho José”.

114 BROWN, R. El evangelio según Juan. Madrid: E. Cristiandad, p. 370. 115 Idem, in RIENECKER, F. ROGERS, C., op. cit., p. 166-167 116 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João I. São Paulo: Loyola, 1996, p. 260-01

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v. 5 – Em grego lê-se érchomai – eu vou, do verbo érchesthai – de vai,

presente histórico. Nas narrativas do Novo Testamento é utilizado com sentido

pretérito.

4.4-5 – “déô – presente do indicativo do verbo deîn – revela um acerta pressa,

escreve Schnackenburg, pois em si se contava ademais com o caminho oriental

através do vale do Jordão, mesmo que fosse quente e molesto e normalmente se

costumava evitá-lo”117. “Os que tinham pressa, observa Flávio Josefo, deviam tomar

o caminho que passava pela Samaria, só assim é possível chegar em três dias da

Galiléia a Jerusalém”118. Pelo caminho habitual chega Jesus ao célebre poço de Jacó,

que era também um poço de importância geográfica. “Aqui se bifurca o caminho,

esclarece Schnackenburg: para o oeste a estrada dobra para a Samaria (Sebaste) e

GAliléia ocidental; ao nordeste se dirige para Bethsán e para o lago de Genesaret”. E,

ainda descrevendo o local geográfico, Schnackenburg escreve que, “olhando desde o

poço de Jacó, se vêem erguer-se ao sudoeste o Garizim e ao noroeste o Ebal”. A

localidade de Sicar sem dúvida se identifica com “a atual aldeia de Askar, 1 km ao

nordeste do poço de Jacó. Não é provável, afirma Schnackenburg, que se trate de uma

falsa grafia em lugar de Sichem (em português Siquém), suposta já por São Jerônimo,

pois seria incompreensível que este antigo lugar bíblico tivesse sido suplantado por

Sicar”119.

Sicar. É a leitura de quase todos os manuscritos. Uma testemunha siríaca diz

“Siquém”, e Jerônimo identifica Sicar com Siquém. É bem possível que se tenha

produzido uma confusão no texto grego de Sychen por Sychar, talvez pela

assonância do ar de Samaria. A leitura “Sicar” cria um problema: com efeito, há

indícios de que antigamente existiu uma localidade chamada Sicar, porém dela não

117 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 495. 118 FLÁVIO Josefo, citado por SCHNACKENBURG, op. cit., p. 495. 119 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 495

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apareceu nada na correspondente zona da Samaria. A identificação de Sicar com a

moderna “Askar”, situada aproximadamente a um quilômetro e meio do poço de

Jacó, não é provável por vários motivos:

a) Trata-se de uma povoação medieval;

b) A duvidosa semelhança de nomes não serve para nada, já que o árabe

“Askar” não indica uma denominação antiga do lugar, mas simplesmente

que este tem servido para a instalação de acampamento militar;

c) “Askar” tem um bom poço, o que faria inexplicável a longa viagem da

mulher até o poço de Jacó. Por outra parte, se realmente se deve preferir a

leitura “Siquém”, tudo o mais encaixa, pois o poço de Jacó se encontra a

menos de 100m de Siquém. É provável que naquela época Siquém fora

uma pequena aldeia120.

4.6 - “Ali havia uma fonte de Jacó. Jesus, cansado da marcha (viagem), sentou-se assim perto da fonte; a hora era como [que] a sexta”.

v. 6 – O verbo kopiô – eu fico cansado, do verbo kopiân (3-22) labutar, ficar

cansado de trabalhar. O perfeito enfatiza uma ação no passado cujos efeitos se

prolongam no presente121.

120 Cf. BROWN, R., op. cit., p. 370. 121 Cf. RIENECKER, F., op. cit., p. 167.

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No relato dos peregrinos cristãos do século IV se menciona a existência de

um poço de uns 30 metros de profundidade. No Antigo Testamento em Gn 29, 2-10

se menciona a relação de Jacó com o poço, quando do encontro com Raquel, em

Harã. Aí se lê que Jacó “retirou a pedra da boca do poço e deu de beber ao

rebanho” (v. 10). Este poço, segundo dados arqueológicos, esteve em uso desde o ano

1000 a.C. até 500 d.C.122. E a identificação atual do local do poço de Jacó como

sendo aos pés do monte Garizim, segundo Brown, “pode aceitar-se com

confiança”123. Schnackenburg descreve esse poço,que para ele tem 32 metros de

profundidade, como “uma soberba construção, em forma cilíndrica, de 2,30m de

diâmetro, escavado na rocha. Tem duas perfurações, através das quais se faz passar o

balde (cf. v. 11), que deve descer bastante fundo até alcançar a água”124. É aí que

Jesus se senta, esgotado e com sede.

4.2 DIÁLOGO DE JESUS COM A SAMARITANA (4, 7-15)

Jesus começa a dialogar com a mulher da Samaria. Busca-se encontrar nos

seguintes versículos: 16, 17 e 18 a resposta, para a pergunta que motivou a presente

pesquisa. Num primeiro momento, teria Jesus encontrado no coração dessa mulher,

quando Ele conhece a sua vida e diz o quanto ela vivia em busca de algo que lhe

saciasse a vida e lhe trouxesse o descanso físico e espiritual? E se houvesse esse

primeiro momento de busca da mulher, qual foi esse momento?

4, 7 – “Uma mulher da Samaria vem buscar água. Diz-lhe Jesus: ‘Dá-me para beber’”.

122 Cf. MATEOS, J.; BARRETO, J., op. cit., p. 208. 123 BROWN, R., op. cit., p. 371. 124 SCHNACKENBURG, op. cit., p. 497.

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Essa mulher samaritana ek tês Samareías não tem nome próprio. Aqui ela é

designada por um único traço, que éo fato de pertencer à região. Essa mulher sem

nome é representante da Samaria, que matará sua sede no poço do patriarca Jacó.

Jesus está só, pois seus discípulos foram até o povoado mais perto em busca de

alimentos para matar a fome. Neste momento aconteceu o encontro de Jesus com a

mulher. Jesus está desarmado de qualquer preconceito que possa impedir a

aproximação dos dois. Muitos fatores históricos poderiam impedir aquela conversa; e

Jesus provavelmente seria reconhecido com facilidade como um autêntico judeu, a

começar pelas suas vestes ou seu modo de falar. E há o fato de ela ser mulher e estar

sozinha. Um homem que se preze evita falar a sós com uma mulher que não é a sua,

ainda mais uma mulher com esse currículo! Aliás, nem mesmo podia olhar para ela

ou dirigir-lhe a palavra. Além de ser mulher, talvez vestisse diferente das outras

mulheres, talvez sem véu, com cabelos à mostra e sozinha, numa hora não muito

comum para uma mulher vir buscar água. As mulheres costumavam vir em grupo e

de preferência no final da tarde, em horário mais agradável. O fato de buscar água

cerca do meio dia se explica comumente dizendo que, sendo ela uma pecadora

pública conhecida, evitava encontrar-se com as outras mulheres. Ao evangelista João

não preocupam essas questões. O que lhe interessa é o encontro de Jesus com a

samatitana e o diálogo que ali se desenvolve. Aliás, é um traço característico de todo

o evangelho de João essa abertura à mulher, quando o comum no mundo judaico de

então era o domínio do modelo patriarcal. E mesmo se pode pensar que a forma como

João apresenta as personagens femininas leve a supor um papel ativo reservado para

as mulheres na evangelização e na vida da comunidade125. Ali estava a mulher

samaritana e Ele lhe pede de beber...

125 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 497; KONINGS, J., op. cit., p. 141.

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4, 8 – “Os discípulos dele tinham ido para a cidade, a fim de comprar no mercado alimentos”.

Tinham ido a Sicar, conforme ficamos sabendo pelos vv 5 e 39. Essa atitude

de Jesus em pedir que seus discípulos fossem até o povoado mais perto em busca de

alimentos causa-nos surpresa. Os judeus muito provavelmente jamais teriam entrado

numa cidade de Samaritanos, muito menos adquirir alimentos para comê-los. E

também jamais usariam utensílios domésticos pertencentes aos samaritanos. Isso

demonstra uma atitude mais liberal e compreensível da parte de Jesus, que estava

acima desses preconceitos da natureza racial ou religiosa, e que por isso mesmo, nada

via de errado em enviar os seus discípulos a comprarem alimentos na cidade”126.

4, 9 – “Diz-lhe, então, a mulher samaritana: Como tu, sendo judeu, pedes de beber de mim, sendo mulher da Samaria? Pois os judeus não se dão com os samaritanos”.

v. 9 – Syngchráomai – eu sintonizo com; ter relações com; não usam vasos em

comum com os samaritanos por medo de se contaminarem127. O infinito do verbo é

syngchrásthai (verbo depoente), a forma contrata é syngchrômai.

126 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 322; MATEOS, J., op. cit., p. 210; LÉON-DUFOUR, Xavier, op. cit., p. 264-65; DODD, C. H., op. cit., p. 413s; BROWN, R., op. cit., p. 380s. 127 RIENECKER, F., op. cit., p.167.

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A petição deixa pasmada a mulher, pois ele era um judeu e ela é mulher samaritana. Com certeza a mulher reconheceu que Jesus era judeu por causa da pronúncia das palavras e por causa de suas vestes, que provavelmente se pareciam com as vestes dos rabinos. Pelo menos Jesus deveria estar usando filactérios e longas franjas em suas roupas, que certamente o teriam identificado como um judeu (cf. Mt 23, 5 e as notas ali existentes)128.

Jesus lhe pede de beber. Como os discípulos foram à cidade comprar

alimentos, Jesus e a mulher ficam a sós, e ela estranha que um homem judeu pela de

beber a uma mulher samaritana, pois judeus e samaritanos evitavam qualquer coisa

em comum129. E homem que se preza evita falar a sós com uma mulher que não é a

sua – sobretudo uma mulher pública como parecia ser aquela mulher. Neste encontro

observamos e constatamos que Jesus rompe com duas barreiras, a religiosa e a social-

sexista. Faz pensar em Gl 3, 28: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre,

homem ou mulher”. A discriminação dessas categorias desaparece na hora do

Messias.

Como já mencionamos na primeira parte deste trabalho, as relações entre

judeus e o povo – pagão – samaritano, eram relações bem desgastadas. É provável

que existissem então severas indisposições judias que praticamente equiparavam o

tratamento com os samaritanos ao dado aos pagãos. Assim, pois a estranheza da

mulher está realmente justificada. O evangelista, que sem dúvida conhece bem a

situação, acrescenta a seus leitores a explicação de que os judeus não mantêm

comunicação com os samaritanos130.

Voltemos ao fato de Jesus estar conversando com uma mulher em público,

em plena luz do dia. Conversar com uma mulher em público era em geral coisa mal

vista e reprovada, principalmente tratando-se dos rabinos judeus. Do rabi Eliezer

(cerca de 90 a.C.) foi-nos transmitido o seguinte ditado: “Quem come o pão de um

samaritano é como se comesse carne de porco, isto quer dizer, está totalmente

128 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 323. 129 DAUBE, D., citado por BROWN, R., op. cit., p. 372, sugere que a razão disse é que os samaritanos eram considerados impuros. Uma norma judia do ano 65-66 d.C. advertia que nunca se podia contar com a pureza ritual das mulheres samaritanas, porque menstruavam já desde o berço (!). 130 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 498.

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impuro”. A respeito de conversar com uma mulher, podemos citar também o rabi

José Ben Yohanan (cerca de 150 a.C.):

Que tua casa esteja bem aberta. Que os pobres sejam filhos de tua casa. Não converses com tua mulher. Se dizemos isto de tua própria mulher, quanto mais da mulher do próximo. Por este motivo, dizem os sábios: Quem fala muito com uma mulher atrai infelicidade, abandona as palavras da Torá e herda finalmente o inferno131.

A conversa em público de um rabino com uma mulher feria os bons

costumes. Da mesma forma nenhuma mulher podia normalmente participar das

discussões com rabinos. É certo que houve exceções, porém, devem ter sido muito

raras. Neste sentido podemos entender a pergunta da mulher samaritana, cheia de

surpresa, uma vez que um rabi inicia uma conversa com ela em via pública e lhe

pede água. Assim foi começada a conversa e se pode perceber

que o pedido inicial de Jesus foi mero pretexto. Jesus com certeza tinha em vista

outra finalidade.

4, 10 – “Respondeu Jesus e disse a ela: se soubesses o dom de Deus e quem é que te diz – dá-me de beber, tu pedirias a ele e ele te daria água viva”.

131 BLANK, J., op. cit., p. 305-06.

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Jesus pronuncia, então, umas palavras misteriosas que imediatamente elevam

o diálogo para o plano superior. São palavras de revelação que assim como no

diálogo com Nicodemos (3, 3) indicam o tema que se desenvolve em continuidade. É

admirável a passagem da situação externa para o contato interno da pessoa com

Jesus132. Jesus fala de uma água, mas não se trata de água para beber, mas de um

“dom de Deus”. Alguns comentaristas como Osty, Van den Bussche, escreve Brown,

entendem que o dom de Deus é o próprio Jesus (3, 16); outros, com maior razão,

crêem que se refere a algo que Jesus dará aos homens (sua revelação, o Espírito)133.

Com isto se entende em nosso contexto a revelação e o que ela traz consigo, que é a

salvação final, a vida eterna que, para o homem, se constitui única e exclusivamente

numa dádiva de Deus. Como escreve Schnackenburg:

Se a mulher tivesse conhecido o ‘dom de Deus’, e ao forasteiro que lhe pedia um gole de água da terra, se teriam mudado os papéis: Ela teria sido a que pedira e a que recebera. Segundo a estrutura entrecruzada da frase, que conduz do ‘dom de Deus’ à pessoa do que fala e desta de novo à “água viva”, indicaria sem dúvida Jesus como o “dom de Deus”, a “água viva” que ele pode dar, a verdadeira “água viva, que não é um dom natural da terra, mas um presente celestial de Deus134.

Concluímos, então, que Jesus não é o indigente, aquele que busca o poço

porque cansado da caminhada e com sede, como parece mostrar o texto, quando se

faz uma leitura rápida. O pedido de Jesus encerra uma grande sutileza. A mulher

também parece não entender esse pedido, mas, através de indagações, vai

progredindo teologicamente até que ela chega à compreensão do que realmente Jesus

falava.

132 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 498. 133 BROWN, R., op. cit., p. 372. 134 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 498.

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4, 11 – “Diz-lhe a mulher: Senhor, nem ao menos tens um balde e o poço é profundo; de onde, pois, tiras a água [vivente] viva?”

É difícil decidir-se he gynê é uma adição natural, introduzida por copistas a

fim de aclarar o sujeito de légei.

Com a resposta de Jesus no v. 10 inicia-se um “diálogo de revelação”,

semelhante ao diálogo com Nicodemos, iniciático e inacessível aos não iniciados. A

mulher entende por “água viva” a água corrente da mina no fundo do poço. “Senhor,

nem ao menos tens um balde e o poço é profundo; de onde tens essa água viva”? O

“de onde” remete para a mesma realidade sugerida em 2, 9: aquilo que vem “do alto”

(cf. 2, 9; 3, 3.7).

Aqui é fundamental a ligação com a linguagem do Antigo Testamento; ali é Deus mesmo a ‘fonte de água viva’ (Jr 2, 13; 17, 13). Deus conforta seus adoradores com a ‘torrente de suas delícias’ (Sl 36,9). De Deus se passa para a imagem da Sabedoria (Br 3, 12; Eclo 15, 3; 24, 30ss; cf. também Sab 7, 25; Ct 4, 15), no rabinismo, à torah e ao Espírito Santos, em Filon, ao lógos. Assim, a expressão figurada na boca de Jesus pôde converter-se para o evangelista num símbolo da plenitude do que Jesus significava para ele, é possível que ao usar este simbolismo, assim como o conceito do lógos, tenha em conta as idéias e a ânsia religiosa de seus leitores135.

135 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 499.

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A expressão “água viva” se associa àquelas outras com que o Jesus joanino

designa a si mesmo e a seus dons, como o “pão”, a “videira”, a “porta”, o “caminho”.

Para bem entender o sentido da água, é necessário saber, que, no simbolismo do

Antigo Testamento, a água profunda (Pr 18, 4; 20, 5), a água viva Eclo 21, 13; 24, 23-

34, representa a sabedoria e a lei. Mas o símbolo da água pode significar também o

Espírito de Deus (Is 32, 15; 44, 3; Ez 36, 25-27). É essa a interpretação que Jô 7, 39

faz. Conclui Konings que;

Esses dois simbolismos, parecem convergir aqui, como em outros textos de João e da catequese batismal dos primeiros cristãos. Ora, a sabedoria deixa a gene com sede (Sr. 24, 21), mas Jesus não: ‘A água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna’ (cf. 6, 35). Jesus é mais que Jacó, mais que a Sabedoria dos livros bíblicos. A comunhão com Jesus, simbolizada pela água do batismo, é uma fonte de vida que não estanca e que nos comunica o Espírito (cf. Jô 7, 37-39)136.

4, 12 – “Tu és maior do que o nosso pai Jacó, o qual nos deu o poço, e ele mesmo bebeu dele e os filhos dele e os animais dele?”

O próprio Jacó, quando vinha tirar água do poço, para o seu gado, embora

tivesse sido quem cavou o poço, tinha de empregar os meios apropriados para extrair

a água. Também se pode pensar que a mulher samaritana continuasse respondendo a

136 KONINGS, J. Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 142.

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Jesus usando certa dose de humor. Aliás, isso não seria se admirar por causa de sua

condição de mulher pública, que lhe dava facilidade para usar de muitas artimanhas

na linguagem falada, quando conversava com homens.

Afirma Champlin que “o original grego, o pronome tu é enfático. É como se a

mulher tivesse dito: ‘Podes tu fazer isso, quando nem mesmo Jacó pôde fazê-lo?” Por

semelhante modo, inclusa na resposta, aparece a implicação que o poço à beira do

qual estavam, havia satisfeito às necessidades de sede do grande patriarca do passado;

e que, era Jesus, que podia oferecer a ela algo melhor do que isso? (...) A indagação

da samaritana parece ter implicado que Jesus estava reivindicando poder, como se

fora algum profeta, alguma autoridade mística, que Jacó não possuíra. Isso feriu o

orgulho nacionalista da mulher, porquanto os samaritanos diziam-se descendentes de

Jacó por intermédio de Efraim e José. E o escritor judeu, Josefo, diz-nos exatamente

isso (Antiq. VIII. 14.3; XI 8,6)137.

4, 13-14 – “Jesus respondeu e disse a ela: Todo o que bebe desta água novamente terá sede”.

v. 14 – Aquele que bebe da água que eu lhe der, jamais terá sede, mas a água que eu lhe der virá a ser nele uma fonte de água que salta para a vida eterna.

137 Citado por CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 324.

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v. 14 – Em grego consta állomai = eu jorro; o infinito é állesthai. Usado para

movimentos rápidos de seres vivos, que parecem ferver, como, por exemplo, os

saltos. Este é único caso em que se aplica ao movimento da água. (Brown)138.

Podemos entender pela resposta de Jesus a insuficiência do dom feito por

Jacó, sua pobreza. Deu água que nunca apaga definitivamente a sede. Transparece a

rejeição da sabedoria baseada na Lei, tal como se expressa em Eclo 24, 21-23: “Quem

me come terá mais fome, quem me bebe terá mais sede; quem me escuta não

malogrará, quem me põe em prática não pecará. Tudo isso é o livro do Altíssimo, a

Lei que nos deu Moisés como herança para a comunidade de Jacó”139.

Jesus explica claramente, de forma análoga como fez no diálogo com

Nicodemos (cf. 3,5), que ele não se refere a essa “água” ( que se acha no poço de

Jacó), mas que quer dar uma água muito diferente e que apaga para sempre a sede.

Esta segunda palavra de revelação de Jesus, construída com bela harmonia, segue

informando sobre o dom de Deus. Na formulação negativo-positivo do v. 14 por

João, deve-se ter em conta três momentos:

1) A água pode apagar a sede para sempre;

2) Se converta numa fonte no homem

3) Cuja água brota eis zoên aiônion.

O primeiro motivo se acha também na literatura sapiencial, mas em outra

direção. Em Eclo 24,21 diz de si mesma a Sabedoria: “Os que me comem têm ainda

fome, e os que me bebem têm ainda sede”. O sentido é este, escreve Schnackenburg:

Não anseiam nada mais que a Sabedoria. Esta ânsia só se satisfaz na eternidade, cf. Hen (et) 48, 1: ‘Em torno dela (da fonte da justiça) havia muitas fontes da Sabedoria. Todos os sedentos bebiam dela e ficavam cheios de sabedoria’. Enquanto aqui se expressa a fome e a

138 RIENECKER, F., op. cit., p. 167; BROWN, R., El evangelio según Juan. Madrid: Ed. Cristiandad, p. 373. 139 MATEOS, J., op. cit., p. 212.

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sede da salvação (cf. Mt 5,6), a imagem remonta até o Antigo Testamento, em Is 55,1-3140.

Assim fica já bem caracterizado o dom da água viva que traz Jesus: é um

presente divino que o Filho de Deus traz a todos os homens e mulheres, para que

saciem a sede mais profunda, “sede de vida” para toda a humanidade.

Se, como conclusão, nos perguntarmos o que Jesus quer dizer concretamente

com essa imagem “água viva”, constatamos que, na mente de João, “o Espírito é ao

que vivifica” (6, 63). Por isso Jesus, que transmite a vida divina, vem caracterizado

como portador do Espírito (1, 32s; 3,34), o que batiza com o Espírito, fonte de

corrente viva (7,38). Porém também os que acreditam nele recebem o Espírito (cf.

7,39; cf 14,17; 20,22; 1Jo 2,27; 3,34; 4,13). Por bem, o dom de salvação sem mais é a

Vida comunicada pelo espírito, a qual representa uma realidade viva e dinâmica no

homem, de modo que também a ela se refere acertadamente a imagem da fonte

borbulhante e inesgotável141.

4, 15 – “Diz a ele a mulher: Senhor, dá-me essa água, a fim de não ter mais sede e não precisar vir aqui para encher o balde”.

Jesus lhe promete vida e com isso, conforme Mateos, ele despertou o

140 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 501. 141 Ibidem, p. 502.

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anseio da mulher, a qual se declara disposta a abandonar para sempre o poço da Lei e da tradição, que sua história representa, mas que não conseguiu acalmar os seus desejos. Sua reação, é oposta à de Nicodemos. Rompendo com o seu passado, ela quer nascer de novo. Crê que isso é possível e o espera de Jesus, o qual começou pedindo água e termina prometendo-a; também na cruz, primeiro manifestará sua sede (19, 28) e em seguida dará a água que brota de seu corpo (19, 34). Romperam-se as barreiras; a mulher samaritana lhe pede a ela, o judeu. No começo Jesus expusera sua necessidade física, comum a todo homem, e agora se oferece para apagar a sede da vida plena, o anseio mais profundo do homem. Jesus não se detém no cultural nem no religioso; vai à raiz, ao homem como criatura de Deus Criador e Pai142.

Nicodemos não conseguiu reconhecer que a sua lei era induficiente; a

samaritana a reconhece, porque sabe do trabalho que exige e a insatisfação que deixa.

A mulher deve estar cansada de vir ao poço que não lhe mata a sede. Vê o valor da

vida e a deseja, deixa-se iluminar, penetrar pela novidade que é Jesus e a partir disso

abrem-se as portas a vida para ela, vida nova que só Jesus poderá alcançar-lhe.

Nos seguintes versículos (v. 16-19) o Revelador põe a descoberto a vida da

mulher. A partir desses versículos reveladores se norteia este estudo. Pensa-se que é a

partir desse diálogo que Jesus consegue entrar na verdadeira condição de vida daquela

mulher, que era uma simples mulher da Samaria, mulher de vida pública, dada a

muitos amores, a muitos amantes. Jesus invade seu coração, invade sua intimidade.

Aqueles segredos que carregava escondidos são desvelados e trazidos à tona; mas ela

percebe que aquele homem é diferente dos demais, que ela conhecia muito bem. E a

partir disso o diálogo entre Jesus e a mulher samaritana se torna muito particular e ao

tornar-se particular ele consegue entrar no coração daquela que corria atrás de falsos

deuses, aqueles que deveriam prometer-lhe roupas caras, perfumes e uma vida

melhor. Mas eram apenas promessas, falsas promessas. Eis que está à sua frente

aquele amor que ela muito esperava, o amor definitivo.

142 MATEOS, J. O evangelho de São João, p. 213.

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4.3 REVELAÇÃO DO CULTO VERDADEIRO 94, 16-26)

4, 16 – “Diz-lhe Jesus: ‘Vai, chama o teu irmão e vem para cá’”.

Champlin traz a seguinte hipótese:

Alguns têm imaginado que Jesus disse isso a fim de que o homem para quem ela puxara água do poço também recebesse do seu dom, porém os vv. 16 e 17, onde Jesus mostra ter conhecimento de seus cinco maridos, demonstram que não era lá que ele queria chegar143.

Para Champlin, certos costumes especiais requeriam que, a partir desse ponto,

Jesus não podia continuar pressionando para fazer dela uma discípula, sem a

permissão do seu marido, a despeito de não estarem vinculados por um matrimônio

legal, porquanto ele continuaria responsável por ela. Para nós, é querer ler no texto o

que não está escrito e nem na intenção que o autor sagrado visava. Porém sentimos

necessidade de ver a força que o texto tem em si mesmo e buscar subsídios que

levam a ler o texto de uma maneira um pouco diferente. Nesta questão, onde a

mulher samaritana tem deuses ou maridos?

Primeiramente pensamos ser difícil que Jesus tenha feito a seguinte pergunta:

“Vai, chama o teu deus!” E a mulher tenha respondido: “Não tenho deus...” Sua

resposta implicaria que ela está consciente de seu desvio com relação à situação

irregular.

143 Cf. CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 325.

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Jesus, então, dá ao diálogo outro impulso que leva adiante seu sentido. Em seu

simples pedido de chamar o seu marido está escondido seu conhecimento das

circunstâncias de sua vida. Este saber superior forma parte da imagem do Revelador

no Evangelho de João (cf. coment. de 1, 48; 2, 24s). A exegese de tempos passados

admirou aqui a maestria pedagogia de Jesus, porém o empenho de Jesus não se dirige

em primeiro lugar a retirar a mulher de sua vida pecaminosa, mas fazê-la mais

sensível à sua revelação. Aqui se sente a necessidade de opinar: para Jesus em

primeiro lugar está o ser humano como um todo; interessa-lhe ir em busca da ovelha

perdida; é para ela a sua mensagem. Acredita-se que Jesus tenha feito essa

revelação para despertar essa pobre mulher, ser mais sensível à sua revelação. O fato

de ela ter-se aberto ao Jesus e à sua mensagem foi que ela sentiu ser o agente mais

importante da mensagem. E esse é o ponto culminante. Depois de amada e aceita, ela

entra numa total sintonia com Jesus a ponto de reconhecer nele o Profeta que

aguardavam há tantos anos. E aí ela exala todo o amor recebido de Jesus quando

chama os seus compatriotas. Mas continuemos a nossa exegese. Jesus tocou na ferida

brava de sua vida, expondo aos seus olhos a culpa, e isso foi o primeiro passo

concreto para a cura de sua alma144.

Toda mulher carrega dentro de si o grande desejo de gerar a vida; para a

mulher foi confiada essa missão e a samaritana naquele momento sabia que não

estava em acordo com o projeto de ser mulher geradora de vida. Conforme Champlin,

Tal como a origem de um manancial, essa potencialidade estava oculta. Muitas rochas duras de impenitência havia mais à superfície, e muitas camadas de transgressões diárias, e de muitos hábitos errados, moldados como barro, agora já endurecidos como uma pedra, além de

144 CHAMPLIN, R. N., citando Philip Schaff, in loco, no Lange’s Commentary, escreve que “mediante um lance de olhos profético em sua vida privada tão vergonhosa, que após cinco casamentos sucessivos culmina em sua atual relação ilegítima, imediatamente ele afetou a consciência dela e desafiou a fé que ela deveria depositar nele. A convicção de pecado é a primeira condição indispensável para o perdão e é o mesmo princípio da conversão. Imediatamente a samaritana compreendeu a intenção, e as suas palavras seguintes, que são uma meia confissão de culpa, foram seguidas pela fé no caráter profético de Cristo. Nas profundezas do espírito dela havia a potencialidade da vida”. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. v. II. São Paulo: Ed. Candeia, 1995, p. 325.

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muito depósitos de idéias carnais, que nada haviam deixado senão fezes145.

Não nos importa entrar na polêmica se eram cinco deuses ou cinco maridos.

Para nós importa constatar que Jesus encontra uma mulher, muito provavelmente

fosse uma pecadora pública, e conversa com ela longamente assuntos diversos. Ele

não a rejeita, antes a busca o tempo todo, exercitando a curiosidade feminina a ponto

de entrar num diálogo mais íntimo com ela e entrar em seu coração para sempre. Ele

se apresenta à samaritana como o verdadeiro Senhor, tornando-se assim “o Senhor

dos samaritanos substituindo seus ‘deuses’”146.

4, 17b-18 – “Respondeu a mulher e disse a ele: Não tenho marido. Diz-lhe Jesus: ‘Disseste corretamente que não tens marido, pois tiveste cinco e o que agora tens não é teu marido; por isso tens dito verdadeiramente’”.

v. 18 – Em grego lê-se écho – eu tenho; o infinito presente ativo é échein.

Segundo o ensino rabínico, uma mulher podia casar-se apenas duas vezes, ou três

vezes no máximo (SB, II, 437)147.

145 Ibidem, op. cit., p. 325. E cita conclusão de Elicot, segundo o qual, “tinha de ser escavado, antes que ela pudesse ter a água viva, pois esse poço, igualmente, sem dúvida era profundo. A ordem que diz ‘Vai, chama o teu marido... foi o primeiro golpe para romper a superfície de sua aparência reta, revelando a imundície da vida que havia por baixo”. 146 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João, v. I. São Paulo: Loyola, 1996, p. 278. 147 RIENECKER, F.; ROGERS, C. Chave lingüística do Novo Testamento grego, p. 167.

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Com sua resposta: Não tenho marido, a mulher demonstrava vergonha de sua

situação irregular. Talvez com essa resposta bem seca e objetiva ela tentasse fechar o

assunto, não lhe dando mais continuidade. Jesus revela-se sumamente respeitoso e,

para não feri-la, louva a sua sinceridade, mas lhe revela toda a gravidade de sua

condição.

Schnackenburg escreve que,

segundo a opinião judaica, uma mulher só podia casar-se duas vezes, ou no máximo três, segundo os severos costumes do oriente, mesmo no caso da samaritana passava seguramente por ignominiosa e ilícita tal proliferação de matrimônios148.

Ademais, o v. 29 dá por suposto que a mulher está consciente de sua culpa e

sabe como a julgam seus concidadãos. E, aprofundando um pouco mais a questão,

poderíamos escrever que as condições nada comuns da vida da samaritana têm dado

pé a não poucos exegetas a considerar esta mulher da Samaria como figura simbólica

do povo samaritano. Sob a conhecida imagem da infidelidade conjugal vem

representada, dizem, a infidelidade religiosa deste povo mestiço. E os exegetas que

querem afirmar essa idéia se baseiam em 2Rs 17, 24ss, e que o rei assírio Sargão,

depois da conquista da cidade (722 a.C.) havia deportado a população da Samaria e

assentado aí cinco povos diferentes do leste de seu império e que em sua nova pátria

seguiam venerando seus antigos deuses. Inclusive quando, depois de um castigo de

Deus (uma praga de leões), tinham voltado ao culto de Yahwé, sua veneração do

verdadeiro Deus sobre o monte Garizim era considerada ilegítima pelos judeus.

Contudo, afirma Schnackenburg, “a analogia não é ao todo exata. É certo que em 2Rs

17, 29ss se mencionam cinco povos estrangeiros, mas junto com sete divindades.

Estas eram veneradas simultaneamente, e junto com elas também Yahwé”149. E

continua afirmando que,

148 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 503. 149 Ibidem, op. cit., p. 503.

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a interpretação ‘existencial’ moderna, segundo a qual a revelação pôs a descoberto o ser humano (Bultmann), tratou de introduzir-se abusivamente também neste relato. Com efeito, não a revelação enquanto tal, mas Jesus, o Revelador, é o que descobre pessoalmente as condições de vida da mulher, a fim de subrtraí-la de sua cegueira e dar-lhe um ponto de apoio para a fé150.

Para que esta questão fique bem fundamentada, recorremos a Blank que

escreve o seguinte:

“Era muito difícil para uma mulher dissolver um matrimônio, porque o divórcio só podia ser requerido pelo homem. Então teríamos realmente aqui – inclusive de acordo com a mentalidade judaica – um personagem muito problemático. E Jesus que fala com a mulher aparece como um homem que, de acordo com as prescrições judias em voga no seu tempo, age como homem de idéias avançadas e independentes”151.

E igualmente Jesus não se comporta como um moralista, mas se move nim

campo totalmente diferente.

Constata-se que essa revelação que Jesus faz da vida íntima da mulher trata de

revelação como descobrimento da existência humana. A revelação é para os homens a

manifestação da própria vida. O revelador só é conhecido quando o homem se torna

transparente a si mesmo. O conhecimento de Deus e de si mesmo é um ato só. E aqui

se chega onde se gostaria de chegar com este estudo de exegese: Quando Jesus chega

ao coração da mulher, revelando quem era ela e sua vida, ela o deixa entrar e dali em

diante tudo muda!

Como conclusão, em João podemos notar que Jesus é o mesmo salvador dos

extraviados, inclusive para o mundo não judeu. Em todas as partes põe ele de

manifesto sua glória, nas profundas trevas da fraqueza e miséria humana, desde que

se o acolha com prontidão para crer.

150 Ibidem, op. cit., p. 504. 151 BLANK, J., op. cit., p. 315.

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4.3.1 Reação e pergunta da mulher

4, 19 – “Diz-lhe a mulher: Senhor, vejo que és um profeta”.

Tal como também Nicodemos confessara, segundo se l~e em Jo 3,2, foi um

gigantesco passo para a frente, dado pela mulher samaritana. Escreve Blank

É perfeitamente compreensível que a mulher, chocada com este conhecimento admirável de Jesus, veja nele um profeta. Profeta no caso significa um homem que dispõe de um conhecimento sobrenatural, que lhe permite ver situações ocultas, seja em relação ao futuro, seja em relação aos mais recônditos segredos do homem. Ao mesmo tempo, mediante o conceito de profeta abre-se um caminho para vermos neste profeta o profeta escatológico como Moisés que os samaritanos esperavam152.

Deste profeta se diz no Pentateuco samaritano, sobre Ex 20, 21b: “Suscitarei

um profeta como tu, de entre os seus irmãos e porei as minhas palavras em sua boca.

E ele lhes dirá tudo o que eu mandar. Quem não quiser ouvir suas palavras, que falará

em meu nome, deste exigirei contas”153.

4, 20 – “Nossos pais se prosternaram [para adorar] neste monte; vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde é preciso prosternar-se [adorar]”.

152 BLANK, J., op. cit., p. 316. 153 Ibidem, p. 316.

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É fora de dúvida que ela estava profundamente interessada na opinião daquele

que lhe revelara sua vida, sobre esse problema, posto ser o tema que provocava o

mais amargo debate entre Israel (os judeus ortodoxos, mas, especialmente, os

habitantes de Jerusalém) e os samaritanos; tal questão já provocara muito amargor e

ódio como nos casos em que os samaritanos assassinavam e roubavam os peregrinos

que se dirigiam a Jerusalém a fim de adorar, mas até mesmo “por intermediário de

decretos oficiais”154. Champlin cita Josefo (Anti. XIII 3,4) onde ele afirma que:

certa disputa sobre esse ponto, diante de Ptolomeu Filômetro resultou na morte (segundo um acordo posterior) de dois advogados samaritanos, que não foram capazes de provar a sua contenção que o monte Garizim era o lugar de adoração em sentido oficial. Evidentemente, conclui Josefo, que os perdedores foram obrigados a pagar, com a própria vida, pela sua incapacidade em vender nos argumentos; e geralmente se arranjava de antemão que os derrotados em um debate público fossem punidos com a morte155.

Schnackenburg nos informa que:

a edificação de um templo a Yahweh sobre o Garizim não está totalmente esclarecida; contudo, devia ter existido o mais tardar desde começos da época helenística, até que o fez demolir João Hircano no ano 128 a.C. Contudo, mesmo depois seguiram os samaritanos mantendo firmemente este lugar de culto, sem participação da peregrinação a Jerusalém156.

154 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 326. 155 Citado por CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 326 156 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 505

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v. 21 – “Diz a ela Jesus: Crê em mim, mulher porque chega a hora em que nem nesse monte nem em Jerusalém vos prosternareis diante do Pai”.

Escreve Champlin: “A resposta dada por Jesus, declarou a abolição da

adoração sectarista, a derrubada de bandeiras religiosas, a remoção de reivindicações

rivais do meio da adoração verdadeira, sem importar-se se essas reivindicações são

judaicas ou samaritanas”157. O verdadeiro centro de adoração não é nem o monte, e

nem um templo, mas sim, uma pessoa, é o Messias, o Cristo, o Filho unigênito do

Pai. O autor sagrado muitíssimo se esforçou por demonstrar como somente o Filho

unigênito é quem revela Deus-Paui – ele é ‘Deus’. Por outro lado, o Filho se encarnou

e veio habitar entre os homens (Jo 1, 14), foi nomeado como revelador especial do

Pai (Jo 1,18), e nele se encontra a fonte da regeneração (Jo 3,3.5.12.13.15.16). Por

semelhante modo, do Filho unigênito é que flui a água viva ( Jô 4, 10.14). Igualmente

Blank escreve que,

não é por acaso que neste contexto ocorra a designação ‘Pai’ três vezes. O novo culto divino dos últimos tempos, como Jesus o anuncia, está intimamente ligado à nova experiência de Deus que remete a Jesus e que se articula de preferência com o novo nome divino, ‘Abba-Pai’158.

157 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 326. 158 BLANK, J., op. cit., p. 317.

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v. 22 – “Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação provém dos judeus”.

Conforme afirma Juan Mateos:

A frase o que não conheceis, é alusão a Dt 13, 7: ‘Se... quiser te seduzir secretamente, dizendo: Vamos servir a outros deuses, deuses que nem tu nem teus pais conheceram’ (LXX: ‘que tu não conhecias nem os teus pais...’; cf. 13, 3.14). Jesus denuncia, portanto, a idolatria dos samaritanos’159.

O v. 22 traz uma observação que talvez indique que o autor do texto é judeu e

não samaritano, pelo fato de defender uma certa superioridade do culto judaico em

confronto com o culto samaritano, quando escreve “adoramos o que conhecemos”.

Este é o ponto de vista judeu que admite também para os samaritanos um certo culto

de Javé, mas de qualidade inferior. Eles têm, é claro, o Deus verdadeiro, mas na

realidade eles não o conhecem. Escreve Blank:

E mais, esta afirmação não pode ser minimizada, porquanto a

salvação vem dos judeus. Não podemos, de forma alguma, desconsiderar esta passagem como ‘uma glosa de redação’, segundo Bultmann, mas devemos mantê-la e assumi-la totalmente, porque o evangelista aqui defende, em sentido genérico, ‘o ponto de vista dos judeus’. O círculo joânico, não obstante toda a polêmica contra os

159 MATEOS, J., op. cit., p. 217.

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judeus, aceita o fato básico da história da salvação: que a salvação vem do judaísmo, ou mais concretamente, de Jesus que é judeu160.

v. 23 – “Mas chega a hora e é agora na qual os verdadeiros adoradores se prosternarão diante do Pai em espírito e verdade, pois o Pai procura tais adoradores dele”.

O diálogo entre Jesus e a samaritana vai se tornando claro e, aço chegar aqui,

Jesus lhe anuncia que o verdadeiro culto de Deus começa a verificar-se “agora”, isto

é, com ele (cf. 5, 25). Conforme Blank:

Chegou a hora e ela agora já está aí. Trata-se do agora que se completou, do presente escatológico da salvação e também do ‘novo

culto divino’. Em que consiste o culto divino da nova época? A resposta que João dá a esta pergunta soa assim: Chegou a hora em que os verdadeiros adoradores de Deus, os verdadeiros devotos, ‘adorarão o Pai em espírito e em verdade’161.

E como é adorar em espírito e em verdade?: Schnackenburg escreve que,

160 BLANK, J., em nota à p. 318, diz que Bultmann acha “difícil de compreender que o Jesus joânico, que constantemente se distancia dos judeus... tenha pronunciado essa frase”. Não se trata de superioridade do culto judaico. A verdade é que a salvação vem de um descendente judeu – Jesus. 161 BLANK, J., op. cit., p. 318.

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a dupla expressão, e que a ênfase está sobre pneúmati, significa em ambos os membros o mesmo. Entender isso em sentido espiritualista, como se Jesus quisesse contrapor ao culto externo um culto puramente interno que acontece no espírito do homem, é inadmissível, se se tem em conta o conceito de Pneuma, que segundo o v. 24 só pode designar o Espírito divino, como é normal nos escritos joaninos. Também ‘a verdade’ significa na teologia joanina a verdade divina revelada por Jesus, na qual têm parte os crentes162.

Esta mesma questão é respondida por Bultmann, citado por Blank, com o

seguinte enunciado: “A adoração cultural de Deus não é colocada, aqui, em oposição

à adoração espiritual, interior, mas à adoração escatológica”, isto é, explica Blank:

trata-se da forma de adoração divina que chegou com Jesus. O ‘culto escatológico’, o culto cujo centro é Jesus. Os conceitos de espírito e verdade devem ser compreendidos a partir de seu caráter veterotestamentário e significa a abertura vital, o espaço aberto, topograficamente indeterminado para a presença de Deus.

E, conclui Blank, citando 2, 18-22, que,

Jesus Cristo ressuscitado dos mortos, o Cristo vivo, segundo o círculo joânico, veio substituir o templo. Para este círculo – como também para o cristianismo primitivo, conforme a epístola aos Hebreus – ‘o lugar de Deus’ já não está ligado a qualquer lugar topográfico de culto em especial. Neste sentido já não existe templo nem casa de Deus. Até aí chega o aspecto negativo da afirmação de Jesus163.

O acesso a Deus não é possível ao homem por si mesmo, mas lhe deve ser

proporcionado pela graça e o Espírito de Deus. O culto verdadeiro se dá num

encontro com Deus, mas o próprio Deus torná-lo possível. E Schnackenburg ilustra

essa realidade de o homem não alcançar a Deus com suas próprias forças com as

descobertas dos textos de Qumrán. E cita 1QS 4, 20s:

162 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 506. 163 BLANK, J., op. cit., p. 318.

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Então purgará Deus com sua verdade todas as obras dos homens e purificará a uma parte da humanidade. Eliminará totalmente o espírito perverso do meio de sua carne e com o Espírito Santo os purificará de todas as ações ignominiosas. Derramará sobre eles Espírito de verdade como água lustral...164

E explica que,

a comunidade de Qumrán, que está segura da promessa deste espírito escatológico de purificação, se considera contudo já desde agora como um estádio prévio dessa humanidade purificada e crê que agora já a enche de Deus de Espírito Santo. No ritual de admissão dos candidatos na comunidade se diz em 1QS 3,6ss: Pelo Espírito (que foi outorgado) à verdadeira assembléia do conselho de Deus, vêm expiados os caminhos do homem, todos seus pecados, de modo que ele pode levantar os olhos para olhar a luz da vida. Pelo Espírito Santo da comunidade (que se encontra) em sua verdade será ele purificado de todos os seus pecados. Segundo 1QS 9, 3-6ss, entende a comunidade cenobítica como uma “santa casa para Aarão” e uma “casa da comunidade para Israel” e da conduta perfeita com sacrifício voluntário agradável165.

A revelação de Jesus sobre a verdadeira adoração recebe uma boa ilustração

dos textos de Qumrán, mas também os supera, posto que Jesus anuncia a sua

realização escatológica.

v. 23– “Mas chegam a hora”– É uma expressão característica: o vir, a chegada

do tempo. É uma expressão que tem um colorido escatológico. No âmbito do Antigo

Testamento se refere à restauração messiânica final. E não depende dos homens a sua

chegada. “Isso faz da ‘hora’ tempo teológico: é o momento do Pai, que Jesus faz seu,

para o qual dirige toda sua atividade e que a explica”166. A hora estava se

aproximando, já está presente e assim se inaugurava com Jesus um novo culto. Trata-

164 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 507. 165 Ibidem, op. cit., p. 507. 166 MATEOS, J.; BARRETO, J., Vocabulário teológico do evangelho de São João. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 132; cf. BLANK, J., O evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 318.

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se do agora que se completou, do presente escatológico da salvação, de um novo

culto.

A afirmação que tal tempo chegou, característica de João, sublinha que com a

vinda de Jesus nos encontramos já na fase da restauração messiânica final. Há como

que uma tensão entre um futuro, expresso já na expressão “vem a hora” e explicitado

pelos tempos verbais que seguem (proskýnousan = adoração) e um presente já em

ato: kaì nûn estí: “e é agora”.

v. 23- “adoramos se prosternarão diante do Pai” – Trata-se de uma adoração

de filhos, o que supõe já realizado o segundo nascimento para a vida divina.

v.23- “em Espírito e verdade” en pneúmati kaì aletheía

en - tem no Novo Testamento um significado vago e genérico. Significa uma

“associação” com alguma coisa ou pessoa. O contexto esclarecerá de qual associação

e união se trata.

No contexto é afirmada, mediante a preposição em en, uma correlação entre

adoradores genuínos en pneúmati – aletheía. Mas em que consiste esta correlação

genérica?

en pneúmati: em conexão com o Espírito. Dado que em Paulo o Espírito é

apresentado como um agente ativo que influi no nosso culto (Rm 8) e tem uma

indicação para compreender. Aqui pneûma é usado no sentido preciso de Espírito

Santo.

v.23 b- “Pois o Pai procura tais adoradores dele”.

Neste versículo temos o verbo zeteì, que marca o sentido da conversa. A frase

se encaminha para a afirmação de que “Deus ama o mundo” (3,16). E em diversos

textos do Antigo Testamento se pode perceber claramente que “Deus toma a peito a

resposta do homem. O Deus bíblico não é um ‘motor imóvel dos mundos’”167. O

Deus de Abraão, Isaac, Moisés, o nosso Deus é o Deus da busca, aquele que fez o

homem à sua imagem e semelhança. E é o mesmo Deus que vai atrás da ovelha

167 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João. v. I, p. 286.

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perdida. Jesus ao dizer isso para a mulher samaritana de certa forma a está

convidando a deixar-se encontrar por Deus, que ela também está incluída dentre

aqueles que Deus procura. Após haver posto a descoberto toda vida pecaminosa,

Jesus quer levá-la a também aceitar o perdão de Deus, mas para isso é necessária a fé

nele. Com isso o diálogo com a samaritana chega ao ponto mais alto, que é o fato de

Jesus revelar-se como o Messias168.

Com essa pequena exegese do v. 23b parece que Schnackenburg quer

sistematizar os 26 v. do encontro entre Jesus e a samaritana. E ele entendeu desse

modo o encontro de Jesus com a samaritana, como está exposto acima, sinto-me

amparada pela exegese dele.

v. 24 – “Deus é espírito e é preciso que os que o adoram o adorem em espírito e verdade”.

Para J. Mateos, no v. 24 “Deus é definido por João como Espírito, ou seja,

dinamismo de amor que se expressou na criação do homem e continua atuando até

levá-la ao seu termo”169.

Deus é espírito. Essa é uma afirmação fundamental Deve entender-se essa

expressão no sentido de Deus ser o contrário da carne. Carne é o âmbito humano,

limitado no tempo e no espaço. Não sendo carne, Deus com isso não está

condicionado por brigas nacionalistas ou religiosas. Está acima dos interesses

humanos, acima os partidarismos. É preciso adorá-lo em espírito. E também em

verdade. Verdade exprime aqui a relação de lealdade e fidelidade para com a verdade

fundamental, que é a manifestação de Deus em Israel. A expressão adorar Deus em

espírito e verdade não significa, pois, um culto meramente espiritual, nas nuvens. É

168 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 509. 169 MATEOS, J.,; BARRETO, J., O Evangelho de João, p. 219.

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um culto que implica a vida conforme a verdade que Deus manifesta em Jesus, a

prática do amor fraterno170.

v. 25- “Diz-lhe a mulher: ‘Sei que vem o Messias chamado Cristo. Quando ele vier, ele nos anunciará tudo”.

Em face do hemîn seguinte, é mais provável que copistas teriam alterado “eu

sei” por “nós sabemos” do que vice-versa – o que de fato é demonstrado pelas

alterações feitas em P (66)171 e X172.

A mulher se candidata a participar desse culto verdadeiro. Diz que está esperando o Messias (o Cristo), que deve vir ao mundo e que será um Profeta que fará conhecer (lit. ‘anunciará’) todas as coisas, esperadas e inesperadas. João resume aqui muito bem a forma samaritana da expectativa messiânica: os samaritanos não esperavam da casa de Davi (cf. ‘Rs 12, 16), mas um profeta como foram suas figuras mais queridas, Moisés e Elias173.

Vale acrescentar aqui o que Schnackenburg escreve como explicação sobre a

expectativa messiânica dos samaritanos, o que nos poderá fazer entender melhor o

referencial usado pela mulher, quando ela fala do Messias esperado.

170 Cf. KONINGS, J., op. cit., p. 143-144. 171 Códice P séc. VI, apud CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA, op. cit., p. 54 e 56. 172 Códice Sinático (X), século IV, apud CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA, op. cit., p. 54 e 56. 173 KONINGS, J., op. cit., p. 144.

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Nas fontes samaritanas o Messias se chama Ta’eb, o que quer dizer o que retorna. Segundo Dt 18,18, é considerado como o profeta que, depois do proto-profeta Moisés, há de aparecer no final. A importância dessa passagem para a expectativa samaritana da salvação resulta do fato de ter sido acrescentado em seu Pentateuco como continuação do décimo mandamento de seu decálogo. O Ta’eb era considerado sobretudo como príncipe político, restaurador da realeza de Israel, à maneira do Messias davídico entre os judeus, mesmo que da tribo de Levi por causa de sua associação com Moisés. Assim ele, que seria sacerdote, restauraria também, o verdadeiro culto. Seu papel, às vezes impugnado, de revelar profético (ou bem de mestre), derivava também de Dt 18,18: assim em Memar Markah (fonte samaritana do século III-IV d.C. Iv, 12), se diz que ele há de revelar a verdade. A existência da expectativa samaritana do Messias vem confirmada também por Flávio Josefo (a XVIII, 85-87): Sob Pôncio Pilatos se apresentou um homem com a promessa de mostrar aos samaritanos sobre o monte Garizim os vasos sagrados que teriam sido enterrados ali por Moisés174.

4, 26 - “Diz-lhe Jesus: Sou eu, o que te fala”

A expectativa messiânica dos samaritanos, como já dissemos muitas vezes,

fundava-se no “profeta como Moisés”, prometido em Dt 18, 15.18. Como tal, também

foi introduzido Jesus em nosso texto. Mas o equívoco é mantido para que a auto-

revelação de Jesus apareça melhor como ponto culminante. “Jesus respondeu a ela:

sou eu, o que te fala”. Deste modo Jesus começa a dar esclarecer a mulher de que ele

é o mesmo o Messias, aquele que todos esperavam. A afirmação explícita egô eimí

recebe sua importância. Inicialmente pelo fato de Jesus aceitar facilmente este título

dos samaritanos, mas não dos judeus. A explicação pode estar, conforme Brown,

“nas conotações régias e nacionalistas que este termo possuía no judaísmo, enquanto

174 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 511.

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o Taheb samaritano (mesmo que também tivesse conotações nacionalistas) tinha mais

o aspecto de um mestre e um legislador”175.

4.4 O DIÁLOGO DE JESUS COM SEUS DISCÍPULOS (4, 27-38)

Os versículos que seguem concluem o encontro de Jesus com a samaritana e

preparam ao mesmo tempo as duas cenas seguintes: a) O diálogo “missionário” de

Jesus com os discípulos (v. 31-38); b) A acolhida cheia de fé dispensada a Jesus pelos

habitantes de Sicar (v. 39-42). O interesse cristológico segue vivo também nestes

versículos de transição: pela estranheza dos discípulos (v.27) e pelo chamamento da

mulher a seus compatriotas para que fossem ver aquele homem misterioso.

4, 27 – “Nisso chegaram os discípulos dele e se admiraram porque falava com uma mulher. Ninguém, porém, disse: O que procuras ou o que falas com ela?”

v.27 – Thaumázo – eu fico atônito, maravilho-me. O infinito ativo é

thaumázein. Denota a surpresa incrédula. A surpresa surge porque Ele estava falando

com uma mulher. Isto era considerado impróprio para um rabino.

O texto é bastante claro: “e se admiraram porque falava com uma mulher”.

Essa mulher era da raça dos samaritanos e isso pode ter feito parte da admiração

deles; ou talvez a sua perplexidade estivesse baseada no vestir dessa mulher, que

deveria ser diferente dos demais, talvez sem véu, mais livre dos preceitos judaicos.

Porém, para nós podemos continuar afirmando que o motivo que levou os discípulos

a se admirarem pode ter sido citado, não podemos esquecer o fato de Jesus estar

175 BROWN, R., El evangelio según Juan, p. 375; cf. BLANK, J., op. cit., p. 322.

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conversando com uma mulher em lugar público já era motivo para grande admiração

dos discípulos.

Nesse sentido nós, mulheres, hoje podemos comemorar o jeito de Jesus se

encontrar com a mulher samaritana, travar com ela longo e profundo diálogo

teológico, revelar-se a ela como o Messias e depois torná-la sua discípula e

missionária. Desse modo Jesus elevou muitíssimo a posição da mulher através da

samaritana.

4, 28 – “A mulher deixou o cântaro dela e foi à cidade e disse a todos (...)”.

O olhar se dirige de novo (pálin) para a mulher, que sai correndo para chamar

seus compatriotas. No fato de ela deixar o cântaro e sair correndo não é necessário

buscar nenhum mistério. Basta que se veja com simplicidade e a mulher que quer ir

ao povoado depressa e sem impedimentos e voltar quanto antes, acompanhada de

seus compatriotas. Ao evangelista só lhe interessa a notícia que ela propaga no lugar.

A conversa com Jesus causou um enorme impacto na vida daquela mulher. Jesus lhe

devolveu a vida, a alegria de viver a ponto dela deixar o cântaro para trás e o fato de

tirar água do poço perdeu inteiramente a sua importância!176

kaì légei – presente histórico: e disse:

176 SCHNACKENBURG, R., na nota 71, cita São Crisóstomo, que diz o seguinte: “A mulher estava tão inflamada pelas palavras de Jesus que esqueceu o motivo de sua ida ao poço!” (Hom. 34, 1; PG 59, 193).

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4, 29 – “Vamos! Vede o homem que me disse tudo quanto fiz. Não é este o Cristo?”

v. 29 – Em grego, deûte – advérbio serve como partícula exortativa. Vinde!

Vamos!

v. 29 – mêti – com esta palavra não necessariamente se espera uma resposta

negativa, mas, sim, pode expressar uma conjectura cautelosa177.

A mulher está como que embevecida pela idéia de haver encontrado o Cristo.

Ela quer chamar seus compatriotas e levá-los junto ao poço para ver aquele homem

misterioso (deûte ídete). Aqui também não se trata de tirar conclusões sobre sai

própria atitude de fé. Ela ficou fortemente impressionada com o fato de um homem

desconhecido, numa conversa rápida e casual, conhecer sua vida anterior. E esse fato

a convenceu que esse forasteiro tinha inquestionavelmente dons proféticos (cf. vv.

17-19). Tudo isso serve como sinal para nós de eu o evangelista João não atribui um

significado simbólico aos fatos narrados em seu evangelho178. Aqui se confirma

aquela tese que tentamos comprovar neste estudo exegético, isto é, que a mulher não

estava ali como mero representante de um povo, como exegetas masculinos

facilmente fazem. Jesus tem um interesse especial pela mulher, tendo um recado só

para ela. E ela teve um papel importantíssimo nesse encontro, como representante de

todas nós, mulheres, que ainda sofremos diversos tipos de preconceitos, até os dias

de hoje, preconceitos simplesmente porque somos Mulheres!

177 RIENECKER, F.; ROGERS, C., op. cit., p. 167. 178 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 513.

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4, 30 – “Saíram da cidade e chegaram perto dele”.

Certamente, havia muitos homens desocupados por causa da hora, pois era

meio-dia. Talvez descansassem à sombra de uma árvore, repousassem um pouco. Por

isso ela deve ter encontrado muitos ouvidos atentos. A excitação e a convicção que

ela demonstrava eram contagiantes. Ela deve ter-lhes falado a seu modo, convencida,

porém, de eu ao menos fossem até esse forasteiro e julgassem as coisas por si

mesmas. Ela não tinha necessidade de impor-lhes nada, nem a sua própria opinião. E

essa mulher, perguntando se não seria possível que esse homem forasteiro fosse o

Cristo, mais solicitou ser ajudada por eles do que pretendeu ser mestra deles. Talvez

temesse ser motivo de deboche da parte de seus compatriotas: quem era essa mulher

diante dos homens e das mulheres da Samaria? Era digna de crédito? E com isso ela

não afirma que encontrara o Cristo, mas simplesmente desperta a atenção deles para o

ponto central, que era a vinda do Messias.

O incidente inteiro nos fornece duas ligações distintas:

1. O grande amor de Jesus pelas almas humanas;

2. Como Jesus elevou a posição das mulheres.

Acerca da primeira lição esse episódio nos propicia uma notável ilustração do

amor de Jesus pelas almas humanas, assim como de sua habilidade, tato e fineza, ao

cuidar de casos de degradação moral e de preconceitos raciais. Conciliou a mulher,

pedindo-lhe um favor. A hesitação dela estava no fato de ela estar sendo solicitada a

dar de beber a um judeu e menos na questão de raça diferente. Jesus não procurou

enchê-la com novos conhecimentos, mas procurou despertar nela perguntas e levá-la

a refletir. E começou por tratar do estado dela com franqueza, sem ser ofensivo.

Contentou-se em permitir à mulher que ela percebesse que ele tinha consciência de

seu estado, sabendo que por intermédio dele ela haveria de chegar pocuo a pouco a

ele, como aquele que perdoa.

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No que diz respeito à questão de como Jesus elevou a posição da mulher,

basta simplesmente recordar que a religião rabínica degradava a posição da mulher. É

certo que nenhum rabino se teria rebaixado, como Jesus fez, instruindo uma mulher

que era samaritana e sobre assuntos religiosos! E Paulo ensina que em Cristo não há

homem nem mulher (Gl 3, 28). E me pergunto se a Igreja atingiu esse ideal ...179

4.4.1 O diálogo missionário com os discípulos

O diálogo muda. Agora não é mais com a samaritana, mas com os discípulos e

o diálogo que Jesus entabula com os discípulos tem claramente um caráter

missionário, fazendo com que o olhar se volte para a futura missão da Igreja180.

4, 31 – “Nesse meio tempo, os discípulos lhe pediram dizendo: ‘Rabi, come!’”.

Aqui temos a conversa entre Jesus e seus discípulos, com o seu duplo sentido

e com os seus equívocos. O início se dá com os discípulos pedindo para que Jesus

coma alguma coisa que eles haviam trazido da aldeia para comer. E Jesus diz que tem

um alimento, isto é, que se alimentava com uma comida especial, misteriosa (v. 32).

E segue mais um momento de surpresa, quando os discípulos admirados se

perguntam uns aos outros: Será que alguém lhe trouxe alguma comida e com isso foi

inútil eles terem ido à cidade buscar alimento? Esse equívoco deu ocasião a Jesus

179 Cf. CHAMPLIN, R., N., op. cit., p. 329-30. 180 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 513-514.

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fazer uma importante afirmação: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me

enviou” (v.32).

v. 4, 32 – “Ele, no entanto, disse a eles: ‘Tenho um alimento para comer que

vós não conheceis”.

Os pronomes “eu” e “vós” são enfáticos, expressando um violento contraste,

escreve Champlin, entre os pensamentos de natureza materialista dos discípulos e a

preocupação espiritual de Jesus181.

4, 33 – “Os discípulos diziam uns aos outros: ‘Porventura alguém lhe trouxe para comer?”

Parece que aqueles que seguiam a Jesus também não entendiam muito bem o

que Jesus lhes falava. A falta de compreensão dos discípulos se manifesta em seguida

num grande mal-entendido. E essas incompreensões se encontram não só na boca de

estranhos como Nicodemos (3,4), a samaritana (4,15) e de incrédulos (cf. 6,52; 7,35),

mas também entre os discípulos. Jesus é para todos os homens o estranho e o

incompreensível (3, 31s). Mas esses mal-entendidos servem também para levar

adiante o diálogo, dando a Jesus a oportunidade para esclarecer a palavra de

revelação, para expressá-la com mais propriedade182.

181 Ibidem, op. cit., p. 330. 182 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 515.

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A metáfora “comer” explica Mateos, “significa par Jesus a sua identificação

com o Pai como fonte de vida; para o discípulo, a sua aceitação de Jesus e sua adesão

a ele como doador de vida. Ambas se traduzem no agir que leva a realizar o designo

de Deus”183.

4,34 – “Diz-lhe Jesus: ‘O meu alimento é que eu faça a vontade de quem me enviou e realize a sua obra’”.

Jesus vive totalmente empenhado em fazer a vontade daquele que o enviou –

Deus. “O verso ‘fazer a vontade de Deus’, corrente no Antigo Testamento, no

judaísmo e no cristianismo primitivo, está geralmente associado à designação,

tipicamente joânica, de Deus como Pai: o Pai é quem enviou a Jesus”184.

Aqui é importante observar a afinidade teológica com Hb 10,4-9. Aqui a

entrega total de Cristo, que se concretiza no sacrifício cruz, vem motivada com o Sl

40, 7-9, mas sua prontidão para fazer a vontade de Deus a expressa Cristo já em sua

entrada no mundo (v.5 ). O decisivo em sua ação redentora está na entrega de as

vontade, na obediência a Deus. Essa entrega a deus e o desejo de fazer sua vontade

enchem toda sua vida e culmina no sacrifício de seu corpo185.

Neste versículo estão contidas três idéias principais:

183 MATEOS, J.; BARRETO, J. O Evangelho de São João, p. 223. 184 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 516. 185

Ibidem, p. 516.

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1. Fazer a vontade do Pai. Este é , igualmente, um dos grandes temas da

epístola aos Hebreus (cf. 10, 6-10).

2. Deus Pai enviou Deus Filho para uma tarefa especial. Essa particularidade

é frisada por Jesus muitas vezes e em todas as vezes é posta em destaque a obra do

Filho, como realização de uma tarefa especial, que lhe foi designada pelo pai. E ao

falar sobre os semeadores e os ceifeiros (v.36), Jesus mostrou que ele estendeu a sua

missão aos discípulos e, por conseguinte, as suas vidas passaram a ser governadas

pelo mesmo princípio.

3. Realizar a tarefa. Isso significa que nossa missão pode chegar a uma

conclusão satisfatória, apesar de alguma derrota aparente. “Neste versículo, a palavra

realizar não significa meramente levar à conclusão, terminar, e, sim, ‘aperfeiçoar,

encerrar com sucesso, plenamente”186.

4, 35 – “Não dizes vós: ainda quatro meses faltam e chega a colheita? Eis que eu vos digo: ‘Levantai os vossos olhos e vede as glebas, porque estão brancas e perto da colheita, já’”.

O texto aborda, agora, um novo assunto, o da “colheita”. Exista entre a obra

da salvação divina que Jesus realiza e a colheita uma ligação muito profunda e de tal

forma que a morte e a ressurreição de Jesus e sua exaltação são o pressuposto e a base

para a “colheita” (cf. a passagem 12, 20-26). Se observarmos atentamente, este

diálogo com os discípulos encerra a verdadeira compreensão joanina do diálogo de

Jesus com a samaritana. E daí a razão de estar neste lugar, antes de se falar do êxito

da missão entre os samaritanos.

186 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 330-331.

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É interessante notar aqui que a estação do ano serve a Jesus para fazer uma

comparação entre as duas colheitas: a do campo, ainda demorada, e a da fé da

Samaria, quase pronta para a ceifa. E convida os seus discípulos para eu se dêem

conta desta nova realidade. Nesse sentido, comenta Mateos:

As palavras de Jesus são cantos de triunfo. A esterilidade de Jerusalém e da Judéia transformou-se na fecundidade da Samaria (...) Se na Judéia ninguém aceitava o seu testemunho (3,32), aqui, pelo contrário, já estão a caminho os que o aceitam (4,30). A colheita, já presente, convida à ceifa e é estímulo para os discípulos. A frase de Jesus explica e confirma o que aconteceu com a mulher187.

4,36 – “O ceifador toma o salário e ajunta fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre junto com o ceifador”.

Jesus vive já o gozo da colheita. A palavra “ceifador” se refere a Jesus

mesmo, pensa Schnackenburg. Quando se diz que ele recebe seu salário e recolhe o

fruto, só se quer indicar a ceifa que está para ser realizada e a alegria que o ceifador

experimenta188. Não está, porém, em acordo com essa idéia Blank que diz ser uma

tarefa totalmente inútil querer determinar quem é o semeador e quem o segador. Para

Blank “o essencial é que chegou a hora da colheita. O ceifador está à disposição e já

recebe o pagamento antecipado, porque ‘colhe o fruto para a vida eterna’. Aqui

aparece bem claro o caráter escatológico da colheita189 Continuando sua explicação,

Blank afirma que o versículo 36 quer mostrar a finalidade da colheita: ‘... para que

187 MATEOS, J., BARRERO, J., O evangelho de São João, p. 224. 188 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 518. 189 BLANK, J., op. cit., p. 329.

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tanto o que semeia como o que colhe se alegrem’”190. Nesta narrativa constatamos

que o “semeador” é o próprio Jesus e os “segadores” são os discípulos ou os

primeiros missionários cristãos. E em tudo isso o essencial é a alegria comum. A

alegria da colheita é o exemplo típico de uma grande alegria, como se pode ver no Sl

126, 5s.

v. 37 – “Nisto é verdadeira a sentença: Um é o semeador, outro o ceifador”.

Na opinião de Blank:

os versículos 37 e 38 [os] poderíamos tomar como acréscimos ou complementos ao v. 36, como reflexão sobre o fato maravilhoso de que o êxito da missão, o êxito do Evangelho, não foi concedido ao Jesus histórico, mas foi dado de mão beijada à comunidade pós-palcal191.

Neste mesmo sentido pensa Schnackenburg, quando diz que este versículo

desempenha uma função de transição: no v. 36 era o Pai o semeador e Jesus o que

colhe. Agora, continuando a obra, são outros os semeadores assim como outros os

que colhem192.

190 Ibidem, p. 330. 191 Ibidem, p. 330. 192 Cf. SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 520.

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4,38 – “Eu vos mandei colher aquilo em que não vos cansastes; outros se cansarão e vós aproveitastes a fadiga (ho kópon) deles”.

Jesus “envia” seus discípulos a colherem onde não haviam feito esforços, nem

trabalhos. Na colheita missionária os discípulos levam avante a missão de Jesus. O

que eles colhem não é produto de seu trabalho, mas uma “obra de Jesus”. “Outros

trabalharam e vocês se aproveitam do seu trabalho”193.

Em seu escrito, Schnackenburg observa que

se deve levar muito a sério o aoristo (apesteíla): Jesus se transporta em espírito para o futuro, quando ele terá já enviado seus discípulos. O evangelho de João não informa de um primeiro envio durante as atividade terrestre de Jesus, coisa apenas surpreendente, apesar do fragmentário do relato. Enquanto Jesus se acha neste mundo é ele o único que atua, em unidade com seu Pai (cf. 5,17.19; 7,3; 9,4; 10, 25.32.37; 14,10). Os discípulos só começam sua atividade missionária depois da partida de Jesus, como enviados pelo Senhor ressuscitado (20,21) e guiados e apoiados pelo Espírito Santo (cf. 15, 26s; 16, 7-11)194.

Os discípulos, diferentemente de Jesus, poderão colher aquilo em que outros

investiram anteriormente. O mesmo autor esclarece, em continuidade, que kopiân e

kópos são termos introduzidos talvez por Paulo para significar o trabalho

missionário (cf. 1Ts 3,5; 1Cor 3,8; 15,10; Cl 1,29 etc) ou a atividade na comunidade

(cf. 1Ts 5,12; 1Cor 16,16; At 20,35; 1Tm 4,10; 5, 17). Se o termo aparece aqui em 193 BLANK, J., op. cit., p. 331 – Em nota, Johan Konings, em seu livro O evangelho segundo João, p. 146, escreve que esta interpretação corresponde melhor ao triplo paralelismo do v. 37b (lit.: [A] outro é quem semeia [B] e outro quem ceifa) – 38ª ([a] eu enviei-vos a ceifar [B] e v[os não vos cansastes) – 38b ([A] outros se cansaram e [B] vós entrastes no cansaço deles). 194 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 520.

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João no sentido de missão (diversamente em 4,6), se pode conjeturar que nesta

passagem aparece um interesse missionário “atual”, vivo no tempo do evangelista195.

4.5 O ÊXITO DA MISSÃO NA SAMARIA 94, 39-42)

4, 39 – “Daquela cidade muitos dos samaritanos creram nele, por causa da palavra da mulher que testemunhou: ‘Ele me disse tudo quanto fiz’”.

Neste ponto é interessante verificar que “muitos creram por causa do

testemunho da mulher”. Neste encontro entre Jesus e a mulher samaritana, à beira do

poço de Jacó, ela teve duas experiências importantes. Em primeiro lugar, a

experiência de ver posta à luz sua vida até o momento e, ao mesmo tempo, a

experiência oferecida por Jesus de uma nova vida simbolizada pela ‘água viva’ que

sacia completamente qualquer sede. Em segundo lugar, ela recebe a proposta de uma

nova forma de adoração a Deus, um novo culto divino. Estas duas experiências

ressoaram na profundidade de seu ser e, como conseqüência, a mudaram

completamente, sentindo-se obrigada a confessar.

195 Ibidem, p. 521.

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Aqueles samaritanos rejeitaram os profetas do judaísmo, mas muitos dentre os

quais falaram sobre o Messias. Agora recebem o testemunho de uma mulher. Ela lhe

fornece um sinal que eles não podem ignorar.

v. 4, 40 – “Os samaritanos chegaram a ele pedindo-lhe que ficasse com eles. E ficou ali dois dias”.

Encontramos aqui a ilustração do passo seguinte da fé. Os habitantes de Sicar

convidam Jesus para ficar junto deles a fim de que pudessem estar junto daquele que

esperavam. O evangelista João nos informa que Jesus atendeu ao pedido, mas ali

ficou apenas durante dois dias. “É típico de Jesus, escreve Champlin, o fato de que

ele, a despeito de ter sido judeu, nada via de errado por ficar entre os samaritanos,

porquanto estava muito acima dos preconceitos raciais e religiosos”196.

4, 41 – “E muitos mais creram devido à Palavra dele”.

O anúncio feito pela mulher samaritana, escreve Mateos,

196 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 333 – Quanto ao fato de Jesus ficar somente dois dias, Schnackenburg, em nota ao pé da página 524, refere o pensar de Bultmann que opina que o evangelista alude “talvez” à prescrição em Did 11,5, segundo a qual um pregador itinerante só deve deter-se dois dias numa comunidade. Contudo, não parece muito provável que o evangelista quisesse comprometer a Jesus com tal instrução disciplinar.

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é eclipsada pela palavra de Jesus. A fé já não se funda na experiência da mulher, e sim na experiência pessoal deles, que o ouviram e chegaram à persuasão de que é realmente o salvador do mundo. Para eles, Jesus não é o Messias nacional, destinado ao seu povo ou aos judeus; compreenderam que sua missão é universal, pois foi capaz de superar a inimizade entre os dois povos.

4, 42 – “E diziam à mulher: ‘Não mais por causa da tua palavra acreditamos. Nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo’”.

Sotêr – Salvador. O termo “salvador do mundo” era usado freqüentemente

referindo-se ao imperador romano197.

Encontramos aqui a conclusão da afirmação que tem por intenção provar

como Jesus demonstrou a sua missão na Samaria, bem como os poderes que

haveriam de acompanhar sua missão, especialmente no aspecto de conduzir homens

e mulheres à experiência da regeneração, pondo-os, dessa maneira, a caminho do

destino que lhes convinha como homens. Os capítulos primeiro a quarto deste

evangelho de João, se ocupam essencialmente dessa demonstração. Agora o círculo

197 Idem, p. 168.

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de demonstração estava quase completo. Jesus já obtivera discípulos e o testemunho

de diversos deles, como João Batista, seus discípulos, os da área de Jerusalém e

vizinhanças, e até mesmo um judeu de elevada categoria social, e, agora, o

testemunho dos samaritanos. Assim, encerramos reconhecendo que Jesus é

verdadeiramente o Salvador do mundo, como assim o professaram os habitantes de

Sicar.

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CONCLUSÃO

1. Nossa pesquisa se propôs responder à questão do encontro de Jesus com a

mulher samaritana. Foi dentro do evangelho de João, no capítulo 4, do v. 1 a 42, que

trabalhamos, mas o que nos interessou diretamente foi o diálogo de Jesus com a

mulher da Samaria, que está nos versículos 16 a 18. Fizemos uma leitura desses três

versículos apresentado a mulher samaritana, dentro de um contexto marcado pela

exclusão em que está inserida.

E foi escolhido esse texto de João, porque se crê que nos ajuda a nós,

mulheres, a ver a vontade de Jesus de restituir à mulher o seu vigor original e colocá-

la de pé e livre diante de Deus e diante dos homens. A Palavra de Deus tem uma

mensagem de libertação da mulher, revelando o significado dos diversos aspectos da

vida feminina. Igualmente nos revela a consagração da mulher ao serviço do Cristo e

da Igreja. Essa Palavra é esclarecedora e eficaz nas discussões e reivindicações neste

terreno.

Muitas perguntas moveram minha curiosidade científica, e também feminina,

a estudar este texto bastante meditado e estudado: Como Jesus se relaciona com a

mulher estrangeira? Tem Jesus uma pedagogia especial para buscar aquela mulher,

fazer-se conhecido dela e também ser reconhecido como Messias por ela? Que

significa este encontro de Jesus com a mulher samaritana para nós, mulheres? Foi

feito um exame detalhado versículo por versículo e neste encontro foi descoberta a

sutileza de Jesus em dar-se conhecer e assim ganhar o coração daquela mulher que

parecia perdida.

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2. Num primeiro capítulo procuramos conhecer alguns pontos da história do

povo de Israel. Com isso se localizaram respostas para o problemático

relacionamento entre samaritanos e judeus que, num primeiro momento, dificultou o

diálogo entre Jesus e a mulher samaritana. Vimos que os judeus adoravam Yahweh

no templo, em Jerusalém, e os samaritanos no Monte Garizim. Constatamos que

havia preceitos na lei judaica que proibiam a um homem conversar com uma mulher

em lugar público. Mais ainda, constatamos que Jesus, um judeu, se autoriza a

conversar junto ao poço de Jacó com uma mulher pertencente a um povo não amigo!

Nesta pesquisa contatamos que o problema de relacionamento entre judeus e

samaritanos vai muito além de uma questão de encontro de um homem judeu com

uma mulher samaritana em lugar público. É uma questão que tem suas raízes num

passado repleto de guerras, inimizades e divisões.

3. Num segundo momento buscamos conhecer como viviam as mulheres em

Israel no tempo de Jesus. É necessário este estudo para compreendermos o

relacionamento de Jesus com as mulheres. Constatamos que é uma mulher ligada a

costumes, a leis e preconceitos, subordinada, mas desejosa de romper as convenções

sociais e religiosas da época. É a mulher de Israel que apresentamos, a mulher que é

mãe, esposa, dona de casa, artesã. Constatamos que, no tempo de Jesus, um direito

importante de que gozava a mulher era o de poder escutar a Torá, sem, contudo,

poder lê-la.

4. Um outro momento de nosso estudo foi dedicado à análise do texto de Jo

4, 1-42. Após a tradução do original grego, há uma delimitação do tema, notas

introdutórias ao texto e a contextualização do capítulo 4, que é o que nos interessa,

entre o capítulo que traz a narrativa da água transformadora em vinho (2.1-10) e o

capítulo que fala do diálogo de Jesus com Nicodemos sobre o novo nascimento.

5. Ao longo desta pesquisa, sobretudo nos vv. 16 a 18, averiguamos que esse

encontro de Jesus com a mulher samaritana possui características muito especiais:

a) Jesus é um homem, judeu, talvez um homem da Lei, representante do reino

do Sul, provavelmente um rabino aos olhos daquela mulher, por causa de suas

roupas, um estrangeiro, um desconhecido. Ele estava só quando se encontra com a

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mulher, ele que como homem nem sequer podia dirigir-lhe o olhar, menos ainda

conversar.

b) Ela, mulher, socinha, em pleno meio dia, num lugar público, a fonte,

moradora do reino do Norte, povo separado por muitas guerras, dominações de povos

estrangeiros, lugar de sincretismo religioso, com suas próprias leis, seu próprio

lugar para adorar Yahweh, o monte Garizim. Eram considerados pagãos os

samaritanos pelos judeus do Sul.

c) Moradores do reino do Norte, os samaritanos njão se comunicavam, nem se

misturavam com os judeus, moradores do reino do Sul.

6. Jesus chega fatigado, ao meio-dia, junto ao poço de Jacó, nas terras dos

samaritanos e lá encontra uma mulher da Samaria. Ele lhe pede água. Os judeus

consideravam os samaritanos um povo de pagãos, impuros, jamais se permitindo usar

qualquer utensílio usado também por um samaritano. E Jesus, mesmo assim,

conversa com a mulher, pede-lhe de beber, revela-se a essa mulher, usa toda a

sutileza de sua sabedoria para trazer de volta aquela que estava desgarrada e através

dela chamar o seu povo para junto daquele que era aguardado pelo povo. Para nós,

mulheres, é importante trazer à luz esse texto em que Jesus elevou mulheres de seu

tempo e saber que ele é o Deus de todos os povos, ontem hoje e sempre.

7. Jesus conversou com a mulher da Samaria, pediu que lhe desse de beber,

buscou-a. Um pedido tão simples, mas de profunda significação. O pedido por água,

caso fosse atendido, correspondia a uma aceitação, até o namoro. Qual era o judeu

que pediria hospitalidade a uma samaritana, sobretudo aquela colocada à margem da

sociedade, furtando-se do convívio de outras pessoas, escondida em sua culpa e

assumindo a condição de mulher de vida irregular? Sua vergonha e sua dor eram tão

profundas que o simples pedido de Jesus abriu espaço para o diálogo, deixando –se

penetrar no mais íntimo de seu ser, lá onde se escondia o medo, a marginalidade e a

opressão. É lá que entra Jesus e a traz de volta para a vida. Esta oportunidade abriu

caminho para a sua libertação. Com uma enorme sede interior, confessou a Jesus o

seu estado e lhe pediu que saciasse definitivamente sua sede. E Jesus o faz!

Revelou-se a esta mulher como o Messias, a quem ela esperava e o mesmo fez a seu

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povo. Ela acreditou em suas palavras, não foi preciso nenhum sinal, nenhum milagre.

Bastou-lhe a sua palavra. Havia naquele momento achado o que buscava, o sentido

para sua vida. Essa vida deve ser partilhada, doada e ofertada para ser multiplicada.

8. A mulher samaritana entendeu que o Dom, o presente ofertado por Jesus é

o Espírito Santo, o Espírito da vida. A mulher está embevecida pela idéia de haver

encontrado o Cristo. Ela chama seus compatriotas e leva-os para ver aquele homem

desconhecido que a impressionou, numa rápida conversa, conhecendo sua vida

anterior, convencendo-a de que tinha dons proféticos. Sua excitação e convicção

demonstradas eram contagiantes e despertaram a atenção de seus compatriotas para o

ponto central que era a vinda do Messias.

Além de ser uma notável demonstração de amor de Jesus pelas almas

humanas, Ele elevou a posição da mulher, tradicionalmente degradada na religião

rabínica.

9. Depois de sentir-se aceita, a mulher se abriu à mensagem. Ela entra numa

total sintonia com Jesus a ponto de reconhecer nele o Profeta que aguardavam

há tantos anos. E aí ela exala todo o amor recebido chamando seus compatriotas.

Com essa mulher sucede o maravilhoso: quando Jesus chega ao seu coração,

revelando quem ela é e toda sua vida, dali em diante tudo muda. A conversa com

Jesus causou um profundo impacto na vida dessa mulher. Jesus lhe devolveu a vida, a

alegria de viver a ponto de deixar o cântaro para trás e ir comunicar o sucedido aos

seus compatriotas. Houve o encontro, o profundo diálogo teológico, a revelação de

Jesus como o Messias, e a mulher se torna discípula e missionária de Jesus!

10. Verificamos com isso que o evangelista João não atribui significado

simbólico aos fatos narrados em seu escrito. Vemos isso no fato de a mulher

samaritana não estar aí como mero representante de um povo. Está muito claro que

Jesus tem um interesse especial pela mulher e tem um recado só para ela. Ela teve

um papel importantíssimo nesse encontro como representante de todas nós,

mulheres.

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11. Entre os seguidores de Jesus não há de forma alguma espaço para a

discriminação de pessoas. Nesta nova comunidade, protagonizada pela vinda de

Jesus, cada um, homem e mulher, estrangeiro ou não, precisa largar o seu cântaro nos

poços onde não se sacia a sede e deixar-se buscar pelo Jesus, o Senhor, a água viva, a

fim de adorar a Deus em Espírito e em Verdade. Neste ponto não há lugar para a

divisão entre judeus e gregos, homens e mulheres, escravos e libertos, ricos e pobres,

patrões e empregador, adultos e crianças. Para Deus somos todos iguais, somos seus

filhos e filhas amados em qualquer lugar onde possamos estar, convocados para,

como a samaritana, a sermos anunciadores e anunciadoras do Messias, o Cristo.

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