O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NUMA ESCOLA … FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE
LINGUAGEM
MARKI LYONS
O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NUMA ESCOLA
PÚBLICA DE MATO GROSSO: A RELAÇÃO CRENÇA -
CONTEXTO
CUIABÁ - MT
2009
MARKI LYONS
O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NUMA ESCOLA
PÚBLICA DE MATO GROSSO: A RELAÇÃO CRENÇA -
CONTEXTO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Estudos Lingüísticos Linha de Pesquisa: Paradigmas de Ensino de Línguas Orientadora: Profa Dra. Ana Antônia de Assis-Peterson
CUIABÁ - MT
2009
iv
DEDICATÓRIA
Aos meus avós, Virginia Belle Lyons, Janet Whiteside
Harkins e John Harkins, por terem dedicado tanto tempo e
amor à minha formação, ofereço-lhes essa obra como
símbolo da minha gratidão.
v
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a minha orientadora, Ana Antônia de Assis-
Peterson, pelo apoio e estímulo constantes e pelas constribuições valiosas que
auxiliaram na concretização deste trabalho. Aos professores que compõem a
banca, Hilário Ignácio Bohn e Maria Inês Pagliarini Cox, agradeço a leitura
atenciosa e as sugestões que contribuíram para este trabalho. Também não
poderia deixar de agradecer aos professores do Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Linguagem – Mestrado, por me encaminharem nos estudos
com paciência e carinho. Reconheço também a participação da diretora,
professores e alunos que participaram desta pesquisa, em especial, da
professora de LI, que abriu a sua sala de aula para minha participação, e sem
os quais este trabalho não poderia ter-se realizado. Finalmente, a minha
família, agradeço sua paciência e compreensão, especialmente nos momentos
em que minha dedicação aos estudos tomava o lugar de atividades familiares.
vi
RESUMO
LYONS, Marki. O ensino de língua inglesa numa escola pública de Mato Grosso: a relação crença – contexto. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem. Programa de pós-graduação em estudos de linguagem, 2009 Esta dissertação tem como objetivo mostrar a relação entre crenças e contexto, enfocando as crenças que embasam a atuação de uma professora de Língua Inglesa (LI) e a maneira como são relacionadas às crenças de outros atores da escola como alunos e administradores (direção e coordenação). A pesquisa em que se baseia esta dissertação se concretizou no segundo semestre de 2007, numa escola pública de ensino fundamental, localizada na periferia de Várzea Grande – MT. Os resultados apresentados aqui são oriundos de uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico em que fiz o papel de observadora participante. Por meio da observação e interação com alunos, professores e administradores da escola, busquei compreender o contexto da escola e as crenças de seus atores. Os dados coletados incluem anotações de observação, o diário da professora participante, entrevistas e conversas gravadas em áudio, dois questionários aplicados aos alunos e um depoimento de uma professora da escola que aconteceu durante o evento anual da APLIEMT (Associação de Professores de Língua Inglesa de Mato Grosso), gravado em vídeo. As crenças não foram definidas a priori, mas surgiam como temas recorrentes que criaram repercussões em vários níveis da escola, referentes aos alunos, professores e administradores. Partindo do ponto de vista da professora participante, três crenças se destacaram como influentes na sua atuação, especialmente em relação à metodologia de ensino-aprendizagem. Estas crenças são: (1) os alunos não têm uma base linguística e/ou educacional adequada para aprender a LI, (2) o ensino-aprendizagem de LI é contemplado em segundo lugar comparado à necessidade de enfocar a cidadania e as boas maneiras, e (3) falta apoio em vários níveis dentro do sistema educacional para planejar e desenvolver atividades que auxiliam o ensino-aprendizagem dos alunos. Essas crenças são representativas de desafios encontrados na escola pública brasileira na contemporaneidade onde baixas expectativas por parte de professores e administradores podem influenciar negativamente o rendimento do aluno – a LI como disciplina é pouca respeitada e a falta de compromisso com o sistema educacional afeta quem precisa mais de recursos educacionais para se inserir na sociedade com dignidade. Uma releitura das crenças, utilizando a técnica de processamento metafórico permitiu visualizar as crenças dos atores da escola como um movimento centrípeto-centrífugo, demonstrativo das tensões entre forças conservadoras e renovadoras que existem na escola e, ao mesmo tempo, de espaços favoráveis à introdução de melhorias na escola e no ensino-aprendizagem de LI. Palavras-Chave: crenças, contexto escolar, ensino/aprendizagem de língua
inglesa.
vii
ABSTRACT
LYONS, Marki. Teaching English in a public school in Mato Grosso: the relationship between beliefs and context. Master’s thesis. Universidade Federal de Mato Grosso. Language Institute. Master’s Program in Language Studies, 2009. The objective of this Master´s thesis is to show the relationship between beliefs and context, focusing on the beliefs upon which a teacher of English as a foreign language (EFL) bases her practice as well as the way in which these beliefs are related to those of others in the school context, such as administrators and students. The research upon which this thesis is based took place in a public school on the periphery of Várzea Grande, Mato Grosso during the second semester of 2007. The findings presented here are the result of qualitative research based on ethnographic methodology and participant observation. Through observation and interaction with students, teachers and administrators, I aimed to comprehend the school context and the beliefs of those pertaining to it. Data collected includes notes based on observations, the participating English teacher's journal, interviews and conversations with school actors recorded in audio, two questionnaires applied to participating students and a teacher's public testimony that was given during the annual event held by the English Teacher's Association of Mato Grosso (APLIEMT) and recorded on video. The beliefs presented here were not defined a priori, but emerged as recurrent themes that had repercussions throughout various levels within the school, in reference to students, teachers and administrators. Starting from the participating teacher's point of view, three beliefs were identified as influential on the teacher's practice, especially in relation to teaching methodology. These beliefs are: (1) that the students do not have an adequate linguistic and/or educational basis to learn EFL, (2) that teaching EFL takes second place to the necessity to focus on citizenship and good manners, and (3) that there is a lack of support to plan and develop teaching activities specifically aimed at helping students that exists on various levels within the educational system. These beliefs are representative of the challenges faced within the Brazilian public school system today, where low expectations on the part of teachers and administrators negatively influence students' performance – EFL as a school subject receives little respect and the lack of compromise with the educational system affects those who most need educational resources to integrate with society with dignity. A second interpretive reading was given to the beliefs, based on metaphoric processing, which allowed the beliefs related in this thesis to be seen as a centripetal-centrifugal movement, demonstrating tensions between conservative and renovative forces that exist in the school and, at the same time, as spaces that are favorable to introducing positive changes in the school and in teaching EFL.
Key words: beliefs, school context, teaching/learning English as a foreign language.
viii
LISTA DE TABELAS
Docentes e alunos, participantes da pesquisa ................................................ 63
Matriz SWOT ................................................................................................... 68
ix
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA ………………………..……………………………………………. IV
AGRADECIMENTOS …………………...………………………………………….. V
RESUMO ………………………………….....……………………………………… VI
ABSTRACT …………………………………..…………………………………….. VII
LISTA DE TABELAS ..................................................................................... VIII
SUMÁRIO ………………………………………………………………………….... IX
1 INTRODUÇÃO ….......................................................................................... 01
1.1 Apresentação do tema …......…..................................................... 01
1.2 Alinhamento entre o prescrito e o real ........................................ 04
1.3 O professor de língua estrangeira ............................................... 06
1.4 Percurso como professora de LE ................................................ 09
1.5 Justificativa, objetivos e perguntas da pesquisa …....................13
1.6 Contribuições da pesquisa …........................................................15
1.7 Organização da dissertação ….....................................................16
2 ENSINO DE LINGUA ESTRANGEIRA: REVISÃO DA LITERATURA ….... 18
2.1 Introdução ….................................................................................. 18
2.2 Do ensino de LE no Brasil …........................................................ 22
2.3 Das imagens em torno do professor de inglês .......................... 30
2.4 Ensino-aprendizagem de LE e crenças …................................... 31
2.5 Do contexto …................................................................................ 41
3 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ….................................................... 45
3.1 Introdução ...................................................................................... 45
3.2 Da pesquisa etnográfica ............................................................... 46
3.3 Da pesquisadora e da professora participante …..................... 49
x
3.4 Do percurso da pesquisa ….......................................................... 53
3.5 Do bairro e seus moradores …..................................................... 58
3.6 Da escola ….................................................................................... 61
3.7 Dos atores da escola …................................................................. 62
3.8 Do procedimento analítico …........................................................ 63
3.9 Das limitações da pesquisa …...................................................... 64
4 ANÁLISE DE DADOS: CRENÇAS EM CONTEXTO …............................... 66
4.1 Crenças e contexto escolar …...................................................... 66
4.1.1 Crença 1: “os alunos não têm uma boa base” ….......................... 67
4.1.2 Crença 2: “tenho que ajudá-los a ser cidadãos e boas pessoas” 77
4.1.3 Crença 3: “falta...suporte” …......................................................... 89
4.2 Processamento metafórico …..................................................... 100
4.3 Crenças e ensino de LI no contexto atual …............................. 104
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ….................................................................... 108
5.1 Resumo da pesquisa …............................................................... 108
5.2 Contribuições da pesquisa à LA …............................................ 113
5.3 Implicações para pesquisas futuras …...................................... 115
5.4 Desafios pessoais e profissionais …......................................... 117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ….......................................................... 120
1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, introduzo algumas premissas chaves ao
desenvolvimento desta dissertação, por meio de uma exposição de conceitos e
teorias que a embasam. Assim, tento fazer uma ligação entre o ensino-
aprendizagem de Língua Estrangeira (LE), mais especificamente, de Língua
Inglesa (LI), o contexto escolar e as crenças dos atores desse contexto,
examinando o que dizem os autores da área de Lingüística Aplicada (LA), área
em que esta dissertação se insere. Além disso, narro minha própria experiência
como agente propulsor do empreendimento da pesquisa aqui apresentada.
Com base na minha experiência prévia como professora, descrevo as
inquietações que me levaram a fazer esta pesquisa. Finalmente, apresento os
objetivos e as perguntas da pesquisa, bem como a organização desta
dissertação.
1.1 Apresentação do tema
As instituições educacionais têm algo em comum: a missão de formar
cidadãos que possam contribuir à sociedade a que pertencem. Para que isso
seja feito, requisitos básicos de conhecimento são estabelecidos, delimitando
as disciplinas a serem incluídas no currículo da escola. Cabe a cada instituição
estruturar-se física e administrativamente para que possa oferecer essas
matérias à comunidade que serve.
Apesar das semelhanças entre as instituições educacionais, não há
como generalizar a ‘escola’, pois cada uma tem sua história, sua
particularidade. Generalizar o que acontece numa escola seria estereotipá-la,
pois é preciso levar em consideração os fatores que compõem o contexto
escolar para compreender as necessidades locais em relação às necessidades
nacionais, e até globais (Erickson, 2001, p. 10). Assim, situando-me na
localidade, com um olhar na especificidade de uma escola pública de ensino
fundamental, pretendo enfocar quais aspectos do contexto escolar influenciam
o ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI), tais como a interação entre os
atores da escola e a construção da imagem dos mesmos. Para tal, empreendo
2
uma pesquisa de natureza qualitativa e etnográfica, acompanhando o trabalho
de uma professora de LI em uma escola pública com o intuito de compreender
a relação entre crenças e contexto escolar. De interesse particular são os
aspectos do cotidiano que de tão comuns entre os protagonistas da escola
passam despercebidos. Desta maneira, focalizo as crenças dos atores da
escola (professor, aluno, administrador1) em relação ao ensino de LI, e o
contexto escolar.
Essa investigação justifica-se pela necessidade de rever o processo de
ensino-aprendizagem de LI à luz de um paradigma de ensino ainda emergente
no Brasil, o paradigma construtivista, presente nos documentos oficiais que
servem como guia ao professor. Esse paradigma coexiste com o outro que tem
regido o processo de ensino-aprendizagem desde a popularização da
educação no fim do século XIV (Murphy, 2000), o paradigma de transmissão de
conhecimento.
O paradigma construtivista tem sido impingido aos professores por meio
de documentos oficiais como, por exemplo, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, considerados herméticos, distantes do conhecimento do professor.
Assim, a presença deste paradigma nos documentos oficiais implica a
necessidade de ressignificar a prática docente, para que o professor possa
participar mais ativamente no debate sobre políticas educacionais. Se o
paradigma construtivista tem por objetivo a construção de conhecimento tanto
em sala de aula quanto fora dela, no espaço da escola, significa buscar
métodos de ensino que forneçam as ferramentas que levam os alunos a testar
suas próprias hipóteses, baseados no conhecimento prévio que trazem para a
sala de aula, além de ressignificar o espaço da escola para que seja permeável
às mudanças da sociedade.
Para tal, o paradigma construtivista visa um deslocamento dos papeis
tradicionais do professor e do aluno. Sob o paradigma de transmissão de
conhecimento, o professor é central ao processo de ensino-aprendizagem,
como detentor de conhecimento. Tudo que os alunos precisam saber reside na
mente do professor (ou, é assim que parece), à espera de ser repassado ao
aluno. O papel do aluno se reduz à memorização de ‘fatos’ para ser aprovado 1 Nesta dissertação, os termos “professor”, “aluno” e “administrador” são utilizados de forma abrangente quando não há referência a um indivíduo específico, referindo-se aos dois gêneros, masculino e feminino.
3
nas avaliações aplicadas pelo professor. Ao contrário, sob o paradigma de
construção de conhecimento, valoriza-se a posição e as necessidades do
aluno. A sala de aula é vista como lugar de interação e descobrimento, o que
propicia a construção de conhecimento. Reivindica-se a transformação do
papel do professor e sua maneira de atuar, desde sua posição em sala de aula,
até os métodos empregados por ele, para ressaltar a importância da
participação dos alunos na sua própria aprendizagem. Sob o paradigma
construtivista, o conhecimento não reside mais na cabeça do professor, mas
forma um tipo de ‘rede virtual’, compartilhada por todos que compõem a sala de
aula e a comunidade educacional maior.
Moraes (1997) e Murphy (2000) salientam que o paradigma
construtivista se manifesta como reação às inquietações da comunidade
científica em relação às premissas que embasam o paradigma de transmissão
de conhecimento, modelo que parece inadequado a responder às
necessidades educacionais da atualidade. Além do mais, Moraes (1997)
destaca que os profissionais da área educacional devem voltar sua atenção à
importância da interação, fatores socioculturais e questões espirituais que
afetam o processo de ensino-aprendizagem2.
Enfatizar que os paradigmas de construção e transmissão de
conhecimento coexistem no espaço educacional demonstra que as instituições
educacionais também se encontram em processo de mudança, porém de
velocidade mais lenta do que a mudança de teorias que embasam o processo
de ensino-aprendizagem. As estruturas físicas e administrativas dessas
instituições não são facilmente mudadas para alinharem-se a novos
paradigmas, pois precisa-se de tempo para que as novidades sejam filtradas
pelos variados níveis institucionais e ações dos indivíduos. Muitas vezes há
impedimentos ao processo: confusão sobre como se alinhar às novas teorias,
resistência à mudança, falta de recursos e tempo, e necessidade de formação
continuada para todos envolvidos na instituição educacional. Esses obstáculos
fortalecem indevidamente o apego ao velho e conhecido modo de operar. No
entanto, momentos de confusão e incerteza indicam a percepção de um
2 A autora denomina esse paradigma de “construtivista, interacionista, sociocultural e transcendente” (Moraes, 1997, p. 197).
4
problema e podem implicar em reflexão, que, por sua vez, pode levar a
mudança.
Ao enfocar a relação entre ensino-aprendizagem de LI, contexto
escolar e crenças, espero evidenciar alguns dos fatores particulares que se
convertem em empecilhos para a mudança. Embora esta pesquisa represente
uma reflexão sobre o estado do ensino de LI num local específico e a influência
do contexto nas crenças dos atores da escola pesquisada, eu espero contribuir
para a discussão sobre como superar a lacuna entre paradigmas e instituir
mudanças necessárias no cenário educacional.
1. 2 Alinhamento entre o prescrito e o real
Para superar a lacuna entre a proposta dos documentos oficiais (PCN,
OCEM) e a atuação do professor na sala de aula, é necessário investir no
sistema educacional e na formação dos professores, seja na formação inicial,
seja na formação continuada. Vale lembrar que, para muitos professores,
alinhar sua prática com o paradigma construtivista significa uma grande
mudança, pois incorporar os pressupostos desse paradigma ao seu dia-a-dia
implica em ressignificar o que é ser professor e como ensinar. Além disso,
políticas atuais estabelecidas pelo Ministério de Educação (BRASIL, 2006)
responsabilizam o professor pela instituição de mudanças que ressignificarão
sua atuação em sala de aula, por meio da formação continuada, enquanto
pode haver pouca mudança no contexto em que atua. Ao mesmo tempo em
que os órgãos educacionais cada vez mais responsabilizam o professor para
efetivar essas mudanças, efetivamente, há uma crescente
desresponsabilização do Estado em relação à educação formal da criança
(Nóvoa, 2001).
Para Nóvoa (2001), isso acontece porque existe um paradoxo em
relação às exigências impostas pela sociedade ou à escola ou ao professor.
Segundo este autor, a sociedade não tem uma visão clara na atualidade do
que a escola deve representar e os objetivos que deve cumprir. Além disso, a
sociedade encarrega à escola “missões”, tarefas que a sociedade não
consegue cumprir, levando o professor a ter de cumprir tarefas e papéis
excessivos, e de ser o enfoque de críticas públicas. Por isso, é possível que o
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professor se defronte com resistência – de alunos, pais, outros professores,
administradores – à mudança no contexto escolar, resultando em conflito.
Outros obstáculos, como a falta de materiais, a estrutura física da escola, a
duração ou freqüência das aulas, e acontecimentos imprevistos, também
podem representar um empecilho ao processo de mudança.
Para se alinhar ao paradigma construtivista, o professor necessita dispor
de amplo conhecimento dos seus alunos e do conhecimento prévio deles. É
imprescindível que seja capaz de selecionar material, abordagens e métodos
de ensino e avaliação em congruência com as necessidades levantadas pela
observação e avaliação inicial dos alunos. Isso requer que o professor se
engaje num processo reflexivo contínuo sobre sua atuação, além de uma
reflexão sobre o resultado desejado em sala de aula, relacionado ao
desempenho dos seus alunos. Resta perguntar: o professor, sobrecarregado
pela complexidade de sua profissão, dispõe do tempo necessário para engajar-
se na reflexão?
Embora pareça que o professor tome essas decisões individualmente,
ele atua numa instituição educacional, entidade complexa, em que o indivíduo
se defronta com o coletivo. Raposo e Maciel (2005, p. 311), que pesquisaram
os processos co-construtivos na interação entre professores, constatam que o
contexto tem uma grande influência no desenvolvimento do indivíduo. Como
conseqüência, podemos inferir que, além da interação professor-professor, alvo
da pesquisa acima citada, a interação entre os demais atores da escola tem
grande influência nos projetos desenvolvidos nela.
Os colegas, administradores e outros atores da escola fazem parte do
contexto escolar e, em conjunto, constroem a atmosfera organizacional, sob a
influência de forças institucionais e governamentais. Esses indivíduos tanto
podem apoiar empreendimentos novos, quanto podem impedi-los. O espaço
escolar é um lugar de negociação e mediação entre os desejos e necessidades
dos indivíduos e do coletivo. Consequentemente, se esse processo for
negociado colaborativamente, pode-se caracterizar a atmosfera organizacional
como saudável, pois cria as condições necessárias para apoiar a atuação do
professor. Porém, se for caracterizado isoladamente e/ou por excesso de
confrontos, provocando fragmentação, divisão dos atores e conflito, a
6
atmosfera organizacional representará um empecilho para o professor
equilibrar seu ensino entre o requisitado e o desejado.
Dessa maneira, a dimensão organizacional influencia as decisões
tomadas pelo professor. Elementos, como a presença ou falta de
equipamentos e materiais, e tempo para planejar atividades escolares, têm
efeito na qualidade do ensino. Outros fatores, como interrupções durante a
aula, e (a falta de) recursos, como biblioteca e sala de informática, podem ser
citados como influentes na qualidade de trabalho feito pelo professor. Além
disso, fatores aparentemente ‘insignificantes’, como a qualidade da merenda,
as atividades do intervalo e as condições de abrigo contra o tempo (chuva,
calor, etc.) influenciam o clima organizacional e podem ter impacto no ensino.
1.3 O professor de língua estrangeira
Na atualidade, entende-se que o indivíduo está em constante formação.
Por isso, há uma expectativa de que os profissionais estejam constantemente
buscando aprimorar-se. Na área educacional, não é diferente. Para o professor
de LE, além do incentivo para aprimorar-se que provém do MEC (Brasil, 2006),
há também a chamada à mudança que se irradia do campo de Lingüística
Aplicada (Almeida Filho, 2005; Gimenez, 2002), área científica na qual esta
pesquisa se inscreve. Enquanto encoraja-se o professor de LE a participar de
cursos voltados à formação continuada e a se engajar na reflexão sobre o
processo de ensino-aprendizagem, também há incentivo para empreender
pesquisas em sala de aula, tomando os conflitos do cotidiano como base de
questionamento. Pode-se constatar que essa posição está em consonância
com o paradigma que visa à construção de conhecimento em sala de aula,
embora não seja necessariamente voltado à inclusão dos alunos no
empreendimento. Segundo o MEC (Brasil, 2006), a formação continuada não
deve se restringir unicamente a cursos, palestras e outras atividades fora de
sala de aula. Contudo, observa-se que, no documento desenvolvido pelo MEC,
não haja inclusão de uma política que sirva de base para a promoção do
professor no plano de carreira, na forma de aquele professor se engajar numa
pesquisa de sala de aula.
7
Segundo a literatura produzida na LA, o professor de LE deve buscar
oportunidades de expandir, além do conhecimento dos seus alunos, seu
próprio conhecimento por meio do empreendimento de pesquisas no seu
contexto de atuação. Empreender uma pesquisa em sala de aula requer
engajar-se num processo dinâmico. Depende não só da interação e
negociação entre professor e aluno, mas da mediação de todo o contexto
escolar.
Para determinar o sucesso da formação continuada, é necessário,
portanto, levar em consideração esse contexto. Isto é, é preciso associar a
atuação do professor ao contexto em que exerce sua profissão. Esse contexto
é o lugar onde ocorrem suas experiências com o processo de ensino-
aprendizagem, experiências que criam, confirmam ou refutam as “noções” que
o professor carrega sobre esse processo. Essas noções se enraízam nas
circunstâncias que precedem sua história como professor, entre elas o que
vivenciou como aluno.
Almeida Filho (2005) denomina essas noções como teorias implícitas.
Implícitas porque, se o professor não refletir sobre suas crenças relacionadas
ao ensino-aprendizagem, essas noções podem permanecer nas entrelinhas do
seu fazer, dirigindo suas decisões e ações de maneira inconsciente. Conseguir
explicar o quê o professor faz em sala de aula, mas não conseguir explicitar o
porquê de sua atuação é um dos indícios que apontam para as teorias
implícitas, salienta Almeida Filho. Entender a importância dessas teorias em
relação à formação continuada do professor de LE faz-se relevante ao campo
de LA. Ao preocupar-se com a qualidade da educação lingüística, é necessário
estender o escopo das investigações para levar em consideração fatores que
tanto podem aumentar o sucesso da renovação da prática docente quanto
podem impedi-la. Investigar as crenças, as teorias implícitas ou explícitas do
professor de LE, em relação à formação continuada e ao contexto escolar, se
apresenta como oportunidade de compreender a complexidade do processo de
renovar a prática docente.
Dentro da área de LA, existem outras pesquisas que relacionam as
crenças do professor de LE ao processo de ensino-aprendizagem (Barcelos,
2000; 2004). Enquanto várias pesquisas trataram as crenças como entidades
mentais individuais, mais recentemente, as crenças têm sido redefinidas para
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levar em consideração o aspecto social na formação delas. Para dar conta da
complexidade das crenças, agora elas são compreendidas como dinâmicas,
em vez de ser caracterizadas como estáticas. Enquanto antes as crenças não
foram relacionadas ao contexto em que se formam, agora se entende que as
crenças surgem em referência à experiência, à interação e ao meio social. Por
isso, as pesquisas mais recentes têm levado em consideração o contexto em
que aparecem.
Definir o que são crenças, no entanto, não é tarefa fácil. Barcelos (2000;
2004) relata que desde que pesquisadores da área de LA se interessaram em
estudar as crenças relacionadas ao ensino-aprendizagem de LE, tem-se
utilizado uma pletora de termos para denominá-las. Aqui não cabe uma
discussão sobre as implicações dessa proliferação de terminologia, mas é
importante salientar que as crenças parecem ser mais facilmente
caracterizadas do que definidas. Barcelos (2006, p. 18-20), citando Barcelos e
Kalaja (2003), caracterizam as crenças como sendo:
• dinâmicas; há a possibilidade das crenças mudarem através do
tempo;
• emergentes, socialmente construídas e situadas contextualmente; se
desenvolvem e se modificam na interação;
• experienciais; resultam da experiência social;
• mediadas; funcionam como ferramentas de aprendizagem e/ou para
resolver problemas;
• paradoxais e contraditórias; com a mudança de situação de
interação, as crenças também podem mudar, ainda que
temporariamente;
• relacionadas à ação de maneira indireta e complexa; as crenças não
necessariamente influenciam as ações de maneira linear;
• não tão facilmente distintas do conhecimento; as crenças não podem
ser separadas dos processos de cognição.
Levando essas características em consideração, defino crenças como redes
semánticas que ajudam o indivíduo a construir e interpretar suas experiências,
sejam pessoais ou profissionais, ao longo de sua vida.
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Por isso, a ênfase no contexto é de grande importância para a pesquisa
relatada nesta dissertação. Segundo Barcelos (2000; 2004), pesquisas
baseadas em metodologias que valorizam a perspectiva do indivíduo e a
maneira em que constrói seu conhecimento do mundo inserem-se na
abordagem que considera o contexto como fator principal na criação das
crenças. Assim, enfocar as crenças presentes no contexto escolar a partir de
uma abordagem etnográfica estaria de acordo com essa perspectiva, e
proporcionaria a vantagem de poder entender o processo complexo pelo qual
elas são formadas, sustentadas ou até mudadas.
1.4 Percurso como professora de LE
Ainda criança, tive muita curiosidade em conhecer as histórias,
costumes, comidas, línguas e outros aspectos culturais de povos distantes do
meu. Eu me afogava em livros de contos e mitos, alterava minha maneira de
falar para produzir um sotaque diferente, e acreditava ter nascido no país
errado. Com oito anos, li um romance de Agatha Christie, enfeitado de frases
em francês; fiquei encantada. No ensino médio, comecei a estudar o espanhol,
e fiquei ainda mais encantada com as múltiplas formas da linguagem humana.
Esse encanto me levou a sair do meu país natal (Estados Unidos) para buscar
oportunidades em que pudesse experimentar outras culturas. Quando tinha
dezesseis anos, agarrei a oportunidade de fazer intercâmbio na Itália, onde
morei durante dez meses. A experiência foi muito positiva e me marcou
profundamente, especialmente porque a convivência com pessoas de outro
país ajudou a quebrar estereótipos construídos pela convivência no meu país.
De volta para os Estados Unidos, no último ano de ensino médio, já tinha
decidido que na faculdade buscaria uma área que relacionava língua e cultura.
Na faculdade fiz Languages and Linguistics: French3, que corresponde
ao curso de Letras no Brasil. Além de estudar francês, estudei espanhol, e
cumpri os requisitos para ganhar um certificado em Latin American Studies
(Estudos Latino-americanos). Optei pela a licenciatura nos dois idiomas, e me
empenhei para passar os exames estaduais que comprovaram competências
3 Florida Atlantic University, the Dorothy F. Schmidt College of Arts and Letters, Boca Raton, Florida.
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comunicativas e culturais nas duas línguas. Minha escolha foi guiada pelas
recordações boas que eu tinha de professores do ensino fundamental e
médio4. Eu queria mostrar minha gratidão, devolvendo algo à sociedade como
professora. Mas, ser professora é muito mais difícil do que parecia, e no
período de dez anos, tinha mudado de opinião.
Após dez anos de atuação como professora de LE numa única escola,
sentia a necessidade de renovar-me. Sempre gostei de novos começos, então,
quando mudei para o Brasil, tive como objetivo fazer mudanças relacionadas
tanto à minha vida pessoal quanto à minha vida profissional. Na verdade, o que
mais queria era mudar de profissão. Esse impulso era muito forte. O idealismo
de recém-formada tinha se tornado em ceticismo de professora experiente.
Não sei exatamente quando aconteceu, pois não foi de um momento para outro
que comecei a me sentir assim. A mudança aconteceu por meio de um
processo prolongado, de anos de duração.
Como professora, vivi momentos de altas e baixas emoções. Os bons
momentos fluíam de experiências que mostravam que consegui tocar a vida de
um aluno, como quando convenci uma aluna minha a não desistir da escola.
Outros momentos eram mais tensos. Às vezes havia conflito entre meus alunos
e eu, especialmente quando eles não alcançaram as minhas expectativas
como professora, o que gerava frustração da minha parte. Outros momentos
eram marcados por perigo, como quando a escola recebia ameaças de
bombas implantadas no campus e tínhamos de evacuar os alunos, ou quando
havia alunos baleados ou esfaqueados durante o dia escolar.
Pouco a pouco, comecei a me sentir frustrada e desgastada. Entre as
razões incluíam-se: o baixo salário em comparação a profissionais de outras
áreas com as mesmas qualificações; o pouco tempo destinado ao
planejamento de aulas durante o dia escolar; turmas lotadas; o comportamento
dos alunos e a falta de relacionamento mais próximo a eles; a violência e o
conflito; a exigência de ser sempre mais eficiente; a instituição de exames
4 O que correspondem a “elementary”, “middle” e “high school” nos Estados Unidos (EU). Enquanto pode haver pequenas variações dependendo do município ao qual pertence a escola, o ensino fundamental nos EU normalmente se divide entre “elementary” e “middle school”. “Elementary school” começa com o jardim de infância, ou “kindergarten” e segue até o sexto ano escolar (antiga quinta série). “Middle school” começa com o sétimo ano escolar e vai até o nono ano. “High school” se compõe dos últimos quatro anos de ensino obrigatório.
11
estaduais para medir o desempenho dos alunos e das escolas5; a falta de
flexibilidade no dia escolar; e a quantidade de trabalho que precisava ser
levada para casa. A lista de reclamações poderia se lastrar por muitas páginas.
Não é que não reconhecia os benefícios que a profissão me proporcionasse,
como emprego garantido, feriados prolongados, e ser/fazer parte de uma
comunidade especial, mas a complexidade da profissão pesava em mim.
Eu me questionava se estava lidando bem com a integração do currículo
que tinha que cobrir durante o ano escolar e as necessidades e vontades dos
meus alunos. A pressão era alta, pois não havia só esse currículo a cobrir, mas
metas e objetivos relacionados ao exame estadual em que todos os alunos de
ensino médio tinham que ser aprovados para formar-se. Às vezes, eu me
retirava emocionalmente do processo de ensino-aprendizagem para reduzir o
estresse que sentia. Parte desse estresse relacionava-se a minha insatisfação
com um modelo educacional antiquado, ainda em uso. Embora pudesse haver
experimentação com outros modelos de ensino, o mais comum era a adoção,
por parte dos professores, do modelo de ensino semelhante ao sistema de
produção de uma fábrica de carros (Murphy, 2000), o que não emula um lugar
de construir conhecimento. Por isso, às vezes sentia-me igual a um robô; eu
deixava a rotina me levar. Rotina necessária, que garantia a eficiência do
trabalho feito. Rotina esmagadora, que impedia a criatividade e a inovação.
Ainda assim, pergunto-me se me faltava certo compromisso pessoal de renovar
minha prática e buscar outras maneiras de relacionar o ensino com a vida fora
da escola.
Outro fator que influenciava minha experiência como professora, ora
positiva, ora negativa, era a dimensão organizacional da escola, que incluía a
organização das turmas e aulas6 e mudanças nas políticas pedagógicas da
5 Aqui, me refiro ao Florida Comprehensive Assessment Test (FCAT), imposto pelo governo estadual sob a conseqüência de o aluno não poder se formar se não passasse, e de a escola perder uma porcentagem do investimento do governo estadual referente aos recursos financeiros para o ano letivo se não conseguisse um desempenho adequado no exame, medido pelo desempenho de sua população discente. 6 Normalmente, o número de alunos por turma variava entre vinte e cinco e trinta e cinco por professor. No entanto, às vezes o número de alunos por turma chegava até quarenta e cinco, alguns sem carteiras para se sentar. As turmas se reuniam com os professores todos os dias da semana letiva, sendo que a escola seguia um horário de sete períodos de cinqüenta e dois minutos por dia, além do horário de almoço e tempo entre cada período para os alunos se locomoverem até a próxima sala de aula. O professor tinha a obrigação de ensinar durante cinco períodos durante o dia, e ajudar a administração de alguma forma durante um dos períodos “livres”. O outro período “livre” se dedicava ao planejamento, contato com os pais e
12
escola. Com mudanças administrativas e no corpo docente, a atmosfera
organizacional oscilava de ano em ano. Era difícil predizer como a atmosfera
escolar poderia impactar a sala de aula, pois as mudanças ocorriam tanto na
diretoria e coordenação quanto em cada departamento da escola. Apesar de
participar de reuniões, comitês, planejamento com colegas, atividades
extracurriculares, e cursos de formação continuada de curta duração (nem
sempre voltados à minha área de atuação), às vezes eu sentia que não tinha
voz, pois mudanças eram raras, a resistência abundante.
Às vezes, opiniões individuais, ou de departamentos inteiros, eram
tratadas como inconsequentes. Cito como exemplo a falta de incluir salas de
aula e de planejamento para o departamento de línguas estrangeiras durante a
reforma da estrutura física da escola, mesmo depois de a chefe do
departamento ter participado de reuniões sobre o assunto conosco e com os
diretores da escola. Outras decisões eram tomadas sem consultar o corpo
docente. O posicionamento do setor administrativo da escola apontava que,
para o bem da escola e dos alunos, seria necessário aceitar as decisões
tomadas em nível administrativo. Quem não se conformasse tinha a opção de
transferir-se para outra instituição dentro da rede pública ou, em caso extremo,
demitir-se. Além desses conflitos, havia conflitos entre departamentos quanto a
políticas pedagógicas, além de competição para recursos. Havia até conflitos
pessoais entre professores que dividiam o corpo docente em campos
oponentes. Nesses momentos, a meu ver, o acúmulo dos atributos negativos
do contexto escolar pesava mais do que os benefícios de ser professora.
Outra frustração veio de minha vida pessoal, com impacto em minha
vida profissional. Era a inviabilidade de continuar meus estudos. Desde jovem
dei muito valor à educação formal. Sabia que estudar me levaria a uma vida
melhor. Já havia acontecido ao me formar na faculdade. A Licenciatura me
assegurara uma carreira e uma vida bastante independente, financeiramente.
Contudo, quando decidi fazer o mestrado percebi que a carga própria do meu
trabalho tanto quanto a do meu esposo, não me permitiria aproveitar da
oportunidade. Enquanto eu trabalhava aproximadamente quarenta horas por
semana, fora o que levava para casa, meu marido trabalhava entre setenta e
responsáveis, quando necessário, e desenvolvimento de materiais de ensino e provas, entre outras atividades docentes.
13
noventa horas semanais. Além disso, o valor do mestrado não era muito
acessível. Não havia como incluí-lo no orçamento familiar. Com uma filha
pequena e uma casa para cuidar, fazer mestrado era um sonho que estava
longe de poder ser realizado.
Pode parecer que esteja “derramando lágrimas de crocodilo”, pois essas
reclamações não são nada fora do comum para muitos professores. No
momento em que cheguei ao Brasil, no entanto, eu encarei a mudança como
oportunidade de mudar minha vida e conquistar novos objetivos. Tinha decido
trocar de profissão, procurando uma carreira ou em administração ou turismo.
(In)felizmente, não estava qualificada para nenhuma dessas áreas, e não me
sentia suficientemente confortável com a língua portuguesa para fazer um
curso de aperfeiçoamento. Então, para não ficar parada, comecei a dar aulas
de inglês num centro de idiomas particular. Depois de dois anos, ao sentir-me
pronta, optei por um “meio” caminho: matriculei-me num curso de Gestão
Educacional, uma ponte entre o ensino e a área administrativa.
Durante o curso, continuei a dar aula. Comecei a gostar de novo de
minha profissão. A visão administrativa que ganhei com a pós-graduação
complementou os conhecimentos que tinha sobre o ensino, proporcionando-me
outra perspectiva do que é ser professora. Questionei meus motivos quanto à
mudança de profissão. Sem resposta firme, decidi continuar a atuar como
professora. Dei-me conta de que, enquanto a mudança era importante para
mim, o real valor veio não de uma troca de circunstâncias, mas da perspectiva
que a mudança me proporcionou. Tinha entendido que qualquer profissão tem
seus pontos fortes e fracos. Além disso, lembrei-me de que novos começos
nascem de retomadas e hibridizações, onde a legado do passado encontra a
possibilidade do futuro, e pode mudar o presente. Foi então que fui aceita como
mestranda, solidificando minha decisão de continuar nessa profissão.
1.5 Justificativa, objetivos e perguntas da pesquisa
O percurso pessoal descrito acima me levou a questionar o que é ser
professor, especialmente professor de LE, matéria muitas vezes vista como
menos importante do que as outras na grade curricular da escola. Como
professora iniciante, tinha começado a dar aula com a crença de que o
14
professor podia impactar positivamente a vida do aluno. Pouco a pouco,
contudo, comecei a sentir que não era sempre possível, que, para a maioria, o
impacto parecia ser mínimo. Também vivenciei que o professor não tinha muito
impacto no desenvolvimento do contexto escolar. Até cheguei a crer que
precisava mudar de profissão porque não me sentia eficaz como professora,
para, em seguida, mudar novamente de opinião, ao decidir não abandonar a
profissão. Novas experiências tinham apagado sentimentos negativos muito
fortes que guardava, e oportunidades de aperfeiçoamento tinham me
fortalecido profissionalmente.
Refletir sobre essa reviravolta de sentimentos me levou a querer
entender a relação entre o ensino-aprendizagem de LE, o contexto escolar e as
crenças do professor. A minha participação num curso de formação continuada
teve um grande impacto na maneira como vejo minha profissão e o contexto
escolar hoje, proporcionando a possibilidade de reler minha experiência sob
outro ângulo. E, a participação no programa de mestrado intensificou esse
olhar, levando-me a ressignificar o meu papel de professora. De certa maneira,
o processo de desenvolvimento profissional, embora lento e árduo, foi, e ainda
é, emancipador.
O tema a ser abordado nesta dissertação relaciona os aspectos
descritos acima no meu percurso pessoal como professora, bem como na
discussão introdutória deste capítulo. Compreender a complexidade da relação
entre crenças de professores de LE e seu ambiente de trabalho implica ser
necessário entender o cotidiano da escola, inclusive a maneira como o
professor ensina e se relaciona com os outros atores da escola. Os objetivos
específicos da pesquisa consistem em:
a) Investigar as crenças da professora participante, e de outros atores da
escola, quanto ao ensino-aprendizagem de inglês como LE, e o contexto
escolar;
b) Investigar de que maneira essas crenças são mediadas pelo contexto
em que a professora atua.
15
Com base nesses objetivos, as seguintes perguntas norteiam esta
pesquisa:
• Que crenças norteiam a prática de uma professora de LI na sala de aula
de uma escola pública?
• Qual a relação entre essas crenças e o contexto escolar (comunidade,
instituição, administradores, colegas e alunos)?
Para realizar a pesquisa, optei por um método qualitativo, de cunho
etnográfico, e tive como objetivo estabelecer uma parceria com um(a)
professor(a) de língua inglesa que atuasse na escola pública. Os métodos
específicos da pesquisa incluíram a observação participativa, conversas
colaborativas, entrevistas, questionários semi-abertos, e o uso de um diário,
por parte da professora colaboradora, para registrar seus pensamentos sobre o
projeto. Os dados coletados incluem anotações das aulas observadas;
gravações de conversas, entrevistas, e algumas aulas; o diário da professora
colaboradora; cópias de documentos oficiais relacionados à escola; e um
questionário respondido pelos alunos, além de dois trabalhos desenvolvidos
por eles durante o projeto.
Conforme procurei demonstrar neste primeiro capítulo, acredito que as
crenças dos atores da escola estão diretamente relacionadas ao contexto em
que atuam, seja qual for o papel que desempenhem: professor, aluno ou
administrador.
1.6 Contribuições da pesquisa
Por meio desta pesquisa, espero contribuir para a compreensão da
relação entre crenças, e contexto escolar, no ensino-aprendizagem de LI.
Considerando o contexto como o lugar da interação e a interação como a base
da experiência cotidiana, também espero contribuir para os estudos da área de
LA que enfocam a dialogicidade entre indivíduo e mundo, para melhorar o dia-
a-dia do professor de LI.
16
1.7 Organização da dissertação
Neste primeiro capítulo, expus alguns conceitos que orientam esta
pesquisa, relacionados ao professor de língua estrangeira, e às crenças,
descrevendo a minha própria experiência como agente propulsor do tema e
desta pesquisa. Apresentei minha definição de crenças e os objetivos e
perguntas que nortearam a pesquisa desenvolvida. Defino crenças como redes
semánticas que balizam a construção e interpretação de experiências sociais,
enquanto os objetivos da pesquisa consistem em investigar as crenças dos
atores da escola, em especial da professora colaboradora, e a maneira como
as crenças do indivíduo são influenciadas pelo contexto ao seu redor.
No segundo capítulo, apresento uma breve revisão de literatura
relevante 1) ao ensino-aprendizagem de LE/LI no Brasil, 2) à imagem do
professor de LE, 3) às crenças e ao contexto escolar. O ensino-aprendizagem
de LE/LI no Brasil tem sido apresentado por pesquisadores e pesquisados
como ineficiente e ineficaz. Acredita-se que não se aprende inglês na escola
pública. A explicação desse fenômeno se baseia nos processos sócio-
históricos que criaram as condições de ensino-aprendizagem em relação à
escola pública. Inclui-se nesse contexto a imagem do professor e os
paradigmas de ensino-aprendizagem de LI que influenciam o que acontece na
sala de aula e no espaço escolar.
No terceiro capítulo, discuto o desenvolvimento da pesquisa a partir de
um enfoque etnográfico, em que a colaboração entre esta pesquisadora e uma
professora da rede pública foi de grande importância. A decisão de empreender
uma pesquisa a partir de uma abordagem qualitativa traz conseqüências ao
desenvolvimento da pesquisa, e fatores contextuais tais como o bairro onde se
localiza a escola, os moradores do bairro e o espaço escolar impactam os
possíveis resultados, pois esses fatores, em conjunto com os atores da escola,
ajudam a criar as condições de interação no espaço escolar.
No quarto capítulo, respondo às perguntas de pesquisa pela
interpretação dos dados coletados. Para este fim, o capítulo se divide em duas
seções. Na primeira, as crenças inferidas pelas ações, atitudes e opiniões dos
atores da escola são apresentadas, analisadas e interpretadas na tentativa de
mostrar a relação que mantém com o contexto escolar. Na segunda seção,
17
apresento uma releitura das crenças pelas metáforas que os atores da escola
constroem referente à escola e ensino-aprendizagem de LI, seguindo o modelo
analítico discutido por Kramsch (2003).
No quinto capítulo, apresento uma reflexão sobre a pesquisa como um
todo. Apresento neste capítulo algumas das possíveis ramificações dos
resultados da pesquisa, tais como o impacto das crenças e do contexto escolar
nas instâncias de formação continuada do professor de LI, as condições que
influenciam a retenção de professores de LI no sistema educacional público e o
que significa aprender inglês nesse contexto. A esperança desta autora ao
enfocar a relação crenças-contexto é de contribuir à literatura na área de LA
que considere o contexto como fator primordial na investigação das crenças,
além de contribuir para a melhoria do cotidiano do professor de LI.
2 ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: REVISÃO DA LITERATURA
Neste capítulo apresento teorias e conceitos balizadores desta pesquisa
em relação ao ensino-aprendizagem de LI na escola pública no Brasil, à
imagem do professor de LI, à investigação de crenças na área de LA e ao
contexto escolar.
2.1 Introdução
Antes de entrar em sala de aula, o professor se depara com a
necessidade de fazer várias escolhas, entre elas: qual matéria ensinar, que
método utilizar, como avaliar o progresso do aluno? Ademais, escolhas feitas
com base na formação e experiência prévia do professor, a maneira como se
relaciona com seu aluno, os equipamentos e outros materiais disponíveis para
uso, e as expectativas dos outros (aluno, pai, administrador) em relação ao
currículo são componentes que integram o cenário cotidiano do professor e o
espaço escolar. Neste capítulo, apresento um resumo seletivo da literatura
relativo ao ensino-aprendizagem de LE/LI. Focalizo principalmente os conceitos
de crenças e contexto escolar, e fatores tais como a construção sócio-histórica
do aluno da escola pública e do professor de LI para demonstrar que as
escolhas feitas pelo professor de LE/LI não são aleatórias, mas fazem parte do
um complexo processo educacional. Para tanto, situo a relevância da literatura
em quatro áreas de conhecimento:
1) caracterização do ensino de língua estrangeira na escola pública no
Brasil,
2) imagens que circundam o professor de LI,
3) investigação das crenças relevante ao ensino-aprendizagem de LE na
área de LA, e
4) contexto escolar.
A área de ensino-aprendizagem de LE/LI se encontra em processo de
mudança de paradigma. Os documentos oficiais (Parâmetros Curriculares
19
Nacionais – PCN, 1998; Orientações Curriculares para o Ensino Médio –
OCEM, 2006) clamam por essa mudança. Afinados com esse paradigma,
autores da área de educação (Moraes, 1996; Zeichner, 2000; e Nóvoa, 2001) e
de LA (Almeida Filho, 2005; Cox e Assis-Peterson, 2002; Gimenez, 2002), que
se encontram em posição de formadores de professores, têm discutido o
ensino voltado às necessidades do aluno, com ênfase na construção de
conhecimento. Esse paradigma representa uma mudança de enfoque na arena
educacional, do ensino para a aprendizagem (Murphy, 2000), do professor para
o aluno.
Para Moraes (1996), essa mudança decorre de uma insatisfação com
um modelo científico que concebe os fenômenos da vida e do mundo
primeiramente de maneira estática, como se fossem partes de uma grande
máquina, que funciona sempre da mesma maneira. A base filosófica de
pensamento, segundo essa autora, passou a seguir um modelo cartesiano, que
divide a mente, valorizando o raciocínio e desprezando questões espirituais,
ligadas aos sentimentos do indivíduo. Isso implicou que a investigação de
fenômenos seguia um modelo científico que valorizava o observável e
mensurável e reduzia, segundo a autora, os fatos sociais “às suas dimensões
externas” (Moraes, 1996, p. 41). Citando Boaventura dos Santos (1988),
Moraes salienta que no século XIX,
“o modelo de racionalidade se estendeu às ciências sociais emergentes, dando origem a um modelo global de racionalidade científica que admitia variedades internas, mas se defendia ostensivamente de duas formas de conhecimento não-científico: o senso comum e as chamadas humanidades” (Moraes, 1996, p. 41).
Uma das conseqüências de seguir esse modelo científico, segundo
Moraes, era a de excluir “o pensador do seu próprio pensar” (Moraes, 1996, p.
42). Então, a mudança de paradigma na arena educacional, para esta autora,
representa resgatar uma visão holística dos fenômenos sociais, dos quais a
educação formal faz parte. Isso quer dizer que o aluno não pode ser mais visto
como uma tábula rasa e o professor não pode mais agir como mero
transmissor de conhecimento. Porém, para Moraes, o novo paradigma
educacional vai além do deslocamento transmissão-construção de
conhecimento. Além de enfocar a construção de conhecimento, o paradigma
20
advogado pela autora inclui um enfoque na interação, em aspectos sócio-
culturais e na transcendência7 (Moraes, 1996, p. 197-207).
Para Zeichner (2000), a mudança de paradigma educacional ajuda o
professor a buscar meios de integrar-se ao conhecimento da comunidade a
qual o aluno pertence e, subsequentemente, valorizá-lo. No entanto, salienta
que “muitos professores não estão aprendendo a observar e aprender com as
comunidades e a incorporar, de modo positivo, os recursos culturais que as
crianças trazem para a escola. Há ainda uma visão de déficit cultural8”
(Zeichner, 2000, p. 6). Isso acontece, segundo esse autor, porque ainda há um
descompasso entre a universidade, a escola e as comunidades. Ainda assim,
a tradicional separação entre Formação de Professores e prática, assim como a idéia de que os professores são meros implementadores, e não produtores de conhecimento, estão sendo repensadas. É preciso superar a visão, historicamente dominante, do professor como mero técnico (Zeichner, 2000, p. 11).
Já Nóvoa (2001) destaca o paradigma de professor reflexivo como o
paradigma dominante na formação de professores. Acredito que esse
paradigma esteja em concordância com o paradigma sob discussão, pois o
autor destaca que as competências requeridas do professor atual são as da
organização e da compreensão do conhecimento. Diz esse autor: “não basta
deter o conhecimento para o saber transmitir a alguém, é preciso compreender
o conhecimento, ser capaz de reorganizá-lo, ser capaz de reelaborá-lo e de
transpô-lo em situação didática em sala de aula” (Nóvoa, 2001, p. 2).
A formação inicial do professor pela universidade deve oferecer a
oportunidade de desenvolver essas competências, além de construir uma
concepção holística da relação entre a prática e o contexto onde ocorre. Não é
possível esperar que o professor em formação, seja inicial ou continuada,
simplesmente se torne seguidor do novo paradigma. O processo requer
reflexão e ação por parte do professor, e isso requer que haja algum estímulo e
tempo necessário para a mudança. 7 Moraes (1996, p. 205) explica o conceito de transcendência como “ir... além, ultrapassar, superar”, além de incluir uma dimensão espiritual. Para essa autora, a transcendência reúne as “realidades internas e externas do indivíduo como partes integrantes de uma mesma unidade... que reflete assim um ser que, além de sua dimensão humana, também tem uma dimensão espiritual, na qual o espírito desempenha um papel ativo e organizador, essencial para o desenvolvimento da ação e para a construção do conhecimento”. 8 Grifos meus.
21
Cox e Assis-Peterson (2002, 2008) estão de acordo que a mudança de
paradigma precisa ser encorajada em todos os níveis educacionais. É preciso
que os próprios professores universitários que apregoam as inovações as
incorporem também à graduação, nos cursos de Letras e demais licenciaturas.
Não há como esperar que novos professores atuem de uma maneira que
valorize a posição do aluno se falta exemplo na universidade. Nesse sentido,
visando melhorar o perfil do professor de inglês, Cox e Assis-Peterson frisam
que é necessário destacar na graduação que “tão importante quanto conhecer
teorias e abordagens de ensino, é criar um contexto que favoreça a
aprendizagem, um contexto em que professores e alunos possam se engajar
efetivamente em trocas múltiplas de significados” (2002, p. 19). Destarte, os
formadores de professores desempenham um papel importante na busca de
alinhar teoria e prática docente com o cotidiano escolar.
Mais recentemente, essas autoras salientaram que ainda há um
descompasso entre a teoria e prática no ensino de LI. Frisam elas,
no atual sistema de educação brasileiro, entre o ensino universitário (que forma os professores) e o ensino básico há uma muralha. Primeiro, os cursos universitários são predominantemente teóricos. Os graduandos são submetidos a uma overdose de teorias e, quando chegam à sala de aula, têm de dar conta sozinhos da transposição didático-pedagógica dos conteúdos. Como não é uma tarefa simples, não raro recaem no ensino de gramática com algumas pinceladas do método comunicativo. Segundo, a estrutura 3 + 1 (três anos de conteúdo disciplinar mais um ano de estagio docente) faz da prática uma mera aplicação de conteúdos. Precisamos, pois, derrubar as muralhas e construir pontes entre os cursos que formam professores e a prática docente efetiva no ensino básico; a travessia, o ir e vir de um ao outro, deve ocorrer ao longo de todo o período de graduação e perdurar além dele, quer como formação continuada, quer como pesquisa colaborativa (Cox e Assis-Peterson, 2008, p. 50-51).
Outros autores da área de LA, como Almeida Filho (2005) e Gimenez
(2002) também reconhecem a necessidade de o professor já em serviço
renovar sua prática, por meio da formação continuada. A formação continuada
se define como, mas não se limita a, “cursos, palestras, seminários, [e]
atualização de conhecimentos e técnicas“ (Brasil, 2006, p. 24), além de uma
prática reflexiva por parte do professor. Assim, o professor que volte seu olhar,
de maneira crítica, para sua própria sala de aula, encontra um terreno fecundo
do qual possa tirar inspiração para a renovação da sua prática.
22
O rumo da formação continuada depende muito da formação inicial, da
experiência ganha em serviço e do contexto em que o professor atua. Se faltar
incentivo para refletir sobre a prática docente, dificilmente haverá avanços. É
necessário advogar, como fazem Cox e Assis-Peterson (2002, 2008), a favor
de uma ligação mais estreita entre universidade e professor, formação inicial e
continuada, para que o professor possa examinar as “teorias pessoais”, que
muitas vezes permanecem no nível inconsciente e embasam sua prática
(Almeida Filho, 2005). Uma ligação que pode proporcionar a oportunidade para
o professor de LE refletir sobre suas escolhas voltadas à ação docente.
2.2 Do ensino de LE no Brasil
Para entender melhor a relação entre ensino-aprendizagem de LE e a
mudança de paradigma didático-pedagógico, portanto, é necessário entender
as condições históricas que permeiam o ensino de LE no Brasil. A primeira
condição é a imagem persistente de fracasso que acompanha o ensino de LE
no Brasil, construída historicamente por discursos de professores, pais, alunos,
diretores, coordenadores da escola, retratados em artigos acadêmicos (ver
Almeida Filho, 2005; Cox e Assis-Peterson, 2002, 2008; Paiva, 2004) e pela
mídia nacional.
O ensino de LE, especialmente língua inglesa, no Brasil tem sido
caracterizado por pesquisadores e/ou pesquisados como precária (Cox e
Assis-Peterson, 2002; Dias e Assis-Peterson, 2006; Felix, 2005; Gasparini,
2005; Paiva, 1997, 2004; Santos, 2005). Entre as razões associadas à
precariedade são citadas: a) a formação inicial inadequada do professor de LE;
b) alunos “sem base”; c) uma carga horária inadequada ao ensino de LE na
escola pública; d) a falta de materiais; e) a falta de tempo para planejamento; e
f) o desprezo pela matéria pela própria instituição escolar e por agências
governamentais, entre as razões pelas quais as aulas de LE não tenham
alcançado o efeito desejado. Fala-se do insucesso do ensino-aprendizagem de
LE.
Outro fator contribuinte a essa imagem negativa centra-se ao redor do
paradigma que atualmente rege a teorização do ensino-aprendizagem de LE,
advogando a Abordagem Comunicativa como a maneira mais eficaz de ensinar
23
o indivíduo a comunicar-se em LE. Essa abordagem é resultado das várias
mudanças teóricas que aconteceram no campo de LA desde a popularização
da educação não só em contexto brasileiro como no mundo. Em outras
palavras, desde que houve uma abertura para que mais jovens pudessem
freqüentar a escola, no século XIX, os métodos de ensino de LE têm variado,
iniciando com o método de gramática-tradução, passando no século XX para o
método direto, e o método áudio-lingual (Murphy, 2000).
Ainda assim, a Abordagem Comunicativa não constitui um método per
se. Consoante Murphy (2000), a Abordagem Comunicativa enfoca as seguintes
características: a construção de sentidos, a competência comunicativa, a
aceitação de que erros fazem parte da aprendizagem lingüística, a inabilidade
do professor saber a priori de quais formas da linguagem o aluno fará uso, a
interação, a fluência como objetivo primordial, o uso da linguagem como ato
criativo e o professor como mediador do processo de aprendizagem. Isso
significa que a postura do professor de LE, sob o prisma da Abordagem
Comunicativa, se alinha melhor com o paradigma de construção de
conhecimento do que transmissão de conhecimento. O enfoque, na
Abordagem Comunicativa, não se centra unicamente no conhecimento da
estrutura de língua a ser utilizada durante a comunicação, mas também em
competências que indicam conhecimento das “regras do discurso específico da
comunidade em qual se insere” (Silva, 2004)9 que se aprende na interação.
O insucesso do ensino-aprendizagem de LE tem sido ligado ao estado
inadequado de formação inicial do professor de LE, com o curso de Letras na
mira das críticas. Segundo Paiva (2004), a grade curricular do curso de Letras
precisa ser reestruturada para que possa se alinhar com o paradigma de
construção de conhecimento que dirige as políticas educacionais brasileiras
hoje. Criticando o currículo do curso de Letras por ainda estar organizado de
maneira tradicional, sem abrir espaço para a incorporação de discussões e
conhecimentos da área de Lingüística Aplicada, a autora enfatiza:
É comum a existência de ementas e programas que se apóiam em bibliografia desatualizada e teorias que não dialogam com a prática. A metodologia é ainda muito centrada no professor, dentro do modelo tradicional de transmissão de conhecimento (Paiva, 2004, sem paginação).
9 Artigo sem paginação.
24
Em outro trecho ressalta que, no curso de Letras,
“conteúdos de formação de professor de língua estrangeira são, geralmente, ignorados, e é raro o curso que oferece atividades curriculares que estimulem reflexões sobre a aquisição, ensino e aprendizagem de língua estrangeira” (Paiva, 2004, sem paginação).
A crítica de Paiva se constrói sobre o pilar de uma história de críticas
que a precederam. Por exemplo, Almeida Filho (1992, p. 78) denominou a
situação da formação do professor de LE de “ciclo vicioso”. O ciclo inicia com a
má formação do professor de LE, se estende à má qualidade do ensino de LE
na escola pública, e volta para a universidade quando o ingressante do curso
de Letras se defronta com habilidades subdesenvolvidas na língua-alvo. O
autor reivindicava, mais de uma década antes do estudo acima citado,
melhorias no curso de Letras, além de cursos de formação continuada para o
professor já em serviço. Segundo Félix (2005, p. 95-96), outros autores da área
de LA também clamaram para mudanças naquela época. Anota-se que a
preocupação com a qualidade da formação inicial do professor tem uma longa
história no Brasil (ver Cox e Assis-Peterson, 2002, 2008).
Embora a formação inicial tenha sido culpabilizada, em grande parte,
pelo estado do ensino de LE no Brasil como um todo, se voltarmos o olhar para
regiões periféricas, como Mato Grosso, estado onde esta pesquisa foi
realizada, há outra explicação para o quadro negativo que circunda essa área
educacional. Conforme Cox e Assis-Peterson (2002, p. 16-17), pesquisas
desenvolvidas nas regiões metropolitanas do país
pressupõem um professor já... graduado/habilitado, apontando, apesar disso, problemas de formação de ordem lingüística e pedagógica que emergem na pratica... não podemos partir do principio de que o problema do quadro de professores de inglês em Mato Grosso esteja apenas relacionado com a qualidade da formação universitária (Cox e Assis-Peterson, 2002, p. 16-17).
Um dos problemas, segundo essas autoras, é que a demanda por professores
de LI supera o número de professores habilitados. Isso resulta na contratação
de professores que tenham feito alguns semestres de cursos livres de inglês,
ou pior, de professores de outras áreas de atuação que assumem a disciplina
de LI para complementar sua carga horária semanal. Cox e Assis-Peterson
25
(2002, p. 5-6) observam que “uma vaga de inglês é vista como uma vaga
qualquer a ser preenchida por qualquer um, um buraco a ser tampado, mesmo
que seja com uma tradução de música ou de texto, ou com o verbo to be”10, o
que demonstra o descaso por parte dos administradores da escola pública e de
agências governamentais com a qualidade do ensino-aprendizagem de LE.
A despreocupação com a qualidade de ensino de LE em Mato Grosso
pode ser ligada a processos educativos construídos historicamente no Brasil.
Segundo Moll (2000, p.162), o quadro da escola pública está relacionado a
interesses do poder político que depende do “patrimônio de ignorância”,
herança das camadas populares. Em outras palavras, a inteligência das
famílias servidas pela escola pública está ligada às condições econômicas
delas, pois existe, no Brasil, uma imagem do aluno da escola pública estar
“sem base” para aprender.
Santos (2005, p. 93-94) se deparou com essa concepção, ao investigar
as crenças que circundam a inclusão do ensino de LI no Ensino Fundamental I,
que se compõe dos primeiros quatro anos de ensino formal. A autora
demonstrou que as diretoras da escola acreditavam que os alunos da quinta
série enfrentavam problemas ao se depararem com a necessidade de aprender
a LI por não terem sidos familiarizados anteriormente com algumas
características da LE. Na forma mais extrema dessa concepção, pode-se dizer
que o aluno da escola pública é concebido como “herdeiro” da escolaridade
dos seus pais, primariamente descrita como “baixa”. A sua vez, esses
indivíduos são (des)qualificados por outra frase muita repetida popularmente,
ou seja, como sendo “sem cultura”. A (des)qualificação, nesse caso, é de duplo
sentido. Primeiro, insinua-se que a população de baixa escolaridade/renda gera
crianças sem fundamentação intelectual porque essa população é inferior,
intelectualmente. Segundo, insinua-se que a população de baixa
escolaridade/renda não obtém sucesso porque falta a habilidade de se
organizar, impedindo a formação de uma cultura compartilhada que possa
fornecer as ferramentas com quais possa construir conhecimento. No entanto,
é preciso ressaltar que embora o conhecimento que se valoriza nas
comunidades de baixa escolaridade/renda seja diferente do conhecimento
valorizado pelos altos níveis da sociedade, há produção de conhecimento.
10 Grifos das autoras.
26
Assim, para Moll (2000), a dicotomia entre quem tem e não tem não se
restringe simplesmente pelas condições sócio-econômicas do indivíduo, mas
está interligada com a classificação intelectual das camadas sociais. O
fracasso do ensino de LE/LI nas escolas públicas espelha o fracasso do ensino
público em geral. Frisa Moll
[as] representações acerca do fracasso escolar – construídas historicamente e legitimadas por diferentes discursos culturais e pedagógicos – ratificam a idéia de uma certa superioridade de alguns grupos sociais sobre outros: os que têm sucesso versus os que não têm (Moll, 2000, p. 88) 11
.
De maneira semelhante, Gasparini (2005) assinala que o estado do
ensino de LE/LI na escola pública perpetua desigualdades na sociedade
brasileira. Em seu estudo, buscou entender os sentidos dados por alunos do
curso de Letras ao ensino-aprendizagem de inglês como LE na escola pública.
Concluiu que há uma configuração do
ensino de língua inglesa no contexto escolar como deficiente e precário, configurando também os cursos particulares de idiomas como os únicos lugares onde o inglês pode ser aprendido... [e que] professores e alunos de língua inglesa na escola são com freqüência construídos como incapazes e ineficientes (Gasparini, 2005, p. 173).
Dias e Assis-Peterson (2006, p. 110), citando o trabalho de Santos
(2005), apontam que a crença de que alunos demonstram dificuldades na
aprendizagem leva à predição do “insucesso dos alunos”. A lacuna entre
familiarização e a falta de conhecimento da língua inglesa também figurou na
pesquisa de Dias (2006, p. 113). A autora se deparou com duas realidades de
mundo, dicotomia relatada em entrevistas com pais, alunos e atores da escola
onde sua pesquisa foi feita. Na sua pesquisa, Dias encontrou uma concepção
que divide o mundo: de um lado, há o “mundinho” do bairro, de outro, o mundo
globalizado. Nessa concepção, o bairro não pertence ao mundo globalizado, o
que se explica pela descrição de distâncias físicas e imaginadas, relacionadas
ao bairro onde a escola pesquisada se encontra. Dias conta que a diretora da
escola apontou para esse distanciamento, invocando indícios de
subdesenvolvimento no bairro:
11
Grifos da autora.
27
o bairro está muito distante do centro e a escola está cercada por ‘mato’. As condições das casas da comunidade são tão precárias que parecem ‘estar na idade de pedra’, ‘o pessoal ainda cozinha em fogão de lenha’, ‘falta água’ e é comum ver mulheres com ‘lata na cabeça’12 (Dias, 2006, p. 114).
Como apontam Dias e Assis-Peterson (2006), a distância real entre o bairro e o
centro da cidade serve de metáfora para a distância entre as classes sociais.
Essa distância vai além das condições sócio-econômicas, construindo uma
visão inferior da população que a escola serve.
Desta maneira, a precariedade do ensino de LE no Brasil pode estar
ligada à maneira de pensar sobre os alunos e suas condições de vida.
Delamont (1983, p. 64) salienta que a perspectiva que o professor tem dos
seus alunos é essencial13, pois as crianças podem internalizar
inconscientemente essa concepção, criando um ciclo vicioso de não-
aprendizagem. Além do mais, acreditar na ideologia do déficit intelectual e
enfatizar que os alunos não têm “base” para aprender LE serve de desculpa
para evitar mudanças que podem levar a melhorias no ensino e nos resultados
dos alunos. É um discurso imobilizador que põe a culpa na vítima do processo
educacional.
Se o professor e os administradores da escola não acreditam na
capacidade intelectual do aluno, qual o incentivo para instituir políticas que
apoiem o ensino baseado na construção de conhecimento? De maneira
semelhante, se o aluno não receber a confiança do professor e dos
administradores, qual o incentivo para se engajar no processo educativo? Além
disso, acreditar no “patrimônio da ignorância”, discutido por Moll (2000), em
que o aluno é caracterizado segundo a escolaridade de seus pais, e de acordo
com suas condições de vida, cria um abismo entre a escola e a comunidade
que serve. A resistência à mudança do currículo do curso de Letras perpetua
essa dicotomia. Nas entrelinhas permanece a seguinte mensagem: não é
possível ensinar os alunos que freqüentam a escola pública a comunicar-se em
LE. É preciso perguntar: a “manutenção da ignorância” (Moll, 2000, p. 72) serve
a quem?
12 Grifos da autora; demonstram a demarcação das palavras da diretora da escola. 13 Nós podemos inferir, então, que o mesmo se aplique à perspectiva que os administradores e outros atores da escola também têm dos alunos, conforme autores tais como Moll (2000), Santos (2005), Dias (2006) e Dias e Assis-Peterson (2006).
28
O quadro pessimista do ensino-aprendizagem de LE/LI também se
perpetua em documentos oficiais. Como exemplo, pode-se citar um dos
documentos que serve para orientar o professor de LE/LI, os PCN (Brasil,
1996). Nos PCN, está claro o favorecimento do ensino de uma habilidade
comunicativa, a leitura. O raciocínio para posicionar-se teoricamente dessa
maneira é que o uso das outras habilidades, em especial a fala, está fora da
realidade da maioria da população brasileira:
considerar o desenvolvimento de habilidades orais como central no ensino de Língua Estrangeira no Brasil não leva em conta o critério de relevância social para a sua aprendizagem. Com exceção da situação específica de algumas regiões turísticas ou de algumas comunidades plurilíngües, o uso de uma língua estrangeira parece estar, em geral, mais vinculado a leitura de literatura técnica ou de lazer (Brasil, 1996, p. 19).
Os autores dos PCN continuam nesse vertente, ao apontar que a
habilidade mais requerida num exame formal é a da leitura, para o vestibular ou
para o indivíduo ser admitido a um curso de pós-graduação. No entanto, essas
colocações generalizam a situação educacional de LE no Brasil. Qual brasileiro
não tem sido tocado por instâncias em que outras habilidades foram
requisitadas? Por exemplo, a cultura popular, como música, filmes e vídeo
games tem-se infiltrada em todas as camadas sociais, exposta na televisão, no
radio, e em lan-houses (lembra-se que a internet ainda está dominada pelo uso
de inglês), entre outros lugares que permitem acesso a essas mídias. Qual
espectador não tem vontade de reproduzir ou compreender a língua em que
essas manifestações culturais estão produzidas? E, para aqueles que tentam
uma vaga nos programas de pós-graduação no país, muitas universidades
aplicam uma prova escrita de LE, dependendo do curso a ser administrado, o
que implica a necessidade de ter desenvolvido certo grau de proficiência na
língua.
Os PCN, como documento oficial, se revestem de autoridade, o que
proporciona poder às ideias expressas neles. Ao não advogar mais
veementemente para um ensino de LE equilibrado em relação às habilidades
comunicativas, põem em jogo a questão do (não)empoderamento do aluno,
pois aprender uma língua estrangeira propicia ao aluno certo grau de
emancipação. Abre-se um mundo de conhecimento. Propor limitar o ensino de
LE, baseado apenas no critério da utilidade, limita o horizonte educacional do
29
aluno. Se o processo de ensino-aprendizagem de LE for concebido como mera
decodificação dos sinais da língua, ou restrito apenas a uma habilidade (no
caso, a leitura), pode impedir que o aluno participe ativamente do processo de
ensino-aprendizagem. Isso não acontece em outras disciplinas, como ciências,
matemática ou língua portuguesa. O grau de complexidade aumenta em cada
uma dessas disciplinas conforme o passar do tempo dentro do contexto
educacional. No entanto, parece que o ensino de LI não passa de uma
tradução de música, de um texto, ou do ensino do verbo “to be” (Cox e Assis-
Peterson, 2002, p. 6).
Outros problemas ressaltados quando se fala na precariedade do
ensino de LE são aqueles que se referem às condições tangíveis, como a
insuficiência da carga horária ou a falta de materiais. Segundo os PCN, esses
fatores, em conjunto com outros, criam um empecilho para o professor que
deseja trabalhar com a Abordagem Comunicativa. Os autores dos PCN frisam
que é necessário considerar “o fato de que as condições de sala de aula da
maioria das escolas brasileiras... podem inviabilizar o ensino das quatro
habilidades comunicativas” (Brasil, 1998 p. 20). Além de apontar o mal preparo
do professor de LE, citam a redução da carga horária dessa matéria, a relação
do número de alunos por professor em sala de aula, e a pobreza do material
didático, que se reduz ao giz, quadro e livro didático. Aqui Cox e Assis-
Peterson (2002, P. 2) adicionariam a disponibilidade de um livro didático doado
à escola pelo MEC14.
A realidade do ensino de LE na escola pública se encontra em
condições completamente contrárias ao que se encontra nas escolas livres de
idiomas, reforçando a dicotomia entre aqueles que têm condições financeiras
favoráveis à aprendizagem e aqueles que não têm, questão que se remete à
discussão sobre o (in)sucesso desses grupos sociais. Mas, em vez de “medir”
(Cox e Assis-Peterson, 2002) o sucesso de a escola pública ensinar LE pelo
sucesso das escolas livres de idiomas, o que deve ser feito é zelar pela
qualidade de ensino na escola pública. No entanto, a renovação da escola
14 Foi anunciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaçãao (FNDE), no dia 18 de dezembro de 2008, que, “a partir de 2011, os alunos da rede pública dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) receberão livros didáticos de língua estrangeira (inglês e espanhol)”. Disponível em < http://www.fnde.gov.br/home/index.jsp?arquivo=/noticias/releases/ 2008/12_18.html> Acesso em 24 de dezembro, 2008.
30
pública depende de muitos fatores, entre eles a melhoria da formação inicial do
professor de LE e da formação continuada.
2.3 Das imagens em torno do professor de inglês
Ser professor é desempenhar um papel na formação de jovens. No
entanto, o ofício de professor muitas vezes é visto como tendo um único
requisito: que o professor ensine. A imagem desse professor tem mudado
pouco ao longo dos anos. É um professor em controle de sua turma e sua
aprendizagem, pois é ele que detém o conhecimento e o poder de administrar
sua aula. Resta ao aluno estar presente, bem comportado, e ‘aprender’ o
conteúdo. A maneira de o professor ensinar e de o aluno aprender é mecânica,
basta reduzir o conhecimento a fórmulas e regras básicas para que o aluno
assimile esse conhecimento. O aluno não é encorajado a empregar esse
conhecimento na prática. Do aluno, requer-se que reproduza esse
conhecimento exatamente como foi apresentado a ele pelo professor. Essa é a
imagem histórica do professor.
Essa imagem persiste ainda hoje, especialmente colada ao professor de
LI. A persistência dessa imagem decorre do descompasso entre formação
inicial e continuada, e teoria e prática. Como apontado anteriormente, a má
formação do professor de inglês faz parte de um ciclo vicioso que se
retroalimenta. Autoras como Cox e Assis-Peterson (2002, 2008), Santos (2005)
e Dias (2006) têm demonstrado as dificuldades com as quais o professor de LI
atual tem de lidar, entre elas a visão de que: não se aprende inglês na escola
pública; não é necessário ter habilitação em língua inglesa para dar aula de
inglês; o aluno não tem base suficiente para aprender uma LE; o professor
habilitado em inglês não é necessariamente fluente no idioma, entre outros.
Isso faz com que o ensino de inglês na escola pública priviligie a estrutura da
língua, pois a estrutura gramatical é a parte mais tangível para o professor e o
aluno, no sentido de já haver uma descrição que pode ser repassada ao aluno
por fórmulas e regras transpostas no quadro negro. A estrutura, quando
transmitida por escrito, não é tão efêmera quanto os sentidos construídos pela
linguagem oral, que evaporam na interação.
31
Um estudo feito por Barcelos (2005) demonstra que há uma crença, por
parte de alunos de graduação, de que aprender uma língua é ter conhecimento
da estrutura gramático-lexical do idioma, relacionada à experiência anterior do
professor em formação. Segundo Barcelos, essa experiência
é calcada apenas em exercícios gramaticais repetitivos que estimulam a “decoreba” de regras, não abrindo espaço para o desenvolvimento de uma concepção mais holística da linguagem. Apesar de todo o conhecimento e teoria a respeito do movimento comunicativo de ensino de línguas, na prática, os alunos (de graduação), com raras exceções, não tem oportunidade de conviver com modelos comunicativos de ensino de línguas (Barcelos, 2005, p. 166).
Assim, tanto quanto existe uma visão do ensino-aprendizagem de LI na
escola pública como ineficaz, há uma imagem do professor de LI como inepto a
responder às novas demandas da sociedade, por se apegar a sua formação
inicial, que não lhe proporcionou as ferramentas para lidar com novas
concepções do ofício de professor. Esse apego à formação inicial se reforça
pelo contexto em que o professor atua, um contexto ao qual o professor precisa
se adequar, que não se adapta facilmente às mudanças teóricas relativas ao
processo de ensino-aprendizagem.
Conforme Barcelos (2005), Santos (2005) e Dias (2006), é importante,
então, compreender a relação crenças-contexto. A seguir, discuto a relevância
das crenças ao ensino-aprendizagem de LE, além do conceito de contexto
escolar, e sua relevância a esta dissertação.
2.4 Ensino-aprendizagem de LE e crenças
O estudo de crenças faz-se relevante ao ensino-aprendizagem de LE
por vários motivos. Barcelos e Abrahão (2006, p.9) consideram que “o
desvelamento das crenças de professores e alunos permite uma melhor
adequação de objetivos, conteúdos e procedimentos e, conseqüentemente,
chances de maior eficácia do processo ensino e aprendizagem”. Considerando
o estado precário atribuído ao ensino-aprendizagem de LE, discutido
anteriormente, a compreensão das crenças dos atores da escola pode ajudar a
reverter esse quadro negativo.
32
Barcelos (2004) aponta que o interesse em investigar as crenças surge
da ligação que a LA compartilha com outras disciplinas das Ciências Humanas
e Sociais, como antropologia, sociologia, psicologia, educação e filosofia. Na
área de LA, as crenças têm sido investigadas com várias finalidades, desde os
anos oitenta do século passado. As concepções das crenças passaram por
várias fases, com implicações na maneira de pesquisá-las. Na primeira fase, as
crenças foram conceituadas como entidades abstratas, passivéis de serem
descobertas por meio de questionários fechados, em que o respondente
escolhia a resposta mais próxima aos seus próprios sentimentos. Na segunda
fase, a investigação se centrou na busca de entender como as crenças
participavam da habilidade de formular estratégias de aprendizagem. Às
crenças, classificadas a priori, foram atribuídas características de causa e
efeito linear. Isto é, o pesquisador determinava anteriormente que tipo de
crença iria investigar, demonstrando que havia uma ligação direta entre a
crença e a maneira de o pesquisado agir.
Nessas duas primeiras fases, as crenças do indivíduo em relação ao
ensino-aprendizagem de LE foram caracterizadas pelos pesquisadores como
‘errôneas’. No entanto, na terceira e atual fase, há uma mudança significativa
na maneira como as crenças são concebidas e investigadas para dar conta da
sua complexidade. Assim, pesquisas recentes têm se baseado em métodos
que dão conta da complexidade da interação humana, como métodos
etnográficos e discursivos, dando relevo ao contexto de interação e às nuances
de linguagem que surgem nele, sem definir categorias de interpretação a priori.
E, embora até recentemente as crenças tenham sido teorizadas como
estruturas cognitivas relativamente estáveis que residem na mente do indivíduo
(Barcelos, 2006), as pesquisas mais recentes têm apontando para a
necessidade de compreender melhor os conceitos de cognição e mente
(Watson-Gegeo, 2004), e de incorporar uma dimensão social ao conceito de
crenças.
Watson-Gegeo (2004), argumentando a favor da adoção do paradigma
sócio-interacional da linguagem15, aponta para a necessidade de reconsiderar
os conceitos de mente, linguagem e epistemologia, para que se possa
compreender melhor como o indivíduo aprende a comunicar-se pela
15 No original: “Language socialization paradigm”.
33
linguagem. A autora destaca que a cognição – que inclui a capacidade
simbólica, a noção de si mesmo, a vontade, as crenças e o desejo – tem sua
origem na interação social, não no indivíduo, e que a maioria dos processos
mentais (pensamento) ocorrem no nível do inconsciente. Isso implica que se
adquire o conhecimento cultural e lingüístico de maneira implícita, por meio da
interação social.
A premissa central do paradigma advogado por Watson-Gegeo (2004) é
que o conhecimento linguístico-cultural se constrói em conjunto, num processo
contínuo, mas não necessariamente linear, ou sem contradições, isto é,
“linguagem, cultura e cognição se modulam interativamente por meio de
práticas interativas e pelo discurso”16 (Watson-Gegeo, 2004, p. 339). Outros
aspectos desse paradigma incluem o reconhecimento da natureza política da
linguagem, a complexidade do conceito de contexto, a transmissão de cultura
por meio de eventos linguisticamente marcados, e a construção da cognição
pela experiência, enquanto situada num contexto sócio-histórico-político.
Por meio desse paradigma, destaca-se a necessidade de considerar a
relevância da aprendizagem à experiência do aluno, no sentido de abrir espaço
para investigar fatores que contribuem para seu sucesso na arena educacional.
Isso, segundo Watson-Gegeo, implica na necessidade de repensar
radicalmente o ensino-aprendizagem de linguagem, seja língua materna ou
língua estrangeira. Nesse sentido, pesquisas que valorizam o contexto em
relação à linguagem contribuem para uma compreensão maior da construção
social do conhecimento. Pesquisas que destacam a necessidade de entender
as crenças de alunos, professores e outros atores da escola, desenvolvidas a
partir de um olhar etnográfico ou discursivo, inserem-se nessa perspectiva.
As pesquisas que focalizaram as crenças de atores da escola, até há
pouco tempo, levavam em consideração o ponto de vista de um grupo isolado
de outros grupos da escola e/ou do contexto de atuação. Assim, não levavam
em consideração a miríade de fatores que intervêm na formação, sustentação
ou mutação das crenças. No entanto, estudos mais recentes se baseiam em
premissas muito próximas àquelas discutidas por Watson-Gegeo. Aqui,
apresento algumas das pesquisas de destaque que estão abrindo novos
16 No original: “language, culture and mind interactively shape each other through interactive processes and discourses”.
34
caminhos para a compreensão desse conceito e sua relevância para o ensino-
aprendizagem de LE/LI.
Barcelos (2000) investigou a relação das crenças de professores e
alunos, a partir do ponto de vista etnográfico. A relevância dessa pesquisa para
o avanço do conhecimento sobre crenças dentro da área de LA se justificou
pela falta de um número significante de pesquisas que mostrassem como as
crenças de professores e alunos interagem, particularmente de uma
perspectiva êmica. A escolha de uma metodologia de natureza etnográfica
permitiu investigar de que modo os atores sociais atribuem sentidos às suas
ações. Barcelos considera que as crenças fazem parte da interação humana,
premissa essa inspirada em Dewey, filósofo estadounidense, que, nos idos de
1930, já afirmava que crenças não podem ser separadas da identidade, ações
ou experiência social do indivíduo.
A pesquisa de Barcelos foi realizada nos Estados Unidos e focalizou
alunos brasileiros que estavam estudando inglês num curso universitário
voltado a alunos vindos do exterior para aprimorar seu inglês. Segundo a
autora, as crenças de professores e alunos permitiam-lhes interpretar a
interação no contexto imediato da sala de aula. Isso indica que as crenças
representam uma ferramenta que ajuda o indivíduo a adaptar-se à situação em
que está inserido, negociar sua posição e identidade, tomar decisões baseado
em experiências prévias e agir de maneira apropriada. Barcelos salienta que as
crenças são incongruentes, às vezes, porque emergem em resposta ao
contexto e ao problema a ser resolvido. Há, então, uma interação entre crenças
e contexto, em que esses dois fatores se alimentam de maneira mútua.
Mais especificamente, Barcelos desenvolveu perguntas de pesquisa
relativas ao tipo de crenças os professores participantes tinham e se essas
crenças formavam a base da sua prática; o tipo de crenças que os alunos
tinham e a semelhança delas às crenças dos professores; a maneira como as
crenças dos professores e a prática de sala de aula, e/ou discurso, influenciava
as crenças dos alunos relativo ao ensino-aprendizagem de LI; a maneira como
as crenças e ações dos alunos influenciava as crenças e ações dos
professores; e a maneira como as crenças de alunos e professores mudam
através do tempo. A autora concluiu que todos os professores investigados
demonstraram crenças relativas aos papéís do professor e aluno, influenciadas
35
pela abordagem comunicativa, em que o professor é visto como facilitador e
tem a expectativa de o aluno ser ativo na sua busca de aprimorar suas
habilidades linguísticas. Além disso, as crenças dos professores demonstraram
ser interdependentes, o que valida a hipótese de que as crenças pertencem a
sistemas, ou redes interrelacionadas. Os alunos demonstraram crenças
relacionadas a sua experiência prévia com o ensino-aprendizagem de LI e, em
especial, que essa experiência no Brasil foi visto negativamente, enquanto a
experiência nos Estados Unidos foi visto positivamente. Os alunos atribuíram
essa positividade/negatividade ao número de aulas e ao contato direto com a
língua-alvo num país onde se fala o inglês como língua oficial (Barcelos, 2000,
p. 283-286).
A influência entre as crenças dos professores, a prática de sala de aula
e discurso é relatado pela autora em termos de influência positiva, negativa e
neutro. Salienta a autora que a influência positiva acontece quando há
congruência entre as crenças de professores e alunos. De modo semelhante, a
influência será negativa quando professores e alunos demonstram crenças que
divergem. A influência neutra indica que o professor não influenciou o aluno
nem positiva, nem negativamente. Curiosamente, não há indicação nesse
trabalho de que a influência neutra pode referir-se à influência das crenças do
aluno no professor (Barcelos, 2000, p. 294-298).
Quanto a questão da maneira como as crenças e ações do aluno
influenciam as crenças e prática do professor, Barcelos admite que é difícil
responder, pois o professor pode não estar ciente das crenças do aluno. Isto é,
o professor só pode interpretar as ações do aluno. Ainda assim, há três fatores
que parecem servir como fonte dessa interpretação: experiência própria (e
prévia) como aluno; a maneira como o professor percebe as ações e interpreta
os comentários do aluno; e a leitura feita pelo professor sobre teorias na área
de LA que servem de base para fazer comparações entre a teoria e as ações
do aluno (Barcelos, 2000, p. 298-300).
Finalmente, relativo à questão da maneira como as crenças de alunos e
professores evolvem através do tempo, a autora concedeu que o período de
investigação foi muito curto, de oito semanas, e que a participação de alguns
alunos foi só de até quatro semanas. Desta maneira, não houve mudanças
significativas para alguns dos participantes. No entanto, uma professora indicou
36
que mudou sua crença relativa ao ensino de gramática, para tentar equilibrar
mais a ênfase entre ela e a construção do significado numa situação
comunicativa. Essa mesma professora também mudou seu modo de pensar
sobre a correção em sala de aula. Enquanto antes pensava que não devia
corrigir os erros dos alunos, as suas experiências como mãe e professora
mostraram para ela que seus alunos estavam no seu direito de querer a
correção de erros. Alguns dos outros participantes também demonstraram
mudanças de crenças, que variavam da sua própria concepção relativo às suas
habilidades em inglês ao ensino-aprendizagem de LI no Brasil (Barcelos, 2000,
p. 303-304).
Murphy (2000) investigou as crenças de professores de francês com o
objetivo de identificar como elas refletem perspectivas sobre o ensino-
aprendizagem de francês por meio de contextos educacionais on-line. O estudo
foi conduzido num ambiente on-line, e, por conseqüência, houve participação
internacional de professores de francês. Apesar de enfocar um único grupo
social, a autora buscou compreender de que maneira essas crenças refletem
as diferentes abordagens de ensino de LE, teorias sobre ensino-aprendizagem,
e o uso de tecnologia no ensino no século XX.
Murphy empregou a metáfora de uma terra nova e estranha para melhor
representar o que o ambiente on-line significa para professores experientes.
Salienta a autora,
“ambientes de aprendizagem tradicionais têm garantido uma estabilidade considerável aos professores. Esses ambientes são predizivéis e relativamente imunes à perturbação e até às influências que vêm de fora. Contrariamente, os ambientes on-line representam ambientes radicalmente diferentes que muitas vezes desafiam formas tradicionais de aprendizagem e conhecimento… para alguns professores, as suas experiências com ambientes on-line têm resultado em experiências em congruência com suas crenças ou que os têm encorajado a mudar e redefinir suas crenças para acomodar os ambientes novos”17 (Murphy, 2000, Capítulo 7, p. 2)18
17 No original: “Traditional learning environments have provided considerable stability to teachers. They are predictable and relatively imune to perturbation, to change and even to outside influences. In contrast, OLEs (on-line learning environments) represent radically different environments that often challenge traditional ways of learning and knowing...for some teachers, their encounters with OLEs have resulted in experiences that have suited their beliefs or that have encouraged them to change and shift their beliefs in order to accomodate the new environments”. 18 O trabalho da Murphy está disponível na internet (ver referências bibliográficas), no formato PDF. No entanto, cada capítulo precisa ser baixado individualmente e começa novamente com a paginação.
37
Isso significa que outros professores que participaram da pesquisa de Murphy
não conseguiram adaptar-se ao uso de ambientes on-line. Segundo a autora,
os motivos pelos quais esses professores rejeitaram esse modo de ensino-
aprendizagem se relacionam a várias crenças, que incluem as crenças de que
não haja sites suficientes em francês, os alunos acessarão sites em inglês em
vez daqueles indicados pelo professor, o nível de francês nos sites seja muito
além do nível dos alunos e não seja produtivo aprender habilidades linguísticas
e de informática ao mesmo tempo (Murphy, 2000, Capítulo 7, p. 5-6). Murphy
ainda destaca que quando há aceitação da utilização de ambientes on-line pelo
professor, o docente pode se deparar com outros obstáculos que dificultam o
uso desses ambientes. Assim, quatro tipos de conflito foram delineados como
resultado da pesquisa: a) conflito com o sistema de crenças do professor, b)
conflito com convenções institucionais, c) conflito com as crenças de colegas e
d) conflito com as crenças de alunos (Murphy, 2000, Capítulo 7, p. 7).
Finalmente, Murphy (2000), ao relacionar as crenças dos professores
que participaram do estudo com o contexto histórico-social maior, a autora
mostrou a relação entre conhecimento científico, na forma de teorias oficiais, e
conhecimento pessoal, na forma de teorias implícitas. Concluiu que a relação
entre conhecimento científico e pessoal é dinâmica e dialógica, o que reforça a
constatação de Watson-Gegeo (2004) de que os processos cognitivos e,
portanto, o conhecimento, nascem no meio social.
Para a pesquisa aqui apresentada, desenvolvida em Várzea Grande,
Mato Grosso, os estudos feitos por Santos (2005) e Dias (2006) são de grande
interesse, por terem sido realizadas na mesma região. No contexto brasileiro,
considera-se Mato Grosso um estado periférico, por estar longe dos grandes
centros comerciais e por compartilhar uma fronteira com a Bolívia. Assim, as
pesquisas de Santos e Dias servem de pano de fundo para compreender
melhor as especificidades desta região. As duas autoras voltaram seu olhar
para as crenças dos atores da escola pública, pais, alunos e professores.
Desviando-se da prática comum de pesquisar apenas as crenças de alunos e
professores, essas pesquisadores abriram espaço para uma voz muitas vezes
esquecida, a dos pais. Tendo em vista que a escola não está fora do mundo,
mas faz parte dele, a decisão de ouvir os pais levou em consideração o
contexto maior em que a escola está situada.
38
Santos (2005) e Dias (2006) realizaram suas pesquisas a partir de uma
abordagem de observação participativa. Santos (2005) realizou sua pesquisa
em Sinop, Mato Grosso, e teve como objetivo investigar as crenças dos atores
da escola relevantes à inclusão do ensino de LI nas séries iniciais de
escolarização. Segundo essa autora, quatro crenças circundam a oferta de LI
nas séries iniciais: beneficia o aluno ao progredir nos seus estudos; deve dar
“uma base” e despertar o interesse do aluno; há desvalorização da disciplina e
do professor de LI; e é importante aprender LI. Santos considera que essas
crenças indicam a necessidade de discutir mais profundamente as políticas que
embasam o ensino-aprendizagem de LE na escola pública, em relação à
formação de indivíduos capazes de atuar na sociedade contemporânea.
De maneira semelhante, Dias (2006) realizou sua pesquisa em Várzea
Grande, Mato Grosso, buscando compreender quais sentidos foram atribuídos
ao ensino-aprendizagem de língua inglesa no contexto de uma escola pública
localizada na periferia da cidade. Também buscou fazer a ligação entre essas
crenças e o contexto maior por meio de uma discussão sobre aspectos sócio-
culturais nelas refletidos. Segundo Dias, o processo de globalização faz os
atores da escola sentir, de maneira mais aguda, a vontade e a necessidade de
ter acesso a bens culturais, muitos inacessíveis por causa de distâncias reais e
imaginadas entre sua localização e pólos culturais e econômicos, além de
distâncias entre suas condições econômicas e um nível socioeconômico mais
propício para o consumo desses bens. A autora salienta que a desqualificação
do ensino-aprendizagem de inglês na escola pública por parte dos
administradores da escola faz crescer a distância entre o “mundinho” local e o
mundo globalizado.
As quatro pesquisas acima citadas utilizaram princípios da etnografia ou
observação participativa para desvendar não só as crenças, mas a maneira
como essas crenças são socialmente construídas. Para fazer isso, é
necessário voltar a atenção à linguagem dos indivíduos-participantes, o meio
pelo qual as crenças se expressam. Autores como Kalaja (2003) e Kramsch
(2003) têm seguido abordagens que privilegiam a análise linguística em vez de
métodos mais participativos de investigar as crenças. Esse enfoque não é
menos válido. Demonstra que a experiência humana é variada, portanto, há
necessidade de mais de uma maneira de estudá-la, pois nenhum método de
39
pesquisa dá conta da totalidade de nossa realidade. Ambas autoras
pesquisaram as crenças a partir de uma abordagem sócio-construtivista. As
autoras, ainda que difiram no seu enfoque, enfatizam que a linguagem não só é
uma representação da realidade, mas a constrói. Nessa concepção, a
linguagem equivale à ação, pois como explica Kramsch (2003, p. 109), “não se
esgota o significado da linguagem no que ela diz sobre a realidade social; ela
deve ser examinada para desvendar a maneira em que constrói a realidade
social”19.
Kalaja (2003, p. 87), que abordou a investigação das expectativas de
sucesso de alunos relativo à sua performance nas provas aplicadas durante o
percurso de estudo desde uma perspectiva discursiva, salienta que quando o
indivíduo se expressa, suas crenças se fazem diretamente observáveis como
ações representadas pela linguagem. A abordagem discursiva enfoca a
maneira como a linguagem utilizada pelo indivíduo constrói expectativas e
possibilidades para a ação. Nesse sentido, o contexto imediato tem grande
influência na maneira como se constrói linguisticamente a realidade daquele
momento. A autora coletou diários e gravou discussões com alunos que tinham
se matriculado para fazer uma prova oficial de inglês e identificou quatro
repertórios interpretativos utilizados pelos alunos para explicar sua
performance: Sr. Trabalhoso, Sr. Hábil, Sr. `Legal´, Sr. Chance20 (Kalaja, 2003.
p. 101). Kalaja concluiu que as maneiras como o aluno se expressa
relativamente à sua performance pode variar de uma situação para outra,
dependendo da maneira como o aluno opta para se construir frente à situação
imediata. Portanto, as crenças são muito mais variáveis do que estáveis.
Kramsch (2003) voltou seu olhar para as metáforas. As metáforas
funcionam para mapear conceitos, que tanto podem ser congruentes como
incongruentes. Por isso, segundo Kramsch, investigar as crenças através das
metáforas privilegia a investigação do deslizamento que pode ocorrer na
formação delas de um contexto para outro. A autora discute duas maneiras de
abordar a investigação de crenças através das metáforas. Na primeira
abordagem, o investigador elicita metáforas de indivíduos-participantes sobre
um assunto específico para análise de crenças que surgem na sobreposição de 19 No original: “The meaning of language is not exhausted in what it says about social reality; it has to be examined for the way it constructs social reality. 20 Tradução minha de “Mr. Hard Work, Mr. Skilled, Mr. Cool and Mr. Chance”.
40
imagens que compõem a metáfora. Essa abordagem, segundo a autora,
demonstra sua utilidade por desvendar a maneira como o indivíduo constrói um
sistema de crenças (Kramsch, 2003, p. 121). Na segunda abordagem, o
processamento metafórico, o objetivo é investigar e interpretar a maneira por
meio de que o indivíduo constrói sua experiência metaforicamente, enfocando
os modelos cognitivos da realidade construídos pela linguagem (Kramsch,
2003, p. 112).
As abordagens expostas aqui – etnográfica, de observação participante,
discursiva e metafórica – estão em congruência com o paradigma sócio-
interacional da linguagem advogado por Watson-Gegeo (2004). Todas
valorizam, embora com intensidade diferente, o contexto e a linguagem na
construção de crenças, que fazem parte da cognição do indivíduo. Watson-
Gegeo conceitua a cognição na comunidade. O papel da comunidade é de
introduzir o iniciante ao conhecimento e cultura que a permeia, trazendo o
aprendiz da periferia do conhecimento a um lugar legitimado dentro da
comunidade (Watson-Gegeo, 2004, p. 341).
No entanto, esse processo de inclusão pode ser invertido e utilizado
para excluir o indivíduo da comunidade. Voltando esse conceito para a escola
pública, é necessário contemplar a denúncia de Moll (2000) que, citando Ferrari
(1987), aponta para “um duplo processo de exclusão: a exclusão da escola e a
exclusão na escola” (Moll, 2000, p. 77). Segundo Moll,
a escolarização pública e estatal estendida às camadas urbanas pobres em idade regular... consolida práticas escolares excludentes que mantêm o analfabetismo, e produz um discurso que aprofunda a legitimação social acerca da incapacidade dos ‘pobres’ para as aprendizagens escolares (Moll, 2000, p. 77).
A autora chega a essa conclusão ao levar em consideração o alto índice de
repetição de ano e evasão21 escolar que ainda ocorre no Brasil.
As constatações, tanto de Watson-Gegeo (2004), quanto de Moll (2000),
relacionadas à educação lingüística têm implicações não só para o ensino de
língua materna, mas também para o ensino de LE. No Brasil, parece haver
uma cultura de negatividade que permeia a maneira como se pensa a escola
21 Entende-se por “evasão escolar” a falta de o aluno assistir às aulas por períodos prolongados, ou a desistência dele da educação formal.
41
pública e seu aluno. Estudos de cunho etnográfico e discursivo, como aqueles
citados acima, têm um importante papel em desvendar o impacto que o
contexto tem no processo de ensino-aprendizagem de LE.
2.5 Do contexto
Delimitar o contexto escolar quer dizer enfocar aspectos da instituição
que se encontram ou no nível micro (sala de aula, espaço físico da escola) ou
no nível macro (institucional). Segundo Delamont (1983), o nível micro se
compõe de um contexto temporal e físico. O contexto temporal refere-se ao
momento histórico em que o trabalho educativo se desencadeia na sala de
aula, e à idéia de que a sala de aula não é estática. Delamont (1983, p. 30-31)
adverte que é necessário compreender o contexto temporal para melhor
compreender os sentidos construídos dentro de sala de aula . O contexto físico
refere-se a aspectos tais como local, divisão espacial do prédio escolar, e inclui
também o formato e decoração da sala de aula.
O nível macro, conforme Delamont (1983, p. 39-46), se compõe do
contexto institucional, em que a escola se organiza ao redor de políticas
negociadas, reafirmadas, modificadas e/ou aceitas de forma conformista.
Nesse contexto, há graus diferentes de controle institucional que penetram a
sala de aula e influenciam o clima estabelecido entre professor e aluno. Nesse
nível, há também o contexto educacional, que se estabelece na forma do
sistema educacional ao qual a escola pertence. No nível do contexto
educacional, políticas educacionais mais abrangentes, como o currículo oficial,
são estabelecidas.
Erickson (1990, p. 102) constata que a sala de aula é um lugar onde
sistemas de interação formal e informal interagem. Pode-se ampliar essa visão
para incluir o todo da instituição educacional, pois, como discutido
anteriormente, é um lugar onde o indivíduo se defronta com o coletivo, nessa
circunstância, com a comunidade escolar. O sistema formal, portanto, se forma
pelas políticas estabelecidas para o funcionamento da instituição. Essas
políticas dirigem vários fatores que, por sua vez, influenciam o contexto
escolar: a escolha e implementação do currículo, a escolha e compra de
materiais, a divisão do dia escolar, as regras de comportamento a serem
42
seguidas, e a merenda a ser oferecida aos alunos, entre outros. O sistema
informal se constitui e se influencia por ações, atitudes, opiniões, e crenças,
além de outros fatores, que se baseiam na experiência do indivíduo e que
interagem no contexto escolar. Desta maneira, o sistema informal também
influencia o contexto escolar. Os dois sistemas interagem de maneira dinâmica,
dialógica, nem sempre de maneira explícita. André, ao teorizar o cotidiano
escolar, enfatiza que
o que acontece dentro da escola é muito mais o resultado da cadeia de relações que constrói o dia-a-dia do professor, do aluno e do conhecimento; e muito menos a atitude e decisão isolada de um desses elementos. Os anéis dessa cadeia se ligam de várias maneiras aos anéis que compõem o todo institucional, o qual se articula de muitas maneiras com as várias esferas do social mais amplo (André, 1992, p. 35)
Acredito que essa descrição do cotidiano escolar proposta por André
(1992) esteja de acordo com aquilo que venho chamando de contexto escolar.
O contexto escolar, então, não se compõe unicamente do espaço físico
delimitado por quatro paredes. Enquanto esse espaço tem influência no
desencadear da prática educacional, por limitar a maneira como o professor
pode construir sua aula metodologicamente, e construir um tom ambiental que
reflete a preocupação da sociedade com a qualidade do ensino, inferida pela
preocupação com condições físicas da escola, o contexto escolar precisa ser
pensado em relação à sociedade.
Também compartilho com Gomes (2005) a perspectiva de que para se
conseguir a efetividade da educação, é necessário entender os fatores que
influenciam a educação nos níveis macro e micro. Gomes emprega a metáfora
da cebola para explicar a complexidade do sistema educacional. Assim,
o sistema educacional está dividido em camadas: primeiro, abrem-se as diversas redes, depois as órgãos gestores regionais e locais; em seguida, as diferentes escolas e, nestas, as diversas turmas, com os seus variados professores e, por fim, os grupos de alunos, com adesão maior ou menor aos objetivos da escola (Gomes, 2005, p. 283).
Essas camadas não são facilmente penetráveis, o que remete à dificuldade de
instituir políticas voltadas à melhoria do processo de ensino-aprendizagem,
ainda que benéficas, como por exemplo, a formação continuada de professores
do ensino fundamental. Isso implica também que é difícil o professor intervir
43
para que o aluno seja bem sucedido, por ter de procurar meios adequados que
se perdem na burocracia do sistema educacional.
Gomes aponta que as escolas com maior sucesso, ainda que raras, se
apóiam numa “atmosfera de encorajamento, altas exigências, tratamento
pessoal, [e] liderança” (Gomes, 2005, p. 290). Indica a necessidade de
trabalhar colaborativamente para construir condições propícias ao ensino-
aprendizagem, o que volta o olhar para o professor e os administradores da
escola. Raposo e Maciel (2005, p. 310), ao salientar a posição de Zeichner
(apud Passos, 2001), apontam para a necessidade de valorizar a interação
para que os professores (e aqui, seguindo a linha de raciocínio, adicionarei os
administradores) possam “se apoiar mutuamente, sustentar o crescimento uns
dos outros e olhar para os seus problemas compreendendo que têm uma
relação com os de outros professores, com a própria estrutura da escola ou do
sistema educativo”. Isso implica que o contexto influencia e tem impacto no
desenvolvimento de todos os atores da escola, desenvolvimento esse que
acontece em dois níveis interligados para os professores e administradores: o
nível profissional e o nível pessoal. Como consequência, Raposo e Maciel
(2005, p. 311) sugerem que “a atualização e a produção de novas práticas de
ensino só surgem de uma reflexão partilhada entre os colegas, que tem lugar
na escola e nasce do esforço de encontrar respostas para problemas
educativos”. No entanto, para que isso aconteça, é necessário construir um
espaço seguro para a colaboração em que o respeito e a consideração de um
pelo outro sirvam de premissa para a interação. Isso não exclui o conflito, mas
oferece ferramentas para lidar com incongruências que surgem no cotidiano
escolar.
Neste capítulo, abordei o ensino-aprendizagem de LE a partir um ponto
de vista que inclui aspectos sócio-histórico-econômicos como pano de fundo
para compreender o atual estado em que se encontra no Brasil. Argumentei
que não há uma ligação direta entre fatores que compõem esse pano de fundo,
pois o sistema educacional se compõe de maneira complexa, e não de maneira
isolada do meio social mais abrangente. A construção de um quadro negativo
relativo ao ensino-aprendizagem de LE tem conseqüências para a
implementação de políticas voltadas à melhoria das condições sob as quais
44
esse processo acontece. Se não houver intervenção em todos os níveis do
sistema educacional, as tentativas individuais de melhorias serão marcadas
pelo mesmo insucesso que atinge as escolas públicas hoje.
Uma maneira de intervir é investigar fatores, como as crenças, que
podem influenciar não só o ensino-aprendizagem de LE, mas outros aspectos
do cenário educacional. As crenças refletem mais do que o estado atual das
coisas. Refletem a maneira como o indivíduo concebe sua realidade e servem
de base para a ação, emergente e possivelmente paradoxal, pois se ancoram
no contexto.
3 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
Neste capítulo, primeiramente, apresento as premissas que balizaram a
pesquisa relatada nesta dissertação, além das circunstâncias que influenciaram
seu desenvolvimento. Posteriormente, apresento mais detalhadamente as
premissas da pesquisa etnográfica; a importância e construção da colaboração
no empreendimento; dados relativos às professoras colaboradores, esta
pesquisadora e sua parceira da escola pública; o desenvolvimento da
pesquisa; dados relativos ao bairro, seus moradores e escola; uma introdução
aos atores da escola; a metodologia de interpretação; e algumas limitações da
pesquisa.
3.1 Introdução
A pesquisa aqui apresentada foi construída com base em métodos
qualitativos, de cunho etnográfico. Buscou-se fazer interpretações de uma
realidade social específica – a relação entre o ensino de LE na escola pública e
o contexto escolar, vista do ângulo da construção, manutenção e mutação das
crenças de atores sociais (professores, alunos, administradores, etc.). A
pesquisa se baseou na observação participante. Segundo Agar (1996, p. 9), a
observação participante permite ao pesquisador entrar no mundo dos
indivíduos que colaboram com a sua investigação. O objetivo da observação
participante é buscar compreender as práticas cotidianas desses indivíduos, e
a maneira como essas práticas estão construídas do conhecimento comum
entre eles, além de outros fatores que são relevantes ao momento vivenciado e
registrado durante a investigação. Esta pesquisa foi desenvolvida com a
colaboração de uma professora da rede pública do município de Várzea
Grande – MT como participante principal, e incluiu a participação de outros
atores da escola. A observação de eventos que compõem o cotidiano escolar
foi imprescindível para compreender a ligação entre as crenças desses atores
e o contexto escolar.
Nesta dissertação, busca-se explicitar elementos do cotidiano escolar
que impactam, direta ou indiretamente, a atuação do professor de LE no
46
contexto escolar, com possíveis implicações para a formação continuada, uma
vez que a atuação em sala de aula e a formação continuada são duas
atividades que fazem parte do mesmo processo (Brasil, 2006, p. 15). A ação
docente alimenta as condições para a formação continuada, que, por sua vez,
retro-alimenta a ação docente. Não devem ser pensados como duas ações
separadas, mas ações que compõem um contínuo processo de
desenvolvimento profissional. No entanto, as experiências vividas pelo
professor no espaço escolar tendem a fracionar essa concepção, além de
reforçar, inconscientemente, crenças, atitudes e ações, às vezes conflitantes,
que viram empecilhos a uma concepção de ensino mais alinhada com as
exigências da sociedade contemporânea.
3.2 Da pesquisa etnográfica
A etnografia é um método de pesquisa interpretativo. Segundo Erickson
(1990, p. 86-87), a pesquisa interpretativa se desenvolveu na Europa do século
XVIII de um interesse nas vidas e nas perspectivas de pessoas que não tinham
voz na sociedade. Durante o século XIX, o interesse em estudar o mundo
social das populações menos favorecido cresceu e se estendeu ao
conhecimento folclórico delas, na busca de resgatar a imagem do indivíduo
comum e propiciar reformas sociais. A etnografia, como metodologia
interpretativa, se desenvolveu, subseqüentemente, no final do século XIX. Foi
nessa época que as descrições da maneira de viver de povos desconhecidos e
iletrados da África e da Ásia, territórios coloniais controlados pela Europa,
ganharam mais detalhes e, conseqüentemente, a atenção de antropólogos. O
início do século XX até a Segunda Guerra Mundial é considerado como o
período tradicional da pesquisa qualitativa, em que os pesquisadores
“escreveram relatos colonialistas, 'objetivos', das experiências de campo”22
(Denzin e Lincoln, 2006, pg. 26). A validade, confiabilidade e objetividade
desses relatos não foram questionadas pela comunidade científica nessa
época.
Denzin e Lincoln (2006, p. 26-32) apontam que a pesquisa qualitativa
tem passado por várias fases desde então. Cada fase é marcada por
22 Grifos do autor.
47
características que refletem as inquietudes da época, como, por exemplo, no
segundo período, em que os pesquisadores trabalharam para formalizar as
formas de investigação e o pesquisador qualitativo foi visto como um romântico
social; ou seja, como um pesquisador que valorizava “os vilões e os
outsiders23, considerando-os heróis da sociedade dominante” (Denzin e
Lincoln, 2006, pg. 29). No momento atual, a objetividade do pesquisador é
posta em questão, pois “não existem observações objetivas, apenas
observações que se situam socialmente nos mundos do observador e do
observado” (Denzin e Lincoln, 2006, pg. 33). Assim, reconhece-se que as
histórias de vida de todos os participantes da pesquisa, inclusive o
pesquisador, influenciam a interpretação de dados, e, conseqüentemente, os
resultados finais da investigação.
Reconhecer esta influência é importante, pois o pesquisador, como
membro de uma comunidade científica, tem o poder de influenciar políticas
sociais. Denzin e Lincoln (2006, p. 37) consideram que o pesquisador
qualitativo pode “isolar as populações-alvo, mostrar os efeitos imediatos de
certos programas sobre esses grupos e isolar as restrições que agem contra as
mudanças das políticas nesses cenários”. A etnografia, como instrumento que
dá voz ao outro, mas que não pode negar a voz do pesquisador, é uma obra
híbrida. É também uma obra política, que pode abrir espaço para a
compreensão dos valores, crenças, necessidades, desejos, e significados da
população-colaboradora da pesquisa. Para Bohn (2005, p. 11), pesquisar é
desencadear várias atividades políticas, entre as quais esse autor destaca a
produção de sentidos, a procura da compreensão do outro, a construção do
saber, a administração de tensões e a tomada de posição axiológica do
pesquisador, entre outras. O pesquisador carrega uma responsabilidade ética
para com a população pesquisada que não pode ser ignorada.
Voltada à educação, Erickson (1990, p.79) considera que a etnografia,
como metodologia interpretativa, tem um importante papel na investigação dos
contextos educacionais. Segundo o autor, esse tipo de investigação oferece a
vantagem de compreender e desvendar: a natureza da sala de aula vista como
um microcosmo organizado cultural e socialmente; a variedade de aspectos do
contexto educacional em que o ensino representa só um deles; e as
23 Pessoas de fora. Grifos dos autores.
48
perspectivas e a maneira de o professor e de o aluno construírem sentidos,
intrínsecos ao processo de ensino-aprendizagem. A esse último, nós
poderíamos adicionar que o posicionamento filosófico do indivíduo, expresso
de maneira consciente ou não, impacta esse processo. As crenças, ações e
atitudes são ao mesmo tempo base e produto desse posicionamento.
Manifestam-se de maneira congruente ou incongruente com as crenças, ações
e atitudes dos outros indivíduos que compõem o contexto escolar.
A pesquisa etnográfica envolve a participação e interação do
pesquisador no âmbito do grupo a ser pesquisado, o que fornece a
oportunidade de coletar dados em contexto natural (Erickson, 1990; Agar,
1996; Denzin e Lincoln, 2006). A coleta de dados normalmente se baseia em
anotações de campo e entrevistas, sem definir a priori categorias de
observação. Nesse sentido, o etnógrafo observa o processo dialógico entre o
contexto e os indivíduos que o compõem, buscando entender quais sentidos e
práticas se desenvolvem de maneira significante na interação. O objetivo,
especialmente quando o grupo pesquisado tem algo em comum com o
pesquisador, é de estranhar o óbvio e de questionar o comum. Salienta
Erickson,
parte da responsabilidade do etnógrafo é ir além do que os atores locais entendem explicitamente, identificando os sentidos que estão fora do alcance da consciência dos atores locais, e revelando o currículo oculto a fim de que esse possa ser encarado criticamente por professores e doutos (Erickson, 2001, p. 13).
No entanto, é importante destacar a impossibilidade de o etnógrafo
captar tudo o que acontece no contexto pesquisado. Agar (1996) aponta que o
etnógrafo de hoje entra em campo com objetivos de pesquisa já perfilados.
Esses objetivos são influenciados por múltiplos fatores que dependem dos
interesses da sociedade em geral e do pesquisador em específico. Quer dizer
que o pesquisador não entra em campo sem ponto de vista, sem
posicionamento teórico-filosófico. Isto porque o pesquisador, tanto quanto os
indivíduos pesquisados, também trazem ao estudo seu conhecimento e
experiência prévia (Agar, 1996, p. 97). O etnógrafo, portanto, entra em cena
com filtros culturais e pessoais que funcionam como um prisma, ampliando a
visão de alguns aspectos do contexto pesquisado, enquanto deixa de enfatizar
49
outros. Por isso, Agar (1996) enfatiza a necessidade de o etnógrafo entender
bem seu próprio posicionamento.
Na área de LA, estudos de cunho etnográfico têm sido desenvolvidos
para estudar crenças de alunos e professores. De destaque são as pesquisas
de Barcelos (2000), Murphy (2000), Kramsch (2003), Kudiess (2005), Santos
(2005) e Dias (2006), alguns já citados no capítulo dois. Barcelos (2004)
destaca que o empreendimento de pesquisas etnográficas, voltadas ao estudo
de crenças, se desenvolveu em reação a métodos em que as crenças de
alunos e professores eram definidas a priori e listadas em questionários, sem
levar em consideração o contexto em que aparecem.
Como aponta Dufva (2003, p.154), o uso de um questionário fechado
para investigar crenças limita nosso entendimento delas, pois não consegue
demonstrar pontos de vista tácitos que embasam o que ela chama de
“expressões formulares”. Assim, esses pontos de vista permanecem ocultos.
Segunda a autora, o pesquisador que não leva o contexto em consideração
corre o risco de propagar “estereótipos e clichês em vez de encorajar alunos e
professores a exercer sua habilidade de reflexão” (idem).
Erickson (1990) e Agar (1996) apontam que o contexto é o lugar
privilegiado da interação. Para que o processo educacional funcione, é
necessária a colaboração dos atores da escola. Mas quando falamos da
investigação etnográfica, também há necessidade de colaboração. O
pesquisador precisa de uma porta de entrada para o cenário a ser pesquisado.
Por isso, deve construir rapport (Agar, 1996, p. 137), ou um bom
relacionamento, com um (ou mais) dos indivíduos que pertencem à
comunidade a ser pesquisada.
3.3 Da pesquisadora e da professora participante
No primeiro capítulo, introduzi algumas informações pessoais e alguns
casos profissionais que embasam minha busca de aperfeiçoamento
profissional. Brevemente, retomo aqui minha experiência como professora, que
consiste em dez anos de atuação na rede pública de Palm Beach County,
Flórida, nos Estados Unidos, ensinando francês e espanhol, e dois anos e meio
numa escola particular de idiomas de Cuiabá – MT, ensinando minha língua
50
nativa, o inglês. Nessa época, não me considerava um ser político, pois política
no contexto escolar, para mim, significava a burocracia do sistema escolar e as
políticas públicas voltadas à educação. Ou seja, não reconhecia
conscientemente o papel político que o professor desempenha, ou, às vezes,
deixa de desempenhar. Embora tivesse me empenhado em participar da vida
escolar por meio de várias atividades (ver página 11), eu não sabia
“desempenhar o duplo papel de professor e de político” (Leffa, 2005, pg. 207).
No entanto, entendia que existem forças no contexto escolar e na sociedade
que podem influenciar os acontecimentos de sala de aula.
Antes de entrar em campo, embora não tivesse tido qualquer
experiência de ensinar na escola pública no Brasil, certamente tinha uma
concepção de escola pública neste país, devido às reportagens em jornais e
revistas, além das opiniões expressadas por parentes, amigos e colegas. Ainda
assim, não conhecendo nenhuma escola pública brasileira de perto, por
também ter tido experiência em escolas públicas nos Estados Unidos, possuía
concepções do que fosse uma escola pública, podia “julgar” o que considerava
uma boa escola, um bom ensino, bom professor, bom aluno. Quer dizer
formulara imagens baseadas em minha experiência prévia, traçando
conclusões sobre o que parecia semelhante ou completamente diferente do
que conhecia da escola pública dos Estados Unidos, influenciada por
informações indiretas provindas das fontes acima citadas.
Era evidente que seria necessário equilibrar minhas próprias
formulações com as concepções de quem conhece bem o espaço escolar que
eu pretendia estudar. Assim, me aproximei de uma colega, Joyce24, que
conhecera quando trabalhava numa escola particular de idiomas. Joyce, além
de dar aula na escola particular de idiomas, também era professora efetiva da
rede pública de Várzea Grande, Mato Grosso. Na hora que apresentei a idéia
de desenvolver uma pesquisa, que naquele momento perfilei uma pesquisa
colaborativa, a Joyce me informou que não pretendia continuar a dar aula na
escola particular de idiomas. Tinha decidido concentrar seus esforços na
escola pública, onde ensinava inglês para alunos do quinto ao oitavo ano no
período matutino, que lhe proporcionaria mais tempo para estudar à tarde em
preparação para os variados concursos anunciados pelo governo naquela
24 Todos os nomes de pessoas e locais citados neste capítulo e adiante são fictícios.
51
época. A esperança da Joyce era de poder conciliar a profissão de professora
com outra, após ser aprovada em outro concurso, para melhorar suas
condições de vida.
Joyce tinha sete anos de experiência na rede pública de Várzea Grande
em 2007. Ela é formada em Letras, com habilitação em inglês e português, e
possui especialização em Metodologia da Língua Portuguesa. Ao contrário do
estereótipo do professor de inglês com habilidades orais subdesenvolvidas, a
Joyce fala inglês muito bem. Ela me relatou que tinha freqüentado um centro
de idiomas particular durante a adolescência, que lhe proporcionou essa
habilidade.
Joyce e eu conversamos sobre o projeto que eu queria desenvolver
como mestranda. Expliquei-lhe que queria desenvolver uma pesquisa
colaborativa. Considera-se que a colaboração entre profissionais da mesma
área proporciona muitos benefícios aos envolvidos. Autores como Atay (2006),
Bailey et al. (1998), Clarke et al. (1998), Cornish et al. (2007), Erickson (1989),
Nieto (2002) e Raposo e Maciel (2005) citam o apoio profissional como um dos
benefícios mais importantes da colaboração, pois, ao criar vínculos com o
outro, o indivíduo se fortalece. Ainda assim, é necessário criar a sensibilidade
de que os participantes podem desempenhar papéis bastante diferentes na
colaboração, por ocupar posições profissionais diferentes, e trazer consigo uma
história de experiências, além de pontos de vista, que influenciam o
desenvolvimento do empreendimento.
Trabalhar em conjunto implica negociação constante entre os
integrantes do grupo, segundo vontades e necessidades que são, ao mesmo
tempo, individuais e coletivos. É importante salientar que o processo de
negociação também se restringe pelo contexto. O contexto é definido como o
lugar da interação, portanto fornece as ferramentas para construir projetos em
conjunto. A interação e a construção de projetos podem ser influenciadas tanto
pelo clima organizacional da escola, quanto pelas condições físicas, como o
estado do prédio e disponibilidade de recursos e equipamentos. A colaboração,
como processo, pode ser caracterizada como complexa e não-linear. Há uma
contínua necessidade de renegociação e superação de obstáculos para que
haja sucesso.
52
O objetivo da investigação, portanto, seria enfocar o processo de
negociação durante o desenvolvimento da pesquisa colaborativa. Sugeri que
desenvolvêssemos um projeto de formação continuada baseado nas
necessidades de Joyce, como profissional, e seus alunos, como aprendizes de
LI. A Joyce indicou que lhe interessava ajudar seus alunos a melhorar a
habilidade de leitura em língua inglesa. Ela lamentou, então, que era difícil sem
material didático, pois ela possuía um único livro, que servia como fonte de
conteúdo a ser trabalhado em sala de aula. Portanto, seria necessário montar
material didático para uso em sala de aula.
Joyce estava preocupada com os recursos financeiros que seriam
necessários pelo desenvolvimento do projeto. A escola não dispunha de
recursos financeiros para desenvolver materiais para uso em sala de aula.
Decidimos, então, que enquanto trabalharíamos em conjunto para montar o
material necessário para o desenvolvimento do projeto, eu, seria responsável
por financiar os materiais25, que incluíram principalmente cópias de textos para
todos os alunos. Eu seria responsável, também, pelo fornecimento dos textos
teóricos a serem estudados por nós, relevantes à metodologia de ensino-
aprendizagem de leitura, e ao conceito de gêneros discursivos, a partir de um
enfoque construtivista de ensino-aprendizagem. Seria imprescindível ler e
discutir esses textos para nortear o planejamento do projeto, assim como o
desenvolvimento do material didático. Ademais, decidimos que a seleção do
material didático a ser utilizado em sala de aula, assim como o
desenvolvimento do planejamento, exercícios e outras atividades relevantes ao
projeto, seria feita colaborativamente. Assim, a Joyce consentiu em participar, e
nós combinamos desenvolver o projeto durante o segundo semestre de 2007.
Desta maneira, Joyce se posicionou como a insider, a pessoa
responsável para me guiar no contexto escolar “pouco familiar e singular”, na
concepção etnográfica. Em outras palavras, quer dizer que é necessário
reconhecer que aparentes semelhanças entre uma escola e outra, ou entre
duas salas de aula de uma mesma escola, só existem na superfície, e que é
necessário entender esse contexto do ponto de vista dos indivíduos que aí
25
Como bolsista da CAPES, achei justo investir uma porcentagem desse recurso para o desenvolvimento de materiais para uso em sala de aula. Ao terminar o semestre, também presenteei os alunos participantes com cópias próprias de gibis (em língua portuguesa), para agradecer sua colaboração com o projeto e estimular ainda mais o interesse deles pela leitura.
53
exercem sua profissão ou estudam. Desta maneira, ainda que eu tenha
experiência como professora, não havia como presumir que eu conhecesse o
contexto particular da escola pesquisada. Diz Erickson a esse respeito,
nossa crença de que já conhecemos as salas de aula – como futuros professores, professores experientes, administradores educacionais e técnicos educacionais – cega-nos para as nuances da particularidade na construção local da interação cotidiana como ambiente de aprendizagem. De uma sala para outra, há diferenças sutis na organização da interação entre os vários participantes e na organização da interação deles com os materiais educacionais. Tais sutilezas fazem diferenças no tom e na morale
26 – na postura e no comprometimento em relação à aprendizagem e ao ensino de uma sala para outra, mesmo quando as salas adjacentes são frequentadas por alunos da mesma idade e da mesma comunidade, de origem linguística e socioeconomicamente semelhante (Erickson, 2001, p. 10).
Considero que a participação da professora Joyce foi essencial ao
desenvolvimento da pesquisa apresentada nesta dissertação, para que
pudesse compreender a interação no contexto escolar de um ponto de vista
êmico. Ainda assim, é importante salientar que como pesquisadora, eu entrei
em campo com objetivos a serem alcançados – objetivos que certamente
influenciaram o desenvolvimento da pesquisa e desta dissertação.
3.4 Do percurso da pesquisa
A pesquisa, baseada em metodologias etnográficas, foi construída a
partir de minha participação no contexto escolar, primeiramente por meio de
observações de aula, e conversas e entrevistas com a professora participante e
outros atores da escola, entre eles, professores, administradores e alunos.
Além de observar aulas e ouvir atores da escola, também apliquei dois
questionários a alunos de LI, pesquisei documentos oficiais da escola e
participei de vários eventos para compreender melhor o contexto da escola. Os
eventos dos quais participei incluem a caminhada pela paz, o festival de
Halloween, o lançamento de livros paradidáticos de uma editora de livros
educacionais que se concretizou em uma escola de outro bairro, uma gincana
e um jogo entre os times de futebol da escola pesquisada e de outra escola de
ensino fundamental do bairro.
26
Grifos do autor.
54
A minha entrada na escola aconteceu no dia 31 de julho de 2007.
Observei as primeiras aulas, e durante a ‘janela’, ou período livre, da
professora, nós combinamos os dias em que eu participaria de suas aulas.
Seguindo a sugestão da professora Joyce, em relação ao desenvolvimento do
projeto de formação continuada, decidimos inicialmente trabalhar mais
intimamente com os alunos do oitavo ano (antiga sétima série), por eles terem
tido mais contato com a língua inglesa. A maioria das turmas do oitavo ano se
encontrava com a Joyce nas terças e quintas-feiras. O período livre da Joyce
também caiu numa terça-feira. Assim, nós teríamos tempo para discutir a
prática de Joyce e as teorias e métodos de ensino, com a finalidade de
desenvolver um projeto sobre ‘textos’, tema que interessava à Joyce para
aprimorar as habilidades de leitura dos seus alunos. Desta maneira, sugeri
trabalhar com um gênero discursivo27, a ser definido após levantar informações
relativas aos alunos que participariam, para escolher um gênero que seria do
interesse deles.
Nos primeiros momentos da minha participação no contexto escolar,
poucos indivíduos me questionaram diretamente sobre minha presença. A
direção me aceitou na escola como pesquisadora, mas o contato nessa época
foi breve, o necessário para entender minhas pretensões e perguntar um pouco
sobre minha carreira de professora. A maioria dos professores ficou satisfeita
com a explicação que a Joyce oferecia, de que estávamos desenvolvendo um
projeto em conjunto. Alguns alunos, no entanto, ficaram preocupados com a
minha presença. Olharam na minha direção, sussurando entre eles. Os mais
corajosos me abordaram, olharam para meu caderno e perguntavam se estava
anotando o comportamento deles. Presumiram que minha presença fosse uma
forma de vigilância. Tive de assegurá-lhes que essa não foi a minha intenção
ao participar das aulas deles.
27 O conceito a que me refiro é o de Bakhtin. Esse autor denomina a variedade do tipo de enunciados relativamente estáveis de “gêneros de discurso” (Bakhtin, 2003, pg. 262) e considera que “a diversidade de gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comunicação” (Bakhtin, 2003, pg. 283). O desenvolvimento de seqüências didáticas baseadas nesse conceito aconteceu primeiramente na França e foi documentado por pesquisadores tais como Schneuwly e Dolz (2004). Os PCN de Língua Portuguesa (Brasil, 1998) adotam a “noção bakhtiniana de gênero de discurso como objeto de ensino” (Barbosa, 2000, p. 150). Ainda que esta concepção não seja tão clara nos PCN de Língua Estrangeira (Brasil, 1998), várias pesquisas têm sido feito sobre os modelos didáticos para ensinar leitura na LE a partir do enfoque nos gêneros discursivos (ver Cristovão, 2002a, 2002b).
55
Uma rotina se instalou, mas não uma rotina corriqueira, vazia de sentido
para esta participante. Foi uma rotina de observação, participação e
colaboração ativa que durou até dia 06 de dezembro de 2007. Ativa porque,
consoante Erickson (2001, p. 10), como apontado anteriormente, “a aparente
similaridade observada entre salas de aula é enganadora”. Nenhum dia no
contexto escolar se desencadeou de maneira igual ao outro, ainda que a
matéria das lições dadas a cada turma pela professora fosse a mesma. Cada
turma demonstrava-se única, mesmo havendo semelhanças entre elas. Os
alunos também tinham sua maneira única de enfrentar o dia escolar. Eles se
engajaram no processo educativo com graus de interesse diferentes,
demonstrando uma gama de comportamentos e interações complexas que
surgiram na construção de cada instante dentro do espaço da escola, seja na
sala de aula, no pátio ou nos corredores.
Após aproximadamente um mês de participação no cotidiano da escola,
houve uma mudança nos meus objetivos de pesquisa. Se antes me interessava
enfocar as sutilezas da negociação do trabalho colaborativo, comecei a
entender que havia algo mais que estava influenciando o trabalho entre a
professora participante e esta pesquisadora. Ao iniciar minha participação na
escola, Joyce concordou em ler alguns artigos sobre o conceito de gênero
discursivo e a metodologia de ensino baseado nesse conceito, para discutir
comigo e trocar idéias sobre como desenvolver esse projeto com seus alunos.
No entanto, Joyce sempre se desculpava por não ter lido os artigos, dizendo
que não encontrava o tempo necessário para esse exercício. Joyce estava
fazendo um cursinho no seu tempo livre, estudando em preparação para os
concursos que iam ser realizados durante aquele semestre. Como apontado
anteriormente, ela esperava passar num concurso que, embora de outra área,
pudesse conciliar com seu trabalho como professora. Depois de vários
encontros em que ela admitiu não ter lido o material escolhido, ficou evidente
que a pesquisa colaborativa não ia se concretizar da maneira como eu
esperava.
Além do mais, uma conversa com Joyce, em que estávamos falando
sobre a formação continuada e seus efeitos na sala de aula, se comprovou
bastante reveladora, pois parecia explicar, ao menos parcialmente, a aparente
falta de compromisso por parte dela. Ao falar da importância da formação
56
continuada, ela me informou que a administração da escola deixa a
implementação de novos conhecimentos à “ética” do professor. Em outras
palavras, não existe uma política, além da contagem de pontos na avaliação
anual, em que a administração da escola busca conhecer a relação entre a
formação continuada do professor e a sala de aula. Parecia-me haver um
descompasso entre o professor e a administração, entre a sala de aula e a
formação continuada. Formulei uma hipótese de que a ligação entre o que
acontece no contexto escolar poderia influenciar as ações dos professores e
estar na raiz do sucesso dos empreendimentos do professor junto com seus
alunos. Nesse sentido, perguntei-me se essa influência se limitava às ações
dos atores da escola. Comecei a enfocar as crenças desses indivíduos para
poder compreender melhor as incongruências entre o que se espera que
aconteça na sala de aula e o que realmente acontece.
Assim, meus objetivos mudaram, influenciados pela atitude e (falta de)
ação da professora participante e o que eu via como omissão por parte da
administração escolar num processo importante para o desenvolvimento
contínuo do professor. Foi nesse momento que eu comecei a entender o papel
político do professor no espaço escolar e a obrigação de engajar-se
conscientemente nos processos políticos que influenciam a educação (Leffa,
2005). Conforme Agar (1996, p. 184), o pesquisador etnográfico trabalha sob
um constante processo de “aprendizagem e averiguação do que aprendeu”28.
Ele continua, salientando que o foco da investigação se estreita, às vezes
devido ao interesse a priori do pesquisador, ou porque o que o pesquisador
aprendeu durante o período inicial de investigação sugere a necessidade de
mudança. Interessava-me saber qual a influência do contexto nas crenças dos
indivíduos que o compõem, e vice-versa, sendo que a relação contexto-
indivíduo é dialógica, evidenciada pela interação (Moraes, 1997). Então, me
empenhei em buscar respostas às seguintes perguntas de pesquisa, já
apresentadas, no capítulo um:
1. Que crenças norteiam a prática de uma professora de LI na sala de
aula de uma escola pública?
28 No original: “learning and checking what you have learned”.
57
2. Qual a relação entre essas crenças e o contexto escolar (comunidade,
instituição, administradores, colegas e alunos)?
Continuamos a desenvolver o projeto de ensino baseado no gênero
discursivo de histórias em quadrinhos, ou tiras cômicas. Mas, para que a Joyce
entendesse alguns conceitos chaves sobre esse trabalho, sendo que ela não
realizara as leituras esperadas, meu papel mudou de interlocutora para
“tradutora” da literatura, papel que me deixava numa posição desconfortável,
pois minha intenção não era de impor outro objetivo de ensino à professora,
mas ser parceira dela num empreendimento de descoberta. O material didático
foi retirado de fontes na internet. Restou a mim, também, a função de buscar e
montar o material, pois a Joyce dizia que não utilizava a rede mundial
frequentemente, especialmente porque não tinha tempo, devido aos estudos já
mencionados. Foi outra situação que me deixou desconfortável, pois queria
que a Joyce participasse da escolha para guiar a seleção segundo as
necessidades dos seus alunos.
A pesquisa permaneceu flexível, no sentido de eu, como pesquisadora
etnográfica, não tentar controlar situações e acontecimentos para comprovar
minhas hipóteses. Portanto, havia outros fatores que influenciaram o
desenvolvimento da pesquisa. Por exemplo, as escolas municipais de Várzea
Grande tinham participado de uma greve no final do primeiro semestre, o que
atrasou o começo oficial do segundo. Aulas foram canceladas por causa do
mau tempo, e eventos culturais foram organizados com pouco tempo de aviso
durante o semestre. Também houve uma mudança na minha rotina como
pesquisadora no final de outubro, quando o trabalho com o gênero “histórias
em quadrinhos” começou. A Joyce escolheu pilotar este projeto numa turma
que se encontrava nas quartas e quintas-feiras. Desta maneira, eu comecei a
frequentar as aulas desses dias, deixando de participar das aulas de terça-
feira.
Durante os primeiros dois meses da pesquisa, procurei entender mais
sobre o bairro, seus moradores e a escola, com o intuito de entender as
necessidades dos alunos para melhor desenvolver o projeto sobre gêneros
com a Joyce. Os alunos do oitavo ano consentiram em responder um
questionário sobre as atividades que desempenhavam fora da escola, o
58
trabalho dos seus pais, e a importância do inglês na vida deles, entre outras
perguntas. Também recolhi alguns documentos oficiais, tais como o Projeto
Político Pedagógico (PPP), e o Projeto de Desenvolvimento Escolar (PDE),
pertencentes à escola, e o planejamento anual da professora Joyce. Estes
documentos ajudaram a preencher e realçar a imagem do bairro, dos
moradores e da escola, vistos pelos olhos desta pesquisadora. Com a ajuda
desses documentos, em conjunto com as minhas observações, relato a seguir
informações que julgo relevantes a esta pesquisa.
3.5 Do bairro e seus moradores
O bairro que abriga a escola pesquisada está localizado na periferia de
Várzea Grande, aproximadamente 9 quilômetros do centro da cidade. Tem
acesso a uma rodovia federal, e está perto do Trevo de Lagarto, que conecta
várias rodovias que cortam o estado e o país. O bairro tem duas entradas. Ao
entrar numa, o visitante se depara logo em seguida com um mercado pequeno,
onde os moradores devem fazer suas compras semanais. Ao adentrar o bairro
pela segunda entrada, o visitante se depara com empreendimentos menores.
As duas entradas estão asfaltadas, mas a maioria das ruas que as cortam
perpendicularmente ainda é de terra. Os ônibus que servem o bairro circulam
pelas ruas asfaltadas e passam na frente da escola, localizada numa das
únicas ruas perpendiculares que também é asfaltada. O bairro não parece
muito grande. É cercado em dois lados por terrenos que parecem ainda ter a
agricultura como finalidade. O bairro foi formado em 1996, “a partir de invasões
(grilagem)” (PPP, sem ano, p. 12). Porém, “os organizadores da invasão
impuseram a condição de que para se conseguir lotes no bairro, as
construções teriam que ser somente de alvenaria” (PPP, p. 11), o que explica a
falta de construções de materiais inferiores, como de madeira, no bairro.
A pesquisa populacional em que o PPP da escola se baseia foi feita em
2001 (PPP, p. 11). Segundo este documento, naquele ano, havia em torno de
3000 famílias morando no bairro. Dessas famílias, 159 foram pesquisadas para
fazer a “leitura de mundo” incluída no documento. O tamanho das famílias varia
bastante. Portanto, não é possível estabelecer o número de indivíduos
59
pesquisados. Doze29 por cento das famílias entrevistadas se compunha de até
três pessoas, em quase trinta por cento das famílias havia até quatro pessoas
convivendo na mesma casa, trinta e três por cento tinha até cinco co-habitantes
e quase vinte e seis por cento das famílias se compunha de entre seis e onze
pessoas. Por meio dessa “leitura de mundo”, os autores do PPP procuravam
conhecer profundamente os educandos, seu contexto, suas carências, suas necessidades, potencialidades, expectativas, bem como estabelecer o justo equilíbrio de forças e representatividade dos diversos sujeitos coletivos da escola na gestão e definição das políticas que [conduziriam] as questões administrativas, financeiras e pedagógicas (PPP, p. 10).
Dessa maneira, a leitura de mundo feito pelos autores do PPP inclui
informações sobre: a formação do bairro (já citado); a origem dos moradores;
as atividades econômicas desenvolvidas no bairro; a situação econômica das
famílias entrevistadas; a escolaridade das famílias; as opções de lazer no
bairro; e os problemas que afetam a população, entre outros aspectos do
cotidiano dos moradores desse bairro (PPP, p. 10-15).
O bairro é formado por moradores oriundos de Várzea Grande, além de
famílias de Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Minas
Gerais (PPP, p. 11). A atividade econômica do bairro se baseia em pequenos
comércios. No PPP, citam-se comércios como “bares, mercearias, oficinas
mecânicas, bicicletarias, farmácias, [e] açougues” (p. 11). O número de famílias
pesquisadas que possuem casa própria é alto, noventa e um por cento. Ainda
assim, muitos não possuem documentos legais que comprovam a posse,
sendo um contrato de compra e venda o comprovante mais comum (PPP, p.
11-12).
Dos chefes de família entrevistados para compor o PPP (p. 12-13)30, só
trinta e oito por cento tinham emprego fixo, dos quais trinta e três por cento
recebia três salários mínimos, e treze por cento recebia quatro salários
mínimos. Dos outros, três por cento eram aposentados, vinte e três por cento
trabalhavam informalmente, e trinta e seis por cento estavam desempregados.
Dos alunos entrevistados, quinze por cento admitiram colaborar
“sistematicamente” com a renda familiar.
29 As cifras citadas pelos autores do PPP somam mais de cem porcento. 30 As cifras citadas pelos autores do PPP somam menos de cem porcento.
60
Segundo o PPP (p. 13-14) da escola, o nível de escolaridade dos pais
entrevistados é baixo. Quarenta e sete por cento dos pais terminaram o ensino
fundamental de I a IV e trinta e quatro por cento conseguiram terminar o ensino
fundamental de V a VIII. Só treze por cento concluíram o ensino médio. Seis
por cento dessa população está classificada como analfabeta. Não há menção
no PPP de moradores adultos com escolaridade superior ao ensino médio. As
conseqüências dessa baixa escolaridade, segundo os autores do PPP, são a
falta de mão-de-obra qualificada que reduz “a expectativa de obtenção de
melhores empregos e melhores salários”, a falta de “grandes manifestações
culturais”, e a “falta de atitude crítica e reflexiva por parte da maioria dos
moradores” (PPP, p. 13-14).
A questão da escolaridade dos alunos também é levantada no PPP (p.
14), com a constatação de que a evasão e reprovação dos alunos são altas. No
ano em que os autores do PPP pesquisaram essas taxas, concluíram que
quase um quarto dos alunos entrevistados ou abandonaram a escola ou foram
reprovados, e que trinta e sete por cento já reprovaram anteriormente. Explica-
se o alto índice de evasão e reprovação dos alunos segundo dois fatores: a
migração da população e a dificuldade em trabalhar com a heterogeneidade
dos alunos e seus problemas, relacionados à educação formal. Citam-se
também o despreparo dos professores e a falta de uma “metodologia definida
por todos e para todos” (PPP, p. 14).
Quanto ao lazer, o PPP (p. 12) cita que o bairro “não dispõe de área de
lazer e de esporte... ficando a cargo das duas escolas do bairro disponibilizar
suas quadras”. Outras atividades que promoviam o lazer entre os moradores
incluíam a realização de gincanas, corridas, torneios e bingos. As
manifestações culturais, acima citadas como faltando entre os moradores do
bairro, surgiam, segundo o PPP (p. 13), “em atividades promovidas pelas
escolas do bairro e pelas igrejas”.
As condições econômicas, a evasão, reprovação e baixa escolaridade, a
falta de opções de lazer, a migração de moradores, entre outros fatores, podem
ser inferidos como fatores que levaram cinqüenta e sete por cento dos
moradores considerarem o bairro violento (PPP, p. 13). Essas condições de
vida penetram o muro e as paredes da escola e influenciam na interação dentro
do espaço escolar.
61
3.6 Da escola
A Escola Municipal de Educação Básica Várzea Grandense (EMVG)
abriu suas portas em 1998. Nessa época, segundo o PPP (p. 9) da escola, a
diretora foi designada. Só houve uma eleição para o cargo de diretor da escola
em 2001 e um único candidato – a Dona Cida. E, em 2007, ano em que esta
pesquisa foi realizada, a Dona Cida ainda era a diretora.
O Projeto de Desenvolvimento Escolar (PDE)31 de 2005/2006 informa
que a EMVG serve uma população de 532 alunos, moradores do bairro e
bairros vizinhos. A escola opera em dois períodos como escola municipal, e
num terceiro turno como escola estadual. A escola estadual funciona no
período noturno, com outro nome, e tem seu próprio diretor e coordenadores, o
que não inibe alguns professores que trabalham na escola municipal nos
períodos matutino e vespertino de também darem aula nesse terceiro período.
Nesta pesquisa, as aulas observadas ocorreram no período matutino, enquanto
o espaço escolar pertencia ao município de Várzea Grande.
A grande maioria dos professores possui licenciatura plena (PDE, 2005-
2006), e é considerada efetiva por ter passado em concurso para ser aprovada
para o cargo. No semestre em que esta pesquisa foi feita, havia apenas dois
professores substitutos. Uma foi contratada para dar aula de inglês e
português, e o outro para dar aula de matemática. Vários professores
trabalhavam em mais de uma escola. Muitos discutiam os mais variados
concursos lançados pelo governo que prometiam uma vida profissional
considerada por eles mais tranqüila do que a vida do professor. De destaque
nessas conversas foi o concurso da Policia Rodoviária Federal, que oferecia
um salário muito além do salário do professor.
A escola, como já indicado, se localiza numa das poucas ruas asfaltadas
do bairro. Está cercada por um muro e tem uma pequena horta onde os alunos
plantaram uma muda de pequi e algumas flores. Tem um pátio no fundo onde
há uma cantina pequena, uma quadra esportiva (sem cobertura) com cestas
para jogar basquetebol, e uma área coberta onde se realizam a oferta da
merenda escolar e atividades extracurriculares, como gincanas. Há banheiros
para meninos e meninas. No entanto, o banheiro das meninas não possui
31 Sem paginação.
62
portas para garantir a privacidade das alunas ao utilizarem as instalações
sanitárias32. O abastecimento de água da escola foi feito com caminhões pipa
até os meados do segundo semestre, quando o prefeito de Várzea Grande
inaugurou um novo poço artesiano. Antes dessa data, havia dias em que
faltava água, o que inibia a utilização adequada das instalações sanitárias.
A escola possui 20 salas de aula, uma sala para os professores, e uma
área contígua a essa sala para o uso dos coordenadores. A sala dos
coordenadores abre-se para uma biblioteca pequena que funciona também
como dispensa para materiais escolares e equipamentos, como um televisor.
Há um escritório para o diretor e outra sala ocupada pela secretaria. A escola
possui dois corredores compridos onde se encontram as salas de aula.
A maioria das salas tem espaço amplo. Ainda assim, em algumas salas,
havia dificuldade em acomodar todos os alunos adequadamente. As salas mais
velhas tinham um piso liso de cor escura, e foram pintadas de cinza até
aproximadamente dois metros de altura, e branca até o teto. As salas mais
novas tinham o mesmo piso, mas as paredes foram cobertas com pequenos
azulejos de cor branca, e pintadas de branca até o forro. Todas as salas
dispunham de janelas grandes de um lado, uma porta do outro, um quadro
negro na frente33, carteiras e cadeiras para os alunos, uma mesa pequena para
a professora, e, no mínimo, um ventilador para movimentar o ar. Uma das
salas, em particular, se destacou por ter um mural pintado em cores vivas,
mostrando casas, flores, borboletas e outras figuras que lembravam uma
ilustração de um livro infantil na parede de fundo no lugar dos azulejos.
3.7 Dos atores da escola
Os atores da escola que se prontificaram a colaborar com esta pesquisa
incluem: a professora participante; os alunos das turmas observadas, em
especial a turma 8D, que ajudou a pilotar o ensino de LE baseado num gênero
discursivo específico; a diretora da escola; os dois coordenadores e alguns
32 Não investiguei, por ser mulher, o banheiro dos meninos. 33
Curiosamente, essa descrição aparece muito com o que Erickson diz em relação às salas de aulas, salientando que “há aproximadamente 140 anos, as salas de aula típicas são construções retangulares, com janelas de um lado, um quadro-negro na frente e uma porta, perto da frente, na parede oposta à das janelas” (Erickson, 2001, p. 10).
63
professores que consentiram em expressar suas opiniões e pontos de vista
sobre a escola e seus atores.
Porém, eu não consegui me aproximar suficientemente de todos os
atores da escola para que pudessem ser incluídos neste relato. Senti que
alguns desconfiaram da minha presença e dos meus objetivos por não fazer
parte da escola. Até mesmo Joyce se referiu a mim várias vezes como uma
pessoa “de fora”. Os alunos desconfiaram dos meus objetivos em fazer
anotações durante as aulas, perguntando freqüentemente porque eu estava
escrevendo num caderno e se eu estava anotando o comportamento deles. A
Joyce, às vezes, reforçava essa imagem, quando, ao sair da sala, o que
acontecia com frequência, pedia em alta voz para eu “vigiar” a turma. Assim,
alguns atores não consentiram em conversar ou fazer uma entrevista comigo.
Outros pediram para que essas conversas e entrevistas não fossem gravadas,
o que me levou a fazer anotações e escrever vinhetas para análise posterior.
Os atores da escola citados nesta pesquisa são:
Docentes Alunos
Joyce Professora de inlgês Álvaro Aluno do 7o ano
Magda Professora de história Roberta Aluna da turma 8D
Maíra Professora de português Vitória Aluna da turma 8D
Gleice Professora de inglês e português
Fabiano Aluno da turma 8D
Cida Coordenadora Cristina Aluna da turma 8D
Wilson Coordenador Raíssa Aluna da turma 8D
Diane Diretora Rodrigo Aluno da turma 8D
Aluno não identificado
Aluno da turma 8D
3.8 Do procedimento analítico
Moraes (1997, p. 26-27) frisa que nós estamos na “era de relações”,
indicando que “tudo que existe coexiste e que nada existe fora de suas
conexões e relações”. Consoante com esta autora e autores da área de
etnografia e de LA, a interpretação dos dados coletados durante a pesquisa
aqui apresentada se baseia em tecer as conexões entre as atitudes, opiniões e
64
ações de indivíduos no contexto escolar que possam mostrar compassos e
descompassos entre as crenças dos atores pesquisados. Assim, para Erickson
(2001, p. 14), “a análise dos dados é como ‘amarrar sapatos’34”. De acordo com
esse autor, recentemente, pesquisadores na área de LA têm buscado mostrar
as conexões que existem entre o contexto imediato e as crenças das pessoas
(ver Barcelos, 2000; Murphy, 2000; Dufva, 2003; Kramsch, 2003; Kudiess,
2005; Santos, 2005; e Dias, 2006). Considera-se, para fins desta pesquisa, que
a interação entre indivíduos dentro do contexto escolar funciona para construir
uma base para a formulação de crenças e ações, lembrando que Barcelos
(2006, p. 25-32) indica que esta relação, não necessariamente seja, linear.
Desta maneira, no primeiro instante, a análise de dados se baseia em
uma leitura que busca demonstrar (in)congruências nas atitudes, opiniões e
ações dos atores da escola pesquisada que possam impactar o ensino-
aprendizagem de LI. Na segunda instância, toma-se como modelo de análise o
método de processamento metafórico35 empregado por Kramsch (2003, p.
121), que considera que o pesquisador possa fazer a leitura de dados,
enfocando o modo como o indivíduo pesquisado constrói seu mundo por meio
da linguagem. Apesar de Kramsch ter trabalhado unicamente com narrativas
escritas pelos participantes da pesquisa, acredito que os dados compilados por
meio da observação e triangulados pelos dados relatados no diário da
professora Joyce, e em entrevistas e conversas com outros atores da escola
possam ser analisadas com o fim de construir metáforas do contexto escolar
pertinentes ao ensino-aprendizagem de LI na atualidade.
3.9 Das limitações da pesquisa
Nesta pesquisa certamente há limitações. Duas, a meu ver, são de
destaque: o fato, por parte desta pesquisadora, de não envolver atores que não
se encontravam no espaço da escola, e a gravação de algumas entrevistas e
aulas de inglês que se comprovaram difíceis de serem incluídas na análise e
interpretação dos dados. Esta pesquisa poderia ter incluído outros atores
sociais, tais como pais e/ou responsáveis dos alunos e outros membros da
34 Grifos do autor. 35 No original: “metaphoric processing”.
65
comunidade que circunda a escola. Pesquisas feitas por Santos (2005) e Dias
(2006) são exemplos de uma inclusão maior desses atores que influenciam o
ensino-aprendizagem de inglês na escola pública. Ainda assim, há pesquisas
que se limitam mais aos indivíduos que se encontram dentro da escola, como a
de Barcelos (2000). Esta pesquisa está mais de acordo com essa segunda
tendência, pois no caso da escola pesquisada, os pais freqüentavam a escola
só nos momentos em que eram chamados a comparecer por causa de algum
problema acadêmico ou comportamental de seu filho. Julguei que essas
situações poderiam comprovar-se bastante estressantes e/ou constrangedoras
para todos envolvidos, e que seria melhor não abordar os pais nessas
condições.
Em relação à coleta de dados, algumas entrevistas e conversas
gravadas em áudio se comprovaram de baixa qualidade, em conseqüência do
barulho alto que permeava o espaço escolar e de os indivíduos entrevistados
falarem baixo. Esta situação mostrava uma incongruência do espaço escolar:
quando o indivíduo agia de maneira “normal”, seguindo sua rotina cotidiana,
falava em voz bastante alta. No tocante aos alunos, muitas vezes falaram aos
berros! Mas, ao tentar gravar uma conversa ou entrevista, parece que a
desconfiança, ainda que inconscientemente, regulava o tom da voz do
participante. De maneira semelhante, gravações feitas de aulas de inglês se
comprovaram inúteis, pois o barulho da conversa dos alunos e o arrastar das
carteiras atrapalhavam até a professora Joyce, que, frequentemente, forçou
sua voz para ser ouvida.
Neste capítulo, foram apresentados conceitos e informações relevantes
à pesquisa empreendida por esta pesquisadora e relatada nesta dissertação.
Baseada na pesquisa qualitativa e interpretativa, de cunho etnográfico, a
pesquisa se desenvolveu para enfocar as crenças dos atores da escola que
possam se mostrar influentes no ensino-aprendizagem de LI e a maneira em
que essas crenças são ligadas ao contexto escolar. Para tal, apresentou-se a
relevância da pesquisa etnográfica ao estudo das crenças, e discutiu-se a
significância de dados que ajudam a explicitar o contexto escolar e a interação
entre seus atores.
4 ANÁLISE DE DADOS: CRENÇAS EM CONTEXTO
Neste capítulo, apresento a análise de dados a partir das conexões
entre as crenças de atores da escola e o contexto escolar, inferidas pelas
atitudes, opiniões e ações observadas durante a pesquisa. O capítulo se divide
em três seções. Na primeira seção, apresento a maneira como a escola se
representa em relação ao bairro e seus moradores, o que serve de pano de
fundo para o que acontece dentro de seu espaço. Mostro a relação entre
crenças e o contexto escolar, enfocando e discutindo fatores específicos que
influenciam a congruência dessas crenças e resultados sensíveis ao espaço
escolar. Na segunda seção, por meio do processamento metafórico,
metodologia analítica utilizada por Kramsch (2003), discuto a maneira como os
atores da escola ajudam a construir o contexto escolar e também são
influenciados por ele por meio das interações que aí acontecem. Na última
seção, apresento a relevância das crenças apresentadas nesta dissertação, em
relação ao estado atual do ensino-aprendizagem de inglês no Brasil.
4.1 Crenças e contexto escolar
A seguir, apresento três crenças que impactaram a escola pesquisada. A
Crença 1 – “os alunos não têm base”36 – mostra que ainda existe uma
concepção negativa do aluno da escola pública atrelada a sua posição
socioeconômica. Tal crença desdobra-se de várias maneiras no contexto
escolar, mas principalmente pela fala de professores e pela construção de
documentos oficiais da escola. A Crença 2 – “tenho que ajudá-los a ser
cidadãos e boas pessoas” –, relativa ao comportamento dos alunos e à
construção de um espaço democrático que visa ao exercício da cidadania,
revela a dificuldade em equilibrar uma visão pessimista dos alunos com seus
direitos como cidadãos. Finalmente, a Crença 3 – “falta... suporte” – evidencia
um dos obstáculos que o professor enfrenta no contexto onde exerce seu
36 O uso de aspas neste e nos próximos parágrafos sinaliza o uso de termos proferidos pelos participantes da pesquisa e presentes nos documentos analisados.
67
trabalho, a falta de apoio dos vários níveis de governo, além da administração
escolar e de seus colegas.
Cada crença apresentada aqui é parte da visão da professora
participante e se entrelaça com as palavras, ações e atitudes de
administradores, colegas e alunos, além de documentos oficiais que ajudam a
construir o contexto escolar.
4.1.1 Crença 1: “os alunos não têm uma boa base”
(Joyce, sem data, diário de participação)
No capítulo dois, discutiu-se a concepção do aluno brasileiro estar “sem
base”, conforme pesquisas empreendidas por Moll (2000), Santos (2005), Dias
(2006) e Dias e Assis-Peterson (2006). No capítulo três, apresentou-se a
concepção dos docentes da escola pesquisada relativa à escolaridade e
manifestação cultural dos moradores do bairro onde se localiza a escola,
consideradas baixas conforme o PPP, documento que serve como guia para o
desenvolvimento do trabalho educacional na instituição. O PDE (2005-2006) da
escola, que serve para o desenvolvimento de ações para combater problemas
percebidos pela escola, traz uma “síntese da análise situacional”, dividida em
quatro sub-itens: o perfil e funcionamento da escola, fatores determinantes da
eficácia escolar, a avaliação estratégica da escola e fatores críticos de sucesso
da escola. Sob o sub-item de perfil e funcionamento da escola, o documento
identifica dados de desempenho acadêmico da escola, as disciplinas com baixo
desempenho, alguns outros problemas detectados na escola e os problemas
que “devem ser atacados prioritariamente” (ver p. 25 desta dissertação). Das
quarenta e duas turmas listadas no documento, doze turmas demonstraram
desempenho menor do que esperado referente ao ensino-aprendizagem de
inglês, o que representa vinte e oito por cento das turmas que a escola abriga.
Dos outros problemas, a distorção idade-série, que provém do “alto índice de
reprovação” e “aprendizagem dos alunos”, é um dos mais preocupantes, pois
pode estar na raiz do “abandono temporário das aulas pelos alunos” que
preocupa os autores do documento.
Os atores da escola que ajudaram a compilar o PDE (2005-2006)
percebem que a escola não está desempenhando um papel eficaz na vida dos
68
seus alunos. Na secção “avaliação estratégica da escola”, os autores do
documento fizeram uma avaliação estratégica da escola, baseada na Matriz
SWOT – Matriz de Strengths (forças), Weaknesses (fraquezas), Opportunities
(oportunidades) e Threats (ameaças). A Matriz SWOT auxilia as instituições a
analisar suas forças e fraquezas, representadas por atributos característicos da
instituição, e possíveis oportunidades e ameaças, que emergem do contexto
maior no qual a instuição está inserida.
A avaliação estratégica da escola identifica quatro combinações de
características internas e externas da instituição que “apresentam interação
alta”:
1) força X oportunidade • escola bem vista pela comunidade X acesso às novas tecnologias • docentes qualificados X recursos de PME/FNDE/Prefeitura • docentes qualificados X acesso às novas tecnologias
2) fraqueza X ameaça
• elevado índice de reprovação X alunos carentes e pouco preparo • elevado índice de reprovação X violência no bairro
3) força X ameaça
• docentes qualificados X alunos carentes e pouco preparo • escola bem vista pela comunidade X violência no bairro
4) fraqueza X oportunidade
• espaço inadequado para atender a demanda X acesso às novas tecnologias
Seguem as caracteristícas visualizadas na Matriz SWOT:
Características que ajudam a instituição alcançar seus objectivos
Características que possam dificultar o alcance de objectivos institucionais
Características internas
Forças (strengths) • escola bem vista pela
comunidade • docentes qualificados
Fraquezas (weaknesses) elevado índice de reprovação espaço inadequado para
atender a demanda
Características externas
Oportunidades (opportunities) • recursos de
PME/FNDE/Prefeitura • acesso às novas tecnologias
Ameaças (threats) • alunos carentes e pouco
preparo • violência no bairro
69
As “fraquezas X ameaças” são percebidos pelos autores do PDE (2005-
2006) como “combinações desfavoráveis para a implementação de futuros
planos de ação”. Destacam o “elevado índice de reprovação” duas vezes, uma
vez justaposto ao estado educacional dos alunos (“carentes e pouco preparo”),
e outra justaposto à violência no bairro. As forças são percebidas como
características que podem “neutralizar o efeito das ameaças”. Desta maneira,
ao justapor os “docentes qualificados” aos “alunos carentes e pouco preparo”,
os autores do PDE (2005-2006) reforçam a insuficiência da escolaridade dos
alunos. Insuficiência educacional que se repete em outras instâncias no
contexto escolar, primariamente pelo trabalho docente.
O trabalho que o professor desempenha com o aluno centra-se em torno
dos alunos, e é influenciado pela percepção de suas necessidades e carências
(Barcelos, 2000, p. 298-300). A interpretação dessas necessidades e
carências, ainda que individual, nesse caso, é influenciado pelo contexto
descrito anteriormente. A professora Joyce, ao descrever as dificuldades que
ela enfrenta no processo de ensino-aprendizagem com seus alunos no seu
diário de participação, reafirma a crença de que ensinar LI fica mais difícil
porque os alunos não possuem habilidades linguísticas suficientemente
desenvolvidas para lidar com uma LE:
Joyce (sem data, diário de participação)
É muito difícil o trabalho da Língua Inglesa em escolas públicas, pois os alunos não têm uma boa base nem da Língua Portuguesa! Em algumas matérias, eu uso como base a Língua Portuguesa, ou mesmo, nominações como: sujeito, verbo, preposição… E isso eles não têm bem solidificado. Com esse tipo de dificuldade, é natural que eles demorem bem mais para assimilar o inglês...
Pelo fato de Joyce perceber que os alunos não “têm bem solidificado” a
metalinguagem, a maioria das aulas dela consiste de algum tipo de explanação
gramatical, referente ao conteúdo a ser ensinado. Isso indica que ela se situa,
como professora, dentro do paradigma de transmissão de conhecimento, em
que o conhecimento se equivale ao domínio da gramática tradicional, e,
portanto, que suas aulas devem tomar a forma da exposição de regras
gramaticais. Nesse excerto, encontramos duas outras suposições: primeiro,
70
que os alunos têm alguma dificuldade de aprendizagem patológica; segundo, a
capacidade de aprender LI é diminuída em virtude de os alunos não
demonstrarem habilidades completamente desenvolvidas na sua língua
materna. Joyce atribui a falta de conhecimento metalinguístico a uma
dificuldade de aprendizagem, como se a capacidade dos alunos aprenderem LI
fosse menor por ainda não poderem se expressar sobre a língua com precisão.
Podemos citar uma aula dada aos alunos do sétimo ano (antiga sexta
série), observada por mim e descrita no meu caderno de observações, em que
Joyce explica o “simple present” aos seus alunos. Nesse excerto, o paradigma
de transmissão de conhecimento e a concepção de que o conhecimento
linguístico se traduz em domínio da gramática de LI estão indiscutivelmente
presentes na maneira como a professora apresenta a lição. Além de explicar o
tempo verbal, Joyce explica aos alunos uma estratégia para melhor lembrar
como escrever frases utilizando-o, limitando antecipadamente a constituição de
uma fase intermediária de aprendizagem LI, em que os alunos possam
descobrir maneiras de expressar-se na língua-alvo.
Vinheta de observação de aula (14/08/07)
A professora escreveu “Simple Present” no quadro, logo seguido pela sua definição: “O simple present é um tempo verbal que indica que uma ação acontece no presente”, destacando as palavras sublinhadas com giz amarelo. Após dar alguns exemplos de frases curtas em português e inglês, coloca a “fórmula” que os alunos podem seguir para também criarem frases curtas em inglês. A “fórmula” é a seguinte: Fórmula → Subj. + verbo + … Simple Present A professora continuou a escrever no quadro, colocando duas listas de verbos, uma em inglês, a outra a tradução dos verbos em português. Ao terminar, ela disse “Vamos lá” e começou a explicar o conteúdo, pedindo para os alunos lerem em alta voz a definição do tempo verbal. A professora pediu alguns exemplos orais dos alunos. Um aluno disse, “Eu estou estudando.” A professora confirmou que o verbo estava no presente, mas não no presente simples, explicando que o tempo “presente simples” indica algo de rotina, habitual. Outros alunos deram exemplos, dessa vez na forma correta, ainda que em português. Então, a professora explicou porque fornece a “fórmula” aos alunos. Disse que é “a ordem” das palavras e que se os alunos souberem a fórmula, eles não vão “errar nunca” ao escrever uma frase em inglês.
71
A escolha de Joyce, ao nomear a estrutura sintática de uma frase como
“fórmula” nesse contexto, confirma a percepção de que os alunos não
compreendem o funcionamento da língua e que ela como professora precisa
auxiliá-los nessa compreensão. Ao mesmo tempo, a professora reafirma para
si mesma, ao ter de corrigir um aluno, que há alunos que não têm
conhecimento total da metalinguagem que ela utiliza em sala de aula. No
entanto, a professora, ao empregar a “fórmula” e ao enunciar as palavras “errar
nunca”, também limita o horizonte educacional do aluno, ensinando que não há
lugar para a criatividade lingüística na sala de aula. Ao aluno é negado o
espaço para errar e aprender com seus erros, o espaço de buscar meios de se
comunicar, ainda que não fluentemente na língua-alvo. Isso faz com que a
capacidade de o aluno construir sua experiência educacional seja menor, o que
implica a repetição do status quo expresso pelo PDE da escola: “docentes
qualificados” versus “alunos carentes e pouco preparo”.
Joyce não percebe que alguns alunos têm conhecimento de LI além do
que muitas vezes se ensina em sala de aula. Em certo momento, um aluno em
particular, Álvaro, se destacou pela maneira como relacionou o material sendo
ensinado com outras instâncias do uso de inglês. Joyce estava ensinando os
particípios passados de verbos irregulares, e Álvaro percebeu que não existe
regra definitiva para formá-los. Ainda assim, ele perguntou, para verificar, se
não havia regra, então seria posível formar esses particípios de qualquer
maneira? A essa pergunta, Joyce respondeu que não, que seria necessário
aprender os particípios da maneira em que apareceram na lista que ela estava
providenciando no quadro. A lista incluía vinte verbos no presente do indicativo,
os particípios passados correspondentes e a tradução do infinitivo de cada
verbo. Ao olhar a lista, Álvaro tomou iniciativa de novo e perguntou se um dos
verbos, feel (sentir) não significava “gasolina” em inglês, confundindo o verbo
com fuel (gasolina). Ainda que esse aluno tenha errado no uso da palavra, ou
seja, tomou um verbo por um sustantivo, ele criou uma associação entre duas
palavras em inglês e sua língua materna ao supor que feel e fuel fossem
palavras relacionadas, demonstrando conhecimento. Durante essa aula, ele
continuou fazendo outras junções entre a lição com o que já sabia da língua
inglesa. Por exemplo, durante a repetição dos verbos como prática oral, ao
pronunciar a forma verbal ate (“comeu”), que tem a mesma pronúncia da
72
palavra eight (“oito”), Álvaro logo começou a contar em voz alta: nine, ten,
eleven, twelve (“nove, dez, onze, doze”). Ao ouvir made (“feito”), respondeu in
China (“em China”). E quando a professora disse take a bus, Álvaro exclamou
Buzz Lightyear!37 A pergunta sobre feel-fuel-gasolina foi a única contribuição do
Álvaro reconhecida pela professora Joyce naquele dia, que ao ignorar as
outras contribuições de Álvaro, deixou de construir uma relação mais estreita
com os alunos e seu conhecimento prévio (ou até além) da matéria.
Outros professores reafirmaram a visão do aluno carente e sem preparo.
Numa conversa com a professora Joyce e outra professora, Magda, que ensina
história, compartilhei uma observação que tinha feito enquanto trabalhava com
a turma 8D, no projeto que envolvia o gênero “histórias em quadrinhos”.
Comentei que os alunos não pareciam estar acostumados a dar sua opinião
em sala de aula. Isso porque, até eu trabalhar junto com os alunos, a aula de
inglês consistia em aulas expositivas, em que a Joyce, como apontado acima,
explicava um ponto gramatical, normalmente seguido de exercícios para
praticar as regras gramaticais subsequentes. Eu queria discutir os temas que
apareciam nas histórias em quadrinhos, seguindo assim os PCN (Brasil, 1998),
que recomendam discutir “temas transversais”, ou temas que afetam a vida
cotidiana dos alunos. Achei que os alunos reconheceriam alguns temas
expostos nas histórias em quadrinhos por refletirem temas frequentemente
abordados em outras áreas da vida social, mas muitos dos alunos sinalizavam
que não entendiam como responder às questões voltadas ao reconhecimento
de temas. Assim, Joyce me ajudou reforçar que um dos objetivos do projeto de
ensino-aprendizagem era debater os assuntos apresentados nas histórias em
quadrinhos, que incluíam o meio ambiente, o relacionamento entre amigos, a
mentira e a violência, entre outros. A Magda, então, me falou da dificuldade
que tinha na aula de história, expondo a sua visão dos alunos. A Joyce
concordou com a opinião que a Magda deu sobre os alunos, a de que os
alunos “não são críticos”, “não sabem”, “são alheios a tudo”, “são vazios de
conhecimento”, “são desatentos” e demonstram “uma preguiça de pensar”.
37 Buzz Lightyear é um dos personagens principais do filme Toy Story (do mesmo título em português).
73
Conversa (14/11/07)
Marki: Sabe o que eu vejo tentando fazer esse projeto, os alunos não estão acostumados a formular opiniões. Magda: Não (incompreensível - risos de alguém no fundo) é uma das regras didáticas que eu mais imponho (incompreensível)... não são críticos. Tá? Coisas assim do cotidiano. Por exemplo, eu fui trabalhar a Grécia antiga, falando da democracia em Atenas. Então, eh, já em Atenas, se criticava a questão da demora (incompreensível)... dos processos, né? Então daí eu instigando eles, perguntando “e aquilo não é tão parecido com aqui?” (incompreensível) Eles não sabem, eles são alheios a tudo... (incompreensível)... são aqueles que pensam um pouquinho mais longe, que enxergam, é eles que sabem dar opinião, mas é difícil, é difícil, muito complicado mesmo. E olha, é trabalhado (incompreensível). Eu trabalhando a Grécia antiga, a Roma, eu faço ponte hoje, Brasil (incompreensível), tentando fazer uma ligação, com o Brasil, hoje, com as civilizações mais antigas (incompreensível). Mas olha, é complicado. Complicado porque parece que são vazios de conhecimento. Eu fico muito triste com isso. Às vezes você fala, fala, insiste, insiste... (incompreensível). Uma das maiores dificuldades que eu encontro é uma falta de atenção, falta de criticidade. Sei lá, é uma preguiça de pensar. Joyce: É... preguiça de pensar
Conforme as palavras da Magda, em que constata que tenta “fazer uma
ligação” entre o Brasil de hoje e as civilizações estudadas na sua aula, pedindo
as opiniões de seus alunos, parece que a professora tenta empregar métodos
que podem conduzir os alunos a construírem conhecimento38. No entanto, na
conversa acima transcrita, Magda representa a maioria dos alunos de maneira
negativa em vários momentos. Pelas frases “não são críticos”, “são vazios de
conhecimento” e “falta de criticidade”, a professora propaga a visão de aluno
“sem base” expressada também por Joyce e pelos PPP e PDE da escola.
Apesar de tentar fazer a ligação entre o Brasil de hoje e as civilizações antigas,
ela não conseguia despertar o interesse da maioria dos alunos em participar da
aula por meio do compartilhamento de suas idéias39. A professora Magda
baseou sua visão de aluno “vazio de conhecimento” na falta de o aluno
participar nas discussões às quais ela, como professora, dava valor.
38 Não posso afirmar sobre os métodos de ensino empregados por Magda por não ter observado as aulas dela. 39 Vale admitir que eu também tive dificuldade em encorajar os alunos a expressarem suas opiniões. Ainda assim, a minha intenção, ao falar com as outras professoras sobre isso, era compartilhar uma observação e não rotular os alunos.
74
É evidente que na aula descrita por Magda existe uma tensão entre sua
vontade de envolver seus alunos e a resistência deles em participarem. Por
exemplo, ao contrário da maioria de alunos “vazio de conhecimento”, Magda
concede que há alguns alunos que conseguem participar das suas aulas.
Segundo a professora, “são aqueles que pensam um pouquinho mais longe,
que enxergam, é eles que sabem dar opinião”. Essa justaposição de alunos
“alheios a tudo” e alunos que “enxergam” demonstra a dificuldade que a
professora tem em lidar com a construção de conhecimento em sala de aula. A
opinião de que os alunos “são alheios a tudo” e que têm “preguiça de pensar”
também pode ser indicador de processos, ainda que contra-produtivos, postos
em ação pelos alunos para “boicotar” um ensino que lhes parece alheio à vida
cotidiana deles, apesar do esforço da professora tentar envolvê-los. Isso pode
acontecer, conforme apontou Delamont (1983), pelos alunos perceberem no
nível inconsciente que pouco importa o que fazem dentro do espaço escolar se
não houver mudanças palpáveis na vida deles fora da escola.
A voz de outra professora da escola, Maíra, serve de contrapartida às
opiniões expressas acima. Eu tinha conversado com Maíra no final de
novembro de 2007. Ela não quis gravar uma entrevista comigo, mas
confidenciou para mim que tinha outra visão do que era dar aula na escola
pública. Segundo ela, ainda que tivesse começado a dar aula de português na
escola somente dois meses antes do término daquele semestre, estava
decidida a não dar uma “aula típica”. Para Maíra, isso queria dizer não seguir o
mesmo formato de aula, dia após dia, como se fosse uma receita que não
podia falhar.
Curiosamente, a professora Maíra participou do XI Encontro de
Professores de Inglês, realizado em conjunto com o III Encontro de Professores
de Língua e Literatura, em agosto de 2008, promovido pela Associação de
Professores de Língua Inglesa do Estado de Mato Grosso (APLIEMT). Nesse
encontro, ao final de uma mesa redonda cujo tema era de literatura, ela deu um
depoimento público que consegui gravar em vídeo. Nesse depoimento, ela
desabafou, repetindo muito do que havia me confiado há quase um ano, mas
com outros detalhes. Ela falou da visão do aluno que muitos dos professores
da escola pesquisada têm. Ainda que essa professora concordasse que os
75
alunos têm uma carência de conhecimento, ela disse que sofrem de outro tipo
de carência, a de alguém acreditar neles:
Depoimento (06/08/08)
Maíra: Então eu mostro que é capaz, que são capazes, eles são carentes sim, mas não é carente só de leitura, é carente de dar tapinha nas costas, “Cara, cê conseguiu! É isso aí! Menina, cê é linda, cê é inteligente também, sabia?” Não adianta ser só bonitinha. Então, eu acho que falta incentivo de dentro pra fora.
Para Maíra, o papel do professor vai além de ensinar. Consoante
Moraes (1996), na era de relações, a transcendência, ou a busca de superar
obstáculos e a inclusão do afetivo devem fazer parte do paradigma
educacional. Na concepção da professora Maíra, um dos obstáculos dos
alunos é a falta de alguém encorajá-los e festejar suas conquistas, o que forma
uma linha tênue entre o sucesso e insucesso e pode ser ligado à visão de
déficit cultural (Zeichner, 2000). Segundo Watson-Gegeo (2004), a
aprendizagem é social e funciona quando a comunidade investe nas novas
gerações. Este investimento, portanto, tem de acontecer em dois níveis para
que haja sucesso na aprendizagem: no nível de educação formal e no nível de
apoio emocional. Talvez por isso Maíra ache importante encorajar as meninas,
em particular, a buscar mais na vida do que as coisas materiais efêmeras,
como a beleza, e destaca a importância de salientar a inteligência delas.
No próximo excerto, Maíra se posiciona como a líder de torcida dos seus
alunos e reage à complacência deles:
Depoimento (06/08/08)
Maíra: Mas eu falo para os meus alunos, “Olha, eu tô aqui. Eu vou ficar até meio dia. Alguém quer ficar comigo hoje? Eu preciso de iniciativa. Vamos! Alguém fala”! Os alunos ficam olhando assim. “Olha, eu vou ligar para o pai e mãe de vocês para pôr vocês na cama às 8 horas da noite. (incompreensível) bocejando aqui dentro, não”. Aí começo a contar piadinha para ver se eles alegram.
Nesse trecho, Maíra se disponibiliza para ficar após as aulas, com a
intenção de oferecer a ajuda necessária para apoiar a aprendizagem de seus
alunos. Quando ela vê que os alunos não se comprometem para ficar na
escola um pouco mais tarde, ela não desiste. Incita seus alunos a tomar
76
“iniciativa” com as palavras “Vamos! Alguém fala!” e com a possibilidade de
ligar para os pais para pedir que seus alunos durmam cedo para evitar bocejos
em plena aula. Maíra também age contra o que ela percebe como tédio por
parte dos seus alunos, contando piadas para recuperar sua atenção e poder
continuar com a lição.
Em outro trecho, ela explica porque sente a necessidade de ir além do
papel do professor tradicional, ou seja, aquele que se preocupa exclusivamente
com a matéria a ser ensinada, sem preocupar-se com as pessoas a quem se
destina o conteúdo da lição e suas necessidades específicas. Do seu papel
como professora ela diz, “eu me sinto uma segunda mãe”. Mais adiante ela
repete a sua posição diante do desafio de envolver seus alunos no ato
educativo,
Depoimento (06/08/08)
então, eu me sinto mãe, no horário que não é meu; eu sou da escola. E é isso que eu acho que nós professores temos que fazer. Nós temos que dedicar (incompreensível) nossa alma.
Ao conceber-se como a mãe substituta de seus alunos, Maíra tenta aproximar-
se deles, o que figurativamente corta a distância entre professor e aluno. O
posicionamento dela diante do desafio de educar os alunos parece ser
congruente com a posição ideológica expressa no PPP da escola. Os autores
do documento salientam que
o conhecimento não se dá no tempo e da mesma forma para todos os educandos, a preocupação não será apenas com a quantidade de conteúdos ministrada e sim, com a permissão de incorporar novas referências aos seus conhecimentos, re-significando esses conteúdos. Haverá respeito aos comportamentos, experiências, trajetórias pessoais, contextos familiares, valores e níveis de conhecimento de cada um (PPP, p. 22).
Assim, a professora Maíra busca meios e formas de conectar-se com
seus alunos, e incluí-los no processo de ensino-aprendizagem, seja pela oferta
de apoio instrucional após as aulas, seja contando piadas para chamar a
atenção deles para que possa continuar com a lição. Para ela, a dedicação
para melhorar a qualidade de ensino é profunda, pois vem da sua própria
77
“alma”. De maneira semelhante, o depoimento que ela deu durante o encontro
da APLIEMT serve como uma chamada aos professores para se juntarem a ela
na luta para a melhoria na educação.
Sentir-se como mãe substituta e demonstrar respeito pelos seus alunos
serve como ponte entre a primeira crença e a segunda a ser apresentada a
seguir. Como demonstrado acima, o ideal da escola é de se construir como
espaço onde se demonstra respeito por uma população heterogênea,
composta de alunos que variam no seu nível de conhecimento e maneira de
interpretar o mundo, baseada nas suas trajetórias de vida. Isso implica uma
crença nos processos democráticos e na construção da cidadania.
Entretanto, os documentos oficiais que pertencem à escola (PPP e PDE)
vacilam entre uma leitura dos alunos, seus pais e o bairro que cria uma lacuna
entre a posição docente-discente, e a exigência de compreender as condições
sociais que circundam a escola e afetam a população que serve. Talvez por
isso, como será demonstrado a seguir, os professores têm certa dificuldade em
conciliar uma visão democrática que visa à construção da cidadania e do
conhecimento, como apregoado no trecho do PPP acima citado, e a maneira
de dar aula.
4.1.2 Crença 2: “tenho que ajudá-los a ser cidadãos e boas pessoas”
(Joyce, sem data, diário de participação)
Embora a professora Joyce visse seu papel como professora também
em termos de ser uma espécie de mãe substituta, conforme a posição da
professora Maíra, o motivo seria outro, na concepção de Joyce. Para ela, seu
papel como mãe substituta está ligado à questão de disciplina na sala de aula.
No seu diário de participação, a professora Joyce explica porque não se arrisca
a ir além das aulas expositivas. Ela cita a falta de material didático e o grande
número de alunos por turma, o que lhe obriga a “passar no quadro os pontos
gramaticais básicos da Língua Inglesa” (Joyce, sem data, diário de
participação). Na concepção de Joyce, a aula expositiva dá a sensação de
poder controlar melhor o comportamento dos seus alunos. Diz ela:
78
Joyce (sem data, diário de participação)
a conversação acaba ficando em segundo plano; até porque trabalhar numa sala com 35 a 40 alunos não é nada fácil!... Não gosto, sinceramente, de trabalhar dessa forma (mais gramática, menos conversação), mas é muito difícil controlar tantos alunos se fosse uma aula mais dinâmica. Aí entra também o problema: DISCIPLINA (grifos da autora). Eles (os alunos) não têm muita consciência do comportamento correto em sala de aula, comportamentos básicos como: educação, respeito, solidariedade, atenção… e isso faz com que eu acabe me prendendo bastante nesse ponto com eles (pois antes da Língua Inglesa, tenho que ajudá-los a ser cidadãos e boas pessoas).
Assim, para a Joyce, há uma ligação estreita entre o modo de ensinar, o
comportamento dos seus alunos e o que ela considera ser cidadão e uma boa
pessoa. No entanto, baseada em minhas observações de aula, pude constatar
que ensinar com uma ênfase na gramática não se traduz automaticamente em
um alto nível de disciplina em sala de aula. Enquanto a professora ensinava,
desencadeavam-se comportamentos muito além do desejado, na maioria das
aulas. Os alunos falavam entre si, muitas vezes tão alto que a Joyce tinha de
aumentar sua voz para ser ouvida; falavam com pessoas fora da sala de aula
(pela janela ou pela porta); escutavam música em aparelhos eletrônicos,
escondendo os fios dos fones de ouvido embaixo da roupa ou dos cabelos;
faziam barulho ao bater palmas ou lápis na carteira; batiam um no outro; faziam
gestos obscenos; jogavam papel; liam livros que não pertenciam ao conteúdo
da aula; amarravam o papel das balinhas que chupavam nas carteiras;
mudavam-se de lugar, arrastando carteiras e cadeiras; e pegavam materiais
emprestados, às vezes sem a permissão de seus colegas; entre outras ações
não previstas na visão do comportamento ideal e condizente à aprendizagem
em sala de aula.
Em outra ocasião, Joyce continua sua reflexão sobre seu dever diante
do comportamento dos seus alunos. Ela explica que falta o apoio/exemplo dos
pais nessa questão, pois eles ocupam seu tempo com o trabalho. O efeito,
segundo a Joyce, é que os pais não têm conhecimento da necessidade de
ensinar seus filhos como comportar-se numa situação formal, nesse caso, na
escola. Pode-se inferir que para Joyce, ela ocupa o papel de pai e mãe no
contexto escolar, um papel que ela acredita mais importante do que o papel de
professora de língua inglesa, como apontado acima. Ela escreve:
79
Joyce (sem data, diário de participação)
“a minha intenção é educá-los. Eu prezo muito pelos bons costumes, respeito, educação e bom senso, e tento transmitir isso p/ as crianças. É muito difícil, pois eles não têm esse apoio ou exemplo em casa (a maioria passa o dia com o vizinho ou brincando na rua). Os pais estão sempre fora trabalhando, e assim, eles aprendem tudo que não é bom e poucos pais percebem para corrigir!”
Nesse trecho do seu diário de participação, a Joyce, ao mesmo tempo
em que reforça sua expectativa de comportamentos condizentes à atuação
ideal em sala de aula, reforça a distância entre ela e seus alunos. Na seção
sobre a primeira crença, a distância entre aluno e professor se expressa pela
justaposição de “docentes qualificados e alunos carentes e pouco preparo”, ou
seja, na qualificação acadêmica do professor em relação aos estudos
inacabados e/ou insuficientes do aluno. No trecho acima citado, porém, a
distância entre professor e aluno ganha outra característica, ou seja, o
professor se veste de bons costumes, respeito, polidez e bom senso, enquanto
o aluno parece não ter herdado essas qualidades dos seus pais, pois segundo
Joyce, os pais não dão um exemplo apropriado em casa. Assim, a distância
metafórica entre o docente e aluno descrita pelo PDE da escola ganha uma
dupla face nas palavras de Joyce. Do aluno descrito nesse trecho não só falta
o conhecimento considerado básico pela escola, que forma a base da
experiência educacional, mas também os comportamentos necessários de
etiqueta social adequada para que aprenda em situação formal. Curiosamente,
após ter pedido a cooperação dos alunos para completarem um questionário
para melhor entender seus desejos, necessidades e expectativas relevantes ao
ensino-aprendizagem de inglês, respondido no dia 16 de agosto pelos alunos,
a professora continua sua avaliação do comportamento de seus alunos:
Joyce (sem data, diário de participação)
Deu para entender melhor também muitos comportamentos, pois ficamos sabendo sobre a família, como viviam, quem trabalhava... A criança é o “espelho” (grifos da autora) da estrutura familiar!
A questão do questionário à qual a professora Joyce se refere é esta:
“Sobre a sua família: quem mora junto com você, quem de sua família trabalha,
e qual a profissão deles?” Várias questões relacionadas à vida cotidiana dos
80
alunos foram incluídos no questionário para ter uma visão mais ampla dos
interesses e necessidades deles, especialmente porque, ao planejar o projeto
de ensino-aprendizagem baseado num gênero discursivo, achei pertinente
entender os recursos de que os alunos dispunham.
Para a professora Joyce, a ligação entre o que acontece em casa e o
comportamento de sala de aula é direta: aos pais, por serem de uma camada
social popular, faltam os recursos sociais que embasam os bons costumes.
Como conseqüência, seus filhos, uma vez alunos, não aprendem a se
comportar adequadamente na escola. A Joyce não leva em consideração que
os seus alunos, freqüentadores do ensino fundamental da quinta à oitava série
da escola, já passaram por vários anos de educação formal e informal, e,
portanto, já deviam ter sido influenciados por muitas pessoas ao longo desse
tempo. Também não leva em consideração que os pais dos seus alunos
possam também demonstrar bons costumes. Isso pode acontecer em
decorrência do contato que ela, como professora, tem com alguns dos pais,
que comparecem à escola quando são convocados pela direção ou pelo
conselho tutelar em conseqüência de comportamento inadequado, notas
baixas ou falta às aulas por parte do aluno, o que confere um ar de
negatividade à visita dos pais à escola. Das minhas observações, posso
constatar que o contato com os pais durante o dia escolar quase sempre
aconteceu de forma negativa, e os pais demonstravam alto nível de estresse
ao se encontrarem com os docentes. Apesar de eu não ter entrevistado esses
pais, por julgar que não seria apropriado abordá-los nessas circunstâncias, nas
reuniões que eu testemunhei, ainda que indiretamente, havia, às vezes, choro
e gritaria por parte dos pais, que demonstravam o desespero deles ao serem
chamados a comparecer à escola.
Julgar os alunos pela aparente omissão da parte dos pais em ensinar
“bons costumes” aos seus filhos não parece ser congruente com outro trecho
do PPP da escola, relativo à cidadania, que está descrita em termos de
convivência democrática:
a escola deverá ser espaço de vivência da democracia, um espaço para expor idéias... deve começar por ela mesma a se organizar como campo de relações democráticas que antecipam uma ordem social mais coletiva, mais participativa, mais igualitária, mais
81
comprometida com a construção de uma sociedade mais justa... deverá fomentar a autonomia para que os alunos adotem as crenças e adotem posições que lhes sejam mais coerentes, eliminando todas as formas de intolerância e de exclusão. Deverá ajudar a combater o racismo, a indiferença em relação aos menos favorecidos, a falta de solidariedade, [e] as atitudes machistas ou excludentes (PPP, p. 18).
A professora Joyce parece encontrar dificuldades em equilibrar seu
método de ensino e o que vê como sua verdadeira missão na escola com o
ideal de “eliminar todas as formas de intolerância e exclusão”, exposto pelo
PPP. Enquanto se coloca na posição de mãe substituta para poder ensinar aos
seus alunos o comportamento que ela julga como correto em sala de aula, ela
constrói uma lacuna entre ela como professora e a posição social dos seus
alunos. Isso reflete de certa maneira o conflito inerente aos documentos oficiais
pertinente à escola, pois não conseguem conciliar uma visão negativa dos
alunos e sua posição social com uma visão proativa que visa à construção de
conhecimentos e habilidades condizentes ao pleno exercício da cidadania por
eles.
Esse conflito também está evidente no seguinte excerto do diário de
participação de Joyce. Ela relata uma surpresa que teve ao entrar na sala de
aula, um dia após termos feito mudanças na maneira como arranjar as
carteiras dos alunos:
Joyce (sem data, diário de participação)
Nesta segunda aula com a sala em círculo, nem precisei pedir para se arrumarem. Quando entramos em sala, já estavam todos em ordem (em círculo), esperando o nosso comando para continuarmos o debate sobre as histórias em quadrinhos.
Fica evidente nesse trecho que os alunos têm disciplina. Arranjaram as
carteiras espontaneamente para poder continuar com o novo formato da aula, o
de um debate. No entanto, Joyce ainda atribui aos alunos a necessidade de
esperar o “comando” do professor antes de poder retomar a aula anterior, o
que reforça a imagem do professor como o único detentor de conhecimento e
líder incontestável (quase militar) da sala de aula. Quanto ao formato das
aulas, alguns alunos da turma 8D proferiram opiniões bastante reveladoras.
Para esses alunos, a mudança no formato da aula durante o período do projeto
82
baseado no gênero histórias em quadrinhos foi vista positivamente. A seguir,
alguns dos comentários coletados por meio de um questionário, em que a
primeira questão era, “O que você está achando do projeto?” :
Questionário (22/11/07)
Fabiano: Eu estou achando ótimo, porque é uma nova forma de aprender e debater um assunto.
Cristina: Bom porque a gente sai um pouco da rotina e isso faz a gente se divertir um pouco.
Aluno não identificado40: Super legal. Ajuda mais na participação.
Esses comentários revelam alguns dos desejos e necessidades dos
alunos relativos ao processo de ensino-aprendizagem: aulas diferenciadas,
prazer em estudar e a interação condizente à aprendizagem. Porém, alguns
alunos envisionam uma aula ainda melhor. Em resposta à questão, “Você acha
que o projeto pode ser melhorado de alguma maneira? Como?”, responderem
assim:
Questionário (22/11/07)
Raíssa: Eu acho que sim porque alguns alunos ainda não se acostumaram à idéia nova. Mas com uma conversa talvez se abrirão mais porque essa é a chance de expor suas opiniões. Cristina: Sim, porque pode termos mais atividades, brincadeiras com as palavras, descobrir se está certo ou se está errado, etc. Roberta: Eu acho que sim. Nós podemos aprender a fazer quadrinhos na aula de artes, quadrinhos legais.
Vitória: O projeto já é melhor eu acho que não precisa ficar mudando porque ele já esta melhor.
No primeiro exemplo acima, a aluna Raíssa se preocupa com os seus
colegas e o aproveitamento que estão tirando do projeto. Ela levanta a
necessidade de alguns alunos entenderem melhor os objetivos do projeto e nos
aconselha a conversar com os alunos que parecem não terem se envolvido
mais ativamente. Cristina, por sua vez, pede atividades lúdicas que possam
40
Alguns alunos optaram por não se identificarem.
83
ajudar os alunos a desenvolverem suas habilidades linguísticas, de maneira
divertida. Roberta vislumbra o ensino-aprendizagem do ponto de vista
interdisciplinar, em que os professores de LI e artes se juntam para aprofundar
o projeto. Finalmente, Vitória diz, de maneira simples e eficaz, que o projeto já
representa uma mudança positiva na aula. Isso reforça a idéia de que a aula
tradicional, enquanto não pode ser descartada completamente pelo professor,
talvez não seja suficiente para envolver os alunos no processo de ensino-
aprendizagem quando repetido dia após dia. Escutar as vozes desses alunos
revela que não são “alheios de tudo”. Embora fosse uma minoria que
respondeu tão sucintamente ao questionário, esses alunos podem ser vistos
como porta-vozes daqueles que ainda não conseguiram achar sua própria voz
na luta para melhorias nos métodos utilizados em sala de aula.
Essas vozes contrastam com as opiniões e ações dos professores nos
exemplos a seguir. Embora reflitam a mesma dificuldade da professora Joyce,
de evitar todas as formas de intolerância e exclusão, esses professores
parecem levar a relação entre o comportamento dos seus alunos e o método
de dar aula a uma dimensão mais radical do que a professora Joyce. Enquanto
Joyce via sua missão como professora em termos de ser um exemplo para
seus alunos, outra professora demonstrava sua infelicidade com o
comportamento de seus alunos de maneira mais extrema. A professora Gleice,
que ocupava o lugar de professora substituta e dava aula de português e
inglês, demonstrava uma atitude bastante negativa em relação aos alunos da
escola. Essa atitude, segundo ela, decorria do fato de ela achar que os alunos
não tinham nenhum interesse em estudar (que também reforça a posição da
professora de história, Magda, discutida acima), o que impactou sua maneira
de ensinar.
Durante um evento cultural promovido pela escola, Gleice testemunhou
o comportamento de alunos que ela julgou inadequado à situação, e ao ficar
irritada, me procurou para conversar. Eu anotei essa conversa na forma de
uma vinheta, pois as circunstâncias não me permitiram fazer anotações
naquele momento ou gravar a conversa. Ainda assim, duas frases que ela tinha
o costume de dizer ao se referir aos seus alunos se destacaram: os alunos
“não querem nada com nada” e “só merecem giz e quadro”. Durante o evento,
84
Gleice repetiu essas duas observações e adicionou que isso influenciava seu
modo de dar aulas:
Vinheta de observação e participação de um evento cultural (20/11/07)
Uma das professoras da escola, que ensinava português e acumulava também algumas das aulas de inglês, ficou irritada durante a caminhada pela paz, da qual os alunos e outros professores também participavam. Enquanto andávamos pelas ruas do bairro, alguns dos alunos do oitavo ano (antiga sétima série) aproveitaram a oportunidade de estourar os balões que os alunos menores estavam levando consigo. A professora se aproximou de mim e desabafou. Na concepção dela, os alunos não tinham interesse nas aulas (“não querem nada com nada”) e, portanto, não mereciam aulas diferenciadas, no sentido de variar seu modo de ensinar (“só merecem giz e quadro”).
Enquanto a professora Joyce interpreta o ensino baseado na
apresentação de gramática e vocabulário, sempre apresentado e trabalhado no
quadro negro, como uma rotina que ajuda no policiamento do comportamento
dos alunos, a professora Gleice leva essa rotina ao nível da mecanização,
castigando seus alunos com aulas chatas e repetitivas. Ela não interpreta o
mau comportamento dos seus alunos como um desafio a ser encarado e
superado, buscando meios de demonstrar bons costumes, conforme a atitude
da professora Joyce. Ao contrário, ela se posiciona contra seus alunos, e os
pune com seu método de ensino, “giz e quadro”. Isto é, ao conceber os alunos
como não querendo “nada com nada”, indicado pelo comportamento deles,
Gleice deixa sua interpretação do comportamento deles interferir na sua
maneira de dar aula. Na concepção dela, se os alunos não demonstram
interesse, porque gastar tanto tempo planejando uma aula mais dinâmica?
Resta perguntar: se os alunos não têm interesse nas aulas, não temos a
obrigação de buscar métodos para reverter esse quadro?
Havia outras instâncias em que a professora Gleice ostentava uma
atitude extremamente desagradável em relação aos seus alunos. Falava de
maneira agressiva e demonstrava comportamento defensivo. Como professora
substituta, se sentia prejudicada pela sua posição na escola, e achava que até
as merendeiras a discriminavam, oferecendo-lhe o que percebia como sendo
as sobras da merenda. Um dia, ela culpou os alunos, sem provas, pelo pneu
furado de seu carro. Outra hora recusou ajudar a turma que ela orientava a
85
preparar-se para a festa de Halloween. Assim, a sua turma foi a única que não
participou das festividades. Repetia com freqüência que queria mudar para um
assentamento para trabalhar com alunos que, na concepção dela, não teriam
sido influenciados pela programação da televisão e do rádio, e que não teriam
tido, e nem teriam, acesso à internet, telefones celulares e aparelhos do tipo
mp3, para poder controlar melhor o comportamento deles. Se pensarmos no
professor, conforme a visão da professora Joyce, como modelo de bons
costumes, a professora Gleice não ocupou esse cargo.
Segundo a professora Maíra, outros professores da escola pesquisada
exibem uma atitude parecida com a da Gleice perante seus alunos. Ao falar de
sua própria posição diante do desafio de educar seus alunos, a de que os
alunos mereciam ter professores comprometidos com a qualidade da
educação, ela se destacou dos demais professores da escola. Maíra explicou
que entrara na escola dois meses antes do término do ano letivo. Salientou que
não queria “empurrar as aulas com a barriga” (vinheta, 29/11/07) por ter
entrado na escola pouco antes de as aulas acabarem. Sua intenção era não só
começar a dar suas aulas a partir do lugar onde a antiga professora havia
terminado, mas diagnosticar possíveis problemas de aprendizagem para ajudar
seus alunos a solucioná-los. No encontro da APLIEMT, em agosto de 2008, ela
explicou a dificuldade que encontrou ao procurar outro professor de português
para conversar sobre as aulas:
Depoimento (06/08/08)
Maíra: Então eu cheguei a outro professor de língua portuguesa também e perguntei a ele, “o que você trabalhou já nessa escola (incompreensível) seus alunos?” “Larga a mão. Não vale a pena não. Pega logo o conteúdo gramatical aí, coloca para eles, dá uma coisinha, um textinho, para deixar eles felizes, põe um filme, eles adoram filme”.
Nesse trecho, fica bem explícita a atitude do professor a que Maíra
recorrera em busca de ajuda. Segundo ele, não vale a pena se esforçar para
planejar uma aula mais dinâmica. Esse professor nem discrimina que tipo de
exercício dar para os alunos; qualquer coisa é suficiente para poder anotar a
aula como “dada” no seu diário de classe, até passar um filme, porque os
alunos “adoram” assisti-lo. Não importa, segundo esse professor, se o filme
86
tem a ver com o conteúdo a ser ensinado. O que importa é deixar os alunos
felizes, para que não atrapalhem a aula. No entanto, essa forma de domínio
sobre o comportamento dos alunos tem consequências negativas para o aluno.
Ao não se preocupar com a sequência e/ou relevância do conteúdo a ser
ensinado, o professor atrapalha e prejudica a aprendizagem do aluno.
Ademais, a apatia e/ou o descrédito do professor perante seus alunos oferece
outro mau exemplo de comportamento, pois se o professor não se importa com
o seu trabalho, com o que faz na aula, como se pode esperar que os alunos
levem o processo de ensino-aprendizagem a sério e façam a conexão entre os
saberes da escola, inclusive a propalada cidadania e os bons costumes, e a
vida cotidiana?
Ao destacar a disciplina, a cidadania e os bons costumes, os atores da
escola também estão tentando se insular de acontecimentos no bairro que são
fora do seu controle, como a violência, uma das ameaças à escola apontada no
PDE (2005-2006) na sua avaliação estratégica. No entanto, sendo que a escola
não está fora do seu contexto maior, também é tocada por momentos
ameaçadores. Ocorreram três incidentes no decorrer do semestre em que
conduzi minha pesquisa: no final do dia da festa de Halloween houve uma briga
entre dois alunos; uma aluna foi ameaçada de morte por uma colega dela por
ter cobrado o pagamento de um pedido de Avon que valia quinze reias; e um
aluno trouxe dois pedaços de cano PVC amarrados por fita adesiva preta, que
de longe parecia uma pistola, e ameaçava outros alunos de morte também. A
primeira ocorrência rapidamente saiu dos muros da escola e foi tratada pela
polícia. As outras duas ocorrências foram tratadas pela Coordenação da
escola. A aluna ameaçada de morte foi aconselhada a não cobrar o pedido, e o
aluno que trouxe a arma falsa para a escola voltou para a aula depois de
conversar e entregá-la à Coordenação.
Um aluno, em entrevista, falou sobre um ato violento do qual ele foi
vítima. Rodrigo estudava na EMVG há dois anos quando conversei com ele.
Ele explicou que mudou para o bairro de uma cidade do interior do estado
porque seu pai tinha encontrado um serviço melhor em Várzea Grande.
Rodrigo disse que percebeu uma grande diferença entre os alunos da nova
escola e da escola onde estudava antes de chegar ao bairro. Baseou esta
constatação no que aconteceu com ele após começar frequentar a escola:
87
Entrevista (14/11/07)
Marki: Você testemunhou algo que aconteceu na escola?
Rodrigo: Já. Já me pegaram aqui na escola. Pegaram as cadeiras e me bateram. E eu nem sabia porque.
Marki: Ah, então é muito triste, né? Você não entendeu o que foi? Foi quando você chegou ou foi este ano?
Rodrigo: Foi uma festa aqui na escola. Daí, eu entrei numa sala, “tavam” lá uns colegas meus. Sem fazer nada, chegaram e bateram.
As palavras do Rodrigo mostram como a falta de disciplina, desta vez
durante uma festa escolar, pode escalar em violência. Segundo Rodrigo, os
indivíduos encarregados da disciplina durante a festa não conseguiram evitar o
ato relatado por ele. O acontecimento não foi resolvido, pois nunca soube
quem perpetrou esse ato violento (me pegaram”, “chegaram e bateram”),
apesar de sua mãe se queixar à Coordenação. Rodrigo atesta que foi um ato
insensato, pois ressalta que “nem sabia porque” aqueles indivíduos o
escolherem como o alvo da sua agressão.
De outro ponto de vista, vagas na escola EMVG são procuradas por
professores. Um dos motivos é a imagem boa que ela tem (a escola é “bem
vista pela comunidade). Numa entrevista com a coordenadora Cida, perguntei-
lhe porque a escola era tão procurada. Ela situou sua resposta em relação a
outra escola municipal que já foi considerada, segundo a coordenadora, uma
das melhoras, mas que se encontra em estado de decadência, em parte por
causa da violência no bairro:
Entrevista (23/10/07)
Marki: A senhora disse que aquela escola já era melhor. Cida: Nossa, aquela escola era uma das primeiras escolas. Ali era a escola de, como que diz, um espelho. A escola tinha tudo, tudo, tudo. Os cursos, tudo que era feito, era feito lá. Tudo era lá. Aquela quadra ali, era bonita. Aquela quadra lá, era muito bonita aquela quadra. Tudo ali. Tinha tudo, tudo, tudo, tudo de bom. Marki: Mas, o que mudou naquela escola que não ficou tão boa? Cida: Acho que é o bairro.
88
Marki: O bairro? Cida: Ficou muito perigoso… Ali é o bairro. Muitos marginais. Inclusive, agora, a semana passada, a professora que está aqui de manhâ, agora essa nova, ela é daqui. Só que ela foi prestar serviço lá… (incompreensível)… e pegou uma turma lá também porque há duas cadeiras, né. E ela teve de ir embora porque… primeiro, porque simplesmente deu parte, chamou a polícia. E na semana que nós fomos lá, o diretor e o (incompreensível) foi falar com o aluno e o aluno de lá chegou com revolver…
Encontrar um aluno com uma arma de fogo na escola pode ter sido o
motivo da forte presença policial no dia em que acompanhei Joyce, Cida e
alunos da quinta série à escola para um evento patrocinado por uma editora de
materiais didáticos. Mais adiante na nossa conversa, Cida adicionou o seguinte
comentário, que explica porque os professores estão atraídos pela escola
EMVG. Ainda falando da escola que uma vez foi vista como “espelho” e o
bairro que serve, ela diz:
Entrevista (23/10/07)
Cida: Ali é perigoso de tudo. Marki: E aqui é mais tranquilo. Cida: Nossa, aqui, tudo mundo que chega aqui, que vem ao bairro, diz que nós estamos no céu.
Para Cida, o fato de uma escola “espelho” encontrar problemas,
inclusive a violência, em decorrência de mudanças no bairro coloca em
perspectiva problemas semelhantes que a EMVG tem vivenciado. Ou seja, os
problemas da EMVG apontados acima são pequenos relativamente aos
problemas de outras escolas, porque ali, estão “no céu”. Assim, uma escola
que tinha muito mais, no sentido de estrutura física e organização, de que a
EMVG não resistiu aos avanços de pessoas “marginais”, destruindo a imagem
de escola “espelho”.
Embora Cida admita que a escola EMVG encontra problemas, inclusive
a violência, o fato de que a escola seja procurada como lugar de trabalho é
visto como um fator que favorece um clima organizacional positivo, um tema a
ser explorado na próxima seção. Ainda assim, é necessário constatar que
89
proporcionar um ambiente seguro, disciplinado e democrático conduz a
expectativas altas relativas ao processo de ensino-aprendizagem. Mas, como
aponta Nóvoa (2001), a escola se encontra clivada. De um lado, tem de ensinar
às novas gerações o conhecimento acumulado pelo ser humano até a
contemporaneidade; de outro lado, tem de reforçar os valores da sociedade,
nesse caso valores democráticos que clamam pela inclusão de todos. Assim, a
disciplina é um fator importante a ser considerado. Como não há soluções
prontas e fáceis para os problemas que professores, alunos e administradores
enfrentam no contexto escolar, o processo de aprimorar políticas eficazes para
a solução de problemas é lento, e às vezes, frustrante e doloroso. É importante
destacar atitudes, como a dos alunos “porta-vozes”, que contribuem para a
melhoria da escola.
4.1.3 Crença 3: “falta...suporte”
(Joyce, sem data, diário de participação)
O apoio da sociedade em relação ao ensino-aprendizagem é de grande
importância. No entanto, Joyce e outros atores da escola EMVG indicam que
esse apoio nem sempre está no nível necessário para desempenhar seu papel
no cotidiano da escola. Segundo Joyce, os alunos já não têm o apoio dos pais
para aprenderem os “bons costumes”, que pode ser interpretado como uma
falta de apoio, ainda que indireto, da sua posição como professora. Porém, o
que preocupa Joyce ainda mais é a falta de apoio no nível institucional:
Joyce (sem data, diário de participação)
Uma outra grande dificuldade existente é a falta de livro didático. O governo “patrocina” os livros das escolas públicas, mas ele acontece somente para as matérias de Português, Matemática, Ciências, História e Geografia. A Língua Inglesa fica de fora. Trabalhar a língua inglesa é principalmente trabalhar com figuras, cores, textos e outros mecanismos que ajudem na assimilação. Pela falta de livros e falta de suporte da escola para a confecção desses materiais tais como: Xerox, slides..., fica muito mais complicado desenvolver algo assim em sala de aula. Na falta do livro, tenho que passar no quadro os pontos gramaticais básicos da Língua Inglesa...
90
A falta de suporte apontada por Joyce acontece em vários níveis
institucionais: no nível federal, pela falta de “patrocinar” livros para o professor
e os alunos de LI; no nível da rede educacional local, por não por em prática
políticas que apoiam as necessidades materiais dos professores, como por
exemplo, horários de trabalho que contemplam tempo remunerado suficiente
para o planejamento e a confecção de materiais; e no nível da escola, por não
apoiar o professor na confecção de materiais, que leva não só tempo, mas
requer investimento financeiro. Para Joyce, a falta de materiais é significativa,
pois os professores de outras áreas de conhecimento têm o privilégio de ter o
“patrocínio” do governo. O tratamento desigual pelo governo federal faz a
professora sentir que “a língua inglesa fica de fora”, criando uma lacuna entre
ela e os outros professores da escola e reforçando a idéia de que a LI não é
uma matéria importante e levando alguns à conclusão de que qualquer um
pode ensinar LI (Cox e Assis-Peterson, 2002). A propagação desta lacuna
impede que os direitos dos alunos sejam exercidos plenamente, pois “a
aprendizagem de uma língua estrangeira, juntamente com a língua materna, é
um direito de todo cidadão” (Brasil, 1998, p. 19) e contraria a filosofia
democrática e não-excludente exposta pela escola EMVG por meio do PPP
(veja p. 81 desta dissertação). Além do mais, a falta de materiais e suporte
para confeccioná-los, no ponto de vista de Joyce, restringe o que pode ser feito
em sala de aula. Ela se sente forçada a “passar no quadro os pontos
gramaticais básicos da Língua Inglesa”, uma colocação que reforça ainda mais
o posicionamento dela dentro do paradigma de transmissão de conhecimento.
No entanto, um aluno da turma 8D, Fabiano, reforçou a necessidade de
possuir algum tipo de material didático. Diz ele em resposta a várias das
perguntas do questionário aplicado à turma:
Questionário (22/11/07)
Você acha que o projeto está te ajudando a aprender melhor a língua inglesa?
Fabiano: Sim, porque deste modo, com as tiras, a gente pode prestar mais atenção nas falas, escrita e tudo mais.
Você acha que o projeto pode ser melhorado de alguma maneira? Como?
91
Fabiano: Sim, ao invés de tiras, livrinhos ou apostilas.
Se quiser, faça algum comentário sobre o projeto que não foi lhe perguntado.
Fabiano: Eu acho que esse projeto muda muito a maneira de aprender o inglês, porque assim as pessoas podem prestar mais atenção, porque o aluno tem as tiras na mão, os alunos têm o material de estudo alí, só para entender.
O fato de poder manipular materiais, ainda que na forma de folhas
xerocadas de histórias em quadrinhos (“tiras” na fala de Fabiano), parece ser
muito importante para esse aluno, pois ele ressalta que “com as tiras, a gente
pode prestar mais atenção” nas formas de expressar-se, não só em LI, mas
visualmente, pelo uso de desenhos, também. A combinação de formas
expressivas nas “tiras” ajuda o aluno a entender melhor o conteúdo de uma
história em quadrinhos. Porém, Fabiano não está satisfeito com só esse
material. Ele divisa materiais tais como “livrinhos ou apostilas” para que os
alunos tenham “o material de estudo ali, só para entender” melhor o que estão
aprendendo. A falta de materiais para apoiar a aprendizagem de LI deixou sua
marca na história educacional desse aluno.
Do ponto de vista da Direção, poder fornecer materiais didáticos aos
seus alunos é importante. No entanto, não só faltam esses materiais quanto
faltam também uma biblioteca, uma área de lazer coberta, uma caixa de água
nova e grama para melhorar a aparência da escola, entre outras melhorias
estruturais e ambientais. Segundo a diretora, Diane, falta maior compromisso
da Secretaria de Educação, especialmente financeiro, para que a escola possa
melhorar a qualidade da experiência eduacional para seus alunos. Numa
entrevista que incluiu o coordenador Wilson, ela explicou o dilema com a ajuda
de Wilson:
Entrevista (21/11/07)
Diane: Nós temos problemas na administração, temos, porque não temos o apoio (incompreensível), o que está vendo. Nós temos a biblioteca. Nós já pedimos. Já. Já mandaram notícias. Já. Nós queremos essa quadra. Já pedimos, já está prometida, já está, nossa história já está na lista, primeira na lista para a construção dessa quadra. Por quê não começou essa construção? Nunca começa …
92
As frases curtas e a repetição da palavra “já” mostram a frustração com
a falta de apoio da rede educacional local, além da urgência com que os atores
da escola esperam essas mudanças, que nunca vem apesar da diretoria da
escola fazer a sua parte por ter pedido “já” as melhorias. Palavras como
“prometida” e estar “primeira na lista” revelam o discurso dos representantes da
Secretaria de Educação, palavras interpretadas como vazias de sentido, pois a
obra “nunca começa”. Se o ensino de LI é deixado “de fora”, então de certa
forma a escola EMVG também está de fora. Ainda falta muito para ser um
contexto educacional repleto de recursos, tão necessários para que possa
cumprir sua missão.
Mais adiante continua a falar da construção de uma nova biblioteca para
substituir o pequeno espaço que servia de biblioteca e dispensa de materiais
didáticos. A Direção da escola conseguiu arrecadar quase dois mil reais para a
construção do novo espaço, pela organização de um festival para a
comunidade. A diretora fala da dificuldade em ter de escolher a melhor maneira
de gastar o dinheiro arrecadado:
Entrevista (21/11/07)
Diane: Vamos gastar muito mais com a mão de obra do que com o próprio material … Marki: É, mão de obra é caro. Diane: Mil e pouco. Esse mil e pouco, se jogasse no material, não vai dar também, né? Agora tem de pagar mil de material, oito, novecentos de mão de obra, né. Já é difícil. Por quê? Na verdade, minhas colegas falam assim, ´Nós não estamos aí para construir. Nós estamos aqui para administrar.´ Apenas o órgão público. Né? Eu não faço isso. Eu não faço moleza (incompreensível) … está contando com melhorias. É televisão, é biblioteca, é bola, não pára. (Incompreensível). Aí você vai e volta. Na verdade, elas têm razão. Porque com esse dinheiro nos poderíamos estar melhorando a educação de nossos alunos. Wilson: (incompreensível) material didático. Diane: Material pedagógico (incompreensível). Tem aluno que não tem caderno (incompreensível) E aí? Wilson: (Incompreensível) melhorar a qualidade de ensino, a gente pensa num lugar para eles fazer o trabalho, pesquisa, né? E ali naquele ambiente não dá.
93
Além de ter de se preocupar com a melhor maneira de gastar os
recursos que a escola arrecadou, a diretora tem de enfrentar as críticas das
colegas dela, possivelmente outras diretoras e coordenadoras de escolas
públicas, que lembram a ela que a sua função é apenas administrar os
recursos que vêm do “órgão público”. Mas Diane percebe que para administrar
bem sua escola, é preciso ir além da definição básica de “administrar”. Ela não
tem o conforto de poder esperar que a Secretaria cumpra as suas promessas.
A necessidade dos alunos se desencadeia em tempo real, no presente. Então
a decisão a ser tomada baseia-se entre duas opções: uma biblioteca para o
bem de toda a comunidade escolar ou materiais didáticos para alguns.
Joyce, Fabiano, Diane e Wilson criticam a falta de suporte em vários
níveis institucionais relativa ao fornecimento de materiais didáticos e a
melhorias nas condições físicas da escola. Mas o papel que o professor
desempenha na escola também recebe críticas. No PPP, a falta de
solidariedade e compromisso dos professores é levantada:
As experiências revelam que a comunidade interna da escola apresenta limites quanto a participação na realização de trabalhos coletivos e até individuais. Não porque haja um impedimento por parte de alguém, mas porque, alguns profissionais que trabalham na escola, também desempenham outras atividades cujo horário é incompatível para essa participação. O espírito de colaboração do corpo docente deixa a desejar, pois existem profissionais tomando decisões alheias às decisões dos demais membros do grupo. Há dificuldades em conciliar horário para o trabalho coletivo e grandes problemas de comunicação entre os turnos. Quanto ao planejamento ainda acontece o improviso, pois, nem todas nossa atividades são planejadas (PPP, pg. 15).
Os autores do PPP sinalizam que o clima organizacional da escola se
encontra em estado grave. A escola encontra barreiras que muitas vezes ficam
nas entrelinhas do fazer da escola. Isto é, o professor, mal-remunerado e
sobrecarregado, não encontra as forças e/ou o tempo para desempenhar um
trabalho negociado em grupo. Isso os conduz a agir de uma maneira que pode
iniciar um ciclo vicioso de tomar decisões individuais, possivelmente
incongruentes com os objetivos da instituição como um todo, e na pior da
hipóteses, alienar seus colegas.
94
Enquanto os professores são culpados por essas ações pelos autores
do PPP, é necessário remeter essa discussão à falta de apoio institucional no
nível federal e local, que criam as condições macros sob as quais os
professores exercem sua profissão. Ou seja, há a necessidade de oferecer
condições de trabalho que incluem remuneração e horários decentes para que
os professores não tenham que desempenhar “outras atividades cujo horário é
incompatível” com as atividades da escola.
Maíra, durante seu depoimento na APLIEMT, também levanta a questão
da solidariedade e compromisso do professor. Porém, antes de falar sobre os
outros professores, ela admite ser uma dos professores que toma atitudes
“alheias”, o que tem como consequência o sentimento de alienação de seus
colegas:
Depoimento (06/08/08)
Maíra: Eu sou muito briguenta. Eu tenho a fama de ser de estopim curto. Por quê? Porque eu não aceito as coisas que me mandam fazer. Eu gosto de pegar e fazer… [a] nossa escola… É uma escola maravilhosa para trabalhar... muitos amigos, assim, digamos... “eu posso contar com você?” “Pode sim”. Mas na hora de arregaçar as mangas, são poucos que ligam com a situação.
Maíra, pelo emprego do verbo “mandar”, que tem a conotação de
“exercer autoridade”, ressalta que não aceita fazer um trabalho que não seja
negociado. O exercício de autoridade, nesse caso provavelmente pela
Coordenação da escola, exclui os professores do processo democrático da
construção de um ambiente condizente ao ensino-aprendizagem. No entanto, o
ato de “pegar e fazer” é mutuamente exclusivo. Maíra defende sua atuação
alheia “às decisões dos demais membros do grupo”, qualificando sua decisão
no fato de que não na hora de precisar do apoio dos colegas, são poucos que
mostram solidariedade.
Ela continua seu depoimento, salientando, porém, que os professores
não devem se dividir em campos concorrentes. A alienação que ela sente
pelas atitudes dos demais professores é palpável:
95
Depoimento (06/08/08)
Maíra: E eu queria falar isso pra vocês, colegas, que nós não somos concorrentes, nós somos colegas. A gente tem que abrir mão de algumas coisas para poder dar certo… porque na hora que eu vou ter uma dúvida, não vou ter medo de chegar e perguntar ao meu colega de língua portuguesa [simulando uma conversa], “Eu tô com dúvida aqui com os “porquês”. Esse conteúdo aqui me deixa confusa. Vem aqui me ajudar.” “Se esqueceu das regras?” “Eu sou humana, né? Eu erro também. Mas não deixa os alunos saber … fala só nós dois aqui.” Então eu acho assim, que, se a gente mostrar menos orgulho e mostrar mais trabalho, falar menos, e mostrar mais trabalho, eu acho que aos poucos a gente vai sendo reconhecida.
Apesar de tomar atitudes que a professora Maíra admite serem
excludentes dos seus colegas (“pegar e fazer”), ela também admite a
necessidade de sentir-se parte de um grupo apoiador em que possa até expor
suas fraquezas, sem temer reprovação. Ao contrário, segundo esse trecho do
depoimento, o corpo docente da escola EMVG se encontra num estado clivado
entre a individualidade e a coletividade, criando condições que impedem a
melhoria do clima organizacional. Como ressalta Maíra, o problema maior entre
o corpo docente é o “orgulho”, sentimento individualista que impede a
negociação de como desempenhar um trabalho mais eficaz, dificultando o
reconhecimento de um trabalho bem feito.
Ao trabalho individualista dos professores, se justapõe a disposição dos
mesmos para organizar festas, bingos e outros eventos culturais com várias
finalidades. Enquanto eventos como festas e bingos tinham como alvo
arrecadar dinheiro para melhorias na escola, festividades como “Halloween” e
passeios a Sesi Park e ao Museu do Índio visavam a inclusão social e a
aprendizagem sobre outras culturas. Nessas ocasiões, os professores se
dispunham (com a exceção da professora Gleice no festival de “Halloween”) a
ficar no local de trabalho após o términio do dia escolar para preparar
decorações, brindes e gincanas ou ensaiar danças e desfiles. No festival de
“Halloween”, os professores negociaram a melhor data para participar do
evento cultural. É interessante contrastar a solidariedade dos professores,
coordenadores e diretora nessas ocasiões com a crença de que falta esse
compromisso relativo ao planejamento didático. Talvez a diferença seja que
96
nesses momentos, o “orgulho” pela escola e o que ela representa para a
comunidade soasse mais forte do que “orgulho” individualista salientado por
Maíra.
Ainda assim, a idéia de que os colegas se encontram em estado de
concorrência ecoa na voz da professora Joyce. Numa entrevista, perguntei-lhe
sobre as exigências da Direção da escola em relação à formação continuada
dos professores, pois estava curiosa para saber por quê uma das professoras,
Gleice, me perguntava com frequência se tinha alguma informação sobre
cursos que ofereciam certificados. Também queria saber quais às exigências
de formação continuada para um professor aprovado em concurso, pois
entendi que esse status confere mais segurança, quanto ao emprego, do que a
contratação de funcionários.
Entrevista (04/09/07)
Marki: Sobre a Direção, o que exige sobre a atualização … assim, porque você é “concursada”, né? Então você tem muitas exigências … ou é só a Gleice que está sentindo a pressão porque ela não é “concursada”, é contratada?
Joyce: Não, ela exige. Para a gente, ela exige. Só que não comparada com os “não-concursados”. Porque é assim: essa atualização, que é a continuidade de cursos, de seminários; que é aquele não-parar, não-se acomodar, só como professor – aprender outras coisas; isso existe também para a gente, porque querendo ou não querendo, no final do ano, a gente tem o que [se] chama de “contagem” de pontos. Então eu vou reunir todos os certificados que eu tenho, e vou ver quantos pontos que eu tenho. Se na escola tem outro professor de inglês “concursado”, eu vou competir com ele, né. Aí eu tenho quarenta pontos e ele tem quarenta e dois pontos. Isso interfere em quê: ele vai ficar na minha frente pra escolher a sala de aula. É essa que é a diferença, né? É muito difícil achar que se vai perder… o seu lugar aqui na escola. Pode acontecer. Às vezes (incompreensível) muitos professores da mesma matéria, pode acontecer. Então, (incompreensível) não é uma coisa de eu vou aprender, não vou aprender, vou usar isso na sala, não vou usar. É mais assim: que colocação vou ficar. Marki: Ah. Entendi. Joyce: Entendeu? Esses cursos… por isso que você vê que as (incompreensível) “tem certificado, tem certificado?”. Porque certificado sempre ajuda para você ficar lá em primeiro lugar para você não ficar sem turma.
97
Marki: Então, não importa o que você está aprendendo, exatamente, no curso, se você vai aplicá-lo depois ou não? Joyce: É, isso não é tão cobrado. Isso é mais do professor. Vai da ética profissional, você saber que você está fazendo por seu crescimento e pelo crescimento dos seus alunos. Mas, o que a Direção, a Coordenação … não é nem a Direção, é o sistema, né? Faz é que isso seja usado para você, para sua posição na escola.
A distinção entre professores aprovados em concurso e professores
contratados, sentida e interpretada de maneira aguda pela professora Gleice
(ver p. 85), se confirma nesse trecho. Joyce utiliza a expressão “a gente” várias
vezes, criando uma distância entre ela e os professores que não têm a
segurança equivalente a de seu cargo na rede educacional. Assim, segundo
Joyce, os professores contratados sofrem mais pressão para participar de
cursos e outros eventos que concedem certificados para segurar sua posição
na escola para o próximo ano. Fica evidente, também, que há concorrência
entre professores aprovados em concurso quando há mais do que um que
ensina uma matéria na mesma escola. Nas palavras da Joyce, esses
professores “competem” entre si por meio da contagem de pontos que
acontece durante a avaliação anual do professor. O resultado da competição é
que o professor “ganhador” se encontra “lá em primeiro lugar para… não ficar
sem turma”.
Outro resultado, segundo Joyce, é que a influência da formação
continuada, na pior das instâncias, possa ser vista como um fim de ganhar a
vantagem dos professores “adversários”, em vez de ser contemplado em
relação à ação docente, o que “vai da ética do professor”. Joyce atribui tal
concepção ao “sistema”, ou seja, à rede educacional e aos mecanismos postos
em funcionamento para assegurar que os professores se aprimorem. Porém,
parece haver um descompasso entre essa exigência, interpretada pela
professora como a maneira como o professor possa assegurar sua “colocação”
na escola, para que possa completar sua carga horária sem ter de se
desdobrar entre horários disjuntos, e a concepção da formaçao continuada
como aprimoramento profissional, nos níveis teóricos e práticos. Isto é, a
formação continuada do professor, vista desse ângulo, contribui pouco ao que
acontece na sala de aula se não houver compromisso por parte do professor.
Além do mais, pode parecer que o professor não conta com o apoio da Direção
98
atinente à incorporação de novos conhecimentos e/ou métodos provindos da
formação continuada, pois a única exigência para a contagem de pontos é a de
que o professor apresente um certificado, comprovante de que participou de
algum evento ou curso que caia sob o termo guarda-chuva de “formação
continuada”.
A existência da concorrência para ficar com as melhoras vagas e
horários é corroborada pelo coordenador Wilson. Eu queria saber se existe
essa concorrência e qual o efeito na prática de sala de aula. Ao perguntar
sobre a formação continuada dos professores, ele contou que o professor
passa pela avaliação anual, que se compõe em parte pela contagem de
pontos. Eu queria saber se existir essa concorrência, então qual o efeito na
prática de sala de aula. Enquanto Diane acredita que há uma ligação positiva
entre a formação continuada e o ensino, ela também admite que a
concorrência na contagem de pontos é uma questão que precisa levar em
consideração. É Wilson, no entanto, que toma a palavra e explica para quem a
formação continuada, ancorada na contagem de pontos, não funciona.
Entrevista (22/11/07)
Marki: O professor está interessado nos pontos para assegurar sua vaga. Mas isso traduz numa melhoria no ensino?
Diane: (Incompreensível). Isso. Tem que ver também isso. Eu acho que ajuda bastante.
Wilson: Tem aqueles que só fazem [cursos de formação continuada] visando a contagem de pontos. Tem que ficar em primeiro lugar. Ele não utiliza aquilo que ele adquiriu de conhecimento para aplicar na prática pedagógica do dia-a-dia. A gente vê muito disso aí. É aquele que fala, ´Ah, tem um curso lá. Vai dar um certificado de quarenta horas.´ É pago. `Tem de pagar quanto?´ Ele vai lá, paga, faz a inscrição dele, vai o primeiro dia (incompreensível), conversa com seu colega, `Coloca meu nome aí.´ E não vai mais. Ele quer só o certificado para contar os pontos. Porque quem não é efetivo, quando é no caso dos interinos, eles dependem muito disso, da contagem de pontos. Tem de ficar em primeiro lugar lá na classificação. Então esses interinos, muitos deles, fazem isso. É no estágio que é muito difícil. Eles querem a pontuação para ficar em primeiro lugar para escolher a escola que eles querem mais próximos da casa ou já têm conhecimento, né? Então isso acontece.
99
Para Wilson, os professores que pensam na contagem de pontos como
competição que oferece vantagens ao vencedor são aqueles que não estão
bem estabelecidos na rede educacional, os “interinos”. Assim, a concorrência
para vagas toma a forma de “vale tudo”, inclusive pedir para colegas assinarem
a lista de presença do curso ao qual está inscrito. Não existe a atitude para
essas pessoas que a formação continuada deve fornecer uma oportunidade
para rever a prática docente. O que vale é sair em primeiro lugar.
Mas, se a Direção da escola não toma uma posição mais ativa relativa à
formação continuada é porque acredita no profissionalismo do professor.
Enquanto o “sistema” exige que o professor comprove sua participação em
eventos voltados à formação continuada, do professor exige-se também uma
autoavaliação do seu desempenho durante o ano escolar. A autoavaliação, por
sua vez, deve ser aprovada pela Direção da escola. Na dúvida, a Direção
reserva o direito de conversar com o professor para resolver possíveis
problemas. A diretora adicionou que, se à Coordenação é atribuido o cargo de
apoiar o professor na sua busca para aprimoramento, então falta tempo, pois
os coordenadores, assim como os professores, se encontram sobrecarregados
de trabalho. Falta maior apoio da Secretaria de Educação, especialmente apoio
financeiro para contratar funcionários que possam ajudar a aliviar a situação.
Enquanto tentei, como pesquisadora, equilibrar as vozes e opiniões
apresentadas aqui, as três crenças exploradas neste capítulo podem parecer
construir uma representação negativa da escola e seus atores. Contudo, ao
contrário do que possa parecer, quero argumentar que elas demonstram que a
escola, ainda na sua infância como instituição, se encontra em processo de
crescimento e que tenta responder às necessidades atuais da comunidade a
que serve. As possibilidades se constroem e encontram limitações em vários
níveis, num processo contínuo, criando tensões a serem resolvidas. Esse
processo, baseado numa filosofia democrática e de inclusão, não se
desencadeia de maneira linear. Se existem deslizes e desvios nesse processo,
também há a procura de melhorias e de um caminho próprio. A experiência que
tive como pesquisadora nesse contexto pode ser caracterizada como positiva,
pois a EMVG se constrói como lugar acolhedor, abrindo espaço para o exame
minucioso de uma, nas palavras de Agar (1996), “estrangeira-profissional”.
100
Na seção a seguir, faço uma releitura dos dados, com enfoque na
maneira como as crenças, que aparecem momentaneamente fixas na
linguagem, ajudam a construir o contexto escolar, e vice-versa. Entende-se que
esse processo é dialético (Dufva, 2003) e que não escapa das contradições de
um sistema aberto e complexo (Moraes, 1997). A interpretação a seguir é
somente uma dentro de uma miríade de possibilidades (Kalaja, 2003) e
depende tanto dos dados quanto das leituras e experiências desta
pesquisadora. Ainda assim, a esperança é a de que essa interpretação ajude
na compreensão da relação entre crenças e contexto.
4.2 Processamento metafórico
O processamento metafórico é um método interpretativo que parte do
pressuposto de que os textos que o indivíduo constrói servem para representar
crenças até então inarticuladas (Kramsch, 2003). Tomando crenças como
redes semánticas que ajudam o indivíduo a construir e interpretar suas
experiências, e, portanto, seu mundo, então os “textos” produzidos pelos atores
da escola EMVG, sejam na forma escrita ou oral, podem ser vistos como
representações do contexto escolar. Embora haja semelhanças entre essas
representações, há divergências e incongruências também. Essas
características tomam a forma de forças opostas e criam tensões que clamam
para serem resolvidas. Desta maneira, pode se dizer que existe uma dualidade
de forças – centrípetas-centrífugas, ou conservadores-renovadores – dirigidas
pelas açôes dos atores da escola. Essas forças buscam o equilíbrio, ou o bem
da escola. A escola EMVG encarna um dilema: defender o espaço educacional
que criou ou responder às exigências cada vez mais crescentes da sociedade
(Nóvoa, 2001). A escola e seus atores sofrem frustrações e buscam o equilíbrio
novamente. Avançam, renovam, deslizam, desviam, começam de novo.
Quais são as forças conservadores e renovadores do contexto escolar,
então? As foças conservadoras incluem todas as opiniões, atitudes, ações e
crenças dos atores da escola que representam os “outros”, seja aluno,
professor o administrador, de maneira negativa e limitada, e que atribuem o
mesmo significado a outras características do contexto escolar, como por
exemplo, o método de ensino como modo de controlar o comportamento dos
101
alunos. As forças renovadoras incluem as opiniões, atitudes, ações e crenças
que representam os atores e o contexto escolar de forma promissora, ainda
que o trabalho naquele sentido seja inacabado. Sob essa categoria se
encontram os atores que clamam por mudanças e que criam espaço para
relacionar-se melhor com os outros atores da escola.
Ainda que as crenças apresentadas nesta dissertação possam ser
vistas como justaposições, dando-lhes uma qualidade bidemensional, elas
também podem ser vistas como multifacetadas ou multidemensionais ao
observar as ligações entre elas. Cada uma das três crenças parte da
perspectiva de Joyce. Qual a ligação entre elas para Joyce? Como constroem
o contexto escolar de Joyce? De que maneira se representa a relação entre as
crenças dos outros e a experiência de Joyce como professora de LI nesse
contexto?
Partindo das Crenças 1 e 2, Joyce costrói uma atitude eu versus meu
aluno que a coloca, como professora, intelectualmente e culturalmente acima
do discente. De fato, a inteligência e a base cultural dos alunos é questionado,
pois eles “não têm base”, nem “boas maneiras”, o que dficulta a aprendizagem
e reduz a chance dos alunos terem êxito na matéria. Ao expressar essa atitude,
Joyce não percebe que está construindo uma atitude que se estende além de
eu versus meu aluno. Essa atitude se expande para incluir todas as pessoas
com as quais os alunos já tiveram contato significativo. O espaço figurativo no
qual ela exerce sua profissão vira uma divisa que pode ser anunciada como eu
versus a comunidade, pois os alunos não chegaram ao Ensino Fundamental II
sem terem interagido com seus pais, parentes, amigos, professores e diretoria
do Ensino Fundamental I, e outros indivíduos pertencentes à comunidade.
Joyce também não percebe a relevância de pequenos atos dos seus
alunos como a insistência de Álvaro fazer ligações entre o que já sabe de
inglês, o que está aprendendo e sua própria língua, ou a iniciativa dos alunos
da turma 8D de arranjarem as carteiras em círculo para que a turma pudesse
continuar o debate sobre histórias em quadrinhos. Isso faz com que ela tenha
de se esforçar mais para manter disciplina em sala de aula, quando talvez
outra maneira de perceber os alunos abriria outras oportunidades de interagir e
aprender. Em vez de isso, a professora se distancia metaforicamente das
oportunidades que possam fornecer uma forma de suporte tão importante
102
quanto o suporte material que ela tanto deseja (Crença 3), o suporte emocional
dos próprios alunos e seus pais.
Relevante a essas três crenças, a escola é mais do que o contexto em
que Joyce exerce sua profissão. É o lugar de frustações e trabalho não
realizado, pois com as limitações atribuídas aos seus alunos e ao suporte
institucional, pouco mais pode ser esperado dela como professora do que
aderir a um modelo de ensino formulaico que não admite questionamento. As
respostas vem na forma de sim ou não. Não há espaço para a discussão de
temas relevantes à vida de seus alunos. Isso os leva a vivenciar dificuldades ao
tentar se acostumarem a outro método de ensino. Ficou evidente que as
dificuldades surgiram da falta de entender o motivo da mudança, e da
subsequente inexperiência com o método novo. Essas dificuldades põem em
relevo a necessidade de variar o método de ensino, conforme apontaram
alguns alunos.
A presença das crenças expressas por Joyce no contexto da EMVG foi
confirmada por outros atores da escola. Embora vários atores tenham
compartilhado as mesmas crenças, essas, contudo, não foram expressas
necessariamente com a mesma intensidade. Outros demonstraram
divergências em relação às crenças de Joyce. Isso corrobora a idéia de que as
crenças não residem na mente de indivíduos, mas que são socialmente
construídas e, portanto, interrelacionadas. Simplesmente, as crenças permeiam
o contexto.
A crença de que os alunos não têm uma base linguística na sua língua
que seja suficiente para poder aprender LI está fortemente ligada à concepção
de alunos que são vazios de conhecimento, que lhes falta criticidade, e que
têm preguiça de pensar. Pode-se dizer que as crenças de Joyce e Magda se
aproximam quanto às habilidades intelectuais de seus alunos. As
circunstâncias sob as quais apareceram também apresentam semelhanças.
Cada crença emergiu como resultado de reflexão sobre uma situação
educacional. A crença de Maíra, enquanto confirma a crença de outros
professores de que os alunos são carentes, serve de contrapartida. Maíra tenta
combater a noção de que os alunos não tenham a capacidade de superar os
limites sob as quais se engajam no processo de ensino-aprendizagem. A
crença de que os alunos conseguem ter êxito não parece ser muito comum
103
entre os professores, pois os alunos têm pouca voz no contexto escolar. Isso
confirma que ainda existe pessimismo relativo ao trabalho que pode ser feito na
escola pública, mesmo se há evidências contra esse sentimento.
As crenças deslizam-se da falta de conhecimento científico à falta de
conhecimento de padrões comportamentais dos alunos aos métodos de
ensino, à emergência da violência e à falta de suporte no contexto escolar.
Joyce emprega a metáfora de espelho de estrutura familiar para justificar a
estrutura de sua aula, a primeira estrutura percebida como mais fraca do que a
segunda. Porém, a professora gasta muito tempo, paciência, e às vezes
desgasta sua voz para por ordem na sala de aula. Ao tentar incluir os alunos no
seu mundo em que a expectativa é de alunos quietos e comportados, ela os
exclui por meio da lacuna que constrói entre professor-detentor-de-
conhecimento-e-bons-costumes e alunos-sem-base-sem-disciplina. Quem leva
essa construção ao extremo é Gleice, que até esquece de seus “bons
costumes” ao planejar a punição de seus alunos com aulas que vão além da
chatice e incitam os alunos a continuar o círculo vicioso que começa com o
sintoma do mau comportamento. Outros professores nem conseguem a
energia necessária para planejar uma aula chata; já largaram de mão a
esperança de que possam ajudar seus alunos a superaram dificuldades e a
solidariedade entre professores. Por sua vez, a falta de solidariedade pode
resultar na concorrência forte entre professores, criando outras situações em
que o indivíduo constrói uma concepção do contexto escolar como um espaço
que permita a divisão eu versus o outro.
Deslizes, desvios, avanços, renovação. Espera-se que os ideais de
profissionalismo, inclusão, tolerância e solidariedade, entre outros, consigam se
infiltrar ainda mais no espaço escolar e criar oportunidades futuras. Encontrar
maneiras de providenciar mudanças, tais como a construção de uma biblioteca
ou a instalação de uma nova caixa de água renovam o espírito da escola. E, ao
deixar o espaço da escola aberto à comunidade por meio de festivais, eventos
culturais e até esta pesquisa, a escola combate o pessimismo que circunda a
educação em geral no Brasil. Ainda assim, nas palavras de Maíra, é necessário
arregaçar as mangas, mas com a esperança de que os desafios a serem
enfrentados no processo de amadurecimento da escola sejam outros que
aqueles que preocupam tanto aqui.
104
Na próxima seção, retomo os pontos-chave relativos ao ensino-
aprendizagem de LE no Brasil, apresentado no capítulo dois. Relaciono esses
pontos com as crenças apresentadas, enfocando especificamente o ensino-
aprendizagem de LI.
4.3 Crenças e ensino de LI no contexto atual
Historicamente existe uma imagem de fracasso que persegue o ensino-
aprendizagem de LI no Brasil. Essa imagem permeia o contexto escolar e se
perpetua pelo discurso de professores, alunos, diretores, coordenadores, pais e
até acadêmicos que pesquisam fatores que influenciam o ensino-aprendizagem
de LI. Das condições citadas com frequência como sintomas da precariedade
do ensino-aprendizagem de LI, várias se refletiram nas crenças da professora
participante: alunos “sem base”; a falta de materiais; e a falta de suporte nos
vários níveis institucionais. Além do mais, a professora Joyce demonstrou que
o ensino-aprendizagem de LI, na prática, ainda não avançou na sua
metodologia, se identificando fortemente com o paradigma de transmissão de
conhecimento e evitando métodos comunicativos.
O modo de ensinar observado em decorrência desta pesquisa mostra
também que não há espaço para a construção de sentidos na LI, pois não se
permite que o aluno tenha a possibilidade de errar. O professor dirige a aula
com a expectativa de que o aluno “assimile” passivamente o ponto gramatical
ensinado. O aluno que tenta desviar a aula corre o risco de ser ignorado. Mas
no caso da escola EMVG, isso não acontece necessariamente porque houve
falha na formação inicial da professora, ao menos relativamente, a suas
habilidades comunicativas em LI, que são excelentes. Talvez a falha tenha
acontecido no nível teórico. Ou talvez as experiências prévias e as crenças, ou
teorias implícitas relativas ao ensino-aprendizagem de LI, da professora
participante sejam suficientemente fortes para reforçar o paradigma de
transmissão de cohecimento. O efeito é que um visitante que tenha passado
cinquenta anos fora da sala de aula poderia entrar na sala de LI e não
estranhar o método e sua finalidade: aprender sobre o sistema linguístico para
poder reproduzir orações curtas, mas sem grande relevância à sua vida
cotidiana.
105
Outro problema a ser superado ainda é a formação e retenção de
professores. Ou seja, se o número de professores formados pela universidade
não supre a demanda na área, torna-se imprescindível melhorar as condições
de trabalho daqueles já em serviço. As melhorias tem de vir na forma de
salários e horários de trabalho decentes, num patamar equivalente ao que
outros profissionais com o mesmo nível de formação recebem. Outras
melhorias, como o fortalecimento do apoio ao professor, se fazem
imprescindíveis.
Ao explorar as crenças dos atores da escola, é possível entender quais
são os fatores que subjazem às opiniões, atitudes e ações dos mesmos.
Revelar onde e como é preciso enfocar ações que possam visar melhorias
nesse contexto. Por exemplo, para retomar a história de Joyce, ela relatou que
a experiência de trabalhar com “textos” (histórias em quadrinhos) e materiais
em mão a convenceu a fazer algumas mudanças nas suas aulas no primeiro
semestre de 2008. No dia 2 de julho de 2008, nos encontramos para conversar
sobre a experiência. A conversa não foi gravada porque Joyce disse que queria
sentir-se livre para conversar. Concordamos que eu tomaria nota dos pontos-
chave caso houvesse alguma dúvida futura e que mandaria uma cópia para ela
via e-mail, combinando também que ela poderia adicionar outros comentários
ou até editar o resumo a ser enviado para que ficasse mais verossímil. No
entanto, nenhuma mudança foi feita às anotações por parte da Joyce.
Ela relatou que os alunos gostaram muito do “projeto”. Essa avaliação
positiva, segundo Joyce, a encorajou a investir numa impressora nova para
poder levar outros tipos de texto para interpretação à sala de aula, inclusive
música. Ainda assim, ela confessou ser da opinião de que seria mais fácil se
trabalhasse unicamente com a língua portuguesa. Joyce continou a preocupar-
se com a disciplina dos alunos em sala de aula.
As experiências de Joyce no contexto escolar não foram suficientemene
fortes para convencê-la de que pudesse encontrar satisfação no ofício de
professor, especialmente porque ela também relatou que o clima
organizacional da escola tinha piorado após as eleiçóes para a diretoria da
escola. Wilson, que era coordenador, se elegeu segundo Joyce, pelo apoio dos
alunos e da comunidade, mas sem muito apoio dos professores. Joyce não
estava satisfeita com o resultado e relatou que o novo diretor era mais
106
autoritário do que Diana, conhecida como uma administradora que preferia
resolver problemas por meio da conversa. Segundo Joyce, ao novo diretor
faltavam habilidades interpessoais. Citou três acontecimentos que a levou a
essa conclusão: ele não queria renovar o contrato de uma funcionária por
razões pessoais; os anúncios passaram a serem pregados nas paredes das
salas de aula durante a lição, sem cumprimentar a turma; e os professores
estavam sendo pressionados para repor um dia de aula em que participaram
de uma paralisação.
Joyce continuou a participar de concursos, e no segundo semestre de
2008, foi aprovada no concurso público para técnico-administrativo em
educação, da Universidade Federal de Mato Grosso. Joyce foi aprovada para o
cargo de assistente em administração, que pede como requisito o nível médio
de ensino, um nível muito inferior do que já tinha concluído, sendo que ela
possui pós-graduação em metodologia do ensino de português. Não houve
como conciliar os dois cargos. Num e-mail pessoal, ela explicou ainda que
tenha ficado triste por ter escolhido sair da escola, ela considerava essa
descisão melhor para seu crescimento pessoal. Ela escreveu:
… tenho uma notícia triste: tive que sair da escola para poder assumir o concurso… Não pude ficar com os dois empregos. Meu último dia na escola foi sexta-feira (24/10/08) e já estou começando [a trabalhar no novo cargo]. Chorei tanto… mas optei por ficar [com o novo cargo]. Será melhor para o meu crescimento. Por outro lado, foi gratificante ver o comportamento dos alunos quando disse que ia sair. Eles fizeram uma festinha de despedida para mim na sexta-feira e todos choraram muito… Vou sentir muitas saudades.
A notícia enviada por Joyce realmente é triste. Representa falhas em
vários níveis do sistema educacional, a perda de uma profissional que poderia
crescer ainda na profissão de professor e a perda pela sociedade de uma
professora promissora, ainda em fase de formação, que demonstrou vontade
em participar desta pesquisa.
O estado do ensino-aprendizagem de LI na escola pública, para pegar
emprestada uma metáfora empregada por vários atores da escola EMVG,
“espelha” o estado do ensino-aprendizagem em geral. Isto é, a maioria das
dificuldades encontradas no contexto dessa escola é compartilhada por outros
107
professores e atores da escola. Indica a necessidade de pensar além das
disciplinas individuais e “arregaçar as mangas” para efetivar melhorias que
beneficiam a todos. Partir do pressuposto de que dificuldades representam
oportunidades é um bom começo. O desafio é engajar a sociedade nessa luta.
Neste capítulo, apresentei três crenças que partiram do ponto de vista
da professora participante, relacionadas às crenças de outros atores da escola.
Além da voz da professora de inglês, as vozes de alunos, outros professores,
os coordenadores e a diretora da escola foram ouvidas. As três crenças
funcionaram como temas para delimitar os desafios enfrentados no contexto
escolar, mas em especial, em relação ao ensino-aprendizagem de inglês na
escola pública. A forte relação crenças-contexto ficou ainda mais evidente
quando as três crenças apresentadas nesta dissertação são postas em
relação. Essa relação é ao mesmo tempo bidimensional, na forma de forças
conservadores e renovadores, e multidimensional, pois traços de cada uma
dessas crenças aparecem nas palavras de vários dos atores da escola EMVG.
A relação crenças-contexto se faz relevante ao estado atual de ensino-
aprendizagem de LI, pois é reveladora dos desafios a serem superados se
envisionarmos melhorias no processo educacional.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dedico este capítulo a uma reflexão sobre a pesquisa relatada aqui,
além de algumas considerações que espero não sejam verdadeiramente finais.
Ao contrário, acredito que indicam oportunidades relativas ao ensino-
aprendizagem de LI no Brasil. O enfoque de minha pesquisa foi um contexto
específico, com desafios específicos. Desta maneira, receio fazer grandes
generalizações que talvez não se apliquem a outros contextos. Ainda assim, a
escola é representativa da nossa sociedade, o que indica que haverá
semelhanças entre esse contexto e os desafios a serem enfrentados em outros
contextos escolares. As paredes da escola não protegem aquele espaço dos
discursos e crenças que circulam na sociedade. O que fica claro é que a luta
para melhorias no contexto escolar não pode ser uma luta individual. É
necessário (re)conhecer as crenças dos atores da escola e sua função como
ferramentas de interpretação que embasam as opiniões, atitudes e ações
desses indivíduos. Além do mais, é preciso entender que as crenças do
indivíduo estão relacionadas às crenças do coletivo. Algumas crenças
dominam o espaço escolar; outras fazem a contrapartida e desafiam a maneira
dominante de pensar sobre esse contexto. É nesse espaço, entre as crenças
dominantes e as crenças desafiantes, que se abrem oportunidades para
mudanças que podem levar a melhorias na escola pública brasileira, e, espera-
se, no ensino-aprendizagem de LI.
5.1 Resumo da pesquisa
Ao empreender esta pesquisa, eu quis entender quais são as crenças
que embasavam a prática de uma professora de LI que atuava na escola
pública e a maneira como suas crenças se relacionavam com o contexto
escolar, que inclui os outros atores, e reflete o contexto maior da sociedade.
Por meio de uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, três crenças que
embasaram a atuação da professora participante foram identificadas e
interpretadas por meio do processamento metafórico (Kramsch, 2003): a
crença na falta de base educacional/intelectual dos alunos, a crença na
necessidade de ajudar os alunos a serem bons cidadãos e a crença na falta de
109
apoio no contexto escolar. Ao relatar as descobertas sobre essas crenças,
tomei como ponto de partida as palavras da professora participante,
relacionando-as às palavras de outros atores da escola. Alguns atores da
escola apresentaram crenças que refletiam as crenças da professora
participante, embora de forma mais ou menos aguda. Outros atores
apresentaram crenças contraditórias, representativas de tensões presentes
nesse contexto escolar. Pode-se dizer também que as crenças identificadas
nesta pesquisa refletem discursos que circulam na sociedade brasileira, e que
se tornam temas abordados em documentos oficiais e pesquisas.
Autores como Moll (2000), Santos (2005) e Dias (2006) mostraram que a
crença que desqualifica a habilidade de alunos aprenderem é uma crença que
circula em vários contextos escolares, em Mato Grosso e no Brasil. No
contexto específico da EMVG, Joyce, a professora participante, se preocupava
com a habilidade de seus alunos entenderem a metalinguagem que ela
empregava ao ensinar sobre o sistema gramatical da LI, pois segundo ela, os
alunos não tinham esse conhecimento na sua própria língua, o que
representava para ela uma dificuldade de aprendizagem por parte deles. Essa
crença está relacionada às forças e ameaças indicadas no PPP da escola, em
que docentes qualificados estão justaposicionados a alunos carentes com
pouco preparo para o ensino formal, e ao discurso de outra professora, Magda,
que vê os alunos como sem criticidade, desatentos e alheios a tudo. A ligação
entre essa crença e o método de ensino de Joyce, baseado no paradigma de
transmissão de conhecimento, em que o professor é visto como o ator central
na sala de aula e que a levava a ensinar “fórmulas” para evitar que os alunos
errassem, era suficientemente forte para que ignorasse a tentativa de um
aluno, Álvaro, relacionar o que estava aprendendo ao que já sabia da LI.
De contrapartida, a voz da professora Maíra serviu para mostrar que
essa crença, enquanto dominante, não foi compartilhada por todos no contexto
da EMVG. A carência dos alunos, segundo ela, é que eles não recebem
incentivo suficiente para estudar, o que indica, de certa maneira, uma ligação
com a terceira crença, de que faltava apoio em vários níveis no contexto
particular da EMVG. Sendo que uma das funções da educação formal é formar
cidadãos para atuar na sociedade contemporânea, pode-se questionar se
também não faltava o exercício da cidadania por parte dos professores em
relação aos alunos, em relação à falta de incentivo expressa por Maíra, e a
110
outro trecho do PPP da escola que salienta a necessidade de respeitar
diferenças individuais de aprendizagem.
A cidadania é tema abordado por autores como Moll (2000) e Dias
(2006), e em documentos oficiais como os PCN (Brasil, 1998) e o PPP da
escola pesquisada, especialmente em referência à inclusão social. Moraes
(1997) constrói a questão da cidadania em relação ao que chama da era de
relacionamento. Porém, Joyce citou a cidadania como preocupação por outros
motivos. Para ela, ensinar bons costumes e como agir em situações formais,
como a sala de aula, não significa a inclusão social de seus alunos, mas
representa a disciplina em sala de aula. Na visão de Joyce, controlar a turma
era mais importante de que ensinar a própria matéria pela qual foi responsável.
A “fórmula” da aula expositiva representava, metaforicamente, disciplina e
controle. E, de maneira semelhante à primeira crença, Joyce desqualifica os
alunos, adicionando agora suas famílias como possuidoras de conhecimentos
apenas básicos. Os alunos “espelham” a falta de bons costumes de suas
famílias. A falta de disciplina é tomada de forma mais aguda pela a professora
Gleice, que interpreta as ações de seus alunos como um desinteresse total no
processo educacional. A crença dela, enquanto se relaciona à crença de
Magda de que os alunos são alheios a tudo, é mais preocupante. A crença de
Gleice também se reflete no método de ensino escolhido. No entanto, esse
método não visa à aprendizagem dos alunos, e sim, ao castigo deles. De
maneira semelhante, Maíra denuncia que outros professores já desistiram de
ensinar seus alunos e como consequência, pouco planejam, pois qualquer
coisa que deixa os alunos felizes é suficiente para a aula. Cria-se um ciclo
vicioso de desinteresse entre os alunos e professores, em que alunos se
ausentam psicologica ou fisicamente das aulas e em que professores não se
empenham em planejar aulas que convidam os alunos a se engajarem no
processo de ensino-aprendizagem.
No entanto, a experiência na EMVG mostrou que os alunos podiam ser
disciplinados e que estavam interessados no que acontecia na sala de aula.
Assim como Álvaro demonstrou interesse em conectar seu conhecimento
prévio ao que estava aprendendo; os alunos da turma 8D, que participavam do
projeto de ensino baseado em histórias em quadrinhos, demonstraram
interesse em se organizarem para fazer discussões, sair da rotina da aula
expositiva, descobrir a linguagem e fazer projetos interdisciplinares, como
111
também expressaram preocupação em relação aos alunos que não tinham se
engajado no projeto. Esse posicionamento, por parte dos alunos, apoia o ponto
de vista de Maíra, que talvez só falte um pouco mais de incentivo, e indica que
há muito mais que pode ser feito na escola pública.
O tema de cidadania inclui a questão da violência escolar. Como em
qualquer área da sociedade, a EMVG não é imune a problemas que podem
culminar em atos violentos. Os atos relatados nesta dissertação ocorreram
entre alunos, alguns mais intensos de que outros. Entre os atos violentos
relatados, um aluno foi espancado por alunos que não conhecia; outra aluna foi
ameaçada de morte por uma colega dela. Ainda assim, em comparação a
outras escolas, a coordenadora, Cida, ressaltou que os problemas da EMVG
eram menores. Segundo ela, muitos professores procuravam trabalhar naquela
escola porque era como estar no céu em relação aos problemas enfrentados
por professores de outras escolas. Porém, o fato de os professores sentirem
que trabalham numa escola segura não diminui a falta de segurança para os
alunos que parece vir de seus próprios colegas.
O ciclo vicioso entre professor e aluno apontado acima reflete, porém em
outro nível, o ciclo vicioso descrito por Almeida Filho (1992), em que a
formação inicial de professores na área de LA é designada como deficiente, o
que impede o professor de fazer um trabalho bem feito em sala de aula, e,
portanto, impede que o aluno aprenda LI. A tensão entre professor e aluno,
assim como a violência, são sintomas da falta de apoio que aflige vários níveis
do contexto da EMVG. A preocupação de Joyce, no entanto, é a falta de
material que sofre por ser professora de uma área de conhecimento
desvalorizado. Ela se sente duplamente esquecida, primeiro pelo governo
federal e segundo, pela Direção da escola. A “inclusão social” da disciplina de
LI é negada; quem ensina e aprende LI fica nas margens do apoio recebido
pelas outras disciplinas. Um aluno, Fabiano, também destacou a necessidade
de ter materiais didáticos que pudesse manipular e que o ajudaria a entender
melhor a LI. Mas se o governo federal não pode responder imediatamente a
essa falta, a Direção da escola pode explicar porque faltam materiais.
Simplesmente falta o apoio da Secretaria de Educação local, que promete
recursos, especialmente na forma da ampliação do espaço escolar, mas não
cumpre suas promessas. Consequentemente, a Direção da escola se
112
responsabiliza para construir o que falta na escola, como uma biblioteca
adequada à pesquisa de alunos.
A falta de apoio no contexto da EMVG não é só material. Segundo Maíra
e o PPP da escola, também falta apoio mútuo entre os professores. Enquanto a
Maíra vê os próprios professores como “alheios” aos desafios da profissão e
sente que os professores devem agir mais rapidamente sobre eles, os autores
do PPP reconhecem que isso não é sempre possível, pois há professores que
precisam complementar a renda familiar trabalhando em outros períodos. Os
autores do PPP concedem, entretanto, que falta comunicação e um senso de
comunidade entre os professores, pois alguns tomam decisões sem consultar o
grupo. A Maíra se coloca na posição de um desses professores, salientando
que no momento em que ela mais precisa de apoio, ela pode contar com
poucos colegas. Segundo ela, há professores que vêem seus colegas como
concorrentes, o que atrapalha o trabalho coletivo.
Joyce também levantou a questão da concorrência entre professores,
embora relacionada à avaliação anual do professor, que depende na contagem
de pontos e está relacionada também à formação continuada do professor. Ela
indicou que a formação continuada serve para acumular pontos para poder
ficar em primeiro lugar após a contagem de pontos, para que o professor possa
escolher as melhoras horas e turmas. Segundo ela, é o profissionalismo do
professor que rege a “aplicação” do que o professor aprendeu no percurso da
formação continuada. Ou seja, não existe nenhuma política que apoia o
professor na sua busca de melhorar seu método de ensino ou buscar outros
meios de introduzir melhorias na sala de aula. O coordenador da EMVG,
Wilson, confirmou a existência desta concorrência, embora tenha destacado
que acontece mais entre professores não-efetivos. Ele, e a diretora da escola,
Diane, acreditavam que o professor, como profissional, levaria a formação
continuada a sério, salientando que a autoavaliação do professor seria
suficiente para garantir isso. Ainda assim, admitiram que mesmo se a
Coordenação da escola quisesse avaliar o professor em sala de aula, estariam
sobrecarregados de funções, pois faltavam profissionais na escola para
desempenhar todos os papéis que a Coordenação acumulou.
A interpretação de dados se baseou no processamento metafórico
(Kramsch, 2003). O que se destacou após identificar as crenças que pareciam
embasar a atuação da professora participante foi a tensão que existe entre
113
opiniões, atitudes e ações conservadores e renovadores. Assim, acredito que
foi importante ouvir não só a opinião da professora participante, mas de outros
atores da escola, além de pesquisar documentos oficiais pertencentes à
escola, para ter uma visão mais ampla da maneira em que essas crenças se
relacionam com o contexto em que se apresentam. As três crenças
apresentam fatores interrelacionados. Podem ser descritas como existindo em
rede (Barcelos, 2000), mas também sofrem um movimento centrípeto-
centrífugo, às vezes inclinando-se ao lado mais conservador, outras vezes
oscilando-se ao lado renovador. É nesse movimento que se pode levantar as
inquietações dos atores da escola e buscar as oportunidades para responder a
elas.
5.2 Contribuições da pesquisa à LA
As três crenças levantadas por meio desta pesquisa refletem
inquietações ao mesmo tempo individuais e coletivas. Assim, essas crenças
podem ser vistas como representantes de alguns dos problemas que o ensino-
aprendizagem de LI enfrenta na escola pública atual. Conforme apontado no
Capítulo 2, vários autores da área de LA se preocupam com a imagem precária
que o ensino-aprendizagem de LI carrega. Por meio desta pesquisa, fica
evidente que vários problemas que o professor de LI enfrenta não são
facilmente remediados, pois o trabalho docente depende da qualidade de
relacionamento entre o professor e o aluno, entre colegas, entre o professor e a
administração da escola e assim adiante. Embora o professor seja deixado ao
seu profissionalismo para desempenhar seu trabalho baseado no que
aprende(u) durante sua formação, e, embora a atuação em sala de aula seja
vista como um trabalho individual, o trabalho que o professor desempenha
sofre influência do contexto em que atua. Isso implica que qualquer
empreendimento do professor sofrerá esta influência.
Como consequência, duas questões relativas ao estado atual de ensino-
aprendizagem de LI na escola pública se destacam: a da retenção de
professores na profissão e a da relevância da formação continuada. As três
crenças apontadas por Joyce, se não podem ser indicadas como o motivo de
desistir da profissão após entender que não teria como conciliar sua atuação
como professora e as responsabilidades do novo cargo, podem ser listadas
114
como fatores que certamente a levaram a preferir mudar de profissão. Assim, a
questão da retenção de professores tem de levar em consideração, além de
melhorias nas condições de trabalho, inclusive horário e salário, as condições
interpessoais presentes no contexto em que o professor atua. É uma questão
que abrange tanto a área de LA quanto a área de Gestão Educacional, e,
portanto, deve ser reconhecida como uma preocupação legitima. Quer dizer, é
preciso valorizar o professor e a matéria que ensina, seja qual for, fornecendo
as condições necessárias para que o professor possa desenvolver seu trabalho
com dignidade. O papel da administração escolar nesse empreendimento é
imprescindível.
A formação continuada oferece ao professor a oportunidade de
aprimorar-se de várias maneiras, dependendo do tipo de evento de que decide
participar. As oportunidades abrangem seminários, congressos, cursos de curta
ou longa duração e pesquisa em sala de aula, entre outras. No entanto, ainda
há fatores que impedem que a formação continuada tenha um impacto maior
na sala de aula. Professores enfrentam dificuldades em participar de eventos
que acontecem durante o dia escolar, como seminários, ou tem de se
desdobrar para assistir a aulas no seu tempo livre. O professor que empreende
uma pesquisa em sala de aula, se não se inscrever num evento para
comunicar suas descobertas, não receberá nenhum certificado que possa ser
entregue para a contagem de pontos. Além do mais, empreender uma
pesquisa pode tomar muito tempo e se tornar uma opção inviável para muitos.
Entretanto, o que pode representar um empecilho maior do que esses
são as crenças de outros atores da escola. A maneira de pensar sobre a escola
e o que aí acontece influencia a atuação do professor. Assim, adequar os
conceitos da formação continuada à sala de aula pode ser mais do que uma
questão do profissionalismo do professor. Por isso, é importante entender a
relação entre crenças e contexto, para que o professor possa avaliar a
viabilidade de projetos profissionais. Mais uma vez, o papel da administração
escolar no apoio ao professor é imprescindível se visar a melhorias no
processo de ensino-aprendizagem.
A identificação de crenças compartilhadas no contexto escolar auxilia no
entendimento de onde existem tensões e limites que influenciam a retenção de
professores e a formação continuada. Talvez pareça óbvio, mas no sentido do
senso comum, o que um indivíduo pensa (acredita) influência os outros ao seu
115
redor. Assim, acreditar, por exemplo, que o aluno não tem condições de
aprender pode ter consequências desastrosas para o aluno. O professor que
vê seu aluno desta maneira corre o risco de negar ao seu aluno, ainda que
inconscientemente, a oportunidade de provar que é capaz de aprender. Uma
mudança de ponto de vista, proporcionada pela formação continuada, pode ser
a chave para enfrentar os desafios do contexto escolar e auxiliar na retenção
de profissionais já capacitados. Ou seja, a adoção de uma atitude otimista, em
que os problemas que surgem no contexto escolar são vistos como
oportunidades, pode ser um passo importante para a implementação de
mudanças na escola pública e no ensino-aprendizagem de LI. Uma
proximidade maior entre a escola e a universidade, por meio da formação
continuada, pode amenizar os desafios, deslocando os limites do que pode ser
feito na escola pública, especialmente se for levada em consideração a
importância de entender a relação crenças-contexto.
5.3 Implicações para pesquisas futuras
Recentemente, a pesquisa de crenças na área de LA tem levado o
contexto em consideração como fator importante para a formação, manutenção
e possível mutação de crenças (Barcelos, 2006). Nesta pesquisa, a
investigação da relação entre crenças e contexto foi primordial para melhor
entender o que significa ser professor de LI no Brasil, além de entender as
escolhas metodológicas da professora participante. Ser professor de LI no
Brasil, hoje, significa trabalhar sob condições que tem sido descritas como
precárias e altamente desafiantes. Não é fácil superar os obstáculos
enfrentados no contexto escolar. Assim, o professor que atua de maneira
tradicional, oferecendo aulas expositivas com pouca interação entre alunos,
pode encontrar bastante dificuldade em introduzir atividades que incidam sob o
paradigma de construção de conhecimento, que requer bastante interação. O
“controle” da turma pode ser, como apontado por Joyce, uma preocupação
legitima quando o professor não é mais visto como o único detentor de
conhecimento. Encorporar práticas que visam à construção de conhecimento
pode ser desconfortável para professores que estudaram sob a égide do
paradigma de transmissão de conhecimento, pois descentraliza o poder na sala
de aula.
116
Assim, além de sugerir temas de pesquisa que incorporam a
investigação de crenças, julgo pertinente adicionar alguns que questionam o
posicionamento do professor e/ou a escola como um todo, frente aos desafios
atuais do ensino-aprendizagem. Uma possibilidade reside em levantar o que
tem sido feito na escola pública, em relação ao ensino-aprendizagem de LI e
ao paradigma de construção de conhecimento, ultimamente. Quem são os
professores que estão planejando suas aulas, priorizando a construção de
conhecimento? O que significa uma aula tradicional para eles? Quais são os
desafios que enfrentam? Quais crenças estão relacionadas à escolha de
paradigma?
Outra possibilidade é investigar como os alunos se adaptam a um
paradigma de ensino diferente. O ponto de vista do aluno é ignorado muitas
vezes, ainda que ele seja o motivo pelo qual existe uma escola. Desta maneira,
seria esclarecedor entender quais crenças auxiliam ou impedem alunos a
aceitarem mudanças metodológicas em sala de aula, além do papel das
crenças do professor, dos colegas e outros atores da escola em influenciar a
aceitação ou rejeição dessas mudanças.
Ainda que a escola seja vista atualmente como um espaço
democrático, sua gerência depende da hierarquização de funções, com a
Direção da escola no topo dessa hierarquia. Quando existem crenças
incongruentes que criam obstáculos ao funcionamento da escola, como
resolvem esses conflitos para que aqueles com menos poder dentro do espaço
escolar se sintam valorizados? Qual é a influência no ensino-aprendizagem de
LI nesse contexto?
O MEC (Brasil, 2006) instituiu uma política nacional de formação
continuada e publicou um catálogo de cursos desenvolvidos por universidades
que pertencem à Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de
Educação Básica. Quais desses cursos são desenvolvidos especificamente
para o professor de LI? De que maneira são definidos e desenvolvidos esse
cursos? Levam em consideração a relação crenças-contexto com que o
professor se depara no seu quotidiano? Que tipo de apoio adicional é ofertado
ao professor depois de terminar um curso oferecido por uma universidade
dessa rede?
Esses temas representam reflexões e questionamentos que foram
levantados durante esta pesquisa, mas que não cabem aqui. São temas que se
117
voltam ao ensino de LI, ao paradigma de construção de conhecimento, às
crenças no contexto escolar e à formação continuada do professor de LI, todos
temas relevantes à compreensão de fatores que possam influenciar a atuação
do professor de LI.
5.4 Desafios pessoais e profissionais
O empreendimento da pesquisa apresentada aqui foi uma escolha ao
mesmo tempo pessoal e profissional. Como tal, considero que as repercussões
desta pesquisa me tocaram nos dois níveis. Enquanto minhas perguntas de
pesquisa enfocaram as crenças que nortearam a prática de uma professora de
LI na escola pública e a relação dessas crenças com o contexto, elas serviram
para que eu pudesse refletir sobre o que significa ser professor de LI no
contexto brasileiro, algo que antes não era prioridade minha. Assim, com o
decorrer da pesquisa, comecei a questionar como eu agiria se estivesse no
lugar de Joyce. Será que eu seria capaz de lutar para melhorias no contexto
escolar ou de resistir a crenças que impedem essas melhorias? Será que eu
não escolheria a abandonar a profissão, se conseguisse um cargo melhor
remunerado, sendo que quase abandonei a profissão uma vez? Será que eu
poderia responder às necessidades dos meus alunos? São três perguntas
entre muitas sobre as quais eu reflito diariamente.
Por enquanto, não tenho respostas fixas a todas minhas inquietações. À
primeira questão, acho que minhas tentativas anteriores de me envolver na
vida escolar, nos Estados Unidos, são representativas da luta para melhorias,
ainda que eu tenha sentido na pele que nem sempre houvesse sucesso. À
segunda questão, posso afirmar que eu me identifico muito com a profissão de
professora e acho muito improvável, hoje, que eu a abandone, embora mudar
de profissão tenha sido minha intenção anteriormente. A oportunidade de
participar de dois cursos de formação continuada, um lato sensu e o outro
stricto sensu, me fortaleceu profissionalmente e me propiciou ferramentas para
enfrentar os desafios da profissão. À terceira questão, eu diria que minha
expectativa é de poder responder às necessidades mais agudas de meus
alunos, embora saiba que seja impossível responder a todas elas. Espero ter a
sabedoria de poder identificar e lidar com essas necessidades. Outros
questionamentos meus, no entanto, terão de esperar respostas mais concretas,
118
pois só poderão ser respondidos de dentro de um contexto escolar. O desafio é
de não ficar acomodada com a maneira como as coisas estão. Isso requer um
posicionamento tanto profissional quanto político (Leffa, 2005) em relação ao
ensino-aprendizagem de LI, algo que a formação continuada também
proporcionou para mim.
Voltando a atenção para a pesquisa apresentada aqui, enfrentei alguns
desafios e tive de tomar decisões que não tinha certeza que fossem certas. Por
exemplo, ao iniciar minha pesquisa, pretendia desenvolvê-la de forma
colaborativa. No entanto, quando percebi que a pesquisa estava tomando uma
direção diferente daquela desejada, optei para desenvolver uma pesquisa de
cunho etnográfico, em que faria o papel de observadora participante. Essa
escolha mudou o rumo da minha pesquisa, levando-me a elaborar novas
perguntas. Podia ter resistido e produzido uma pesquisa completamente
diferente daquela apresentada aqui. Após ter mudado a concepção inicial da
pesquisa, outra opção teria sido incluir, como Dias (2006), a voz de pais na
pesquisa. Entretanto, situei minha pesquisa dentro do espaço escolar, onde se
encontravam poucos pais. Aqueles que estavam presentes, como explicado
anteriormente, estavam lá sob condições que podiam ter causado
constrangimento, portanto julguei melhor omitir essas vozes. Finalmente,
admito que houve problemas com o registro de dados, no sentido de não poder
cumprir um dos meus objetivos, que era gravar, senão todas, algumas aulas de
LI em vídeo para reflexão posterior, em conjunto com a professora participante.
Uma tentativa nessa direção foi feita. No entanto, problemas com equipamento
impediram a possibilidade de gravação em vídeo.
Neste capítulo, resumi as descobertas da pesquisa relativas ao ensino-
aprendizagem de LI. A relação entre crenças e contexto mostrou ser uma forte
influência na atuação da professora participante, o que indica a necessidade de
levar essa relação em consideração ao levantar os desafios que o professor
dos dias atuais enfrenta. Na área de LA, é necessário focalizar a relação
crenças-contexto escolar com vistas à retenção e à formação continuada do
professor. Vários temas para pesquisas futuras também foram levantados
durante a pesquisa e apresentados aqui. A investigação desses temas pode
enriquecer o conhecimento que temos sobre o estado atual do ensino de LI no
Brasil. Finalmente, apresentei alguns desafios pessoais e profissionais que
119
enfrento(ei) como professora-pesquisadora que têm servido e continuarão a
servir para reflexão sobre o que é ser professor de LI nos tempos atuais.
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