O Eros Eletrônico-Roman Gubern

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Excelente trabalho na área de sociologia, mídias e sociedade, que desvela as relações humanas na era da informática e suas ligações com a sexualidade. Uma análise ampla da evolução dos meios de comunicação de massa, especialmente no século XX. Tradução livre de José Antonio Ramalho Forni - ainda não existe publicação no Brasil. (janeiro 2013)

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Román Gubern (Barcelona . 1934) Doutor em Direito pela Universidad Autó-noma de Barcelona (1980), trabalhou como pesquisador convidado do Massachusetts Institute of Technology (1971-1972) e foi professor na University of Southern Califor-nia (Los Angeles) e no California Institute of Technology (Pasadena)(1975-1977), dire-tor do Instituto Cervantes em Roma (1994-95) e presidente da Associação Espanhola de Historiadores do Cinema (1990-1995). Desde de 1983 é catedrático de Comuni-cação Audiovisual na Faculdade de Ciên-cias da Comunicação da Universidad Autó-noma de Barcelona. É membro da Ameri-can Association for the Advancement of Science, da New York Academy of Scien-ces, da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando e do comitê de honra da In-ternational Association for Visual Semiotics. Entre seus livros figuram : Historia del cine (1969), Mensajes iconicos en la cultura de masas (1974), El cine español en el exilio (1976), El simio informatizado (Premio Fundesco, 1987), La mirada opulenta. Ex-ploración de la icanosfera contemporánea (1987), La imagen pornográfica y otras perversiones opticas (1989), Espejo de fan-tasmas. De John Travolta a Indiana Jones (1993), Del bisonte a la realidad virtual (1996) e Proyetor de luna. La Generación del 27 y el cine (1999).

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ROMÁN GUBERN

O EROS ELETRÔNICO

Tradução livre, arranjos e formatação José Antonio Ramalho Forni www.zeforni.blogspot.com

[email protected] Capa: Hajime Sorayama

Brasil, janeiro de 2013 – Como ainda não existe publicação no Brasil, optei por utili-

zar algumas informações da edição mexicana, vez que este não é um trabalho comercial.

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ÍNDICE

I DA CAVERNA À ELETRÔNICA........................................... 6 A herança do caçador..................................................... 6 Neofilia e neofobia na comunicação.............................. 9 A gênese do lazer eletrônico.......................................... 15

II A CULTURA DO ESPETÁCULO 21 O televisor, epicentro audiovisual................................. 21 A vitrine dos desejos...................................................... 22 O público e a programação............................................ 25 O novo ecossistema cultural.......................................... 30 Opulência audiovisual?.................................................. 34 Sonhos eletrônicos......................................................... 37 As lógicas da sedução.................................................... 44 Estrutura do star-system ................................................ 53 Espetáculo, informação e arte........................................ 57

III A NOVA PAISAGEM AUDIOVISUAL................................... 62 O eixo do poder Los Angeles-Tokio.............................. 62 Aldeia global?................................................................ 65 Utopias tecnológicas autossuficientes........................... 73 A cultura intersticial....................................................... 81

IV DA INTELIGÊNCIA À EMOÇÃO E O DESEJO ARTIFICIAIS... 84 Cálculo e pensamento simbólico................................... 84 O projeto de Inteligência Artificial (IA)........................ 87 As insuficiências da máquina........................................ 98 Emoções e desejos......................................................... 107 Robôs, humanóides e cyborgs....................................... 112 Enquanto isso................................................................. 122

V A REDE EMOCIONAL........................................................ 125 Um sistema de informação protéico.............................. 125 A rebeldia hacker........................................................... 130 Sociodinâmica da rede................................................... 132 Funções eróticas e afetivas interpessoais na rede.......... 152 A pornografia digital...................................................... 165

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VI A DOMÓTICA E AS ESTRATÉGIAS DO EROTISMO.............. 182

O ideal claustrofílico e suas servidões........................... 170 As estratégias do erotismo............................................. 182

O olhar pornográfico...................................................... 191

VII OS PARAÍSOS ICÔNICOS................................................... 208 Epifania da imagem digital............................................ 208 Desejos digitais.............................................................. 216 O mergulho digital......................................................... 222 Realidade virtual e espetáculo....................................... 229 O Eros cibernético......................................................... 232 Razão e emoção............................................................. 242 Bibliografia.................................................................... 245

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I DA CAVERNA À ELETRÔNICA

A HERANÇA DO CAÇADOR

urante 99 por cento de sua existên-cia, o ser humano tem vivido uma pro-longada etapa de caçador, da qual co-meçou a sair há menos de dez mil anos, para entrar na de pastoreio e agricultura

do Neolítico. Naquela prolongada fase de existência de nossa espécie, o ser humano viveu muito precariamente, enfrentando feras terríveis e padecendo de uma insegu-rança angustiante. A profunda marca emocional gerada por aquele extenso período sobreviveu até o atual cidadão da era pós-industrial, convertendo-o em presa fácil de angústias e ansiedades psíquicas. Assim, os filhos peque-nos têm medo da escuridão, ainda sem haver padecido nenhuma experiência punitiva associada a ela, como he-rança filogenética da insegurança e falta de proteção do ser humano primitivo na noite em um entorno de alto ris-co.

Por outro lado, os etólogos demonstraram, convin-centemente, que na vida social, como na natureza, assis-timos muitas vezes a relações parecidas as que os preda-dores mantêm com suas presas, mediante simulações, enganos e agressões, ainda que na vida social se produ-zam em um marco de normas que as regulamentam e, portanto, legitimam, enquanto aparam suas arestas mais brutais e explícitas.

Esta herança filogenética explica que sejamos su-jeitos passivos de emoções arcaicas disparadas do hipotá-lamo e do sistema límbico de nosso cérebro, em forma de sensações de medo, amor, ódio, júbilo, depressão, inquie-

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tação, esperança, insegurança, prazer ou nostalgia, que não conseguimos controlar suficientemente, como sabem todos os consultórios psiquiátricos do mundo. Hoje, sul-camos o espaço com potentes astronaves, mas nossa vida emocional não é muito distinta da de um caçador de há cem mil anos.

Mas o ser humano moderno se distingue fisicamen-te de seu antepassado em alguns traços importantes. O ser humano moderno é o de mais baixa estatura e com o cé-rebro menor em toda a história de sua espécie. Esta dimi-nuição de tamanho é o resultado de mecanismos evoluti-vos que favoreceram os corpos menores, em uma estrutu-ra social que se baseia mais em organização e na eficiên-cia que no esforço físico para obter a dieta que necessita um grande cérebro.

Mas, apesar de seu menor tamanho, sua relação cé-rebro-massa corporal, o denominado "cociente de encefa-lização" é maior que o de todos seus antepassados. A explicação é simples. Nossos antepassados tinham que desdobrar um grande esforço físico para conseguir o que necessitavam para viver, pelo que a evolução favoreceu as os mais corpulentos. Mas agora os alimentos e as mercadorias chegam até nós sem que apenas tenhamos que mover-nos. E também chega assim a informação, que alimenta nosso relativamente grande cérebro, nosso pro-cessador supremo no seio da sociedade pós-industrial, chamada também de "sociedade do conhecimento".

As modernas tecnologias de comunicação e informação estão modificando nossas vidas, afetando-as no plano físico (em seu biossedentarismo), por exemplo, no intelectual e no emocional. Seus efeitos físicos e intelectuais não são muito melhor conhecidos que seus efeitos emocionais e por isso dedicaremos especial atenção ao longo destas páginas que desejam apresentar o atual homo informaticus a luz dos ensinamentos da an-tropologia.

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Por isso é mister esclarecer algumas questões bási-cas sobre o marco histórico e os objetivos de sua evolu-ção cultural.

A evolução cultural é uma estratégia inventada pe-lo ser humano para adaptar-se melhor ao meio ambiente que lhe tocou viver, pelo que não pode ser a mesma da selva, na savana, na zona lacustre ou no deserto. Posto que estas estratégias sejam dirigidas pelo ser humano, as culturas humanas conheceram uma grande diversificação, ainda que se possam reconhecer em todas elas alguns substratos comuns, com relação a episódios tão funda-mentais como nascimento, o matrimônio, a morte, a guer-ra. Em todas as sociedades humanas existem predisposi-ções biológicas que se elevam à classe de normas e as que se sobrepõe a outras normas, emanadas da inteligên-cia humana e não da biologia. constituem códigos de conduta que regulamentam sua convivência e que nas sociedades mais desenvolvidas se transformam em leis e regulamentos escritos. Mas está claro que as normas ado-tadas não podem ir contra as tendências biológicas por-que se assim fosse causaria o desaparecimento da espé-cie.

Após este obrigado e remoto preâmbulo antropoló-gico, passemos até o cimo da modernidade ocidental pré-industrial, até o século XVIII, quando o Iluminismo for-mulou coletivamente seu projeto de progresso racional, que hoje percebemos como linear, limitado e insuficiente para a complexidade do mundo de sua época e, sobretu-do, para a do mundo futuro. Mas podemos concordar com Habermas que suas insuficiências não constituem uma razão para repelir a idéia de progresso racional e re-troceder com ele as etapas pré-iluministas, é dizer, do império da escuridão. Em todo caso, aquele projeto deve enriquecer-se de novos dados sobre a complexidade soci-al e as ferramentas informáticas resultam muito pertinen-

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tes para serem coadjuvantes nesta tarefa, para elaborar a partir de novas realidades novas estratégias culturais. Porque o que a história moderna nos tem ensinado é que a diferença entre desenvolvimento material e desenvol-vimento político, social e moral só pode resultar num fe-chamento catastrófico.

NEOFILIA E NEOFOBIA NA COMUNICAÇÃO

Uma das muitas aproximações possíveis ao conjun-to de fenômenos associados às novas tecnologias de co-municação é a derivada da perspectiva etológica, consi-derando o ser humano como animal cultural (animal simbólico no dizer de Cassirer), como produto sinérgico da interação entre biologia e cultura, entre natureza e arti-fício. E assim salta a vista que talvez a razão mais deter-minante do processo evolutivo da hominização radicou-se em sua decidida tendência neofílica, tendência até ex-ploração e a novidade oposta ao conservadorismo neofó-bico de tantas espécies animais. Na realidade, o ser hu-mano divide com os primatas restantes sua inquietude e curiosidade exploratória. Mas o hominídeo que nos pre-cedeu na evolução superou a seus congêneres em paixão neofílica e seu abandono da proteção arborícola na selva e sua consequente entrada na savana, plena de perigos e que possivelmente contribuiu com sua postura vertical para escutar o espaço horizontal, corrobora tal superiori-dade. Tem se afirmado que a curiosidade instintiva do ser humano primitivo pode superar a dos restantes primatas porque a rápida evolução de sua inteligência, que lhe dis-tanciou da animalidade, lhe permitiu dispor de um "exce-dente de instinto", que o ser humano canalizou para di-versos campos da experiência, potencializando claramen-te seu "instinto de exploração".

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É certo que toda atitude neofílica comporta riscos e pode converter a audácia em temeridade. Sem dúvida muitos daqueles remotos antepassados sucumbiram por isso, pagando assim um preço individual elevado, por suas arriscadas investidas em favor do desenvolvimento e progresso da coletividade a que pertenciam. De maneira que nossos ancestrais foram aprendendo a temperar sua curiosidade neofílica com uma forma de inteligência pre-visora que, na falta de melhor denominação, chamamos prudência, um vestígio neofóbico sustentado na raciona-lidade antecipatória dos perigos potenciais. E avançando por esta senda o ser humano se transformou no único mamífero capaz de fundar uma civilização na qual os meios de comunicação adquiriram também progressiva importância.

Vale esta introdução etológica para recordar que cada novidade tecnológica no âmbito da comunicação suscitou temores e resistências neofóbicas, às vezes exa-geradas e às vezes perfeitamente razoáveis. Platão em Fedro, colocou na boca de Sócrates a conhecida objeção contra a escritura sinalizando que confiando nela os ho-mens não usariam sua memória e não recordariam por eles mesmos. Não faria mal repensar o velho temor de Sócrates em nossa era de enciclopedismo informático, quando tanto confiamos na memória dos computadores. O surgimento da imprensa de tipos móvel de Gutenberg foi também recebido com hostilidade por alguns setores, com argumentos não muito diferentes dos utilizados cin-co séculos depois contra a televisão, a saber, que a leitura individual isolaria e segregaria os cidadãos de sua comu-nidade e que este afastamento poderia ser perigoso para eles e para a coesão social. Na realidade estes temores não se equivocavam, pois talvez a conseqüência mais famosa e evidente da leitura isolada foi a livre interpreta-ção dos textos bíblicos, que se transformou no traumático

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cisma protestante, a mais grave ruptura que sofreu o Cris-tianismo em sua longa história.

Quando surgiu a fotografia em 1839, algumas sei-tas protestantes fundamentalistas condenaram na Alema-nha o novo invento, acenando com a proibição do Êxodo 20,4 ("Não fabricarás escultura nem imagem alguma do que existe na terra...") e julgando como ousadia herética a duplicação mecânica e fidelíssima do mundo criado por Deus. Este fora um ataque teológico, mas a desqualifica-ção estética veio de alguém tão culto e ilustrado como Charles Baudelaire, que em 1859 censurou na fotografia seu servilismo reprodutor mecânico, oposto à criação e a invenção artística.

Quando o fonógrafo de Edison, inventado em 1877, começou sua difusão e reconhecimento social no século seguinte, levantaram-se muitas vozes – eu recordo esta argumentação em minha adolescência – que senten-ciaram que a música mecânica acabaria definitivamente com a música viva das orquestras1. Isso não aconteceu, mas a indústria da música converteu-se em uma indústria cultural de ponta, que na Espanha cresceu por volta de 350 por cento entre 1991 e 1997.

Ao difundir-se, anos depois, a comunicação telefô-nica, inventada por Alexander Graham Bell nos Estados Unidos da América do Norte, conheceu primeiro na França um uso singular batizado de teatrófono2, que transmitia música até as residências. Foi a pressão social e empresarial que obrigou a ampliar este uso primitivo tão limitado à comunicação oral bidirecional que hoje conhecemos.

1 NT – Essas mesmas questões enfrenta o livro impresso com o apa-

recimento dos e-books e dos e-readers. 2 NT - Em 1881, Clément Ader, transmitiu uma ópera da capital fran-

cesa por meio de um tipo de telefone, que produzia uma sensação de som espacial para os ouvintes.

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O caso do rádio foi muito interessante. De fato, a primeira utilização generalizada e massiva da radiotele-grafia produziu-se na I Guerra Mundial, para atender as comunicações militares. Quando chegou a paz em no-vembro de 1918 abriu-se um debate para elucidar que destino se daria a comunicação sem fio, que em quase todos os lugares o poder militar queria seguir mantendo a seu serviço. Finalmente, os interesses econômicos das companhias elétricas tiveram mais poder que os militares e assim nasceu nos anos vinte a radiofonia comercial, para a informação e o entretenimento geral, que sobrevi-ve até hoje.

A difusão do espetáculo cinematográfico suscitou muitas resistências desde o final do século passado, uma muito justificada pela alta inflamabilidade da película de nitrato de celulose, que provocou alguns desastrosos in-cêndios, com numerosas vítimas. Outras objeções eram de ordem moral, já que alguns viam com desconfiança a mistura de homens e mulheres reunidos em uma sala es-cura, ante um espetáculo de grande capacidade de suges-tão. Um diretor de segurança madrileno, Millán de Prie-go, chegou a ordenar, em novembro de 1920, a separação de sexos nas salas, concedendo aos casais casados a parte traseira, mas iluminados com luz roxa. A rápida adapta-ção para a tela de episódios da paixão de Cristo há que se atribuir, em parte, aos esforços da indústria do cinema primitivo para adquirir respeitabilidade social e moral.

E assim chegamos a televisão, que foi chamada "caixa boba" (do inglês, idiot box) e que gerou um voca-bulário específico carregado de conotações negativas, como telelixeira, contraprogramação, telenovela, telebo-bo, telepaciente, televiciado. Ainda que neste âmbito im-pere, com em tantos outros, uma estridente moral dupla. Assim, Umberto Eco que ante a atual prodigalidade tele-visiva afirmou que "hoje é um sinal de distinção não sair

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da televisão", não vacila em aparecer na "caixa tonta" quando tem que promover uma nova novela sua. A tele-visão é hoje a grande colonizadora do tempo de ócio so-cial – com três horas e meia de contemplação diária em nosso país – pois sozinha ou combinada com o vídeo doméstico atua em boa parte como meio substituto de outras atividades culturais, tais como a leitura, a ida a teatro ou museus, tertúlias e as excursões. Há que se re-ferir sem equívocos, portanto, a um claro protagonismo do consumo audiovisual doméstico (vale dizer, sedentá-rio e clastrofílico) no mapa dos hábitos culturais ociden-tais. Ainda que tal colonização deva matizar-se com a distinção entre espectadores incondicionais (preferente-mente donas-de-casa, aposentados, desocupados e enfer-mos) e telespectadores seletivos.

Os telespectadores incondicionais o são, sobretudo, pela pobreza de sua vida de relação social, seu baixo ní-vel cultural ou a limitação de seus recursos econômicos, Para eles, a televisão é o recurso mais fácil e barato, mas também o que mais prontamente se abandona quando surge uma alternativa mais estimulante, como a chamada de um amigo para sair para passear. De modo que o tele-visor passa a ocupar a linha de fundo (bottom-line) de suas preferências, ainda que as circunstâncias pessoais o convertam em mais usual, mas também no mais vulnerá-vel a sua fidelidade. A teledependência constitui uma pa-tologia social não infrequente nas sociedades industriali-zadas e, sem dúvida, deveria ser teledependente aquele cidadão italiano que de um acontecimento confessava candidamente que não estava seguro se havia vivido ou havia visto na televisão, revelando assim a emergência social de um novo tipo de paramnésia midiática, fruto da nova solidão eletrônica. Diverso é, obviamente, o caso dos espectadores seletivos e a crescente difusão dos ca-nais monográficos por cabo ou satélite tenderá a incre-

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mentar a fidelidade das audiências, de acordo com seus interesses específicos.

Para um historiador da comunicação, o mais cha-mativo da televisão reside em que, depois de meio século de implantação social, segue ocupando um lugar central na panóplia das novas tecnologias, não só por sua depen-dência atual das novas redes de fibra ótica ou dos satéli-tes, senão por sua eventual fusão com a tela do computa-dor, para converter-se no já chamado teleputer (de televi-sor + computer) um terminal audiovisual doméstico, mul-tifuncional e interativo tanto para nosso lazer como para nosso trabalho (teletrabalho), como para a escolarização de nossos filhos. Nos umbrais do novo século o televisor está deixando de ser um terminal audiovisual que recebe passivamente umas poucas mensagens monodirecionais para adquirir um status de artefato polivalente, que pri-mará a autoprogramação e a interatividade de seu opera-dor. Quando este uso se consolidar, o televisor já não será o sucedâneo da lareira que reúne toda a família, como opinava McLuhan, senão uma singular e nova lareira-escrivaninha conversível.

Esta perspectiva tende a apontar ao triunfo definiti-vo da cultura claustrofílica, como explicaremos mais adi-ante, oposta a tradicional cultura agorafílica3, e a duali-zar moralmente com elas dois territórios contrapostos. a confortável segurança do lar e o perigo da rua, território dos parias e dos bandidos. A opção claustrofílica que su-põe o trabalho caseiro tem sido defendida por suas vanta-gens materiais e econômicas – redução do tráfego, eco-nomia de combustíveis, diminuição da contaminação,

3 NT – apesar do termo "agorafilia" dizer respeito a desejo doentio

(impulso incontrolável) pela prática do coito em lugares abertos, ou ao ar livre, no contexto do autor diz respeito ao uso dos espaços públicos para o lazer e o ócio. Da etimologia da palavra: do grego: ágora= praça, feira, assembléia e philis=amor, afeto, predileção.

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descentralização das áreas de trabalho, etc – mas também tem sido considerada por suas desvantagens pelos sindi-catos que vêem no trabalho doméstico a destruição do lócus laborandi onde tem lugar a comunicação interpes-soal dos trabalhadores e sua coesão grupal e, em geral, pelo isolamento sensorial, psicológico e social com que penaliza aos indivíduos. Não por azar os trabalhadores de muitas empresas de novas tecnologias no Vale do Silício empunham o slogan compensatório High tech high tou-ch.

Todos os meio enumerados nesta seção aos que deveriam somar os derivados da informática, constituem o quadro das indústrias contemporâneas que, segundo um estudo da Sociedade Geral de Autores e Editores da Es-panha em 1999 – contribuíram com uns 5 por cento no conjunto da economia espanhola, situando-se com isso como quarto setor produtivo em importância e em que trabalham 758.000 pessoas.

A GÊNESE DO LAZER ELETRONICO

. No atual horizonte europeu a semana de traba-

lho de 35 horas está na O desenvolvimento das industri-as culturais desde o final da II Guerra Mundial esteve associado à diminuição da jornada de trabalho, que in-crementa o tempo de lazer e a melhora da capacidade a-quisitiva das classes populares. As extenuantes jornadas de trabalho de doze horas que estavam em vigor na Euro-pa há cento e cinquenta anos converteram-se em meras referências históricas para medir o progresso ocorrido desde o selvagem capitalismo manchesteriano até a soci-edade do bem estar e do consumo de nossos dias. Toda-via não chegamos à utopia desenhada por Paul Lafargue, o genro de Marx, autor de O direito a preguiça que em 1880 propunha já uma jornada de trabalho de três horas-

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volta da esquina, beneficiada também pelas políticas de horários e calendários flexíveis. Por enquanto e, se-gundo uma pesquisa de Invymark4 de 1998, 42,8 por cento dos espanhóis estariam dispostos a sacrificar 10 por cento de seu salário para ganhar 10 por cento mais de tempo de lazer, revelando uma interessante escala de prioridades. Embora seja obrigado recordar aqui que na sociedade pos-industrial japonesa, sujeita ao rigorismo moral confuciano, a dependência ao trabalho – classificada clinicamente como "conduta dependente não química" – segue produzindo mortes por estresse de trabalho.

Não é este o caso europeu, em que a sociedade pos-industrial implantou uma nova paisagem hedonista ao que denomina "sociedade do ócio", na qual o cres-cente tempo livre deveria cumprir essencialmente três funções. 1) o relaxamento ou descanso da fadiga acu-mulada; 2) a diversão ou entretenimento; 3) o desen-volvimento da personalidade. Existe abundante litera-tura sobre os usos que os cidadãos fazem do tempo de lazer, incluindo os usos embrutecedores ou degradantes ligados ao alcoolismo, a drogadição, ao vandalismo ou aos espetáculos alienantes e boa parte da delinquência dos fins de semana em nossas cidades está associada a essas patologias de conduta. Já se disse repetidamente que a meta das políticas do lazer intenta que este seja um espaço destinado a realização positiva da personalidade humana e a seu enriquecimento sensorial ou intelectual, no sentido em que os antigos falavam do otium cum dig-nitate, pois para os gregos o ócio era o período fecundo de reflexão e incubação que precede a criação. Mas por muito que se esforcem as políticas do lazer, não será fácil

4NT - Empresa de pesquisa e marketing espanhola criada em 1990.

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erradicar as bebedeiras coletivas ou as gangues de jovens engalfinhadas em brigas, corridas de carros ou atos de vandalismo nas noites dos sábados, que em sua brutali-dade expressam de um modo elementar uma insatisfação existencial ou social.

A extensão do tempo de lazer constitui-se num es-tímulo formidável para as chamadas "indústrias do lazer", que forneciam bens e serviços para serem utilizados por esse segmento privilegiado da vida, em que não sofrem com obrigações de trabalho ou sociais. As indústrias do lazer, que eram indústrias simplesmente marginais ou ornamentais no século XIX, são hoje n grades protago-nistas da dinâmica macroeconômica ocidental, como já havíamos sinalado.

Muitas das tecnologias de comunicação que enu-meramos brevemente na seção anterior conheceram, de-pois da II guerra Mundial, extensões e desenvolvimentos antes inimagináveis. Tal aconteceu com a radiofonia que, graças aos transistores (inventados em 1947 por Bardeen, Brattain e Shockley), converteram os receptores em arte-fatos miniaturizados, compactos e onipresentes que tem um proveitoso mercado parasita no expansivo mercado automobilístico. Na cidade de Los Angeles, devido a sua extensão e particular estrutura viária e urbana, pode-se falar, por exemplo, de uma verdadeira cultura autorradio-fônica, em que a mobilidade cidadã é física e acústica a sua vez, pois na prolongada solidão no interior do auto-móvel que atravessa sua suas expressas, o condutor apa-rece unido com o exterior mediante o invisível fio hertzi-ano que lhe conecta a um amplo espectro de possibilida-des. emissoras somente informativas ou especializadas em música de rock, ópera, etc. Não podemos conduzir um carro ou escrever vendo a televisão ou lendo um li-vro, mas podemos fazê-lo escutando a música de fundo de um alto-falante. Está claro que esta grande virtude

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pode degenerar-se na contrapartida de sua trivializa-ção, como mero "ruído de fundo doméstico". É famo-sa, neste aspecto, a reiterada resposta que muitas donas de casa norteamericanas ofereceram a uma pesquisa sobre as razões para sua fidelidade radiofônica. "È uma voz em casa", disseram em muitos casos, revelando assim involuntariamente a síndrome contemporânea do medo e da solidão, manifestada como um neurótico "medo ao silêncio".

A chamativa transformação da indústria radiofôni-ca desde 1950 esteve também associada à emergência das emissoras de frequência modulada (FM), a alta fidelidade e a estereofonia, progressos que cristalizaram também na erupção das discotecas como epicentro da cultura adoles-cente e juvenil. As discotecas, nascidas na sombra da im-plantação dos discos de microssulcos (de 45 e 33 1/3 rpm) liquidaram com um golpe os antigos salões de baile com orquestra e introduziram uma verdadeira revolução nos costumes juvenis, inseparáveis da cultura do rock e da cultura pop, com nomes tão brilhantes e fetichizados como Elvis Presley, The Beatles, Rolling Stones, Prince, Michael Jackson ou Madonna. Uma nova constelação de mitos nasceu catapultada pelas discotecas, os tocadiscos baratos, os rádios de automóveis e os walkman, em um fenômeno de sinergia midiática acelerada.

O impacto das novas estrelas musicais não foi so-mente sonora, senão também visual, inevitável na nova civilização da imagem. Elvis foi conhecido popularmente como The Pelvis, por seus expressivos movimentos, e os Beatles identificaram-se por seus cabelos longos. Prince e Madonna por suas descaradas posturas sexuais (a segunda revalorizou a roupa íntima nos cenários) e Michael Jackson pela anômala brancura de sua pele.

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Por outro lado, a estética e o capital simbólico das discotecas – novos territórios do prazer ritual – apoiaram-se em outras contribuições mitológicas da cultura de massas, em especial nas procedentes da ciência-ficção dos quadrinhos e das películas cinematográficas. Assim, os raios luminosos que cruzam e varrem as pistas de dan-ça evocam a iconografia das batalhas intergalácticas com raios laser, enquanto que nada se parece mais a uma me-sa de comando de um disc jockey, com seus controles e luminosidade intermitente, que a mesa de comando de uma astronave de ficção. Este mimetismo era explicável, pois os destinatários de ambas propostas culturais eram os mesmos, recrutados nos setores adolescentes-juvenis, a que o cinema se dirigia com uma linguagem estética que lhes era familiar. Teria que acrescentar que a função essencial do capital semiótico fornecido por essa parafer-nália a partir das telas era a de conseguir uma eficaz em-briaguez psicodélica e sensorial da audiência, uma vez que seus recorrentes signos de poder – astronaves fali-formes e supervelozes, armas devastadoras, computa-dores superpotentes – forneciam uma segurança ilusó-ria a sua audiência na fase de sua insegurança existenci-al, alentava uma consolação megalômana para suas frus-trações pessoais e permitia a projeção de suas pulsões agressivas.

A discoteca, transformada assim em novo templo da cultura pré-adolescente, adolescente e juvenil, arreba-tou muitos espectadores para os cinemas e Hollywood teve que reagir com o filme Embalos de Sábado a Noite (Saturday Night Fever), de John Badham, para atrair com as proezas coreográficas e eróticas de John Travolta, su-blimando suas frustrações em uma pista de dança, aos jovens que haviam desertado das salas escuras, falando-lhes precisamente de seus novos gostos e estilos de vida e

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inaugurando assim o gênero cinematográfico do disco-filme.

As discotecas triunfaram, também, pela funcionali-dade erótica de seu ritual, no ocaso da puritana década dos anos cinquenta. A música de baile, ao impor um rit-mo comum e compartilhado com os dançarinos, reforça seu vínculo emocional com uma sincronia que lhes con-verte em cúmplices gozosos de um mesmo ritmo, tal co-mo ocorre nas danças das tribos primitivas. Além de tal cumplicidade emocional, suas evoluções e contorções, nos ritmos agitados da música moderna, fazem que seus movimentos incluam expressivos movimentos pélvicos, de óbvio significado erótico, enquanto o suor axilar fresco de dançarinos exerce uma atração especí-fica, por sua transmissão de feromônios, para o bailari-no de sexo oposto. Trata-se, em última análise, de um ritual coreográfico fortemente desinibidor e muito pro-pício para as relações sexuais. A discoteca nasceu, em uma palavra, para propiciar coletivamente e com meios técnicos sofisticados o triunfo de Eros.

De maneira que as indústrias do som eletrônico se bifurcaram, como uma árvore do bem e do mal, para promover de um lado o isolamento radiofônico de mi-lhões de indivíduos, no interior de seus automóveis ou de seus lares e, de outro, para incentivar sua cálida so-cialização no interior de escuras discotecas. Esta bifur-cação funcional constituía uma prova esmagadora da plasticidade das tecnologias eletrônicas de comunica-ção para gerar orientações de conduta diversificadas.

Mas é mister recordar que o sistema sensorial hu-mano está programado para primar pela informação au-diovisual, diferentemente da maioria das espécies ani-mais, que dependem basicamente do olfato e do gosto. Esta primazia se reflete no vocabulário humano, pois de

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Da caverna a eletrônica

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dois terços a três quartas partes de todas as palavras que descrevem impressões sensoriais se referem à visão e ao ouvido. Por isso não há de se surpreender que, depois da emergência do tocadiscos e do rádio, a indústria eletrôni-ca que resultaria mais potente e influente e que constituiu de fato um desenvolvimento ou aperfeiçoamento da ra-diofonia seria a televisão.

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II A CULTURA DO ESPETÁCULO

O TELEVISOR. EPICENTRO AUDIOVISUAL

em imagens não há compaixão e muito menos ração política urgente", afirmou o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, referindo-se as tragédias coletivas que perio-dicamente explodem na África subsaariana (El

País, 2 de novembro de 1996). Com efeito, em nossa so-ciedade midiática as imagens certificam a realidade e, se não existem imagens, nada aconteceu e ninguém se alte-ra. Em outro extremo da urgência política, o sociólogo Pierre Bourdieu afirmou nitidamente, nas primeiras pági-nas de seu livro Sur la television, que a televisão é uma ameaça para a democracia. Estas opiniões tão extremas desenham um arco crítico tenso entre quem pede mais imagens e quem desconfia profundamente das imagens que recebemos. Involuntariamente, ambas opiniões, tão distintas, não fazem mais do que certificar o papel chave que a televisão desempenha na dinâmica sociocultural contemporânea seja por defeito ou por excesso.

Os antropólogos da vida cotidiana observaram com razão que o televisor passou a substituir, na estru-tura do espaço doméstico, o lugar e a função da antiga lareira. Antigamente a família se reunia em torno dela e focalizava sua visão em suas chamas. E a sua luz a avó contava contos a seus netos, que eram plenamente interativos porque as crianças podiam perguntar-lhe que fez depois a bruxa ou onde se escondera a prince-sa. O aparecimento do rádio não modificou este mode-lo de distribuição espacial porque o rádio não implica-va ao sentido da vista. Mas a tela do televisor, com sua

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luz fria, passou a substituir o fogo ígneo da lareira no coração da família e a impor seus temas de conversão despersonalizados. Os dados quantitativos são esmaga-dores acerca do protagonismo social deste novo foco de luz, como veremos mais adiante.

A VITRINE DOS DESEJOS O televisor doméstico é um aparelho que se inter-

põe – de modo interessado e nada inocente – entre a vi-são humana e a sociedade. E lhe é inteiramente aplicável o diagnóstico que há alguns anos formulou André Bazin sobre o cinema, a saber, que com sua intermediação o ser humano substitui com a visão seu prosaico mundo que se acomoda a seus desejos. Transformado em uma espécie de altar laico e pagão que ocupa um lugar privilegiado na casa, o televisor se constituiu em uma janela ou vitrine permanentemente aberta no interior do lar, para desfrute do voyeurismo vicioso de seus moradores. Ante seus u-suários deslumbrados vem a lembrança de James Ste-ward, o protagonista de A janela indiscreta (Rear Win-dow, 1954) que bisbilhotava a vida privada de seus vizi-nhos a ponto de descuidar de sua relação com sua gracio-sa noiva (Grace Kelly). A hipertrofia de sua visão inqui-sitiva havia absorvido tanto seus interesses pessoais, que havia produzido um desinteresse pelo seu vinculo sexual com o mundo real, em uma óbvia alegoria masturbatória.

Muito tem o televisor de "janela indiscreta", no sentido hitchcockiano do termo, embora constitua um curioso nó de tensão entre os conteúdos sensualistas e hedonistas que a tela geralmente propõe ao público e a desensualização da imagem, mera representação visceral plana, privada de tato e cheiro – dois ingredientes cruci-ais na relação erótica -, despojada da sensualidade do mundo real. Para compensar tais carências, a imagem

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deve exacerbar sua carga de sensualidade ou de erotismo, segundo o caso, delatando a artificialidade de sua propos-ta. É um tema sobre o qual haveremos de voltar em outro capítulo, ao analisar as origens da pornografia midiática.

Ao contrário da leitura, a televisão dirige-se antes a esfera emocional do sujeito que a sua esfera intelectual. E por isso foi muito pertinente o slogan cunhado por Fellini para combater as cansativas pausas da publicidade co-mercial. "Não se interrompe uma emoção". Contraposta ao rádio, seu antecessor midiático, a televisão mostra corpos e, por soma, com a segmentação dos enquadres, os parcela de um modo funcional para a eficácia da co-municação audiovisual. Mas esta característica permite que a linguagem não verbal dos corpos apresentados con-tradiga às vezes abertamente os conteúdos verbais trans-mitidos por tais quadros. Um rubor ou um puxãozinho nervoso na saia podem dizer muito mais que uma centena de explicações, pois o corpo é mais rebelde a domestica-ção que a palavra.

Em nossa cultura, portanto, a televisão é prevalen-temente uma máquina produtora de relatos audiovisuais espetacularizados – em diversos gêneros e formatos - portadores de universos simbólicos, desenhados e difun-didos para satisfazer os apetites emocionais de sua audi-ência. Não é raro que sua economia produtiva, e depois sua titubeante etapa pioneira, a televisão ao vivo tenha sido amplamente superada pelo videotape. Este – majori-tário hoje nos canais – permite um controle censor sobre o material emitido (censura política, sexual, religiosa, etc.) que é impossível, ou muito difícil, na programação ao vivo. Por conseguinte, as mensagens erótica emitidas pela programação pregravada são mensagens institucio-nalmente reguladas, calibradas para atender ao delicado equilíbrio entre atrativo comercial e respeitabilidade so-

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cial, entre permissividade e prudência moral e atendendo a fatores contextuais tais como o horário de emissão.

Temos mencionado ao erotismo porque constitui, sob formas e propostas muito diversas, diretas ou indire-tas, o chamariz supremo para o olhar. E não só para os eroticamente insatisfeitos pois inclusive os eroticamente satisfeitos podem aspirar legitimamente a uma maior cota de prazer ou a novos projetos para o futuro. Freud sabia o que dizia quando fez da libido o motor primário de nossa conduta, que atua de modo aberto ou escondido em nossa produção imaginária. Inclusive as imagens aparentemente mais neutras acabam por revelar com frequência seus re-cortes ocultos. Por exemplo, nas emissoras esportivas, com a exibição de corpos jovens em treinamentos, nos vestiários, unidos em abraços, beijos e carícias depois de um gol..., até o ponto de desvelar o que Pierre Sorlin chamou de a "homossocialização" esportiva (Les fils de Nadar. Le siècle de l'image analogique). E a repetida exi-bição em 1992 das imagens documentais de uma jovem somali que havia feito sexo com um soldado francês e que por isso fora despida violentamente em público por seus compatriotas fazia duvidar legitimamente de que se tratava de uma denuncia ou de uma complacente exibição sexual de coloração sádica.

Tudo o que foi dito até aqui torna clamorosamente evidente no caso dos anúncios publicitários, cuja única função consiste, precisamente, na exibição dos desejos de sua audiência. Sobretudo desde a segunda metade dos anos sessenta, na Europa a publicidade tem espetaculari-zado o corpo feminino passivo (vale dizer, oferecido submissamente), como contraponto de uma virilização ativa do corpo masculino, ainda que desde os finais da década tenha sido aberto espaço para o estereótipo sexual do homem-objeto. Mas em linhas gerais – toda a genera-lização absoluta é inexata -, a publicidade materializou

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agressivamente a sexualidade feminina, apresentando-a com um olhar masculino.

Não só isso. A publicidade contribuiu energica-mente para excitar os desejos (objetuais) do público atra-vés de desejos eróticos interpostos, suscitados por mode-los atraentes e de cenografia hedonistas. Um universo em que a imperfeição física está excluída por definição e em que as microhistórias exibidas estão encaminhadas a um gratificador final feliz, os objetos de consumo tem sido também convenientemente erotizados pelo desenho, pela iluminação e pela câmera. Não é preciso desencavar os velhos tratados de Ernest Dichter5 para reconhecer sím-bolos fálicos em vidro de perfume, em chaves de auto-móveis, em sorvetes que se lambem e até em tacos de bilhar (em uma publicidade da Lucky Strike).

Uma função central da televisão comercial tem sido a de reduzir os cidadãos à condição de consumi-dores, a ponto de se poder afirmar que a função pri-mordial da televisão comercial tem sido a de difundir publicidade recheada de programas de entretenimento. O erotismo desempenha uma função central neste he-donismo consumista, como tem assinalado a professora de publicidade Guadalupe Aguado (da Universidad Antonio de Nebrija) ao explicar que o erotismo na pu-blicidade utiliza-se com "a intenção de propiciar uma publicidade persuasiva e sugestiva, de onde a mensa-

5 NT - Ernest Dichter, psicólogo austríaco naturalizado ameri-

cano especializado em marketing, considerado "pai da pesquisa de motivação. Pioneiro na aplicação da psicanálise freudiana a con-ceitos e técnicas para as empresas, em especial para o estudo do comportamento do consumidor no mercado. Idéias que estabele-ceram influências significativas sobre as práticas da publicidade da indústria no século XX. De acordo com um New York Times artigo de 1998, ele "foi o primeiro a cunhar o termo grupo de foco e enfatizar a importância da imagem e persuasão na publicidade".

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gem publicitária cumpra uma função de reclame. Persu-asiva porquanto com isso busca-se provocar atenção, in-teresse, desejo e ação. Sugestiva por ser o instrumento mais habitualmente utilizado na publicidade subliminar".

Em relação à publicidade noturna de serviços eróti-cos, desde telefônicos até serviços de contato pessoal e de massagens, por sua obviedade, nada tem que se acrescen-tar sobre ela.

O PÚBLICO E A PROGRAMAÇÃO Segundo dados do Centro de Investigações So-

ciológicas de 1998, na Espanha cada casa conta, como média, com 2,2 televisores, superando amplamente em número ao das lavadoras e tocadiscos. E a audiência diária da televisão por habitante era de 211 minutos (umas três horas e meia) colocando-se no ranking eu-ropeu somente atrás da Turquia (219'), Reino Unido (2156') e Itália (215). Mas as donas de casa espanholas consomem uns 25 por cento mais televisão que o con-junto da população, com uma média diária de quatro horas e 49 minutos. E uma informação da UNESCO acrescenta que as crianças da União Européia vêem a televisão durante um terço do tempo que estão desper-tas. Ainda que o Centro de Investigações Sociológicas talvez nos console ao acrescentar que em 33 por cento dos lares espanhóis a televisão é utilizada como ruído de fundo enquanto se conversa e se fazem outras tarefas, sem que ninguém a observe. È dizer, vem a desempenhar um papel parecido ao de um animal de companhia.

As funções teóricas dos canais de televisão são, como é notório, a de informa, formar e divertir. Mas esta oferta está condicionada pela psicologia do espectador

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televisivo que é muito diferente da do espectador do ci-nema, do meio audiovisual que o precedeu historicamen-te sobre o qual modelou seus recursos expressivos. O público cinematográfico está formado por espectadores seletivos, que elegem um programa concreto, se mobili-zam para dirigir-se a uma sala pública e pagam um preço por sua entrada. É, portanto, um público altamente moti-vado. E público da televisão, ao contrário, é um público indiferenciado, caracterizado por sua grande heterogenei-dade social e cultural. E é sabido que quanto mais exten-so e indiferenciado seja um público, mais medíocre e convencional é seu gosto. Se a isso somarmos o fato de que o televisor, doméstico e gratuito, põe-se em funcio-namento preferencialmente ao final da jornada de traba-lho, quando os usuários chegam cansados a suas casas buscando o repouso físico e mental, vai se entender que das três funções antes expostas, a de "divertir" seja con-siderada com frequência a prioritária e se programe pre-ferentemente nos canais abertos um "chiclete para os o-lhos" em forma de guloseimas audiovisuais que constitu-em fast food para o espírito, com seus estímulos primá-rios regidos pela Lei do Mínimo Esforço Psicológico e Intelectual do público. Esta norma não faz mais que apli-car docilmente o tanto que os etólogos descobriram acer-ca do "olhar preferencial" dos animais. quanto mais exci-tante é um estímulo visual básico para a espécie – estímu-lo sexual, nutritivo, antagônico, etc. – mais probabilida-des tem de atrais o olhar do animal.

Isto não supõe uma maldade intrínseca das redes, nem uma conspiração perversa para corromper o gosto da população, senão uma estratégia relativamente racional para satisfazer as expectativas do público majoritário, ainda que agravada por sua permanente tentação a "com-petir por baixo" com as redes rivais. Por isso inclusive as televisões públicas tratam de evitar converter-se em um

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gueto minoritário do high-brow, que lhes isole do grande público e, por isso, Umberto Eco pode afirmar a alguns anos que não é a televisão que faz mal ao público, senão que é, paradoxalmente, o público que faz mal a televisão. Dito em termos mais técnicos podemos afirmar, genericamente, que os valores transmitidos preferentemente pela televisão hertziana são os do hedonismo, a ludofilia, o escapismo, o consumismo e a meritocracia. E, invocando a autoridade de J. K. Galbraith podemos afirmar que se esta programação busca fundamentalmente a aceitação das pessoas "socialmente satisfeitas", não é menos certo que oferece também sonhos desejáveis para as pessoas pobres e marginalizadas, para os "socialmente insatisfeitos". Ao fim e ao cabo, o direito a sonhar não custa dinheiro. Um programa da rede italiana RAI-3 intitula-se precisamente Telesogni (Telesonhos).

Esta situação obedece a uma rigorosa lógica histó-rica. Quando as massas eram demasiado pobres para ser consumistas, os critérios oficiais de gosto na sociedade os definiam, prevalentemente, as classes ilustradas, social-mente restringidas, mas agora são as classes consumido-ras as que determinam ao mercado seus gostos triviais, a que a televisão não faz mais do que servir com compla-cência.

A diversão também tende, inevitavelmente, a de-sembocar na informação-espetáculo e no sensacionalis-mo, que para muitas redes é a panacéia para conquistar cotas de mercado e sobreviver na luta pela competência segundo a citada estratégia de "competir por baixo". O sensacionalismo – a efêmera sensação que faz cócegas os sentidos – tende a impor-se empurrado pelas urgências competitivas, sobre o perceptualismo, concebendo a per-cepção como forma de conhecimento da realidade, supe-

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rior a sensação. Em muitos telejornais norteamericanos, por exemplo, os acontecimentos apimentados da crônica negra já ocupam a terça parte de suas notícias, em detri-mento de outros interesses informativos – políticos, eco-nômicos ou sociais – de mais peso. Alimenta-se assim a que tem sido chamada de "bulimia de sensações" da au-diência televisiva.

O exemplo dos reality shows, cuja emoção passio-nal autenticada desbancou em parte para as audiências a tradicional emoção passional fingida das telenovelas – classificada às vezes como "pornografia feminina" - per-mite antecipar qualquer comentário acerca da prioridade sensacionalista. A crueldade seletiva do zapping anima as políticas de programação e trata de evitar as quedas da tensão emocional. O sensacionalismo também tem afeta-do a programação erótica, ainda que a pornografia radical (hard core) seja reservada, todavia, em quase todos as partes, para os canais codificados ou a cabo. E desde 1992, devido a uma iniciativa macabra da Tele-Montecarlo, iniciou-se a polêmica sobre a transmissão de execuções de pena capital, alguns canais estão confusos com escaramuças com os regulamentos e com a tolerân-cia social as novas cotas de permissividade que se podem autorizar progressivamente para subir o teto de suas audiências. Ainda que usassem o álibi de que durante séculos as execuções foram levadas ao publico, sua estratégia de estimativa se baseia na realidade na certeza de que as imagens proibidas, a longo prazo, acabam por ser autorizadas. Assim, a pornografia do sexo sucederá a pornografia da morte. Mas este panorama deverá ser matizado em virtude do novo mapa televisivo que está acrescentando a televisão generalista por via hertziana as televisões monográficas ou temáticas por cabo ou codificadas. Ao tradicional broadcasting acrescentou-se o narrowcasting pago, de caráter seletivo, que não só emergiu nos países de economia forte, já que a televisão

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de economia forte, já que a televisão a cabo está ampla-mente difundida em muitos países da América Latina (a-inda que às vezes o cabo se utilize somente para melhorar a qualidade do sinal, como se faz para desviar das massas de arranha-céus de Nova York). A finalização deste pro-cesso de seletividade crescente culminará com a fórmula de "televisão a la carte" apregoada por Nicholas Negro-ponte do Massachussets Institute of Technology e sobre a que haveremos de voltar.

Esta evolução da indústria televisiva confirma que o público não é só uma massa indiferenciada, senão que é segmentável em franjas culturais com interesses defini-dos, como havia descoberto muito antes a indústria edito-rial e jornalística e, mais tarde, a da música, quando es-teve claro que haveria um público para Tchaikowski e outro para as canções de verão. No campo do cinema, faz alguns anos, é um fato evidente que, além da oferta he-gemônica e planetária dos espetáculos produzidos pelas empresas multinacionais de Hollywood, existe uma ofer-ta intersticial de cinema do autor, dissidente ou alternati-va em relação aqueles grande espetáculos e que tem seu lançamento publicitário nos festivais de cinema logo co-nhecendo sua difusão planetária em pequenas salas, ori-entada para a "imensa minoria internacional", sempre, está claro, que consiga encontrar os canais de distribuição adequados. Ao lado dos megapúblicos que convoca Spi-elberg existe uma elite cultural para acolher com interes-se os filmes de Victor Erice ou Manoel de Oliveira. Ao fim e ao cabo, também as minorias constituem um mer-cado interessante e a televisão começou a dar conta disso há pouco tempo, como também detectaram algumas em-presas distribuidoras de vídeos aos videoclubes.

O NOVO ECOSISTEMA CULTURAL

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A erupção da televisão comportou também uma drástica reestruturação do ecossistema cultural contempo-râneo. A televisão não substitui a outros meios de comu-nicação (como o cinema sonoro substituiu o cinema mu-do), mas sua importante absorção do tempo de lazer dos cidadãos afeta decisivamente o consumo das restantes indústrias culturais. Em um país em que a metade dos espanhóis que sabe ler não lê livros (pesquisa Los españoles y los libros para a Confederación Española de Gremios y Asociaciones de Libreros, 1998) a televisão tirou certamente tempo da leitura em muitos casos, mas também absorveu publicidade para a imprensa escrita e, sobretudo, espectadores do teatro e do cinema. Mas esta reordenação do ecossistema cultural, com o declive de frequência a espetáculos públicos, há de se por em pers-pectiva em relação com a diversificação geral dos usos do tempo de lazer nos últimos trinta anos, com as disco-tecas convertidas em epicentro da cultura adolescente e juvenil, com a generalização do week-end motorizado nas classes médias, com a futebolmania, etc. A televisão, de fato, não é a única responsável pelo declive da frequência a espetáculos públicos, mas desempenhou um papel pro-tagonista neste fenômeno.

Tornada clara a complexidade do quadro das indús-trias de lazer da atualidade, é bom reiterar que a entroni-zação do televisor ao centro do ecossistema cultural afe-tou profundamente a industria de produção visual, que antes se limitava a fornecer películas que se exibiam em salas públicas. Ao aparecer a televisão, o espetáculo ci-nematográfico havia se assentado, ao longo de meio sé-culo, como um rito coletivo em grandes salas, concele-brado por um público expectante e subjugado ante uma tela de alta definição, cuja imagem cobria toda sua área retinal provocando sua imersão ótica no espetáculo; um público unido por uma reverente e silenciosa comunhão

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coletiva no seio de uma envolvente escuridão total. An-tes, as películas se viam somente desta maneira, mas hoje somente uma minoria as vê nesta liturgia social, já que a maioria de seus expectadores as vê isolados em suas salas domésticas iluminadas e em uma pequena tela eletrônica de baixa definição.

Na história dos meios de comunicação tem sido frequente que os mais modernos substituem os mais anti-gos, mas nem sempre tem sido assim. O arcaico livro gu-tembergiano segue vivo depois de cinco séculos de seu invento e a televisão não aniquilou o rádio, ainda que te-nha mordido o público de um e de outro. Mas o cinema sonoro matou o cinema mudo e o filme colorido eclipsou o em preto e branco. A lei da substituição midiática está governada pelo princípio de seus usos e gratificações, o que significa que os meios com usos similares, mas com gratificações mais intensas destroem aos menos gratifica-dores. O rádio e a televisão oferecem usos distintos, mas não assim o cinema mudo e o sonoro, que substituiu o anterior. E o cinema sonoro, por sua vez, golpeou dura-mente ao teatro, ao retirar-lhe as imagens e as vozes de seus melhores atores, mas o teatro segue oferecendo a presença viva de seus atuadores, que nenhum meio de reprodução pode alcançar, enquanto as biotecnologias não consigam atores clonados.

Logo a televisão golpeou as salas de cinema, ao oferecer um uso similar, mas com uma gratificação supe-rior para muitos expectadores, apesar do tamanho de sua tela, a baixa definição de sua imagem e os cortes da pu-blicidade comercial. Mas se vis dentro do lar e este fator demonstrou ter um peso muito considerável nas opções das audiências, pois foi mais apreciado que a audiência nas salas públicas, distantes, caras e menos confortáveis. Com isso, claro está, quebrou-se o que de rito comunitá-rio tinha o cinema, herdado do velho stadium, do circo e

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do teatro, com suas importantes sequelas psicológicas de interação pessoal e socialização, que fazem que os ado-lescentes vão ao cinema por razões extracinéfilas (gru-pos, namoros), provocando, por certo, a invasão do mer-cado dos chamados "gêneros adolescentes" (terror, aven-turas, etc.). A fruição comunitária é muito importante em alguns gêneros. as comédias devem ser vistas em multi-dão para que o riso atue, como dizia Bergson, a guisa de eco social. Por isso nas comédias televisivas são acres-centadas bandas sonoras com risos.

A indústria cinematográfica desenvolveu-se histo-ricamente, por outro lado, como uma fábrica em que cada filme era um protótipo singular e diferenciado, ainda que a standardização produtiva dos grandes estúdios se basea-ra na política de gêneros e de fórmulas comprovadas. Por muito estereotipados que fossem os produtos de gênero (western, policiais, etc), cada filme era um protótipo dife-renciado e isolado. A televisão, ao contrário, em razão de sua voraz programação contínua, baseou-se na serializa-ção de seus produtos audiovisuais, a partir da redundân-cia do que já é familiar e que constitui "o mesmo, mas cada vez distinto" (modelo no qual "o mesmo" é o con-fortavelmente familiar e querido e o "distinto" é o surpre-endente e o novo naquele âmbito familiar). Neste sentido, o risco e a originalidade dos produtos cinematográfico eram muito superiores aos requeridos pelos produtos te-levisivos serializados, que tendem a colonização formal, em razão das técnicas fordistas que regem sua produção. Os mais próximos ao taylorismo e ao fordismo audiovi-sual são as telesséries, telenovelas e comédias de situação norte-americanas, com uma produção muito homogênea, rápida e barata que mobiliza equipes de roteiristas e de diretores, que rodam ou gravam varias cenas ou episódios de uma vez, mas que não podem contar ainda com atores clonados que atuem em varias cenas ou episódios simul-

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taneamente, pelo que constituem seu capital mais apreci-ado e mimado. Estas telesséries, telenovelas e comédias taylorizadas estão regidas pela redundância argumentati-va que o público conhece e aprecia e, como já se disse, nelas a regra do familiar e do conhecido só cede ante a surpresa do imprevisto para sustentar melhor o familiar.

Apesar destas limitações criativas, a televisão aca-bou por ganhar a batalha econômica do cinema, e não só a batalha do público ou do mercado. Não só os estilos, os ritmos, o planejamento televisivo contaminou a muitos filmes para a tela grande, como foi visível no celebrado Kramer vs Kramer (1979), de Robert Benton, que era mais que uma soap opera televisiva para a tela grande. A contaminação se dá, muitas vezes, porque seus produto-res são conscientes de que o grosso de sua carreira co-mercial depois da estréia, se dará nas telas pequenas. E até acabaram por adotar a preguiçosa e conservadora forma de serialização chamada sequels, como ocorre com as séries de Batman, Indiana Jones, etc., para assegurar-se da fidelidade do público depois de seu êxito compro-vado, copiando um padrão televisivo.

OPULÊNCIA AUDIOVISUAL?

Complementando os efeitos devastadores que a te-

levisão teve sobre a exibição cinematográfica em salas públicas, a análise da programação televisiva demonstra que os espaços mais apreciados são aqueles em que di-fundem precisamente películas cinematográficas, que com frequência se programam no privilegiado horário nobre (prime time). Os experts referiram-se a "bulimia televisiva de filmes" para designar o voraz apetite cine-matográfico do meio e um estudo de março de 1999 so-bre as subscrições a canais por satélite na Espanha corro-borou que uns 33 por cento estavam motivadas pelos

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programas de filmes, seguido de uns 27,5 por cento pelos jogos de futebol (ainda que se divulgue menos que a pro-gramação pornográfica dos canais pagos figure entre as mais visitadas).

Mas as películas cinematográficas, como antes se apontou, constituem unidades diversificadas e indepen-dentes entre si, feitas para a tela grande geralmente com mais meios e ambição que as produções especificamente televisivas e que no novo meio às vezes se programam agrupando-as em ciclos (de gêneros, estrelas ou diretores) para reforçar a fidelidade da audiência, em concordância com as estratégias serializadoras da televisão. Esta pro-gramação privilegiada, que supõe um reconhecimento implícito da hierarquia artística da produção cinemato-gráfica em relação com a televisiva, mais modesta e a-pressada, põe em relevo a contradição entre a produção serializada que apela a fidelidade do público e as unida-des descontínuas e heterogêneas próprias da indústria cinematográfica tradicional, uma indústria transformada agora em boa parte para fornecer produtos especifica-mente televisivos para as redes.

Por conseguinte, antes falávamos de cinema e ago-ra há que se falar genericamente ante a mescla de produ-tos e canais de difusão, de audiovisual, como a província central e hegemônica da cultura de massas contemporâ-nea. A rigor deveria se falar de audiovisual inclusive quando se evoca ao velho cinema mudo, porque se exibia habitualmente com acompanhamento musical de um pia-nista ou de uma orquestra na sala. De modo que a Galá-xia de Lumière, que nasceu ao final do século XIX como derivação do instantâneo fotográfico, posto a serviço do princípio da Lanterna Mágica, converteu-se cem anos depois em uma densa constelação eletrônica, fecundada pela Galáxia Marconi, em que figuram a televisão, o ví-deo e a imagem sintética produzida em computador. Tem

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muito em comum? Todas elas são imagens móveis que vemos em uma tela, que é seu suporte espetacular. Cons-tituem, portanto, uma mesma linguagem, porém falam diferentes dialetos.

O protagonismo da televisão no âmbito audiovisual teve o efeito, como acabamos de apontar, de gerar uma interação com a indústria de produção cinematográfica. Nos Estados Unidos da América do Norte, antes que em nenhum outro país, produziu-se um deslocamento e uma osmose de profissionais entre cinema e televisão. Não só atores famosos foram contratados pela telinha para poder potencializar seu poder de atração senão que pouco de-pois roteiristas e produtores eficientes da televisão irrom-peram, trabalhando com meios escassos e a rapidez que impõe o meio, nos estúdios cinematográficos (Delbert Mann e seu roteirista Paddy Chayefsky com Marty em 1995, por exemplo). Logo depois, na Europa, as televi-sões estatais iniciaram a produção de películas ou de sé-ries de diretores cinematográficos para o novo meio e para a tela grande, como o fez a RAI (Radiotelevisione Italiana), com obras de Roberto Rossellini (pioneiro nesta iniciativa), Fellini, Lattuada, os irmãos Taviani, etc. E o Channel Four britânico converteu-se nos últimos anos em um potente motor do cinema de seu país. O fenômeno se generalizou no continente e apareceram aqui e ali pro-dutos audiovisuais de desenho multimídia, comercializa-dos em formatos distintos, desde longametragens para cinemas que se convertem em minisséries para a telinha até série televisiva que logo se transforma em película para cinemas. Mas esta estratégia levanta sérios proble-mas estéticos de estrutura narrativa, ritmo, etc., porque não é fácil servir a dois amos com exigências distintas. Mas Ingmar Bergman ofereceu um exemplo modelar de versatilidade com seu Segredos de um Matrimônio (Sce-ner ur ett äktenskap, 1973), que foi primeiro uma série da

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televisão e que derivou logo um longametragem para as salas de cinema. Embora seu êxito artístico se deva em boa parte a que sua história não tinha propriamente uma trama ou intriga, senão que consistia em uma acumulação de cenas independentes de uma vida conjugal, tal como seu título indica.

O horizonte que contemplam os comunicólogos com otimismo é o do desenvolvimento crescente da cul-tura audiovisual, em todas suas formas, através da cha-mada sociedade dos quinhentos canais, que faria realida-de a profecia de Abraham Moles sobre a "opulência co-municacional". A evolução não é só quantitativa, senão também qualitativa passando-se do obrigado "menu tele-visivo", imposto a toda audiência por igual, a oferta di-versificada de canais temáticos. Assim, o auge dos canais pagos de narrow-casting está segmentando as audiências e mudando a paisagem televisiva, como antes assinala-mos, em seu trânsito do mass-media aos group media. A meta é a substituição do "menu televisivo" para a "televi-são a la carte", caracterizada pela pluralidade e variedade da oferta, acrescentada com a existência de videotecas, serviços de teletexto e videotexto e de banco de imagens. Mas também este âmbito está ameaçado pelo espectro da superoferta e pela capacidade do mercado, como veremos em outro capítulo. Nos Estados Unidos da América do Norte, país consumista por antonomásia, depois da ex-plosão da oferta, nos últimos dez anos produziu-se uma queda no crescimento dos canais pagos e se pensa que se existe crescimento da demanda, este será muito lento.

SONHOS ELETRÔNICOS Antes dissemos que os valores que transmite preva-

lentemente o sistema televisivo são os do hedonismo, a ludofilia, o escapismo, o consumismo e a meritocracia,

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para satisfazer as necessidades da economia do desejo. É certo que existem gêneros mais propícios que outros para veicular tais valores e as ficções serializadas figuram en-tre seus trampolins mais funcionais. Tais ficções são her-deiras do melodrama e da novela de folhetim do século XIX, gêneros que tem sido bem estudados no mundo a-cadêmico. Sabemos que as autoridades czaristas, por e-xemplo, promoveram a difusão dos melodramas teatrais na Rússia preindustrial para distrair com isso as agonia-das classes populares de seus agonizantes problemas ma-teriais. Suas fantasias cumpriam, indiretamente, a função que o psicanalista Felix Gattari considerou as mesmas como "divã do pobre". Na mais confortável sociedade pos-industrial seguem desempenhando uma parecida função balsâmica para muitas donas de casa e por isso têm sido rotuladas às vezes como "pornografia feminina". As famosas telenovelas fundacionais do final dos anos setenta, que desenvolviam polpudas e dilatadas sagas fa-miliares ambientadas no jet-set estadunidense (Dallas, The Colby, Dinastia), exemplificaram bem os dramas e personagens lindos e ricos, mas não eram felizes, defen-dendo com suas histórias junto às audiências que os pila-res que sustentam o mundo são o dinheiro e o sexo. Mas a maior parte de seus personagens, sobretudo os mais ri-cos, não eram felizes e aí radicava um importante "xis" da questão que uma novela mexicana enunciou com mais brutalidade ao escolher como título Os ricos também choram. No seio destas sagas se formam os dois grandes arquétipos femininos que configuram sua bipolaridade mítica e ambos tinham suas origens em dois arquétipos da Bíblia. Eva se convertia na Grande Tentadora e, tal como narra o Gênesis, depois da mordida de Adão trans-formava-se na Culpada. No outro pólo, como contraste,

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alçou-se descendente da Casta Suzana6, cuja virtude seria ao final recompensada. Mas cada um desses arquétipo antagônicos conheceu variantes que se falam também nos textos da Bíblia, como Betsabé (a adúltera por cálculo) ou Maria Madalena (a pecadora arrependida).

No Brasil e em outras partes do mundo uma tele-novela não começa a ser gravada ou rodar-se até que s e tenha escrito uma terça parte de seu roteiro. Às vezes as respostas do mercado vão orientando aleatoriamente a evolução da ação e as condutas dos personagens. A em-patia da audiência com estas dilatadas ficções é bem co-nhecida e vale a pena analisar as razões de tão intensa adesão coletiva.

A primeira deriva da existência do personagem como presença doméstica, como um familiar a mais, em virtude de seu caráter habitual no espaço do lar. Ao con-trário do que ocorre ante a distante tela do cinema, o tele-visor impõe uma distância curta e coloca o personagem na iconosfera íntima do telespectador, no interior de seu próprio habitat.

A segunda está associada às necessidades da este-reotipação caracteriológica do personagem, como um arquétipo estável e reconhecido facilmente pelo público, mediante situações e efeitos recorrentes, como os que eram usuais no velho teatro de melodrama e na novela de folhetim.

A terceira deriva do que os protagonistas dessas di-latadas ficções serializadas se caracterizam por um fluxo biográfico contínuo, como o dos seres vivos, como de seus próprios espectadores. É sabido que a estruturação deste fluxo novelesco, em que os personagens evoluem e se transformam, foi uma conquista trabalhosa do cinema,

6 NT - História narrada na Bíblia, no Livro de Daniel (Dn 13, 1-64)

sobre uma jovem acusada injustamente de adultério, julgada e absolvida.

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que data com o aparecimento de Avaricia (Grred, 1923) de Erich von Stroheim, baseada em uma extensa novela naturalista de Frank Norris, cuja versão original durava mais de oito horas, a duração de uma modesta telenovela atual. Os produtores mutilaram aquela duração necessária para a lógica narrativa evolutiva de Stroheim, que para ele era perfeitamente funcional. Esta estrutura impõe, como se sabe, graves obrigações aos roteiristas, que se encontram ante fluxos vitais imprevisíveis, às vezes de-terminados pelas respostas do mercado. Em ocasiões é necessário matar um personagem antes do tempo, porque o público se aborrece ou porque o ator morre (como em Dallas, quando o intérprete de Jack faleceu inesperada-mente) e, inclusive, ressuscitar com estranhos artifícios a um personagem morto (que na realidade saiu de viagem sem avisar), pois sua presença é reclamada imperativa-mente pelos protestos do público.

A soma destas três características permite uma efi-caz identificação-projeção por parte da audiência, que vive por procuração, de um modo visceral, grandes pai-xões e grandes dramas, que lhe fazem sentir-se superior em uma operação de autoenobrecimento ou autossubli-mação. Na realidade este fenômeno é bastante complexo, como nos explicam os psicólogos. O espectador vive na realidade um desdobramento projetivo, de modo que se sente solidário e se identifica com o personagem positivo, em quem vê seu semelhante, digno de sua simpatia, en-quanto libera suas frustrações e suas ânsias destrutivas através do personagem malvado, do transgressor moral. Ao fim e ao cabo, em todo telespectador coexiste um Dr. Jeckill e um Mr Hyde, esses reflexões do superego e do eu que Stevenson idealizou no plano narrativo e fantásti-co antes de Sigmund Freud. E uma boa ficção é aquela que é capaz de satisfazer simultaneamente as duas neces-

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sidades psicológicas opostas do indivíduo, a do amor e a do ódio.

A influência de algumas telenovelas tem sido as vezes enorme, como documentam alguns episódios pito-rescos. Assim, em 1995, as seguidoras da telenovela bri-tânica Brookside (com cinco milhões de espectadores ao longo de dez anos) se rebelaram raivosamente contra seu desenlace onde um juiz de ficção condenou a penas de prisão a seus protagonistas, manifestando-se as ofendidas em multidão ante o edifício Meresy Television, a produ-tora de Liverpool. Pretendiam, logicamente, mudar o des-tino daqueles personagens inventados com cujas desven-turas haviam se identificado ao longo dos anos. Os psicó-logos conhecem este fenômeno com o nome de "disso-nância cognitiva" e se produz quando surge uma discre-pância desagradável entre as expectativas de um sujeito e uma mensagem recebida. Em julho de 1999 a jovem se-negalesa Khady Sene, admiradora da novela mexicana Marimar, morreu de infarto por causa da emoção de uma cena em que a protagonista era ameaçada por sua rival com uma arma (El País, 14 de julho de 1999).

Visto o desenvolvimento exuberante que tem co-nhecido o chamado "jornalismo do coração"7 – que inun-dou todas as telas, prejudicando as vendas de seus rivais – surge a dúvida se aquelas ficções de ricos e famosos inspiraram-se nos estereótipos canônicos de tal jornalis-mo ou bem os famosos da realidade estão imitando aque-las figuras de ficção, segundo o famoso paradoxo de Os-car Wilde. As fronteiras são indefinidas e nunca sabere-mos se, como em A rosa púrpura do Cairo, algum perso-nagem sairá da tela e passeia agora pelas festas mundanas de nosso cotidiano.

7 NT - Imprensa rosa – espécie de jornalismo dedicado a vida de ce-

lebridades e do show business, especialmente popular na Europa.

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A imprensa rosa e a imprensa amarela8 que encon-traram uma boa acomodação no tubo eletrônico satisfa-zem os apetites emocionais de grandes audiências porque apresentam os seres humanos como sujeitos de grandes paixões, sejam amores, zelos, cobiça ou depravação, co-mo nos cenários grandiloquentes do velho teatro de me-lodrama. E desse modo se infere que a grande História – com H maiúsculo – é um cenário de paixões vulcânicas e que seu tecido se constrói ou se destrói, a golpe de pai-xões. Mas se a imprensa rosa originou-se historicamente de um acordo tácito entre o exibicionismo narcisista dos sujeitos públicos e o voyerismo de sua audiência, as vezes os sujeitos público não podem controlar a voracidade dos meios e aquele pacto se rompe. Se os sujeitos famosos existem para ser celebrados midiaticamente, às vezes os sujeitos narcisistas encontram-se com desgostos ou resul-tados não desejados porque não mediram bem a voraci-dade dos meios ou acreditavam que podiam controlar seus apetites, oferecendo-lhes doses prescritas e medidas de sua carne e de sua alma. Mas já se sabe que dando carne à fera esta não se converte ao vegetarianismo, se-não o contrário. E isso ocorre quando se quebra o pacto de cumplicidade entre o famoso e os meios destinados a celebrar sua imagem. Exemplo. Diana de Gales sacrifica-da no altar midiático.

O panteão dos ricos e famosos que aparecem na te-la – tanto os reais como os de ficção – geram modelos de comportamento na audiência, sobretudo naqueles seg-mentos mais vulneráveis intelectual ou emocionalmente. Esse mimetismo tem uma base biológica perfeitamente comprovada. Quando um jogador de tênis ganha uma

8 NT - Manchetes de catástrofes, incluindo fotos e informações deta-

lhadas sobre acidentes, crimes, adultério e envolvimentos políticos Em países de língua inglesa são chamados "tablóides" porque eles tendem a ter formato menor que o habitual de jornais de página.

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partida, aumenta seu nível de testosterona no sangue e se sente eufórico, exatamente igual que os primatas que se transformam em machos dominantes de seu grupo. Para dizer de forma mais lapidada. a biologia premia o êxito através de descargas químicas. O êxito social eleva o ní-vel de andrógenos no varão e o enamoramento produz a amina cerebral feniletilamina, que estimula euforicamen-te o sistema nervoso.

A vontade de mimetizar a conduta dos ricos e fa-mosos que aparecem na tela está, pelo dito, perfeitamente motivada no plano químico. E esta aspiração muitas ve-zes pode levar à frustração. Em 1994, um estudo da Uni-versity of Chicago e da State University of New York concluía que a vida interessante e eroticamente muito ativa dos personagens que aparecem na tela produzia frustrações no público que comparava sua própria vida, cinza e monótona, com daqueles afortunados heróis e heroínas. Debra Heffner, diretora do Council of Sexual Information and Education in the United States of Amer-ica declarou a este respeito. "Os meios de comunicação nos apresentam uma imagem da sociedade segundo a qual todo o mundo o faz; todo mundo pratica mais sexo que tu e de forma mais satisfatória". Isto empurra, a quem pode fazer, a comprar relações e aventuras, eróti-cas ou não, incluindo os "companheiros de aluguel" para senhoras. São fantasias que empurram até o colecionismo erótico da vida real, até a satiríase masculina e a ninfo-mania feminina, que a psiquiatria geralmente explica pela necessidade de afirmar a permanência e vigor do próprio atrativo, em luta contra o desgaste física pelo passar do tempo (ninfomaníacas maduras). Quem não pode aspirar a tanto se consola simplesmente liberando à pulsão eróti-ca do consumismo nos shoppings.

Todas as fantasias televisivas são de ordem tão simples como o exposto. O programa estrela da televisão

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brasileira em 1999 foi protagonizado pela exuberante modelo Tiazinha, uma escultural mulher de vinte anos que portando uma máscara e uma minúscula lingerie pre-ta castigava com um pequeno chicote adolescentes que se enganavam em um programa de concursos. Seu espaço que explorava tanto fantasias de culpa como de relação materno-filial dos participantes, haveria de ter sido pro-vavelmente um eficaz viveiro para futuras condutas sa-domasoquistas

Mas a fragilidade ou o caráter insatisfatório da rede de relações sociais conduz os indivíduos, especialmente a adolescentes e jovens, a formas perigosas de marginali-zação, seja em tribos urbanas violentas antissociais ou em seitas pseudorreligiosas. Para os primeiros, sua pátria é sua tribo, suas senhas de identidade estão na roupa, o ca-bello, a tatuagem ou o piercing (marcadores de identida-de) e seu vínculo emocional brota de suas atividades a-gressivas compartilhadas. Nas seitas, a submissão cega a um líder, no que se esvazia toda responsabilidade pesso-al, a consciência de pertencer a um coletivo coeso e com um destino comum e suposta gratificação espiritual em vida ou depois da morte operam como um potente agluti-nador de grupo.Por isso é possível afirmar que, se é certo que a televisão socializa com suas mensagens a grandes massas graças a um imaginário compartilhado, dessocia-liza também a quem acaba por situar-se na periferia des-tas massas.

AS LÓGICAS DA SEDUÇÃO A cultura eclesiástica medieval pôs em circulação o

aforismo que assegurava que pictura est laicorum litera-tura, uma sentença que tem estado na origem da suspeita de que o Ocidente tem demonstrado em relação à cultura da imagem, percebida como secundária, frágil, incomple-

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ta e sujeita a cultura do verbo. É certo que no curso da evolução humana o homo loquens precedeu o homo pic-tor, pois a linguagem verbal foi o primeiro grande fruto intelectual de sua capacidade para o pensamento abstrato e a conceitualização. Também as imagens rupestres eram realizações categoriais do bisão, do mamute, do caçador, etc., pois a imagem de um sujeito singularizado – o que hoje chamamos retrato - tardou muito em aparecer. To-davia no neolítico, as tribos que habitaram a mais de no-ve mil anos o vale do Eufrates praticando a agricultura adotaram um costume eu, de alguma maneira, prefigura-va a função do retrato. Quando um familiar morria, enter-ravam-no dentro de suas casas, mas cortando a cabeça para conservar seu crânio, como fazemos com as fotogra-fias dos falecidos, para recordarmos deles.

Estas observações constituem uma boa introdução ao tema da imagem pessoal como elemento de atração e até de sedução na colocação da cena do espetáculo televi-sivo. Mas a sedução de uma imagem pessoal é, na reali-dade, um assunto muito anterior ao invento da televisão. Nunca se explicou de um modo inteiramente satisfatório, por exemplo, por que dos nus pintados por Van Eyck são muito distintos dos que se exibem no Crazy Horse, de Paris, que por sua vez, muito diferentes dos nus de Ru-bens ou da Vênus de Milo. É certo que os hábitos alimen-tares, o exercício físico e as atividades da vida cotidiana das bruxas do século XV modelaram proporções e di-mensões antropométricas diversas das que possui uma jovem novaiorquina bem alimentada que hoje frequenta o ginásio e a sauna. às vezes, não obstante, produzem-se raros fenômenos de concordância de gosto. Assim, a ci-dade Vênus de Milo viu-se entronizada como modelo supremo de beleza e de perfeição corporal feminina por-que suas proporções de matrona coincidiram com as que eram admiradas em 1828, quando se descobriu sua está-

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tua. Mas hoje ninguém seguiria mantendo que sua ana-tomia representa a máxima excelsa da estética da mulher. Já Huizinga9, em Homo ludens, observou que desde me-ados do século XVIII a exaltação do gozo estético tendeu a substituir a consciência religiosa progressivamente de-bilitada. Mas em nossa época o gozo estético desceu para a maioria para o gozo mitogênico, um amálgama hedôni-co-ficcional que encontrou potentes alto-falantes midiáti-cos em nossa cultura de massas.

Desde os grandes mitos homéricos, babilônicos e hindus sabemos que todas as sociedades criaram arquéti-pos humanos exemplares e fantasiosos para identificar-se com eles ou para projetar sobre eles seus desejos, angús-tias ou frustrações. Nesse sistema mitológico, os heróis e heroínas eram indefectivelmente personagens atrativos, porque sua beleza física refletia metonimicamente suas virtudes morais. Mas o episódio relatado da Vênus de Milo ilustra perfeitamente o fato de que cada época e ca-da cultura elege seus modelos canônicos de beleza. Em concordância com esta opção, na produção plástica de cada cultura seus artistas representam usualmente com insistência o modelo estético privilegiado em seu contex-to e em seus gostos, esvaziando as representações desvi-antes daquela norma.

Mas qual é a relação entre o arquétipo estatistica-mente dominante e o ideal estético de cada época? Foi o exemplar humano mais frequente entronizado como o mais perfeito ou o condenado como mais vulgar? Pode-se reformular estas perguntas acerca do ovo e da galinha da beleza anatômica contemplando seu entorno cotidiano em prais e piscinas e as representações seletivas que do cor-po oferecem hoje os meios de comunicação de massas.

9 NT - Johan Huizinga, Homo Ludens, 1938 - professor e historiador

neerlandês, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e o Renascimento.

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Mas uma reflexão acerca das pautas do erotismo latino e do erotismo protestante desvela que o contraste resulta especialmente excitante, percebido como "exotismo", e se Antonio Banderas pode ser um ídolo para as mulheres anglo-saxônicas, Nicole Kidman o será, ao contrário, pa-ra os espectadores latinos. Isto o sabia juá Dickens, como anglo-saxão consequente, quando descrevia suas frágeis e virginais heroínas ruivas e lhes opunha as apaixonadas e maltrapilhas morenas, de conotações meridionais e lati-nas. Mas sob as modas culturais e com muito mais per-manência, estas opções estético-eróticas não fazem mais que primar as vantagens biológicas da exogamia sobre a endogamia, como veremos no sétimo capítulo. O miro erótico popular do negro fálico nas sociedades ocidentais constitui assim uma expressiva caricatura da pulsão exó-gama universal.

Todos os antropólogos conhecem os conflitos que podem surgir entre os padrões de socialização, que se difundem desde as escolas e os meios de comunicação, e a natureza do ser humano, cinzelada em um longo pro-cesso filogenético. As opções humanas são muito varia-das e flexíveis e basta uma incitação midiática para que se imponha determinado modelo de desenho corporal, ainda que careça de uma funcionalidade biológica. A e-rupção nas telas de atores hipermusculosos, como Arnold Schwarzenegger e Silvester Stallone e de séries de suces-so como Vigilantes da praia (Baywatch), levaram muitos jovens a práticas intensivas de body-building em conflito com a saúde e até com atrativo erótico. O culturismo é uma das muitas heresias do narcisismo grego, talvez a mais flagrante de todas. Constitui, verdadeiramente, a fuga do eu da vida interior para sua periferia, convertido em vitrine viva. É sabido que os primatas, quando vão entrar em combate, eriçam o pelo de seus ombros e espá-duas para aumentar seu tamanho e amedrontar seu inimi-

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go. Deste sinal de poder primata derivou as ombreiras e adornos dos uniformes militares que os homens se põe a aumentar artificialmente o tamanho de suas espáduas. Mas o movimento reflexo dos primatas é perfeitamente funcional e se com muito pouco esforço, enquanto que sua mimetização culturista converte-se numa laboriosa conquista para os ginastas que constroem sua musculatu-ra ante o espelho, tratando quase sempre de ocultar seu vazio interior com seu envoltório hipertrofiado. Vale a pena recordar que em grego Narciso derivou da raiz nar-kosis.

O fisiculturismo negligencia alguns encontros sig-nificativos de antropólogos e psicólogos nos últimos a-nos, ou seja, que as mulheres acham mais atrativos não aos homens hercúleos mas sim aqueles que tem traços femininos, modelos que o star-system oferece nos nos nomes de James Dean, David Bowie, Brad Pitt ou Leo-nardo di Caprio. É certo que em épocas remotas as fê-meas podiam preferir aos machos de maior tamanho (pa-ra serem protegidas junto a suas crias) e que dominavam um maior território (para dispor de mais comida). Mas já no capítulo anterior explicamos que a redução funcional da massa corporal masculina nos últimos milênios deu-se por suas necessidades terem mudado radicalmente, pelo que aquela vantagem biológica deixou de sê-lo para dar lugar a outras prioridades. A preferência atual das mulhe-res para os rostos feminilizados não e, naturalmente, bio-logicamente caprichosa. Tal predileção explica-se porque na espécie humana a capacidade de ter descendência fér-til depende em grande parte dos cuidados que são presta-dos aos filhos pequenos, é dizer, de características tais como a ternura e a cooperação, definidoras do papel de bom pai e ainda por um rosto masculino com traços fe-mininos. Esta preferência é, portanto, resultado de cente-nas de milhares de anos de evolução e está agora inscrita

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nos genes do sexo feminino. Estes estudos indicam que o rosto masculinizado (queixo mais proeminente, sobrance-lhas mais pronunciadas e o rosto mais largo em função da distância entre os olhos) associa-se a um caráter frio, pouco amável, dominante e egoísta em contraste com os rostos femininos (mais redondos e lábios mais carnudos), que se relacionam com alguém mais cálido, cooperativo, emotivo e honesto.

De modo que a estética do body-building supõe uma discrepância do tipo cultural com a funcionalidade biológica da sedução física. Mas como temos dito, os lí-deres midiáticos estabelecem e difundem modelos hierár-quicos de comportamento, padrões de conduta, porte e vestimenta, que geram no público o que os antropólogos denominam "mimetismo de tempo", ainda que seja sabi-do que quando tais modelos se popularizam e banalizam são abandonados pelas elites. O acatamento a um modelo hierárquico implica a admissão do exemplo de quem o difunde. As pessoas se penteiam, se vestem e falam como seus ídolos para sentirem-se co-participes vicariais de sua elite privilegiada. Não só as pessoas de carne e osso. Quando os desenhistas da Walt Disney desenharam a fi-gura protagonista do longa Aladim imitaram as sobrance-lhas do ator Tom Cruise (as sobrancelhas são elementos essenciais na expressividade de um rosto, como desco-briu Le Brun), pois Tom Cruise era então o mais valori-zado sex symbol de Hollywoond. E quando se desenhou, anos mais tarde, o rosto da protagonista de Pocahontas combinaram-se características de Demi Moore e Naomi Campbell.

Isto é assim apesar da heterogeneidade cultural, não só do planeta, como de nossas grande cidades onde convivem cores de pele, rostos, costumes e tradições muito díspares.. Estima-se que em Londres, por exemplo, as minorias étnicas constituam quase um terço de sua po-

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pulação em dez anos. E, apesar de sua variedade, as in-dústrias culturais, com a televisão encabeçando, seguem difundindo seus modelos estéticos eurocêntricos. Por is-so, em alguns países desenvolvidos da Ásia, o furor pelos remédios e pela cirurgia estética para que as mulheres consigam o ideal de beleza ocidental, operando as pálpe-bras, tingindo o cabelo de loiro ou de castanho e bran-queando a pele. E nada surpreende mais ao turista que ver os anúncios de beleza e de moda feminina na sruas de Tóquio, que exibem indefectivelmente típicas modelos anglo-saxônicas ou escandinavas.

Apesar disso, é obrigado a admitir-se que hoje vi-vemos em uma época definida pelas normas estéticas frouxas. Vivemos em uma sociedade caracterizada, mais que nunca na história, pelo ecletismo e por uma sensibili-dade plural e poliédrica em matéria sinais de identidade e de signos externo na esfera do vestido, do penteado, etc. Hoje coexistem sem escândalos a alta costura com o punk e os blue-jeans.

Antes, as diferenças de aparência vinham determi-nadas muito fundamentalmente pela estratificação social e um aristocrata não se parecia com um plebeu, nem um campesino a um burguês. Agora as fronteiras aparecem misturadas e confusas por obra da democratização de vestimentas, da permissividade das modas, do relaxamen-to dos ritos sociais, da confusão dos papéis, do pret-a-porter e de vários outros fatores. Mas apesar da confusão dominante, definida brevemente por veste como queres, é possível reconhecer certas tendências dominantes em ma-téria de imagem corporal e certos vetores privilegiados acerca do desenho da autopresença na sociedade e da posta em cena do próprio corpo. Por isso podemos ainda distinguir, em uma praia nudista, o punkie do executivo. Ainda que, como já dissemos, quando uma norma estéti-ca é adotada massivamente, provoca a emergência de

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uma nova alternativa de distinção que se opõe aquela cor-rente trivializada pela massificação..

Gombrich observou com perspicácia que Botticelli, tão admirado por sua pintura do nascimento de Vênus, conhecia muito mal a anatomia feminina, sua estrutura e proporções e por isso sua imagem do corpo feminino es-tava regida por sua autoconsciência masculina. Está certo que naquela época as mulheres se descobriam menos em público que hoje e o corpo humano se conhecia muito pior na Florença do século XV que na Atenas de Péricles. Com sua ignorância anatômica Botticelli ofereceu uma reinterpretação ou estilização fantasiosa do corpo femini-no, fazendo que a idéia suplantasse o objeto. Esta é uma operação transfiguradora muito comum na criação artísti-ca.

Agora está ocorrendo algo parecido, mas não por ignorância do desenhista, como ocorreu a Botticelli, se-não por excesso de sabedoria, ou seja, por conhecimento dos comportamentos do mercado e das expectativas, frus-trações e fantasias eróticas coletivas. Como denunciou Stuart Ewen em seu livro All consuming images, se nos postulados da Bauhaus10 a forma seguia a função, na atu-alidade a forma segue os ditados do mercado. Assim, a cultura de massas guia-se hoje pela efebofilia, em uma sociedade progressivamente envelhecida, porque a juven-tude tem se revelado, diferentemente de épocas passadas, como segmento social mais consumista. A juventude re-presenta, também, a fertilidade e o futuro. Porque ainda que em muitas culturas, especialmente nas do Extremo Oriente, venere-se aos anciãos, a efebofilia está co cora-ção da tradição judeu-cristã, como revela o episódio bí-blico em que colocaram no leito do ancião rei Davi a jo-

10 NT. Staatliches-Bauhaus, escola de design, artes plásticas e arqui-

tetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha.

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vem Abisag para que lhe transmitisse com seu corpo seu calor e energia vital, segundo o princípio da lógica con-taminante. Esta filosofia, no fundo, não mudou muito na atualidade e os jovens são vistos e representados pelas indústrias culturais como encarnações da energia vital e do desejo.

Daí derivam todos os fármacos e as terapias que a publicidade promete para perpetuar artificialmente um corpo bonito, próprio da condição juvenil. Um caso típico constitui a luta contra a obesidade, que em nossa socie-dade rica em calorias afeta já um de cada seis europeus e a 33 por cento dos espanhóis. No momento de escrever estas linhas a farmacopéia promete combater-la eficaz-mente com pílulas, como Xenical e Reductil. Formam parte das novas "pílulas da felicidade", que se iniciaram com os antidepressivos Prozav e Serotax, seguiram com Viagra contra a disfunção erétil, a Cellulase contra a ce-lulite e agora prometem remediar a calvície11. No estremo oposto da obesidade encontra-se a patologia da anorexia. Um estudo da Escola de Medicina de Harvard de 1999 indica que 69 por cento das adolescentes anoréxicas con-sultadas reconhecem que as imagens midiáticas de mode-los magras foram determinantes para criar seu ideal do corpo perfeito. A atual epidemia de anorexia (180.000 casos registrados na Espanha) baseia-se em uma percep-ção patológica negativa do próprio corpo, em cujo estado a sexualidade é rechaçada por falta de investimento eró-geno no mesmo. Estas patologias formam parte da famí-lia de dismorfostesias, ou formas de preocupação mórbi-da e obsessiva acerca da aparência corporal, as que são especialmente vulneráveis os adolescentes, na etapa de sua transformação física. A anorexia, em suas formas

11 NT – Um dos remédios usados contra a calvície, a finasterina pode

trazer problemas sexuais como a disfunção erétil. O que mostra que a vaidade pode suplantar o bom senso e o prazer.

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mais agudas, entra na categoria da dismorfofobia, descri-ta pela primeira vez por E. Morselli em 1886, como uma fobia quase delirante na qual o sujeito está persuadido de sua fealdade e de ter um corpo anormal ou disforme, per-cepção negativa que obstaculiza sua vida normal e suas relações socioafetivas. Nestas condutas, como explica-mos antes no caso do body-building, as pressões midiáti-cas nem sempre são concordantes com os requerimentos da biologia. Ainda que a muitas jovens lhes incomode os seios grandes, este atributo desenvolveu filogeneticamen-te um intenso atrativo para o sexo masculino por estar estreitamente relacionado com a capacidade de reprodu-ção da mulher, pois sugere abundante comida para as cri-as. Mas é certo que um ventre aumentado não resulta em atração para o homem pois sugere atrofia do útero, ou seja, infertilidade, ainda que em algumas etapas da pintu-ra européia tenha sido exaltado como sinal de maternida-de.

Paradoxalmente os arquétipos midiáticos femininos tem oscilado bipolarmente entre a opulência rústica e nu-tritiva (como as maggiorate do cinema italiano do pos-guerra) e a estilizada magreza, considerada sinal de ele-gância porque se associa aos arquétipos físicos idealiza-dos pela indústria da moda de vestuário, da qual a mode-lo Dominique Abel queixou-se de que "as mulheres estão submetidas ao dogma estético que marcam os desenhistas homossexuais. As modelos lhes faz falta a visão sexual dos homens, [...] Em lugar de modelos de carne buscam manequins de plástico, é uma visão muito fria, muito du-ra, muito irreal" (ABC, 15 de junho de 1999).

Todas as patologias dismorfofóbicas, induzidas pe-los meios audiovisuais, derivam de uma preocupação so-bre a própria imagem, preocupação que não é rara que tenha se desenvolvido em nossa sociedade exibicionista, pressionada pelos modelos midiáticos de perfeição estéti-

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ca corporal. Não se renuncia facilmente ao exibicionismo vaidoso e o prova a apetência compulsiva e generalizada de aparecer na tela do televisor, ao que é denominado faz alguns anos de síndrome de Eróstrato. Eróstrato foi um efésio que, para imortalizar seu nome, prendeu fogo no templo de Artemísia em Éfeso na mesma noite que nas-ceu Alexandre Magno. Os efésios o executaram e proibi-ram, sob pena de morte, que o nome maldito do incendiá-rio fosse pronunciado. Mas a precaução severa dos efé-sios não podia impedir que, em última análise, o nome de Eróstrato passasse a todas as enciclopédias, nem que Je-an-Paul Sartre desse seu nome infame a um de seus rela-tos contidos em O muro. O vaidoso exibicionismo de E-róstrato encontrou seu eco, certamente menos devastador, na atual aspiração a aparecer na tela televisiva a todo cus-to, ainda que seja falando intimidades de alcova, para conquistar aqueles quinze minutos de efêmera fama dos quais falava Andy Warhol. Uma pesquisa realizada entre jovens italianas candidatas ao concurso Miss Itália de 1998 revelou que a maioria delas percebia Monica Le-winsky como um exemplo positivo , já que havia conse-guido ser tão visível midiaticamente como o presidente dos Estados Unidos.

ESTRUTURA DO STAR-SYSTEM O star-system televisivo contemporâneo, ao que

Jean Cazenueve chama de vedetariato, está composto por três grandes famílias, a saber. a aristocracia ou elite por nascimento, cuja notoriedade vem do sangue ou da he-rança (e que constitui objeto predileto da já citada im-prensa do coração); a meritocracia ou elite do mérito, nu-trida pelos profissionais mais relevantes e distintos, entre eles os profissionais da política e das finanças; e por fim, os integrantes do mundo do espetáculo, os entertainers,

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formado por cantores, estrelas de cinema, desportistas, modelos, etc.

As estrelas do espetáculo que haviam nascido co-mo tais ao calor do público burguês do século XIX, no mundo do teatro e da ópera, adquiriram singular protago-nismo no cinema desde a I Guerra Mundial graças à difu-são massiva e popular das películas. Para sua afirmação contribuiu decisivamente a técnica do primeiro plano, que foi inventada por Griffith e outros pioneiros para ampliar detalhes demasiadamente pequenos da ação ou decoração que, em um plano geral, passariam inadverti-das ao espectador. Quando esta ampliação ótica foi apli-cada funcionalmente ao rosto humano, com a finalidade, por exemplo, de fazer visíveis as lágrimas da protagonis-ta, invisíveis num plano geral, desvelou-se a capacidade dramática e carismática deste enquadre privilegiado. O primeiro plano facial, ao magnificar a presença icônica dos intérpretes, permitiu ao público reconhecer e familia-rizar-se com os atores e atrizes mais fotogênicos e não tardou em aparecer um fenômeno de identificação emo-cional com eles e seu conseguinte culto coletivo, com suas sequelas de imitações de vestuário, de conduta, etc. Na televisão, devido ao pequeno tamanho de sua tela, o primeiro plano converteu-se no enquadre mais habitual de seus produtos, o que desvalorizou a dramaticidade, as expensas da legibilidade dos rostos e de sua fácil identifi-cação.

A mitologização estelar foi o fruto de uma copro-dução tácita entre as produtoras de cinema, que ofereci-am suas imagens na tela, e seus públicos pois eram os espectadores quem sancionava definitivamente o valor estelar do ator ou da atriz, se satisfazia funcionalmente (ainda que fosse ilusoriamente, no plano da fantasia) cer-tas expectativas latentes, carências afetivas ou frustrações íntimas. Se tal acordo ou sintonia não se produzia – me-

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dida qualitativamente em forma de receita na bilheteria – o intérprete proposto não chegava a constituir-se em su-jeito carismático da cultura de massas, dando a palavra carisma um significado muito próximo ao que Max We-ber utilizou para referir-se aos líderes políticos.

A televisão herdou do cinema este capital semióti-co e mitológico e atraiu muito cedo a estrelas populares da tela grande, como Bob Hope ou Lucille Ball. Neste processo de mitologização midiática, às vezes a vida pri-vada dos profissionais da ficção chegou a confundir-se com a de seus personagens interpretados. Lucille Ball, por exemplo, protagonizou uma muito famosa série I Lo-ve Lucy, iniciada em 1953, que teve seu marco mais céle-bre com a gravidez da atriz que se fez coincidir com a gravidez e um parto na ficção televisionada, aconteci-mento assistido por 68 por cento dos telespectadores nor-teamericanos.

Também a televisão potencializou com seu trampo-lim difusor e seus enquadres próximos ao star-system discográfico e desportivo, cujas figuras converteram-se em seus aliados naturais no mercado midiático. Mas, a-lém disso, como pólos de fama que haviam atraído às câmeras, surgiu logo um novo star-media-system segre-gado pelo próprio meio e formado por seus prórpios co-municadores específicos. Deste modo, emergiram os lí-deres eletrônicos que aparecem na telinha e compõem, mais allém de sua pulsão pessoal exibicionista-narcisista, um verdadeiro sistema de telecracia, de poder telecrático. A esse respeito é evidente que a televisão estabelece en-tre os fatos e as pessoas uma hierarquia meritocrática que não depende da substância de tais fatos ou pessoas, senão da frequância e intensidade de suas aparições. Mais apa-rições equivalem a mais valor, independentemente da valia intrínseca do sujeito e esta pressão midiática é res-ponsável pela indução da iconofilia ou iconomania das

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audiências, impregnada frequentemente de componentes libidinais, articulada na admiração e celebração do sujeito comunicador. Desse princípio bem conhecido deriva o corolário da iconocracia, vale dizer, que aquilo que se vê existe e quanto mais se vê mais existe e mais importante é. E da exigência da iconocracia deriva a lógica do Esta-do-espetáculo, com suas liturgias e ritos públicos, desti-nados a mantê-lo perpetuamente focalizado por parte dos meios de comunicação.

Acostumados a parafernália do Estado-espetáculo na era da televisão, quase nos assombram os protestos morais de Adlai Stevenson com motivo de sua campanha presidencial de 1956, que foi nos Estados Unidos a pri-meira que se valeu da propaganda televisiva. "A idéia de que se pode vender candidatos para altos cargos como se fossem cereais para um lanche...é a última indignidade do processo democrático". O ingênuo candidato Adlai Ste-venson , produto intelectual da cultura gutembergiana, não sabia que na nova cultura midiática da era da imagem é muito mais importante parecer que ser, to look que to be, pois povo (sujeito ativo) converteu-se simplesmente em público (sujeito midiático passivo). E por essa razão Ronald Reagan pode saltar com facilidade desde o estre-lato de Hollywood ao estrelato do Estado-espetáculo.

Mas a celebridade midiática tem também suas con-trapartidas. A contrapartida negativa de sua loa gratifica-dora reside em que o poder (poder político, financeiro, profissional, etc) é permanentemente objeto de suspeita. Como um sólido reflexo de um dos princípios basilares da anarquia, pode-se afirmar que o poder vive perpetua-mente sob um estado de suspeita natural, de suspeita legi-timada, que faz que se vigiem atentamente seus possíveis tropeços, suas incongruências e seus escândalos. O des-velamento midiático dos exercícios eróticos privados do

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presidente Bill Clinton com uma estagiária o demonstra-ram claramente.

ESPETÁCULO, INFORMAÇÃO E ARTE

A linha divisória entre informação e espetáculo

nem sempre tem sido nítida e é menos que nunca na era da televisão, que precedeu a uma enérgica hibridização dos gêneros tradicionais. De um dos melhores documen-tários de propaganda política da história do cinema, O triunfo da vontade (Triumph des Willens), de Leni Rie-fenstahl, hoje sabemos que o Congresso do Partido nazis-ta em Nuremberg de 1934 organizou-se como uma gigan-tesca encenação coral para ser filmada pelo robusto equi-pamento de câmaras da diretora e para dar lugar a uma película que pudesse circular por toda a Alemanha e ante todos os alemães na era pre-televisiva. As pessoas que ficaram chocadas com essa estratégia deve ser lembrado que os comícios eleitorais organizados por partidos polí-ticos de nossas democracias, e que acima de tudo são vis-tosos espetáculos corais coloridos, tem hoje como função principal ser divulgadas pela mídia em toda a sociedade. Ou seja, são performances fantásticas postas em cena pa-ra serem gravadas pelas câmeras. Depois da crise das grandes ideologias, seu lugar nas telinhas tem sido ocu-pado pelas pequenas histórias pessoais e por grandes es-petáculos coletivos.

Outro exemplo de hibridização ou contaminação de gênero, neste caso entre a publicidade e o espetáculo nos dá o gênero televisivo do videoclip musical. Estes foram inventados como spots ou anúncios publicitários a servi-ço da indústria fonográfica. Quando entrou na disputa a publicidade audiovisual, já havia demonstrado largamen-te o virtuosismo e a sofisticação técnica com que se es-praiavam suas microhistórias, até o ponto de que não

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poucos críticos arguíam que afronteira experimental mais livre e estimulante da cultura audiovisual contemporânea se encontrava na publicidade, opinião que Jean Luc Go-dard veio corroborar quando afirmou tristemente que a tradição revolucionária da montagem-colisão12 de Eisens-tein havia encontrado seu destino final no anúncio banal de produtos domésticos para donas de casa. Os videoclips musicais depredaram e apropriaram-se dos estilos do ci-nema de vanguarda clássicos, dos experimentos soviéti-cos de montagem, das transgressões dos raccords13 de espaço e de tempo, etc., pela boa razão de que não esta-vam submetidos as rígidas regras do relato novelesco e se limitavam a ilustrar uma canção, que com frequência não relatava propriamente uma história, mas expunha sensa-ções mais próximas do impressionismo estético que da prosa narrativa. Este descargo de obrigações narrativas, liberados dos imperativos da cronologia e da causalidade permitiu ao videoclip musical adentrar pelas divagações experimentais de caráter virtuoso.

Mas a grande diferença entre a linguagem do vi-deo-clip musical e o das vanguardas clássicas estabelece-se em que estas perseguiam um efeito de estranhamento, de provocação, de desautomatização da percepção e até de agressão sensorial ao espectador (como no dadaísmo e o surrealismo bem exemplificado pelo olho cortado de Um perro andaluz). Enquanto que, ao contrário, os vi-deo-clips musicais depredaram os estilos daquelas van-guardas para conseguir o efeito oposto, o efeito da fasci-nação e da sedução hipnótica, destinada a desembocar no

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Sergei Eisenstein - 1898-1948. Pensa a montagem cinematográfi-ca não como um processo de ligação entre os planos, mas como um pro-cesso de colisão, um meio de estabelecer o conflito de duas peças em oposição entre si.

13 Designam os efeitos visuais, sonoros ou de linguagem cinemato-gráfica utilizados para garantir a coerência entre dois planos.

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ato consumista da compra do produto anunciado. Era e-xatamente o contrário do que pretendiam as provocações daquelas vanguardas históricas.

Sugeriu-se inclusive uma afinidade estrutural e funcional entre os videoclips musicais e o cinema pornô hardore, pois ambos gêneros audiovisuais são baseados na criação de uma ansiedade expectante e compulsiva no espectador que não chega a saciar-se no ritual da fruição das imagens. No caso do videoclip saciar-se-á, finalmen-te, com o ato de compra do suporte musical anunciado na tela. Mas a atitude dos adolescentes frente a excitação do videoclip musical recorda muito, com efeito, ao do vo-yeur de filme pornô, com seus sentidos absorvidos neuro-ticamente pela tela, em um gênero em que tão importante é também o movimento rítmico dos corpos, um ritmo in-terativo e fisiologicamente compulsivo que prefigura, por outro lado, os componentes coreográficos mais sofistica-dos da cena do videoclip. Por isso dizíamos que sua fun-ção é diametralmente oposta ao estranhamento agressivo provocado pelas propostas genuínas das vanguardas.

O fenômeno da hibridização ou contaminação de gênero tem a ver com a proposta de "desordem cultural" originada pela crise de identidade da arte contemporânea, ou melhor, do conceito de arte na atualidade. Até alguns anos a arte podia encontrar sua razão de ser e sua legiti-midade no prazer produzido pela sua percepção, segundo um arco justificador que se estendia desde os epicuros gregos até Freud. Ou bem podia ser conhecido como meio de conhecimento, segundo a tradição racionalista-marxista. Mas, ao fim do século, já é possível afirmar que é arte qualquer coisa que decida designar-se com este nome. Este nominalismo radical tem seus antecedentes nas teorias subjetivistas da arte, como na postulada por David Hume quando afirmava que a beleza não está no objeto senão no olhar de seu observador, proposta reto-

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mada por Duchamp quando afirmava que é quem olha quem faz o quadro. Susan Sontag levou o subjetivismo até o olhar irônico dandi capaz de redimir esteticamente ao camp e este subjetivismo radical, em que a artisticida-de é função de um olhar pessoal, desembocou na trans-gressão redentora do dirty chic de nossos dias. Se antes do século XX a anomia era excepcional na produção ar-tística, agora converteu-se no cânon da artisticidade mais vigorosa.

No atual neoliberalismo estético, o mercado apare-ce como legitimador e juiz supremo. Mas desde muitos anos se sabe que em um mercado cultural livre não se impõe o melhor, senão o mais comercial. E isto conduziu a que a arte, frente a sua crise de identidade, tenda refu-giar-se na sedução espetacular, que atrai muitos olhares. Este assunto foi muito debatido nos Estados Unidos quando em agosto de 1998 o Guggenheim Museum de New York apresentou uma exposição de motocicletas que convocou até cinco mil visitantes diários. As reluzen-tes motos, com suas conotações de poder, violência e ero-tismo evacuaram por umas semanas a Mondrian e a Ma-gritte de suas paredes, para sancionar a primazia do espe-táculo sobre a arte nos museus norteamericanos. Este hi-percomercialismo foi comentado assim pelo New York Times. "Os diretores [de museus] começam a parecer de-sesperados. Passam o tempo cortejando personagens da alta sociedade e viúvas ricas, esperando a vez de uma bonança de doações financeiras como a que a que se pro-duziu nos anos oitenta".

Esta situação levou alguns teóricos a reinvidicar a "desordem cultural" como meta frutífera. No campo tele-visivo, submetido a maiores exigências espetaculares e comerciais todavia, esta confusão cultural tende a acentu-ar-se, ainda que, submetida sua programação ao rigoroso cômputo de suas audiências, qualquer iniciativa de de-

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sordem cultural tende logo a ser domesticada pela renta-bilidade, como ocorreu com os reality shows, que se transformaram em tragédias das vida cotidiana autentica-das passionalmente por sangue, lágrimas e sêmen, em espetáculos de massas. Puderam ser dramatizações críti-cas das frustrações da vida cotidiana, mas se transforma-ram em vertedouros das piores pulsões do ser humano.

Em todas as telas do mundo prevalece hoje uma monocultura homogeneizadora, de origem multinacional e de caráter centrípeto. Esta monocultura espetacular tem sua praça forte em Hollywwood, mas a ela tem que se somar todas as imitações, ricas ou pobres, que em todos os países se levam a cabo a partir de seus modelos canô-nicos. Ao comparar-se este modelo de comunicação indi-ferenciado com o que ocorre na natureza descobriremos rapidamente uma nova discrepância, pois a evolução bio-lógica cria continuamente novas variantes, que enrique-cem ao sistema, denominada biodiversidade. A televisão, ao contrario, tende a ter repugnância a diversidade e lhe seria muito saudável uma injeção de verdadeira desordem cultural.

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III A NOVA PAISAGEM AUDIOVISUAL

O EIXO DE PODER LOS ANGELES-TOKIO

os anos setenta produziu-se uma grande explosão industrial e empresarial com a integração da microeletrônica e da infor-mática. Passada uma década, podia-se constatar que setenta por cento do mercado

mundial de eletrônica de consumo correspondia ao setor audiovisual, mobilizando um negócio de 80 bilhões de dólares, até colocar-se nos Estados Unidos, após término da guerra fria, como o primeiro negócio e maior exporta-dor nacional, depois de desbancar da liderança a indústria aeroespacial, muito ligada as necessidades da defesa.

No anos que precederam a queda do bloco soviéti-co produziram-se importantes mutações nesta paisagem industrial. Uma delas foi a fusão das empresas Time Inc e Warner Communications em 1989, para gerar a gigante Time-Warner, uma megacompanhia de 18 bilhões de dó-lares favorecida pela sinergia dos meios impressos e au-diovisuais. Precisamente, a expressão megacompanhia de comunicações cunhou-se pelo resultado desta fusão, que por certo se ampliaria em 1995 com a nova incorporação da cadeia de televisão CNN de Ted Turner. Quando se produziu aquela fusão, alguns analistas calcularam que no princípio do próximo século o mundo das comunica-ções globais estaria dominado por um par de megacom-panhias nos Estados Unidos, outras na Europa e outra no Japão. Sua predições se revelariam um tanto míopes. A quebra daquele prognóstico veio da frente asiática que se expandiu até penetrar inesperadamente nos Estados Uni-dos, dando uma nova variante ao sentido de transnaciona-

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lidade. Com efeito, as companhias japonesas, líderes mundiais em hardware da eletrônica de consumo, viviam com frustração a penalização racista de sua oferta cultural de software audiovisual, salvo na linha dos desenhos a-nimados, computadorizados e baratos, em cujos bonecos brilhavam olhos impecavelmente redondo e com aspecto físico caucasiano. Para quebrar este bloqueio cultural de marca racista e dar suporte ao seu lançamento da televi-são de alta definição de 1.125 linhas que havia patentea-do, a Sony comprou em setembro de 1989 a produtora e distribuidora de Hollywood Columbia Pictures, por 3,4 bilhões de dólares, adquirindo seus copiosos arquivos, entre os quais as populares comédias de Frank Capra e as fitas de Rita Hayworth. Não era a primeira tentativa da Sony nesta direção, pois no final de 1987 havia comprado a maior companhia de discos do mundo, a CBS Records norte-americana, como base de lançamento de seu siste-ma de fita de áudio digital DAT (Digital Audio Tape).

Esta obsessiva compra de arquivos norte-americanos de software pela Sony teria, ademais, outra explicação. Sony havia perdido sua batalha do vídeo do-méstico no mercado ao ser derrotado seu sistema Beta-max pelo tecnicamente inferior sistema VHS da JVC (Japan Victor Company), precisamente por sua inferiori-dade oferta de software em seu formato. Esta deficiência comercial anulou sua indiscutível superioridade técnica e, por isso, ao embarcar em duas novas tecnoligias avança-das e caras – o áudio digital e a televisão de alta definição -, Sony quis dotar-se de arquivos de software de provado atrativo comercial que assegurasse o êxito de seu lança-mento.

Mas seu caso não foi isolado. Em agosto de 1989 a JVC investiu mais de 100 milhões de dólares para lançar na Califórnia a produtora Largo Entertainment, dirigida por Lawrence Gordon, prestigiado ex-presidente da 20th

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Century Fox. No mesmo ano, o grupo nipônico Yamaichi Securitiest investiu seiscentos milhões de dólares no en-tão apagado grupo de Walt Disney. E o ciclo culminou quando em novembro do ano seguinte a Matsushita Ele-tric Industrial Co., de quem dependiam as firmas Pana-sonic, Technic e Quasar e que possuía 50 por cento das ações da JVC, comprou por 6,6 bilhões de dólares o gru-po MCA. Este conglomerado possuíam, além de outras companhias menores, a companhia discográfica MCA Records e os famosos estúdios Universal, onde nascera – com Boris Karloff e Bela Lugosi – a grande escola de filmes de terror norte-americano nos anos trinta.

O assalto das companhias eletrônicas japonesas à indústria audiovisual norte-americana provocou uma co-moção no show business e na opinião pública norte-americano pois foi percebida como uma expropriação, por parte de um país que haviam derrotado na II Guerra Mundial, de suas indústrias culturais mais emblemáticas, forjadoras de um entranhável imaginário coletivo nacio-nal, compartilhado candidamente por milhões de norte-americanos. Mas esta expropriação não estava motivada pelo desejo dos compradores japoneses de produzir na Califórnia filmes de gueixas e de samurais, promovendo assim sua cultura nacional, senão produções estética e ideologicamente anglo-saxônicas com cowboys, vampi-ros e gângsteres. Não impuseram sua cultura, mas puse-ram seus potentes recursos financeiros a serviço da cultu-ra dos vencedores judeus-cristãos da II Guerra Mundial pois bem adquiriram suas propriedades, confiaram-lhes a direção local de seus negócios, tutelada de Tókio. Desse modo configurou-se um novo eixo de poder audiovisual, o eixo Los Angeles-Tókio cujo esperanto14 audiovisual,

14 NT – O autor faz uma metáfora para explicar a fusão de línguas-

artes.

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alimentado a partir das duas margens do Pacífico, assen-tava-se sinergicamente no poder do hardware eletrônico japonês e no atrativo comercial do software audiovisual norte-americano.

O início desta combinação de poderes foi laborioso e seus primeiros resultados não foram muito alentadores. A metáfora do cowboy e do samurai, que utilizou o ex-pert francês Philippe Delmas em seu informe ao Ministé-rio de Assuntos Exteriores sobre a rivalidade entre Japão e Estados Unidos nas indústrias de alta tecnologia, mos-trou-se pertinente para definir a nova situação. A cultura do samurai era uma cultura rígida e hierarquizada, que podia ser eficaz para a produção seriada e barata de hardware audiovisual mas resultava um inconveniente ao colocar com criatividade políticas de software que, ainda que sue produtos fossem estandardizados, exigiam doses inventivas para diferenciar cada unidade e não podiam escapar do artesanato dos objetos individualizados. O individualismo, a informalidade e a criatividade do cow-boy revelaram-se mais funcionais neste campo que o re-verencialismo hierárquico do samurai. O que Delmas chamou em seu artigo "desordem criativa" da tradição cultural norte-americana se transformava muito mais ope-rativo e funcional para desenhar os sonhos audiovisuais para as massas.

ALDEIA GLOBAL? Poucas expressões tiveram tanto sucesso popular

desde o fim da II Guerra Mundial como a famosa aldeia global, que inventou McLuhan nos otimistas anos sessen-ta. Mas essa fórmula brilhante estava baseada numa falá-cia. Nas aldeias os fluxos de comunicação são multidire-cionais e tendem e ser não hierarquizados, pois todo o mundo fala com todo mundo. Na aldeia global configu-

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rada pelas redes midiáticas atuais a comunicação tende a ser monodirecional, do norte para o sul e leste, criando efeitos de dependência econômica e cultural, porque a informação é mercadoria e ideologia a sua vez. E hoje é todavia mais monodirecional que há dez anos pelo desa-parecimento do bloco soviético e de suas áreas de influ-ência. Esta dependência que começa nas agências de no-tícias, tem muitas consequências, além da econômicas e linguísticas (a hegemonia do inglês) e vão desde a cons-trução de um imaginário planetário comum (que inclui desde a homogeinização do vestir, do fast food ou da mú-sica popular) até o famoso pensamento único, que con-verte as leis do mercado em legitimadores políticas e so-ciais supremos, universais e inapeláveis.

A base dessa assimetria e dependência do norte de-riva de fatores econômicos e tecnológicos. Segundo fon-tes da ONU, na atualidade, uma quarta parte da humani-dade (1.6 bilhão de pessoas) vive pior que há quinze a-nos. Destas, em dezembro de 1998 a FAO assinalou que 828 milhões estão desnutridas, produzindo-se o aporte mais baixo de kilocalorias por pessoa na África e Ásia ocidental, com Somália no ápice (1.580 kcal), seguida pela Eritréia (1.640), Burundi (1.710), Afeganistão (1.710), Moçambique (1720), Etiópia (1.780), Iraque (2.260). Estes párias do mundo, que carecem do mais es-sencial, não tem voz pública e, no melhor dos casos, só podem ser destinatários das mensagens midiáticas que lhes chegam gratuitamente do norte.

A dependência audiovisual planetária do norte tem muitos efeitos, como já se disse, desde os econômicos (balança comercial) até os industriais (subdesenvolvi-mento do setor midiático próprio) e culturais. Entre estes últimos figura a dependência dos interesses, gostos e mo-das da potência dominante e não só em no âmbito frívolo dos estilos de vestido e penteados, que antes citamos. As

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pessoas, com efeito, falam, interessam-se e discutem so-bre o que veem na televisão, mas não sabem falar muito daquilo que a televisão não diz, porque não lhe interessa ou não lhe convém. esta cegueira coletiva constitui um verdadeiro "escotoma midiático", pois o escotoma é a zona cega da retina em que não se ativa o estímulo visual. Da mesma forma, os meios dominantes prestam atenção naquilo que, com seus critérios e interesses nacionais, julgam relevante e fixam assim em boa medida, por sua projeção planetária, a agenda setting do imaginário universal, ainda que a agenda selecionada não se ajuste aos interesses reais e concretos das circunstâncias de cada uma das audiências.

Os efeitos perversos desta dominação midiática são de amplo espectro. Não é mais necessário ir a África sub-saariana para ver como nos míseros arrabaldes urbanos os habitantes seminus acompanham as séries americanas protagonizadas por petroleiros do Texas ou elegantes modelos de Los Angeles. E, pior ainda, quando as ima-gens e interpretação de seus complexos conflitos tribais intestinais e pos-coloniais (na Somália, Libéria, Zâmbia, Ruanda, Eritréia) vem através das versões manufaturadas pelos câmeras e apressados jornalistas acidentais que lhes renderam fugaz visita. Vale dizer, o sul contempla e in-terpreta seus próprios dramas coletivos através das ver-sões que o norte constrói e difunde. Assim o sul vê a si mesmo com os olhos do norte.

Uma prova desse hegemonia ciclópica mostrou a revolta estudantil na praça Tiananmen de Pequim em 1989, quando muitos correspondentes ocidentais, que se encontravam na capital da China, preferiram acompanhar os dramáticos eventos em seus hotéis e a frente do televi-sor, atendendo a cobertura que lhes oferecia a CNN, pois cada correspondente tinha somente dois olhos, enquanto a CNN tinha uma dezena de olhos simultaneamente aber-

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tos e oferecia uma informação já estruturada, interpretada e valorizada do que ocorria a duzentos metros, que os correspondentes se limitavam a copiar.

Existe, está claro, um norte e um sul neste planeta, mas existem também um norte e um sul em todos os paí-ses do mundo e alguns, como a Itália, que o instituciona-lizou com o famoso mezzogiorno. E também há um sul e um norte em cada grande cidade. Os abastados Estados Unidos da América não escapam desta dualidade. Era este país em 1998, por certo, o país com maior número de crianças pobres, com uns 20,5 por cento, o qu significa 14,5 milhões de crianças. E o fosso entre ricos e pobres cresce sem pausa naquele país desde 1968. 20 por cento das famílias mais ricas do país tem quase 50 por cento do total nacional de rendas, enquanto que 20 por cento das famílias mais pobres estão em torno de 5 por cento do total dessas rendas. E ao medir-se com parâmetros tecno-comunicacionais, no próspero continente europeu nos achamos com a Rússia onde somente 40 por cento dos domicílios possuem telefone, enquanto na Universidade de Sofia existe somente um computador para cada cem estudantes.

Esta dualidade econômica deve completar-se hoje com a correspondente dualidade bipolar em termos de conhecimento e de capacidade de acesso a informação, que divide a sociedade em inforricos e infopobres. Tome-se o mapa de qualquer cidade ocidental e se verifique a densidade de computadores pessoais ou de conexões a Internet em cada bairro. O mapa resultante será eloquente e permitirá comprovar que a dualidade riqueza-pobreza coincide agora com a dualidade que separa os inforricos dos infopobres, que não tem a informação necessária para serem profissionalmente competentes em uma sociedade posindustrial, nem acesso a suas fontes, nem critérios pa-ra buscá-la. vale dizer, são penalizados em termos de

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competência profissional e de oportunidades laborais. Antes citamos dados da pobreza nos Estados Unidos da América e acrescentamos agora que enquanto 73 por cen-to dos estudantes brancos daquele país tem computador pessoal em sua casa, este percentual se reduz para 33 por cento no caso de estudantes negros. Em termos gerais, 44 por cento dos lares brancos tem computadores frente a somente 29 por cento dos lares negros.

Esta dualidade divide o planeta e a cada uma de su-as nações e cidades em insiders e outsiders. Esta estrutu-ra bipolar dualiza também o desenvolvimento científico pois produz uma concentração de conhecimento para muito poucos e por isso consuma a fratura do mundo em dois tipos de civilização, a que gera conhecimentos e é capaz de transferir para a tecnologia e a que somente se limita a importá-la, se dispõe de recursos para isso.

Esta assimetria acachapante está se expandindo in-clusive as formas mais tradicionais de informação. Vale o exemplo da empresa Corbis Corporation, fundada em 1989 pelo magnata da informática Bill Gates, que se de-dica a comprar direitos de imagens, desde fotografias jornalísticas até reproduções de quadros célebres, conve-nientemente digitalizados, para dominar o mercado edito-rial baseado nas ilustrações. Sua iconoteca, que neste momento de escrever estas linhas ultrapassa os 23 mi-lhões de imagens, aspira a converter-se, segundo suas próprias palavras, em uma "Alexandria digital", em refe-rência a famosa biblioteca de Alexandria.

Esta dualização da informação e do conhecimento constitui uma forma de darwinismo cultural onde o maia poderoso impõe-se ao mais fraco, em consonância com as leis do capitalismo. Na natureza, o darwinismo expli-ca, com efeito, a sobrevivência dos indivíduos mais ap-tos, mas na sociedade humana não existem vantagens diferenciais elaboradas por cada especialização do vasto

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mundo animal, que faz que uns possam voar, outros tro-car a cor de sua pele para proteger-se melhor, ou enterrar-se na areia, ou ver na escuridão. No mundo animal todas as espécies estão equipadas para sobreviver e, se não es-tão, desaparecem. Na sociedade humana são as oportuni-dades pedagógicas, econômicas e profissionais as que determinam ao contrário a capacidade de sobrevivência dos indivíduos na sociedade atual.

A crua realidade indica que os Estados Unidos da América controla uns 75 por cento do mercado audiovi-sual internacional e, quanto maior seja o número de ca-nais e de monitores fora daquele país, maior será sua de-pendência, transformando sua opulência em colonização complacente. Por isso a globalização midiática é hoje, praticamente, sinônimo de americanização, e este domí-nio explica em parte certas reações culturais de radicali-zação identitária nacionalista ou fundamentalista, como a que se observa em alguns países muçulmanos, que se ne-gam a perder sua identidade. Também a União Européia, apesar de possuir uma produção audiovisual significativa e prestigiada, sofre com este problema, ainda que alguns países em maior grau que outros. Por volta de 70 por cen-to do mercado audiovisual europeu está controlado pelos EUA e, em dez anos – de 1988 a 1998 -, o déficit do in-tercâmbio audiovisual da Europa com aquele país pas-sou de 2 bilhões para 6,6 bilhões de dólares.

Parte deste problema deriva das atitudes dos pró-prios países europeus pois a circulação audiovisual intra-européia é muito imperfeita e deficiente. Na Espanha pra-ticamente não se vê produções audiovisuais alemãs, nem na Alemanha as espanholas e assim consecutivamente. De um lado está a fragmentação linguística, que o grande mercadao Estados Unidos-Canadá não sofre.Do outro, assinalam-se os paradoxos culturais que entorpecem a aceitação de uma produção audiovisual européia em ou-

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tro país continental. Com efeito, considerações de estrito marketing tradicional, de partilha de custos econômicos e de níveis de audiência conduziram nos anos oitenta a ex-periências infelizes de coproduções meramente aditivas, mas culturalmente descafeinadas e apátridas, que logo foram desqualificadas com o apelativo europuddings. Tornou-se evidente que um projeto cultural europeu de vários países não podia nascer a serviço de um diretor que se considerava "equidistante" de todos eles, o que incluía ingredientes de localismo ou de tipismo óbvio de cada um, postas em cena por um diretor francês, com um operador holandês, um músico alemão e intérpretes espa-nhóis, italianos e belgas. Esta estratégia acumulativa e culturalmente esperantista fracassou como algo artificial e despersonalizado dando razão a Rossellini que havia sentenciado anos atrás que "o melhor filme internacional é um bom filme nacional". As co-produções financeiras dariam melhores resultados que os europuddings de compromisso transcultural.

Por outro lado, acenou-se também com um argu-mento oposto, assinalando que os produtos audiovisuais europeus são demasiado parecidos, no sentido de que são obras elitistas de autor, para serem atraentes por seu exo-tismo, mas a sua vez, demasiadamente diferentes para se transformarem confortavelmente familiares a cada públi-co nacional. Não conseguiram, em uma palavra, o estatu-to de esperanto audiovisual familiar a todos os públicos, como conseguiu Hollywood, fazendo que o Arizona nos seja mais familiar que as planícies dinamarquesas. De maneira que a cultura audiovisual européia se vê comer-cialmente penalizada por sua grande fragmentação lin-guística e por suas tradições artísticas diferenciadas. Es-tes dados, eu na realidade constituem um tesouro cultural que deveria ser preservado zelosamente, se voltam contra si quando se valora a luz das exigências de difusão e ren-

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tabilidade da indústria audiovisual moderna. Um euro-filme como o dinamarquês "A festa de Babete( Babete Gaestebud, 1986), de Gabriel Axel (ganhador de um Os-car de Hollywwod) foi percebido pela maioria de espec-tadores de Barcelona ou de Atenas como muito mais exó-tico e alheio a seus valores culturais que um filme de a-ção rodado na distante e extracomunitária Nevada. A re-dondeza européia se transformara em distância cultural.

UTOPIAS TECNOLÓGICAS AUTOSSUFICIENTES O desenho das políticas de comunicação no mundo

moderno está em mãos empresariais, nas que convergem os interesses ou as estratégias dos economistas e dos en-genheiros. Uns e outros tem em comum que sua lógica predominante é a lógica da quanidade (em número de canais, de horas de programação, de cobertura e tamanho da audiência e, sobretudo, da faturamento e de benefí-cios). E esta lógica quantitativa não só pode não ser coin-cidente com as lógicas qualitativas dos comunicólogos ou de certos projetos políticos, senão as vezes pode ser cla-ramente oposta.

Desde que Abraham Moles entronizou o slogan da "opulência comunicacional" nos anos sessenta, as lógicas quantitativas dominaram claramente o setor audiovisual sobra as lógicas qualitativas. Uma consequência desta perspectiva é o proclamado ideal da sociedade dos qui-nhentos canais, um mito/meta – alguns estão subindo agora aos mil canais – que se coloca como horizonte de plenitude e de felicidade midiática. Coloca-se, sobretudo, de acordo com a lógica quantitativa dos engenheiros e economistas.

É muito menos frequente que os gestores deste sis-tema comunicacional perguntem-se criticamente o que

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vão oferecer com tantos canais. A resposta lógica é que muitos destes canais vão incrementar nossa dependência das despensas norte-americanas quando a programação de ficção narrativa de Hollywood em nossas telas grandes e pequenas, na Europa, já ultrapassa os 70 por cento. Os gestores do audiovisual europeu, em um continente que consome mais horas de ficção das que é capaz de repro-duzir, sabem que sai mais barato e menos arriscado com-prar programas enlatados norte-americanos que produzi-los. De modo que maior número de canais ou de horas de emissão significa, a princípio, uma maior dependência de Hollywood, tanto no plano econômico como no cultural (estético, estilos de vida, valores ideológicos, etc.).

Os catálogos norte-americanos oferecem hoje a-proximadamente uns 40.000 títulos de longas-metragens cinematográficos próprios, o que inclusive significa uma cifra exígua na perspectiva de desenvolvimento, já que condena as estações a repetição periódica de títulos. Na época gloriosa do cinema, os departamentos de diretores e os estúdios de rodagem norte-americanos podiam ad-ministrar varias centenas de longas ao ano. Mas agora, ante a bulimia televisiva de filmes, já não se exige cente-nas, senão milhares.

O crescimento do número de canais, que parece ser a panacéia dos engenheiros e economistas na sociedade da informação, não só estabelece um desequilíbrio agudo entre o hardware emissor (que se pode produzir em série e se caracteriza por sua grande voracidade programadora) e o volume limitado do software audiovisual disponível (cuja confecção é, ao contrário, artesanal, diferenciada e sujeita a certas leis de criatividade), senão que cria tam-bém outros problemas. Contribui, com efeito, para desin-formar e fragmentar a audiência, que pode diminuir para muitos canais até níveis críticos, reduzindo assim a recei-ta publicitária ou de assinaturas. esta diminuição de recei-

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tas pode ter consequencias na programação das estações afetadas, ou pior. conduzir a uma deterioração de sua produção e/ou capacidade de aquisição, empurrando para uma programação conservadora, pouco ambiciosa e que evite riscos, insistindo no já comprovado e na redifusão de títulos e programas já emitidos e incrementando sua dependência dos centros de produção baratos; ou bem pode conduzir a uma ofensiva sensacionalista e a práticas demagógicas, para atrair a audiência, caindo assim até a telelixeira.

A hiperinflação informativa, o excesso de oferta audiovisual, além de desinformar o público, favorece sua banalização e estimula a estratégia empresarial do grito sensacionalista para fazer-se ouvir neste frondoso merca-do. O excesso de informação conduz a degradação entró-pica das idéias, ou melhor, a desinformação qualitativa, pois as idéias se simplificam e se convertem em slogans, pílulas ou clichês. Mas além de conduzir a desinformação da audiência, a sobreoferta pode desembocar no que Her-bert Schiller denominou "grande variedade do mesmo". É dizer, em uma falsa diversidade.

Mas é certo que o sistema de tv a cabo ou de tv por assinatura se baseia no princípio da diversificação da o-ferta – com critérios temáticos ou territoriais – e de seg-mentação qualitativa das audiências, segundo interesses grupais. Este desenho admite um arejamento cultural, mas só até certo ponto porque os imperativos demográfi-cos e de rentabilidade impõem tetos ao sistema. A seg-mentação das audiências converge com o ideal democrá-tico da autoprogramação dos usuários, que tanto se exal-tou depois maio de 1968. Esta autoprogramação já existi-a, de modo relativamente satisfatório, no mercado edito-rial, discográfico e, em menor medida, no videográfico, devido a hegemonia das multinacionais norte-americanas neste setor. Mas estes precedentes demonstram que a au-

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toprogramação do usuário soberano, que culmina na fór-mula de "TV a la carte" tem o efeito perverso de consoli-dar e perpetuar a estratificação da pirâmide cultural e do gosto, pois as pessoas se autoprogramam segundo seus níveis educacionais e suas preferências – desde a teleno-vela mexicana a ópera -, corroborando o princípio da dualização cultural em nossa sociedade. O ideal democrá-tico da autoprogramação também tem seus tetos e exige o requisito prévio de uma política educativa universal e de qualidade sob pena de abrir uma brecha já existente entre alites e massas, entre insiders e outsiders da sociedade do conhecimento.

Temos passado,pois, do broadcasting generalista ao narrowcasting seletivo dos mass media aos group me-dia e agora estamos, por fim ante a fase ultrasseletiva da programação do próprio terminal audiovisual com nosso software, para receber informação e o videodisco domés-tico acabou por banalizar estas opções (Visconti ou por-nografia?), mas o computador inserido no sistema de te-lecomunicações nos oferece agora a promessa Stewart Brand qualifica com entusiasmo como broadcatch, ou seja, uma autoprogramação informativa especializada, de modo que o equipamento de informática de cada usuário somente receberá do fluxo de dados que lhe chegam a-queles programados de acordo com seus interesses pro-fissionais ou lúdicos. notícias financeiras, desportivas, etc. Esta captura seletiva de informação especializada permitirá que alguns cidadãos possam viver sem inteirar-se, por exemplo, que começara uma guerra entre China e Estados Unidos.

Ninguém discute que a especialização é uma ne-cessidade para viver na atual conjuntura informativa, mas o fetichismo da autoprogramação ultraespecializada pode gerar aquele "sábio ignorante" que anatematizou Ortega, sábio em sua parcela e ignorante em todas as demais, em

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um sábio ignorante e também descontextualizado. O ser humano é o único ser da natureza cuja especialidade é a não especialização, donde deriva sua enorme adaptabili-dade e labilidade d e sua conduta e suas respostas. Os biólogos sabem que existe uma contradição essencial en-tre a especialização que é própria de todas as espécies animais e que se transmite geneticamente e sua capacida-de de adaptação ao meio. Um pinguim não pode sobrevi-ver nos trópicos nem uma girafa entre os gelos, mas o ser humano pode fazê-lo em ambos lugares. Especialização equivale a adaptação a um meio específico, fora do qual se produz a morte. Por isso, na sociedade humana, a ul-traespecialização excludente nos aparece como um con-dição inumana.

Um exemplo meridiano de tecnologia desenhada com grande otimismo pelos engenheiros e alentada pelos economistas, desde o princípio dos anos oitenta, e que acabou por fracassar em sua implantação prática foi a Televisão de Alta Definição - TVAD (HDTV, em inglês). Com efeito, em 1981, a companhia Sony, com o projeto de renovar o parque excessivamente saturado de televiso-res em cores nos países desenvolvidos, apresentou o pri-meiro protótipo de TVAD de 1.125 linhas (cifra eclética entre o dobro da definição européia e norte-americana), com uma grande tela horizontal de proporções 16/9, sis-tema não compatível com os receptores vigentes e que foi adotado em caráter experimental pela televisão pública japonesa NHK. Precisamente uma das razões que impul-sionaram a Sony a interessar-se pela compra de produto-ras-distribuidoras de Hollywwod, que antes tínhamos mencionado, foi a de apoiar o lançamento do que de seu novo sistema com filmes comerciais atrativos para o mercado.

Depois desta iniciativa, e para responder ao concei-to tecnológico japonês, um consórcio pan-europeu de

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empresas eletrônicas (a holandesa Philips, a francesa Thompson e a alemã Bosch) colocou a funcionar seu sis-tema compatível de 1.250 linha, também com uma tela de 16/9 e som digital (definição que, não obstante, seguia sendo inferior ao da película tradicional de cinema de 35 mm). Durante o processo de instalação, em 1987, a RAI produziu um longametragem fantástico Julia e Julia (Gi-ulia e Giulia) de Peter del Monte, com o sistema japonês e provocou por isso uma severa repreensão européia con-tra sua falta de solidariedade técnica. A indústria privada norte-americana, ao contrário, esteve duvidando durante anos desta melhoria técnica até que as necessidades da espionagem militar do Departamento de Defesa, no mo-mento álgido da guerra fria e considerações estratégicas do Departamento de Comércio combinaram-se para con-seguir que o Congresso concedesse fundos públicos ao setor privado para impulsionar a pesquisa nesse campo, mediante a criação de um Advanced Television Systems Committee. O ceticismo da indústria privada norte- disso havia americana, que não se movia pelo prestígio nacio-nal senão por benefícios contábeis, estava amplamente justificando. Em primeiro lugar, freava seu otimismo o alto custo que supunha, em uma fase inicial, a aquisição de novos receptores (com preços superiores a um milhão de pesetas), sem contar o elevadíssimo custo que comportava a renovação total das estações, desde as câmeras e magnetoscópios até os equipamentos emissores de radiofrequência. Mas além disso havia ou-tras razões. Diversas experiências anteriores haviam demons-trado amplamente que, ao contrário do que sucedeu com a passagem da tv em preto e branco para a colorida, a alta definição tinha um glamour e um poder de atração muito baixo para o mercado. Todo mundo recordava que a pro-posta da Paramount em 1954 de altíssima definição com seu sistema cinematográfico Vistavision, que utilizava

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um negativo duplo do normal, morreu sem pena nem gló-ria pouco depois. Recorda-se também eu a França havia rebaixado, sem queixas espaciais nem escândalo naquele país, sua definição inicial de 819 linhas para 625, para homologar-se com o standard europeu. E era mais recen-te o fracasso e desaparecimento do mercado dos sistemas de vídeo doméstico da maior definição (Betamax, V-2000 e Super-VHS) em favor do modesto VHS, pela maior oferta de películas disponíveis para este sistema. Conclusões análogas se extraíram da decepcionante expe-riência levada a cabo pela Sony durante os Jogos Olímpi-cos de Seul em 1988, pois as vitrines com receptores de TVAD não atraíram mais audiência que as que conti-nham os aparelhos tradicionais já que o público queria conhecer os resultados das competições e o que realmen-te lhe interessava eram os conteúdos e não a sofisticada qualidade da imagem.

Ainda haviam outras razões para o pessimismo e todavia mais preocupantes. A TVAD declarava automati-camente obsoletos para o novo sistema os enormes arqui-vos de material audiovisual de baixa definição, ou seja, todo o material registrado em vídeo tradicional ou rodado em suporte de 16 mm. Unicamente o caro material roda-do em 35 mm era apto para o novo sistema. E também uma grande parte daquele material (os filmes rodados nos anos trinta, quarenta e parte dos anos cinquenta) não se ajustava ao formato de tela de 16/9. E para acabar a roda-da de inconvenientes, a tela grande da TVAD (conse-quência técnica e publicitária lógica da melhor definição) não parecia muito apta para o desenho dos pequenos a-partamentos populares, tendo em conta a distância ade-quada que deve manter-se entre a tela e o ponto de obser-vação. Enquanto, para os produtores e distribuidores de vídeos eletrônicos de alta definição o novo sistema conti-nuava sem resolver o grave problema da vulnerabilidade

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deste produtos magnéticos para sua conservação dura-doura, em contraste com o que sucede com a imagem fotoquímica sobre acetato de celulose que aspiravam substituir. Resumindo, a TVAD, que teria de haver-se implantada na União Européia em 1995, seguiu o triste caminho da quadrifonia que, apesar de sua indubitável perfeição acústica hoje só pode ser admirar-se sob o pó das vitrines dos museus da técnica.

E para complicar ainda mais o panorama, o sistema TVAD norte-americano mais tardio e, precisamente por ser mais tardio, orientou-se para a imagem digital, dei-xando de vez obsoletos os primitivos sistemas analógicos japonês e europeu. Dos três sistemas, o único que funcio-na publicamente na atualidade é o japonês, de modo res-tringido e com uma aceitação muito fria, enquanto que a rede européia está se orientando para o modesto PAL Plus, de tela horizontal de 16/9. Isto encurralou a imagem eletrônica de alta definição aos usos científico e profis-sionais, entre os que figuram a produção de efeitos visu-ais especiais para películas cinematográficas, como fize-ram Coppola, Wim Wenders, Kurosawa, Peter Greena-way ou George Lucas, demonstrando novos pontos de tangência entre o cinema tradicional e a nova tecnologia eletrônica.

No fim das contas, o erro de teóricos tão distintos como McLuhan ou Abraham Moles resumiu-se em su-perdimensionarem o valor culturalmente redentor da tec-nologia, fazendo abstração dos fatores sociais em que elas se inserem. Seu otimismo foi o mesmo que alentou aos engenheiros e economistas a buscar seus sucessos no campo da comunicação de massas por via quantitativa. Os fracassos tecnológicos que temos enumerado – desde a quadrifonia a TVAD – radicaram-se em todos os casos em que, sendo tecnologias muito sofisticadas, por uma ou várias razões, não se adequavam as necessidades sociais

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específicas de seus próprios contextos. Por isso devem ser qualificadas como utopias tecnológicas autossuficien-tes.

A CULTURA INTERSTICIAL Nos anos sessenta, a reação frente aos oligopólios

midiáticos e tirania dos interesses mercantis – que difun-dia aquela "grande variedade do mesmo" – denunciada por Schiller – inaugurou a contracultura como resposta democrática e popular e conduziu a hipóstase de marginalização ou de automarginalização, idealizando com isso a cultura marginal produzida fora do sistema institucional e dominante, utilizando para isso duplica-dores, fotocopiadoras ou formatos cinematográficos substandar (de 16, 8 ou super 8). Assim floresceu a cultura undergournd e o fez precisamente nas áreas capitalistas mais prósperas, nas zonas universitárias das costas ocidental e oriental dos Estados Unidos. A nova contracultura exaltou o amor livre e a desinibição de todos os sentidos e a revolução social e de costumes que implantaria a Eros como guia supremo em uma cultura de prazer, entre o aroma da marijuana e do incenso oriental, derrotando com seu impulso a cultura midiática do consumismo, do arribismo social e da alienação. O livro de Herbert Marcuse Eros e civilização (um antigo texto de 1995), converteu-se na Bíblia das novas generalizações nascidas com o cogumelo atômico de Hiroshima. O barateamento e a simplicidade funcional das tec-nologias preeletrônicas que acabamos de enumerar e o alto nível de vida e capacidade aquisitiva em tais zonas universitárias permitiu que os filhos da opulência se sub-levassem contra a sociedade opulenta que lhes tinha a-mamentado, criando suas próprias redes e circuitos de distribuição cultural alternativa para propor sua dissidên-

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cia ideológica, sua insurreição moral, sua permissividade sexual e seus novos estilos de vida. Alguns destes meios acabaram por ser, apesar de seu vocabulário marginal, muito influentes, como as revistas The Village ou Rolling Stones, os filmes de Andy Warhol, os quadrinhos de Ro-bert Crumb ou as gravações de Jimi Hendrix. Não se po-de subestimar a influência que esta, se bem contracultura underground acabou por ter, com lenta penetração capi-lar, nos gostos, costumes e estilos de vida do mundo ur-bano ocidental. Ainda que a maconha tenha ascendido até os parties da Park Avenue e a promiscuidade sexual co-meçasse a ser vista como chic em algumas zonas da bur-guesia, o certo é que o complexo militar-industrial não desapareceu, Wall Street não se desmoronou e o sistema capitalista, engordando agora seu negócio com as novas modas culturais, seguiu gozando de excelente saúde.

Mas o ideal da automarginalização orgulhosa do sistema foi varrido na década seguinte pelo crescimento da ética e da estética yuppie (Young Urban Preofessio-nals) e hoje aparece como claramente irrecuperável. Vi-vemos num mundo distinto e ninguém quer autoexcluir-se da sociedade, por muito que se critiquem sua organi-zação, suas disfunções e suas injustiças. Aspira-se a competir e a subir nela e quem não aspira a tanto limita-se a lutar por sua sobrevivência em sei seio. Além disso, na frente cultural, impôs-se a nova e decisiva ferramenta de informática, de que falaremos mais adiante.

Na atualidade, o velho conceito de autoexclusão ou marginalização arrogante do sistema cultural deveria ser recolocado por outro novo e atualizado. pelo da cultura intersticial. Entendo como cultura intersticial aquela que ocupa os espaços que não atende e deixa a descoberto a oferta dos aparelhos culturais dominantes, normalmente de origem multinacional ou imitação local dos modelos hegemônicos multinacionais. Trata-se de espaços desa-

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tendidos pelos designers de entretenimento para econo-mias de escala e que hoje podem beneficiar-se,precisamente, da tão controvertida globalização, devi-do a que esta globalização, que uniformizou nossos gos-tos e criado os públicos globais, permite consolidar tam-bém o tecido das imensas minorias internacionais. Os filmes de Theo Angelopoulos ou de Jim Jarmush estréi-am em Paris, Buenos Aires, Tóquio e Copenhagem gra-ças as elites cinéfilas do mercado global e esta globalida-de permite a amortização de seu custo.

Por isso é urgente consolidar as redes de distribui-ção da cultura intersticial, capazes de alcançar a essa i-mensa minoria internacional, que constitui o contraponto positivo do consumo global uniformizador e centrípeto do fast food cultural que hoje domina nossos mercados midiáticos. O caráter assistemático e não hierarquizado da comunicação horizontal, democrática e global da In-ternet – de que falaremos em outro capítulo – permite converter a rede em um instrumento potente para a cultu-ra intersticial.Os usuários da Internet podem beneficiar-se de um princípio fundamental da teoria do caos, a saber, que pequenas causas – como o vôo de uma mariposa – podem gerar grandes efeitos, segundo a fórmula da bola de neve ou, se preferir-se, do efeito do multieco (repeti-ção multiplicadora dos usuários). Deste modo, nesta ágo-ra informática aberta, uma "modesta proposição" (Jona-than Swift dixit) pode converter-se em uma verdadeira revolução midiática induzida desde o ciberespaço, fazen-do realidade o princípio da diversificação cultural demo-crática.

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IV DA INTELIGÊNCIA À EMOÇÃO

E O DESEJO ARTIFICIAIS

CÁLCULO E PENSAMENTO SIMBÓLICO

á muitos séculos, o ser humano intenta au-tomatizar seu pensamento ou algumas de suas funções mentais, utilizando para isso meios artificiais, primeiro de natureza me-cânica, como o ábaco, que foi usado para

efetuar cálculos por gregos, romanos, índios, chineses e astecas. No século XIII o maiorquino Ramón Llull ensai-ou, ao contrário, uma "máquina lógica" com partes mó-veis, programada por meio de símbolos com intenção filosófico-religiosa-apologética para tentar demonstrar cientificamente as verdades da fé cristã e converter a ela os infiéis. Sua contribuição foi capital pois saltou do campo numérico e calculista ao simbólico, cujos valores V (verdadeiro) e F (falso) prenunciaram o sistema biná-rio, que formalizaria mais tarde Leibniz com o 0 e o 1, que se constituiria logo como linguagem dos computado-res atuais. Mas as necessidades comerciais favoreceram em boa medida as máquinas de calcular, como a dese-nhada por Pascal e, já no século XIX, as complexas má-quinas analíticas de Charles Babbage, que podiam resol-ver equações de um modo automatizado, ainda que não chegasse a completar sua construção. Babbage morreu em 1871, quando as tecnologias pré-informáticas e proto-informáticas estavam recebendo um grande impulso ao serviço dos interesses financeiros, comerciais e burocrá-ticos do capitalismo. a primeira máquina de escrever co-mercializada apareceu em 1874 e a caixa registradora foi patenteada em 1879.

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Mas os computadores, como tecnologia eletrônica, não se desenvolveram até a II Guerra Mundial, para aten-der as necessidades militares. O volumoso Harvard Mark I, do matemático Howard H. Aiken foi construído em 1943 pela e para a Marinha de Guerra dos Estados Uni-dos, com a finalidade de calcular as trajetórias balísticas. O invento dos transistores e do microprocessador em pas-tilhas de silício (chip) reduziram o tamanho e baratearam consideravelmente sua produção. Os microprocessadores com seu baixo custo e sua onipresença, permitiram desde 1980 uma encefalização eletrônica massiva na vida coti-diana e de seus gadgets, desde o relógio digital até a la-vadora programável. A tudo isso deve ser acrescentado a introdução das telas – um elemento familiar e desejado do público televisivo – para potencializar a difusão popu-lar e massiva destes artefatos.

De maneira que se em 1951 McLuhan pode definir o automóvel como a "noiva mecânica" do cidadão da era como noivo/a eletrônico/a dos cidadãos da era pos-industrial. Esta mutação não teve só um valor metafórico, pois também no campo dos negócios o setor de informá-tica-telecomunicações converteu-se nos anos noventa no motor do desenvolvimento econômico. Em 1999 este se-tor cresceu na Alemanha uns 7,8 %, com uma cifra de negócios de 105,3 bilhões de euros, substituindo com isso o setor automobilístico como primeira indústria nacional. Neste mesmo ano Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal norte-americana atribuiu a sustentada prosperi-dade de seu país a revolução da informática.

A continuada informatização da sociedade não po-de silenciar algumas críticas, suspeitas ou advertências neofóbicas sobre sua implantação. Alguns pedagogos advertiram sobre a desvalorização da memória nas crian-ças escolarizadas por efeito festa prótese eletrônica. Os psicólogos mostraram sua preocupação por uma cidada-

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nia que passava oito horas frente a tela do computador em seus escritórios para consumir outras quatro ou cinco em sua casa frente a tela do televisor. Alguns médicos desaprovaram a exposição continuada as radiações da tela, sua agressão visual, seu persistente zumbido subli-minar e a rigidez postural de seus operadores. Muitos u-suários lamentaram-se do excesso de prestações das má-quinas, mais do que as verdadeiramente necessárias e suas conseguintes complicações funcionais. Algumas es-posas lamentaram-se do excessivo tempo que consumiam seus maridos frente ao computador doméstico provocan-do sua desatenção os primeiros "divórcios informáticos" da história. Muitos políticos inquietaram-se pela voraci-dade acumulativa do setor público aos dados privados dos cidadãos (de saúde, receitas, religião, opção sexual, filiação sindical, etc) que, suscetíveis de serem cruzados entre várias bases, destruiriam sua intimidade e ilumina-riam vulneráveis "cidadãos de cristal", transparentes para os poderes de um inquisitivo estado orwelliano. E o crash da Bolsa de Nova York de 19 de outubro de 1987 e sua devastadora irradiação a todas as economias mundiais foi atribuído a excessiva rapidez dos computadores utiliza-dos nas bolsas.

Em que pese todas estas resistências neofóbicas, algumas delas perfeitamente razoáveis, esta nova tecno-logia expandiu-se universalmente e diversificou com presteza seus usos e aplicações. O grande salto qualitati-vo em sua evolução produziu-se nos anos cinquenta, quando os computadores passaram do emprego de faze-rem somente cálculo numérico para o tratamento de sím-bolos, como faz a inteligência humana. No verão de 1956, em uma conferência de especialistas celebrada no Dartmouth College, John MacCarthy cunhou a expressão Inteligência Artificial (IA) e, para fazê-la realidade, in-troduziu pouco depois o tratamento simbólico da infor-

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mação nos computadores. Deste modo pode-se passar dos aspectos quantitativos aos aspectos qualitativos, do cálcu-lo a simulação de raciocínio.

Em seguida a sobreposição da nova tecnologia com os interesses militares estava bem consolidada no seio do que o presidente Eisenhower batizou como complexo militar-industrial, e de sua interação nasceria a infografia, Internet e as técnicas de realidade virtual. E ele permane-ceria mesmo depois do colapso do bloco soviético e do final da guerra fria. Basta recordar que o general James A. Abrahamson, que dirigiu até 1989 o projeto de "guerra nas estrelas", posto em pé por Ronald Reagan, passou a presidir ao acabar seu mandato uma importante empresa de informática, a Oracle. Os exemplos poderiam multi-plicar-se.

O PROJETO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Quando o potente computador Deep Blue derrotou

em fevereiro de 1996 o campeão de xadres Gary Kaspa-rov, muitos jornais ventilaram a conclusão sensacionalis-ta de que por fim a inteligência de uma máquina havia derrotado a inteligência humana. Nada mais falso. A vitó-ria de Deep Blue constituiu, de fato, uma vitória da inte-ligência humana que o havia desenhado e construído, pois conseguiu que pudesse prever todas as combinações no tabuleiro com uma antecedência de sete ou oito mo-vimentos, enquanto que Kasparov somente podia anteci-par três e meia. E nesta antecipação radicou-se a chave de seu êxito.

Na realidade a reflexão moderna acerca da suposta inteligência de certas máquinas começou em 1950 quan-do o britânico Alan Turing publicou na revista Mind seu artigo "Computer Machinery and Intelligence", onde co-locou pela primeira vez o dilema de se as máquinas po-

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dem pensar e concluiu que era inteligente aquilo que se comportava de um modo inteligente. Tratava-se de uma conclusão muito coerente com o behaviorismo que domi-nava então os estudos de psicologia e que via os orga-nismos como caixas pretas que eram julgadas unicamente por suas respostas observáveis a ação de um estímulo. Turing propôs que quando as respostas de uma máquina a um interlocutor humano que não a visse não lhe permitis-sem discernir que se tratava de uma máquina ou de um ser humano, sua inteligência seria de fato como a huma-na,. Assim, a chamada "prova de Turing", de obediência behaviorista, atribuía um antropoformismo mentalista potencial ao computador, medido pela inteligência de suas respostas.

A investigação ulterior estaria obrigada a concen-trar-se, inevitavelmente, em indagar os processos de fun-cionamento mental, mergulhando nas interioridades da caixa preta behaviorista, para copiar seus processos e produzir modelos de Inteligência Artificial. De modo que resultaria um paradoxo que os supostos simplificadores do estímulo-resposta behaviorista conduziram, necessari-amente, a bisbilhotar logo nas interioridades de sua mis-teriosa caixa preta, para copiá-la e acabaram por destro-nar com isso a frieza mecanicista do modelo comporta-mental e potencializaram, ao contrário, o desenvolvimen-to de seu enfoque científico antagônico, a psicologia cognitiva, que hoje reina como disciplina prioritária na comunidade acadêmica.

Nas décadas seguintes ao artigo de Turing, a Inteli-gência Artificial converteu-se em uma meta equivalente ao que a pedra filosofal significou para os alquimistas medievais. Os investigadores aspiravam a uma tecnologi-zação do psiquismo humano, mecanizando o pensamento com uma inteligência extracorporal, na tradição da dis-tante "máquina lógica" de Ramón Llull. O projeto nascia

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de uma inteligência viva na máquina evocava literalmen-te a dicotomia corpo-alma que atormentou o pensamento de Descartes, perplexo acerca da causalidade do segundo sobre o comportamento do primeiro, já que a alma podia existir independentemente do corpo. Só que Descartes acabou atribuindo a localização da alma, que mobilizava o corpo de modo inteligente, na glândula pineal do cére-bro. Os novos engenheiros tiveram que renunciar ao espí-rito pineal cartesiano para produzir seus mesmos efeitos, mas com isso nem sempre dissiparam a velha dualidade matéria-psiquismo e seus modos de interação.

Uma versão conservadora e provisória deste fe-nômeno poderia afirmar que a máquina, na realidade, não é inteligente, mas seu programa, seu modus operandi, representa, radicalmente, a inteligência ausente de quem o desenhou, ao copiar alguns elementos de seu funcio-namento mental. E, se não quisesse desviar-se da filoso-fia escolástica na que Descartes educou-s como bom cris-tão, acrescentaria que se as três potências da alma são a memória, o entendimento e a vontade, a máquina simula-ria a primeira de modo aceitável, intentaria reproduzir (de modo comportamental) os efeitos da segunda, mas care-ceria de um equivalente da terceira.

O verdadeiro pai da Inteligência Artificial foi Mar-vin Minsky, do Masschusetts Institute of Technology quem entendeu que um computador podia comportar-se de modo inteligente graças a sua capacidade para mani-pular símbolos discretos, como faz a mente humana. Em 1961 Minsky elaborou um elenco de funções que deveria cumprir uma machina sapiens, tais como o reconheci-mento de padrões, o planejamento, a capacidade para a indução e a inferência, etc. tinha muito claro que a Inteli-gência Artificial dependia tanto da Engenharia como da Psicologia, das neurociências e da linguística. Na reali-dade, hierarquizou as diferentes funções da máquina inte-

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ligente, na que podem distinguir-se os processos cogniti-vos superiores (como a aquisição do saber) dos processos cognitivos inferiores (como as percepções e os processos motores). Ficaram estacionados, obviamente, os proces-sos emocionais e os desejos, que tanta importância tem na tomada de decisões humanas, mas que então se consi-deravam terra ignota para fins de engenharia.

Algumas estratégias computacionais resultaram bs-tante óbvias, como o hipertexto, que não é mais do que um sistema de conexões lógicas no processo de associa-ção de idéias no cérebro humano, fundamentando com frequência nas relações semânticas. De tal maneira que a partir de um conceito chave podem se derivar conexões baseadas na sequencialidade, na hierarquia, na afinidade, etc. A aplicação mais rápida, simples e produtiva da Inte-ligência Artificial a construíram os chamados "sistemas especialistas", que não são mais que buscadores de alta velocidade em bases de dados especializadas (em medi-cina, advocacia, etc) e que respondem a consultas do tipo "se, então...".

Em sua fase mais eufórica Minsky afirmou que o e as máquinas "o cérebro humano é só uma máquina de carne" e caracterizou a esta peculiar máquina orgânica como uma "rede de redes", cada uma delas com sua espe-cialização funcional específica. mas existem algumas di-ferenças importantes entre o cérebro e as máquinas de produção humana. Comecemos pelas mais óbvias e apa-rentes. Ao contrário do hardware produzido pelos enge-nheiros, o cérebro constitui uma máquina neurofísiológi-ca criada pela natureza, um wetware orgânico (wet.úmido, em inglês) e sua produtividade "úmida", que regula o funcionamento da vida física e psíquica é muito distinta da produtividade "seca" da máquina. E isso por boas razões físicas e funcionais. No cérebro humano não existe e clássica distinção entre hardware e software, cri-

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ando sucessivas "submetas", dependentes ainda que possa se dizer ,por analogia metafórica, que seu hardware está formado por sua matéria orgânica, enquanto que seu software é propriamente o conjunto de funções inscritas naquela estrutura orgânica. E se chamamos "mente" a atividade psíquica consciente produzida pelo processa-mento eletroquímico de informação no cérebro, tal "men-te" seria produto do funcionamento de seu wetware, de acordo com suas funções que lhe são próprias. Mas esta distinção deveria fugir de qualquer tentação dualista, pois a mente seria uma produção inseparável e integrada das estruturas neurofisiológicas do wetware que a produziu.

O cérebro humano constitui uma densa rede neuro-nal formada por uns cem bilhões de neurônios diferenci-ados e interconectados, que transmitem e recebem de modo não linear sinais eletroquímicos muito especializa-dos. Este prodigioso supercomputador orgânico, em que milhões de neurônios operam em funcionamento parale-lo, pode armazenar um milhão de megabits de informa-ção, superando qualquer sistema artificial de armazena-mento de informação. Não só isto. A estrutura da inteli-gência, como pode inferir-se, é de uma grande complexi-dade funcional. Vejamos um exemplo simples, que evi-dencia sua capacidade geradora de motivações e de deci-sões em cascata. Um homem quer fugir com sua amante para o Brasil mas não tem dinheiro para comprar as pas-sagens de avião. Por isso toma uma segunda decisão. dar um golpe ou fazer um assalto para conseguir dinheiro. Mede as dificuldades de ambas iniciativas e acaba por optando pelo assalto. Para fazê-lo tem que conseguir um arma e também decide disfarçar-se e compra uma peruca; a seguir tem que escolher um grande no estabelecimento que quer roubar e planejar como o fará, etc.

Neste exemplo pouco instrutivo moralmente reve-la-se a sequência concatenada de decisões que o amante

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deve adotar (os chamados "desejos derivativos"), que vão criando sucessivas "submetas", dependentes das anterio-res "submetas" satisfeitas ou insatisfeitas. Mas não é ne-cessário usar um exemplo tão rocambolesco como do nosso amante fugitivo. No ser humano, qualquer pequena informação pode mobilizar um grande número de conhe-cimentos e de decisões. Assim, quando um motorista ob-serva um semáforo com a luz verde entende que está au-torizado a arrancar seu veículo, que deve levantar o pé do pedal do freio, que deve verificar que nada se interpõe ao veículo, que deve pisar no acelerador, etc. Uma complexa cascata de decisões, que muitas vezes adotamos de modo automático é desencadeada por uma pequena informação. E o mesmo ocorre com toda a cadeia de inferências e de atos, imediatos ou diferidos, que podem seguir a piscade-la de cumplicidade de um amigo. nas máquinas as coisas não ocorrem exatamente assim.

Os insuficientes conhecimentos atuais sobre a ana-tomia e bioquímica dos neurônios cerebrais não permi-tem todavia modelar especificamente sua atividade que, por outro lado, é heterogênea e amplamente diversifica-da, pelo que estamos muito longe de poder construir um neocórtex órbito-frontal eletrônico. E o que sabemos so-bre o cérebro humano produz mais decepção entre os en-genheiros. Davis Marr e Tomaso Poggio, do Massachu-setts Institute of Technology calcularam em 1976 a e-norme diferença de densidade do "cabeamento" em um computador e em um cérebro. em um computador digital a relação entre as conexões e os componentes é de três, enquanto no córtex dos mamíferos está entre 10 e 10.000. Jacob Schwarz, da Universidade de Nova York calculou que o ritmo de computação que se necessita para emular o funcionamento do cérebro humano, sobre a base de neurônio por neurônio pode ser tão alto como um trilhão de operações aritméticas por segundo, o que está muito

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fora do alcance da tecnologia atual. E David L. Waltz, professor de computação da Universidade Brandeis, cal-culou que os maiores computadores atuais não tem mais que um quatrilionésimo da capacidade de memória do cérebro humano.

Mas, apesar da tais diferenças e dificuldades, os engenheiros copiaram com certo êxito algumas estraté-gias do cérebro humano. Tal ocorreu com as chamadas redes neuronais, inspiradas na realidade neurológica e baseadas no conexionismo e que demonstraram certa ca-pacidade para a aprendizagem. Seu pioneiro foi Frank Rosenblatt, cujo Perceptron (1958) ainda muito rudimen-tar, utilizava uma rede de neuristores, circuitos elétricos destinados a modelar neurônios. O problema técnico cen-tral radica-se em que o cérebro humano não é na realida-de um computador, senão muitos computadores ao mes-mo tempo, que trabalham coordenados com funções (ou programas) distintos e complementares. Nada mais dis-tante de sua complexidade que os computadores tradicio-nais, segundo modelo de Von Neumann, com uma arqui-tetura de processamento em série da informação. O cére-bro humano é um processador paralelo massivo, como se disse, e é justo reconhecer que as arquiteturas de proces-samento paralelo da informação dos novos computadores melhoraram muito sua velocidade operativa, ainda que seus sinais não possam manifestar-se obviamente mais rápidos que a velocidade da luz, o que assinala um limite rígido em sua performance futura.

Mas há que se acrescentar mais. O cérebro humano – que Douwe Draaisma15 chamou pertinentemente "a jóia da coroa da evolução" – não teve um programador exter-no, como o tem as máquinas, senão que foi "programa-

15 NT - Douwe Draaisma (1953) é professor de História da Psicologia

na Universidade de Groningen- Holanda.

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do", admitindo-se a metáfora, pela prolongada evolução da espécie ao longo de milhões de anos, ao que se somou logo as experiências singulares e a aprendizagem de cada indivíduo. De maneira que o cérebro humano, ao nascer, não está uma tabula rasa, senão que dispõe de uma he-rança genética e de competências, entre as que sobressai sua competência linguística inata, estudada por Chomsky. Sua inteligência e suas capacidades psíquicas forjaram-se ao longo de milhões de anos, em um sistema progressivo de aprendizagem baseado na prova e no erro, de caráter adaptativo, para assegurar sua sobrevivência e funciona-lidade. neste processo adquiriu suas capacidades mentais, como as de generalização, as de associação e de inferên-cia e as de previsão racional, necessárias para sobreviver.

De maneira que no cérebro humano, e ao contrário da máquina, o "cabeamento" é o produto final de milhões de anos de adaptações evolutivas ante os desafios de am-bientes em mudança e foi transmitido geneticamente de geração em geração. Por isso cada inteligência humana é fruto de uma herança genética e de uma biografia indivi-dualizada e pessoal que se lhe sobrepõe. É, sobretudo, um fruto biológico em cujo processo adaptativo a moral apa-rece ausente. Assim, Richard Dawkins, o autor de O gen egoísta, desenvolveu a teoria de que o cérebro humano é um órgão que evoluiu para servir aos interesses de seus gens. De tal maneira que um ato altruísta não seria na realidade, em aparente paradoxo, mais que uma resposta destinada a satisfazer o egoísmo dos gens. É fácil obser-var, a partir de todo o exposto, a abismal diferença que separa o cérebro orgânico do cérebro mecânico. Esta pos-sui somente as competências que os engenheiros lhe do-tou, mas carece de herança genética e adaptativa.

Entende-se por inteligência a capacidade própria de certos organismos para adaptar-se a situações novas utili-zando para tal o conhecimento adquirido no curso de an-

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teriores processos de adaptação. Mas não todos os orga-nismos podem aprender tudo, pois o grau de especializa-ção aumenta em cada escala biológica quanto mais sim-ples e primitivo é um organismo. Os vermes são muito mais especializados e sua conduta é por isso mais deter-minista que a de um chimpanzé, por exemplo, e quanto menos especializado seja um organismo, maior labilidade poderá ter sua conduta. Na cúspide da evolução o ser humano é o único animal cuja especialização é precisa-mente a não especialização, do que deriva sua grande a-daptabilidade a diferentes meios, a enorme plasticidade e sua conduta e sua grande capacidade para modificar seu entorno, segundo sua conveniência.

A inteligência humana começa com a percepção seletiva e intencional do mundo que rodeia os sujeitos. Atenção e percepção são, pois, os umbrais da inteligência biológica. Depois vem o raciocínio – onde normalmente intervém a memória para comparar a situação presente com outras passadas e a capacidade de generalização – e, como consequência, produz-se a ação física derivada do raciocínio, para interagir com aquele mundo envolvente que impressionou os sentidos do sujeito, para adequar-se a ele ou para modificá-lo. A inteligência tem, portanto, um marco sensório-motor. E a experiência cumulada dei-xa sua marca na memória do sujeito, passando a formar parte de seu patrimônio intelectual e modificando talvez com isso sua conduta futura.

Mas ao ser a conduta humana mais livre e muito menos determinista que a dos animais esta liberdade faz que os sujeitos sejam mais propensos que outras espécies a cometer erros na avaliação das probabilidades e se e-quivocam por isso com mais frequência nas previsões e percepção de riscos. A leoa calcula perfeitamente a dis-tância e a velocidade da gazela quando vai caçá-la porque esta precisão faz parte do capital genético de seu instinto.

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No ser humano, a educação constitui, ao contrário, um caudal de conhecimentos adquiridos que se aplica em sua vida prática. Mas seus prejuízos –também de origem cul-tural – fazem que muitas vezes ignore informação rele-vante em favor de outra menos relevante, discriminação que não cometem os animais programados filogenetica-mente para sua sobrevivência. E o ser humano, está cla-ro, pode mudar seus erros e até amplificá-los ao alimentar os sistemas de informática. Esta questão nos leva direta-mente ao tema da memória. Como descreveu Draaisma em As metáforas da memória, a metáfora da memória do computador como prótese da memória serviu para dar um caráter mais técnico a memória e um caráter mais psico-lógico ao computador. É sabido que sem memória não se pode pensar porque não se pode unir o anterior com o posterior. E a memória constitui também a essência de nossa consciência histórica e a nossa identidade pessoal, pois eu sei que sou o mesmo de ontem e de há cinco anos atrás, apesar de todas as mudanças que sofri. Como foi dito, o ser humano possui duas memórias, a genética – que é própria de sua espécie e está inscrita em seus instintos e predisposições – e a adquirida, de natureza cultural ou ambiental. Mas desde Freud sabemos que existe uma memória consciente ou intencional – que constitui algo assim como nossa memória formal e "legítima" – e outra inconsciente, mais insidiosa e de maior impregnação emocional. Para Jung, pelo menos uma parte de nossa memória genética se dá na esfera consciente em forma de arquétipos e símbolos universais, compartilhados por toda humanidade.

A memória se tem definido às vezes com linguajar poético, como um depósito ou cisterna onde se armaze-nam informações. Esta é a imagem tradicional e popular da memória o sábio, um especialista na acumulação de saberes. Tem se dito que Descartes foi o último ser hu-

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mano que pode possuir todos os saberes científicos de seu tempo, desde as matemáticas a botânica. Logo, a ex-plosão do conhecimento obrigou a fragmentação do co-nhecimento e tem entronizado com demasiada frequên-cia, por razões de produtividade e de rentabilidade, o que Ortega chamou de sábio-ignorante, sábio em sa parcela e ignorante em todas as demais. Ou, o que é o mesmo, de-sincorporou o conhecimento de seu tecido vital.

A memória, como fenômeno, conheceu muitos ava-tares históricos e culturais. Como reação natural contra a aprendizagem puramente memorística que afligiu a tantas gerações de estudantes espanhóis, oprimidos por listas de reis godos ou de batalhas, impôs-se enfaticamente agora a errônea teoria de que a memória não é importante na educação. Esqueceu-se a evidência que aprender é com-preender e reter, dando com esse esquecimento a razão ao anátema de Platão contra a escritura, quando afirmava que confiando nela os homens não recordariam por eles mesmos. Também a informática, com sua vocação enci-clopedista, pode contribuir com esta perversão desmemo-rizadora. A base da aprendizagem de algo tão básico para a criança como a linguagem é a memória, corroborando que aprender é compreender e reter, e segue o sendo mesmo na era da informática.

Ao contrário do ser humano o computador tem uma memória implantada do exterior, não formada por experi-ências vividas pelo sujeito, já que não existe propriamen-te um sujeito. Com essa característica brincou o filme Desafio total (Total Recall, 1990), em que se implantava no cérebro protagonista um chip com recordações falsas, de algo que nunca havia vivido. A memória do computa-dor é rígida e isto é, em certas circunstâncias, uma vanta-gem, pois acata disciplinarmente as ordens que recebe. Enquanto a memória humana tem interesses autônomos, ligados a seu mundo emocional, que lhe fazem distorcer

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os fatos, ocultá-los ou mentir. Por isso é humana. Mas essa labilidade constitui uma grande desvantagem nas tarefas científicas. Neste sentido a máquina não tem pre-juízos (sexuais, raciais, etc.) salvo os que o ser humano seja capaz de lhe implantar, por ignorância, erro ou maldade. Em poucas palavras, a memória do computador é muito mais estável e muito menos traiçoeira e manipuladora que a humana.

Mas a memória mecânica carece de liberdade. A máquina não pode "pensar" naquilo que queira, senão naquilo que lhe ordena seu operador ou as instruções de seu programa. A falta de liberdade é um traço fundamen-tal da máquina, que pode enganar até mesmo seu usuário. Assim, as vezes, a estrutura do hipertexto produz em seu operador uma ilusão de liberdade de escolha, mas na rea-lidade o usuário só pode escolher entre as opções previ-amente decididas pelo programador.

E, por último, as memórias das máquinas são emo-cionalmente indiferentes a seus próprios conteúdos. A do ser humano não é, já que os acontecimentos emocionais ocupam um lugar especial nas recordações. As recorda-ções humanas são, em definitivo, lembranças excitantes, divertidas, angustiantes, intoleráveis e até reprimidas para a esfera do inconsciente. Enquanto que a memória da máquina é indiferente. O contraste entre ambos é verdadeiramente dramático e define perfeitamente sua muito diversa especificidade.

AS INSUFICIÊNCIAS DA MÁQUINA A primeira grande deficiência das máquinas consi-

deradas inteligentes afeta a suas limitações em relação com a comunicação humana. Paul Watzlawick estimou que na comunicação humana, uma quinta parte da infor-mação intercambiada entre dois sujeitos é informação

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substantiva ou denotativa de interesse objetivo, que per-tence ao âmbito semântico, enquanto que o resto (quatro quintas partes) proporciona uma definição das relações interpessoais e se refere, portanto, ao contexto em que se marca o intercâmbio e aos elementos subjetivos da co-municação. É óbvio que a máquina mutila drasticamente estas quatro quintas partes 'tão vitais, da comunicação interpessoal.

Os programas de informática "inteligentes", com efeito, são insensíveis aos contextos e dão respostas mui-to incorretas a perguntas que se desviam ligeiramente dos domínios de sua programação. Se peço que me informe sobre a cidade de Barcelona me responderá que tal cidade não existe, enquanto que uma criança de dez anos enten-deria imediatamente o sentido da pergunta. A comunica-ção humana , como se sabe, é muito elíptica, feita dom frases inacabadas, palavras que sugerem uma situação complexa, gestos que preenchem um vazio verbal, etc., de modo que o receptor da informação completa os vazi-os e constrói o sentido da comunicação apesar dos indí-cios incompletos e das imprecisões. Nada disso pode se fazer com uma máquina.

Uma máquina, por exemplo, não pode discriminar se uma frase escrita ou falada por alguém pertence ao linguajar figurado ou literal. Se pertencer ao primeiro – como na expressão "o rubi ardente de tua boca" – induzi-rá sem dúvida um resultado caótico em seu processamen-to pelo sistema. Pois sem interpretação correta só pode seguir uma resposta ou ação incorreta. No exemplo ex-posto a máquina não pode discriminar o código retórico da frase, entre outras razões, por sua cegueira ao contexto em que foi emitida, provavelmente em uma comunicação galante ou extraída de um texto poético. A compreensão de uma proposição está associada, com efeito, ao seu contexto específico. a palavra espanhola vino (vinho) po-

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de referir-se ao verbo venir (vir) ou a bebida alcoólica e somente o contexto da frase permite ancorar seu sentido correto, enquanto "carne" pode referir-se a alimentação ou a luxuria. No plano das ações visíveis, uma bofetada tem distinta significação e funções quando feito por uma pessoa irada ou por um amante sadomasoquista. Voltan-do a linguagem verbal, a frase "A vodka é boa mas a carne está podre" foi traduzida por um sistema automati-zado como "O espírito ´pe forte mas a carne é fraca". É um exemplo clássico que figura em todos os livros sobre Inteligência Artificial.

Existe mais de uma maneira de ser racional ou, mais precisamente, a razão humana é muito versátil na escolha de suas diferentes estratégias operativas, para acomodar-se a seus objetivos. A forma como a mente raciocina está influenciada pelo conteúdo do que está de-cidindo e pelos conhecimentos que dispõe. Este caráter flexível e adaptativo do pensamento humano – ao contrá-rio do funcionamento da máquina – permite-lhe acomo-dar-se funcionalmente ao assunto que se pensa. Não se pensa igual um problema de geometria como a conveni-ência de viajar em férias ao Caribe ou a Benidorm ou como a oportunidade de um investimento financeiro. Por que a mente humana escolhe estratégias diferentes quer se acomodam funcionalmente a cada tipo de desafio, ati-vidade ou pergunta? Porque a inteligência "mundana" – ao contrário da máquina – que lida cotidianamente com os fatos da vida real (acelerar o passo quando vai trocar o sinal de um semáforo, saudar um amigo pela rua, subir ao elevador de um edifício que não se tinha estado antes, etc.) se formou, não em laboratório, senão em interações práticas com o mundo real e criou suas próprias regras flexíveis de pensamento, seus sistemas de associação, de inferência e até seus próprios atalhos.

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As interações da vida prática permitiram assim ao ser humano apropriar-se de repertórios praticamente ili-mitados de praxemas16 para comportar-se funcionalmente ante um semáforo, um amigo que passa pela rua, um ele-vador desconhecido, etc. Estes praxemas nascem de um impulso intencional e caráter nervoso e se traduzem em um conjunto de movimentos musculares complexos que tem uma função simbólica ou performática. Saudar a um amigo, mobilizando para isso dezenas de músculos do ombro, braço, antebraço e mão, constitui um ato de fun-ção simbólica; mas operar um elevador pode ter alguns elementos simbólicos (deixar entrar um ancião primeiro) junto a praxemas puramente performáticos (apertar os botões e manejar as portas). Estas ampla versatilidade excede amplamente as capacidades de uma máquina.

Desde Francis Bacon, o método indutivo erigiu-se como a via real para o progresso das ciências da natureza. E o método indutivo tem sido também o privilegiado pe-los sistemas de IA para estabelecer generalizações. E se torna fácil comprovar, na prática, que o método indutivo é sumamente vulnerável as exceções. Tomando um e-xemplo proposto por David L. Waltz, admitamos que um computador pode aprender facilmente que as aves voam, mas logo deve aprender que algumas aves (como os pin-guins e avestruzes) não o fazem. E logo deverá que ensi-nar-lhe que uma ave não pode voar se está morta ou se lhe cortam as asas, ou se lhe amarram as patas ao solo, ou se estão impregnadas de cimento, ou se está dormindo, ou se foi condicionada com descargas elétricas cada vez que trata de voar, etc. Em poucas palavras, na complexa realidade prática as exceções as regras abstratas são vari-

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NT - Em linhas gerais, os praxemas são os gestos e formas de atu-ação característicos de cada pessoa, tanto companheiro como adversário, que orientam a nossa ação.

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adas e numerosíssimas. As crianças aprendem com ex-trema facilidade a maior parte das exceções (uma ave não pode voar se está morta), a partir de novas generalizações (um animal morto não pode mover-se), mas a máquina é necessário ensinar cada exceção expressamente.

Não só isso. A mente humana possui uma grande labilidade para estabelecer conexões de causa-efeito, en-quanto que a máquina só se pode programar com rigidez. As máquinas estão governadas, definitivamente, pelo de-terminismo de seu programa, ainda que tal programa lhe autorize a escolher entre A e B. E este determinismo é o contrário do livre arbítrio humano. Por outro lado, não podemos ser muito otimistas sobre a sagacidade das má-quinas em seu estabelecimento de relações de causa-efeito e em suas capacidades preditivas baseadas na cau-salidade, quando vemos quanto frequentes são os fracas-sos humanos nesse campo. Sabemos quão pouco fiáveis são os prognósticos humanos ante a conduta dos sistemas complexos. Os especialistas gostam de desenhar certo número de cenários previsíveis ante um fenômeno com-plexo, mas com frequência o que ocorre na realidade é diferente e que não haviam previsto. Veja-se, como e-xemplo dramático, o ataque da OTAN a Sérvia em 1999 que desencadeou uma deportação em massa de albano-kosovares, que nenhum especialista das grandes potên-cias, apesar da assessoria de seus serviços de inteligência, havia vaticinado.

Esses fracassos preditivos e essas incertezas se dão

na vida real e se dão, consequentemente, no comporta-mento das máquinas. E tem sido precisamente graças a essa atuação das máquinas que formalizou-se uma ciên-

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cia paradoxal, a chamada Fuzzy Logic (Lógica difusa)17 que edifica sua teoria sobre enunciados que não se defi-nem como verdadeiros ou falsos mas como "conjuntos difusos". Estes e sua "álgebra de conjuntos difusos" tem importantes aplicações no processamento da chamada "informação imprecisa", que prima o qualitativo sobre o quantitativo.

Depois da euforia inicial dos pais da IA, desde a segunda metade dos anos oitenta, depois do fracasso dos alardeados computadores de quinta geração construídos pelos japoneses, a prudência peneirada de pessimismo instalou-se nesse campo. Como assinalou sagazmente Karl Popper, "os computadores poderão solucionar pro-blemas, mas nunca descobrir problemas, que é uma das condições e grandezas do ser humano" (La Vanguardia, 30/10/1991).

E o próprio Marvin Minsky, em diversas declara-ções ao longo dos anos noventa, manifestou sua contrari-edade neste campo. "Construímos aparelhos que substitu-em especialistas qualificados, mas não podemos imitar a uma criança, que sabe que se pode puxar uma corda mas não empurrá-la. Este é meu trabalho e o desafio cultural neste campo. introduzir o sentido comum na Inteligência Artificial. É paradoxal mas é assim. A AI avança para trás, do especialista a criança. O futuro está em que a máquina aprenda muitas coisas simples e aprenda por ela mesma" (El País, 4 de dezembro de 1991). Cinco anos depois assinalou que as máquinas careciam do sentido comum que permitia "essas aproximadamente 20 milhões

17 NT - A Lógica Difusa ou Lógica Nebulosa, também pode ser defi-

nida como a lógica que suporta os modos de raciocínio que são aproxi-mados, ao invés de exatos, como estamos naturalmente acostumados a trabalhar. Ela está baseada na teoria dos conjuntos nebulosos e difere dos sistemas lógicos tradicionais em suas características e detalhes. Ver artigo em http://www.din.uem.br/ia/controle/fuz_prin.htm

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de coisas que as crianças aprendem em seguida, como que uma corda serve para puxar, mas não para empurrar"; e para adquiri-lo "há que fazer que os computadores a-prendam de muitas formas distintas, como o cérebro, e também há que se criar um administrador para dizer-lhe qual destas estratégias é a melhor em cada ocasião. Até agora, o grande erro tem sido pensar que se aprende so-mente segundo a lógica, e não é assim. O cérebro tem até dez maneiras de calcular a que distância está certo objeto (EL País, 9 de julho de 1996). Dois anos depois relatou a frustrante exploração das alternativas em um sequestro de uma criança com um sistema de IA, até que depois de várias o sistema perguntou. "Por que alguém iria pagar dinheiro para recuperar sua filha?" (El País, 17 de agosto de 1998).

Este último e chamativo exemplo, que fazia uma pergunta prévia necessária e perfeitamente lógica para um se desprovido de sistema emocional, nos obriga a re-cordar que uma inteligência pouco desenvolvida na esca-la humana corresponde-se com a de um idiota ou a de um oligofrênico. Mas os engenheiros não aplicam este crité-rio a seus sistemas cibernéticos e a inteligência oligofrê-nica lhes parece, a muitos, muito excitante e promissora. Mas um fracasso como o citado por Minsky força a re-cordar que, na evolução humana, o cultural nunca pode substituir, de modo integral, o biológico.

Roger Penrose, o brilhante professor de matemáti-cas da Universidade de Oxford, sustentou em seu livro A nova mente do imperador que a complexidade da vida mental não pode reduzir-se a fórmulas matemáticas e que as matemáticas nunca poderão dotar de consciência a uma máquina, ainda que se manifeste otimista a respeito dos futuros computadores quânticos, baseados na física quântica, pois segundo Penrose a consciência seria resul-tado de um comportamento quântico em grande escala

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produzido no cérebro. É algo que poderemos discutir, talvez, dentro de cinquenta anos.

Mas na atualidade, os computadores carecem de consciência e de autorreflexão. Este é um assunto impor-tante, sobre o que teremos que voltar ao examinarmos os mitos fantástico-científicos da literatura e do cinema. O computador, como os animais, sabe, mas não sabe que sabe, enquanto que o ser humano tem a consciência de seu saber. E a tem desde muito cedo. Uma criança de cinco anos diz "não sei" e sabe o que quer dizer quando afirma que "não sei". E as crianças de onze ou doze anos passam de efetuar mentalmente operações sobre os obje-tos a poder raciocinar sobre estas operações independen-temente dos objetos, mediante uma abstração que lhes permite alcançar um pensamento simbólico muito sofisti-cado. o pensar sobre o próprio pensar e suas operações.

O computador carece de autoconsciência, vale di-zer, de consciência de uma identidade diferenciada, de um corpo individual e singular, distinto dos outros, loca-lizado no espaço tridimensional e que persiste através do tempo, o que lhe dá, parafraseando Heidegger, a consci-ência existencial de finitude, de ser-para-a-morte. E a au-torreflexibilidade é uma característica própria da consci-ência pessoal, que se acessa mediante a introspecção, pa-ra pensar sobre nossa identidade, nosso destino, etc. Mas, como observou acertadamente o biólogo Edward O. Wil-son, a introspecção, que tem sido o grande instrumento de trabalho dos filósofos durante séculos, tem seus limi-tes, pois o cérebro é uma máquina construída não para compreender a si mesma, senão para sobreviver, pelo que sua compreensão só pode vir do campo das neurociências e com sofisticadas técnicas de análises próprias. Não será demais acrescentar que as únicas máquinas dotadas de consciência e de capacidade para a introspecção e autor-

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reflexão são as que aparecem nos relatos da ciência-ficção, como veremos a seguir.

E, finalmente, as máquinas não tem subconsciente, produto dos avatares conflituosos de uma biografia indi-vidualizada. E como não tem subconsciente, também ca-recem de intuições, desses conteúdos do subconsciente que emergem as vezes luminosamente na esfera pré-consciente para guiar nossa conduta. Como escreveu Je-remy Campbell em A máquina incrível, as formas com-plexas do pensamento se dão por debaixo do nível de consciência, de modo que a deliberação consciente só pode ser uma parte diminuta da inteligência e, quiçá, a menos interessante.

É evidente que os engenheiros que tratam de copiar mecanicamente as regras do pensamento humano para implantar na Inteligência Artificial não podem copiar na-da equivalente as interferências insidiosas - e as vezes, altamente criativas – que procedem do subconsciente humano. Criativas no campo das artes, mas também no campo das ciências. Por exemplo, quando as equações matemáticas desembocam em duas alternativas que se revelam equiprováveis, o sistema se paralisa e o científi-co que as resolveu se vê estritamente bloqueado para to-mar uma decisão racional, se sua única referência é aque-le cálculo. E ser humano, ao contrário, ante duas alterna-tivas de conduta equiprovável, acaba escolhendo um, im-pulsionado pela intuição ou por alguma afinidade secreta cuja motivação e, naturalmente, pré-consciente.

O subconsciente humano, como depósito de ener-gia psíquica reprimida, tem sido comparado ás vezes com um vulcão e outras vezes com um oceano interior, povo-ado por plantas estranhas e monstros marinhos. Do po-tencial energético deste oceano tiraram El Bosco, Goya, Van Gogh e Bacon suas poderosas imagens, Edgar Poe e Hoffmann seus contos e Dostoievski e Kafka seus uni-

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versos novelescos rarefeitos. No cinema de Buñuel e de Fellini os monstros do subconsciente estão sempre a es-preita e emergem as vezes de modo materializado na tela, em imagens deslumbrantes. Mas também os cientistas que na tênue fronteira da sonolência percebem a faísca da descoberta genial são devedores da atividade incansável do subconsciente, que nunca descansa, ainda que o corpo repouse tranquilamente. Os momentos mais brilhantes da criatividade humana, no campo das artes e das ciências, devem algo a produtividade misteriosa do subconsciente, que encaixa peças diversas de nosso psiquismo que não puderam encontrar um suporte lógico na vida consciente. Porque, em certos âmbitos, o subconsciente se torna mais lúcido e produtivo que a atividade consciente regrada, ordenada e previsível. O consciente não produz surpre-sas, mas o subconsciente – motor de emoções e de dese-jos – constitui, por definição, uma inesgotável caixa de surpresas e de insuspeita criatividade para as atividades humanas.

E isto nos conduz as hipotéticas relações das má-quinas com as emoções e os desejos.

EMOÇÕES E DESEJOS As emoções desempenham uma função decisiva na

atenção seletiva, na percepção, na cognição, na motiva-ção, na aprendizagem e na criatividade do ser humano. E, certamente, tornam-se fundamentais na tomada de deci-sões humanas, por muito que se apresentem como assep-ticamente lógicas e racionais. Pode-se afirma,r sem som-bras de dúvidas, que uma mente não influenciada pelas emoções é uma mente de um enfermo e, logicamente, um péssimo modelo para os projetos de Inteligência Artifici-al.

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Como antes assinalamos, na comunicação verbal, o que se diz, o conteúdo semântico da mensagem, supõe somente uma quinta parte do processo comunicativo, pois o resto concerne ao como se diz, que não é somente uma questão de prosódia e de entonação da voz, senão tam-bém de linguagem não verbal (olhares, gestos, etc.), de alto valor emocional. E no homem compreender é tam-bém sentir e os significados que maneja em suas opera-ções comunicativas transcendem sua dimensão semântica pois possuem também para ele uma coloração emocional como demonstraram numerosos testes acerca da impreg-nação emocional das palavras de uso mais comum.

E, é claro, toda a esfera do motivacional está im-pregnada de elementos emocionais. Esta característica tem uma coerente fundamentação biológica pois faz sua base última no princípio adaptativo para a sobrevivência, quando a opção positiva de nossos ancestrais )como inge-rir uma planta nutritiva) se associava no sistema límbico do cérebro a uma sensação prazerosa, enquanto que a op-ção negativa (a planta venenosa) se associava a uma sen-sação repulsiva. Os mecanismos da motivação podem desligar-se, portanto, das gratificações e sofrimentos do sujeito em sua qualidade de incitadores psicológicos, vale dizer, não podem separar-se da dinâmica do prazer e do desprazer. O prazer é um bem escasso – e por isso é mui-to apreciado – pelo que deve administrar-se com sensa-tez, consumindo-o com moderação e economizando para poder gastá-lo. Ainda que as vezes, porque o psiquismo humano é muito complexo, busca-se a gratificação do prazer através de uma forma de castigo ou de privação, como fazem os penitentes, os estóicos, os ascetas e os masoquistas.

A importância que desempenham as emoções nos processos intelectuais está atualmente tão aceita que em 1985 Marvin Minsky pode escrever em The Society of

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Mind. "Não se trata de se as máquinas inteligentes podem ter emoções, senão de se as máquinas podem ser inteli-gentes sem elas" E, com efeito, querer converter os com-putadores atuais em computadores emocionais, como a-gora está tentando fazer Rosalind W. Picard, professora do famoso Media Laboratory of Massachusetts Institute of Technology, supõe admitir-se implicitamente que são artefatos atualmente insatisfatórios no plano psicológico e intelectual.

Não é preciso ser um experiente psicólogo para sa-ber que muitas vezes não dissemos o que pensamos mas, não obstante, acaba fazendo o que sente, revelando que a esfera afetiva é mais determinante na conduta que a esfe-ra lógico-verbal. Por isso afirma-se as vezes que somos o que fazemos e não o que dizemos. O tema das relações entre inteligência e emotividade não é novo, ainda que nos últimos anos tenha recebido renovada atenção por parte dos filósofos e dos psicólogos. Fazem sessenta anos que o filósofo Javier Zubiri cunhou o conceito de "inte-ligência sensível", com o que queria expressar que a inte-ligência não é independente do sentir. Segundo Zubiri, o puro sentir apresenta as coisas como estímulos, mas há um modo de sentir que as apresenta como realidades. este seria um modo de sentir intelectivo pelo qual a sensibili-dade as faz intelectiva, o que significa que a inteligência se faz "sensível", de maneira que, segundo sua proposta, ainda que o sentir e o interagir sejam operações distintas, aparecem unidas na estrutura "inteligência sensível".

Seguindo uma lógica não muito distante da de Zu-biri poderíamos nos referir aqui ao "desejo pensante" pois o desejo é sempre desejo de algo que se conhece ou se intui e, ao contrário do que ocorre com a conduta animal, no ser humano o desejado supõe uma representação men-tal intelectiva, associada a uma estratégia intencional e inteligente que lhe mobiliza para satisfazer aquele desejo.

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Muito recentemente, alguns psicólogos, especial-mente os anglo-saxões, ocupam-se de um modo muito pragmático e utilitário de outra relação entre inteligência e emotividade, sobretudo na raiz do êxito do best-seller de Dan Goleman Inteligência emocional, expressão que utilizou para designar a capacidade para compreender as emoções e sentimentos dos outros e de si mesmo e para utilizar racionalmente este conhecimento como guia para um comportamento próprio positivo.

Mas esta ênfase na racionalização das emoções na vida prática não deve fazer esquecer que a irracionalida-de (emocional) é um ingrediente importante do pensa-mento artístico, desde a poesia até a música e a dança. E era desde muito antes que André Breton utilizasse de modo consciente e interessado o potencial criativo do subconsciente nas estratégias do surrealismo. Breton re-conheceu na herança da arte primitiva e mágica e do ro-mantismo europeu um canteiro emocional de primeira qualidade estética e tratou de sistematizar a produtividade de seus impulsos. Ainda que ele (tanto como Artaud, Buñuel, Dalí, Robert Danos, Man Ray, René Magritte, Dalvaux, etc.) se valesse muitas vezes de elementos sub-conscientes e irracionais convenientemente "polidos", controlados e remodelados pela inteligência racional para conseguir seus próprios fins estéticos.

Poderia se dizer que a emocionalidade está sempre presente, de um modo ou de outro, nas atividades huma-nas. Incluindo entre tais atividades, certamente, as rela-ções entre o ser humano e o computador nas que este úl-timo acaba por aparecer de modo antropoformizado, a despeito do computador ter sido inventado como uma máquina despersonalizada para efetuar cálculos comple-xos, armazenar informação ou processar textos. Para al-guns usuários o computador aparece como uma máquina hostil, fria, inumana e poderosa, dotada de uma monolíti-

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ca personalidade prefreudiana, já que tem uma excelente memória sem possuir subconsciente e não sofre de com-plexo de Édipo, nem é vulnerável sexualmente, nem teme a morte. Neste caso, a comunicação com a máquina é cla-ramente tecnofóbica e carece de empatia, um requisito necessário para a boa comunicação emocional.

É interessante considerar que o acusado antropo-formismo projetado por muitos usuários sobre seus com-putadores pessoais não havia se produzido antes com seus aparelhos de rádio, seus tocadiscos ou suas lavado-ras. A capacidade de memória da máquina e sua especial performance, fruto de algumas operações de interação muito intensas, parecem dotar-lhe de animus e o conver-terem em um objeto animista, em um artefato "vivo" com o qual se dialoga e sobre o qual se descarregam os rom-pantes de mau humor. Em alguns casos pode ser percebi-do como um mascote inorgânico, algo equivalente aos populares tamagochis18 que hoje cuidam com esmero os filhos da geração da informática.

Nas sociedades posindustriais muita gente passa mais tempo relacionando-se com telas e teclados de com-putadores que com pessoas, o que, por certo, implica uma péssima aprendizagem da "inteligência emocional". Para os viciados na informática, sua relação com sua máquina não é só amistosa, senão que pode chegar a ser erótica, em um trânsito do animismo objetual ao fetichismo libi-dinal. De fato, alguns usuários não somente outorgam um nome e uma personalidade a seu computador e lhe pen-duram adesivos ornamentais como também lhe atribuem um sexo masculino ou feminino pois pode ser o compu-

18

NT - Pequeno brinquedo eletrônico dos anos oitenta que simulava um animalzinho de estimação exigindo cuidados como alimentação, cari-nho, descanso, etc.

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tador ou a máquina19. E, naturalmente pode ser homos-sexual ou hermafrodita, a conveniência do usuário, pois tudo depende de suas projeções emocionais.

É muito frequente que os operadores falem com seus computadores e até os acariciem. E até os repreen-dem, insultam e golpeiam quando se erra um texto ou sofrem algum contratempo com ele, pois então é percebi-do como uma máquina indócil, indisciplinada e rebelde. O produtor musical galego Carlos Jean, de vinte e cinco anos e figura proeminente no setor da música eletrônica, declarou a imprensa. Tem que ser duro com o computa-dor, insultar-lhe, depreciá-lo, dizer-lhe. "Se foda e fique aqui" (Ciberpaís, 20de maio de 1999)

A antropoformização do computador vai na reali-dade mais longe. O interior de um computador pode ser percebido como um obscuro mistério, como o interior do amante do outro sexo que desconhecemos e nos fascina. Seu interior pode ser matéfora de uma cavidade vaginal e sua eficaz performance converter-se em metáfora de sua potência fálica. Esta antropoformização chegou até nossa linguagem. As vezes se diz que o computador está "frio", "quente" ou "cansado". E dizemos que o "vírus" é res-ponsável pela máquina adoecer, como um ser orgânico. A metáfora viral revela claramente o que pensamos e sen-timos acerca do computador, percebido como um huma-nóide. E Deborah Lupton sugeriu uma analogia entre a infecção viral do PC e a infecção da AIDS, devido a "promiscuidade" da máquina, onde se introduzira mídia20 das mais variadas procedências.

19 NT – no espanhol os termos ordenador e computadora se

referem ao mesmo objeto. Daí a construção da afirmação de gêne-ro.

20 NT – No original foi usada a expressão "disquetes". Como se trata de item em desuso, alargamos o conceito.

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Uma fonte de problemas "emocionais" no manejo de um computador baseia-se em seu usuário é mais ver-sátil e adaptável que a máquina e padece uma evidente assimetria em relação com o funcionamento rígido e de-terminista do aparelho, que as vezes parece obstinada-mente pouco colaborador e inamistoso. A luz deste tipo de problema Rosalind Picard fundou a especialidade de-nominada "informática afetiva" (affective computing), tributária da neurologia, da psicologia e da engenharia de informática. O ambicioso projeto de Picard contempla na realidade várias questões, progressivamente complexas e difíceis. A primeira, e a mais fácil é o desenho de compu-tadores que reconheçam as emoções humanas; a segunda a consecução de computadores que expressem emoções; a terceira, muito mais problemática, a construção de computadores que tenham emoções, para chegar a quarta meta final de obter computadores que possuam inteligên-cia emocional.

Chegados a esse ponto, é mister dizer duas palavras sobre as emoções, um estado psicofisiológico que tem feito correr muita tinta aos psicólogos e neurologistas, mas também aos poetas. As emoções tem um componen-te mental ou cognitivo e outro fisiológico ou visceral. É óbvio que o segundo jamais poderá acontecer em uma máquina, pois dizendo cruamente, não enrubescerá, sua pressão arterial não subirá, nem terá ereções nem emissão de fluxo vaginal.21

A marca deixada pelas emoções na memória hu-mana é tanto maior quanto maior for sua intensidade, o que é perfeitamente adaptativo, pois recordar perigos a-juda na sobrevivência. No mundo acadêmico se desen-

21 NT – Nos anos noventa, Hollywood produziu um filme que traz es-

sa temática, O homem bicentenário, que discutia a possibilidade de sen-timentos por uma unidade robótica.

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volveram numerosas classificações e tipologias das emo-ções básicas, nem sempre concordantes, e cabe citar tra-dicionalmente o medo, a ira, a angústia, a alegria, a pena, o desgosto, a surpresa, o interesse, a vergonha e a aceita-ção. Mas cada uma dessas emoções tem seus matizes di-ferenciais. há surpresas agradáveis e desagradáveis. E a alegria intelectual é diferente da alegria erótica. Estas emoções, como dissemos, se dilatam por alterações fisio-lógicas ou viscerais que podem ser detectadas e medidas mediante sensores emocionais, tais como os sensores de sinais do ritmo cardíaco, da pressão arterial, da sudoriza-ção ou da condutividade elétrica da pele.

Através de sensores específicos (incluindo um e-ventual traje-sensor, um data-suit), uma câmara de vídeo e um microfone, a professora Picard propõe em sei livro Affective computing detectar as seguintes respostas emo-cionais do operador de um computador. códigos de ex-pressões facial, incluindo o rubor, a palidez e a dilatação das pupilas; a entonação vocal; as respostas fisiológicas (pressão arterial, ritmo cardíaco e respiratório, sudoriza-ção, medição eletrodérmica do potencial galvânico na pele); e forma como tecla (força empregada, erros, etc). O computador monitora e analisa constantemente as res-postas do operadsor a partir de um portal mínimo prefi-xado, chamado "ponto de ativação", que pode ser distinto para cada indivíduo. E quando as reações emocionais de-crescem em intensidade este portal converte-se em "pon-to de desativação". Deste modo o computador pode de-tectar desde o grau de concentração ou insegurança do operador até sua frustração, devidas talvez as disfunções do software que está utilizando. A máquina pode reagir então enviando respostas "balsâmicas", como uma músi-ca relaxante ou dando instruções pertinentes ao usuário ou obrigando-o a diminuir seu ritmo de trabalho, etc.

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Picard explica as muitas vantagens que podem ti-rar-se desta interação emocional entre a máquina e seu usuário e coloca como exemplos de utilidade o treina-mento de usuários para uma entrevista de solicitação de emprego, ou uma declaração de amor. É dizer, atividades que na vida real podem se ver perturbadas por uma forte tensão emocional. Mas o projeto de Picard abriu também muitas dúvidas. ´pE certo que um computador emocional pode ajudar a seu operador, mas também pode fazer-lhe mais vulnerável a um controle alheio e invadir sua priva-cidade de modo ilegítimo. E se é certo que o computador pode detectar se seu usuário está enfadado ou ansioso, desde cedo não saberá por que razão o estará, de modo que mal poderá ajudar. No fundo, a proposta de Picard faz retroceder a informática a velha escola comportamen-tal e sua caixa preta, programando padrões rígidos de es-tímulo-resposta.

Jaron Lanier, pioneiro da realidade virtual, em sua devastadora crítica a Affective computing publicada na revista The Sciences (maio-junho de 1999) reprova a sua autora que pressupõe que o conhecimento do cérebro e a "ciência das emoções" estão perfeitamente dominadas pela comunidade científica, o que está longe de ser certo, e a critica especificamente que ignore em sua estratégia o sentido do olfato, que ´pe o sentido mais arcaico e mais estreitamente associado aos processos emocionais. Com efeito, o olfato é o sentido crucial nas rela~~oes eróticas entre os mamíferos, tema sobre o qual voltaremos em outro capítulo. Em todo caso, se a máquina pode "perce-ber" emoções através de seus sensores, não pode conse-guir a "percepção integrada" que proporciona a coorde-nação holística dos cinco sentidos humanos, como a que se dá, precisamente, quando se mantém uma relação se-xual. Estamos entretanto muito longe de poder sexualizar

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a interface homem-máquina, para fazer que o eros nos conduza ao Logos.

A meta dos computadores que tenham emoções se revela, logicamente, muito mais árdua e problemática, mas Picard expôs seus eventuais fundamentos programá-ticos. Propõe, por exemplo, que para melhorar a eficácia das máquinas se lhes deveriam dotar de sensores que lhes administrassem "sensações sintéticas", ainda que distintas das humanas e difíceis de imaginarmos. Já dissemos que o prazer e a dor são potentes motivadores da conduta, muitas vezes mais aquém ou além da inteligência e estrita e agora trataria de produzir seu equivalente na informáti-ca. Assim, para melhorar a eficácia das máquinas se lhes deveria dotar de uma sensibilidade análoga a da frustra-ção quando não resolvem um problema, ou ao prazer quando alcançam um objetivo. Com este sistema de grati-ficações e punições emocionais se estimularia seu autoa-perfeiçoamento.

Picard distingue entre os computadores os que ex-pressam emoções e os que tem emoções. Na primeira ca-tegoria estariam as máquinas que expressam sofrimento se aquecem ou se esfriam em demasia, se sofrem uma queda de tensão elétrica, se sua memória está sobrecarre-gada, se lhes pedem tarefas que não podem realizar, se sofrem ataque de vírus, etc. Neste âmbito entrariam tam-bém os computadores emocionais anteriormente citados que expressam emoções para ajudar, incentivar ou relaxar o usuário, com uma saudação cordial, com música, com o envio de instruções, et.

De fato, faz anos que se iniciou experimentos neste sentido e já se produziu algumas tartarugas mecânicas que, quando a carga de suas baterias elétricas estava a terminar iam conectar-se a uma fonte de energia para re-carregá-las. Significa esta programação que as tartarugas estavam "com fome", "sedentas" ou que tinham "apeti-

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te"? de modo algum estas expressões humanas se lhes são aplicáveis. As tartarugas robotizadas não podiam ser su-jeitos passivos de hipoglicemia, como os seres humanos, com seu corolário de sensações físicas e psíquicas desa-gradáveis. Simplesmente um voltímetro em seu interior a punha em marcha, sem sofrimento algum, uma função previamente programada da máquina e até que se enca-minhasse até seu objetivo. recarregar suas baterias. A mesma função cumpre o termostato dos refrigeradores, que ativa ou detém o motor, segundo seja a temperatura. quando a temperatura sobe, ativa o motor e quando desce demasiado o detém. E bem por isso dizemos que o refri-gerador sofre frio ou calor.

A categoria dos computadores que tem emoções aparece como a mais fantástica e distante, para não dizer utópica. Implantando em um robô explorador, por exem-plo, resposta necessárias para sua sobrevivência, como o sentimento de medo ante uma ameaça de agressão, po-der-se-ia ativar suas respostas defensivas ou fazer que se retirasse ante um grave perigo. Mas neste caso, como em tantos outros, existiria programação, mas não vivência subjetiva e se trataria somente de um simulacro. Por mui-to que nos empenhemos, os computadores não podem sentir o que nos sentimos. Nem podem competir com a curiosidade humana, essa curiosidade neofílica que em-purrou nossos remotos ancestrais ao processo de homini-zação. Nem tampouco podem gerar livremente imagens mentais, que constituem um fenômeno biológico, e com isso carecem de imaginação. Especialmente de imagina-ção erótica, um potente motivador na espécie humana.

Chegados a esse ponto, deve concluir-se que é mais fácil produzir uma máquina "pensante", mor muito ele-mentar que esta seja e sujeita a um número limitado de regras biológicas que uma máquina "desejante". Se os desejos geram os fins das condutas e as motivam, mobili-

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zando a inteligência para alcançá-los, uma máquina não pode ser jamais um "sujeito desejante". Não pode sê-lo, por muito que seu programador implante simulacros de desejos, que na realidade são finalidade programadas, como as das tartarugas robotizadas que se moviam para conectar-se a rede elétrica. E, desde cedo, estas máquinas negadas para o desejo tampouco podem enamorar-se, porque carecem dos hormônios sexuais ativadores da fi-siologia do desejo, por muito que se esteja experimentan-do com hormônios sintéticos para computadores, segun-do lemos com ceticismo.

Devemos concluir reiterando que simular sistemas físicos não é o mesmo que ter sensações, que são vivên-cias subjetivas personalizadas. As emoções e os desejos constituem a fronteira final entre o homem e a máquina. No horizonte fantástico-científico, a formulação final dos computadores emocionais seria os robôs antropomorfos erotizados dos relatos da ficção científica.

ROBÔS, HUMANÓIDES E CYBORGS Pilar Pedraza, em seu perspicaz livro Máquinas de

amar, faz voltar ao mito do robô sexuado a lenda grega de Pigmaleão e Galetea, pois o primeiro fez que sua es-cultura de marfim ganhasse vida por obra de seu desejo. Este caso de iconofilia mágica, em que a matéria inorgâ-nica erotizada pelo desejo masculino cumpria o destino de saciar-lo, teria uma densa constelação de sequelas – "noivas inorgânicas" as chama Pedraza -, inclusive no âmbito dos relatos infantis. Pensemos no conto da Bela adormecida, em que o beijo na donzela inanimada (inor-gânica) lhe dá a vida, para que o príncipe sacie e consu-ma seu desejo sexual com ela.

Nas turbulências da imaginação romântica alemã. E.T.A. Hoffmann abordou em dois relatos o tema dos

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autômatos, que hoje chamamos de robôs, em uma época em que ocorria com frequência nas cortes européias os artefatos que se moviam, simulando seres vivos, graças a delicados mecanismos de relógios em seu interior. Em Os autômatos (1814) Hoffmann apresentou um autômata com aspecto de turco, que se exibia nas feiras e que emi-tia profecias, as vezes inquietantes. É um relato que seu-gere o impacto e assombro, nem sempre isento de aborre-cimentos, que provocavam na época aqueles curiosos en-genhocas. Em O homem de areia (1815) um jovem, Na-taniel, enamora-se de uma autômata, Olimpia, criada pelo professor Spalanzani, ignorando que era um boneco; mas ao final, seu corpo desmembrado em peças jogadas ao solo levava-o a loucura e se suicidava. Freud ocupou-se deste relato e interpretou a boneca como um espelho nar-cisista de seu namorado.

Em 1886 apareceu a novela A Eva futura, do fran-cês Villiers de l'Lisle Adam, que rendeu um tributo ao gênio inventivo de Edison, pois o protagonista do livro, Lord Ewald lamenta-se ante o inventor que sua bela a-mante, Alice Clary, possui uma personalidade medíocre. Então Edison constrói um ser artificial, um andróide chamado Hadaly, com o mesmo aspecto físico que Alice Clary, mas com outra personalidade. Ainda que o autor explique prolixamente os componentes mecânicos e elé-tricos de seu "androesfinge" (assim a chama) e seu modo de funcionamento, não encontra outra solução que recor-rer a uma médium, para não incorrer em blasfêmia ou porque outra alternativa lhe parecia rigorosamente inve-rossímil, o novelista faz que sua personalidade não venha da ciência positiva, senão da parapsicologia.Viovesse atualmente, Villiers figuraria, pois, entre os pensadores cartesianos e críticos de uma Inteligência Artificial mate-rialista e plenamente humanizada.

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O andróide de A Eva futura era um robô erotizado, muito atraente, cuja função especial era satisfazer o dese-jo de um varão, de Lord Ewald, para quem havia sido criada precisamente. Sua figura parece haver inspirado ao robô feminino de Metrópolis (1926). O monumental fil-me fantástico-científico de Fritz Lang baseado em um diretor de sua esposa, Thea von Harbou. Metrópolis foi analisado até a exaustão, pelo que aqui diremos somente palavras sobre a protagonista, Maria (interpretada por Brigitte Helm), que aparece como uma apóstola cristã consoladora dos trabalhadores oprimidos, mas que é rap-tada pelo malvado sábio Rotwang, para construir em seu laboratório um dublê dela, mas de alma perversa e rebel-de. De maneira que seu personagem é obrigado a repro-duzir, por obra de uma ciência tortuosa, o esquema míti-co de Jekill e Hyde, ainda que a segunda Maria nasça ab-sorvendo energia vital da primeira. A Maria autêntica é Jekyll e seu robô isomórfico é Hyde. A primeira é apre-sentada por Fritz Lang como uma mulher assexuada, en-quanto a segunda é hiperssexuada e lasciva.

A primeira aparição da Maria robotizada é sufici-entemente espetacular como para definir sua nova perso-nalidade. Em Yoshiwara, a casa do prazer futurista de Metropolis, a Maria robotizada emerge de um cofre fu-megante sustentado nos ombros por atlantes negros. E ante os olhos ávidos que a devoram com o olhar, faz uma dança lasciva que lhes enfeitiça. Pilar Pedraza classifica o cofre donde emerge o personagem como uma "caixa de pó compacto"22. É uma percepção interessante porque a associa ao ritual da maquiagem feminina. Mas o cofre lhe dá, na realidade, um caráter objetal, como se de uma jóia inorgânica se tratasse, pois esta Maria é efetivamente i-norgânica, uma cópia da genuína Maria, que suplantara.

22 NT – em espanhol "polvera"

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Em 1926, quando estreou Metrópolis, a palavra ro-bô acabava de se incorporar ao léxico da sociedade industrial. Esta palavra foi posta em circulação em 1921, na peça teatral R.U.R, do escritor tcheco Karel Čapek. Os robôs que aparecem em seu drama não são artefatos me-cânicos, senão que são feitos artificialmente com matéria vivas, como o monstro do doutor Frankenstein. Nesta obra futurista supunha-se que em 1932 o filósofo Rossum descobria a produção de uma matéria viva sintética e que seu sobrinho, engenheiro e estudioso de anatomia, conse-guia fabricar com ela seus robôs, netos do humanóide de Mary Shelley.

Em R.U.R. (que significa Robôs Universais Ros-sum) estão claras as vantagens econômicas e industriais que motivam a fabricação dos robôs. Uma chamada pu-blicitária da fábrica apregoava. "Queres baratear sua produção?". Em um certo momento da peça, o engenhei-ro Fabry, em um argumento de ressonâncias taylorista e produtivista, proclama as vantagens de trabalho dos ro-bôs. "Um robô substitui a dois trabalhadores e meio. A máquina humana era tremendamente imperfeita. Mais cedo ou mais tarde deveria ser substituída. [...] A nature-za é incapaz de adaptar-se ao ritmo do trabalho moderno. Do ponto de vista técnico, toda a infância é uma soberba estupidez. Uma quantidade de tempo perdido."

Sem embargo, o panorama otimista previsto pelos tecnocratas não se cumpre na obra de Čapek, que é um grama filosófico com moral. Os seres humanos, sem tra-balho, tornam-se supérfluos, decai sua fertilidade e sua humanidade vai-se extinguindo. Mas a fábrica R.U.R. nega-se suspender a fabricação, pela interessada pressão dos acionistas. Para complicar a situação, os robôs são utilizados como soldados pelos governos e protagonizam sublevações contra os seres humanos, seus criadores (como Prometeu e o humanóide de Frankenstein). Os ro-

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bôs manifestam cada vez com mais frequência uma ano-malia, uma espécie de protesto da máquina similar a epi-lepsia, a que denominam cãimbras do robô. Quando se manifesta esta anomalia (antecipação dos computadores psicóticos) são enviados ao triturador. O que ocorre, na realidade, é que o doutor Gall (encarnação da ciência) aumentara seu nível de irritabilidade. Os robôs inssurre-tos contra os seres humanos cercam a fábrica. Seu diretor confessa sua soberba de homem de negócios. "Queria converter toda a humanidade na aristocracia do mundo. Uma aristocracia alimentada por milhões de escravos mecânicos".

Os robôs acabam por assaltar a fábrica e assassi-nam a todos os homens, salvo a Alquist, o chefe da ofici-na, que se transforma assim no único ser humano da ter-ras. Os robôs vão se extinguindo e imploram a Alquist que fabrique novos congêneres, ao que se nega. Mas, em um final otimista, no quarto ato, aparece inesperadamente um robô feminino, produto de um experimento do doutor Gall, que manifestará seus sentimentos amororsos pelo robô Primus. Alquis os envia a procriar como novos A-dão e Eva.

A moral ingênua de R.U.R. , em que ressoam preo-cupações com a sociedade industrial nos albores de sua automatização, apresenta o robô como um dublê sem al-ma e sexualidade e, em consequência, monstruoso. A margem de suas preocupações econômicos-laborais, inte-ressa fixar-nos no processo que transforma os robôs em sujeitos emocionais, antecipando, por certo, a parábola futura de Blade Runner. Aoi aumentar artificialmente o nível de excitabilidade ou irritabilidade do robô, este pas-sa a ser sujeito de sensações. E este novo nível de sensibilidade de suas respostas lhe faculta para as emoções (de ódio pelo seu criador). Mas estas últimas abrem também a porta dos sentimentos (de afeto e de aversão), transformadas em motivações. Assim o final

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madas em motivações. Assim o final pode desembocar numa relação de amor heterossexual, que anuncia a pro-criação de uma nova espécie. Eros redime no último ins-tante o cataclismo produzido pela cobiça humana e anun-cia o início feliz de um novo ciclo vital.

A obra de Čapek e o filme de Fritz Lang nos anos em que o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo haviam mostrado predileção por uma estética objetualista, em que os manequins nus e os autômatas ocupavam um lugar privilegiado. Provavelmente possa detectar-se um vestí-gio animista nesta fascinação fetichista, que funda suas raízes em tradições culturais muito antigas. Uma lenda clássica, por exemplo, assegura que Pasifae, rainha de Creta, estava apaixonada por um formosa touro e mandou construir uma vaca de madeira de tamanho natural, co-berta com pele deste animal mas vazia por dentro, em que se introduziu para enganar o touro e receber, em seu interior, as investida erótica do amado macho. E desta união nasceria o Minotauro. É uma lenda que nos diz muito sobre o poder erótico dos simulacros. Pacifae ante-cipou a estratégia das bonecas eróticas infláveis (que Ber-langa recriou em 1973, com pinceladas amargas, em seu Tamanho natural/Life size). Mas os simulacros eróticos conheceram muitas modalidades e talvez a mais simples e austera se encontre em alguns lugares japoneses para homens, em suas paredes brancas que oferecem um orifí-cio a altura do pênis e a fotografia de um rosto feminino atraente a altura do rosto. Não se pode pedir um estímulo erótico mais minimalista.

Seguramente, o computador emocional mais famo-so da história do cinema seja o HAL-9000 que Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram para sua esplêndi-da 2001.Uma odisséia no espaço (2001.A Space Odissey, 1968), que tem medo porque possui mais informação que os cosmonautas sobre o destino de sua missão, que tem

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uma vontade autônoma(e rebelde) que o empurra a assas-sinar aos tripulantes da Discovery e que, finalmente, per-cebe com angústia sua desconexão como morte física e sussurra "Tenho medo...tenho medo". O exemplo de HAL-9000 revela que um computador com emoções ne-cessitaria também de um código ético, como as famosas três leis da Robótica que Issac Asimov enunciou em 1950 para proteger os seres humanos de suas agressões.

HAL-9000 foi um computador emocional assexua-do, enquanto que Proteus IV do filme Proteus (Demon Seed, 1977), de Donald Cammell, era um sofisticadíssi-mo sistema informatizado que governava o funcionamen-to da casa de um engenheiro, apaixonava-se por sua es-posa (Julie Chistrie), a espiava quando tomava banho, a sequestrava na hermética mansão e acabava por violá-la e deixá-la grávida. A última cena mostrava o monstro nas-cido de sua união sexual. As relações sexuais entre os robôs e os humanos são apresentadas com violência ca-tastrófica, como consequência de seu caráter antinatural. Na novela A máquina de sexo, de Charles Bukowski, o autômata feminino fornicador, Tanya, acabava arrancan-do os genitais de um homem e era linchada. Mas na vida real, ainda que os robôs de nosso mundo não tenham se-xo nem impulso libidinal, possuem entretanto capacidade reprodutora pois já são várias a fábricas onde robôs são fabricados por outros robôs aos que, em vez de filhos, lhes chamam replicantes.

A hipótese do robô capaz de reproduzir-se por meios fisiológicos nos conduz naturalmente ao tema dos cyborgs (cybernetic organisms), neologismo criado em 1960 por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline para des-crever "sistemas homem-máquina autorregulados". O cyborg é na realidade um tecno-corpo, em que se combi-na a matéria viva com os dispositivos cibernéticos. É um ser menos fantástico do que se pode crer, se pensarmos

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nas próteses e implantes técnicos que já se utilizam nas cirurgias, desde marcapassos eletrônicos até pênis artifi-ciais, com ereção mantida com implantes de silicone ou injeções de água destilada. As bases técnicas do cyborg futurista já tem sido exploradas há algum tempo. Desde 1991 realizam-se com êxito cultivo de células que cres-cem sobre superfícies conectadas eletricamente para for-mar circuitos neoronais. E na atualidade a biocibernética ensaia o acoplamento de neurônios animais (como da sa-lamandra, pelo seu tamanho relativamente grande) a um circuito eletrônico para que funcionem como transistores.

Nos textos e filmes de ficção-científica o cyborg é apresentado como um endoesqueleto eletrônico, formado por cabos e chips, recoberto com carne humana. Este é o modelo oferecido em filmes como Alien (Ridley Scott, 1979), Terminator (James Cameron, 1984) e Robocop (Paul Verhoeven, 1987). Estes seres futuristas abrem, naturalmente, um campo para a especulação filosófica, colocando em primeiro lugar a pergunta de se são máqui-nas ou seres humanos modificados. Se forem somente máquinas, careceriam de consciência e de autorreflexão, como antes assinalamos. Mas em filmes como Termina-tor e Robocop isto não é assim. Em Robocop, concreta-mente, o cyborg é humanizado até o ponto de possuir subconsciente e sensibilidade para a dor física e psíquica. Segundo algumas feministas, de outro lado, a criação de um ser vivo sem mãe (na estirpe do mítico monstro de Frankenstein) expressaria a "inveja do parto", contrapar-tida positiva para os cientistas masculinos a "inveja do pênis" postulada por Freud para as mulheres.

Também abundante na mitologia fantástica popular de nossos dias o tema do operador que é "absorvido" por um sistema de informática e percorre, desencarnado, seus circuitos, como uma forma de inteligência ou de espírito puro, que se desprendera da "impura" matéria corporal.

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Este mito antecipa de algum modo a profecia de Ray Kurzweil (em seu livro The Age of Spiritual Machines), que sustenta que nos final do século XXI o homem pode-rá transferir sua inteligência para a máquina, com implan-tes neoronais, de modo que sobreviva a sua desintegração física.

Todos os grande problemas filosóficos e morais co-loca a produção de cybors foram compendiados na bri-lhante fantasia de Blade Runner (1982), a celebrada a-daptação para a tela, por Ridley Scott, da novela de Philip A. Dick Os Andróides sonham com ovelhas elétricas? Um uma contaminada cidade de Los Angeles no ano de 2019, o protagonista (Harrison Ford) deve identificar e liquidar a quatro "replicantes" rebeldes, cyborgs utiliza-dos como escravos de trabalho, tão perfeitos que só se diferenciam dos humanos por não terem recordações pes-soais nem emoções. Precisamente, a técnica para locali-zar estes replicantes consiste em descobrir sua carência de vida emocional mediante astutos interrogatórios. Bla-de Runner exibe uma ampla gama de propostas para a reflexão. Assim, quando o engenheiro Sebastian entra em sua casa, dois robôs anões vão a seu encontro e lhe saú-dam. "São meus amigos. Eu os fiz", comenta, sugerindo a possibilidade de que no futuro poderão ser fabricados amigos e amantes artificiais na medida dos gostos e ca-prichos de cada um. Mas o centro da questão está na não humanidade dos replicantes, não nascidos de uma gesta-ção fisiológica. Ainda que ao longo da ação descubra-se que se é proporcionada aos replicantes a memória de um passado (seria dizer, uma memória personalizada) ofere-ce-se uma almofada sobre a qual podem erigir seu mundo emocional. Com esta conotação freudiana desemboca-se em replicantes que podem ser psicologicamente idênticos aos seres humanos. E até podem enamorar-se uns de ou-tros, como ocorre com o protagonista do filme. Sendo as

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cópias tão perfeitas, pode-se acabar perguntando com inquietude se é um original ou é uma cópia.

Apesar dos replicantes de Blade Runner aparece-rem muito distantes no horizonte científico atual, de fato se está trabalhando nesta direção, não só com finalidade de trabalho senão também lúdicas. Por exemplo, na expo-sição intitulada The Robots, realizada na cidade japonesa de Nagoya em 1992, apresentou-se um robô emocional chamado The Cubivore, de forma cúbica e obra do John Barron e Alain Dun, que estava recoberto com pelúcia e convidava ao tato. Acariciando-se certas zonas seguia o acariciador esfregando-se nele como um animal carinho-so. Mas se lhe acariciavam outras partes, fugia. Tais mo-vimentos eram acompanhados de sons expressivos de afeto ou aversão. Era, em poucas palavras, uma espécie de "robô de companhia", como um afetivo animal domés-tico.

Sobre similares princípios, convenientemente adap-tados ao mundo lúdico infantil, desenhou-se em 1998 nos Estados Unidos o boneco Furby, um artefato da Tiger Eletronics que estava mais próximo da robótica emocio-nal que dos brinquedos pois o tal boneco de pelúcia, de estranha forma animal e grande olhos, estava desenhado sobre princípios interativos. Furby, dotado de cinco sen-sores podia falar umas mil frases, cantar, jogar, responder a sons e ao tato, arrotar, comunicar-se com outros Furby, rir-se quando lhe faziam cócegas e dormir ao apagar as luzes, pois uma célula fotoelétrica detectava a escuridão. Por seu espetacular contraste com os tradicionais brin-quedos passivos e seu eficaz simulacro emocional, as vendas de Furby dispararam como uma flecha e no final de 1999 já se haviam vendido 35 milhões de exemplares.

No âmbito da cópia das faculdades humanas a mi-tologia futurista, desde épocas remotas – anteriores inclu-sive ao mito prefrankensteiniano de Prometeu – moveu-

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se entre o otimismo científico e o pessimismo humanista, entre a Utopia e o Apocalipse. Ambas atitudes persistem na atualidade quando se abordam assuntos tão sensíveis como a imitação da inteligência e as emoções humanas, dois traços sobre os quais se identifica nossa identidade. Nas atitudes apocalípticas tiveram tradicionalmente bas-tante peso as convicções religiosas. Não são coisas do passado. Todavia, em novembro de 1998 seis rabinos do Tribunal de Justiça de um dos ramos da ortodoxia de Je-rusalém proibiram a seus fiéis o uso de computadores tanto em casa como no trabalho por considerar seu mane-jo uma atividade blasfema. As posturas neofóbicas se-guem gozando, neste terreno, de boa saúde.

ENQUANTO ISSO Estamos muito longe, todavia, de poder produzir

robôs antropomorfos emocionais, como os propostos pela literatura e pelo cinema, mas é indubitável que sua pre-sença está muito arraigada no imaginário popular da so-ciedade posindustrial. Sua implantação definitiva no i-maginário popular tem sido obra do ilustrador japonês Hajima Sorayama, desenhista de sedutores robôs femini-nos reluzentes, cromados, brilhantes, estilizados e super erotizados que tem feito fortuna no mercado publicitário japonês para promover artigos comerciais.

Essa riqueza mercantil expressa, melhor que qual-quer discurso teórico, uma vontade de coisificação do corpo feminino e uma sobrevivência, atualizada e moder-nizada, das tradições arcaicas que veem na mulher um sujeito submisso ao serviço dos desejos e interesses masculinos.

Como temos dito, as especulações oferecidas nas últimas páginas pertencem ao âmbito da ficção científica. Entretanto, e a uma escala muitíssimo mais modesta e

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prosaica, os engenheiros eletrônicos estão trabalhando em artefatos ou gadgets baratos que ajudem a satisfazer as necessidades da vida emocional dos cidadãos. Assim, em fevereiro de 1998 apareceu no Japão uma máquina para ligar chamada expressivamente Lovegety (do inglês love=amor e to get= conseguir), um detector erótico de pequeno tamanho, que se pode levar no bolso e que soa quando se apresenta a ocasião propícia. Seu funciona-mento é simples, pois Lovegety emite uma frequência de radio que pode ser recebida por um outro aparelho cor-respondente ao sexo oposto. Se um homem com seu Lo-vegety ativado passa a uma distância menor que quatro metros e meio de uma mulher provida do mesmo apare-lho funcionando, os dois piscam e emitem um sinal acús-tico. A partir daí se rompe o gelo e se pode iniciar uma conversação, o primeiro passo, que constitui na fase mais árdua da conquista. As opções do aparelho são mais am-plas pois podem ser programados três níveis. conversa-ção, karaokê e get (para os mais decididos).

Três meses depois de ser lançado haviam sido ven-didos mais de 300.000 exemplares desta Celestina eletrô-nica. Seu fabricante Takeda Takafuji assinalou em decla-rações a imprensa que, posto que os homens japoneses são muito tímidos comparados com os ocidentais, seu aparelho teria um grande futuro. Mas não tardaram em evidenciar-se os problemas práticos que interfeririam na produtividade erótica do invento, pois se venderam uns 60 por cento mais Lovegety a consumidores masculinos, criando uma pronunciada assimetria no mercado. E as grandes aglomerações nas ruas de Tóquio, ou de suas discotecas, complicaram o poder averiguar a quem per-tencia o aparelho que acabava de soar. Este gadget foi relançado no ano seguinte pelo pintor David Elliot para servir as necessidades das comunidades homossexuais do Ocidente com um novo nome, Gaydar, para idêntica fun-

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ção que o sistema heterossexual japonês. É fácil imaginar a algazarra de apitos que produziam estes aparelhos num local de badalação gay.

Em julho de 1999, Kursty Groves, uma estudante britânica de engenharia desenhou um sistema de alarme eletrônico que, oculto no utilizador, media os impulsos cardíacos e ativava assim um alarme que podia ser capta-do por um satélite e permitia localizar a provável vítima de uma agressão sexual. Mas este invento antiviolações oferecia também inconvenientes pois o ritmo cardíaco não só se acelera nos momentos de assédio sexual, senão em outras ocasiões, entre elas a de um encontro sexual, introduzindo um importante elemento de confusão no sistema.

Por ridículos que pareçam todos estes mecanismos de detecção emocional, que começam a aproximar os ci-dadãos ao estatuto dos cyborgs, é evidente que configu-ram uma linha de trabalho dos engenheiros e mostram expectativas latentes no mercado, que falam as claras so-bre a miséria sexual que padece a arrogante civilização posindustrial.

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V A REDE EMOCIONAL

UM SISTEMA DE COMUNICAÇÃO PROTEICO

Internet, a rede das redes, foi criada em 1969 pelo Pentágono com o nome de Ar-panet (Advanced Reserarch Projetcs + Net), durante a fase mais crítica da guerra do Vietnã, como uma rede de comunicação multidirecional entre computadores, para

proteger o sistema científico-militar de uma eventual sa-botagem ou de um ataque nuclear, conectando os compu-tadores do Pentágono aos de laboratórios e universidades que trabalhavam em projetos de interesse castrense. Co-mo não podia ser de outro modo, ao ter surgido do ima-ginário militar, o desenho de Internet foi tributário de uma ideologia de invasão e de ocupação total do espaço comunicativo por canais capilares (sistema "globalitário", como lhe chamou Paul Virilio, combinando globalização com totalitário). E com sua estrutura deu vida a categoria telemática que os anglo-saxões abreviaram CMC (Com-puter Mediated Communication), que ultrapassou sua matriz militar e científica inicial para incorporar logo no-vos usos empresariais, financeiros, profissionais, comer-ciais, proselitistas, recreativos e de todo tipo.

O modelo de rede em que está estruturada (ou de-sestruturada, segundo o ponto de vista) o sistema comu-nicativo da Internet não tem centro, senão que se estende ao longo de uma série de nós, de tamanhos diferentes e funções distintas, que podem enlaçar-se com relações assimétricas, complementares ou discrepantes. De modo que a informação na Internet não se difunde de modo ar-bóreo, desde um tronco ou centro irradiante, como ocor-

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reria em uma fábrica centralizada e hierarquizada, senão de modo rizomático e descentralizado. Umberto Eco, Tomás Maldonado e outros estudiosos invocaram a estru-tura botânica do rizoma para referir-se a Internet pois um rizoma é um caule subterrâneo de uma planta, de múlti-plas raízes finas, que estão todas interconectadas entre si.

A Internet não é, pois um meio centrípeto e hierar-quizado, senão um meio centrífugo, horizontal e ramifi-cado capilarmente, segundo o princípio da onipresença dos fluxos de informação e da equiprobabilidade das co-nexões que transformaram a ilusão audiovisual – do ci-nema e da televisão – de viajar com o olhar na realidade viajar com o pensamento. E quando se pensa que a ubi-quidade, a instantaneidade e a imediatez são três atributos que definem tradicionalmente a divindade, entender-se-á que, para alguns olhares, a Internet seja vista como um megameio com atributos míticos e quase divinos, que faz do ciberespaço um novo continente virtual em que se concentra energia psíquica procedente de todos os países e possui por isso propriedades quasimísticas, que conec-tam com as propostas visionárias de Timothy Leary.

Mas também a Internet colocou na moda a palavra "rede", que procede do vocabulário arcaico dos pescado-res e que se expandiu nos últimos anos para múltiplas designações tecnológicas, filosóficas e políticas. Assim, o sociólogo Manuel Castells, em sua importante obra A era da informação, cunhou as expressões metafóricas socie-dade-rede e Estado-rede, entendendo por este último um Estado caracterizado por compartilhar a autoridade (seria dizer, capaz de impor a violência legitimada) ao longo de uma red.

Nos últimos séculos o poder político e militar esta-va centralizado e concentrado em edifícios emblemáticos, como os castelos, palácios, monastérios, quartéis e forta-lezas, localizadas de modo estável em um ponto do espa-

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ço e, portanto, sob óbvio eventual ataque físico de seus inimigos. Para atacar aqueles centros de poder havia que se percorrer caminhos ou estradas, singrar mares ou rios, deslocando fisicamente os atacantes e seu armamento. Com o passar dos anos, aquele mundo territorialmente extenso de viagens e de transportes se aperfeiçoou com linhas férreas, grandes estradas de rodagem e as rotas aé-reas, infraestruturas basilares na era dos transportes. Mas quando apareceu a Internet, que culminou o aperfeiçoa-mento dos sistemas de telecomunicação eletrônica, a concepção tradicional do espaço, das distâncias e do po-der foi literalmente dinamitada. Aos centros do poder – castelos, fortalezas – sucedeu-se a deslocalização e o nomadismo dos centros de decisão e influência. De modo que as redes de informática, sistema nervoso da socieda-de da comunicação, converteram-se em instrumento pri-vilegiado a serviço de elites de poder nômade e esquivo – por cima das fronteiras nacionais -, para ordenar transfe-rências de capitais, pedidos comerciais, fechar alianças oligopólicas, fixar preços, etc. Esta dissipação do espaço físico teve sua melhor metáfora lúdica na convergência virtual dos espaços sintéticos planetários de alguns par-ques temáticos, em que somente dez passos separam um templo budista do Tibet do Empire State Building.

Este outro rosto político, supostamente vantajoso, da sociedade cabeada é o que representa o arraigado mito da democracia informática direta e participativa em tem-po real, mediante referendos e votações cabeadas dos te-lecidadãos ante questões de interesse público. Mas a chamada "república eletrônica" ou democracia direta ple-biscitária de fluxo contínuo tem sido criticada com fre-quência por evitar a mediação racional de um debate re-flexivo e por prestar-se a manipulações não controladas, que marginam as regras garantidoras do jogo democráti-co.

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Em qualquer caso, a grande ágora informática, que alguns teóricos exaltam como a culminação do sonho político libertário da expressão e comunicação universal sem obstáculos, como a plasmação gozosa da "anarquia autogovernada", tem seus limites e seus controles, como iremos vendo ao longo destas páginas. Para começar, o FBI criou, já fazem alguns anos, sua ciberpolícia, a Nati-onal Computer Crime Squad, que patrulha pelas pistas da informação – e não é a única – como a policia de trânsito faz pelas estradas. E a medida que a Internet se conver-teu; em ponto de encontro do utopismo libertário e dos interesses do neoliberalismo deu entrada atropelada aos interesses econômicos, em que este último se sustenta, para transformar a Internet no que Bill Gates chamou, com seu utopismo social interessado, "a rua comercial mais larga do mundo". De maneira que passamos de um sistema de comunicações científicas a um mercado em que agora prevalecem ao contrário, as atividades mercan-tis. Ou para dizer mais cruamente, transitou velozmente do modelo acadêmico libertário ao hegemonismo comer-cial, do ágora social ao mercado público.

O trânsito tem sido, com efeito, muito veloz. Um estudo da Universidade de Vanderbilt assinalou que en-quanto o rádio precisou trinta anos para alcançar nos Es-tados Unidos uma audiência de 50 milhões de pessoas, a televisão precisou de treze e a Internet somente quatro. Em abril de 1998 estimou-se que as incorporações a In-ternet se duplicaram nos Estados Unidos a cada cem dias. Na Espanha, a informatização dos lares, mais tardia, ace-lerou-se nos últimos cinco anos e no outono de 1998 es-timava-se que haviam 1,3 milhão de usuários de Internet em todo país. Um estudo do Centro de Investigaciones Sociológicas publicado em julho de 1998 indicou que quase a metade dos usuários de computadores domésticos (43,2 por cento) dedicava mais tempo do que a televisão,

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especialmente em dias festivos. Esta atividade supera a leitura de livros (49,2 por cento) e de periódicos (46,6 por cento). Mas uns 62,4 por cento dos espanhóis não tem computador em sua casa. Nos Estados Unidos, enquanto 73 por cento dos estudantes brancos tem um computador em sua casa, somente 33 por cento dos negros o possuem. Um artigo da revista Science (17 de abril de 1998) mos-trou que, proporcionalmente a sua extensão demográfica, mais que o dobro de brancos que de negros haviam usado Internet na semana anterior. Nós nos encotramos de novo com um norte e com um sul no interior das fronteiras na-cionais.

Como era de esperar, a convergência dos fluxos de Internet tende a maquiar, com uma aparente igualdade democrática, os desequilíbrios territoriais, seccionados entre o centro opulento e a periferia deprimida. Para dizer com toda crueza, 80 por cento da população mundial não tem acesso a Internet e, por isso, a fronteira entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos designa na rea-lidade a distinção entre países informatizados e países preinformatizados.

O ano de 1998 foi decisivo na catapulta da Internet como megameio universal de grande centralidade na vida política. O fenômeno começoua 17 de janeiro, quando uma nota do jornalista Matt Drudge na Internet – em sua modesta publicação eletrônica Drudge Report – difundiu a relação sexual entre o presidente Bill Clinton e Monica Lewinsky. Alguns meios impressos de grande tiragem e influência – como o New York Time e o Washington Post – haviam tido também conhecimento do affair, mas havi-am decidido não publicar por razões de bom gosto ou por considerar politicamente pouco relevante. Mas no mo-mento em que outro meio tornou público, já não puderam ignorá-lo e se viram arrastados a ocupar-se do caso, que cresceu como uma bola de neve midiática.

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Este caso tão pouco exemplar politicamente ilustra a perfeição do "efeito mariposa" na ecologia dos meios, a que nos referimos no final do terceiro capítulo, ao men-cionar a Internet como um meio com uma grande capaci-dade intersticial para produzir efeitos de multieco. Um meio informático modesto e periférico a grande imprensa conseguiu inserirhace sesenta años el filosofo donost um assunto no primeiro plano da agenda setting midiática nacional. E a culminação do assunto também teve seu cenário privilegiado na Internet. O 11 de setembro daque-le ano se fez público o informe do fiscal especial Kenneth Starr, contendo as confissões detalhadas de Monica Le-winsky sobre oi caso e este documento desclassificado transformou a Internet no meio mais consultado simulta-neamente no mundo, com 340.000 visitas por minuto. Internet colocou-se da noite para o dia na cabeça dos me-gameios universais de comunicação. Não casualmente o alento de Eros estava presente em cada uma das linhas de seu texto.

A REBELDIA HACKER O primeiro grito de alarme chegou no verão de

1983 – o mesmo ano que Hollywood lançou a fantasia bélico-informática Jogos de guerra (War Games, 1983), de John Badham -, quando começou a detectar-se com casos concretos a vulnerabilidade da rede as intrusões de aficcionados, com a intenção de roubar dados (espiona-gem industrial), de roubar dinheiro das contas correntes dos bancos, de subtrair segredos militares dos serviços de defesa, de alterar as notas ruins em registros escolares ou, simplesmente, pelo prazer supremo de incomodar e, com isso, satisfazer a vaidade de um ego caracterizado por sua excepcional habilidade na manipulação informática.

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Mas o primeiro escândalo chegou em agosto de 1988, quando a rede de milhares de computadores que unia o Pentágono com os laboratórios que trabalhavam no programa da "guerra das estrelas", erigido por Ronald Reagan e com as principais universidades dos Estados Unidos foi sabotada com a introdução de um vírus por um pirata eletrônico. O episódio colocou em relevo a vulnerabilidade do sistema de informações governamen-tal. "o grande tema é que um programa de software rela-tivamente benigno foi capaz de colocar de joelhos a co-munidade eletrônica", declarou um especialista dos labo-ratórios Livermore da Califórnia, associado ao programa de investigação da "guerra das estrelas". Somente em Li-vermore teve que desconectar oitocentos computadores até conseguir desinfetá-los do vírus que havia sido intro-duzido em sua rede.

Um anônimo, que disse falar em nome do sabota-dor, chamou o The New York Times para explicar que seu experimento, cujo objetivo era introduzir um vírus na rede Arpanet, escapou-lhe do controle por um pequeno problema de programação que fez com que o vírus se multiplicasse através da rede cem vezes mais rapidamen-te do que o previsto. O vírus consistia, como é usual, em uma série de instruções manipuladoras ou destrutivas in-troduzidas clandestinamente através da linha telefônica, nos programas de outros computadores. Isso faz que sua reprodução siga a lei do "contágio" que é comum nos ví-rus biológicos. Neste caso o vírus chegou a infectar os computadores da NASA, do Masschusetts Institutu of technology, das universidades de Harvard, Princeton e Columbia, do Strategy Air Command (SAC) e da Natio-nal Security Agency (NSA). Mas como esse vírus não estava desenhado para apagar a informação armazenada e somente dificultou o trabalho dos computadores, seus efeitos puderam ser controlados.

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Dois meses depois, em outubro de 1988, o primeiro ministro belga, Wilfried Martens soube numa manhã pela imprensa que um anônimo fanático, com apenas um computador pessoal e um telefone pode penetrar no sis-tema de comunicações de seu governo. O pirata pode as-sim conhecer com antecedência as ordens do dia do con-selho de ministros, a correspondência eletrônica entre o primeiro ministro e seus colegas de gabinete e outros do-cumentos oficiais reservados. Esta intromissão, em um momento que o código penal belga não continha nenhu-ma disposição contra o delito eletrônico, levantou muitas especulações entre políticos, psicólogos, sociólogos e juristas. Segundo muitos analistas, o objetivo dos piratas eletrônicos era, simplesmente, demonstrar que os siste-mas de informação são vulneráveis e vangloriar-se, com sua habilidade técnica, as vezes com meios rudimentares. Mas junto a esses intrusos por prazer estava começando a expandir-se já naquela época, uma plêiade de ladrões vir-tuais que logravam lucrar com transferências bancárias, ou de chantagistas que introduziam nos computadores ordens de destruição dos programas que utilizavam. Em 1988 tão somente França, Canadá e Dinamarca tinham adotado disposições legais contra estes novos delitos.

Em março de 1989, o serviço de contraespionagem da República Federal da Alemanha desarticulou uma rede de espiões que se dedicava a roubar informações secretas dos bancos de dados ocidentais para vendê-los logha a KGB soviética. Os detidos eram especialistas hackers23, denominação que se referia aqueles aficcionados da in-formática que decifravam os códigos secretos de acesso dos grandes bancos de dados e um deles procedente da Alemanha havia sido o Chaos Computer Club, de Ham-burgo, que também havia chegado a acessar os computa-

23 NT – O autor usa a expressão "rompeclaves"

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dores da NASA. Revelou-se então que o serviço alemão de espionagem seguia a pista desta rede já há um ano e que havia tentado várias vezes prender aos hackers intro-duzindo nos bancos dados de informação falsa, mas esta nunca foi recolhida pelos espiões. E para angústia da co-munidade informática mundial, revelou-se que para que-brar as mais severas medidas de segurança e proteção de dados de centros militares, científicos e industriais, os hackers não usaram mais que ferramentas de pequeno valor. computadores de preço médio-baixo, acopladores acústicos e a linha telefônica de uso geral. Os piratas ha-viam começado a cooperar com agentes da KGB em Hannover em 1985, gratuitamente numa primeira fase e logo a troca de centenas de milhares de dólares e drogas para eles que eram viciados.

Com estes antecedentes, em agosto de 1989, du-zentos piratas virtuais procedentes da Europa e dos esta-dos Unidos fizeram seu primeiro congresso em Amster-dam, uma das cidades mais permissivas do mundo e em um país que não penalizava a pirataria virtual. Os hackers – pois esta era sua denominação no jargão informático, do verbo to hack , cortar, picar – dedicaram-se em seu congresso a intercambiar informações sobre os últimos avanços de sua técnica e adotaram uma Declaração Uni-versal dos Hackers em que diziam não serem delinquen-tes e afirmavam, pelo contrário, que contribuíam para a implantação de um sistema internacional de informação, demonstrando as falhas e escassa proteção dos sistemas e lutando contra a "centralização informática". Seu organi-zador, Jan Dietvorst, declarou que "temos que fazer fren-te a uma perigosa centralização das informações. E esta-mos demonstrando que com um equipamento barato [um microcomputador] é possível entrar em comunicação com qualquer lugar do mundo". Sem querer suas palavras

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se constituíram uma lúcida profecia da rede mundial In-ternet.

Depois desta data, as instruções das redes de in-formação de alta segurança através da linha telefônica converteram-se quase uma rotina e não há semana em que não se desvende algum caso clamoroso. Por exem-plo, o de um jovem israelita de dezoito anos que foi acu-sado em setembro de 1991 em Jerusalém, acusado de ha-ver acessado a informações secretas sobre a Guerra do Golfo e sobre Israel. A raiz deste e de outros episódios que enfrentavam a alguns guerrilheiros informáticos na sombra com o sistema de comunicação da sociedade po-sindustrial, desejosos de subverter tal sistema em nome de princípios libertários ou para a agradar seu próprio ego, o governo norte-americano criou o Computter E-mergency Response Team, um centro federal destinado a vigilar a segurança das comunicações eletrônicas. Mas, do outro lado, o número de guerrilheiros informáticos não parava de crescer. Em agosto de 1994 celebrou-se em New York um novo congresso de hackers que reuniu mais de 1200 pessoas dos Estado Unidos e alguns cole-gas do Canadá e Alemanha. Durante este congresso e com música de rock and roll como fundo, projetou-se numa grande tela um filme com instruções sobre como usar a linha telefônica sem pagar, ao mesmo tempo que os cyberpunks se entretinham com quarenta computado-res na sala principal falando em cyberspeak, o idioma do movimento clandestino da informática. Esclareça-se que o movimento cyberpunk tem como meta a fusão da alta tecnologia e a contracultura, para fazer da primeira um instrumento da segunda.

As reportagens sobre esta curiosa reunião nova-iorquina descreviam os hackers como parentes tardios dos hippies mas imersos na alta tecnologia e de aspecto esfarrapado. Asseguravam que uma sede insaciável de

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saber e de entrar no desconhecido era o que lhes levava a trocar o mundo real pelo virtual. A pergunta de por que entravam em arquivos secretos, a resposta mais comum era. “Porque sei fazer e consigo”. Um dos entrevistados fez uma distinção importante. “Uma coisa é entrar no sis-tema de informações do governo e outra é comportar-se como um criminoso dentro”, acrescentando com orgu-lho. “Se és bom, não deixas nenhum rastro”. Como a maioria de seus colegas insistia que sua motivação era a firme crença de que “a informação pertence a todos”. Tratava-se de uma espécie de comunismo revolucionário e libertário da era da informática com o que nem Marx nem Bakunin, que escreveram sua obra a luz de uma lamparina e com penas de ganso, puderam sequer sonhar.

O manifesto dos hackers do grupo chamado Black-net expressou muito bem os ideais de sua agremiação ao considerar que “as nações-Estado, as leis de exportação, as considerações em torno da segurança nacional e simi-lares são relíquias da era do pré-ciberespaço”.

A atividade dos hackers continuou sendo persisten-te e, no momento de escrever estas linhas, suas últimas proezas tinham sido o assalto massivo de adolescentes aos computadores do pentágono – uma presa sem dúvida saborosa – em fevereiro de 1998 e um ataque massivo, em maio de 1999, às páginas do FBI e do senado dos Es-tados Unidos, que obrigou a cancelá-las temporariamen-te. Estes episódios revelam o eventual escorregão da re-beldia hacker da travessura até o ciberterrorismo. A ci-berguerrilha ou terrorismo virtual menos sangrento mas as vezes mais devastador que o terrorismo tradicional, pode ter como objetivo a destruição de informação, como nos exemplo recém citados. E nunca toma como refém pessoas ou bens, como faz o terrorismo clássico, porque seus objetivos são a informação e os dados. Um exemplo também recente disso foi a pirataria, em junho de 199 da

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recém estreada saga galáctica de George Lucas Star Wars, A ameaça fantasma, para difundi-la na internet. Constituiu um episódio que cancelou ruidosamente o idí-lio que havia existido até então entre a indústria de Hol-lywood e o setor de informática, que aparecia como seu grande aliado para obter efeitos visuais especiais median-te imagens digitais. A conclusão óbvia destes episódios é que uma eventual ciberguerra (um ataque massivo contra redes de informática) seria militarmente a forma mais decisiva e rápida para dirimir um conflito bélico futuro. E a moral é que quem possui um nível de desenvolvimento em informática mais elevado, mais vulnerável se torna seu cyberinimigo.

Depois do impacto da guerra de Kosovo celebrou-se em Milão, em junho de 1999, uma reunião de cúpula de hackers europeus. Nesta reunião manifestaram-se con-tra a infoguerra, contra a destruição das comunicações e suas infraestruturas e a favor da infopaz. Aproveitaram a ocasião para pedir que todos os documentos anteriores fossem postos ao alcance dos cibernautas e fundaram a Agência pelo Direito a Informação no III Milênio. E fa-zendo publicidade para uma multinacional de Holly-wood, propuseram o termo hacktivismo para que no futu-ro não se utilizasse o termo Matrix. Deste modo faziam alusão a popularíssimo filme de Larry e Andy Wachows-ki estreado pouco antes que apresentava a luta guerrilhei-ra de alguns hackers contra um pode político totalitário e omnipresente que dominava o ciberespaço. No final do filme seu messiânico protagonista, Keanu Reeves, pro-clamava sua aspiração em criar um mundo (cibermundo) “sem regras nem controles”. Era um lema que Bill Gates assinaria com gosto, para preservar a hegemonia de seu império de informática.

A partir dos congressos de hackers e com as deten-ções de alguns deles foi possível traçar-se seu perfil, que

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em linhas gerais tornam-se pouco atrativos para as con-venções mais comuns de nossa cultura, apesar de serem sempre jovens e solteiros. Geralmente usam óculos por sua grande dependência da tela; são pálidos, pela falta de sol motivada por sua reclusão, e obesos, por sua assídua ingestão de fast food e falta de exercício físico. Sobretu-do, é um sujeito assexuado, porque sublima toda sua e-nergia libidinal em seu único interesse, pois seu único prazer radica-se no hacking.

Com esta caracterização constata-se que, em sua condição de nova espécie de cidadão, os hackers adapta-ram-se biologicamente ao seu nicho informático. Em sua qualidade de técnico-anarquista, os hackers tem sido ide-alizados as vezes como heróis da contracultura no mundo da alta tecnologia, como prolongadores do impulso con-tracultural e libertário hippie do pós-68 nas décadas do final do século, mas com seu protesto despojado de seus ingredientes eróticos, em concordância com o alarme ge-rado pela praga da AIDS. Mas esta extrapolação da con-tracultura dos anos setenta não pode admitir-se sem cau-telas e é necessário recordar que Theodore Roszak, o teó-rico fundacional da contracultura, a caracterizou preci-samente como um protesto e uma réplica coletiva contra o totalitarismo tecnocrático.

Se analisarmos detidamente as motivações da re-beldia hacker pode-se identificar três motores de sua conduta. o primeiro, de caráter eminentemente narcisista, se faz na constatação gratificadora de sua própria habili-dade técnica e de seu poder. O segundo, de caráter mais ideológico, na defesa do princípio do livre acessa a in-formação, de maneira que consideram que sua atividade, ainda que ilegal, é ética, e por isso legitimam a cleptocra-cia, o orgulho meritocrático da competência e eficácia na subtração de informações alheias. E o terceiro, comple-mentar ao anterior, no prazer de interferir ou destruir um

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sistema que representa a ordem institucional social. Aqui se localizaria propriamente o eros libertário de sua pro-posta, produto da inversão de sua energia libidinal no prazer da transgressão social. E um psicanalista ortodoxo interpretaria seguramente a transgressão do hacker como a intenção para libertar-se do opressivo controle paterno, representado pela ordem social.

Este tema nos leva ao assunto do vício patológico de computador, ao que nos Estados Unidos se chama de computerism. Hoje se sabe bastante sobre o vício da tela, que tem sido bem estudado por Mark Griffiths, psicólogo da Nottingham University. Sabe-se que o foco luminoso da tela possui certa capacidade hipnótica e que a maior fixação a Internet se produz nos hackers, mas também entre pessoas desocupadas e mulheres de meia idade, o que sugere que aporta uma compensação emocional em uma vida pouco estimulante e com poucos contatos soci-ais.

As investigações neurológicas mais recentes sobre os processos viciantes realizam-se com a técnica de scan-ner denominada tomografia por meio de emissão de posí-trons (Posítron Emission Tomography-PET24) para ob-servar a atividade metabólica de certas áreas do cérebro de pacientes durante tratamentos contra o vício da cocaí-na. Os informes indicam que quando os dependentes sen-tem a ansiedade de buscar a droga observa-se um alto nível de atividade em uma franja de áreas cerebrais que vão desde a amígdala e o cíngulo anterior até os lóbulos temporais. Mas o mesmo sistema mesolímbico parece funcionar normalmente para proporcionar ao indivíduo uma sensação de prazer ante qualquer coisa que suponha

24 NT – Sofisticado método que permite visualizar a função dos neu-

rônios através de seu metabolismo usando substâncias radioativas. O trabalho foi publicado na revista Nature, em 24 abril de 1997.

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uma recompensa, como as relações sexuais, chocolate, álcool, nicotina ou o prazer de um trabalho bem feito. E, certamente, frente ao prazer derivado da tela, que gera também uma dependência não química. Em 1995 a Fa-culdade de Medicina de Harvard referia-se especifica-mente a dependência da Internet, comparando-a com o alcoolismo. Então já existiam na rede pçáginas chamadas eloquentemente Nethaolics Anonymous, Interneters A-nonymous e Webaholics, para ajudar aos dependentes.

O ano de 1998 trouxe descobertas reveladoras nes-te caso. Uma pesquisa levada a cabo em abril daquele ano revelou que 16 por cento dos norte-americanos com acesso a internet (uns 80 milhões de pessoas) haviam a-bandonado totalmente ou em parte a leitura de diários em favor das notícias eletrônicas. Mas o lado escuro desta expansão foi mostrado por um estudo da Carnegie Mel-lon University dos Estados Unidos ao assinalar que o uso doméstico habitual da internet favorece a depressão e o isolamento. por cada hora de conexão, segundo o infor-me, aumenta um por cento o risco da depressão e se re-duz o círculo de amigos e conhecidos em 2,7 pessoas. E a 3 de março daquele ano toda a imprensa mundial relatou o caso de um italiano que passou três dias navegando sem interrupção pela internet e teve que ser hospitalizado com confusão mental, alucinações e delírios, com o diagnósti-co de “intoxicação aguda de internet”.

SOCIODINÂMICA DA REDE Não faz muito, Umberto Eco definiu perspicaz-

mente a internet como “uma grande livraria desordena-da”. Com este diagnóstico Eco convergia com a preocu-pação já manifestada pela prestimosa revista Science, a-lertando sobre o perigo de balcanização do conhecimento científico – de sua fragmentação, dispersão e ocultação -,

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devido a estrutura amorfa, expansiva, assistemática e ale-atória da rede das redes. Em sua massa desordenada de dados somente pode obter-se, obviamente, aquilo que está em oferta e é praticamente impossível saber de an-temão o que está realmente em oferta. Voltando aos sími-les biológicos, há que se recordar que todos os sistemas naturais tendem a otimizar seu rendimento, mas existe um ponto de inflexão a partir do qual o bom se converte em um excesso daninho. Isto é certo para a alimentação, quando a nutrição se plasma em obesidade patológica ou o cultivo intensivo que conduz a desertificação do territó-rio. Analogamente no ser humano o excesso de informa-ção dificulta as funções básicas da memória e pode en-torpecer os processos cognitivos, de modo que o cresci-mento desordenado e desequilibrado da rede pode equi-parar-se a um processo celular canceroso, mas no plano da comunicação social. Neste caso pode- se afirmar que se gera muita informação, mas pouco conhecimento.

Uma grande livraria desordenada torna-se pouco útil na sociedade do conhecimento, na que é fundamental dispor a cada momento da informação pertinente requeri-da e, para isso, dominar seus critérios prévios de seleção. O que diferencia precisamente na sociedade dual de in-formação, a que temos nos referido no terceiro capítulo, aos insiders dos outsiders reside precisamente em sua possibilidade de acesso a informação pertinente e reque-rida a cada momento. if you are not in, you are out, reza o axioma dualista.

Recorde-se que ensinar é, antes de mais nada, ensi-nar critérios de discriminação, de busca e de seleção da informação. Não fazem outra coisa todos os primatas em seus exercícios de aprendizagem e autoaprendizagem, como na distinção entre comestível e não comestível. E, chegados a certos níveis de complexidade intelectual,

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esta seleção não pode fazê-la nenhuma máquina, senão só a inteligência intencional do homem.

A “livraria desordenada” da que Eco se lamentava, exige critérios de pertinência e de busca da informação por parte do usuário, de modo que logo terá que afirmar que ser sábio consiste, sobretudo, saber buscar, escolher ou selecionar funcionalmente aquilo que nosso intelecto requer a cada momento. E quando hoje se constata que a dualização social que dividiu os cidadãos em ricos e po-bres agravou-se com a divisão acrescentada de ricos e pobres em conhecimento (inforricos e infopobres) have-ria que precisar que nesta nova categoria o elemento principal de distinção é sua capacidade de acesso e sele-ção pertinente das fontes de conhecimento e de dados requeridos. Porque a superoferta não sistematizada de informação equivale a desinformação, como já se expli-cou.

Mas a rede cumpre outras funções além de enci-clopédia e de consulta de bases de dados e estende sua estrutura a comunicação bilateral e multilateral. Kevin Kelly definiu a internet como um “exosistema coletivo” que estaria na base de uma nova “inteligência coletiva” (a expressão é de Pierre Lévy). Esta constitui, naturalmente, a visão otimista da rede pois a versão pessimista, a vista do desequilíbrio que o sistema abarca entre conhecimento e ruído, a qualifica as vezes de mero vertedor intelectual, povoado por ciberdoçuras e que multiplica a tolice dos tolos que a utilizam. Como advertiu Steven Miller, “ao invés de uma aldeia global, as novas autopistas poderão nos converter em um fumador de ópio de quinhentos tu-bos.

O ciberespaço constitui um território livre que as vezes se compara com as pradarias do Far West. Enquan-to espaço público de comunicação, a rede permite que a s propostas dos cidadãos anônimos irrompam nela, aper-

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feiçoando uma tradição democrática que antes se dava somente nas cartas a os diretores dos jornais, em chama-das as emissoras de rádio ou inserções nos meios margi-nais. Mas também o já hiperpovoado ciberespaço, em sua qualidade de espaço público, vai adquirindo com o tempo o rosto de um espaço perigoso e inseguro, povoado por vigaristas, pedófilos e assassinos, que conseguem amea-çar com sua ciberdelinquência aos cidadãos pacíficos, como veremos mais adiante.

As autopistas da comunicação criaram a infraestru-tura de que Alvin Toffler chamou a alguns anos de a “so-ciedade da desmassificação”, com os comunicadores reu-nidos virtualmente com seus interlocutores distantes no interior de suas casas. Mas, por sua vez, está remodelan-do o tipo de relações criadas pela sociedade televisiva, que era a sociedade do isolamento, submetida a tirania dos fluxos monodirecionais de informação emitidos pelas telas. Não obstante, é mister não hipostasiar a comunica-ção pela rede pois a biologia nos tem ensinado que orga-nismos que vivem em um mesmo meio não vivem na rea-lidade no mesmo mundo. Uma flor, por exemplo, é ador-no para uma jovem, instrumento de libação para uma abelha e alimento para uma vaca. Seus mundos são dis-tintos, tanto como os dos internautas que se comunicam através de distintos interesses pessoais e por distintas subjetividades.

Comparada com a internet, a chamada telefônica é demasiado intrusiva e pode ser temporariamente inopor-tuna (estarmos talvez no chuveiro ou envolvidos em uma tarefa absorvente). A mensagem da rede, ao contrário, é depositada no correio eletrônico do destinatário, para ser consultada de acordo com sua conveniência. Porque a comunicação na rede pode ser sincrônica ou assincrônica. Na primeira os participantes estão simultaneamente on-line e se respondem imediatamente uns aos outros. Seu8

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efeito de telepresença é mais intenso e emocional que no segundo caso. Quando a comunicação é sistematicamente assincrônica pode ocultar uma vontade de ocultação de sentimentos, de esquivar uma confrontação mais direta ou de criar um certo mistério.

Diz-se que a internet é o meio próprio da Geração X, pois a crescente mobilidade geográfica por razões pro-fissionais favorece as relações através da rede, que são mais estáveis. De maneira que as relações e amizades não se forjam pela proximidade física, senão pela comunida-de de seus interesses e seu vínculo virtual substitui a seu vínculo pessoal ou pelo menos o modifica profundamen-te. Com sua ubiquidade enunciativa, a internet dinamita assim a geografia, mas as pessoas seguem em seus luga-res pois o mito fantástico-científico do teletransporte con-tinua sendo aguardado. O multimilionário Howard Hu-ghes, que deu várias vezes a volta ao mundo e acabou sua vida encerrado em seu bunker de Las Vegas, em compa-nhia de suas depressões, ilustrou de modo patológico, antes da explosão da rede, a improdutividade da ubiqüi-dade que pretende justificar-se a si mesma.

A matéria prima da comunicação através da rede é a escrita, um sistema gráfico que Freud qualificou luci-damente como “a palavra ausente”. Mas seus textos são palavras despojadas de seu contexto subjetivo de enunci-ação, ao contrário da entonação e da gestualidade que acompanham a comunicação frente a frente e diferente também das cartas manuscritas em que a caligrafia, o pa-pel perfumado ou as pétalas de uma flor podem acrescen-tar um importante plus emocional a mensagem. Para “a-quecer” o texto escrito com certa temperatura emocional inventaram-se os emoticons (de emotion + icons), que são figuras ideográficas alfanuméricas formadas com signos de pontuação do teclado, para expressar estados de ânimo e outras características dos interlocutores, como .-)

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[sorriso], .-( [tristeza], 8-) [pessoas de óculos], .-& [pes-soa com lábios selados], etc.

O repertório semiótico que configuram os emoti-cons ilustra sobre a expressão dialetical formalizada nos chats anglo-saxões, em que a linguagem irada, insultante ou provocativa se chama flaming (flamejante), aos nova-tos se lhes qualifica de newbies (de new e o sufixo babi-es) e que se criou todo um sistema próprio de netiquette (network + etiquette), que deve ser respeitado pelos par-ticipantes. Tal sistema de comunicação cria dúvidas acer-ca de como devem se designar seus participantes. A pala-vra “operador” é demasiadamente fria e impessoal,, “in-terlocutor” deveria reservar-se para quem troca comuni-cações orais ou locuções, pelo que “correspondente” pa-rece mais ajustada, ainda que pouco usada.

A internet constitui uma gigantesca árvore de sub-culturas muito diversificadas, formadas pelas chamadas “comunidades virtuais”, umas comunidades on-line que constituem foros de debate ou grupos de discussão, mo-nográficos ou não, que podem ser abertos ou fechados (endógamos), e que se correspondem em nossa tradição cultural com a função das tertúlias e dos clubes de dis-cussão e até das sociedades e gangues (a denominação inglesa chat [charla25] corresponde-se bem com a acep-ção espanhola). Seus apologistas quiseram relaciona-las com a tradição utopista das comunidades libertárias do séculi IXX, mas sua concepção é mais próxima ao mode-lo do ágora e do ateneu, duas instituições que remontam a Grécia clássica, ainda que agora tenham sido despoja-das de suas formalidades e ritos.

Uma comunidade (na escala telemática) é um sub-grupo social que compartilha interesses temáticos co-muns e que está unida por mútua empatia de seus mem-

25 NT – em português, conversa.

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bros, criando entre eles uma proximidade virtual. Tais membros podem não chegar a conhecer-se pessoalmente nem ver-se nunca, pelo que se pode afirmar que são, de fato, comunidades invisíveis, inclusive para seus partici-pantes, unidos somente pela comunicação escrita. Por isso o espaço ou território da comunidade virtual é mais conceitual que perceptual. E nos momentos em que as sociedades ocidentais estão vivendo uma acelerada seg-mentação qualificada de "multicultural", as comunidades virtuais contribuem para a tribalização da sociedade po-sindustrial, dividindo-a em tribos eletrônicas diferencia-das por seus gostos e preferências e alicerçadas no esfor-ço mútuo de uma identidade específica. Não poucas ve-zes tais tribos conhecem uma hierarquização acentuada, com seus gurus, feiticeiros ou caudilhos.

Devido a freqüente dispersão física de seus mem-bros, estas comunidades tendem a corroer o sentimento de lealdade territorial, cedendo a adesão a seu localismo ou patriotismo em favor dos vínculos afetivos interpesso-ais, de caráter transregional ou transnacional. Já dissemos que a internet havia dinamitado o espaço geográfico e havia redescoberto os ideais da associação libertária des-territorializada, mas não é menos certo que uma comuni-dade virtual pode consumir-se na soma estéril de monó-logos de pessoas com afinidades culturais.

FUNÇÕES ERÓTICAS E AFETIVAS INTERPESSOAIS NA

REDE Como se assinalou no capítulo anterior, a comuni-

cação frente a frente – a que os internautas qualificam como em 3D (em três dimensões) – é a que transmite a máxima informação emocional, porque acrescenta a co-municação verbal (com sua entonação, inflexões de voz, suas pausas e sua prosódia) o imenso campo de estímulos

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da comunicação não verbal. expressões faciais, olhares, gestos, odores, etc. As mediações técnicas da comunica-ção reduzem sempre tal riqueza de mensagens e de mati-zes. A videoconferência transmite menos informações que a relação frente a frente. O telefone menos e o cor-reio eletrônico menos ainda.

O telefone introduziu a voz como principal meio de comunicação humana, em detrimento da imagem, da tac-tilidade ou da dor. Os manuais de urbanidade ensinam a todas as crianças que quando se fala com uma pessoa tem-se que olhar em seus olhos. O olhar permite desco-brir, em um piscar ou num enrubescer, que o interlocutor mente ou que não diz toda a verdade. Esta função essen-cial da vista na conversação foi suprimida e todo o peso da comunicação – da semântica e da psicologia – iria re-cair da palavra desprovida de imagem, em sua entonação, seus matizes, seus titubeios, suas redundâncias e suas pausas. A sociedade telefônica tem sido, pois, uma socie-dade vococêntrica – centrada na voz – que percorria o tecido social velozmente, densamente e em todas as dire-ções.

Nesta sociedade telepolifônica a voz substituía a presença visual, a aparência física e aos modos gestuais na vida social. Para compensar a mutilação sensorial e a frieza deste último canal comunicativo, os desenhistas se esmeraram em sofisticar a forma e aspecto dos aparelhos telefônicos, dotando-os de maior personalidade, elegân-cia e cores mais cálidas. O arcaico aparelho preto, uni-forme e impessoal foi substituído com vantagens por se-dutores gadgets, estilizados, elegantes, barrocos, atraen-tes e até eróticos. O timbre já não era um timbre, senão um suave "bip-bip". E o aparelho um companheiro cálido que compensava a ausência física do ser humano com que se falava, mas a que não se podia ver nem tocar. Uma coisa ia pela outra. Não é estranho que muitas atrizes de

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streap-tease quiseram criar há alguns anos números em que simulavam masturbar-se com um aparelho telefôni-co, como se desejassem que a voz do amado penetrasse em sua vagina.

Mas a carência visual do telefone fez que nos anos trinta começasse a ensaiar-se o videotelefone, que contou com algumas estações experimentais públicas na Alema-nha. A videoconferência parece, a primeira vista, um meio que quase reproduz todas as vantagens da comuni-cação frente a frente, mas na realidade traz vários incon-venientes importantes. Em primeiro lugar, pode se tornar muito indiscreta e intrusiva, pois pode assaltar nossa in-timidade em um momento indesejado. E se bem que é certo que o destinatário da chamada possa desconectar o circuito de vídeo, tal gesto pode supor o envio de uma mensagem descortês, inamistosa ou hostil ao remetente. E, ao contrário, quando a comunicação está animada por um sentimento amoroso, ver o ser amado, sem poder to-cá-lo, torna-se mais ansiante que a comunicação telefôni-ca. Como escreveu Ernest Dichter. "o vidro, que nos permite ver, mas não tocar, é o perfeito símbolo da frus-tração".

Com sua comunicação escrita, as relações interpes-soais na rede retrocedem a sedução através da palavra escrita que era próprio do epistolário galante das altas classes do século XVIII, mas sem seu expressivo calor grafológico nem seu papel perfumado. Mas claro, é pos-sível acrescentar emoticons ao texto, mas são sempre fi-guras estereotipadas, como as dos hieróglifos agípcios, muito distintos das metáforas poéticas ou caligráficas que saíam das penas apaixonadas. Na comunicação frente a frente, a expressividade não verbal – que emite importan-tíssimos subtextos emocionais, como já se disse – é si-multânea a mensagem verbal, enquanto que a leitura dos emoticons é sucessiva as palavras escritas, o que lhes

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subtrai eficácia. Ao contrário do famoso "amor a primeira vista" na realidade 3-D, que começa pelo visual (como a própria expressão indica), na rede começa pelo conceitual ou escritural, cuja contundência sensorial é muito inferi-or. Mas também é certo que os textos escritos se podem ler, reler, degustar, interpretar e reinterpretar, ao contrário das palavras ouvidas, que o vento leva. E, existe, claro, uma ampla tradição de amizades por correspondência que se transformaram em bodas, em 3-D ou por poderes. Na rede o processo é muito diferente.

Segundo os estudos levados a cabo neste campo, o normal é que entre o casal de correspondentes produza-se uma intimidade progressiva. Normalmente se começa escrevendo sobre idéias gerais e gostos pessoais. Daí se passa a informações mais personalizadas sobre si mesmo. E depois a falar sobre sentimentos. E a exemplo que na correspondência em 3-D, pode-se escanear um fotografia para que o correspondente a veja em seu correio eletrôni-co. Será, sem dúvida, uma fotografia favorecedora, talvez retocada, talvez antiga, quando se era mais jovem, ou in-clusive retocada por uma cirurgia estética digital. Em to-dos os casos, a passagem da mensagem sentimental para a sexual é sumamente delicado. Há que se saber em qual momento pode-se dar o passo sem tropeçar e isso requer intuição e sinceridade, ou talvez astúcia, segundo os ca-sos. Aceitará o outro este passo adiante na relação?

A rede oferece certas vantagens para a comunica-ção sentimental. Torna-se ideal para os tímidos e os soli-tários compulsórios, como as pessoas que vivem em á-reas despovoadas. O anonimato estimula, aliás, a desini-bição social e a rede permite assim as relações entre es-tranhos com mais facilidade que as discotecas e os bares, onde o olhar e a voz podem falhar. É ideal para os tími-dos e inseguros e também anula, pelo anonimato da co-

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municação, os efeitos negativos do racismo étnico e os racismos sociais da feiúra, da idade e da enfermidade.

Muitos psicólogos escreveram sobre a atração dos contrários, que permite liberar energias eróticas reprimi-das pelos códigos sociais ou morais. O executivo regrado que se apaixona muitas vezes pela mulher livre e boêmia, ou vice-versa, e o engenheiro pela pintora. A comunica-ção escrita permite então polir as arestas mais chocantes ou perigosas de suas discrepâncias e facilita idealizar o outro e aplainar o caminho para a relação em 3-D.

E aqui um ponto verdadeiramente importante. Quando se tem pouca informação sobre um correspon-dente é fácil projetar seus desejos ou fantasias sobre ele, de modo que a um indivíduo sem rosto pode-se idealizar colocando-se o mais atrativo ou desejado. Ainda que o operador que constrói uma projeção imaginária do cor-respondente que não vê arrisca-se a que seu eventual en-contro possa ser devastador e destruir definitivamente sua relação. Analogamente quando alguém se descreve com palavras, para um interlocutor ausente, dificilmente se comporta de um modo objetivo. Ou melhor, não pode ser objetivo. Tende a favorecer-se e a projetar uma imagem atrativa de si mesmo. Mas se é uma pessoa depressiva ou que sofra de transtornos de personalidade, pode projetar, ao contrário, uma imagem decididamente negativa atra-vés de suas palavras.

Parece ser freqüente entre os internautas que tratam de estabelecer relações afetivas o temor a frustração em 3-D. O temor a decepção pode paralisar o encontro físico com um (a) interlocutor (a) que se idealizou através da comunicação escrita. Deseja-se conhecer o corresponden-te mas teme-se que o encontro possa decepcionar e as vezes este temor conduz a perpetuar uma relação que ja-mais desemboca, por insegurança ou timidez, em 3-D. Da mesma forma, o medo de ficar abaixo das expectativas

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criadas pela comunicação bem-sucedida pode paralisá-lo. Neste segundo caso, esta relação pode constituir um sin-toma de fobia social.

Para resumir a situação, digamos que na comunica-ção interpessoal na rede a invisibilidade física dos comu-nicantes traz uma vantagem e um inconveniente a cada vez. 1) protege os correspondentes com um anonimato de fato e isso lhes permite ou uma maior franqueza comuni-cativa ou, pelo contrário, uma ocultação de defeitos pes-soais, ou uma simulação vantajosa; 2) mas esta invisibili-dade faz também que a comunicação seja menos comple-ta (e as vezes menos gratificante) do que se fosse frente a frente. Mas neste jogo nem todo mundo deseja concluir a relação cibernética no mundo em 3-D, como veremos a seguir.

A tela do computador conectado a rede mundial serve para o usuário como metáfora de um poço profun-do, de um buraco negro maravilhoso, que esconde infini-tas possibilidades e segredos em seu fundo, escondidos por trás de sua superfície translúcida. Somente com sua existência, a tela se converte em geradora de desejos, com a possibilidade de encontrar e conhecer através dela pessoas de cinco continentes, com as que jamais poderia ter entrado em contato, e que talvez compartilhem os mesmos desejos, fantasias e parafilias26. A rede constitui um éden para as que o doutor Lars Ullerstam batizou co-mo "minorias eróticas", com seus gostos especializados e seu direito a satisfaze-los. Receptáculo de fantasias eróti-cas sem conta, o promíscuo ciberespaço prova que o sexo não está entre as pernas, senão dentro das cabeças. Cer-

26 NT - Denominação genérica para comportamentos sexuais

que se desviam do que é normalmente aceito pela sociedade, po-dendo englobar comportamentos muito diferentes e com diferen-tes graus de aceitabilidade social

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tamente o ciberespaço é promíscuo e não é raro que a internet se converta no principal meio de transmissão de vírus informáticos, corolário de sua promiscuidade, como anunciou a imprensa especializada com grande alarme em maio de 1999. Em 80 % dos casos, segundo tais in-formações, os vírus chegam através do correio eletrônico, camuflados em arquivos, como um conjunto de instru-ções integradas no documento. Alguns vírus são relati-vamente inofensivos e se limitam a trocar palavras ou cores. Outros são muito perigosos, pois formatam o disco rígido, roubam ou infectam arquivos ou saturam os servi-dores auto-enviando-se pelo correio. Um dos vírus, cha-mado Chernobyl (pois ativa-se ao 26 de abril, aniversário da catástrofe nuclear russa), é tão devastador que pode afetar inclusive o hardware. Resulta quase inevitável que surjam comparações destes vírus no ciberespaço erotiza-do com as infecções que se propagam pela promiscuidade sexual, como a gonorréia, a sífilis e a AIDS.

Antes tínhamos explicado que a rede encoraja a fantasia sobre a identidade e o aspecto do interlocutor invisível e isso permite que se possa privar com ele até níveis que não seriam possíveis por telefone, pois a voz é mais personalizada e inibidora que a escrita. A internet pode trazer, em termos brutais, como veremos, a questão filosófica da "alteridade". Na rede predominam os usuá-rios masculinos, o que fera uma assimetria sexual nas comunicações pessoais, tendo também em conta que o código de identificação mais forte, na comunicação gru-pal, é o sexo, uma marca de identidade forte (hard-coded), pois determina atitudes e expectativas básicas do correspondente.

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Tudo isso torna-se claro nos populares jogos RPG27 (chamados genericamente em inglês de MUD- Multi-User-Dangeons) em que a relação entre os participantes simuladores é geralmente menos intensa que a que tem lugar dentro da própria personalidade de cada um dos simuladores, a ponto de constituir um verdadeiro labora-tório emocional. O anonimato na rede é equiparável ao anonimato transgressor dos carnavais, que propicia todas as libertinagens. Permite suplantar a outras pessoas para criar situações dignas de um divertido teatro de varieda-des, exercitando, por exemplo, a poligamia ou a polian-dria virtuais no ciberespaço; mas pode utilizar-se também para prejudicar gravemente a reputação de outros perso-nagens reais. E, como em algumas novelas policiais, duas ou três pessoas podem associar-se para apresentar-se co-mo se fossem a mesma.

A rede permite (e até estimula) a troca de identida-de sexual (gender swapping) do operador, para experi-mentar com a transexualidade virtual, pois cada sujeito pode jogar com a troca de sexo e de personalidade para explorar, sem riscos, uma alteridade sexual que lê resulta-ria muito complicada e arriscada na interação frente a frente. Em um jogo de RPG um homem pode jogar ser um personagem feminino que simula ser um homem, com o que efetua um verdadeiro jogo de acrobacia psico-lógica. Mas está comprovado que, fora dos RPG, desco-brir que o interlocutor falsificou seu sexo provoca um grande mal-estar nos outros internautas. É especialmente irritante se trata-se de um homem que assume uma per-sonalidade feminina e, por duas razões. a primeira, por-que assume-se que tal engodo era para aproveitar-se das

27 NT – RPG – Role Playing Game - é um tipo de jogo virtual

em que os jogadores assumem os papéis de personagens e criam narrativas colaborativamente.

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vantagens e do favoritismo que geralmente a urbanidade ou galanteria prescrevem no trato dos homens com as mulheres; e, em segundo lugar, pela confusão e insegu-rança que produz tratar com alguém cuja identidade se-xual não é clara.

Estas manobras revelam que estes jogos podem es-conder segundas intenções, como o assédio sexual. Os disfarces informáticos permitem também a manipulação de consciências, com quando um pedófilo se paz passar por sacerdote ou médico. E é bem conhecido que o ano-nimato, ou melhor, o disfarce, se faz uma arma de grande utilidade quando criminosos sexuais conseguem atrair a uma conversa supostamente galante com fins devastado-res. Exemplos disto não faltam na história recente da in-ternet.

Na rede operam também, já a algum tempo, perso-nalidades protéicas e mitômanas, como aquele protago-nista acomodatício e genial de Zelig (1983), de Woody Allen. Um operador pode usar vários nomes e personali-dades falsas, com efeito, para satisfazer as distintas ne-cessidades de seu ego mas, às vezes, a falsa identidade é vivida como se fosse uma verdadeira identidade e pode ultrapassar a débil linha que conduz à personalidade psi-cótica. Sévérine, a protagonista de Belle jour (1968), de Luiz Buñuel, e que foi interpretada por Catherine Deneu-ve no cinema, ilustra muito bem a labilidade das persona-lidades fronteiriças, nesta caso entre a burguesa elegante e fria e a prostituta eficiente. Nada novela de Joseph Kes-sel e no filme de Buñuel tratava-se de um caso fictício, mas nos anais da criminalidade internacional abundam os exemplos desconcertantes de vida dupla, de burgueses aparentemente respeitáveis que escondiam uma segunda

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existência sinistra como criminosos múltiplos como Lan-dru ou o doutor Petiot.28

A patologia da personalidade múltipla ou de disso-ciação da personalidade (Multiple Personality Disorder-em inglês) é uma patologia infrequente, que pertence às desordens dissociativas no quadro das neuroses histéricas e que foi descrita pela primeira vez em 1816. Afeta, so-bretudo, aparentemente as mulheres com personalidade ansioso-depressiva. A psiquiatria moderna classifica este conjunto de fenômenos como "dissociações histéricas", entre as que se encontram o sonambulismo, os transes, as sugestões pós-hipnóticas, as fugas (nas que o indivíduo vaga errante, sem saber quem é nem onde está), a perda de memória (amnésia histérica), na qual a pessoa tem uma lacuna em sua memória durante um período de tem-po finito e recente, e a personalidade dividida, dual ou múltipla, na que o sujeito parece trocar de uma personali-dade para outra. Naturalmente, estes casos patológicos devem ser claramente distinguidos dos simuladores, que são muito mais perigosos e que navegam pela rede as ve-zes com fins sinistros.

A rede, como já se disse, é fonte e veículo inesgo-tável de fantasias e conversações sexuais, que tem seu lugar privilegiado nos hot chats (literalmente conversas quentes) e das que, as vezes, acabam por derivar-se a formação de casais em 3-D. Tão certo é isso que uma psi-quiatra norte-americana, Esther Gwinnell escreveu um livro com o título de On-Line Seductions sobre este tema e se especializou profissionalmente como conselheira neste campo sentimental. Segundo ela, a maior parte de

28 NT – Henri Landru, o Barba Azul, criminoso francês (1814

a 1918) condenado a morte por 11 assassinatos. Mercel Petiot, preso em 1944, responsável pela morte de mais de 63 pessoas, em sua maioria judeus.

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relações sentimentais pelo correio eletrônico dura uns três meses, mas confessa que não há estatísticas a respei-to. Mas seu livro é uma fonte rica de exemplos e de casos concretos, tanto de uniões felizes através da rede como de fracassos dolorosos.

Está claro que a solidão da tela e da cadeira pode excitar as fantasias de liberação libidinal em pessoas com uma vida sexual insatisfatória em 3-D. Nos casos de in-capacidade para manter relações eróticas em 3-D, por conta da hipertimidez, de uma fobia social ou de outra patologia, toda a vida de relação emocional se canaliza através da tela do monitor, de modo que esta vida imagi-nária torna-se mais gratificante e satisfatória que a vida em 3-D. Não é o caso discutir se esta reclusão e renúncia – que é a de muitos sacerdotes e religiosas, por exemplo – é verdadeiramente patológica, mas está claro que a su-pressão da relação com outros corpos tende a hipertrofiar as fantasias e potencializar o fetichismo substitutivo. Ao fim e ao cabo, o ciberespaço é viciante, como se explicou anteriormente e, ao contrário do sexo em 3-D sua prática não sofre de limitações físicas, nem produz esgotamento, nem gravidez indesejada, nem contágios. Antes, ao con-trário, tende a avivar o desejo. Mas também tem sido anotados seus inconvenientes. Um analista do tema ob-servou que é difícil teclar suficientemente rápido e com uma mão só. Katie Argyle e Bob Shields confessaram que as hot chats produzem "todas as emoções e a excita-ção física de um ato sexual, mas quando termina, meu sentimento de solidão aumenta" (Is there a body in the Net?)

Do que expusemos pode-se inferir que não é raro idealizar o correspondente que não se viu e fantasiar se-xualmente com ele ou ela, adiando o encontro em 3-D para manter perpetuamente viva aquela idealização. De-finitivamente, ama-se a pessoa idealizada, não a pessoa

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real, desmentindo o popular refrão que afirma que " o que os olhos não vêem, o coração não sente". A relação amo-rosa através da tela do computador não pode decepcionar, pois os correspondentes somente oferecem um perfil fa-vorável e se elimina tudo o que possa ser negativo, desde o mau hálito, o suor e a menstruação, até a divisão confli-tiva de tarefas domésticas.

Não só isso. As vezes a idéia de contar uma fanta-sia extravagante ao parceiro formal pode inibir o confi-dente, que se sentiria ridículo, pelo que se torna mais fá-cil contá-la a um estranho que não se vê. Em poucas pa-lavras, a relação sentimental através da rede não impõe praticamente nenhuma obrigação e alimenta gozosamente os sonhos.Isso explica que tenha surgido a curiosa figura do "amante virtual", masculino e feminino. Esther Gwin-nell escreve em seu livro que alguns casais podem passar entre seis e dez horas o dia escrevendo, falando e lendo mensagens de correio eletrônico de sua amante virtual. A relação com o ciberparceiro pode chegar a ser mais esti-mulante que a rotina monótona que se mantém como ma-rido ou a esposa, de modo que já sem produziu nos Esta-dos Unidos vários divórcios sustentados na acusação de adultério virtual. Por não mencionar, porque é mais com-preensível, o caso de casais que se separam porque um dos cônjuges se enamorara de alguém através da rede e foi a seu encontro em 3-D. Mas para acabar com as ciber-fantasias, é mister recordar que nos RPG as ciberbodas não constituem nenhuma raridade, teleoficiadas por outro participante do jogo com funções de ministro de culto (ou capitão de barco, se for celebrada a cerimônia a bordo de um transatlântico virtual) e com outras testemunhas e convidados participando virtualmente no ato. Mas parece que os casos de noites e núpcias virtuais são menos fre-qüentes.

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A eliminação da comunicação frente a frente na re-de permite a sedução mas obstrui as relações sexuais tra-dicionais, que envolvem essencialmente a tactilidade. Pois o relacional, nos seres humanos, não se limita ao campo do dizer, senão que se estende sobre todo o fazer, que define nossa identidade na relação com os outros, sobretudo se tal relação adquiriu um nível elevado de in-timidade. Como os personagens dos filmes, não somos o que dizemos, senão o que fazemos. Madonna expressou isso com franca brutalidade quando declarou a imprensa; "O amor é uma emoção e o sexo a ação". A rede pode proporcionar o estímulo e a excitação sexual, mas não sua satisfação relacional plena, se por ela entendemos o encontro ático em 3-D. Os defensores ao extremo da ple-nitude da rede podem argüir que, se por um lado, por ela não circulam feromônios – o mais potente estímulo de odor erótico intraespecífico de todos os mamíferos – tampouco existem nela os maus odores corporais. Mas este argumento não destrona o poder dos feromônios co-mo excitantes sexuais, que somente se pode perceber no encontro em 3-D.

De maneira que em muitas ocasiões dois corres-pondentes decidem retirar-se de um chat para passar a comunicar-se privadamente por correio eletrônico, para construir uma relação de maior intimidade afetiva entre ambos. Isto significa que o uso da rede é, em muitos ca-sos, instrumental e transitório, utilizado para conhecer outras pessoas e que se deseja encontrar fora da rede, em 3-D. Ou seja, a escrita virtual constitui o preâmbulo e a via indireta que conduz a comunicação integral, que co-meça pela epistolar e pode acabar no tátil.

Mas o início desta relação em 3-D nem sempre é fácil e muitos podem perguntar-se, antes de dar o passo decisivo, se seu amor sobreviverá às imperfeições pesso-ais e ao encontro físico. Não é mais segura e confortável

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uma relação virtual carinhosa que o risco do encontro insatisfatório em 3-D ? Neste ponto, a luta entre o princí-pio neurótico do devaneio e o princípio pragmático da realidade podem encetar uma árdua batalha de resultados incertos. Aparentemente, não é infreqüente que a timidez, a fobia social, a agorafobia ou a insegurança acabem por frustrar muitos encontros em 3-D.

E também se entende que para cônjuges absorvidos pela rotina de uma relação morna e sem surpresas, a rede se abre como uma via real para a excitação do adultério. Mas, num e noutro caso, o encontro será possível se a distância geográfica que separa os amantes virtuais não for excessiva. Esther Gwinnell narra em seu livro vários casos de amantes virtuais intercontinentais que cruzaram oceanos para consumar sua relação em 3-D. Às vezes com êxito e às vezes sem ele.

Vivemos em uma sociedade da hipererotização ou da deserotização? O biossedentarismo favorecido pela televisão, o teletrabalho e as novas tecnologias, a ceguei-ra e conceptualidade escritural promovida pela rede e a ascensão da Inteligência Artificial e da robótica parecem convergir em uma desvalorização do corpo humano e em uma amputação de nossos campos sensoriais. Aí reside seguramente uma das chaves para explicar a exuberante emergência da pornografia na rede.

A PORNOGRAFIA DIGITAL Ainda que no próximo capítulo aprofundemos no

sentido do fenômeno pornográfico e de suas diversas es-tratégias expressivas, é inevitável dizer algo sobre ele em um capítulo dedicado a internet, em razão da extensão e importância que adquiriu o assunto no ciberespeaço. Com efeito, no meticuloso estudo Marketing Pornography on the Information Superhighways, publicado em 1995 co-

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mo fruto de uma investigação de uma equipe da Carnegie Mello University, de Pittsburg, concluiu-se o seguinte. a pornografia constitui a aplicação recreativa mais difundi-da nas redes; 89,9 por cento de seus usuários são do sexo masculino; devido a ampla difusão de pornografia em outros meios tradicionais, as redes privilegiam variantes alternativas e especializadas, como a pedofilia, a hebefi-lia29 e parafilias diversas (como o sadomasoquismo, o ondinismo30, a coprofagia e a zoofilia). Um bom exemplo dessa vontade de diversificação e originalidade oferece-nos Robert Thomas, da Califórnia, ao distribuir na rede imagens de atos sexuais, mas assinalando que seus parti-cipantes eram membros da mesma família e, ainda que não houvessem provas de que serem realmente relações incestuosas, graças a esta informação converteram-se em best sellers do setor. Na mesma linha, Catherine McKin-non, ativista antipornô e professora de Direito na Michi-gan University, lamentou que quando na rede anunciam-se cenas de sexo oral com estrangulamento, o número de visitas duplica-se (Time, 3 de julho de 1995).

Ainda que a rápida e profusa difusão da pornogra-fia na rede possa ter surpreendido alguns especialistas, na realidade o fenômeno não era novo e tinha um claro ante-cedente com o ocorrido com o sistema francês Minitel, rede telemática pública nascida em 1981 como sistema de videotexto doméstico, implantada pelo Estado e que per-mitia o acesso por via telefônica a diversas fontes de in-formação de interesse público. Mesmo que Minitel tenha sido desenhado como um sistema utilitário a serviço da racionalidade dos cidadãos, a prática demonstrou inespe-radamente que suas necessidades não eram previstas pe-

29 NT – Desejo sexual por adolescentes púberes – lolismo,

quando por meninas. 30 NT - Excitação sexual com a própria urina ou de parceiro.

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los bem intencionados programadores e especialistas. Em 1986, com efeito, iniciaram-se as chamadas messageries roses31 com tal força que o governo tributou suas mensa-gens em 36 % de seu custo e o ministro Charles Pasqua ameaçou proibir as de conteúdo homossexual. As messa-geries roses chegaram a converter-se na aplicação mais utilizada do Minitel – com títulos como Sextel, X-Ttel, Desiropolic, Aphrodite, etc. – revelando uma camada subjacente de desejos na população que não aflorava nas pesquisas. E os rumores de proibição dos usos dionisía-cos de Minitel tropeçaram decididamente na vontade da população, pois uma pesquisa de Louis Harris em 1991 mostrou que 89 por cento dos consultados se opunha a isso.

De maneira que Minitel primeiro e internet depois demonstraram que nas sociedades modernas existem de-sejos confessáveis e desejos inconfessáveis e que o vo-lume destes últimos ultrapassa as previsões dos sociólo-gos e dos políticos.

É interessante observar como alguns progressos técnicos no campo da comunicação social criaram alarme nos moralistas que se consideravam guardiões da ética sexual tradicional. Na realidade, o conceito moderno de pornografia foi inventado no século XIX por homens conservadores da classe alta, preocupados em afastar os conteúdos eróticos das mulheres e das classes inferiores. Quando introduziu-se o telefone na sociedade nos pri-mórdios do século XX, estes mesmos moralistas o consi-deraram tão escandaloso quanto a pornografia, porque permitia que as jovens burguesas – suas filhas – fossem cortejadas sem controle nem censura por pretendentes que se infiltravam descaradamente com sua voz no inte-rior de seus lares. E quando inventou-se o cinema, a mis-

31 NT- mensagens eletrônicas de cunho erótico.

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tura de sexos em salas escuras e frente a imagens de grande poder sugestivo fez com fosse que contemplado por aqueles moralistas como um espetáculo nefando.

O alarme moral pelo fluxo de conteúdos pornográ-ficos na rede não demorou chegar até certos políticos e juristas que decidiram mobilizar-se para combatê-los. Colocava-se em primeiro lugar, um problema semântico, a saber, a definição de pornografia. Na realidade os con-teúdos pornográficos estavam duplamente delimitados e definidos pragmaticamente por dois grupos humanos o-postos. pela demanda dos usuários e pelo zelo dos censo-res. Entre ambos grupos moralmente antagônicos se de-senhava a província do pornográfico, ainda que com a cautela do relativismo geográfico e legal, pois o que se considerava pornografia na Arábia Saudita podia não ser o mesmo na Suécia.

A primeira iniciativa governamental contra a por-nografia na rede produziu-se quando em 28 de dezembro de 1995 o governo alemão obrigou a empresa Compuser-ve a privar seus assinantes de duzentos fóruns em razão do caráter pornográfico. No ano seguinte aprovou-se nos USA uma lei intitulada Communication Decency Act, que outorgou poderes ao governo federal para perseguir e proibir os conteúdos pornográficos na rede, apesar de que alguns juristas discutiam se a internet deveria ser consi-derada como um meio impresso, protegido, portanto pela Primeira Emenda da Constituição, ou mio de difusão, como a televisão, controlável pelo governo. O debate es-tava servido.

Era evidente que sobre a rede das redes circulavam muitos equívocos. Desejou-se criminalizar a circulação por sua rede nervosa de mensagens pornográficas ou ter-roristas, esquecendo-se que tais mensagens circulavam antes impunemente, durante décadas, através do correio postal, do telefone e até de quiosques públicos, de modo

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que a rede não fez mais do que favorecer sua fluidez, ca-pilaridade e alcance. Mas o debate segue em pé e o go-verno chinês, por exemplo, criou em dezembro de 1997 sistemas para seu controle – através de empresas servido-ras e dos próprios usuários – enquanto que as autoridades de Singapura limitavam seu acesso a uma elite de usuá-rios autorizados e venturosamente o Tribunal Supremo norteamericano sentenciou em junho de 1997, contraria-mente o disposto pela Communication Decency Act, que a rede das redes não podia ser censurada e que suas men-sagens estavam protegidas pela Primeira Emenda.

Não obstante, neste tema se navega por um oceano de ambigüidades, pois o mesmo Tribunal Supremo dos Estados Unidos da América sentenciou em abril de 1999 por unanimidade que enviar correio eletrônico com uma linguagem “obscena, sensual, lasciva, suja ou indecente” constituía delito, se tivesse propósito de molestar seu des-tinatário. De maneira que esta sentença corrigia sua falha anterior que havia declarado inconstitucional a proibição do material “sexualmente explícito” na rede, introduzin-do o fator da intencionalidade do emissor. Este caminho provocou certa confusão na opinião pública e nos profis-sionais do setor pois sabe-se onde começa a censura, mas nunca onde acaba.

Em qualquer caso, uma anedota revela melhor que nada os equívocos que encerra todo este assunto. Quando se discutiu a lei contra a pornografia nos Estados Unidos da América, um servidor da Casa Branca bloqueou seu texto porque seu programa detectou uma palavra que es-tava proibida no sistema. pornografia.

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VI A DOMÓTICA32 E AS ESTRATÉGIAS

DO EROTISMO

O IDEAL CLAUSTROFÍLICO E SUAS SERVIDÕES

século XX foi, entre outras coisas, o sécu-lo das revoluções urbanas, que terão con-tinuidade no próximo. O Instituto de Re-cursos Mundiais, de Washington, previu que no ano de 2025 dois terços da popula-ção do planeta viverá nas cidades, encabe-

çando o ranking demográfico Tókio, seguida de São Pau-lo, New York, México D.F., Bombaim e Shangai. Por outro lado, uma vez que as grandes cidades estão sofren-do violentos movimentos centrípetos, como pólos de a-tração migratória, sofrem também tendências centrífugas, com as classes acomoda das que buscam instalar-se em suas periferias tranquilas e bem equipadas. Mas os confu-sos condomínios dos bairros populares suburbanos, que se constituem em cidades-dormitórios, revelam contradi-ções entre a tendência elitista e a realidade social.

De maneira que a sociedade da desmassificação da burguesia convive cruamente com a sociedade da massi-ficação e do anonimato. E, para acrescentar uma nova contradição ao sistema, o ideal domótico propalado pelos profetas da revolução tecnológica promete a expansão e dispersão territorial, já que o teletrabalho e suas redes de

32 NT – (O autor utiliza o termo "hogarótica").Domótica é o

conjunto das técnicas e dos estudos tendentes a integrar no habitat todos os automatismos em matéria de segurança, de gestão de energia, de comunicação, etc. O termo “Domótica” resulta da jun-ção da palavra latina “Domus” (casa) com “Robótica” (controle automatizado, informatizado)

O

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telecomunicações tornam desnecessária a proximidade física. O trabalho a distância supõe, curiosamente, uma regressão ao velho artesanato pré-industrial, quando as oficinas estavam em suas casas. Mas neste modelo pós-industrial, a promessa urbanística reside no despovoa-mento das cidades e na periferização dos novos habitats.

Em 1964 o publicitário Ernst Dichter descreveu metaforicamente o lar como uma “caverna aveludada”, espaço familiar narcisista, onde a dona de casa detém o poder hegemônico, ainda que auxiliada por aparelhos ele-trodomésticos, que tem conotações masculinas, como substitutos do trabalho físico pesado. Tem se estudado menos do que se deveria as transformações do espaço doméstico no último meio século, na era da expansão dos eletrodomésticos, como ingredientes centrais da chamada “sociedade de consumo”. Está para ser estudado, por e-xemplo, o possível impacto da imagem de TV como um protagonista dos salões burgueses, em declínio do hábito de pendurar pinturas figurativas em suas paredes. Dois séculos antes, o surgimento das gravuras nelas tinha co-meçado a mudar as pinturas que antes as ornavam e ima-gem eletrônica parece agora completar este ciclo icono-clasta. Da mesma forma que a distribuição das poltronas na sala de estar agora é feita de forma que conveniente-mente fiquem de frente a TV e os móveis sejam dispostos evitando que fique entre os olhos dos moradores e a tela, algo que não ocorria na era do rádio.

O ambiente transformou-se em algo que seria ne-cessário introduzir o verbo entornizar33 para designar a atividade dos especialistas da imagem e do desenho, res-ponsáveis por esta nova biosfera artificial que o cidadão

33 NT – em tradução livre, ambientalizar, relativo às atividades

de mudar e organizar o ambiente interno

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moderno criou para mudar sua biosfera natural e silves-tre. A arte da entornização é uma atividade de verdadeira engenharia social, uma política para criar atitudes e com-portamentos, para gerar expectativas e respostas, para condicionar gostos e formas de viver e pensar.

Nesta tarefa tem entrado em confronto arquitetos e engenheiros com o ideal pós-industrial dos chamados edifícios inteligentes, que alguns já contrapõem à casa ecológica, sustentável e bioclimática, embora nada auto-rize denominá-la uma casa de bobo, pelo fato de ser à prova de som, de utilizar energia solar ou eólica, de ven-tilação para evitar a contaminação interior, de praticar o aproveitamento de resíduos e de utilizar materiais reci-cláveis que não sejam tóxicos nem perigosos.

A casa automatizada, ideal domótico que constitui na realidade uma casa conectada a cabo, na era da infor-mática, onde tudo funciona com controle remoto, tem sido alvo de muitas críticas e uma das mais pontuais a-firma que as casas inteligentes são feitas para usuários idiotas. Paul Virilio, por exemplo, disse que ela não está desenhada para a medida de uma pessoa normal, mas pa-ra a de um tetraplégico ou deficiente físico. No seio desta caverna domótica, já não aveludada, senão eletrônica e controlada a distância, o lazer claustrofílico se desenvol-ve em torno de aparelhos eletrodomésticos diversos, con-vertidos em novos fetiches tecnológicos no meio de um lar-bunker que aspira a autossuficiência, como a uma bo-lha eletrônica convertida em novo nicho ecológica.

Assim vai se forjando o larocentrismo pós-industrial, com sua territorialidade narcisista protegida por meios eletrônicos (alarmes, cercas eletrificadas, célu-las fotoelétricas, raios infra-vermelho), pois a sociedade da privacidade vive sob a angústia provocada pela amea-ça da intromissão humana (ladrões, raptores de crianças)

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ou tecnológica (microfones, teleobjetivas, etc.). Com isso se reforça a vontade de erigir bunkers blindados e autos-suficientes, transformados em células herméticas de con-sumo comercial, cultural e ideológico. O contraste dessas residências herméticas com as dos nativos das ilhas To-briand que bem descreveu Malinowski34, faz-se chamati-vo. Suas casas estavam construídas de modo que seu inte-rior podia ser visto de fora, com total acessibilidade, para dar conta dos pertences, em uma atitude ostentatória e participativa vinculada ao ritual tribal potlach35 . Nas atu-ais casas herméticas e isolacionistas, ao contrário, blo-queia-se a visão de seus interiores e sua opulência deve inferir-se pelo jardim ou pela fachada.

Um fator econômico importante que tem determi-nado a emergência deste lar hermético e autossuficiente tem sido a propriedade privada dos instrumentos de har-ware e de software das indústrias de comunicação e de lazer. Depois da revolução do telefone, que permitiu falar com todo o mundo sem sair de casa, chegou o receptor de rádio privado e logo o tocadiscos e, com ele, a coleção discos, que logo foram trocadas por cassetes e por CDs nas estantes. E depois do televisor veio o vídeo-cassete doméstico e, com ele, a coleção de fitas, CD e DVD. E a reboque do computador pessoal chegaram os programas, disquetes e vídeo games, antes da conexão ao modem que lhe conecta ao ciberespaço. Estas tecnologias culturais privatizadas eram descendentes do livro, primeiro ins-

34 NT - Bronisław Kasper Malinowski, antropólogo polonês,

(1884 -1942). É considerado um dos fundadores da antropologia social.

35 Cerimônia ritual indígena de renúncia a todos os bens mate-riais acumulados pelo homenageado – bens que devem ser entre-gues a parentes e amigos.

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trumento cultural de uso individualizado e privado, con-traponto individualista à cultura comunitária e agorafílica do teatro, do circo, do estádio e das salas de concerto e de cinema, que reúnem em um recinto grande multidões pa-ra desfrutar de um mesmo espetáculo. Naturalmente as tecnologias culturais da privacidade irromperam proven-do um status social distinguindo a seus proprietários, em-bora logo sua propriedade fosse paulatinamente se demo-cratizando.

Esta difusão obedecia a uma razão econômica mui-to clara, pois para as indústrias de hardware e de software se tornava mais benéfico e rentável a venda massiva de seus produtos a muitos consumidores individuais que seu usufruto coletivo, mediante aluguel ou cessão, como o-corre com a audição coletiva de um disco através do rá-dio ou a assistência de um filme em um cinema ou num televisor. A confirmação da tal estratégia se produziu quando Hollywood confessou nos anos noventa que a renda da venda de videocassetes superava a dos deriva-dos de execução pública de filmes. Neste esquema, já não há que se sair de casa para consumir bens culturais, pois eles podem ser desfrutados no interior do lar bem equi-pado da era eletrônica. E até podem ser produzidos com a filmadora e o computador pessoais.

A Espanha entrou já faz anos neste ciclo de propri-edade privada dos instrumentos e programas para comu-nicação e o lazer. Em 1999 estimava-se que 99,5 % dos lares estavam equipados com televisão e 60 % deles com dois aparelhos ou mais. E para suprir seus videocassetes domésticos seus usuários compraram em 1994 12 mi-lhões de fitas com uma despesa de quase 24 bilhões de

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pesetas36,. E em 25 por cento dos lares possuía, já nos finais do século, um computador pessoal.

Este modelo de vida cotidiana, centrado na claus-trofilia doméstica autossuficiente, com seu correlato ne-gativo de agorafobia pública, pode chegar a ser psicoló-gica e socialmente patológica. Neste modelo subjaz, com efeito, a dicotomia selva-fortim em que o exterior urbano é percebido como selva perigosa, espaço de crime, de insegurança, de contaminação e até de contágio, apoiado pelo neopuritanismo, induzido pela praga da AIDS. Fren-te a ela se alça o fortim, que Tomás Maldonado descre-veu graficamente como "en el exterior, monumental for-taleza; em el interior, lujuriosa Disneylândia" (Crítica da razão informática). O luxuoso fortim constitui uma ex-pressão de narcisismo social, mas por isso mesmo um fator de dessocialização, em que não poucas vezes a es-posa se queixa do marido – ou vice-versa – de que "nun-ca saem". Ou seja, é o comportamento próprio da agora-fobia social, diversa da agorafobia clínica tradicional, tal como foi descrita em 1871 por C. Westphal e que a psi-canálise tem associado usualmente à angústia da separa-ção materna prematuramente. Esta nova agorafobia tem, ao contrário, raízes ideológicas e sociais distintas, como prolongamento dos comportamentos aristocráticos da era pré-industrial e como manifestação de aversão ao estra-nho. À luz dessa dicotomia pode-se afirmar que o espaço doméstico autossuficiente constitui um espaço centrípeto, de acordo com a distinção do psicólogo Humphrey Os-mond entre espaços sociópetos (como o de uma discote-ca) e espaços sociófugos (como o dos aeroportos e esta-ções ferroviárias).

36 NT – moeda da Espanha até 2002, quando da entrada do Eu-

ro.

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Este modelo claustrofílico extremo, portanto, o bi-ossedentarismo cidadão, em uma época castigada pela praga do automóvel, que nos permite deslocar sem nos mover. Nunca o homem viajou tanto graças a seus olhos e imóvel numa poltrona como a conjunção do automóvel e do televisor. Esse excesso patogênico de sedentarismo na sociedade atual, caracterizada também pelas dietas hipercalóricas, dualiza de novo ao mundo moderno com a "praga do colesterol", que contrasta fortemente com a praga da fome em amplas regiões do planeta. Em nossas sociedades, muitos cidadãos devem ocupar, ao contrário, uma parte de seu horário de lazer em atividades físicas anérgicas e improdutivas - footing, jogging, ginástica, golfe – para levar a cabo aquele exercício que em outras épocas se efetuava funcionalmente ao desempenhar tare-fas econômicas produtivas. Hoje, ao contrário, tem-se que pagar para fazer trabalhar os músculos do modo que no passado faziam os servos para gerar riqueza.

Na dicotomia selva-fortim está implícito um pres-suposto ideológico que opõe os cidadãos integrados aos excluídos da elite do bem estar, acrescentando-se o para-doxo de que os integrados se convertem, por sua vez, em autossegregados voluntariamente da festa agorafílica, pois a aventura excitante e socializadora, com a possibi-lidade de novos encontros, é mais própria da selva que do fortim, com sua solidão eletrônica programada. Nesta dicotomia claustrofilia-agorafilia se opõem, por conse-guinte, os seguintes atributos e valores.

- privacidade – comunidade - atomização social - massificação - reclusão doméstica – extroversão pública,

que se correspondem filogeneticamente com as oposições próprias do estado de natureza.

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- caverna – território cinegético - covil – casa Para explicar o ideal da claustrofilia doméstica são

oferecidas razões de toda ordem, começando pelas bioló-gicas. Argumenta-se, por exemplo, que o imperativo ter-ritorial – de remota origem alimentícia – está inscrita geneticamente no cérebro reptiliano (cuja origem remon-ta a uns 22o milhões de anos) e que o homem ainda con-serva na formação reticular mesoencefálica, o mesoencé-falo e as formações de base do cérebro. Em consequên-cia, o homem, como o restante dos vertebrados, é um ser territorial que associa a idéia de segurança a um território próprio de sua fixação ou pertença. Este fenômeno bios-social conduz, em uma escala macroscópica, à instituição dos territórios-pátria – cuja pertença se reforça emocio-nalmente com lendas, bandeiras, escudos e hinos – e as guerras territoriais em sua defesa. E na escala microscó-pica conduz a uma psicologia larocêntrica, centrada no território domiciliar.

A territorialidade tem sido bem estudada em nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, que se organi-zam em grupos fechados e dotados de um território pró-prio, de onde extraem seu alimento. Nele os machos de-tém um papel dominante sobra as fêmeas e os exemplares mais jovens e controlam e defendem os limites de seu território. Quando em seus passeios de controle desco-brem ninhos-dormitórios abandonados de chimpanzés estranhos, cheiram e destroem. E os exemplares intrusos em seu território são atacados ferozmente até a morte. Os trabalhos de campo de Jane Goodall trazem numerosos exemplos eloqüentes sobre o imperativo territorial desta espécie.

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No homem, o imperativo territorial nutre-se de e-lementos simbólicos e é,propriamente, uma criação bio-cultural. Para começar, recordemos que os animais vivem separados em nichos ecológicos adequados para cada es-pécie, enquanto o homem distribuiu-se por toda a super-fície do planeta, com exceção da inóspita Antártida. O conceito simbólico de território formalizou-se no neolíti-co, com a emergência da agricultura e do povoado está-vel, de onde derivariam asa primeiras cidades no Oriente Médio. E nestas cidades consolidou-se a distinção entre espaço interior e espaço exterior, entre espaço doméstico e espaço urbano, entre espaço privado e espaço público. Os templos podiam constituir suntuosos espaços públicos mas as pirâmides egípcias eram imponentes tumbas pri-vadas para quem se encontrava na cúspide do poder polí-tico. Neste e em outros exemplos do mundo dos vivos demonstra-se que o território privado convertia-se em uma projeção simbólica do indivíduo fora de si mesmo, o que justifica que o território se considere, no caso do ser humano, uma criação biocultural.

No século XX, como já se disse, esta distinção se maximizou através das políticas da comunicação e do lazer, pois na esfera privada e claustrofílica primam valo-res como a territorialidade, a proteção, a segurança, o re-fúgio, o recolhimento e a introversão, enquanto a rituali-dade neotribal do lazer agorafílico no estádio, o circo, o teatro, o cinema, a sala de concertos, a discoteca, o bar ou a praia primam valores tais como a festa, a comunidade, a extroversão, a interação pessoal, a aventura, as novas re-lações, a emulação e a liturgia coral.

Esta distinção territorial tem também um eco psico-lógico natural na ambivalência das relações interpessoais, pois desde a infância oscilam permanentemente entre a tendência ao contato social (extroversão) e a tendência a

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fugir-lhe (introversão), sendo ambas condutas perfeita-mente funcionais, complementares e lógicas e somente quando uma dessas tendências aparece hipertrofiada ou exclusivista possa se falar em comportamento patológico, em um arco que se estende desde o sujeito maníaco ao autista. Como explicou-se antes, as novas tecnologias da comunicação e do lazer, que primam seu uso privado e doméstico, tendem a fortalecer a segunda em detrimento da primeira. É a atitude que caracterizamos como claus-trofílica e larocêntrica, que implica por demais um dis-tanciamento do mundo exterior e um divórcio radical da natureza. Um divórcio do útero da espécie que não é fa-cilmente reparável, pois o ar fresco e luz do sol estimu-lam a circulação sanguínea e ativam os sistemas homeos-táticos de regulação térmica, de um modo que não podem conseguir os sistemas artificiais, como as lâmpadas de raios ultravioleta. Mas, igual o que ocorre com o ginásio, os novos estilos de vida fizeram aparecer outras formas de compensação psicossomática, que tratam de restabele-cer certa reconciliação com a natureza perdida. Assim, os finais de semana no campo ou junto ao mar, assim como as atividades desportivas tais como a caça, a pesca ou a navegação, retroagem o homem urbano as origens da es-pécie, fazendo com o que foram duras tarefas para a so-brevivência em um ambiente agreste se transformem ago-ra em atividades lúdicas e relaxantes, em compensações naturalistas ou em simulacros filogeneticamente nostálgi-cos, que exorcizam com a clorofila ou sais marinhos os artifícios da sociedade pós-industrial.

O doutor Jean Itard, que se ocupou de cuidar e es-tudar o pequeno selvagem Victor (e que François Truffau imortalizou em seu filme O pequeno selvagem) observou que quando se produziam tormentas Victor reagia gozo-samente e se divertia saltando alegremente sob a copiosa

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chuva que lhe molhava, com feliz reencontro com a livre natureza que havia sido separado contra sua vontade. Victor havia vivido a maior parte de sua vida na selva e, por isso, seu cativeiro social era vivido como uma penosa imposição que lhe fazia ansiar seu estado natural. O e-xemplo de Victor é u caso certamente extremo, mas o etólogo alemão Irenäus Eibl-Eibsfeldt criou a acertada expressão "fitofilia" para designar a aficção do homem urbano a rodear-se com suas plantas e flores de adorno, que expressam a nostalgia do biotipo primitivo perdido. E faz notar com agudeza com quanta frequência parecem imagens de plantas e flores estampadas em cortinas, col-chas e trajes femininos. Através destes sucedâneos visu-ais se evoca a nostalgia do "paraíso perdido" das origens da espécie. E, seguindo sua mesma lógica, poderíamos qualificar como "talasofilia" a difundida aficção aos ba-nhos de mar à imersão no líquido nutricional em que se gestou o início da vida.

Mas o ideal claustrofílico levanta também outras implicações mais personalizadas que as derivadas do di-vórcio radical da natureza. Às vezes, a casa tem sido a-presentada como uma simulação simbólica do claustro materno e como refúgio emocional para seus habitantes. A comparação fisiológica é sob todos os ângulos exage-rada pois o cálido líquido amniótico do ventre materno significa nutrição e calor biológico para o feto enquanto as batidas do coração trazem seu ritmo de acompanha-mento. Mas se o refúgio emocional é, sem dúvida, certo para as famílias unidas, para as famílias que sofrem con-flitos intestinos seu espaço se converte em um potente incitador ansiógeno ao invés de refúgio emocional.

Por conseguinte, a função balsâmica do espoco doméstico tem de ser posta em perspectiva crítica à luz da extensa crise da família ocidental e do auge do indivi-

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dualismo, corolário da autonomia do ego em nossa cultu-ra. Na atualidade, aproximadamente um terço dos lares de New York estão ocupados por somente uma pessoa, os chamados singles, que não poucas vezes se cercam de algum animal de companhia e que alimentam um impor-tante mercado de produtos singles (cafeteiras e utilidades de cozinha individuais, por exemplo). Na Europa, a ten-dência single está encabeçada pelos países nórdicos, em razão de suas altas taxas de ocupação trabalhista femini-na, por volta de 60 por cento. 24 por cento dos suecos são, efetivamente, singles. Na Cataluña, em cinco anos, (entre 1991 e 1996), o número de mulheres e homens jo-vens que constituíram domicílios individuais duplicou-se (La Vanguardia, 8 de maço de 1999).

À vista destes dados verifica-se que o ideal claus-trofílico constitui um obstáculo severo para a socializa-ção e o estabelecimento de relações afetivas interpesso-ais. Uma comédia norte-americana de desencontros, (De-nise Calls Up, 1995), de Hal Salwen, satirizou com muita agudeza a atual divisão das relações interpessoais na so-ciedade pós-industrial, mediadas pelo telefone, o fax e o correio eletrônico, até o ponto de que a protagonista que desejava ter um filho ter que recorrer a um banco de sê-men. Uma função central da cultura agorafílica tradicio-nal é precisamente a de proporcionar um território de so-cialização sexual aos indivíduos em discotecas, bares, clubes, festas, etc. O ideal claustrofílico atenta contra tal socialização e, no caso dos lares individuais, impõe com frequência a seu habitante a evidência e o conseguinte stress de sua solidão. A disfunção biológica desta opção, quando não está temperada por outras alternativas socia-lizadoras, é notória. Macacos jovens criados experimen-talmente com mães simuladas na tela que semente lhes alimentavam evidenciaram em poças semanas graves ca-

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rências físicas e transtornos psíquicos. Definitivamente, a vida de Robinson Crusoé não constitui um ideal para a espécie humana.

A comunidade sem proximidade física nem emo-cional transforma a sociedade em um deserto cheio de gente. E é evidente que o novo Homo otiosus tende a substituir maciçamente a comunicação sensório-afetiva pela comunicação meramente informativa, com oito ho-ras frente a tela do computador e três ou quatro frente a do televisor doméstico. De tal modo que os sinais tendem a suplantar as pessoas e as coisas, como a flor de plástico à flor natural ou os peixes estampados na cortinas ao a-quário. O triunfo da cultura das interfaces, mediadoras que transportam até os cidadãos representações vicariais e experiências mediadas do mundo físico, supõem uma grave mutilação sensório-afetiva. E as estatísticas come-çam a detectar tais carências. segundo um estudo do Ins-tituto Nacional de Estatística francês, de 1983 a 1997 as conversações diretas dos cidadãos com seus comerciantes vizinhos decresceu 26 por cento; as conversas com ami-gos 17 por cento; com os colegas de trabalho 12 por cen-to e com outros membros da família 17 por cento. Mas este declive contrastou com um maior uso do telefone (El País, 14 abril de 1998).

AS ESTRATÉGIAS DO EROTISMO Já se disse que a sexualidade foi o invento, mais

divertido da espécie humana. E há que se acrescentar que é também um dos mais antigos. Mas as estratégias e táti-cas da sexualidade humana têm conhecido numerosos avatares ao longo da evolução. O hominídeo que nos pre-cedeu no processo evolutivo fazia a cópula montando a fêmea por trás, como fazem seus parentes mais próximos,

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os macacos. O coito frontal supôs importantes vantagens adaptativas, pois permitiu uma maior extensão do contato corporal, trouxe o estímulo emocional de contemplar o rosto da parceira durante o coito e permitiu o invento do beijo, outra inovação humana que teria um grande futuro e cuja origem filogenética faz remontar os etólogos ao prazer do bebê primitivo ao receber da língua materna sua comida pré-mastigada.

Na etapa do coito traseiro, as nádegas femininas – maiores e mais carnosas que as masculinas – constituíam o sinal erógeno para o macho, como ocorre com os sí-mios, em sua condição de sinalizadoras da meta fisioló-gica e central da vulva vermelha. Em algumas espécies de macacos, o traseira da fêmea enrubesce com intensi-dade na época do cio, para enviar um sinal funcional ao macho. Mas chegou um momento em que os hominídeos adquiriram a posição vertical. Segundo o antropólogo Owen Lovejoy o bipedismo foi consequência da necessi-dade da fêmea pré-humana de sustentar e levar mais fa-cilmente suas crias. Mas esta carga trouxe também uma dificuldade para procurar alimento, de maneira que o ma-cho paterno teve que cooperar para obter a alimentação necessária.

Mas a marcha vertical teve também o efeito erótico negativo de ocultar a vulva do olhar frontal e, segundo Desmond Morris, o desenvolvimento hemisférico dos seios femininos – os únicos proeminentes de todos os primatas – constituiu uma evolução automimética37 para criar os simulacros eróticos das nádegas na zona frontal do corpo, enquanto a abertura do umbigo atuava como eco visual da vagina. E Morris acrescenta que o costume

37 NT – capacidade evolutiva de auto-adaptação a uma reali-

dade ou ambiente social.

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feminino de pintar os lábios, presente em todas as cultu-ras, constitui uma evocação estimulante da abertura vagi-nal, enquanto que a pintura nas maçãs do rosto seria um eco das mencionadas calosidades traseiras de muitas fê-meas símias que se colorem vivamente para atrair o ma-cho, ainda que também se acrescente o efeito de irrigação sanguínea com que a mulher manifesta sua excitação se-xual que precede o orgasmo.

Ao longo da história, os artifícios da arte e da moda não ignoraram aquelas estimulações primitivas e, por e-xemplo, a moda da crinolina38 (o chamado cul de Paris) não fez mais do que exagerar desmesuradamente o tama-nho dos glúteos femininos, já que cobria a totalidade das pernas, como eco erótico-filogenético do incitador sexual do macho primitivo. Também as famosas ligas verticais para prender as meias femininas penduradas numa cinta-liga horizontal não faziam mais que enquadrar e sinalizar seus genitais para realçá-los com protagonismo visual, em concordância com as exigências eróticas decorrentes da posição vertical.

Os hominídeos instauraram a família monógama fazem uns cinco milhões de anos, a partir da divisão do trabalho, com o macho buscando comida e a fêmea cui-dando das crias. Isto explica que a musculatura toráxica e das extremidades do macho se desenvolveram mais, as-sim como sua capacidade cerebral para processar infor-mação visual, para enfrentar com elas as tarefas da casa e do transporte de presas com maior eficiência. Mas para que esta divisão tivesse êxito fazia falta que os machos tivessem garantias de que a comida que trazia alimentava suas próprias crias e não as de outros machos; e que as

38 NT – espécie de saia de balão, comum no final do século

XIX que fazia estufar o vestido na região dos glúteos.

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fêmeas tivessem a certeza de que os machos dedicavam seus esforços para alimentar suas crias e não de outras fêmeas. De maneira que a espécie humana, ao contrário dos macacos antropóides, desenvolveu a relação de casal estável para ativar um comportamento paterno cooperati-vo no macho que havia participado na procriação, em favor de uma cria de evolução muito lenta comparada com outros mamíferos por isso com uma infância muito prolongada e vulnerável.

Esta relação estável de casal teria que fornecer uma gratificação sexual permanente, que garantisse a fidelida-de e união e não associada somente à função procriadora nos distantes ciclos de fecundidade feminina, como ocor-re com os macacos. Esta necessidade modificaria a sexu-alidade feminina, que já não podia ser somente receptiva nas épocas do cio, como nos restantes primatas, senão que teria que caracterizar-se por sua receptividade conti-nuada. O aparelho sexual feminino adaptou-se a tal ne-cessidade e por isso seu clitóris tem uma enervação mais rica e densa que o pênis, para proporcionar-lhe uma mai-or gratificação sexual. E a nova relação entre os dois se-xos influiriam também em seus comportamentos e estra-tégias de sedução orientadas ao varão, para demonstrar-lhe sua permanente receptividade sexual.

Mas estas estratégias se inscreveram no marco de uma acentuada assimetria dos mecanismos reprodutivos em ambos os sexos. A mulher tem uma vida reprodutiva muito mais breve que o homem e isto faz que um óvulo seu seja muito mais valioso que o único espermatozóide que, competindo com milhões, tenha conseguido fecun-dá-lo. A mulher produz um óvulo uma vez ao mês e, ao ficar grávida, sua fertilidade fica cancelada por nove me-ses, uma fração substancial de sua vida reprodutiva en-quanto o pai pode fecundar a outras mulheres durante

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este período. Daí nasce a prática freqüente da poligamia em muitas sociedades ao longo da história e a percepção usual de que a poligamia é mais aceitável e biologica-mente funcional que a poliandria que se deu em algumas sociedades matriarcais.

É neste contexto biológico que temos de entender os mecanismos do acasalamento humano. Com efeito, o desejo sexual leva o indivíduo a buscar o parceiro; a atra-ção sexual individualizada faz eleger uma pessoa especí-fica e esforçar-se para conseguí-la. E o vínculo afetivo permite sua união duradoura, para garantir um bom fim da procriação, como antes explicamos. Mas na escolha do parceiro intervêm determinadas considerações, como a afinidade que une com interesses comuns e a distância que faz desejável ao indivíduo. Muitas fêmeas de prima-tas abandonam sua manada originária (em um movimen-to exógamo) mas para unir-se a um grupo vizinho, vale dizer, não muito distante geneticamente (tendência endó-gama). A natureza desenvolveu, como se pode ver, me-canismos de prevenção do incesto, para evitar os proble-mas derivados da consaguinidade. No ser humano os in-divíduos, ao acasalarem-se, desejam buscar um equilíbrio entre a segurança confortável da endogamia de grupo (por suas afinidades culturais e interesses comuns) e o atrativo exótico da exogamia.

Mas o aumento do número de divórcios na socie-dade ocidental sugere intensamente que o ser humano tende a sucessivas relações monógamas, justificadas pela necessidade de dar lugar a uma maior combinação gené-tica com parceiros e descendentes distintos. De maneira que os ditados populares do "tédio matrimonial" e da "crise do sétimo ano" teriam uma fundamentação bioló-gica na necessidade de novas combinações genéticas, de-pois de haver consolidado uma descendência.

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Mas nem todos os indivíduos procriam, como bem se sabe, e investigações lavadas a cabo nos Estados Uni-dos da América indicam que os sujeitos mais dotados intelectualmente procriam muito menos que os menos dotados. E este fenômeno se faz mais nítido entre os ne-gros que entre os brancos e entre as mulheres que entre os homens, evidenciando a potência do componente inte-lectual e previsor na administração da vida instintiva. Consciente deste problema, o governo chinês autorizou em 1999 – em uma iniciativa duvidosamente comunista – um banco de sêmen, doado por intelectuais, artistas e homens de negócios de sucesso (Science, 16 Jul 1999). Tampouco desejam procriar os homossexuais e as lésbi-cas, sendo em geral os primeiros propensos a relações rápidas, furtivas e desprovidas de afeto, ao contrário das segundas, que muitas vezes desejam mais afetividade e uma relação mais estável. No fim das contas, a significa-ção da sexualidade é muito diferente para eles e para elas.

O ritual não verbal do flerte do Homo sapiens é similar ao de muitos machos mamíferos, com uma fase inicial de auto-apresentação ostensiva e favorecedora pa-ra chamar a atenção de maneira positiva da pessoa pre-tendida. A ela contribuem eficazmente, em nossa cultura, as indústria de moda e a maquiagem, mas muito menos a dos perfumes, como logo se verá.

São também frequentes os gestos de submissão, comuns nos primatas, como as palmas das mãos para cima (sinal de submissão.com este gesto se reza no Islã e, em outro contexto, indica-se que não se portam ar-mas), ou a cabeça inclinada, como os animais que ofe-recem a jugular ao congênere dominante. Estudos em-píricos efetuados por antropólogos em bares e em fes-tas mundanas ocidentais revelam que as mulheres emi-tem maior número destes sinais e isto faz que não ne-

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cessariamente as mais atraentes sejam as que se ligam mais, pela maior eloquência da linguagem não verbal das menos atraentes, para neutralizar a competição es-tética.

A linguagem não verbal é determinante no esta-belecimento da aproximação erótica, pois é habitual que em nossa sociedade do anonimato tendam a mas-carar os sentimentos como estratégia de auto-proteção e para ocultar as próprias debilidades. Mas se a lingua-gem verbal serve para mentir, como observou Platão, ou para esconder os sentimentos, a linguagem gestual e corporal é sempre muito mais sincera, como demons-traram os experimentos filmados por Gregoty Bateson.

O olhar constitui um elemento importantíssimo para estabelecer relações interpessoais. Ao contrário dos outros primatas, o ser humano possui uma escleró-tica branca, particularidade talvez desenvolvida pela necessidade grupal de emitir sinais silenciosos durante a caça. O contraste entre a esclerótica branca e a íris colorida, reforçada pela função expressiva das pálpe-bras e das sobrancelhas, formam um conjunto de má-xima expressividade no interior do óvalo facial. Os be-bês de todas as culturas buscam o contato visual com suas mães e seus familiares e seu reconhecimento se traduz em um sorriso de prazer e, por sua vez, o sujeito observado tende a premiar o bebe que lhe olha com risos e gestos de celebração, de maneira que consoli-dam um verdadeiro diálogo de olhares, pois o branco da esclerótica permite identificar a direção do olhar dos sujeitos, uma informação fundamental na autode-fesa quanto na conquista sexual. Não é em vão que os olhos têm sido chamados de "janelas da alma" e a dila-

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tação das pupilas delata o interesse positivo que um estímulo suscita em uma pessoa.

Esta função essencial do olhar não passou desa-percebida dos burocratas censores de algumas socieda-des puritanas. Assim, em julho de 1995, a prefeitura de Minneápolis proibiu aos trabalhadores na construção civil que olhavam "de maneira insinuante", vale dizer, durante mais de nove segundos aos pedestres, sob pena de serem castigados com uma multa disciplinar ou despedidos por "assédio visual". Anteriormente uma aluna da Universidade de Toronto havia denunciado o professor Richard Hummal por "assédio visual", mas este conseguiu a ganhar a demanda judicial ainda que tivesse de abandonar sua função acadêmica (El Mun-do, 25 Jul 1995). Como se pode ver, na sociedade pós-industrial neopuritana as estratégias do namoro eróti-cas têm de lidar com frequência com as escaramuças dos guardiões do "politicamente correto".

A partir de todos os condicionamentos relatados, no encontro erótico o homem solicita, mas a mulher tem o poder de conceder ou recusar. Em contrapartida, se uma mulher deseja a um homem, este não poderá satisfazê-la se ela não ativa seu desejo e suas respostas fisiológicas. Do que se deduz que algo tão óbvio como que para exista um casal erótico deve se produzir ima cooperação ativa e eficaz entre seus dois membros. E as emoções gratificadoras repetidas, associadas a sua interação sexual, contribuem para consolidar sentimen-tos positivos de afeto entre ambos.

Na aproximação sexual entre todos os mamíferos desempenham os feromônios uma função essencial pois se dirigem ao sentido mais arcaico, ao bulbo olfa-tório (vale dizer, de um sistema de sinalização emocio-

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nal) mais antigo e universal no reino animal. Krafft-Ebing já relatara, em sua Psychopathia Sexualis (1894), o caso de um camponês alemão que seduzia as mulheres passando seu lenço molhado com seu suor axilar em seus narizes, durante a dança. Mas o uso de sabonetes, desodorantes, colônias e perfumes em nossa cultura moderna reprimiu drasticamente o sistema sinalizador dos odores corporais naturais, pelo que tiveram que atrofiar-se outros estímulos, especialmente os visuais. Já ao nos referirmos antes à função caçadora do macho primitivo assinalamos que seu sentido de visão foi o primado durante a evolução em comparação com o da fêmea, que potencializou biologicamente em troca de outras habilidades. E isto nos conduz ao tema da pornografia visual, como objeto destinado a uma sexualidade visual autárquica.

A pornografia se desenvolveu como negócio para estimular a sexualidade masculina e essa missão é per-feitamente funcional com a maior excitabilidade eróti-ca visual do homem em relação a mulher (geralmente mais sensível ao ritual, à verbalidade e à tactilidade), segundo uma diferença perfeitamente alicerçada nas funções biológicas descritas acima, já que o papel masculino de agente ativo na relação sexual primou sua sensibilidade teledetectora e de fixação a distância de seu objeto sexual, como fazem outros mamíferos machos mediante o olfato. Em nossa sociedade, que semi-atrofiou a função do olfato, a principal atividade teledetectora sexual se exerce mediante o sentido da visão nitidamente sensibilizada para a função erótica. Essa hipersensibilidade erótica fez do homem o desti-natário ideal dos estímulos pornográficos tão difundi-

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dos hoje pelas indústrias da imagem na cultura de mas-sas.

O OLHAR PORNOGRÁFICO

É sabido que os motivos estatisticamente mais

recorrentes na pintura ocidental têm sido a paisagem e o corpo humano, ou seja, a paisagem natural e a paisa-gem antropológica. Enquanto que a civilização indus-trial encarregou-se de demolir a iconografia paisagísti-ca, na era da mass média seguiu vivo e em pé o culto icônico da anatomia humana. E prova tal vitalidade, de modo paradoxal, o fato de que para algumas culturas puritanas o nu siga sendo ofensivo. Assim, a rejeição em julho de 1995, por parte da prefeitura de Jerusalém, de uma reprodução de Davi de Michelângelo que a prefeitura de Florença havia oferecido pela passagem do terceiro milênio da cidade, alegando que era um nu, não fazia mais do que ratificar sua contundente eficá-cia expressiva.

Na cultura de massas mercantilizada, o culto à anatomia humana tem contado com a vantagem adi-cional de exibicionismo para alguns e de voyeurismo para outros, que o nu não possuía, por exemplo, na cul-tura Greco-latina ou no Renascimento, apesar de que Tiziano fez que sua Vênus nua interpelasse com seu olhar o espectador (recurso copiado mais tarde por Goya com sua Majae por Manet com sua Olympia). No exibicionismo mercantilizado de nosso panorama midiático, os sujeitos públicos, e em particular os su-jeitos públicos investidos de prestígio erótico, constitu-em pontos focais de interesse coletivo, sejam atrizes, cantores ou gigolôs (e por isso a revista Interview pro-

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põe com tanta frequência a sessão "Desnudamos a...). Trata-se de um explicável deslocamento metonímico do espírito (as paixões do sujeito) para o corpo famoso que as executa ou as coloca em cena e, para ser mais preciso, até certas partes do corpo que desempenham um papel privilegiado nesta prática da paixão, criando uma hierarquia erótica das partes do todo. ou seja, en-tronizando a sinédoque pars pro toto como expressão suprema da cena amorosa. Assim se constata a curiosi-dade pública pelo comprimento do pênis de alguns fa-mosos, como o de Harry Balafonte, ou do diplomático e playboy dominicano Porfirio Rubirosa, ou do conde Alessandro Lequio. Porque todos os genitais parecem iguais ao observador pouco perspicaz, mas na realida-de são distintos e personalizados, como são todos os pés e todos os rostos humanos.

Por um enfoque diferente, Jacques Lacan nos mostrou há alguns anos sobre a pulsão escópica do homem, de modo que o voyeurismo constituiria um tropismo natural do olhar ante motivos sexuais, ativado pela energia libidinal que está na base da reprodução da espécie. Empregando a terminologia da gestalt, di-ria-se que o olhar humano é atraído, em tais casos, por um estímulo ótico de alta pregnância. Não obstante, a tradição psiquiátrica (puritana) classificou na linha das perversões o voyeurismo, que recebe nomes clínicos tão abundantes que parecem certificar sua extensa pre-sença na sociedade. O que negaria estatisticamente sua condição de perversão. Na literatura clínica, com efei-to, o voyeurismo chama-se mixoscopia, escopofilia, escoptofilia, escopolangia e gimnomania, designando-se com tais termos a prática de derivar a gratificação

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erótica do olhar depositado sobre um corpo nu ou uma cena erótica.

Dizíamos que esta suposta perversão está tão ge-neralizada que um estudo empírico de laboratório efe-tuado nos Estados Unidos sobre o comportamento da audiência televisiva com o controle remoto revelou que as imagens que mais chamam a atenção são os nus ero-tizados e as cenas de morte violenta. Do que se deve concluir que o voyeurismo é uma resposta biológica canônica e não uma perversão, a menos que substitua totalmente a interação sexual personalizada com outros sujeitos.

Se fazem alguns anos que Guy Debord qualifi-cou com pertinência a nossa sociedade como sociedade do espetáculo, a pulsão escópica coletiva faz que esta mesma sociedade possa completar-se ao mesmo tempo como uma sociedade voyeur, onde ela mesma, e em especial seus sujeitos públicos se oferecem como sujei-tos de desejo e objetos de espetáculo do olhar coletivo. Esta mesma lógica escópica é a que conduziria ao nas-cimento do que os cientistas políticos chama de Esta-do-espetáculo.

Se o voyeurismo é uma prática antiga já conde-nada no Gênesis, na passagem em que Noé amaldiçoa a estirpe de seu filho Caim porque este viu seus geni-tais enquanto dormia, na era midiática o voyeurismo se potencializou com os suportes da informação – foto-químicos, eletrônicos e digitais – que contêm reprodu-ções vicariais de corpos nus e de atividades sexuais. Esta explosão escopofílica massiva baseada na icono-mania, iconofilia,, iconolgnia e idolomania está na ba-se da expansão comercial e da prosperidade das indús-trias pornográficas das imagens, que se baseiam no pa-

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radoxo de que o que para alguns sujeitos ativos ante a lente da câmara é erotismo e exercício sexual de boa lei e não pornografia, para quem lhe olha é, ao contrá-rio, pornografia e desvio erótico. E este juízo desquali-ficador deriva de que estas apetitosas produções icôni-cas ou audiovisuais fizeram do objeto do desejo um mero fantasma, manchas coloridas sobre papel ou sombras móveis sobre uma tela, em substituição a cor-pos reais e, sobretudo, dos prazeres da tactilidade.

Com esta referência obrigatória para a mídia chega-se à analogia desses meios com pequenas jane-las através das quais o espectador espreita o mundo e suas figuras mais relevantes. Nesta função das mídias como Janelas sobre a paisagem social reaparece o vo-yeurismo coletivo, o voyeurismo próprio do peep-show39 em que se paga para ver através de um vidro, que inibe a tactilidade, a uma pessoa nua ou um casal fazendo sexo a um metro de distância, para satisfazer um desejo alheio.

O cinema, que é um espetáculo público de ima-gens fotográficas em movimento, baseia-se no voyeu-rismo congênito e essencial do público, em sua neces-sidade emocional profunda, que em séculos anteriores satisfazia o teatro, de espreitar ou espiar vidas alheias sem que os observados pareçam se dar conta de tal ob-servação alheia. Já no cinema mudo primitivo formali-zou-se um eloquente gênero a que se denomina preci-samente film-voyeur em que aparecia na tela a silhueta

39 NT – Atualmente nos Estados Unidos, os peep-shows con-

sistem em cabines em que belas garotas, sob a proteção de uma grossa mas transparente vidraça, tiram a roupa e executam peque-nos truques de acordo com o gosto do cliente.

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de uma fechadura em primeiro plano e atrás dela se via uma mulher que se despia, ainda que somente até o limite que a puritana censura do princípio do século XX permitia. Mas esse gênero tornou-se muito interes-sante porque interpelava os espectadores com a pro-posta de uma câmera com o ponto de vista subjetivo ou em primeira pessoa visual, convidando-a a olhar aquilo que, ao fim das contas, no final tampouco permitia-se ver. De mofo que o film-voyeur primitivo propunha, em definitivo, um excitante mas, em última análise, frustrante aperitivo erótico, interrompido quando maior era o desejo do espectador.

O cinema pornográfico nasceu na clandestinida-de dos bordéis, para excitar funcionalmente a sua cli-entela masculina. Sua designação popular tornou-se muitoi eloquente, pois em inglês estes filmes se cha-mavam smokers, numa época em que só os homens fumavam, e em francês cinema cochon, designação que admitia sem rodeios nem atenuantes sua condição de excitante das baixas paixões masculinas. Se nasci-mento nos prostíbulos obedecia a uma lógica econômi-ca implacável, pois tinha uma função promocional para o cliente, para que fosse ao local e, em segundo lugar, a função de excitar-lhe para que contratasse os serviços sexuais mercantis propostos pela casa. Mas, a margem dos bordéis, o gênero recebeu rápido a atenção das classes mais altas. Na Inglaterra vitoriana era de bom tom os homens elegantes consumir pornografia, escrita e visual, quando era escassa e cara, mas que perdeu valor e interesse quando o gênero se popularizou. Sa-bemos também que a aristocracia czarista era consu-midora de pornografia, como o era o rei Alfonso XIII da Espanha que se distraia com filmes que confeccio-

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nava para a empresa Royal Film de Barcelona. E ao ser derrubado o rei Faruk do Egito em 1952 encontrou-se em seu palácio uma vasta pornoteca com materiais provenientes de diversos países.

Quando o filme pornográfico florescia nos bor-déis era, a rigor, um gênero tolerado pelas autoridades, ainda que circunscrita aqueles locais. No filme norte-americano A festa de solteiro (The Bachelor Party), roda-do em 1957 por Delbert Mann numa época que o ci-nema pornô não podia circular publicamente nos Esta-dos Unidos se vê, ao contrário, alguns homens que, em uma despedida de solteiro, assistem um filme porno-gráfico. Ou melhor, se vê os espectadores e suas rea-ções mas não se vê o que é visto por eles, do que se certifica indiretamente que, em que pese sua proibição oficial, tem existência social ainda que seja uma exis-tência periférica ou marginal. Enquanto que naquele tempo na Cuba governada por Fulgêncio Batista o ci-nema pornô era exibido em salas públicas, às vezes reutilizando filmes comuns de Hollywood, a que se adicionavam inserções pornográficas anônimas quando Chegavam as cenas de amor.

A comoção social e moral libertária de 1968 tor-nou-se decisiva para iniciar a descriminalização da por-nografia em muitos países ocidentais, em um processo que se desenvolveu ao longo dos anos setenta, coincidin-do, por outro lado, com a segmentação do mercado audi-ovisual entre cinema e televisão, dividindo suas funções culturais, com o público cinematográfico mais reduzido, mais jovem, menos conservador e mais especializado e a televisão transformada em refúgio de um amplo público indiferenciado e interclassista, em cujo seio se albergava a conservadora "maioria silenciosa". Nesta nova situação,

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os focos de irradiação da pornografia descriminalizada foram, em 1969, San Francisco na Califórnia e os países escandinavos na Europa. E, paralelamente ao desarme censor oficial do cinema que para competir comercial-mente com a televisão com maior permissividade, fazia aparecer no mercado películas caracterizadas por sua ul-tra-violência – como Sob o domínio do medo (Straw Dogs, 1971) de Sam Peckinpah, ou Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) de Stanley Kubrick - , sob a classificação X começaram a difundir-se também, em circuitos especiais, filmes de pornografia extrema ou hard, como Garganta Profunda (Deep Throat) – fantasia sobre uma mulher que descobre que tinha o clitóris na garganta - , Atrás da porta verde (Behind the green door) e O Diabo na Carne de Miss Jones (The devil in miss Jo-nes), que obtiveram por sua novidade grande arrecada-ções chegando a bater nas bilheterias a grande títulos do cinema comercial de Hollywood.

Pensando bem, o cinema pornográfico radical nas-ceu de uma lógica rigorosa e implacável, gerada pelas frustrações implícitas do cinema de ficção tradicional. Nas películas tradicionais, quando a paixão acendia os instintos de um casal de namorados, a tela mostrava seus rostos unidos num cálido beijo e, na continuação, apare-cia um fundo preto que censurava a visão do ato que se sucedia logicamente aquele beijo apaixonado. Em outras ocasiões a frustração era maior, como se possível, pois a câmera se distanciava pudicamente dos amantes com um movimento panorâmico para enquadrar o fogo flamejante de uma lareira ou as ondas do mar contra a rocha como símbolos figurativos da paixão erótica. Pois bem, rebe-lando-se contra as censuras exemplificadas por essas o-missões e metáforas, o cinema pornográfico converteu-se em um gênero específico, especializado de modo mono-

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temático na exibição daquilo que acontece depois do bei-jo apaixonado e do fundo preto, ou em lugar do fogo fla-mejante ou das ondas do mar contra as rochas. Se Freud explicou que o tabu está na origem da metáfora, para de-signar o inominável de outro modo distinto, o cinema pornô nasceu como sublevação contra a censura metafó-rica. Neste sentido, supôs um ato de liberação contra uma forma de censura social.

Mas lamentavelmente esta origem enclausurou o gênero numa seletividade monotemática e redundante que não teria que produzir-se necessariamente. Mas a compartimentação do negócio de produção e distribuição cinematográfica, as regras do mercado e as habilidades especializadas dos atores e atrizes contribuíram para en-cerrá-lo em um gueto sócio-cultural. Contudo, não custa muito imaginar um filme atual em que, juntamente a ou-tras incidências argumentais diversas, os encontros dos amantes se representam com plenitude e em detalhes, de modo que não se produza o atual divórcio cinematográfi-co entre vida e sexo. Na atualidade, tão somente muito excepcionalmente, encontramos filmes que repudiam es-sa divisão como ocorre em O diabo no corpo (Il dovolo in corpo, 1986), de Marco Bellocchio, onde se encena uma felação não fingida que pratica Marushka Detmers em Federico Pitzalis. O caso do Império dos senti-dos(1976), de Nagisa Ishima, é bastante distinto, porque neste filme tão atípico e castigado por diferentes censu-ras, o eixo do relato é uma atividade erótica obsessiva e, com a exceção do ritual sadomasoquista do final, que conclui com a morte e mutilação do amante, os atos se-xuais não são fingidos. E ainda que recentemente a exce-ção realista tenha voltado a ser produzida com o filme francês Romance (1999), de Catherine Breillat, esta a-málgama veraz está longe de ser comum. Mas no cinema

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pornô convencional e rotineiro, o divórcio entre sexo e vida se produz, ao contrário, porque se retém somente o sexo e se exclui a vida, diferente do que ocorre no cinema comercial padrão. Esta é a servidão criada por sua seleti-vidade monotemática e excludente.

Esta seletividade ou especialização monotemática do cinema pornô faz que seja, a rigor, mais que um gêne-ro narrativo, um gênero descritivo em que os adereços narrativos são secundários ou irrelevantes. E é um gênero descritivo porque o cinema pornô é, antes e sobretudo, um documentário fisiológico e atrai sai clientela precisa-mente por esta condição. O cine pornô é, com efeito, um documento sobre a ereção, a felação, o cunnilingus, o coito vaginal, o coito anal e o orgasmo. E o público paga sua entrada não para contemplar seus levianos pretextos narrativos (o leiteiro chamando a porta da casa da senho-ra), senão por deleitar-se com o documentário fisiológico, que constitui a essência e a razão de ser do gênero. Tão documentário é que não podemos imaginar um diretor deste gênero pedindo ao ator que volte a ejacular outra vez porque sua anterior ejaculação possa não ter sido sa-tisfatória. E tanto é a consciência entre seus profissionais de que se trata de um documentário fisiológico que em seu jargão denomina-se o primeiro plano dos genitais em ação de medical shot, ou seja, plano médico. E as breves cenas de ficção do cinema pornô não constituem mais que irrelevantes cenas de transição, subsidiárias na rela-ção com o conjunto. De fato, a desqualificação estética mais contundente do gênero pornô baseia-se em por em relevo sua flagrante contradição entre seu hiper-realismo fisiológico e sua atroz falsidade psicológica e social, com personagens que são meros bonecos de carne.

A exibição do orgasmo masculino constitui assim a imprescindível autenticação documental da ação (e de

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seu prazer) pelo que é este um momento culminante des-tes documentários fisiológicos. E como a ejaculação tem que ser visível para o espectador, que se efetuar fora de seus orifícios naturais, em uma variada gama de soluções. ejacular sobre o rosto da atriz, por exemplo, supõe um ato de domínio do varão, etc.

O orgasmo feminino, ao contrário, pode ser fingi-do, expressado por uma convulsão do corpo, do rosto e da voz, com um deslocamento facial que ninguém ex-pressou melhor que Bernini40 ao esculpir o êxtase místico de Santa Tereza. E quando se afirma que o gênero supõe uma exploração iníqua da mulher deve-se recordar que, pelo menos em um aspecto, a atriz torna-se mais favore-cida que os homens, que não podem fingir seu orgasmo, como ela. Trago aqui uma observação da atriz Sharon, que se torna muito eloquente."É muito estranho", decla-rou Sharon, "não me dei conta de tudo que implicava um orgasmo até que tive um em uma rodagem. Eu raramente tenho orgasmos quando rodo...E disse-me. Ufa! Este foi forte. E me senti envergonhada, como vulnerável...Então pensei. Olha, estes caras têm que faze-lo todo tempo" (The film maker's guide to pornography, de Steven Zi-plow)

Acabamos de mencionar a expressão deslocada do rosto durante o orgasmo e devemos acrescentar agora que o rosto constitui a superfície mais reveladora das emo-ções, a mais expressiva, a mais desprotegida emocional-mente do ser humano. E, se examinarmos com atenção, observa-se que a focalização visual predominante da câ-mara dos filmes pornográficos orienta-se reiteradamente

40 NT - Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) escultor italiano

cujas obras eram altamente revolucionárias pelo movimento, os valores tácteis e a expressão dos rostos.

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para dois centros de interesse protagonistas. até os rostos e aos genitais, relacionados com o vínculo causa-efeito, posto que estes agentes físicos – os genitais em ação – são a causa das expressivas respostas emocionais dos ros-tos, como os dois polos de um a mesma cadeia, o físico e o emocional. Daí, também, a plenitude erótica das cenas de falação, que permitem reunir em um primeiro plano o membro viril em ereção e o rosto da atriz, em uma intera-ção muito íntima e ativa. E, como já tínhamos apontado, ejacular sobre o rosto constitui um gesto de possessão ou de domínio sobre a mulher, marcando seu território facial com um sinal de senhorio. Como o é ejacular em sua bo-ca, o que supõe uma aceitação quase incondicional do parceiro por parte da mulher.

Esta última observação obriga recordar que o pú-blico predominante da produção pornô é masculino e su-as fantasias se concebem e desenham para satisfazer o imaginário sexual masculino. Também os casais heteros-sexuais consomem cinema pornô e a revolução videográ-fica do final do século interrompeu radicalmente este mercado nos vinte últimos anos. As feministas têm esta-do tradicionalmente contra este gênero. Mas, no início dos anos oitenta, inquietas por sua involuntária conver-gência moral neste tema com a direita conservadora e anti-abortista, algumas feministas norte-americanas re-pensaram a fundo o assunto da pornografia, como fez Ellen Willis em seu esclarecedor artigo "Sexual Politcs" (1982) , que prenunciou o importante livro de Linda Wil-liams, Hard Core. Power, pleasure and the frenzy of the visible (1989).

É certo que o hard pornô tem sido desqualificado por seus conteúdos monotemáticos e redundantes (como muitos westerns), por seu esquematismo psicológico (como muitos filmes de aventuras) e por sua pobre quali-

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dade formal. Tem se insistido, para seu descrédito estéti-co, no brutal contraste que oferecem seu cru hiper-realismo fisiológico e seu irreal esquematismo psicológi-co e social, que faz que os personagens sejam puras abs-trações sem personalidade (o negro, a ruiva, o garanhão, a adolescente, a colegial, o impotente, o cachorro, etc, enteléquias41 de divulgação publicitária de seus títulos. Também se tem afirmado que este cinema, ao contrário de outros gêneros, é muito diretamente utilitário (apara satisfazer uma necessidade fisiológica) e se chegou a ob-servar que a duração dos curtas-metragens e a extensão das revistas ilustradas do gênero é funcional para a dura-ção normal de um ato masturbatório. Mas esse utilitaris-mo não é necessariamente negativo e se tem defendido também o cinema pornô como um cinema pedagógico para a educação sexual, para a aprendizagem de técnicas e de posições e para a liberações de inibições e rotinas. E os mais favoráveis chegam a elogiar os valores coreográ-ficos e rítmicos dos corpos neste gênero.

Atualmente a posição cultural ante o pornô está menos apaixonada e mais eclética, sobretudo desde que se tornou óbvio que existe uma pornografia de má quali-dade ( a majoritária) e outra de boa qualidade, como o-corre em todos os gêneros audiovisuais. Por outro lado, pode-se descobrir em breve que o cinema pornô foi mais sádico, perverso e degradante quando foi clandestino e que sua descriminalização contribuiu para depurá-lo; ain-da que do pornô atual tenha se derivado, cruel e clandes-tino, o snuff cinema.

41 NT - Na filosofia de Aristóteles, qualquer realidade que a-

tingiu seu ponto de perfeição. Para ele, a enteléquia opunha-se à potência, como o que é realizado se opõe ao que é virtual.

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As relações do feminismo militante com o cinema pornô têm sido mais complexas e tempestuosas, como já indicamos antes. Sustentou-se durante décadas que o e-quivalente funcional da pornografia para a mulher era a novela de amor, assistido pelo público feminino durante anos como protesto fantasmático contra a rotina da vida cotidiana no casal monógamo, em um mundo emocio-nalmente pobre. Inclusive falou-se nos anos oitenta da "revolução romântica" trazida pelas telenovelas, as revis-tas femininas e as novelas de amor (A Editorial Harle-quin vende nos Estados Unidos 200 milhões de exempla-res por ano), como contrapeso da "revolução pornigráfi-ca" nos meios audiovisuais. Mas na mesma década co-meçaram a aparecer nos Estados Unidos empresas produ-toras de pornô dirigidas por mulheres e com películas escritas e realizadas por elas (como a companhia Femme Productions), dando um revés na questão. Observou-se que estes filmes têm mais "argumento" e mais "psicolo-gia" que as produções masculinas feitas e pensadas por e para homens, o que constitui um dado revelador, na me-dida em que confirmam que o sexo não está tanto entre as pernas como dentro da cabeça. O antes citado filme Ro-mance, de Catherine Breillat confirma esta tendência psi-cologista. Por outro lado, o vídeo doméstico impactou o mercado incluindo em seu público casais heterossexuais e mulheres solitárias e a internet colocou a pornografia em praça pública. 68% do comércio eletrônico atual é de conteúdo pornográfico. A questão reside, portanto, nas diferentes estratégias utilizáveis para estimular eficaz-mente a libido masculina e feminina, pois o imaginário erótico não tem fronteiras.

Mas enquanto a pornografia genital se oficializava nos mercados públicos, a pornografia da crueldade alcan-çava também novos patamares. Freud estudou o sadoma-

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soquismo como um "prazer associado ao desprazer" e é raro o espectador de noticiários e de telenotícias que não tenha sentido alguma vez a satisfação hipnótica de algum espetáculo cruel. O sadismo expectador tem sido cultiva-do desde muitos anos pela indústria do cinema com os filmes de terror e até o famoso olho cortado de Um cão andaluz (1929) (Luis Buñuel) responsável por tantos desmaios, pode ter sua origem no olho saltado de uma mulher durante a carga da polícia czarista nas escadarias de Odessa do Encouraçado "Potemkin" (1925), de Ei-senstein, que fascinou aos surrealistas. Depois de muitos anos de sustos de guarda-roupas, quem primeiro propôs com lucidez autorreflexiva o tema do prazer voyeur da morte foi o cineasta britânico Michael Powell em sua pe-lícula O fotógrafo do pânico (Peeping Tom, a960), onde um jovem cineasta filma os rostos de seus modelos-vítimas femininas no momento de assassiná-las com uma espada acoplada a sua câmara. Mas essa nova fase de es-petacularização sádica nas telas se assentava numa longa tradição que em nossa cultura principia nos gladiadores e mártires imolados no Coliseu Romano e chega até as e-xecuções públicas de nossa era, passando pelos lutas de boxe e as rinhas de galos, que proporcionavam as massas o que Shakespeare definira como violent delights.

Alguns cineastas sentiram-se atraídos pela morte real. Não a morte fingida dos estúdios de cinema. Assim, o francês Lucien Hayer rodou em 1930, escondido nos lavabos de uma prisão, uma dupla execução. Mas as guerras proporcionariam seu grande canteiro macabro, cujas imagens as censuras nacionais impediriam, com frequência, de chegar ao público, para não desmoralizá-la ou invocando o argumento do bom gosto. Ainda em data recente a censura japonesa fez cortar os planos de docu-mentários das execuções japonesas na Manchúria em

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1931, utilizados por Bernardo Bertolucci em O último Imperador (1987). Mas a execução intencional da morte frente a câmara para fazer dela um espetáculo comercial foi obra do chamada snuff cinema, um gênero cujas pri-meiras notícias surgem em 1977.

Como grande paradoxo, o snuff cinema imortalizou a morte ao reter sua imagem sobre um suporte duradouro, permitindo renovar o prazer de sua contemplação. Sua emergência ocorreu paralelamente com as mortes reais que nos apresentam com tanta frequência nos telejornais na nossa casa (guerras, atentados, catástrofes e suicídios frente as câmaras, convertendo-se em um novo estilo narcisista-televisivo). Ao chegar a esse ponto é pertinente que se coloque, a vista de obras artísticas tão elogiadas como o Laocoonte42 ou a foto de um miliciano espanhol alcançado por um disparo que nos ofereceu Robert Capa, a pergunta se existe uma estética da morte violenta. Da escultura citada pode se dizer que é uma obra de ficção e que, por conseguinte, não representa uma morte aconte-cida realmente. Mas a segunda é uma fotografia docu-mentário, um testemunho de uma morte autêntica, embo-ra ninguém possa negar sua beleza trágica43. As investi-gações sobre audiências potenciais do snuff cinema reve-lam, com efeito, que o momento mais excitante da morte

42 NT – Laocoonte é uma escultura em mármore, também co-

nhecida como Laocoonte e seus filhos, hoje em dia exposta no Museu do Vaticano, em Roma. A estátua representa Laocoonte e seus dois filhos, Antiphantes e Thymbraeus, sendo estrangulados por duas serpentes marinhas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Laocoonte)

43 NT – É de se notar a polêmica levantada por José Manuel Susperregui, um professor de comunicação da Universidade do País Basco, concluindo que a foto de Capa não seja autêntica por ter sido tirada em Cerro Muriano, logo ao norte de Córdoba, mas perto de outra cidade, distante cerca de 60 quilômetros dali.

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para seus espectadores reside no espasmo corporal, na câimbra somática, no estertor físico que desorganiza a resistência muscular e se converte em metáfora letal do orgasmo.

Ao examinar O fotógrafo do pânico observa-se de novo que o rosto humano é a parte mais desprotegida do corpo e por isso a mais suscetível de converter-se em uma superfície obscena, já que desvela suas mais íntimas vivências, sejam de dor ou prazer. ninguém gosta que se olhe no rosto quando se chora, mas tampouco quando se tez um orgasmo como recordou a atriz Sharon a algum tempo. A obscenidade suprema não está nos genitais, como quer a tradição puritana, senão no rosto, em sua condição de sede expressiva das emoções mais íntimas, traindo a vontade do sujeito.

Suporta o fato quando dissemos que nas películas clandestinas do snuff dinema, no momento do assassina-to, a câmara não enquadra tanto a arma branca que pene-tra o corpo da vítima, em uma singular metáfora sexual, senão a seu rosto descomposto pela dor. trata-se, na rea-lidade, de uma caricatura sarcástica da expressão do or-gasmo. Três filmas modelo, como Hardcore - No Sub-mundo do Sexo (Hardcore, 1978) de Paul Schrader e Morte ao vivo (Tesis, 1996) de Alejandro Amanábar, que abordaram em contextos distintos o t6ema do snuff cine-ma, demonstraram como a opção do cineasta no momen-to da morte dirige-se até o rosto da vítima, sede suprema da expressão das emoções incontroladas. Daí sua tremen-da potencialidade obscena, que teve primeiro sua mani-festação institucional no cinema pornô (no deslocado ins-tante do orgasmo) e de alguns anos no snuff cinema, con-vergência última do cine de terror (que goza de tanta po-pularidade social) e o cine pornô, do que constitui sua fronteira final, já insuperável.

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Ás vezes e tem a falsa impressão de que a cultura do snuff é uma questão de delinqüência comum, de per-versão clandestina e de repressão policial. Nada mais fal-so. Desde abril de 1992, com a execução de Robert Alton Harris, na Califórnia, transmitida ao vivo pela televisão, a cultura do snuff entrou no âmbito dos costumes públicos e respeitáveis. Dir-se-á que uma execução é uma morte legal, sancionada pelos tribunais de justiça. Mas a curio-sidade e o prazer mórbido da audiência televisiva pouco tem a ver com essas justificativas formais e a fruição e vivência de seus espectadores ao contemplá-la eram pou-co distintas das que sentiam os espectadores do Coliseu Romano. Desde esta data crucial na história da comuni-cação de massas, as sucessivas propostas de transmitir execuções ao vivo pela televisão abriram polêmicas na imprensa, com a importante intervenção de juristas, pe-dagogos, psicólogos e moralistas. Mas não há que se en-ganar. Não se tratam mais que de astutas estratégias da indústria e do negócio televisivo para sondar os limites da permissividade social em cada momento e aumentar assim a audiência e seus benefícios, burilando os instin-tos mais inconfessáveis do público.

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VII OS PARAÍSOS ICÔNICOS

EPIFANIA DA IMAGEM DIGITAL

á há alguns anos os comunicadores e até ao pró-prios fotógrafos falam muito da post-fotografia. Tal como a inventaram Niépce e Daguerre44 e a aperfeiçoaram Fox Talbot e outros pioneiros na primeira metade do século XIX, a imagem foto-

química obtida pela câmera era uma imagem "indicial", ou seja, era um indício ou sinal luminoso do que se havia situado ante sua objetica no momento do disparo (como marca do pé na areia molhada, gostam de explicar os se-miólogos). Neste sentido, a fotografia era um instrumento de autentificação documental pois constituía um certifi-cado químico de uma existência passada, que havia tido lugar num momento dado frente a câmera e impressiona-do a emulsão fotoquímica. Por isso a fotografia é utiliza-da como instrumento identificador pelos etnólogos, an-tropólogos, jornalistas, policiais, fiscais e juízes de com-petições esportivas. E por isso existem fotos indiscretas, enquanto que não existem desenhos ou pinturas que pos-sam ser qualificadas propriamente como indiscretas.

Mas a emergência da imagem digital alterou as tecnoligias de produção icônica pois suas formas nascem de uma automatização informática dos velhos procedi-mentos analíticos e estruturais de produção figurativa próprios dos artesanatos de mosaicos, da tapeçaria, da

44 NT – Físicos franceses que foram pioneiros no processo

químico da fotografia, aperfeiçoada por Talbot. Ver mais em http://blogs.band.com.br/portrasdaobjetiva/2011/04/05/494/ acesso em 11/11/11, as 11h 11min)

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Os paraísos icônicos

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pintura reticulada e da pintura pontilhista45 de Seurat. A imagem digital está formada, com efeito, por um mosaico de pixels (acrônimo de picture elements), pontos lumino-sos definidos para cada um deles por valores numéricos que indicam sua posição no espaço de coordenadas, sua cor e seu brilho. O operador pode manipular cada um dos pixels individualmente ou em grupos, para construir sua imagem a vontade. Por isso o pixel constitui uma unidade de informação e não uma unidade de significação, mas um grupo orgânico de pixels pode configurar uma unida-de semiótica, se investidos de valor semântico.

Por conseguinte, se a fotografia é um meio ótico, a imagem digital é um produto anóptico. Isso significa que, ao contrário do fotógrafo tradicional, que atuava inibido pelo determinismo ótico de sua câmera, o artista infográ-fico pode construir sua imagem hiper-realista com toda liberdade, liberado da tirania dos raios solares, projetando e escolhendo como um demiurgo as características de suas figuras. Deste modo a fantasia ilimitada do pintor converge com a eficaz performance da máquina, para automatiza seu imaginário e apresentá-lo sobre um supor-te (tela de papel) com as características de veracidade que são próprias da imagem fotoquímica. De tal modo que sua imagem anóptica pode aparecer disfarçada de ima-gem ótica e indicial, ocultando ao observador sua origem construída arbitrariamente. Vale dizer, pode converter-se em imagem mentirosa, como podemos ver em detalhe.

A imagem infográfica realiza, no mundo laico, algo parecido ao argumento teológico de Santo Anselmo para provar a existência de Deus, a saber, que aquilo que é

45 NT - Técnica de pintura, saída do movimento impressionis-

ta, em que pequenas manchas ou pontos de cor provocam, pela justaposição, uma mistura ótica nos olhos do observador (ima-gem). Ver mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pontilhismo

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imaginável adquire a condição de existente. Embora não se deva confundir a imagem, que é mera forma visual, com seu referente no mundo real, como faz com frequên-cia magia negra. Poderão existir imagens de sereias ou de centauros, mas não centauros e sereias na realidade, e por isso os operadores de informática distinguem claramente as simulações (do mundo real) das quimeras. E na prática dos desenhistas industriais, a imagem é utilizada para construir um dado material a partir dela, invertendo com isso o processo que se baseia a prática da pintura natura-lista e da fotografia, que formam suas imagens a partir de referenciais reais.

Mas, como dizíamos, a imagem digital não consti-tui uma duplicação clônica do mundo real, senão uma forma visual plana e sujeita à carências perceptivas. É importante insistir nesse ponto, porque os artistas info-gráficos e os desenhistas geralmente falam de imagens digitais em 3-D – se os objetos representados podem se ver girando ou de diferentes pontos de vista – quando deveria precisar-se em tais casos, para ser exatos, que se trata de simulações visuais em 3-D projetadas em 2-D. E suas imagens são na atualidade pouco sensuais, com suas cores planas e frias, o que as colocava às vezes mais per-to do conceitual do que o perceptual.

Por outro lado, a produção digital permite interagir com a imagem em tempo real, como faz o pintor com seus pincéis e de um modo que se torna impossível na produção da imagem fotoquímica. Na realidade, a labili-dade da imagem digital é mais fluída e exuberante que a que pode alcançar o pintor aplicando camadas de pintura ou raspando sua tela, pois pode adquirir a condição de imagem dinâmica ou animada e resultar tão fluída como as imagens mentais de seu operador, conseguindo a dia-morfose (passagem de uma forma a outra) sem grande dificuldade. Uma modalidade especial chamativa desta

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metamorfose proporciona o morphing (videomorfização), como as impressionantes formas liquefeitas que assumia o personagem antagonista do filme Exterminador do Fu-turo II (Terminator II-1991), de James Cameron. Isso é possível porque a descontinuidade formal dos pixels ga-rante, paradoxalmente, a continuidade evolutiva das for-mas.

Como era inevitável, a invasão avassaladora da i-magem digital nas indústrias da comunicação contempo-râneas gerou uma nova videocultura e contribui para re-modelar drasticamente a iconosfera tradicional. Um dos setores mais beneficiados por esta epifania tem sido o dos vídeo jogos digitais, que deslumbraram uma clientela a que se denomina "geração Nintendo", do nome da multi-nacional japonesa que lidera o setor. Não por coincidên-cia esta revolução lúdica originou-se da indústria de in-formática japonesa, fecundada pela cultura icônica dos manga, que se assenta na realidade sobre quatro pés. so-bre os quadrinhos em papel, sobre os desenhos animados televisivos ou em vídeo, sobre os videogames e sobre os jogos de RPG. Na realidade, manga é o nome genérico que recebem tradicionalmente os quadrinhos japoneses, que constituíram a matriz a partir da qual irradiaram suas derivações cinematográficas e informáticas. Esta estrutu-ra permitiu uma enérgica sinergia entre as diferentes mo-dalidades midiáticas que se retroalimentam entre si, em-bora a espiral da competição tenha elevado rapidamente os limites permissivos de sua violência exibida, as vezes com componentes racistas ou sexistas, como o controver-tido Mortal Kombat. Ainda que, junto a eles, é de justiça recordar que também começaram a aparecer vídeojogos "de autor" e de maior ambição cultural, como Pilgrim, de 1997, com direção de Paulo Coelho desenhos de Moebius (Jean Giroud), que propõe uma história iniciática ambien-tada no caminho de Santiago. Nos Estados Unidos os vi-

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deojogos arrecadaram em 1999 a cifra de 6,3 bilhões de dólares, muito perto da quantia de 6,95 bilhões que arre-cadaram os filmes de Hollywood em 1998.

A indústria cinematográfica, por sua parte, assimi-lou prontamente a nova técnica digital para criar dramáti-cos efeitos visuais (anteriormente chamados de "efeitos especiais"), que não tardaram em converter-se nas verda-deiras estrelas de algumas películas, eclipsando com sua contundente eficácia aos atores humanos. Tal ocorreu, por exemplo, em 2001. Uma odisséia no espaço, de Ku-brick, produção muito cara mas sem estrelas e carne e osso, cujo personagem mais lembrado é, inevitavelmente, o supercomputador HAL-9000 e suas cenas mais impac-tantes dos planos gerais do cosmos. Esta tendência cul-minou com A guerra nas estrelas, de George Lucas, em 1977, com os efeitos digitais produzidos por sua empresa Industrial Light and Magic, ainda que seus personagens mais celebrados popularmente fossem os robôs humanói-des RD2 e C-3PO, a cujos atores jamais se viu o rosto. Naquele tempo, as películas de ação espetacular tinham uma média de quarenta planos com efeitos digitais. Quinze anos depois esta média havia subido para duzen-tos planos.

Nesta escalada, Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), de Steven Spielberg, desempenhou um pa-pel estelar, e não só por seu impacto no mercado. Neste filme, a trabalhosa produção artificial dos dinossauros a partir de seu DNA fossilizado resultou numa pertinente metáfora da complicada produção e integração digital de suas imagens na ação fotografada, com um custo de 25 milhões de dólares, um terço da estimativa inicial. De maneira que o prodígio biológico representado aludia de forma autorreflexiva ao prodígio de informática realiza-do nos estúdios. Dois anos mais tarde apareceu Toy Story, produção de Walt Disney que fora pioneira nos

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longa metragens de animação realizados integralmente por computador, fruto do trabalho de seu departamento Imaginering Lab. E em 1999, A ameaça fantasma, início da saga A guerra nas estrelas, utilizou 1500 efeitos digi-tais, estabelecendo um recorde na indústria do cinema, pois 95% de seu conteúdo teve tratamento digital. Ainda que seja oportuno recordar que, no mundo do espetáculo, quando tudo é possível, já nada assombra.

Os trabalhosos efeitos digitais que estão tão na moda hoje no cinema espetacular não fazem mais do que prolongar desejos do melodrama cênico do século XIX pelo efeito alarmista dos desastres naturais, desde as tor-mentas aos incêndios que levavam a cabo os maquinistas com meios mecânicos e óticos artesanais. Naquela época um relâmpago ou um trovão no cenário enchiam de as-sombro aos espectadores e se patentearam aparelhos para conseguir com maior eficácia. Mas os efeitos atuais são mais sofisticados e muitíssimo mais caros, tanto que nem sempre saem em conta em um campo que todavia tem muito de experimental. Assim, Digital Domain, empresa fundada em 1993 e responsável pelos efeitos visuais de Entrevista com um vampiro (Enterview with a Vampire, 1994), e O quinto elemento (The fifth element, 1997), perdeu quatro milhões de dólares com a produção dos efeitos visuais do premiado Titanic (1998). Isso se deveu a que seu custo havia sido estimado em 40 milhões de dólares, mas as complicações de rodagem e os imprevis-tos fizeram se elevar esta cifra. Entre os percalços figu-rou, na rodagem no calor mexicano, a necessidade de a-crescentar digitalmente o vapor nas bocas dos persona-gens que simulavam estar no gelado Atlântico setentrio-nal.

Mas a informática criou um novo "entorno" comer-cial que acompanha o lançamento das películas como parte de seu merchandising. A estréia de Ameaça fantas-

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ma esteve acompanhada, por exemplo, da colocação a venda de bonecos falantes com o aspecto de personagens do filme, de modo que os novos Darth Vader, Obi-Van Kenobi e outros podiam falar entre si e repetir diálogos do filme graças a seus chips. Era como se as imagens do filme tivessem se tornado corpóreas e penetrado no espa-ço cotidiano de seus espectadores, em uma nova versão do jogo de simulação.

Um passo adiante da simulação digital e com obje-tivos menos inocentes, conduz a manipulação ideológica. Em junho de 1994 as capas dos semanários norte-americanos rivais Time e Newsweek reproduziram a mesma fotografia policial do controvertido O. J. Simp-son. Mas a do Time fora retocada em computador e apa-recia com uma pele mais escura do que era na realidade, com a barba cerrada e com perfil difuso, somente com as maçãs do rosto e a frente iluminadas, como "se fosse um animal", nas palavras de Benjamin Chavis, diretor da NAACP (Associação Americana para o Progresso das Pessoas de Cor). Os diretores do Times defenderam seu direito a "dramatizar" a fotografia, por razões de espeta-cularidade informativa, mas o certo é que sua manipula-ção digital tinha um fundo racista e tendia a fins comerci-ais, falsificando uma imagem documental.

Este caso constituiu um polêmico assunto com im-plicações claramente políticas, mas em outros casos a manipulação digital tem obedecido a finalidades estrita-mente comerciais. Em fevereiro de 1997 a televisão nor-te-americana difundiu uma publicidade que mostrava Fred Astaire dançando com um aspirador. As imagens do ator vinham de dois filmes seus - Easter Parade (1948) e Royal Wedding (1951) - e a imagem do aspirador em suas mãos foi colocada por obra de uma manipulação digital. Esta montagem foi autorizada por sua viúva (por razões financeiras) mas repudiada por sua filha, em nome da

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integridade artística e do respeito a imagem de seu pai. Resultou numa controvérsia interessante, que demonstrou que duas imagens originalmente autênticas podiam com-binar-se para criar uma situação falsa, que nunca havia ocorrido, mas que se apresentava perante o público com os atributos veridicionais da autenticidade.

Com este exemplo põe-se em evidência a capaci-dade da imagem digital para mentir com toda a desenvol-tura e poder de convicção. Neste ponto se coloca um pro-blema moral e se faz pertinente recordar o famoso falsifi-cador de quadros Elmyr d'Hory que costumava dizer que quando os experts e o mercado tratavam a um falso Pi-casso ou a um falso Matisse como se fossem autênticos, de fato eram autênticos. A imagem digital veio corrobo-rar esta assertiva e se levantaram vozes de alarme sobre a possibilidade de fabricar imagens que apresentem um a pessoa respeitável cometendo um ato impróprio ou um crime para prejudicar sua reputação ou para aproveitar-se do mesmo. Abre-se assim um novo campo prometedor para as extorsões frente aos novos delinquentes digitais.

Um novo, controvertido e não menos chamativo exemplo de manipulação digital de imagens se produziu em janeiro de 1999 na Inglaterra quando um publicitário cubano, a serviço da igreja Anglicana utilizou a técnica digital para converter o rosto de Che Guevara no de Jesus Cristo, eliminando sua boina característica e colocando em seu lugar a coroa de espinhos. Este Chesucristo - co-mo se chamou - que pretendia atrair aos jovens com um de seus ícones populares mais carismáticos, resultou pre-visivelmente polêmico e se levantaram vozes que denun-ciaram a intenção de apresentar Cristo como um pregador do comunismo. Mas o reverendo Peter Owen-Jones es-clareceu. "O que estamos tratando de fazer não é dizer que Jesus Cristo foi um comunista. Estamos explorando a idéia de uma revolução, não a imagem de Che Guevara".

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Mas esta explicação não dissipou as vozes hostis, que viram neste iniciativa um caminho publicitário perigoso, que permitiria um dia apresentar Marilyn Monroe como a Virgem Maria.

DESEJOS DIGITAIS Os exemplos citados protagonizados por Fred As-

taire e por Che Guevara demonstram, se ainda ficaram dúvidas, que a magia digital é capaz de ressuscitar aos mortos com grande eficácia. Não só sua imagem como também sua voz. Desde maio de 1999, a voz digitalizada de Marilyn Monroe acompanha aos usuários do metrô londrino, para oferecer-lhes suas informações com sua cálida dicção. A gravação foi possível graças a um sinte-tizador digital que reproduziu, com sotaque britânico, o sensual timbre da atriz. A companhia metropolitana efe-tuou uma pesquisa e todos os passageiros questionados responderam que preferiam sua voz a de um empregado comum na hora de receber amáveis instruções pelos auto-falantes.

Naquela época se supôs também que a empresa ca-lifornianaVirtual Celebrity, fundada em 1998, havia cria-do "clones digitais", réplicas audiovisuais e tridimensio-nais de intérpretes famosos (de Marlene Dietrich, James Cagney, Vincent Price, Bob Hope, W.C. Fields, Grouxo Marx) para uso comercial em publicidade, cinema, inter-net, etc. A operação se iniciava comprando seus direitos de imagem dos herdeiros e logo digitalizando sua ima-gem e sua voz, a partir de seus filmes. Criava-se assim um banco de memória do personagem, um depósito de suas formas audiovisuais, dispostas para a ressurreição, como no mito romântico da múmia. É óbvio que a ressur-reição de estrelas falecidas para renovar o desejo das massas supõe uma operação claramente necrófila, de cul-

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to erótico aos mortos e sem possibilidade de satisfação do encontro pessoal. Constitui, de fato, um caso de icono-mania necrômana.

No caso de atores idosos e já aposentados ou em vias de, esta opção se transforma para eles uma dupla satisfação, uma do tipo narcisista o outra financeira. A primeira por sua possibilidade de reviver como "ciberes-trela" sua imagem da juventude, o esplendor de suas ca-pacidades vitais e profissionais plenas (falou-se que Mar-lon Brando estava interessado em tal operação), e a se-gunda pela possibilidade de substanciosas receitas sem se mover do sofá.

Todos os exemplos citados evidenciam a onipotên-cia fantástica e delirante da imagem digital, que era uma virtude que só possuíam até agora as artes manuais do desenho e da pintura, mas que a técnica infográfica per-mite apresentar atualmente com a mesma aparência de autenticidade da imagem fotoquímica. E é lógico que esta técnica foi posta a serviço dos desejos proibidos. Em março de 1994 produziu-se um grande escândalo quando se descobriu que algumas cópias do filme Quem enganou a Roger Rabbit? (WhoFramed RogerRabbit?, 1988), realizado com imagem real e desenhos integrados de Ro-bert Zemeckis e produzido por Walt Disney e Steven Spielberg, haviam sido manipulados digitalmente. A ma-nipulação foi descoberta e denunciada pela revista Vari-ety e era grave, porque se tratavam de inserções de cará-ter subliminar que somente poderiam ser descobertas e-xaminando a película quadro a quadro e, o fato de tratar-se de acréscimos de caráter sexual e o interesse da obra para o mercado infantil, multiplicava o escândalo. Nas inserções digitais, o boneco desenhado de Jessica Rabbit aparecia sem calcinhas, lembrando a Sharon Stone em Instinto Selvagem no gesto de descruzar as pernas para revelar ao público. Em outra cena aparecia completamen-

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te nua e em outra o pequeno Baby Herman metia-se de-baixo da saia de uma senhora para tocá-la. A empresa distribuidora retirou as cópias que pode do mercado, que por sua vez se transformaram imediatamente num exótico e caríssimo artigo de colecionador e teve de desistir a descobrir o responsável pela manipulação pois grande parte da animação havia sido encarregada a artistas britâ-nicos.

A imagem digital permite outras fantasias sobre a pessoa mesmo. A maior parte das pessoas, segundo as estatísticas, está descontente com seu aspecto físico e com sua própria imagem. Uns se vêem demasiadamente gordos, ou baixos, ou com o nariz excessivamente pe-queno ou com os ombros muito pesados. O auge da ci-rurgia estética no ocidente fala as claras sobre esta insa-tisfação tão generalizada da qual já dávamos conta ao nos referirmos a dismorfofobia no segundo capítulo. Uma artista francesa chamada Orlan, procedente da body art, submeteu-se, nos anos noventa, a dez operações cirúrgi-cas para conseguir que sua testa fosse como da Mona Li-sa, seus lábios como os da Europa de Gustave Moreau, seu queixo como da Venus de Botticelli, seus olhos como os de uma Diana da escola de Fontainebleau, etc. Orlan supõe um caso radical de artista pós-moderna que não tem dúvidas em afirmar que "o corpo é obsoleto. Luto contra Deus e o DNA", e acrescenta. "Estou contra todo o modelo de beleza e empenhada em dirigir meu autorretra-to". Trata-se de um caso extremo de utopia projetada so-bre o próprio ser onde trocar de rosto se equipara ao ato de trocar de camisa.

O caso de Orlan é, obviamente, de radicalismo es-tético experimental e excepcional, mas, também, sem de-sejar, uma caricatura estridente da tendência coletiva de nossa sociedade do espetáculo para a modificação da própria aparência, em uma cultura em que o parecer é

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mais importante que o ser. Orlan pertence, claramente, a cultura cirúrgica da era pré-informática pois, na atualida-de, a tecnologia digital permite retocar o próprio corpo para eliminar sem cirurgia seus defeitos e convertê-lo – transmutado em cibercorpo – em objeto de desejo. Este cibercorpo narcisista, que torna realidade o mito do mu-tante deus grego Proteus na era pós-mítica, pode empre-gar-se para introduzi-lo em um jogo eletrônico ou para distribui-lo em postais ou em outdoors ou para converte-lo em amante virtual de um sujeito icônico desejado.

Analogamente é possível construir já a imagem do casal perfeito, como tentou fazer laboriosamente Lev Ku-leshov nos anos vinte, através da montagem cinematográ-fica de partes anatômicas de diferentes mulheres. Segu-ramente Kuleshov não fez mais do que seguir a tradição de alguns pintores, que combinavam atributos de diferen-tes modelos, para criar seu paradigma de suma perfeição estética. Nos últimos anos, vários departamentos de Psi-cologia têm dedicado tempo e esforços para desvelar os melhores modelos de atrativo físico. Entre os mais persis-tentes investigadores neste campo é o professor David Perret, que estabeleceu de sua cátedra na Universidade de Fife, na Escócia, uma ponte de colaboração com estudio-sos japoneses para tratar de validar suas conclusões com caráter universalista, cujas conclusões publicou na revista Nature, em março de 1994.

Os trabalhos de campo realizados por Perret e seus colegas japoneses permitem aventurar que a percepção do atrativo físico do rosto de uma mulher ou de um ho-mem baseia-se num instinto que prima pelo seu afasta-mento relativo dos traços médios em seu entorno. É di-zer, que valoriza uma certa originalidade ou atipicidade, o que seria biologicamente funcional para favorecer as vantagens de exogamia sobre a endogamia, com sua en-riquecedora mistura de genes. Esta tendência foi confir-

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mada com o realce experimental com o computador da combinação de traços mais atrativos, para exagerar mais sua diferença com a combinação mediana tornando, por exemplo, os lábios mais cheios ou elevando as maçãs do rosto e separando os olhos. Os observadores encontraram sempre mais atrativos nos retratos realizados assim. Para evitar uma polarização étnica e estas percepções, o expe-rimento se repetiu com pessoas japonesas em seu próprio país, apresentando tanto modelos de rostos caucasianos como japoneses e tanto de homens como de mulheres. Os resultados foram os mesmos. o "exótico" resultava mais atrativo que o estatisticamente predominante.

O que significa que na produção icônica digitaliza-da do casal mais desejável deve desempenhar um papel importante a criatividade e o inconformismo de seu idea-lizador. Se os antigos pintores tinham que ir refazendo as formas de seus nus com seus penitimenti, para acomoda-las a seus desejos, a produção digital de imagens permite agora escanear o rosto de uma pessoa, as pernas de outra, etc., para ir compondo logo um corpo ideal e ligeiramen-te desarmônico, de acordo com o que agora sabemos so-bre o atrativo físico e ir ajustando paulatinamente suas formas e suas poses, de acordo com a curva do desejo e da excitação do operador. Deste modo pode-se otimizar o desejo de uma figura, apresentada de modo mais favore-cedor possível.

Está claro ainda, isto pode conduzir a criação de uma figura muito desejável com quem não será possível fazer sexo pois a interatividade com ela é muito limitada, sempre monodirecional e privada de tactilidade. O único consolo que fica ao desejo obturado reside em saber que aquela figura não nos poderá decepcionar nem nossa re-lação com ela será desgastada por efeito da convivência e de sua rotina.

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O que não impede que o operador possa introduzir sua própria representação digitalizada na imagem para que por procuração vicarial acompanha, acaricie e até possua, iconicamente, ao sujeito desejado. É provável que muitos optariam neste caso por figuras aureoladas pelo carisma da popularidade mítica gestada midiática-mente, com rostos como o de Kim Basinger ou Leonardo di Caprio, para fazer iconicamente amor com eles. Mas os operadores mais imaginativos construiriam seus casais icônicas na medida de seus desejos precisos e meticulo-sos, como fez Pigmalião com Galetea. A finalidade sem-pre será a mesma. representar-se junto ao ser desejado para estar com ele sem estar. Esta é a lógica interna e ilu-sória em que se fundamenta a iconofilia, fomentada ener-gicamente pelas indústrias audiovisuais contemporâneas ao proporem a sociedade sujeitos altamente desejáveis, mas por sua vez inalcançáveis.

Se as imagens são presenças óticas sem vida, nem por isso escapam da iconolatria massiva, e sua carência de vida tampouco impede que estejam assim mesmo su-jeitas a um autêntico processo de seleção darwinista, de tal modo que as mais chamativas escandalosas ou sofisti-cadas tendem a ofuscar ou mover para o mais banal ou tradicional. O princípio biológico do "olhar preferencial" (especialmente sobre o estímulo sexual e ao nutritivo) atua de modo implacável neste campo. E, seguindo com a metáfora biológica, este imperativo que prima pelas ima-gens mais excitantes sobre as que não o são, tendem a reduzir a "biodiversidade" de nossa iconosfera contempo-rânea.

De maneira que a iconosfera contribui, com suas formas e cores hedonistas, para sensualizar nosso entorno urbano, ainda que também possa saturá-lo pois o excesso de imagens as faz, finalmente, invisíveis, convertendo-as em mero "ruído ótico". Mas essa realidade cultural não

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deveria fazer esquecer que substituir as palavras, que são a base do pensamento abstrato, por imagens, que consti-tuem plasmações do concreto, diminui inevitavelmente a capacidade reflexão dos temas.

MERGULHO DIGITAL Em 1885, um grupo de artistas alemães levados a

Atlanta pelo empresário norte-americano William Weh-ner iniciou um trabalho curioso, que lhes ocupou durante quase dois anos. Wehner tinham lhes encarregado que reconstruíssem, com figuras de tamanho natural, a bata-lha de Atlanta que, a 22 de julho de 1864, acelerou dra-maticamente a derrota militar dos Confederados. Com suma paciência, os artesões alemães construíram figuras de soldados e oficiais dos dois lados em luta, suas ban-deiras, cavalos, armas e canhões, para colocar em cena em um grande espaço tridimensional o dramático episó-dio bélico. Assim nasceu o famoso ciclorama de Atlanta, cujo campo de batalha os turistas podem agora visitar, passeando pacientemente entre as figuras guerreiras de aspecto ameaçador mas imobilizadas e congeladas no tempo.

Poucos anos depois de inaugurado este singular ci-clorama, os irmãos Lumière inventaram o cinematógrafo, que permitiu descongelar aquela imobilidade figurativa, ao captar e reproduzir visualmente a realidade em movi-mento. Logo a indústria do cinema, impulsionada pelo desejo de incrementar o ilusionismo naturalista de suas obras, em razões de maiores benefícios econômicos, con-quistou a reprodução do som e das cores. E nessa mesma lógica ilusionista se inscreveram os inventos do Cineo-rama, Cinerama, do Cinemascope, do Kinopanorama, do Odorama, do Sensurround, do Circarama, do som Dolby Stereo e do Omnimax de 360º. Tratava-se, em todos os

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casos, de que o espetáculo se parecesse o mais possível com a vida.

Entretanto, enquanto prosperava a sociedade dos simulacros, tão agudamente dissecada por Baudrillard, a televisão não cumpria sua velha promessa de oferecer suas imagens com plenitude tridimensional. E os usuários da internet tinham que distinguir entre sua comunicação mediada e escritural pela rede e a comunicação plena em 3-D. A cultura eletrônica acusou, no último quarto de século XX um déficit de naturalismo, de corporeidade e de sensorialidade, enquanto em âmbitos menores, o apeti-te por simulacros vitais se confirmava com brinquedos como os tamagochis, verdadeiros mascotes virtuais, ou com bonecos animados e falantes como o Furby.

A esse apetite sensorial hiper-realista tentou res-ponder a realidade virtual (RV) imersiva, cujas primeiras experiências remontam aos ensaios de Ivan Sutherland em 1968, com seu primeiro capacete visualizador e que se desenvolveram como fruto da convergência da infor-mática, da ótica, da robótica, da psicologia cognitiva e da engenharia biomecânica nos trabalhos de simulação leva-dos a cabo no âmbito militar - para treinamento de pilotos aéreos - e no acadêmico. A expressão "realidade virtual" foi criada por Jaron Lainer em 1986, mas a comunidade científica prefere las mais exatas de "entornos virtuais" (virtual environments), "entornos reativos" (responsive environments), "entornos sintéticos" (synthetics environ-ments) e "realidade artificial" (artificial reality).

A RV imersiva constitui um sistema de informática que gera entornos sintéticos em tempo real, que são ilusó-rios, pois trata-se de uma realidade perceptiva envolvente sem suporte objetivo. O operador porta um capacete vi-sualizador com duas monitores de vídeo de tela de cristal líquido, uma para cada olho, que produzem o efeito este-reoscópico derivado da visão binocular e da correspon-

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dente disparidade retiniana. Apesar desse hiper-realismo ótico, o sistema não ativa a acomodação do cristalino do olho às diferentes distâncias representadas nas telas, mas que se acomoda a uma distância fixa as telas planas, mui-to próximas dos olhos, o que significa uma perversão das leis fisiológicas da visão. Esta anomalia perceptiva evi-dencia que penetrar o ciberespaço supõe, paradoxalmen-te, penetrar em uma imagem plana. Outra característica fisiológica se deriva de que a experiência visual da RV depende dos movimentos da cabeça e do corpo, mas não do movimento dos olhos explorando as imagens de suas duas telas.

Esta última característica vincula-se à experiência cenestésica e cinestésica da RV. Cenestésica enquanto permite ao operador a consciência da posição e da ativi-dade de seu corpo no espaço, e cinestésica porque permi-te a consciência dos deslocamentos em tal espaço. Isto é possível porque a visão estereoscópica gerada pelas ima-gens computadorizadas está coordenada, mediante senso-res e programas complementares, com o movimento do corpo do operador, para produzir a impressão de integra-ção física e de mobilidade do ponto de vista em um espa-ço de três dimensões. Não obstante, as altíssimas veloci-dades de cálculo exigidas por estas operações fazem que, na atualidade, se acuse uma energia cinética nas trocas de ponto de vista, que resultam todavia demasiadamente re-tardados.

Com seus entornos multissensoriais interativos, a RV deslocou o protagonismo da informação, próprio da cultura da era digital, para o das sensações, que, como recordamos no segundo capítulo, constituem o funda-mento físico do sensacionalismo. O operador navega com seu corpo pelo ciberespaço, um território ilusório que foi batizado assim por William Gibson em sua novela Neu-romancer (1984) e que definiu como uma "alucinação

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consensuada". Mas na realidade vagueia por uma paisa-gem que é mera informação ótica, sem extensão nem su-porte territorial e enquanto seus pés e seu corpo estão na realidade, sua cabeça encontra-se em um cenário virtual. Por isso Thomas Furness propôs chamar mindware seu software.

Quando trabalhamos frente a tela de um computa-dor, nos a reconhecemos como uma interface da máqui-na, mas a RV dissolve a interface ou, melhor dizendo, faz desaparecer o efeito interfacial, pois é na interface de o-lhos-tela, onde não há percepção de seus quadros ou mar-cos onde se intersecta o desenvolvimento da RV. Desde seu invento na cultura pictórica do Renascimento, o mar-co-quadro da representação constituiu o mais eficaz de-limitador entre a representação e seu entorno, pois impõe uma externalidade, uma distinção e uma distância entre o sujeito e o objeto, entre o observador e o observado. Ao abolir este marco da representação, o sujeito se confunde com o objeto, mediante sua imersão ilusória no ciberes-paço.

De maneira que esta simbiose íntima entre homem e computador, o entorno se percebe como um prolonga-mento do sistema visual e artificialmente "colado" a ele, como se evidencia quando o operador livra-se se livra do capacete e se encontra ante um universo visual distinto e extenso. Esta situação pode resumir-se dizendo que em lugar de andar por um território, o operador move uma janela que leva até seus olhos, em que está representado visualmente o território.

Esta questão remete ao tema crucial do ponto de vista ótico, pois se a RV é uma tecnologia, para seu ope-rador é, antes de mais nada, uma experiência sensorial subjetiva. Habitualmente seu ponto de vista corresponde a de um passante que percebe, em primeira pessoa, um entorno que o circunda. Mas não é difícil introduzir, me-

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diante uma câmera, o efeito de segunda pessoa, de modo que o operador se vê em suas telas, mas fora de si mes-mo, com o efeito próprio do espelho. Em seu entorno po-de aparecer também outra pessoa mediante o efeito de telepresença, ao que no Japão se chama mais ordinaria-mente telexistência, baseia-se no princípio das corres-pondências homeomórficas (do grego homeo. semelhante e morfo. forma), é dizer, na correspondência estabelecida entre dois sujeitos ou objetos, de maneira que suas for-mas (espaciais ou temporais) se reproduzam com fideli-dade em outro lugar distinto do que se encontram, inde-pendentemente de sua substância, escala, etc. De modo que a telepresença permite a uma pessoa agir à distância como se estivesse realmente no lugar de sua intervenção e os sujeitos "telepresentes", talvez distantes a milhares de kilômetros na realidade, compartem sensorialmente um espaço virtual comum.

A RV pode enriquecer-se com a AR (Augmented Reality), uma modalidade em que as imagens geradas por um computador se sobrepõe as do mundo real, utilizando para isso óculos semelhantes aos da RV.

A RV não é só um jogo.Os militares começaram a interessar-se nela para treinar sues pilotos em ambientes interativos e sem risco físico para eles nem para os avi-ões. E, por razões semelhantes, este sistema interessou a NASA. dentre suas primeiras aplicações práticas figura-ram as explorações virtuais dos territórios inacessíveis ou muito perigosos, como as profundidades submarinas, zo-nas radioativas ou superfícies de planetas em um robô substitui ao ser humano, que recebe em um lugar seguro, a informação sensorial e com seus movimentos físicos ativos e dirige o engenho à distância.

Entre outras tantas aplicações da RV figuram as psicoterapêuticas, de orientação comportamental. No ca-so das neuroses fóbicas, pode-se apresentar agentes fóbi-

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cos virtuais ao paciente, graduando paulatinamente sua intensidade, para que se acostume a eles. Por exemplo, o paciente de acrofobia pode-se elevar progressivamente sua distância virtual do solo para que vá se acostumando à altura. E ao hipertímido pode-se propor estratégias de relação com sujeitos virtuais do outro sexo.

Também a RV começa a ser usada na cirurgia, pois o máximo valor pedagógico deriva do princípio do "a-prender fazendo". A simulação cirúrgica aparece como um campo com grande futuro, para ensaiar operações difíceis e poupar vidas. Já em 1993, o corpo de Joseph Paul Jernigan, executado no Texas, foi congelado e cor-tado em rodelas de um milímetro de espessura para serem fotografadas. Estas fotografias foram digitalizadas e con-servadas na memória de um computador. De modo que este primeiro cadáver digital foi batizado de Adão e utili-zado para ensinar turmas de anatomia.

As aplicações pedagógicas da RV são incontáveis. Em maio de 1996, o parque zoológico de Atlanta inaugu-rou um habitat selvático virtual de gorilas e os visitantes, dotados de capacetes visualizadores, podiam interagir com os membros da manada sem riscos e sem necessida-de de fazer uma custosa viagem à África.

A propósito da RV tem se falado de mundo abióti-co (sem vida), de comunicação pós-simbólica e de arte pós-ontológica. estes qualificativos sugerem uma carên-cia, um vazio, uma perda ou uma mutilação. Também se tem insistido muito em seu engano aos sentidos e se tem invocado a seu propósito, as sombras enganadoras da fa-mosa caverna de Platão e o antecedente mais próximo de Catarina da Rússia, cujos funcionários construíam paisa-gens distantes dos lugares que a imperatriz andava para fazer-lhe crer que se havia erigido obras públicas e que o país progredia. Aqueles funcionários corruptos foram os

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precursores da RV no século que precedeu a Revolução Industrial.

Com sua consolidação de um espaço subjetivo e i-lusório, a RV tornou realidade o País de Nenhuma Parte, que estava prefigurado nas comunidades virtuais assenta-das na rede. É dizer que dotou aquela ilusão coletiva de uma âncora sensorial precisa. E sua emergência permite ampliar a famosa prova que Turing idealizou para decidir se uma máquina merecia o qualificativo de inteligente. Aplicando seu raciocínio à RV, tem-se que acrescentar que, quando o percebido não possa distinguir-se da reali-dade, será de fato realidade. Esse era também o critério de Elmyr d'Hory sobre os quadros falsificados, como já vimos.

E este é o momento de lembrar que os sonhos se manifestam ao sonhador como reais, não como sonhos, de maneira que entrar em um sistema convincente de RV é algo equivalente a entrar em um sonho. O ciberespaço pode ser contemplado como um refúgio para uma vida virtual, cheia de experiências radicais, a meta definitiva para os televiciados insatisfeitos. A RV pode ser, com efeito, um substituto falaz da realidade e um refúgio das aflições da ingrata cotidianidade. Pode converter-se no escudo de todos os afetados pela síndrome de Peter Pan, que se negam a enfrentar suas responsabilidades adultas. Pode ser o domínio ideal do Sr. Hyde, sem culpa nem remorsos. Peter Weibel o chamou de "espaço psicótico" e o comparou a objetos que povoam os "objetos fantas-mas", no sentido que a medicina se refere a "membros fantasmas" que, ainda que amputados do paciente, este os segue sentindo apesar de sua inexistência.

Sobretudo, comparou-se seus efeitos aos das dro-gas alucinógenas. Ao oferecer o ciberespaço mundos al-ternativos que se presumem mais estimulantes que o mundo real, Claude Caroz pode classificá-lo como "dro-

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ga eletrônica do terceiro milênio". Não é de se estranhar que Timothy Leary, apóstolo das drogas alucinógenas, fosse um entusiasta da RV, em cuja irrealidade hiper-realista via um eficaz LSD eletrônico, apto para um esti-mulante trip. E, com efeito, a literatura clínica já come-çou a descrever casos de dependência patológica da RV, onde o dependente, caído no poço de sua ilusão, nega-se a regressar a uma realidade que percebe como ingrata ou hostil.

Certamente, do outro lado do espelho de Alicia po-dem abrir-se abismos incontroláveis. Mas não é menos certo que as coisas que podem acontecer na RV são às vezes menos assombrosas que as que ocorrem no mundo real, com suas guerras étnicas e religiosas em plena era pós-industrial, ou com o enlouquecimento coletivo que se apodera de milhares de adolescentes frente a um cantor da moda. Nosso lado do espelho pode se mostrar também muito surpreendente e ilógico.

REALIDADE VIRTUAL E ESPETÁCULO As imagens do cinema e da televisão constituem

presenças virtuais, com as que não podemos interagir e nosso papel frenta a elas limita-se a de passivos observa-dores. Mas é certo que várias gerações de espectadores sonharam com poder entrar na Odessa inssurrecta do En-couraçado Potemkim, na Atlanta de E o vento levou ou na casbah de Casablanca, para aproximar-se de Hump-hrey Bogart ou de Ingrid Bergman. Até que chegou um belo dia em que Woody Allen nos surpreendeu fazendo que um ator de A rosa púrpura do Cairo, Jeff Daniels, abandonasse a tela para viver outra vida alternativa a margem de sua ficção programada. Quando Woody Allen rodou seu filme, em 1984, a RV estava entrando em sua vacilante puberdade.

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Mas imaginemos que uma admiradora de Bogart conseguisse finalmente entrar nas imagens de Casablan-ca, o famoso filme de Michael Curtiz. Com que se encon-traria no paralelepípedo virtual que se abre atrás da tela? Simplesmente se encontraria com ectoplasmas submeti-dos a um comportamento determinista, que não lhe fari-am nenhum caso e que repetiriam uma vez ou outra os mesmo gestos e diálogos que ficaram estampados na fita no curso de sua rodagem. A experiência não teria valido muito a pena.

Nos últimos anos as indústrias do espetáculo, sob a influência subterrânea da RV, começou a oferecer ao pú-blico ficções autorreflexivas sobre a frágil fronteira que separa o real do virtual, ao documento da ficção e à histó-ria da invenção e dos desdobramentos mútuos que podem produzir-se a ambos os lados da fronteira. Em O show de Truman (The Truman show, 1998), de Peter Weir, o pro-tagonista vive em um entorno global que é mero espetá-culo televisivo e do qual ele paerticipa sem saber, na qua-lidade de protagonista. E em A vida em preto e branco (Pleasantville, 1998), de Gary Ross, dois irmãos conse-guem entrar em uma tela de uma minissérie, que constitui uma verdadeira coqueluche dos anos cinquenta, e com sua presença conseguem subverter os costumes daquele mundo ultraconservador, asséptico e superpuritano. A vida em preto e branco constituiu uma boa alegoria sobre a RV imersiva e de sua confusão entre realidade e ficção.

E finalmente, a fantasia virtual de Matrix (1999), de Larry e Andy Wachowski transformada rapidamente em filme cult, entoou um hino em favor dos hackers e mostrou um conflito e uma violenta ação física que teria lugar em um ciberespaço que era tão real como nosso espaço euclidiano e vital pois nela as pessoas podiam in-clusive morrer, momento radical que supõe a verificação suprema da vida. Nesse caso podia-se afirmar, sem a me-

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nor dúvida, que se tratava de uma especulação fantástica nascida no calor das experiências com a RV.

Ainda que o argumento de Matrix fosse rigorosa-mente inverossímil, é verdade que a RV imersiva colocou abaixo a natureza e as convenções do espetáculo audiovi-sual tradicional, derivadas das matrizes fundacionais que nasceram na Atenas clássica. Para começar, no ciberes-paço o território é fictício, mas o tempo é real, o que po-deria resumir-se dizendo que a RV é utópica mas não a-nacrônica. Pelo que as elipses e os flash-baks que a mon-tagem permite nas representações audiovisuais, levando a ação vários anos adiante ou várias horas atrás, são rigoro-samente impossíveis.

Por outro lado. desde o momento em que uma pes-soa entra no ciberespaço com um capacete visualizador, deixa de ser espectador passivo pra converter-se em um espectador-ator no âmbito das self-média. Pode ser que veste operador, já no ciberespeaço, decida entrar por uma porta à sua direita e avançar por aquele itinerário. Mas outro operador que chegue com ele ou depois dele, no uso de sua autonomia hipertextual, possivelmente optará pela porta da esquerda e ambos terão, como consequên-cia, vivências e, seguramente, surpresas, muito distintas. O imaginário unificado que é próprio dos públicos tradi-cionais que compartilham o mesmo espetáculo, no cine-ma ou na televisão, fica assim dinamitado pela pluralida-de de ações e de vivências.

Existem, além disso, os problemas derivados da discrepância entre espaço virtual e tempo real. Nas pelí-culas cinematográficas seus protagonistas podem mover-se num piscar de olhos, às vezes usando um elenco enca-deado, de New York a Pequim, do Alaska a Paris. Isso também pode acontecer no seio da RV, mas o espectador-ator ancorado no fluxo contínuo, viverá aquela desconti-nuidade especial como uma violenta incongruência psico-

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lógica, que não é comparável à vivência do leitor de uma novela ou do espectador cinematográfico, a seguir a nar-ração de uma aventura exterior e distante, fixada sobre um suporte.

Porque, concordando com o que acabamos de ex-plicar, os operadores não contemplam uma narração, se-não que são sujeitos ativos de uma ação e de uma vivên-cia em que são protagonistas, que seria narrativa para os eventuais espectadores que puderem contemplá-la, mas não para que a executa. depois de cem anos de cinema e cinquenta de televisão, que privilegiaram e hipostasiaram o princípio da narrativa, a RV se erige em um meio deci-didamente pos-narrativo.

A RV eclipsa assim mos vetores da narratividade e da temporalidade em favor dos da atividade espacial au-tônoma e da peripécia subjetiva. Em poucas palavras, na RV desaparece a figura e a função do narrador, tanto co-mo desaparecem as do público unificado. E com isso se reformula brutalmente uma discrepância entre sensoriali-dade e narratividade, entre mimese e diégeses, entre per-cepção e estrutura. Como se reformulam, não menos a-gudamente a função e tarefas do expectador em relação ao espetáculo e com a fábula representada.

O EROS CIBERNÉTICO Com a irrupção da RV, as indústrias das represen-

tações potencializaram consideravelmente seu vetor co-mo indústria das emoções. Fizeram com os meios de in-formática o que Baudelaire chamou no século romântico de "paraísos artificiais", até o ponto de que Brfenda Lau-ren poder afirmar, invocando a antiguidade pagã, que a RV permite a criação de experiências dionisíacas. O cibe-respaço pode, com efeito, surgir como um sonho, como uma fantasia onírica e, posto que existem programas para

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RV compartilhada (ou "entornos virtuais compartilha-dos"), seus sonhos podem ser sonhos acompanhados, in-cluindo, naturalmente, os sonhos eróticos, que se diferen-ciam dos sonhos fisiológicos em que, nesses, estamos verdadeiramente sós ainda que creiamos não estar.

Luis Buñuel, que sabia muito de sonhos marcou em suas memórias que nos sonhos eróticos nunca conseguia consumar um coito e que sua excitação nunca chegava finalmente a satisfazê-lo. Esta parece ser uma experiência onírica muito comum, que assinala uma fronteira drástica entre fantasia e realidade e o próprio Buñuel realizou em 1972 na França um divertido e corrosivo filme, O discre-to charme da burguesia (Le charme discret de la bourge-osie), em que encenava reiteradamente esta frustração pois seus personagens nunca conseguiam satisfazer seus impulsos nutritivos nem os sexuais, pois eram interrom-pidos sempre no momento culminante.

Mas, como explicamos anteriormente, na RV não existem reticências censoras que, com sua descontinuida-de, eliminam nas películas as cenas sexuais que deveriam aparecer logicamente depois da cena do beijo apaixona-do. Na RV não existem nem montagem, nem reticências, nem desvanecer-se em preto nem as metáforas censoras. nela existe um território virtual que constitui a base das ações físicas do operador. Na natureza o espaço é, ao contrário, extenso e real, como o que percorrem os ani-mais selvagens que e um amplo território que lhes dê a possibilidade de encontrar uma fêmea (ou fêmeas) para acasalar-se. No homem, como herança de sua extensa etapa histórica de caçador-coletor, sobrevive o desejo de espaços em que possa viver experiências gratificantes e possa satisfazer seus mais secretos apetites. Entre eles o do encontro de uma parceira sexual.

Mas ao ser o ciberespaço uma pura simulação, os desejos podem ser tão extravagantes e transgressores

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quanto se queira, já que, posto que não têm consequên-cias materiais, tudo está permitido nele. Inclusive as chamadas perversões ou parafilias, em sua ampla gama de modalidades. E os desejos podem ser também transfe-ridos a objetos virtuais, como fazem os usuários das bo-necas infláveis para satisfazer os impulsos de sua libido e dos que demos conta no quarto capítulo.

Em 1974 o informata e inventor do hipertexto The-odor Nelson criou a expressão "dildônica" para descrever uma máquina inventada em São Francisco por How Wa-chs, que transformava as vibrações do som em sensações táteis. Ao aplicar este sistema vibratório nas zonas eróge-nas do corpo originava-se uma sensação excitante e pra-zerosa, de caráter sexual. Por isso, convém esclarecer que o termo anglo-americano dildo é o nome dado, se-gundo o dicionário Webster, ao "pênis artificial ereto". Ao estender a RV nos últimos anos seu âmbito multimo-dal à esfera genital, resultou óbvio que podiam construir-se telepênis macios e flexíveis e, mediante sensores de ar comprimido, podiam enrijecer-se de modo radical com o envio de estímulo apropriados. Assim nasceu a "teledil-dônica" que parecia querer substituir a famosa inveja freudiana do pênis pela inveja do cyborg copulador e por suas potencialidades sobre-humanas no tocante à sua ere-ção ilimitada.

Chegados a esse ponto, é obrigado referir-se à tactilidade virtual, uma função sensorial que até agora não nos referimos, mas que completa as percepções cenestésicas e cinestésicas e que é possível mediante luvas eletrônicas (data gloves) e até cibertrajes aderidos à pele (data suits). Hoje em dia se conhece bastante os mecanismos neurofisiológicos do tato humano, que se baseiam em receptores neurais de diversos tipos na pele e com funções específicas, para detectar a vibração, a pressão firme, o tato ligeiro, etc. Há que se distinguir também a diferença entre mecanorreceptores (detectores

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diferença entre mecanorreceptores (detectores de superfí-cies) e termorreceptores (sensíveis às temperaturas) e, sobretudo assinalar a função do tato háptico - fundamen-tal na relação sexual - que é o tato derivado da explora-ção ativa, sobretudo com os dedos, diferente do passivo, cujos mecanismos são distintos, pois o primeiro é itine-rante e possui por isso uma dimensão temporária, en-quanto o segundo é estático e simultaneísta. Mas a sensi-bilidade do tato tem seus umbrais e suas limitações, como os tem os outros sentidos e a discriminação tátil de dois pontos se torna difícil quando estão separados por menos de 2,5 milímetros.

A literatura fantástica tem fantasiado menos com o tato que com os sentidos da visão e audição pelas razões que expusemos no final do primeiro capítulo, apesar de que o senso comum reconhece sua fundamental impor-tância biológica, muito bem manifestada com a expressão "beliscar-se para ver se está acordado". De fato, é mais provável a sobrevivência do indivíduo privado da visão que privado do tato, o qual poderia se queimar sem sofrer dor.

Mas quando Aldous Huxley escreveu em 1931 Um mundo feliz, no alvorecer do cinema sonoro, apresentou em uma cena um espetáculo ao qual chamou de "cine sensível" e cuja publicidade anunciava um "superfilme totalmente cantado, falado sinteticamente, a cores, este-reoscópico e sensível. Com acompanhamento sincroniza-do de órgãos de perfumes". Na atualidade, em que o ci-nema sonoro e a cores é uma velha rotina, o que mais chama a atenção de sua proposta é a tactalidade do espe-táculo para os espectadores, graças a eletrodos dispostos nas poltronas e que aplicavam aos dedos. Como não po-dia ser de outro modo, no espetáculo proposto por Hu-xley o vetor erótico tornou-se fundamental. Começa - como tantos filmes atuais - com uma cena violenta e pas-

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sional entre um homem negro musculoso e uma esplên-dida ruiva, onde "os lábios esteroscópicos se juntaram e as zonas erógenas faciais dos seis mil espectadores de Alhambra tremeram em um prazer galvânico quase into-lerável". E, mais tarde, "algumas escaramuças amorosas foram executadas sobre a famosa pele de urso, cada pelo dela podia ser sentido separada e distintamente".

De maneira que na previsão de Huxley já existia a tactilidade virtual, que é hoje o ingrediente essencial do cibersexo. Ensaiaram-se diversos tipos de luvas eletrôni-cas, com redes de balões de ar comprimido para criar fal-sos "músculos de ar", que gerem sensações de resistência e solidez ao agarrar ou tocar um objeto virtual. O Teletact da empresa britânica Air Muscle Ltd. , por exemplo, era feito de bolas pneumáticas na palma da mão e no meio das falanges, alimentadas por um compressor governado por um computador. Durante o encontro com a superfície de objetos virtuais, as bolas se incham e oferecem a sen-sação de contato tátil.

Em princípios bem semelhantes sa baseia a tactili-dade dos cibertrajes ainda que as intenções de fabricar com sensores "pele artificial" ou "pele inteligente" (smart skin) não tem resultados muito prometedores até agora. O princípio geral que governa estas experiências é de obter através dos tactels (unidades de tato artificial equivalen-tes aos pixels visuais) uma telepresença tátil interativa, mediante sensores e através de impulsos transmitidos por rede de banda larga. A meta é alcançar a ilusão de um sentido tátil-próprio-sinestésico que detecte, como o tato humano, superfície, suavidade, forma, protuberâncias, viscosidade, lisura, fluidez líquida, temperatura...

A tactilidade, não custa insistir nisso, faz-se fun-damental na interação erótica dos corpos. O caminho pa-ra satisfazer a este sentido mediante simulações virtuais é árduo e complicado e, por ora, parecem ter mais futuro as

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ciberbodas, como a que uniu em agosto de 1994 Monica Liston, executiva de uma empresa de informática e Hugh Jo em São Francisco. Para levar a cabo a cerimônia, que foi muito badalada, o noivo e a noiva tiveram que man-ter-se afastados a mais de três metros e meio, para não interferir-se. A esta distância houve que recorrer ao beijo e à aliança virtuais. Ao comentar este episódio, o diário Financial Times (20 de agosto de 1994) manifestou que via boas perspectivas para o negócio das ciberbodas, já que com este sistema os noivos poderiam escolher casar na basílica de São Pedro em Roma ou em uma ilha tropi-cal, representada virtualmente em seu ciberespaço, sem sair de sua cidade. Mas ao mesmo tempo o diário econô-mico opinava com realismo que não se esperava uma grande demanda para luas-de-mel virtuais.

Em que pese isso, a imprensa e as revistas especia-lizadas seguiram informando de tempos em tempos sobre experiências de cibersexo, que geralmente adquirem o aspecto de ensaio extravagante e pouco satisfatório. Uma revisão das bibliotecas de jornais dá boa conta dos parcos resultados obtidos por estes experimentos. Em janeiro de 1994 apresentou-se em Paris a primeira experiência pú-blica de sexo virtual, a cargo dos jovens Caroline e Phil-lipe, utilizando um programa virtual batizado de Cyber-sex para estimular suas respectivas zonas erógenas à dis-tância. mas ao terminar a experiência se declararam de-cepcionados e asseguraram aos jornalistas que o estimu-lador cibernético está longe de ser um bom amante. O relato jornalístico do evento acrescentava.

"Os amantes virtuais apareceram na sala vestidos com uma espécie de conjunto sadomasoquista em couro, donde se dependuravam aparatos e cabos conectados a um computador. estes aparatos são emissores, vibradores, apalpadores sensoriais e emissores de calor que intenta-

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vam reproduzir, ao que parece sem muito êxito, as sensa-ções que produzem as carícias.

"Os gestos dos amantes virtuais, transmitidos e in-terpretados pelo computador, chegam ao parceiro em forma de impulsos elétricos. os amantes, que se encon-travam em zonas separadas, tinham nas telas de seus computadores a representação em três dimensões de um corpo do sexo oposto, para poder selecionar assim as par-tes em que em cada momento desejavam concentras os estímulos. Os fios elétricos transmitiam descargas de in-tensidade variável, que oscilam de 3,5 volts, a força de um pilha comum, a um máximo de 49 volts."

"A experiência demonstrou também que o grau de precisão que pode alcançar a carícia tradicional é difícil conseguir com o mouse do computador, já que aconteceu várias vezes que um dos amantes acreditava estar estimu-lando a perna de seu parceiro quando na realidade trans-mitia impulsos a seu braço, por exemplo. Os criadores de Cybersex, embora reconheçam que hoje o material carece da sofisticação necessária para conseguir seus fins eróti-cos, mostraram-se convencidos de que num futuro não muito distante duas pessoas poderão simular um contato físico mesmo encontrando-se a muito quilômetros de dis-tância (La Vanguardia, 20 de janeiro de 1994).

Meses mais tarde, em outubro, durante a exposição Virtual City, realizada em Roma, realizou-se outra expe-riência similar, que a imprensa descreveu assim. "São oito pontos de contato sobre o corpo, cobertos de atadu-ras elásticas negras de onde saem cabos ligados a compu-tadores e destinado a entrar em contato por via telefônica (via modem) com a outra pessoa distante. As zonas eró-genas cobertas vão desde as tradicionais e usadas pelos

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amantes de todo mundo (seios e "baricentros"46 anterior e posterior) a outras menos usadas como braços e pernas." O "funcionamento", explica Helena Velena, "finalmente é simples. quando toco meu braço provoco a mesma sen-sação no parceiro distante, graças a sensores que enviam do meu braço ao idêntico instalados no outro, os mesmos estímulos" (La Repubblica, 25 de outubro de 1994).O artigo concluía admitindo que o sistema não era todavia demasiado eficaz, mas assegurava que se aperfeiçoaria rapidamente e que se tornaria muito útil para as pessoas tímidas, que teriam dificuldades para estabelecer relações interpessoais a distâncias curtas, assim como para os a-mantes condenados a uma separação forçada.

As duas experiências relatadas, que certamente não parecem muito estimulantes, teriam em comum sua sexu-alidade inodora e "seca", sem umidade nem fluidos cor-porais, além de se realizarem em ambientes pouco agra-dáveis e acolhedores, a meio caminho entre a sala da ci-rurgia e o laboratório de eletrônica e trazem inevitavel-mente à mente uma observação que fez o especialista em informática Howard Rheingold há alguns anos. "Como com o sexo, a exploração da RV parece exigir posições com o corpo que parecem divertidas aos demais". Nestes casos relatados de sexualidade virtual a linguagem corpo-ral tornou-se por isso, duplamente ridícula.

Os protótipos de cibersexo ensaiados em Paris e em Roma se alicerçavam, a julgar pelas explicações que reproduzimos, em estratégias técnicas distintas, pois o primeiro guiava as carícias através de imagens em tela no corpo do outro amante, enquanto que o segundo transmi-tiam-se as práticas de autoerotismo de cada amante ao

46 NT - Baricentro - O autor faz referência ao conceito da ge-

ometria que é o encontro das três medianas de um triângulo, em uma alusão ao triângulo pélvico - genitais e nádegas.

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corpo distanto do outro. Na realidade não há um só mo-delo do que Bokowski chamou de the fucking machine, senão várias estratégias técnicas distintas, ainda que pa-reçam ter uma única meta comum, que não é precisamen-te a de ter um experiência sexual com uma máquina, se-não com outra pessoa distante, utilizando para isso a má-quina como um sistema de mediação interpessoal ao co-nectarem-se através dela mediante efeitos táteis no corpo, para enviar-se mutuamente seus estímulos. Em tal caso, a interface se move do tradicional olhar para a tela para os sensores sobre a pele ou no interior da vagina.

As distinções são importantes neste terreno todavia sujeito à experimentalidade, pelo que é bom esclarecer que o cibersexo admite três opções, no que respeita a es-colha do parceiro desejado ou destinatário da iniciativa erótica, a saber.

1. Cibersexo com um sujeito real, que particioa ati-vamente no ato à distância;

2. Cibersexo com um ícone do sujeito real deseja-do;

3. Cibersexo com um sujeito inventado. Os dois exemplos anteriormente relatados entram

na primeira categoria e aparecem no horizonte social co-mo a opção mais comum e simples, ainda que seja a me-nos imaginativa. A segunda aparece quando a pessoa de-sejada não se presta a colaborar com quem a queira eroti-camente. Esta modalidade, que poderia ter um grande futuro entre os fãs dos personagens carismáticos do star-system cinematográfico musical ou esportivo, torna-se tecnicamente mais complexa que a anterior. Para obter ícone dublê da pessoa desejada há que se escanear e digi-talizar sua imagem. E a partir dessa imagem construir um dublê do sujeito desejado. Não é necessário ser um dublê robotizado ou tecnicamente sofisticado, pois seu suporte anatômico e sua mobilidade corporal podem proceder de

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outra pessoa que atua como suporte físico ou marionete ativa, tal como se faz na trucagem digital de alguns fil-mes.O personagem vivo que atua de "gancho", oferece a si mesmo, como a um esqueleto, como um esqueleto, seu desempenho físico para o fantasma digital que representa o sujeito desejado nesta operação de telessexualidade personalizada.

E, por último, os imaginadores mais irredutíveis podem criar sua amante virtual na medida de seus dese-jos, como fazem os escultores e os fabricantes de bone-cos.

A primeira etapa desse processo se inicia com a criação da imagem do parceiro desejado, tanto digital-mente ou reproduzido por scanner de sua imagem analó-gica original, para convertê-la em sistema digital. E a partir desta imagem digitalizada procede-se como no ca-so anterior, atuando a imagem como um dermoesqueleto da pessoa que o suporta, nas funções de amante virtual.

Em uma época de auge divorcista, o cibersexo pro-põe relações eróticas com divórcio radical dos corpos e abre numerosas interrogações sobre o prazer, a comuni-cação interpessoal e sobre a alteridade sexual esboçando uma nova semiótica do casal. Os exemplos anteriormente relatados de cibersexo com sua penosa ortopedia, consti-tuem torpes caricaturas de algo que pode se aperfeiçoan-do tecnicamente, para dissociar a sexualidade interpesso-al do contato físico, algo que parece a todas as luzes aber-rante, pois desde o mito da alma gêmea que Platão rela-tou em O Banquete ficou estabelecido que o amor sexual está baseado na fusão física dos corpos.

Bem olhado, o cibersexo constitui uma barroca e complicada modalidade de "sexo frio", desenvolvida não casualmente na era da AIDS e que nega a tradição bioló-gica consolidada no último meio milhão de anos, quando os hominídios inventaram o coito frontal e, com isso, o

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full contact corporal. Embora um olhar laico e irreverente poderia ver nele uma caricatura sofisticada da telecon-cepção sem contato físico que converteu, segundo a len-da, a Virgem Maria em mãe.

Apesar de suas carências, todos os especialistas do tema tem elogiado as múltiplas vantagens que traz, em teoria, o sexo virtual. Assim, Ray Kurweil sustenta seri-amente que o cibersexo é melhor que o sexo real porque não provoca gravidez indesejada, nem transmite doenças venéreas nem produz complicações psicológicas, nem dependências afetivas (The Age of Spiritual Machines). Argumentos idênticos têm sido usados por Howard Rhe-ingold em seu livro Virtual Reality e chegou a afirmar que o cibersexo é um "preservativo integral". E entre ou-tras vantagens chegou a acrescentar que, com este siste-ma, o marido que precisa fazer frequentes viagens de tra-balho pode fazer sexo no seu hotel com sua esposa que ficou em casa utilizando um modem e a linha telefônica. E se acrescentou que, igual aos pilotos aéreos que trei-nam com a RV, os meninos e meninas pré-adolescentes poderiam treinar proveitosamente com o tecnosexo em suas aulas de educação sexual em suas escolas.

RAZÃO E EMOÇÃO Desde que Aristóteles declarou que o homem é um

animal social, os cientistas aprenderam muito sobre sua natureza, suas necessidades, suas expectativas e suas ca-rências. Em concordância com aquele princípio biossoci-al, os filósofos e os antropólogos estabeleceram que, dife-rente dos restantes animais, o meio natural do homem é o meio cultural. O Homo sapiens é também Homo faber e

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Homo symbolicus.47 Mas, precisamente por sê-lo, deva valorizar criticamente o significado e as funções dos en-genhos que inventa, porque as coisas inventadas raramen-te se desinventam, como tem demonstrado a bomba atô-mica ou as bombas químicas e bacteriológicas.

É hoje uma evidência que a indústria está alicerça-da na tecnologia, mas ativada pelo poder financeiro que a sua vez se mobiliza pela expectativa de benefícios eco-nômicos, em razão de que seus produtos industriais satis-façam desejos e apetências coletivas que às vezes são gerados ou acelerados artificialmente por tais indústrias. Daí se deriva a ambiguidade do conceito de progresso que tem sido submetido à implacável crítica nos últimos vinte anos, e é mister concordar com Paul Virilio quando afirma que só se pode progredir reconhecendo a negativi-dade específica de cada tecnologia. E uma forma de veri-ficar sua possível negatividade é recordando que os cos-tumes humanos extraem sua coerência de sua arcaica e perene significação biológica. Por isso, observar o com-portamento da natureza e aprender dela, de um modo re-flexivo e crítico aparece como um caminho útil na atual confusão midiático-cultural na qual o ruído prevalece sobre a razão e a quantidade sobre a qualidade, até o pon-to de que a atual proliferação de imagens midiáticas ten-de a desvalorizar aos sujeitos, que muitas vezes são me-nos chamativos e impressionantes que elas. é o caso das modelos publicitárias comparadas com as donas de casa comuns. Conceitos como biodiversidade, adaptação, exo-gamia ou mutação adaptativa podem ser extrapolados com proveito da biologia à paisagem tecnocultural con-

47 NT - leitura complementar e importante sobre o assunto é O

Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica, de Battista Mondin.

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Os paraísos icônicos

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temporânea. Isto é o que temos tentado fazer ao longo do presente livro.

E ao chegar ao final, torna-se evidente a constata-ção de que o mundo tecnológico necessita o complemen-to do mundo emocional. O homem não pode não pode viver sem emoções nem sentimentos, cujas representa-ções constituem precisamente a matéria prima da maior parte das indústrias culturais que manufaturam e difun-dem ficções audiovisuais, entretenimento e publicidade. Mas a análise mais superficial destes conteúdos revela, sem sobras de dúvidas, que existe um déficit emocional massivo na sociedade pós-industrial e informatizada e que a esta carência intenta aliviar-se artificialmente com textos, imagens e sensações inventadas que tratam de substituir a vida por uma pseudovida consoladora. De novo, a flor natural foi substituída pela flor de plástico enquanto a algaravia midiática trata inutilmente de miti-gar a solidão eletrônica dos cidadãos. Pois a maior parte das coisas passam dentro da cabeça das pessoas invés de passar no mundo real. Paradoxalmente, a era da comuni-cação tem-se revelado finalmente como a era da solidão, enquanto que a tão falada modernização traduziu-se para muita gente em marginalização.

Por isso há que se afirmar mais uma vez, no umbral do que se anuncia como século da RV, que o destino ra-dical do ser humano é o de interagir emocionalmente com o mundo vivente que o cerca e não com fantasmas que habitam dentro de sua cabeça.

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