O Espelho, a Pedra e a Flor - Narração, Personagem e Autoria entre Godard, Cortázar e Cocteau -...

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1 O Espelho, a Pedra e a Flor: Narração, Personagem e Autoria entre Godard, Cortázar e Cocteau Por Fábio Costa 1 Assegure-se de que esgotou tudo que se comunica pela imobilidade e pelo silêncio. Jean-Luc Godard, História(s) do Cinema, cap. 2B. A hora de partir soou pra mim, a pureza do espelho se consumará sem este personagem, visão de mim – mas ele levará a luz! – a noite! Stéphane Mallarmé, Igitur ou A Loucura de Elbehnon, p. 87. Uma cristalização na qual nada ficasse subsumido, mas onde um olho lúcido pudesse olhar pelo caleidoscópio e compreender a grande rosa multicolorida. Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, p. 537. Resumo O artigo se propõe a discutir as noções de narração, personagem e autoria a partir de um paralelo entre Historia(s) do Cinema (Histoire[s] Du Cinéma, 1988/1998), de Jean-Luc Godard, e O Jogo da Amarelinha (Rayuela, 1964), de Julio Cortázar, especificamente através do diálogo possível entre o autor/personagem Godard e o personagem/autor Morelli. Em ambos os casos, trata-se da construção de discursos metalinguísticos que questionam a própria narrativa (cinematográfica ou literária) por meio do desvelamento da relação entre o enunciado e o sujeito de enunciação na construção de um discurso narrativo, além de proporcionarem a composição de vozes autorais através da dissolução da noção de autor. A mediação desse diálogo será feita pelos mitos de Sísifo, Narciso e Orfeu, este último consoante à leitura de Jean Cocteau elaborada nos filmes Orfeu (Orphée, 1950) e O Testamento de Orfeu (Le Testament d'Orphée, 1959). 1 Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pelo Programa de Comunicação e Cultura Contemporânea (POSCOM), da Universidade Federal da Bahia.

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O Espelho, a Pedra e a Flor: Narração, Personagem e Autoria entre

Godard, Cortázar e Cocteau

Por Fábio Costa1

Assegure-se de que esgotou tudo que se comunica pela imobilidade e pelo silêncio. Jean-Luc Godard, História(s) do Cinema, cap. 2B.

A hora de partir soou pra mim, a pureza do espelho se consumará sem este personagem, visão de mim – mas ele levará a luz! – a noite! Stéphane Mallarmé, Igitur ou A Loucura de Elbehnon, p. 87.

Uma cristalização na qual nada ficasse subsumido, mas onde um olho lúcido pudesse olhar pelo caleidoscópio e compreender a grande rosa multicolorida. Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, p. 537.

Resumo

O artigo se propõe a discutir as noções de narração, personagem e autoria a partir de

um paralelo entre Historia(s) do Cinema (Histoire[s] Du Cinéma, 1988/1998), de Jean-Luc

Godard, e O Jogo da Amarelinha (Rayuela, 1964), de Julio Cortázar, especificamente através

do diálogo possível entre o autor/personagem Godard e o personagem/autor Morelli. Em

ambos os casos, trata-se da construção de discursos metalinguísticos que questionam a própria

narrativa (cinematográfica ou literária) por meio do desvelamento da relação entre o

enunciado e o sujeito de enunciação na construção de um discurso narrativo, além de

proporcionarem a composição de vozes autorais através da dissolução da noção de autor. A

mediação desse diálogo será feita pelos mitos de Sísifo, Narciso e Orfeu, este último

consoante à leitura de Jean Cocteau elaborada nos filmes Orfeu (Orphée, 1950) e O

Testamento de Orfeu (Le Testament d'Orphée, 1959).

1 Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pelo Programa de Comunicação e Cultura Contemporânea (POSCOM), da Universidade Federal da Bahia.

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Pré-História(s)

Como o Sísifo de Camus, que após tanto manuseio deixou as digitais gravadas na

pedra que fora condenado a rolar montanha acima, Jean-Luc Godard desafia, com a insolência

habitual, o espectador a empurrá-la ao longo do íngreme percurso de suas História(s) do

Cinema. Os tortuosos aclives, as escarpas estreitas, o ar rarefeito e a invisibilidade do próprio

percurso podem desencorajar os desavisados (ou os avisados em demasia), mas ainda que a

contemplação de suas paisagens efêmeras pareça durar o quanto se suporte da gravidade que

devolve ciclicamente a pedra a seu ponto de partida, o panorama que se descortina ao longo

da jornada pode compensar o esforço exigido.

Pode-se ainda questionar (como um Orfeu alertado sobre o impossível resgate da

amada recém morta) a validade deste esforço, do desgaste que em nada se converte, do

trabalho interminável sem revelação ou recompensa pelo inexorável retorno imposto por uma

condenação eterna. Afinal, ao cabo da jornada parecemos estar de volta ao ponto inicial, o

qual sugere, por princípio, um novo e eterno recomeço. Mas se observamos bem a pedra, a

silenciosa e onerosa companheira dessa árdua odisséia, percebemos nela algo como uma

chama interna a amolecer seu duro silêncio, tornando dúctil a superfície em que, no esforço

por movê-la, fizemos imprimir as marcas indeléveis de nossas próprias mãos. Ao

desempenharmos o Sísifo desta pedra nos tornamos, irreversivelmente, parte dela.

Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta à planície. É durante esse regresso, essa pausa, que Sísifo me interessa. (CAMUS, 2004, pp. 138-139)

História(s)

Ao assumir a tarefa de contar a história do cinema, Godard o fez ao seu modo:

anárquico, elíptico, arbitrário, enfático, gaguejante, múltiplo, num processo associativo que

requer do espectador um esforço de construção conjunta, como na montagem de um quebra

cabeças cujas peças não apenas se revelam à medida que o jogo avança, mas cujo desenho se

3

modifica a cada suposto encaixe. Ao mesmo tempo, essa narrativa fragmentada (ou

inexistente), cujos recursos expressivos (som e imagem) dissolvem a fronteira entre o factual

e o poético através de apelos sensoriais e cognitivos, é construída pela figura de um narrador

onisciente e quase onipresente, ao modo de quem rememora tendo como guia seu próprio

repertório pessoal e afetivo.

Enquanto personagem que não apenas testemunhou, mas co-escreveu a(s) historia(s)

que se propôs a contar, Godard parece folhear as páginas de um livro em branco2 e, como

num “filme de sua própria vida”, deixa que as memórias nelas se projetem. Sendo uma vida

tão intimamente ligada a fatos históricos que a antecederam e a ultrapassam, estes parecem

indissociáveis dela. Entretanto, o faz como quem questiona a própria atividade memorial e só

a legitima enquanto discurso poético, valendo-se de jogos semânticos que evidenciam os nós

de sentido nos quais sua(s) história(s) se entrecruza(m) e abre(m) infinitas possibilidades de

fabulação. Não há uma história a ser contada, mas múltiplas histórias a serem escritas, ou

criadas.

Pensar todas as histórias dos filmes que nunca foram feitos. Mais que as outras3.

E é como se ingressasse num grande caleidoscópio, feito de minúsculas e inúmeras

pedras, que o espectador precisa aceitar a tarefa que a esfinge lhe propõe: a de formular, por

conta própria, o enigma a que será submetido. A recepção de uma obra como História(s) do

Cinema não exige menos que uma confabulação contínua, não obstante o fato de um dos

interlocutores ocupar massivamente o lugar da enunciação. Mas é justo por não se tratar de

um discurso absoluto que se torna possível infiltrar, entre as peças que se movem

continuamente, nossos próprios fragmentos.

O lugar privilegiado como possível narrador da(s) história(s) em questão, identificado

a partir de um lugar de enunciação, é constantemente negado pelos próprios enunciados, cuja

natureza poética e polissêmica refrata a luz que delinearia a silhueta construída por um

discurso linear e denotativo. O que vemos, nesse aspecto, é a radicalização de um

“personagem de si próprio”, construído ao longo de sua obra, seja através dos alter egos

ficcionais em filmes como O Desprezo (Le Mépris, 1963), O Demônio das Onze Horas

(Pierrot Le Fou, 1965) e Tudo Vai Bem (Tout Va Bien, 1972), ou do personagem Godard em 2 Gesto e imagem recorrentes em JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro. 3 Citação comum a História(s) do Cinema: cap. 1A e JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro.

4

filmes ficcionais como Carmen de Godard (Prénom Carmen, 1983) e Nossa Musica (Notre

Musique, 2004), até chegar à fusão enunciação/enunciado que caracteriza a voz discursiva em

História(s) do Cinema e JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro (JLG/JLG: Autoportrait de

Décembre, 1995), contrapartida (pseudo) autobiográfica realizada em meio ao longo processo

de produção de História(s). Refletindo(se) (n)os estilhaços de um espelho inconclusivo,

Godard compõe sua(s) história(s) (e seu próprio rosto) na interseção entre autor e

personagem, como um Narciso que se esquiva ao mortífero fascínio da própria imagem

mantendo turvas as águas em que se contempla.

Entretanto, os fragmentos em que se escora o projeto estético godardiano não se

revelam apenas na desmistificação de enunciados, ou da enunciação. Desde Acossado (À Bout

de Souffle, 1959), Godard se empenha em desmascarar os códigos miméticos e a “ilusão de

realidade” da narrativa cinematográfica convencional, eviscerando a linguagem que a

entretece tanto a nível dramatúrgico quanto estilístico. Ao mesmo tempo, ao interromper o

espetáculo, parece dotar a superfície bidimensional da tela de uma perspectiva especular,

propondo ao espectador que construa, ele próprio, sua imagem, ou seu discurso.

Parafraseando Valéry4, para quem “o mais profundo é a pele”, para Godard o mais profundo é

a própria película.

Percurso de um Escritor-Cineasta, ou de um Cineasta-Escritor

A figura de Valéry, aliás, serve de ponte para uma argumentação sobre a abordagem

ostensivamente literária dada à obra de Godard nesse artigo. Em termos biográficos, pode-se

considerar uma grande influência da família materna, formada por intelectuais da alta

burguesia protestante (“pais e avós que liam muito, produziram alguns textos e eram amigos

de grandes escritores franceses” [COUTINHO, 2007, p. 260]): seu avô, um banqueiro, era

íntimo do próprio Valéry, tendo administrado seu patrimônio e executado seu testamento.

Conta-se que, na adolescência, Godard furtou livros deste acervo e os vendeu a

colecionadores, o que provocou seu banimento (e de seu pai, um suíço de origem modesta) do

convívio com a família materna. (COUTINHO, 2007)

4 Paul Valéry, ensaísta e poeta francês.

5

Mas é o manifesto de Alexandre Astruc Nascimento de uma Nova Vanguarda: a

“Caméra-Stylo”, publicado na revista L’Écran Français em 1948, o que melhor localiza a

ontogênese de um escritor-cineasta. Incorporadas pelos jovens críticos do Cahiers Du Cinéma

(Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette), as linhas proféticas do ensaio serviriam como

mola propulsora para as ambições estéticas do grupo que redefiniria o cinema francês (e

mundial) através Politique des Auteurs e da Nouvelle Vague:

O cinema está, simplesmente, a tornar-se num meio de expressão, como aconteceu com todas as artes antes dele, nomeadamente a pintura e o romance. Depois de ter sido sucessivamente uma atração de feira, um divertimento semelhante ao teatro de boulevard ou um meio de conservação das imagens de uma época, torna-se, pouco a pouco, uma linguagem. A saber, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir o seu pensamento, por mais abstrato que ele seja, ou traduzir as suas obsessões, exatamente como se passa hoje com o ensaio e o romance. É por isso que chamo essa época do cinema a câmera-caneta. Esta imagem tem um sentido bem preciso. Ela significa que o cinema separar-se-á, progressivamente, da tirania do visual, da imagem pela imagem, da comédia fácil, do concreto, para se tornar um meio de escrita tão flexível e sutil como o da linguagem escrita. (...) O autor escreve com a câmera como um escritor escreve com sua caneta. (ASTRUC, 1948, p. 321-322 e 324)

Segundo Coutinho (2007), ao contrário do ocorrido nos países anglo-saxônicos (mais

especificamente nos Estados Unidos), na França, a invenção do cinema logo despertou a

curiosidade e o interesse de intelectuais e artistas, principalmente escritores:

(...) esta tradição francesa não se refere somente ao fato de receber bem a novidade cinematográfica. Muito cedo, alguns escritores como Cocteau, Delluc, Malraux, etc, com livros publicados – alguns artistas visuais, também, como Fernand Léger, Marcel Duchamp, e Man Ray (...) – passaram a fazer mais do que isto: escrever críticas de cinema, fundar revistas, abrir cineclubes e depois dirigir longas-metragens. (COUTINHO, 2007, p. 27)

Godard integrou-se virtualmente a essa tradição, em que pese sua indefinição inicial por uma

área de atuação: “(...) escrever, eu sonhava no começo. Era uma idéia, mas não era séria. Eu

queria publicar um romance na Gallimard. Tentei: ‘Anoitece...’ Nem sequer terminei a

primeira frase. Então, quis ser pintor. Terminei por fazer cinema”. (apud COUTINHO, 2007,

p. 29)

De crítico a cineasta, a vocação literária sempre marcou a produção artística e

intelectual de Godard. Em entrevista a própria Cahiers Du Cinemá, em 1962, afirma que:

6

Escrever já era fazer cinema, pois entre escrever e filmar existe uma diferença quantitativa, não qualitativa. (...). Enquanto crítico, eu já me considerava um cineasta. Atualmente continuo a me considerar um crítico (...). Considero-me um ensaísta, faço ensaios sob a forma de romances, ou então romances sob a forma de ensaios: simplesmente, eu os filmo, em vez de escrevê-los. (apud SEDLMAYER e MACIEL, 2004, p. 87)

Coutinho (2007) afirma que Godard seguiu os passos de Robert Bresson, o qual,

segundo Truffaut e Bazin, “teria conseguido fazer cinema da melhor qualidade transpondo

alguns procedimentos literários para o cinema, realizando assim o que ele chamou

‘equivalências’, isto é, adaptando menos a narrativa, ou os personagens, mas a forma”. (p. 31)

Já em Acossado, é visível a aplicação de princípios de experimentação oriundos da literatura

na proposição de uma linguagem cinematográfica, como preconizado por Astruc. Da presença

obsedante de frases e palavras (em manchetes de jornais, cartazes de cinema) à referência a

obras literárias (mais notadamente Palmeiras Selvagens [The Wild Palms, 1939], de William

Faulkner), passando pela entrevista a um romancista (ironicamente interpretado por um

diretor de cinema, Jean-Pierre Melville) e em diálogos marcados por jogos, questionamentos e

repetições de palavras, é na correlação sintática e semântica com as experimentações de

âmbito literário que, em seu longa inaugural, Godard demonstra sua aptidão para “escrever

com a câmera”.

Coutinho (2007) retoma a figura de Valéry, tão marcante numa leitura biográfica das

premissas literárias da obra de Godard, para corroborar sua vocação fronteiriça, enquanto

escritor-cineasta, ou cineasta-escritor: “A literatura é, e não pode ser outra coisa, senão uma

espécie de extensão e de aplicação de certas propriedades da linguagem”, ou, de forma mais

promissora, considerando a literatura “como experimentação dos ‘possíveis da linguagem’”

(p. 18). A essas definições, acrescenta uma anedota, reportada pelo próprio Valéry,

envolvendo Mallarmé e o pintor Degas, quando este último, alegando ter boas idéias,

queixava-se da dificuldade de escrever um poema. “Não é com idéias que se fazem versos”,

retorquiu o poeta, “é com palavras”. (p. 18)

Sob a nomenclatura de Literatura Cinematográfica (subtítulo do livro publicado a

partir de sua tese de doutorado), Coutinho (2007) investiga procedimentos literários na

construção da obra de Godard em alguns de seus filmes, a saber: O Desprezo (1963);

Alphaville (Alphaville, une Étrange Aventure de Lemmy Caution, 1965); O Demônio das

Onze Horas (1965); e Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela (Deux ou Trois Choses que Je

7

Sais d’Elle, 1967). Utilizando a teoria desenvolvida por Marie Claire Ropars-Wuilleumier,

discípula de Maurice Blanchot (que, aplicada à literatura e ao cinema, entende a linguagem

como aquilo que “se afirma enquanto se nega5”), faz dela suas palavras ao afirmar que

(...) a cada vez, Godard é o primeiro a romper com ele mesmo... (...) E é na impotência aceita, na impossibilidade reconhecida de compreender e de dizer, que Godard diz e faz melhor compreender, e o mais diretamente. (p. 23) (...) em Godard, é do lado da imagem que a literatura aparece. É bastante paradoxal, mas é do lado da imagem que passa a literatura. É quase a encenação do livro. (apud COUTINHO, 2007, p. 260)

Para além das experimentações de linguagem que aproximam a literatura do cinema

(em seus efeitos de montagem, enquadramento, diálogos, ruídos, música, interpretação, cores,

movimentos de câmera), Coutinho aponta alguns elementos textuais para a definição de

Godard como um escritor-cineasta: a recorrência da intertextualidade literária, presente em

muitos de seus filmes na forma de citações explícitas ou implícitas, oralizadas (diálogos, voz

over, etc.) ou escritas (em elementos de cena ou na própria tela, à guisa ou não de intertítulos),

e em proporção superior às referências a obras cinematográficas, pictóricas ou musicais; a

reincidência de citações ao longo de diversos filmes, como num efeito de ressonância literária

interna em seu corpus fílmico; a transcriação de frases de escritores com os quais dialoga,

como um material que se renova pelas diferentes manipulações e contextualizações (ao estilo

de Jorge Luis Borges ou T. S. Eliot); além dos já referidos jogos e decomposições de palavras

(paronomásias, aliterações, etc.), dos quais os episódios das História(s) de Cinema constituem

um exemplo massivo. Logo no início do episódio 1A, Coutinho destaca um deles:

(...) vemos Godard manipulando uma máquina de escrever elétrica, escrevendo um texto e de vez em quando consultando um livro. Sua voz recita um texto que ele parece escrever. Cinema, escritura, diálogos de filmes, inscrições de frases e palavras no filme, e uma recitação impostada dos textos: como sempre procurou fazer nas suas fitas, aqui também ele revela o que irá fazer ao longo de toda a obra (...). Logo em seguida, ainda nos créditos, ele modula o nome da sua obra, Histoire(s) du Cinéma, da seguinte maneira:

5 Essa afirmação é a do homem como infinito poder de negação, poder de ser sempre igual ao que o ultrapassa, outro que não ele, diferente dele, é a insatisfação sem limites, a contestação que se tornou paixão e desejo de sacrifício, é, contra todas as formas de ser, a revolta em perigo, unida à busca de uma forma de ser capaz de pôr essa revolta em perigo e de relançá-la. (...) afirmação do poder infinito de negar e de viver até o fim esse poder. (...) o poder infinito de negar permanece poder de negar o infinito e escapa à tentação de se pôr fora de questão, de se petrificar, escolhendo-se como valor incontestável. (BLANCHOT apud COUTINHO, 2007, p.23)

8

his

toi toi toi

re

(...) o que sem seu brincar e jogar com as palavras seria simplesmente o título da obra, que se refere a uma história do cinema, com a paronomásia que ele cria, passa a ser, também, a história de você (toi), a sua (his, em inglês) história, quer dizer, a história do espectador, ou de qualquer pessoa que esteja assistindo à obra: Godard mais uma vez implica o espectador diretamente no que está fazendo. (COUTINHO, 2007, p. 263-264)

Regra(s) do Jogo

Praticante entusiasta de uma escrita sob constante reinvenção, o escritor argentino

Julio Cortázar é um dos maiores expoentes daquilo que se convencionou chamar “literatura

fantástica” – alcunha que, no entanto, acatava “por falta de melhor nome6”. Dentre as

influências e ressonâncias que deságuam no estilo deliberadamente metamórfico de Cortázar

(em que se detectam rumores de autores como Poe, Tchekhov, Hemingway, Kafka, Arlt,

Borges, Rimbaud, Mallarmé, Jarry, Valéry e Artaud7, para mencionar apenas os literários),

destacam-se as de duas escolas estéticas aparentemente contrárias, mas que, como na

composição salobra da qual resultam férteis manguezais, encontram no autor portenho um

estuário conciliador. Com o Surrealismo, corrente que propunha a escrita automática através

do fluxo livre da consciência (ou do inconsciente), compartilhava o reconhecimento da

realidade como fenômeno poético e onírico; com o Oulipo (acrônimo francês para Oficina de

Literatura Potencial), movimento que praticava uma escrita a partir de regras restritivas, o

fascínio pela engenharia do texto, o formalismo enquanto recurso estético que culmina na

noção da literatura como equação matemática ou, mais promissoramente, da escrita como um

jogo:

Os textos de Cortázar não são feitos de transbordamento metafórico, tampouco de estilhaçamento do significante, mas de distorções sutis do significado, de modulações delicadas na superfície do discurso. Se é pertinente comparar seu estilo ao improviso jazzístico, em analogia às performances de Charlie Parker e Miles Davis que tanto admirava, também se deve lembrar da referência às fugas bachianas, com seu rigor construtivo. (DAMAZIO, 2000, p. 18)

6 Citado por Damázio no ensaio O Poliedro Cortázar, Revista Cult nº 39, outubro de 2000. 7 Escritores de épocas, origens e estilos diversos. Idem.

9

Partindo de Cortázar, torna-se possível identificar um propósito compartilhado por

ambas as correntes estéticas (e éticas), embora de formas diametralmente opostas: a

minimização ou abolição da noção romântica de autor, seja pelo jorro mal coagulado da

escrita automática, fruto da supressão do sujeito consciente, ou pela imposição de regras

objetivas, tolhendo a ilusória liberdade da escrita e fazendo de sua prática a fusão entre a

planta baixa de uma armadilha e o desenho tático da fuga.

Marcada por esta aparente antinomia, a obra de Cortázar figura entre as mais

revolucionárias do século XX justo pela fluência com que transita entre o poético e o

reflexivo, o onírico e o matemático, o narrativo e o ensaístico. Entrelaçando diferentes

extratos discursivos como quem os sobrepõe em folhas de acetato, sua escrita revela e desvela

os graduais e infinitos mecanismos que compõe a tessitura do texto, da camada mais

elementar (a palavra) à mais complexa (a obra), numa perscrutação incansável de suas

unidades intermediárias (a frase, o parágrafo, o conto ou capitulo e o próprio livro), sendo a

fusão (ou a formulação) entre obra e vida a resultante pretendida desse trabalho inesgotável.

A experimentação literária que marca sua obra desde o primeiro livro de contos

(Bestiario, 1951) tem n’O Jogo da Amarelinha o ápice da ruptura com as convenções, sejam

de gênero, no tocante à estrutura tradicional da narrativa romanesca, ou discursivas, ao

questionar o lugar do próprio narrador ou mesmo a possibilidade de se narrar uma historia.

Tais rompimentos desmistificam um sujeito, oculto ou revelado, do qual a narração emana e

do qual o leitor demanda uma emissão contínua e organizada de signos, como um cego a

quem não restaria senão se deixar levar por uma voz cuja eufonia canônica assegura um

percurso supostamente confiável.

Construído numa estrutura modular que permite múltiplas leituras, O Jogo da

Amarelinha impõe ao leitor uma escolha inicial: a de uma leitura linear e assumidamente

parcial ou a de saltar (guiado por um mapa) a ordem dos capítulos - como as casas de um

tabuleiro ou, como o título indica, de um jogo de amarelinha. Obviamente, a existência de um

mapa pode por em questão a veracidade de uma escolha, embora o autor deixe em aberto a

possibilidade de uma leitura aleatória dos capítulos. Mas a radicalidade da experiência

linguística, narrativa, literária e humana da obra reside antes em sua enunciação e seus

enunciados. Entre a construção dos personagens e da trama e a própria estrutura digressiva do

romance, interpõem-se reflexões, ora sutis, ora incisivas, sobre a possibilidade e a pertinência

da própria narrativa em curso, ou de qualquer narrativa.

10

“Não há mensagens, há mensageiros, e isso é a mensagem8”.

Essa voz reflexiva, embora ressoe em todos os personagens (mais especificamente nos

membros do Clube da Serpente, uma confraria etílica, literária e filosófica a qual pertencem

os protagonistas), tem seu enodamento seminal na figura de Morelli, um escritor cultuado

pelos leitores/personagens justo por sua investigação e produção anti-narrativa, ou por uma

narrativa que deslegitima a posição privilegiada e tirânica do narrador, tida como mera

contrafação da posição passiva e não menos despótica do leitor, elementos, ambos, de uma

equação de mútua dependência que apenas artificializa e restringe os recursos poéticos da

produção literária e a faz descambar em convenções e clichês. A partir de suas anotações e de

trechos de suas obras, os membros do Clube da Serpente dialogam e refletem sobre a

impossibilidade daquilo que, aos olhos do leitor, os faz possíveis: os recursos expressivos da

linguagem literária e dos códigos e convenções de gênero.

Morelli procurava, em alguma parte, justificar suas incoerências narrativas, afirmando que a vida dos outros, tal como nos chega na chamada realidade, não é cinema mas sim fotografia, ou seja, não podemos apreender a ação, mas apenas os seus fragmentos eleaticamente recortados. (...) É por isso que nada havia de estranho no fato de ele falar de seus personagens da forma mais espasmódica imaginável; dar coerência a série de fotos para que se tornassem cinema (...) significaria rechear com literatura, presunções, hipóteses e invenções os intervalos entre uma e outra foto. (...) Todavia, por vezes, as linhas ausentes eram as mais importantes, as únicas que verdadeiramente contavam. A vaidade e a petulância de Morelli, nesse aspecto, não tinham limite. (CORTÁZAR, 2009, p. 536-537)

Voz e Autoria

Montagem, minha bela inquietação9.

Por suas trajetórias e estilos peculiares, Godard e Cortázar exemplificam aquilo que se

convencionou intitular de voz autoral. Curiosamente, nas obras mencionadas (e em suas obras

em geral) essa voz se afirma justamente no progressivo questionamento dos mecanismos e

8 O Jogo da Amarelinha, p. 457. 9 História(s) do Cinema, cap. 3B

11

recursos que possibilitam seu reconhecimento, ou seja, as convenções e códigos que permitem

que uma linguagem se desenvolva e se constitua como tal, bem como dos traços

característicos que indicam uma manipulação peculiar destes recursos. Por outro lado, as

obras diferem quanto às estratégias que viabilizam essa “afirmação pela negação”, tanto na

estruturação material quanto na construção do espectro narrativo e enunciativo.

Em Historia(s) do Cinema temos oito episódios sequenciados e, embora possamos

considerar a possibilidade de assistir aos episódios fora da ordem numerada, essa proposição

não é sugerida. A onipresença de um “autor-narrador-entrevistador-performático” define

centripetamente o campo de enunciação, produzindo um discurso cujo recorte remete

continuamente a uma persona constituída de elementos biográficos e estéticos, mas que nega

essa centralidade pela forma fragmentária e aparentemente anárquica de sua própria expressão

(aqui tomada não como “revelação do ser”, mas como aquilo que o inscreve10). Entretanto, o

conhecimento da obra prévia (e póstera) de Godard ou de sua história de vida não são

prerrogativas para a fruição da obra em questão. Obviamente, a complexidade sintática com

que este discurso se elabora exige conhecimento e experiências prévias com a linguagem

cinematográfica, além de certa disposição para explorar e subverter alguns de seus códigos. E

repertoriar aspectos filmográficos e tangencialmente biográficos do autor (principalmente

aqueles relacionados à sua atividade profissional) pode enriquecer, semanticamente, a

recepção da(s) História(s) do Cinema.

Já O Jogo da Amarelinha é composto de forma a permitir que o leitor decida sua

modalidade de leitura. Dividido em 3 partes (Do lado de lá; Do lado de cá; e De outros lados)

e 155 capítulos, tem no prefácio (intitulado Tabuleiro de Direção) um convite inusitado: “À

sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a

escolher uma das seguintes possibilidades:11”. A primeira respeita o leitor linear, que prefere

não alterar seus hábitos convencionais. Para esse leitor, entretanto, o autor afirma que o livro

se conclui no capítulo 56, sem maiores perdas ou remorsos. A segunda, mais condizente com

o título da obra e com a cumplicidade necessária para sua efetuação, oferece um mapa,

iniciado no capítulo 73, que orienta os saltos a serem dados na aventura que se inicia.

10 “(...) linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como ‘eu’ não é senão aquele que diz ‘eu’: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer ‘suportar’ a linguagem, quer dizer, para esgotá-la”. (BARTHES, 1988, p. 68) 11 O Jogo da Amarelinha, pág. 5.

12

Cortázar não se explicita como personagem, mas é possível identificar, além da voz

precipuamente reflexiva de Morelli, outro alter ego do autor: Horácio Oliveira, intelectual

argentino radicado na Paris dos anos 50, cujas ocupações principais são a leitura compulsiva,

as relações amorosas e a busca existencial, ora como flâneur pelas ruas da cidade, ora nas

reuniões do Clube da Serpente. Oliveira e Morelli compõem a persona autoral do próprio

Cortázar, fundindo características biográficas e discursivas, narrativas e ensaísticas, afetivas e

reflexivas.

Embora onipresente na tela em História(s) do Cinema, Godard parece brincar

continuamente com a posição privilegiada de narrador, ou enunciador, ou com a legitimidade

autoral de seus enunciados. Como num arranjo musical feito a partir de inúmeras vozes

(materializadas em trechos de obras cinematográficas, pictóricas, musicais e literárias), sua

orquestração alterna harmonizações e dissonâncias, alinhavos e rupturas, de forma a constituir

argumentativamente um discurso cujo fio condutor é sua própria voz, ora enfática, ora

trêmula. Assumindo radicalmente a posição de metteur en scène, sua condição autoral se

efetiva na organização de elementos na cena, o que inclui aspectos plásticos, narrativos e

discursivos. E ao colocar-se em cena e encenar o próprio ato de criação (no qual se explicita

seu método de bricoleur), torna-se evidente uma espécie de fratura discursiva, como uma

gagueira eloquente que revela o silêncio entre os enunciados, as elipses, o corte entre as

unidades (frames, sílabas, planos, palavras, sequências, orações) que, em última análise,

constituem a condição elementar da construção (sintagmática e semântica) da própria

linguagem.

Creio obscuramente que os elementos que aponto são um término da composição. O ponto de vista da química escolar se inverte. Quando a composição chega a seu limite extremo, o território do elementar se abre. Olhá-los, se for possível, sê-los. (CORTÁZAR, 2009, p. 491)

Alternando ou sobrepondo cenas de filmes, entrevistas, imagens fotográficas e

pictóricas, frases e palavras (estas últimas em voz-over ou legendas), Godard constrói um

caleidoscópio de signos em que os significantes deslocam-se continuamente ao longo de um

eixo paradigmático, como na exibição de um vasto arsenal cultural, uma compilação de vozes

alheias que lhe possibilita compor a sua, sendo esta a resultante do entrelace de ecos,

ressoantes ou dissonantes. Enfatizando a condição polissêmica dessa frágil tessitura, é

recorrente o recurso à repetição (de imagens, palavras ou frases), como na tentativa vacilante

13

de, ora endossando, ora bifurcando significados, construir o percurso sintagmático de

enunciação, do qual resultaria uma voz, o delineio de um rosto, a grafia de um nome, a

narração de uma história. Mas, assim como na paixão da ninfa Eco por Narciso, tendo esta,

por falar demais e querer dar sempre a última palavra, sido condenada a apenas repetir a

última palavra de seu interlocutor, a ecolalia estética de História(s) do Cinema produz um

falso delineio, uma farsa assumida e revelada pela própria encenação de sua fórmula. Afinal, à

condenação de Eco sobrevém a de Narciso, que a ela se juntou quando ambos definharam por

amor, ela por ele, ele pela própria imagem.

A história da beleza, em suma. Que não é ela própria senão uma pequena sucursal da mentira12.

A Teoria da Argumentação da Língua, desenvolvida pelo linguista francês Oswald

Ducrot a partir dos conceitos da Linguística Clássica de Sausurre e da Teoria da Enunciação

de Bakhtin, postula que “falar é construir e tentar impor aos outros uma espécie de apreensão

argumentativa de realidade” (DUCROT, 1988, p.14). O possível sujeito da linguagem seria

uma variável resultante da ressonância ou dissonância existente entre discursos alheios, que se

constitui pela posição que marca ao selecionar, harmonizando ou confrontando, fragmentos

desses discursos. A construção da argumentação localiza topograficamente o locutor como

emissor de um discurso em função de um receptor, instalando uma espécie de performance de

enunciação e orientando o sentido dos enunciados. Assim, se “a fala tem, entre suas funções, a

de se por em cena a si própria, de produzir, no momento em que se realiza, uma representação

de sua própria realização” (DUCROT, 1988, p.14), em História(s) do Cinema, Godard faz da

representação da enunciação seu próprio enunciado, performatizando e imortalizando o

processo que o constitui enquanto produtor de um discurso, uma voz autoral, um nome

próprio, aquele a quem cabe o direito (e o dever) de contar a(s) história(s) em questão por

evocar, ritualisticamente, as vozes que o antecederam e entornam.

Não há mensagens, há mensageiros... 13

12 História(s) do Cinema, cap. 1B. 13 O Jogo da Amarelinha, p. 457.

14

Luz e Sombra: o Espectro da Meia-Noite

Em JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro, obra contemporânea à produção da(s)

História(s) e que com ela(s) dialoga de maneira muito estreita, explicitando a partitura

pseudo-autobiográfica de ambas, é a própria voz de Godard (forçadamente cavernosa) que

sentencia sobre uma imagem reticulada em azul e negro, retrato provável de sua juventude:

“Ele possuía esperança, mas o rapaz não sabia que o que conta é saber por quem ele é

possuído, que poderes obscuros foram designados a exigir direitos sobre ele14”. Como numa

mallarmaica evocação das forças ancestrais que ameaçam soprar a vela com que Igitur

ilumina sua descida pelas escadas do espírito humano, assume a tarefa a ele destinada,

comprovando o fato de que pode “ocasionar a sombra soprando sobre a luz15”:

Sim, a noite chegou. Surge um outro mundo, duro, cínico, analfabeto, amnésico, girando sem motivo. Estendido, aplainado, como se a perspectiva tivesse sido suprimida, o ponto de fuga. E o mais estranho é que os mortos-vivos deste mundo são construídos sobre o mundo de antes16.

A luz sucumbe à sombra, é o império da meia-noite. Após o assassinato do rei da

Dinamarca, seu pai, pelo próprio irmão, seu tio (que além de assumir o trono a ele destinado

também desposa sua mãe), Hamlet convoca atores de uma trupe itinerante para encenar os

crimes cometidos. Quando a farsa chega ao seu ápice, revelando o que há “de podre no Estado

da Dinamarca17”, o monarca usurpador exige aos berros: “Acendam a luz! Depressa! 18” Mas

a luz está irreversivelmente manchada pela sombra, sua reação à cena o denuncia como autor

dos crimes encenados e, em última instância, da própria história encenada. A farsa faz a

verdade vir à tona, e vice-versa.

É porque, por uma última vez, a noite revive suas forças para vencer a luz19.

Ele fecha o livro – sopra a vela – com seu sopro que continha o acaso: e, cruzando os braços, deita-se sobre as cinzas de seus ancestrais20.

14 JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro. 15 Igitur, p. 75. 16 História(s) do Cinema, cap. 2B. 17 Hamlet, ato I, cena IV, p. 35. 18 Hamlet, ato III, cena II, p. 79. 19 História(s) do Cinema, cap. 1B. 20 Igitur, p. 95.

15

Assim como Godard, Cortázar/Morelli evoca certa ancestralidade impessoal como

residência legítima daquilo que de fato somos, ou do que estamos em via de nos tornar:

Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós (pensei nós e pensei bem, ou senti bem) durante milhares de anos, durante a idade do fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. (...) Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com ela pelo corredor -, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos. (CORTÁZAR, 2009, p. 527) 21

Provocar a sombra soprando a chama ou ao forçosamente protegê-la com a mão: em

jogo, a possibilidade de extinguir ou preservar a luz22, condicionando-a à expressiva

supremacia da sombra. Não há leitura sem luz (exceto para os que já a perderam). Entretanto,

assim como a letra impressa (no papel ou na tela) recupera o ruído negro sob o silêncio

luminoso da página, é da escuridão profunda que emerge a restauradora claridade das imagens

projetadas, como um espelho retroativo no qual se refletem vultos, fantasmas – ou espectros,

palavra cujo sentido de radiação luminosa convive e pressupõe o seu oposto, o de sombra que

a demarca.

Soou a hora – certamente vaticinada pelo livro – onde a visão importuna do personagem que perturbava a pureza do espelho quimérico no qual eu me aparecia, graças à luz, vai desaparecer, esse facho por mim levado: desaparecer como todos os outros personagens sumidos em tempos de tapeçaria, que apenas eram conservadas porque o acaso era negado pelo livro de magia, com o qual vou igualmente sumir. (MALLARMÉ, 1985, p. 101)

A meia-noite simboliza o instante em que as trevas, chegando ao seu ápice,

confrontam a alvorada, a luminosidade incipiente, que, por demarcação mútua, a ameaça e

fortalece. É nesse momento que surge o espectro do rei, conclamando vingança pela traição

que resultou em sua morte, instando o príncipe herdeiro à ação. Mas, assim como a chegada

da luz matutina, anunciada pelo canto do galo, afugenta o fantasma filial e dissipa a dimensão

21 “(...) o escritor não pode deixar de imitar um gesto anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de contrariá-las umas as outras, de modo a nunca se apoiar numa delas”. (BARTHES, 1988, p. 70) 22 “(graças à qual, talvez, perduram os caracteres do livro de magia)”. (MALLARMÉ, 1985, p. 75)

16

onírica do sono e da fantasia, também arrefece o ímpeto vingador, a clarividência obtida em

seu domínio.

Ser ou não ser – eis a questão. (...) Morrer – dormir – dormir! Talvez sonhar23.

... mas o rapaz não sabia que o que conta é saber por quem ele é possuído... 24

Em O Jogo da Amarelinha, a fratura narrativa se explicita não apenas na estrutura

fragmentada e salteada do romance, mas, sobretudo, nas intercalações reflexivas que

interrompem sua fluência, uma espécie de irônica auto-sabotagem, a revelação de que a busca

existencial de um personagem literário, aquilo que desejaria ou se esforçaria em ser, partindo

dos caracteres impessoais da escrita, do conjunto de signos em cuja constelação limitada se

pretende infinito, consiste, em última instância, naquilo que o escritor desejaria (ou

necessitaria) deixar de ser, resultando na fulminação de ambos, uma espécie de cópula estéril

entre criador e criatura da qual resulta uma vacância luminosa.

Partindo de uma nomenclatura foucaultiana, poderíamos ilustrar a identificação dos

alter egos cortazarianos com seu criador confrontando a função-autor com uma “função-

personagem”, numa equação em que o sinal de igualdade, substituído por um singelo “pisca-

pisca”, revela e oculta o anátema hamletiano. O brilho descontínuo desse “ser-ou-não-ser”

sugere, então, uma dupla intermitência: a da própria sentença e seu significado (em sua

expressiva e legível antinomia), e a da materialidade do suporte, que, ao revelar e ocultar o

significante, propicia aos termos da equação (autor e personagens) uma trégua conciliadora,

como na ancoragem movediça de um bateau ivre25.

N’O Jogo da Amarelinha, Morelli declara a falência do modelo romanesco, de seus

códigos e recursos, bem como da literatura como adorno estético do real, devendo esta, tanto

quanto possível, constituir “uma narrativa que atue como coagulante de vivências, como

catalisadora de emoções confusas e mal entendidas, e que inicia em primeiro lugar sobre

aquele que está escrevendo”. Entretanto, esta fórmula é precedida pela admissão de que,

embora parta “de uma rejeição da literatura”, “uma tentativa dessa natureza” constitui uma

“rejeição parcial, já que se apóia na palavra, mas que deve existir em cada operação que o

autor e o leitor empreendam” (CORTÁZAR, 2009, pág. 457). Essa impossibilidade de uma

23 Hamlet, ato III, cena I, pág. 67. 24 JLG/JLG: Auto-Retrato de Dezembro. 25 Título e imagem de poema de Arthur Rimbaud, poeta francês.

17

rejeição total da literatura (ou do literário, no sentido pejorativo) é reveladora de um impasse,

do conflito insolúvel entre vida e obra, entre autor e personagem, ou entre natureza e arte.

Na pureza da vida, arte e natureza só podem se contrapor harmonicamente. A arte é a florescência, a plenitude da natureza. A natureza só se torna divina pela ligação com a arte, em espécie distinta mas harmônica. (HÖLDERLIN, 1994, p. 82)

Oliveira, o alter ego existencial de Cortázar, é quem melhor ilustra essa antinomia

hamletiana (reeditada no Igitur de Mallarmé e em outros personagens cruciais da cultura

ocidental): em suas andanças pelas ruas de Paris, em seus encontros “ao acaso” com a Maga

(sua parceira amorosa mais frequente) ou nas reuniões do Clube da Serpente, é flagrante a

construção de um personagem que, embora recuse tanto as convenções sociais quanto

estéticas (uma de suas ocupações é coletar pedaços de barbante, latão e arame para

confeccionar “insignificantes” esculturas), tem essa recusa expressa por meio de extrema

sofisticação literária, sobretudo nos diálogos ou monólogos internos. As sentenças

morellianas parecem resvalar na impossível abolição da farsa encenada pela linguagem, uma

farsa necessária para a manutenção do próprio jogo (da literatura ou da amarelinha) e que

consiste em, a partir de regras e convenções cuja arbitrariedade se dilui num acordo tácito

entre emissor e receptor, tratá-las como inexistentes, como se o mundo que se criasse a partir

disso (incluindo céu, inferno e seus estágios intermediários) fosse crível por si próprio.

Quando se diz Helsinor, não se diz nada. Quando se diz Hamlet, então tudo é dito26.

O Espelho, a Pedra

Dizem-nos os livros santos que antes de partir em viagem, as filhas de Lot quiseram voltar-se uma última vez, e que se tornaram estátuas de sal. Ora, não se filma senão o passado, quer dizer, o que se passa, e são sais de prata que fixam a luz27.

Em Orfeu, epicentro de uma trilogia que inclui Sangue de um Poeta (Le Sang d'un

Poète, 1930) e O Testamento de Orfeu, Jean Cocteau resume suas múltiplas vocações de 26 Citação comum à História(s) do Cinema, cap. 3B e à Nossa Música. 27 História(s) do Cinema, cap. 3A.

18

poeta, dramaturgo e cineasta (além de romancista, designer, desenhista, ator, encenador e

ensaísta), numa inspirada releitura do mito grego sobre o trovador da Trácia que “encantava

até os animais com o som de sua lira28”. No filme de Cocteau, Orfeu é um poeta famoso,

cultuado pelo público e desprezado pelos poetas mais jovens por ter alcançado a consagração

em vida, como se sua voz poética se deslegitimasse em decorrência do sucesso. Testemunha

de um acidente cuja vítima, o jovem autor de um livro com todas as páginas em branco,

chegara bêbado em companhia de uma “princesa” ao “Café dos Poetas” (onde Orfeu circulava

em meio à indiferença dos demais), acaba envolvido numa trama que o coloca como suspeito

de assassinato.

Após o atropelo de Cégeste, o jovem “poeta do silêncio”, Orfeu é intimado pela

princesa a acompanhá-la como testemunha. Entra em seu carro e, no caminho, constata não

apenas que Cégeste está morto, mas que os motociclistas que o atropelaram são empregados

da tal princesa. Protesta, mas é imperativamente silenciado por ela, enquanto, pelo rádio do

automóvel, uma voz misteriosa profere frases enigmáticas. Levado à residência da princesa,

flagra sua passagem, de Cégeste e dos motociclistas através de um espelho, conclusão do

ritual de trespasse do poeta recém morto. Desmaia (com o rosto colado à superfície do

espelho) e desperta num lugar ermo com a face refletida em uma poça d’água, como um

Narciso inconsciente. O automóvel e o motorista, Heurtebise, são deixados pela princesa a

serviço de Orfeu; ele é conduzido até sua casa, onde sua esposa, Eurídice, desesperada, é

amparada por Aglaonice (proprietária do bar “As Bacantes”, onde trabalhava como garçonete)

e pelo inspetor de polícia. Ao chegar, Orfeu irrita-se e expulsa ambos, declarando estar

cansado demais para dar explicações. Heurtebise, após apresentar-se à Eurídice como aquele

que trouxe Orfeu de volta pra casa, a conforta e pede que confie no esposo.

Sintonizando o rádio do automóvel, Orfeu volta a receber as mensagens misteriosas,

frases aparentemente sem sentido, as quais, embora escutadas por Eurídice e Heurtebise,

apenas a Orfeu soam como potencialmente poéticas. Obcecado por reencontrar a princesa e

pelas frases que, proferidas por uma voz monocórdia e impessoal, lhe parecem uma

oportunidade de revivificar a sua própria, desconsidera os cuidados demandados por sua

esposa grávida e negligencia o fato de estar sendo acusado de homicídio.

As frases poéticas são transmitidas do mundo dos mortos: Cégeste, o jovem poeta

sacrificado, é o responsável pelas sentenças que encantam os ouvidos de Orfeu. Não mais que

um serviçal da própria Morte, seu personagem opaco e pouco expressivo parece incapaz de 28 Orfeu.

19

ser o autor de sentenças tão lapidares - senão atribuindo às palavras “sentença” e “lapidar” o

significado de “condenação” e “epitáfio”. Mas é em Orfeu, nos ouvidos privilegiados de um

poeta vivo, que estas mensagens ultrapassam a condição de “pétreos anátemas”, sendo então

devolvidas ao mundo dos vivos não apenas por que este lhes soube escutar, mas pelo valor

que lhes confere sua assinatura autoral.

Ironicamente, é a publicização destas frases pelo proprietário do “Café dos Poetas”, a

quem Orfeu entrega sua coleta radiofônica em seguida aos misteriosos acontecimentos, que o

sentencia: testemunhas identificam-nas como sendo as últimas escritas por Cégeste, entregues

pela princesa a um freqüentador do Café pouco antes de sua morte. Sendo Orfeu quem agora

assina as frases pertencentes ao jovem poeta, só a ele pode também caber a autoria do crime.

Narcisicamente obstinado a empurrar sua pedra de volta ao cume (cujas circunstâncias

lançaram ao mundo dos “mortos em vida”), Orfeu é então capturado numa armadilha: a

princesa, ou a própria Morte, é apaixonada por ele não apenas por ser quem melhor a canta,

mas por fundir as dimensões paradoxais que caracterizam a própria criação poética, e suas

consequências. Se para escrever os poemas que o consagraram Orfeu precisou “morrer”

(enquanto sujeito) para que a poesia (ou a linguagem) se fizesse possível, o que o levou a

consagração em vida, esta mesma consagração o matou enquanto poeta, pelo reflexo narcísico

do criador diante de sua obra. “Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai.

Olhe-se no espelho, por toda vida e verá a Morte trabalhando29”, lhe diz Heurtebise, num

alerta implícito sobre os perigos de um excessivo reconhecimento, ao menos por parte do

próprio poeta em relação a si mesmo, ou a sua obra.

E é justamente através de espelhos que a Orfeu é dada uma nova oportunidade. É

necessário matar este poeta consagrado, tão reconhecido, tão autor, para que sua voz se

renove, para que seu timbre recupere os laivos que, sendo próprios ao poeta, parecem

harmonizar as vozes de uma escuta universal, impessoal. O reflexo narcísico é então

substituído por uma visão que o ultrapassa, que vai além dele próprio - e que também

atravessa o próprio espelho: a contemplação de um “além da vida” onde repousam, numa

espécie de vibração mórbida, os mistérios da criação. Como na idílica alegoria das musas

inspiradoras, é colocando-se na posição de atenta escuta dessa voz impessoal, oriunda desse

“reino dos mortos” que é a própria linguagem, que o poeta renasce, vibrando como uma corda

tangida ao acaso por mãos invisíveis.

29 Orfeu.

20

Os poetas são aqueles que, cantando alegremente, experimentam o rastro dos deuses escondidos, mantêm-se nesse rastro e, assim, indicam aos mortais, seus irmãos, o caminho da mudança. Mas quem, entre os mortais, é capaz de descobrir tal rastro? É próprio dos traços serem, muitas vezes, imperceptíveis. São sempre o legado de uma atribuição apenas pressentida30.

É nesse contexto que Orfeu descobre-se também apaixonado pela princesa, ou pela

Morte. Quando Eurídice morre (nas mesmas circunstâncias que vitimaram a Cégeste, e como

parte do mesmo plano), Orfeu, sentindo-se culpado por descuidar-se da esposa por sua

obstinação em escutar as frases que o livrariam da “morte em vida” a que sua consagração o

condenara, deixa-se convencer por Heurtebise a descer ao “verdadeiro” mundo dos mortos

para resgatá-la.

Mas é a própria Morte a quem Orfeu deseja rever, a quem deseja unir-se.

Superando Caronte, o mítico barqueiro infernal que se encanta pelo som da lira e

atravessa Orfeu pelo Lete31 sem o tributo do esquecimento, Heurtebise conduz o poeta ao

longo de toda sua catábase32, a mítica jornada empreendida pelo herói no mundo dos mortos.

Quando chegam ao que parece ser o “escritório central” do reino ínfero, a Morte está sendo

julgada por suas ações, tão contrárias às leis que regem seu próprio domínio. Diante dos juízes

do além e do próprio Orfeu, admite seu amor por este. Enquanto aguardam a sentença, os

amantes têm um breve momento de enlace, no qual fazem juras de amor eterno. Nesse

intervalo, Heurtebise também é forçado pelos juízes a admitir, em presença de Eurídice, seus

sentimentos por ela, configurando assim uma dupla violação das leis infernais. A sentença dos

juízes restitui a vida a Orfeu e Eurídice, com a condição de que ele jamais volte a olhar seu

rosto, sob pena de perdê-la para sempre. Heurtebise solicita acompanhá-los para auxiliar o

casal no cumprimento da condição imposta, obtendo autorização sob severa vigilância.

No retorno ao mundo dos vivos, é visível a insatisfação de Orfeu. Desejoso por unir-se

a sua Morte, é agora um homem condenado a viver com uma mulher a quem já não ama (e a

quem talvez jamais tenha amado) e cuja vida depende da omissão do seu olhar. A própria

Eurídice, angustiada com a condenação imposta ao esposo, resolve despertá-lo à noite para

30 História(s) do Cinema, cap. 1B 31 “Lete, em grego ‘Léthe’, significa ‘esquecimento’. Era o único rio que se atravessava no retorno a esta vida”. (BRANDÃO, 1986, vol. I, p. 320) 32 “A respeito da katábasis, (...) sabe-se que esta configura o supremo rito iniciático: a catábase, a morte simbólica, é a condição indispensável para uma anábase, uma ‘subida’, uma escalada definitiva na busca da anagnórisis, do autoconhecimento, da transformação”. (BRANDÃO, 1987, vol. II, p. 114)

21

que ele a encare. Entretanto, apesar do costume de Orfeu de dormir de luz acesa, uma breve

queda de energia adia sua fulminação.

... por uma última vez, a noite revive suas forças... 33

Mas os espelhos tornam-se ainda mais mortíferos, haja vista a possibilidade de

refletirem um olhar distraído, o que nem mesmo o patético esforço de Heurtebise consegue

evitar. E ao entrar no automóvel onde Orfeu continua a obstinada perseguição da voz ao

mesmo tempo própria e impessoal de que carece sua poesia, Eurídice cruza com seu olhar no

espelho retrovisor, desaparecendo instantaneamente. Esse rápido olhar, resultante de um

movimento ao mesmo tempo para frente e para trás (como um verbo conjugado

simultaneamente no passado e no futuro), aciona em Eurídice sua já consumada condição de

fantasma.

A propósito desse olhar, deliberado ou distraído, Maurice Blanchot afirma que Orfeu

não quer Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo cotidiano, (...) a quer em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, (...) quer vê-la, não quando ela está visível, mas quando está invisível, e não com a intimidade de uma vida familiar mas com a estranheza do que exclui toda a intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua morte”. (BLANCHOT, 1987, p. 172)

Embora Blanchot e Cocteau, em suas leituras do mito, tenham interpretações (ou proponham

transcriações) diferentes do papel destinado a Eurídice (naquela, a musa impossível e por isso

inspiradora; nesta, um obstáculo ao desejo de Orfeu em desposar a própria morte) parece

legítimo afirmar que subsiste, em ambas, a noção de uma morte necessária, de um sacrifício

em nome da inspiração e da criação, desse eterno presente da criação que torna mortífero o

olhar que se lança para o futuro, sob a pena de desaparecimento, ou para o passado, escultor

serial de estátuas de sal.

Em seguida, uma multidão composta pelos freqüentadores do “Café dos Poetas” e do

bar “As Bacantes” apedreja a casa de Orfeu, acusando-o pelo desaparecimento de Cégeste.

Aos conselhos de Heurtebise para que tenha cuidado, responde:

33 História(s) do Cinema, cap. 1B.

22

Pedras! Poderá fazer uma estátua minha com elas! (...) O que o mármore pensa quando está sendo esculpido? Pensa “fui abatido, insultado, arruinado, perdido”. A vida está me esculpindo. Deixe-a terminar seu trabalho34.

Nesse momento, parece fundir-se em Orfeu o Narciso, que aspira à imortalidade

esculpida em mármore, e o Sísifo, tornado a própria pedra de sua condenação. Narcísifo, a

fusão entre o espelho e a pedra, da qual poderá resultar uma redenção, a redisposição

anagramática que, na língua portuguesa, iguala os caracteres que compõem as palavras

“destino” e “sentido”. E é desse jogo, anagramático, semântico, sintático, que resultam as

singulares florações que revivificam a linguagem, essa residência ancestral cujo jardim,

embora alimentado pelos mortos, só pode ser cultivado pelos vivos.

Em meio à confusão que se instala, Orfeu é morto acidentalmente por um disparo da

arma que Heurtebise lhe entregara pra que defendesse “sua propriedade”. Cumpre-se,

simbolicamente, a diasparagmós35, seu sacrifício e o estraçalhamento da voz monolítica de

uma “glória nacional”. O herói realiza então sua segunda descida ao reino dos mortos, dessa

vez nas condições previstas pelas regras infernais.

Ao reencontrar-se com sua amada, esta lhe assegura que ficarão juntos para sempre,

impondo a ele que a obedeça incondicionalmente e que não questione suas ações. E, por fim,

é a própria Morte quem, junto com Heurtebise, se sacrifica, violando novamente as regras do

além para que Orfeu e Eurídice possam retornar ao mundo dos vivos e, devidamente

esquecidos dos extraordinários acontecimentos, levem à frente suas vidas, ele como poeta, ela

como sua esposa e mãe de seu filho vindouro. Utilizando o recurso de progressão invertida,

Cocteau proporciona a Orfeu e Eurídice uma segunda anábase, cuidando, dessa vez, que as

águas do Lete cumpram sua função.

O cinema autoriza Orfeu a voltar-se sem fazer morrer Eurídice36.

34 Orfeu. 35 “Diasparagmós em grego do verbo diasparássein, ‘despedaçar’, era, pois, em termos de religião, o rito de dilaceramento da vítima sacrificial (touro, bode, corça...) viva ou ainda palpitante e a consumação imediata do sangue e da carne crua da mesma, isto é, a omofagia”. (BRANDÃO, 1986, vol. I, p. 137) 36 História(s) do Cinema, cap. 2A.

23

A Morte e Heurtebise, dimensões complementares de Eurídice e Orfeu na relação

entre o poeta e sua inspiração (ou sua práxis), tomam para si a condenação que lhe restitui a

“voz perdida”, o fio teso que leva não à saída, mas ao centro vazio do próprio labirinto e no

qual vibra a impessoalidade ancestral da linguagem, ou “a força que através do verde rastilho

impele a flor37”. Se o tomasse para si, a Morte não teria de Orfeu mais que o seu silêncio: o

silêncio daquilo que se consuma, do que é absoluto e onde, portanto, a arte, a criação, se torna

obsoleta, supérflua, desnecessária. Orfeu precisa sonhar e aspirar a sua morte: para continuar

cantando, é preciso que retorne à incompletude do mundo dos vivos.

Na dupla fulminação em que resulta a impessoalidade da linguagem, nessa possessão

póstuma que é a da escuta e da leitura (ou da recepção) daquilo que se diz ou escreve (ou se

projeta), e da qual o brevíssimo interregno que separa este quase simultâneo emissor/receptor

torna imperceptível sua duplicidade, é que surge a voz do poeta. E para que essa voz lhe

pertença é preciso que a escute como sendo a de un autre38, que se desmonte a farsa encenada

pela “verdade” do sujeito, ou do autor:

Eurídice: Você trabalha demais. Tente descansar.

Orfeu: Meus livros não se escrevem sozinhos!

Eurídice: Mas se escrevem!

Orfeu: Eu os ajudo... 39

No final do filme, é o olhar atônito de Cégeste, o jovem poeta, que testemunha a

Morte e Heurtebise sendo levados pelos próprios serviçais para um castigo não revelado, mas

que, segundo ambos, é pior do que “em qualquer outro lugar”, ou em qualquer outro mundo.

Estilhaços, Fragmentos

Oriundos da mitologia grega e particularmente aplicados às narrativas épicas e aos

dramas trágicos, os conceitos de katábasis e diasparagmós, podem servir como ferramentas

para desdobrar questões relativas à autoria, narrativa e personagem, ao menos no cotejo entre 37 Poema homônimo de Dylan Thomas, poeta galês. 38

“Je est un autre”, frase de Rimbaud. 39 Orfeu.

24

os autores e obras abordados. Relacionados a estágios efetivos ou metafóricos da jornada do

herói, indicam pontos de passagem, ou de trânsito, entre o “ser” e o “não ser”: na catábase, a

esfera cotidiana é abandonada, e o herói ingressa em outra dimensão, ou no mundo dos

mortos; na diasparagmós, o próprio corpo do herói é estraçalhado e sua integridade física,

condição mínima da individualidade, sucumbe ao chamado das origens, embrionária das

forças da criação e da destruição. O herói, para concluir sua trajetória e consumar sua

condição mítica, precisa não apenas transgredir a ordem, mas ter em seu corpo as marcas

dessa transgressão: precisa conhecer em vida o outro mundo e a ele retornar “feito em

pedaços”, como se o acréscimo de suas “partes” possibilitasse novos sentidos à composição

dos elementos primordiais.

... o território do elementar se abre. Olhá-los, se for possível, sê-los40.

Essa transgressão remonta ao mito de um dos avatares de Dioniso, de epíteto

“Zagreu”, considerado o antecessor divino de Orfeu. A seu respeito, conta Brandão:

Consoante o sincretismo órfico-dionisíaco, dos amores de Zeus e Perséfone nasceu o primeiro Dioniso, chamado mais comumente Zagreu. Preferido do pai dos deuses e dos homens, estava destinado a sucedê-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o contrário. Para proteger o filho dos ciúmes de sua esposa Hera, Zeus confiou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o esconderam nas florestas do Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro do jovem deus e encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. (...) os Titãs atraíram o pequenino Zagreu com brinquedos místicos (...) e espelho. De posse do filho de Zeus, os enviados de Hera fizeram-no em pedaços; cozinharam-lhe as carnes num cadeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram os homens (...). Na ‘atração, morte e cozimento’ de Zagreu há vários indícios de ritos iniciáticos. Diga-se, logo, que, sendo um deus, Dioniso propriamente não morre, pois que o mesmo renasce do próprio coração. (...) Destarte, a ‘morte’ de Dioniso nada mais é que uma catábase seguida, de imediato, de uma anábase. (BRANDÃO, 1987, Vol. II, p. 117 e 118)

Enquanto Dioniso retorna da morte para assumir a condição de Deus da embriaguez,

do vinho e do drama, a catábase de Orfeu é condição sine qua non para recuperar sua voz, ou

sua inspiração, através do resgate e perda da amada. Na versão mais recorrente do mito

original, Eurídice, já casada com Orfeu, é picada por uma cobra e morre, ao tentar fugir de um

pretendente. Munido de sua lira, Orfeu encanta os seres infernais e obtém de Hades e

Perséfone, senhores do subterrâneo, a permissão de regresso, com a já mencionada condição

40

O Jogo da Amarelinha, p. 491.

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de não olhar para Eurídice enquanto estivesse em seus domínios. Quando já bem próximo da

saída, Orfeu vacila e volta-se para confirmar que Eurídice o segue, violando assim o acordo.

Ela desaparece imediatamente. Após a perda definitiva da amada, Orfeu recusa todas as

mulheres que querem ocupar seu posto. Isso enfurece as Bacantes (ou Mênades41) que,

sentindo-se também desprezadas, estraçalham Orfeu e jogam sua cabeça num rio. Dizem que

a partir de então, sua música e sua poesia podem ser escutadas no canto dos pássaros, no som

do vento, no ruído das águas: a própria natureza incorpora a arte e os dons de Orfeu para

aprimorar seus atributos.

Em ambos os casos, trata-se de entidades relacionadas às artes. Em ambas, a catábase

e o despedaçamento constituem prerrogativas para que essa arte se torne possível, seja como

rito de origem ou de resgate.

Relacionando estes mitos às personas autorais de Godard e Cortázar (e considerando a

releitura operada por/em Cocteau) destaca-se uma promissora analogia entre as noções de

autor e obra. A catábase empreendida por aquele que se aventura pelo caminho da criação

artística, no qual o mundo dos mortos simboliza a ancestralidade da própria linguagem, o

“território do elementar”, as forças de criação e destruição, e da qual resulta a anulação do

sujeito ou dos traços excessivamente pessoais que o delineiam, ou seja, sua diasparagmós,

(sua morte ou, no sentido mítico original, seu despedaçamento), é uma prerrogativa da própria

obra: “A obra exige do escritor que ele perca toda a ‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar

de relacionar-se com o outro e consigo mesmo pela decisão que o faz ‘eu’, converta-se no

lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal”. (BLANCHOT, 1987, p. 50)

O sujeito desloca-se do substantivo para o adjetivo: ao invés daquele que age, e ao

qual se atribuem predicados, aquilo que “se sujeitou ao poder do mais forte42”. No caso em

questão, à própria linguagem.

Despedaçamento do autor, obra fragmentária: o espelho estilhaçado reflete e transige

ao intercâmbio ininterrupto que preserva as condições elementares do processo criativo,

adiando a captura, desmontando a armadilha:

41“A figura das mênades aparece na mitologia clássica unida, em primeiro lugar, ao deus Dioniso, já que, segundo a lenda mítica, as primeiras mênades foram as ninfas que o criaram, as quais seriam logo possuídas pelo deus, que lhes inspiraria uma loucura mística”. (PALACIOS, 2001, p. 36) 42 Dicionário Virtual Michaelis.

26

O espelho, a partir do qual, especulando, vemos o que somos e o que não somos, objeto muito comum em ritos iniciáticos, tem, entre muitas finalidades que se lhe atribuem, a de captar com a imagem, que nele se reflete, a alma do refletido. Olhando-se no espelho, Zagreu tornou-se presa fácil dos Titãs... (BRANDÃO, 1987, Vol. II, p. 119).

A Flor

A perspectiva foi o pecado original. Niépce e Lumière foram seus redentores43.

Em O Testamento de Orfeu44, último filme de Cocteau e encerramento da trilogia, ele

próprio assume a persona do poeta, desempenhando um personagem de si mesmo. Numa

prestação de contas de sua atividade artística, é conduzido por Cégeste, o jovem poeta de

“Orfeu”, ao mundo dos mortos, onde, por sua “inocência”, é julgado e condenado pela própria

Morte e Heurtebise a continuar vivendo “entre dois mundos”. Antes da sentença, é informado

de que a sobrevivência de Orfeu foi “uma miragem” e que “aquela mente divina morreu e

Eurídice voltou ao inferno45”. Quanto à Morte e Heurtebise, revela-se a condenação a qual se

submeteram no filme anterior: assumiram o lugar dos juízes.

Ao longo de sua catábase, Cocteau porta uma flor, flor esta que lhe foi dada por

Cégeste assim que os dois se encontraram. Essa flor o acompanha em toda sua empreitada,

silenciosa e cúmplice, embora despedaçada e reconstituída pelo próprio Cocteau, frustrado

por não conseguir retratá-la num quadro no qual, à sua revelia, pincelam-se os traços de seu

próprio rosto. No final, encena a própria morte (“os poetas não morrem, apenas fingem

morrer46”) e, ao retornar ao mundo dos vivos, cobre, momentaneamente, o rosto com a mão,

no gesto de quem, ao despertar ou vir à luz, deseja preservar um pouco do sonho ou da

escuridão da qual emerge:

Uma única e terrível certeza dominava esse instante de trânsito, dentro do sonho: saber que, inevitavelmente, essa expulsão continha o esquecimento total de toda maravilha prévia. (...) De repente, compreendo melhor o espantoso gesto do Adão de

43 História(s) do Cinema, cap. 3B. 44 Lançado em 1959, mesmo ano de Acossado, longa de estréia de Godard. 45 O Testamento de Orfeu. 46 O Testamento de Orfeu.

27

Masaccio47. Cobre o rosto para proteger sua visão, o que foi seu; guarda nessa pequena noite manual a última paisagem do seu paraíso. (CORTÁZAR, 2009, p. 582)

Abordado por policiais que lhe pedem seus documentos na estrada deserta onde

vagueia como um fantasma, Cocteau é resgatado por Cégeste, e os dois desaparecem. Ao

voltar-se para lhe restituir seus documentos (e talvez pegar um autógrafo, por sugestão do

colega de farda), o policial que o abordara surpreende-se com o sumiço do poeta e deixa cair

sua identificação: esta se transforma na flor, que é então varrida pela passagem de um carro

em alta velocidade.

Nos ensaios La Flor de Coleridge e El Sueño de Coleridge, Jorge Luis Borges,

alinhando-se ao pensamento de Valéry e Emerson48 e citando Shelley49, argumenta que “todos

os poemas do passado, do presente e do futuro, são episódios ou fragmentos de um só poema

infinito, erigido por todos os poetas do mundo”. (BORGES, 2005, p. 17) Para ilustrar essa

afirmação, conta a história do poema Kubla Khan, escrito por Coleridge50 após um sonho.

Segundo o poeta, os versos lhe chegavam praticamente prontos, cabendo-lhe apenas

transcrevê-los. A chegada inesperada de uma visita interrompeu o fluxo transcri(a)tivo, para

sua irreversível consternação:

(...) se bem retinha de um modo vago a forma geral da visão, tudo mais, salvo oito ou dez linhas soltas, havia desaparecido como as imagens na superfície de um rio em que se lança uma pedra, mas, ai de mim, sem a posterior restauração dessas últimas. (apud BORGES, 2005, p. 23 e 24)

O poema versa sobre o palácio construído por um imperador mongol na mítica cidade

de Xanadu. Borges, a partir de um compêndio sobre a literatura persa datado do século XIV,

mas publicado na Europa no século XIX - vinte anos depois da publicação do poema de

Coleridge -, alega que o palácio também havia sido construído após um sonho de Kubla

Khan. Com isso, conclui que outras versões do mesmo sonho podem ter sido ou vir a ser

materializadas, em formatos e linguagens diversificadas.

47 No episódio “4B” de História(s) do Cinema, há um frame no qual se vê, em close, a reprodução deste detalhe no quadro “Adão e Eva Expulsos do Paraíso” do pintor renascentista Masaccio (1401 – 1428), um dos pioneiros no uso da perspectiva na pintura. 48 Ralph Waldo Emerson, escritor, filósofo e poeta norte-americano. 49 Percy Bysshe Shelley, poeta inglês. 50 Samuel Taylor Coleridge, crítico, ensaísta e poeta inglês.

28

Orson Welles batizou de Xanadu a monumental residência de seu Cidadão Kane

(Citizen Kane, 1941). Em Cidades Invisíveis (Le Città Invisibili, 1972), Ítalo Calvino

expandiu ao exponencial infinito o vasto império de Kubla Khan. Tomando de empréstimo

uma citação de Coleridge atribuída a Borges (numa infidelidade autoral que repercute a

afirmação do personagem de Beckett mencionada por Foucault – “Que importa quem fala,

disse alguém, que importa quem fala51”) na qual provavelmente subsiste uma alusão ao

poema obtido das sendas oníricas, Godard encerra suas História(s) do Cinema alinhando-se a

uma tradição gestada na impessoalidade ancestral da criação e manifesta através dos códigos

ao mesmo tempo duráveis e voláteis das linguagens artísticas – ou da Arte, como uma súbita e

inextinguível floração sobre a morte:

Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e recebesse uma flor como prova de sua passagem, e se ao despertar encontrasse essa flor em suas mãos... o que dizer, então? 52

“Eu era esse homem53”, responde a voz do próprio Godard sobre as imagens

alternadas e fusionadas de seu rosto, do Estudo para um retrato de Van Gogh, de Francis

Bacon, e de uma flor – não um narciso, mas uma rosa, a face luminosa de Eurídice resgatada

do reino das sombras. A constelação momentânea do caleidoscópio reagrupando a rocha

pulverizada: Narcisiforfeu - subitamente, feliz.

Esse universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. (CAMUS, 2004, p. 141)

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51 FOUCAULT, 2002, p. 34. 52 História(s) do Cinema, cap. 4B e BORGES, 2005, p. 18. 53 História(s) do Cinema, cap. 4B.

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