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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO RAFAEL NUERNBERG LAUER O ESPORTE COMO MEIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO USO DE DROGAS: ANÁLISE DE UM DISCURSO Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIALCURSO DE MESTRADO

RAFAEL NUERNBERG LAUER

O ESPORTE COMO MEIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO USO DE DROGAS: ANÁLISE DE UM DISCURSO

Rio de Janeiro2009

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIALCURSO DE MESTRADO

RAFAEL NUERNBERG LAUER

O ESPORTE COMO MEIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO USO DE DROGAS: ANÁLISE DE UM DISCURSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Baeta Neves Flores

Rio de Janeiro2009

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Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

tese.

_______________________________ _____________

Assinatura Data

S---- Lauer, Rafael NuernbergO esporte como meio de prevenção e combate ao

uso de drogas: análise de um discurso / Rafael Nuernberg Lauer. Rio de Janeiro, 2009.

xi, ----- f.: il.Pós-Graduação em Psicologia Social –

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Educação e Humanidades, Instituto de Psicologia, 2009.

Orientador: Profo. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores

1. -------------------. 2. ----------------- . 3.--------------- –Dissertação. Rafael Nuernberg Lauer. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto dePsicologia, 2009 Título.

CDD: ---.-

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Rafael Nuernberg Lauer

O esporte como meio de prevenção e combate ao uso de drogas: análise de um discurso

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em________________________________________________________

Banca Examinadora: __________________________________________________

_______________________________________Profo. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores (Orientador)Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social - Uerj

_______________________________________Profª. Dr. Ariane Patrícia EwaldPrograma de Pós-Graduação em Psicologia Social - Uerj

_______________________________________Profª. Dr. Vera Lúcia de Menezes CostaPrograma de Pós-Graduação em Educação Física - UGF

_______________________________________Profo. Dr. Jeferson José Moebus Retondar (Suplente)Instituto de Educação Física e Desportos - Uerj

Rio de Janeiro2009

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DEDICATÓRIA

À família, pelo amor e apoio incomensurável que sempre me dedicaram.

Ao amor da minha vida, minha esposa Ana Gabriela de Mello Lauer, com quem escolhi perpetuar minha família.

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AGRADECIMENTOS

Ao Profo. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores, meu orientador, pela oportunidade,

generosidade, confiança e apoio dedicados em todo o meu processo de pós-graduação.

A Profª Dr. Ariane Patrícia Ewald, por sua valiosa e enriquecedora contribuição desde o

processo de qualificação até a conclusão de minha dissertação.

A Profª Dr. Vera Lúcia de Menezes Costa, por sua pronta aceitação e interesse em

participar deste momento de grande importância em minha vida.

Ao amigo e Profº Dr. Jeferson José Moebus Retondar, grande responsável e incentivador

de meu processo de iniciação científica, que sempre esteve solícito e disposto a me ajudar em

minha jornada.

A todos os funcionários do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, exemplos

de dedicação e trabalho em prol de nosso sucesso.

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela oportunidade.

A Faperj, pela fé depositada e o incentivo financeiro.

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EPÍGRAFE

Não vos aconselho o trabalho, mas a luta.

Não vos aconselho a paz, mas a vitória.

Seja o vosso trabalho uma luta.

Seja a vossa paz uma vitória!

(Nietzsche)

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RESUMO

LAUER. Rafael Nuernberg. O ESPORTE COMO MEIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO USO DE DROGAS: ANÁLISE DE UM DISCURSO. 2009. 141 f. DISSERTAÇÃO (PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL). UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, 2009.

A ideia de que drogas e esportes caminhem em sentidos opostos parece ser senso comum na sociedade brasileira: o esporte se associa à saúde, à cidadania e à liberdade; a droga à degradação, à violência e ao vício. A relação entre o esporte e a droga se resume, nesse sentido, em uma postura maniqueísta que parece advir da observação em separado destes dois fenômenose não da própria relação entre os mesmos. Apesar da existência de uma extensa bibliografia referente às temáticas da droga e do esporte, foi observada, conforme o levantamento da literatura pertinente, uma carência de pesquisas que abordem o uso do esporte como meio de prevenção e diminuição do consumo de drogas. O objetivo deste estudo foi analisar os fundamentos do discurso em prol do esporte enquanto instrumento capaz de combater e prevenir o uso de drogas. Para tanto, foram analisados os seguintes documentos: Política Nacional do Esporte; Política Nacional Sobre Drogas; Carta Brasileira de Prevenção Integrada da Área da Saúde na Perspectiva da Educação Física. A metodologia utilizada foi a da Análise do Discurso preconizada por Orlandi (2001). A interpretação dos dados se realizou segundo os fundamentos do campo interdisciplinar do Imaginário Social. Os resultados da pesquisa mostraram que a relação entre o esporte e a droga materializa um conflito de forças entre as atitudes prometeica e dionisíaca. De modo que o esporte, representando um instrumento de afirmação dos valores prometeicos, se opõe à droga, associada à dissociação destes valores por meio da manifestação dionisíaca.

Palavras-chave: Prática de esportes. Uso de drogas. Método preventivo.

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ABSTRACT

LAUER. Rafael Nuernberg. O ESPORTE COMO MEIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO USO DE DROGAS: ANÁLISE DE UM DISCURSO. 2009. 141 f. DISSERTAÇÃO (PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL). UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, 2009.

The idea that drugs and sports go in opposite directions seems to be common sense in Brazilian society: the sport is associated with health, citizenship and freedom, the degradation of drugs, violence and addiction. The relationship between sports and drugs is summarized in this sense, in a Manichean attitude that seems to result from the observation of these two separate phenomena and not the actual relationship between them. Despite the extensive literature relating to issues of drugs and sports, was seen as lifting the relevant literature, a lack of research that address the use of sport as a means of prevention and reduction of drug consumption. The objective of this research was to analyze the fundamentals of speech for the sport as a means of combating and preventing the use of drugs. Thus, we analyzed the following documents: the National Sports Policy, National Policy on Drugs; Brazilian Charter on the Prevention Integrated Area Health Education Physics in Perspective. The methodology used was the analysis of discourse advocated by Orlandi (2001). The interpretation of the data held on the grounds of the interdisciplinary field of social imaginary. The survey results showed that the relationship between sport and drug substance of a conflict between the forces and attitudes dionysiac promised. So that the sport, an instrument of affirmation of the values promised, as opposed to drugs, associated with the dissociation of these values through the dionysiac expression.

Keywords: Practice of sports. Use of drugs. Preventive method.

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SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO E QUESTÕES METODOLÓGICAS............................................... 10

I.I. Viver pelo esporte ou morrer pela droga .................................................. 10

I.II. Objetivo .................................................................................................... 16

I.III. Relevância ................................................................................................ 16

I.IV. Metodologia.............................................................................................. 17

II. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................ 20

II.I. Entre a Verdade e a aparência: o Imaginário Social................................. 20

II.II. Da vontade e da responsabilidade social .................................................. 28

II.III. Ética e moral no contexto da pós-modernidade ....................................... 41

II.IV. Esquecer e vir-a-ser: o espírito lúdico ..................................................... 47

II.V. O sagrado esporte e a profana droga ........................................................ 52

II.VI. Jogo e Significado.................................................................................... 62

II.VII. Do jogo ao esporte................................................................................... 70

II.VIII. Algumas particularidades do esporte ....................................................... 74

II.IX. Drogas e embriaguez ............................................................................... 77

II.X. Drogas e atualidade .................................................................................. 93

III. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS.................................................... 101

III.I. A Análise do Discurso na perspectiva de Orlandi.................................. 101

III.II. O objeto de estudo.................................................................................. 103

III.III. Análise do discurso................................................................................. 105

III.III.I. O Esporte como marca lingüística...................................................... 105

III.III.II. A droga como marca lingüística......................................................... 116

III.III.III. A prevenção como marca lingüística.................................................. 124

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 128

IV.I. Comentários e ponderações .................................................................... 128

V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ...................................................................... 132

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CAPÍTULO I

I. INTRODUÇÃO E QUESTÕES METODOLÓGICAS

I.I. Viver pelo esporte ou morrer pela droga

A ideia de que drogas e esportes1 caminhem em sentidos opostos parece ser senso comum

na sociedade brasileira: o esporte é o caminho da vida; a droga é o caminho da morte. O esporte

se associa à saúde, à cidadania e à liberdade; a droga à degradação, à violência e ao vício. Aquele

que se dedica ao esporte não se envolve com drogas; é um vencedor. Já um usuário de drogas

nunca terá sucesso nos esportes ou mesmo na vida; é um perdedor.

Em recente campanha publicitária idealizada pelo Escritório das Nações Unidas contra as

Drogas e o Crime (associação por si só já sintomática) e realizada durante os Jogos Pan-

americanos do Rio de Janeiro, divulgou-se a seguinte mensagem: “Use esporte. Não deixe a

droga controlar sua vida”. A oposição entre o esporte, aquele que promove o autocontrole, e a

droga, aquela que promove o descontrole, é aqui latente, apresentando de forma bem clara a ideia

de que pretendemos tratar no presente trabalho: o esporte como instrumento capaz de prevenir e

combater o uso de drogas.

Nesta linha de pensamento, é creditado ao esporte um poder intrínseco de levar para as

“coisas boas”, grupo no qual, sem sombra de dúvidas, as drogas não se incluem. De maneira

geral, poderíamos dizer que vigora no imaginário social a ideia de que os esportes, enquanto

fomentadores da moral e dos bons costumes, não combinam com o uso de drogas, inimigas

públicas número um. O que pode ser facilmente constatado com a simples observação de que o

número de benefícios oferecidos àquele que se dedica ao esporte só pode ser comparado ao sem

número de malefícios implacáveis à que está sujeito um usuário de drogas. Assim, ao colocarmos

lado a lado as noções de droga e de esporte que vigoram na sociedade contemporânea, nos

deparamos com um pensamento dicotômico que pode ser resumido mais ou menos da seguinte

forma: 1 Os termos drogas e esportes aqui utilizados não se fixam aos conceitos de droga e esporte, mas se abrem à polissemia na qual são empregados no senso comum pela sociedade brasileira.

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Esporte é saúde, é educação, é vida. Seus benefícios fisiológicos são amplamente

conhecidos e inegáveis. Seus objetivos exigem de um atleta perseverança, responsabilidade,

obediência, fazendo de seus praticantes exemplos de “boa conduta”. Sua prática cria laços de

amizade, congregando e sociabilizando aqueles que vivenciam juntos suas emoções. Enfim, por

se tratar de uma atividade eminentemente construtiva, já que requer um constante trabalho de

superação, o esporte é um caminho para a vitória.

A droga, por sua vez, é eminentemente destrutiva, depreciativa. Falar em droga é falar em

doença, em desvio, em morte. Inibidora da vontade, das potencialidades e dos talentos, a droga

trás em si a marca dos derrotados. A frase que diz “Droga é uma droga”, não deixa negar. Falar

em droga é falar em tudo aquilo que não “presta”, que faz mal. A droga incita a desobediência, ao

desregramento, a condutas deploráveis, desenlaça vínculos entre amigos e na família, opõem pais

contra filhos, irmãos contra irmãos.

Nesse contexto, o esporte aparece como um instrumento capaz de, a exemplo de um feixe

de lanterna, iluminar um caminho seguro e assim impedir que viajantes se percam nas trevas do

“mundo das drogas”. Contudo, contrárias a está ideia tão comum, as drogas, se escondendo nas

sombras do ofuscante esporte, não se dão por vencidas e, muitas vezes, vem à tona em plena luz

do espetáculo esportivo. E para dar prova não faltam exemplos que, explorados pelos próprios

defensores da moralidade esportiva, são tomados como “ervas-daninhas” em meio ao “jardim do

Éden”. São os “Maradonas” do esporte, que devem ser combatidos a todo custo, arrancados pela

raiz ou, em linguagem esportiva, punidos exemplarmente.

A relação entre o esporte e a droga se resume, nesse sentido, a uma postura maniqueísta

que opõe a “natureza” positiva do primeiro à “natureza” negativa do segundo. Postura que parece

advir da observação em separado destes dois fenômenos, e não da própria relação entre os

mesmos. O esporte representa o bem; a droga representa o mal. Logo, como a água e o óleo, não

se misturam. São de “naturezas” diferentes.

Pensamento demasiado simplista, é verdade, mas de uma eficácia inegável. E desconstruir

esta verdade requer o cuidado de, nas palavras de Nietzsche (2007), rebaixar a própria moral ao

mundo da aparência, da ilusão, da interpretação. Não aceitá-la como verdade em si, como coisa

dada, mas como construção social, pois “não existem fenômenos morais, apenas uma

interpretação moral dos fenômenos” (Nietzsche, 2005, p. 92).

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Cuidado imprescindível se lembrarmos que, como destaca Jimenéz (2005), a linguagem

muitas vezes impõe realidades e se serve de discursos homogeneizantes, validando pressupostos

que alcançam estatuto de verdade. Verdade esta que se projeta nas palavras - no caso, droga e

esporte - e as faz se reverterem em ações derivadas e justificadas por esta mesma verdade.

O que ocorre segundo Nietzsche (1974), é que a reputação, o nome, a validade, o peso e a

medida usual de uma coisa como que se aderem e se entrelaçam à coisa mesma e se tornam seu

próprio corpo. E assim, a aparência, pela crença nela depositada, acaba quase sempre por se

tornar em essência e a fazer efeito como essência.

No caso das drogas e do esporte, a ideia de que estes dois fenômenos não combinam

parece ser fundamentada nessa essência culturalmente adquirida. A fé no esporte enquanto

instrumento de prevenção e combate ao uso de drogas não se dá ao nível dos fenômenos em si,

mas da apropriação, em grande medida, moral dos fenômenos.

Segundo a moral vigente, as drogas e os esportes são isolados em extremos opostos não

porque não podem, mas porque não devem caminhar juntos. Em nosso atual contexto, hastear a

bandeira do esporte é declarar guerra às drogas. A um atleta usuário de drogas, caso queira

escapar da perseguição social, só resta a hipocrisia. No entanto, para aqueles que estão longe dos

holofotes da mídia, freqüentar um campo carinhosamente apelidado por “Maconhão”2

provavelmente não trará maiores problemas que um possível incidente de jogo ou, quem sabe,

uma “dura” policial. O que demonstra que não há nada intrínseco na prática esportiva que impeça

sua associação com o uso de drogas.

Em meu recente trabalho de monografia (Lauer, 2005), usuários de maconha relataram

que não apenas gostavam de realizar suas práticas esportivas sob o efeito desta droga como, na

maioria dos casos, até preferiam realizá-las embriagados. Os efeitos da maconha, disseram os

usuários, intensifica significativamente o prazer de se realizar uma atividade física, o que, ao

contrário do discurso de que a prática de esportes vai de contra ao uso de drogas, leva a uma

grande aproximação dessas duas atividades. Assim, no cotidiano destes usuários, a prática de

esportes se realiza sempre que possível associada ao uso de maconha.

Diante destes fatos, não há como não questionar a ideia de que os esportes são excelentes

meios de se evitar e inibir o uso de drogas. Afinal, se a combinação entre esportes e drogas é

2 Apelido carinhosamente outorgado a um campo de futebol situado na cidade do Rio de Janeiro.

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perfeitamente viável, o que será que ampara tal concepção maniqueísta que faz do esporte e da

droga fenômenos antagônicos?

Para compreendermos tal concepção, se faz necessário observar aquela confusão

procedimental que toma uma finalidade como a causa originária de um dado fenômeno. Algo

como acreditar que o olho foi feito para ver, que a mão foi feita para pegar, que os esportes são

atividades eminentemente saudáveis e educativas, que as drogas são muletas psicológicas, enfim,

que é na utilidade atribuída a uma coisa que se encontra também a razão de seu surgimento3.

Conhecer a utilidade de uma coisa não implica em conhecer a sua origem, isto é, a razão de ser

própria de algo não se encontra em suas causas finais. Todos os fins e todas as utilidades “são

apenas sinais de que uma vontade de potência se tornou senhora de algo menos poderoso e, a

partir de si, imprimiu-lhe o sentido de uma função” (Nietzsche, 1983, p. 308).

É atento a esta armadilha que Nietzsche (1990) afirma ser necessário, em qualquer gênero

de história, não confundir que a origem e a finalidade são pontos separados no todo. Pois uma vez

produzida uma coisa, esta se vê necessariamente submetida a potências que se utilizarão dela para

os mais diversos fins. De modo que todo o passado histórico de um determinado procedimento,

toda a história de sua utilização para os mais diversos fins se funde numa unidade sincrética

difícil de resolver, difícil de analisar e, sobretudo, absolutamente impossível de definir. O que

exige a necessidade de, caso se deseje analisar um procedimento histórico, se distinguir nele duas

partes: o que há de relativamente permanente, ou seja, o ato em si; e suas finalidades.

Os conceitos de droga e de esporte são, sem dúvida, dois grandes exemplos de como

sentidos os mais variados, podem, no decorrer do tempo, se agregarem em uma única e mesma

palavra. A pretensão à generalidade leva estes conceitos a concentrarem inúmeros significados e

assim adquirirem uma inevitável ambigüidade. O que, no intuito de não deixar escapar as

diferenças, acaba levando ao acréscimo de novas qualidades a estes mesmos conceitos, como, por

exemplo: legal ou ilegal, estimulante ou depressor ou alucinógeno (no caso das drogas); lazer ou

educativo ou desempenho (no caso do esporte).

O resultado é a formação de conceitos inflacionados, extremamente ambíguos e muitas

vezes contraditórios. Motivo pelo qual, nos dias de hoje, não se estranha que alguém

radicalmente contra o uso de “drogas” vá tranqüilamente (ou seja, sem nenhum “peso” na

consciência) a drogaria mais próxima de sua casa em busca de drogas que aliviem sua dor de 3 Tal ideia está intimamente associada à crença em um Deus criador do universo e de tudo o que nele há. Um Deus que atua como uma inteligência superior que nada cria em vão, mas sempre com um objetivo.

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cabeça, revertam seu estado de ânimo ou mesmo que ajudem a perder alguns “quilinhos”. Assim

também, quando ouvimos alguém falar da “importância de se praticar esportes”, fica a

interrogação: “mas o que será que ele quer dizer com a palavra esporte?” Será que se refere a

aulas de ginástica ou de musculação, a uma caminhada ou a uma corrida à beira mar, a uma

“pelada” entre amigos ou a uma partida de futebol válida por algum campeonato reconhecido

pela federação internacional, a prática de jogos institucionalizados no âmbito do amadorismo ou

do profissionalismo, enfim, à qual das infindáveis possibilidades para a qual a palavra esporte

pode ser apropriada?

Seria um erro tomar os fins para os quais são utilizados os esportes e as drogas como

manifestações de uma essência própria desses fenômenos. Até porque muitas das substâncias e

práticas ao qual se associam os conceitos de droga e de esporte já eram conhecidas e realizadas

muito antes da própria “invenção” das próprias palavras droga e esporte. O que, não

representando apenas um problema sem importância, revela que as atribuições e os significados

associados a estes dois fenômenos (droga e esporte) trazem a marca do contexto histórico e

cultural de uma época, tanto quanto, nos dias de hoje, seus usos e significados são caracterizados

e caracterizam nosso atual contexto.

É preciso se ter sempre o cuidado de não expandir livremente os conceitos de droga e de

esporte àquelas culturas e sociedades que, apesar de fazerem o uso de substâncias e práticas por

nós hoje conhecidas como drogas e esportes, atribuíam a estes significados específicos,

caracterizados por seus próprios contextos sociais e termos significantes. Conceitos utilizados na

atualidade não se aplicam livremente às épocas passadas, e vice-versa. Quando um conceito é

utilizado com um significado específico e com referência a um contexto específico, ele se faz

único. O uso continuado de um conceito é que acaba por lhe emprestar significados e aplicações

distintos, em maior ou menor grau associados a seu(s) uso(s) anterior(es).

A apreensão dos significados de um conceito e suas mudanças exige, nesse sentido, uma

atenta observação do contexto mais abrangente em que este conceito está inserido. No entanto,

para que não se caia no erro de se perder em meio a um emaranhado de significados, o contexto

em que um conceito está inserido precisa ser devidamente limitado. Pois a megalômana tentativa

de abarcar a todas as manifestações de um conceito termina sempre por não terminar, abraçada ao

infinito.

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No caso das drogas e dos esportes, se faz relevante notar que ambos, ao longo da história,

se associaram às mais variadas atividades, dentre as quais se incluem: atividades religiosas,

ritualísticas, festivas, lúdicas, higiênicas, entre outras, que creditaram ao uso de drogas e a prática

de esportes um status de fenômenos constantes, transversais e multiculturais da sociabilidade

humana. Sem, no entanto, entrar nesse mérito, deseja-se apenas destacar que, mediante a riqueza

desses fenômenos, um conceito jamais será capaz de abarcar suas infinitas possibilidades de

manifestação, seja em relação à história ou, muito menos, ao porvir desses.

Ressalte-se que, entretanto, apesar de apresentarem tal polissemia no imaginário social

majoritário, enquanto o conceito de droga se associa sobremaneira às temáticas da imoralidade

(violência, crime, dependência), o conceito de esporte se vincula quase que exclusivamente a

valores moralmente positivos (paz, educação, superação). E estes supostos ideológicos, sob a

égide da moral, se impõem sobre os demais e se afirmam como verdades que não admitem

refutação. Tais supostos retratam um imaginário social fortemente consolidado, isto é, que já tem

duração significativa e se dissemina por inúmeros segmentos sociais, sendo constantemente

renovado pelos meios de comunicação e difusão capazes de lhe garantir forte poder de

reprodução cultural.

Assim, a primeira vista, e talvez ainda a segunda e a terceira, fica difícil não consentir

com a ideia de que o esporte, que há muito vem sendo proclamado como um maravilhoso

instrumento para a promoção da saúde e da educação é um dos mais eficazes meios para prevenir

e combater o uso de drogas. Porém, indo um pouco mais além do aparentemente obvio, parece

que tal suposição não se sustenta em bases suficientemente sólidas. Este trabalho procura

justamente investigar as bases sobre as quais se firma este discurso a fim de “por à prova” sua

veracidade.

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I.II. Objetivo

Partindo da hipótese de que o discurso que afirma que o esporte é uma atividade capaz de

evitar e reduzir o consumo de drogas é baseado na crença, aparentemente presente no imaginário

social majoritário, de que o esporte, por ser uma atividade que conduz para as coisas “boas” e

distância das coisas “ruins”, dentre as quais certamente estão as drogas. A pesquisa objetiva

analisar os elementos simbólicos que vigoram no discurso em prol do esporte enquanto

instrumento capaz de combater e prevenir o uso de drogas.

Os objetivos específicos do trabalho são:

Analisar o discurso oficial do governo brasileiro a respeito das políticas públicas e

das diretrizes nacionais para as drogas e os esportes.

Analisar o discurso do Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) no que

diz respeito ao esporte e a educação física no contexto nacional.

I.III. Relevância

Apesar da existência de uma extensa bibliografia referente às temáticas da droga e do

esporte, parece haver, conforme o levantamento da literatura pertinente, uma carência de

pesquisas que abordem o uso do esporte como meio de prevenção e diminuição do uso de drogas.

Mesmo havendo uma série de documentos e campanhas midiáticas que versem a respeito dos

benefícios proporcionados pelo esporte, dentre os quais, muitas vezes, se destaca a “diminuição

da incidência do uso de drogas”, nenhum destes documentos propõe de que maneira o esporte

pode efetivamente atuar nesse “combate” ao uso de drogas.

Nesse sentido, parece que a ideia amplamente difundida de que o esporte é um

instrumento de prevenção e combate ao uso de drogas se baseia em hipóteses não estudadas nem

demonstradas, que, a nosso entendimento, versam a respeito do esporte e da droga ancoradas em

verdades socialmente instituídas. Uma das limitações encontradas por esta pesquisa foi

justamente a carência de documentos e pesquisas que indiquem os caminhos e meios pelos quais

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o esporte poderia ser utilizado como um instrumento antidrogas. Motivo que ensejou o

tratamento das questões da droga e do esporte de forma apartada, ou seja, analisaram-se os

documentos que tratam destes dois fenômenos isoladamente, para só depois reuni-los em análises

individuais e compará-los.

I.IV. Metodologia

A pesquisa em apresentação é qualitativa com uma interface metodológica e interpretativa

dos estudos do campo interdisciplinar do Imaginário Social.

Inicialmente, realizou-se uma revisão de literatura voltada à temática do Imaginário

Social, compreendido aqui pelas ideias de Friedrich Nietzsche, Gilbert Durand, Michel Maffesoli

e Gaston Bachelard, a fim de situar o campo de estudos pertinentes a este estudo.

Em um segundo momento, direcionou-se a revisão de literatura para o atual contexto

social, buscando situar as ideias de “tribalismo” de Michel Maffesoli e da “vida líquida” de

Zigmunt Bauman e suas considerações com relação a “ética pós-moderna”. Com esse intuito

utilizou-se também, em grande medida, da filosofia de Friedrich Nietzsche e de sua crítica

cultural.

Em um terceiro momento, o foco da revisão de literatura foi direcionado para a trama de

sentidos que fundamenta a prática de esportes e o uso de drogas, buscando compreender não

apenas o entorno que cerca, mobiliza, reage, produz, envolve e explora estes fenômenos, mas a

própria razão de ser do esporte e da droga, isto é, o que acontece no próprio ato da prática de

esportes e do uso de drogas que os leva a estarem presentes na história, na cultura e no imaginário

social dos mais variados povos e contextos sociais. Para tanto, realizou-se uma fundamentação

nos estudos de Johan Huizinga, Roger Caillois e Jeferson Retondar, no âmbito do esporte e do

jogo, e nas obras de Ernst Jünger, Aldous Huxley, Charles Baudelaire e Thomas De Quincey, no

âmbito da droga. Com isso, buscou-se recorrer a uma aparente universalidade e atemporalidade

destes fenômenos no intuito de compreender como as experiências de usar drogas e praticar

esportes se relacionam com o imaginário social vigente.

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Consumada a etapa de revisão de literatura, foi pesquisada na internet uma série de

documentos que tratam das questões das drogas e dos esportes a fim de que se pudesse selecionar

o material para a análise. Em princípio, o objetivo era o de encontrar documentos que versassem

a respeito do fenômeno esportivo enquanto instrumento de combate e prevenção ao uso de

drogas. Porém, devido à carência de materiais que relacionassem o fenômeno da prática esportiva

ao uso de drogas, tomou-se a decisão de fazer uso apenas de documentos que tratassem

especificamente de um ou de outro fenômeno. O principal critério foi o de buscar documentos

oficiais recentes de instituições nacionais caracterizados pelo objetivo de orientar as ações

governamentais e sociais no que diz respeito a como lidar com estes dois fenômenos de grande

importância e repercussão nacional.

Os documentos selecionados foram: Política Nacional do Esporte (Brasília, 2005);

Política Nacional sobre Drogas (Brasília, 2005); Carta Brasileira de Prevenção Integrada na Área

de Saúde na perspectiva da Educação Física (CONFEF, 2006).

Os dois primeiros documentos, que tratam das políticas nacionais do esporte e das drogas,

respectivamente, foram elaborados pelo governo federal, sendo que: a Política Nacional do

Esporte foi desenvolvida na II Conferência Nacional do Esporte, realizada em Brasília no ano de

2005, por iniciativa do Ministério do Esporte; e a Política Nacional sobre Drogas, concebida

também em Brasília e no ano de 2005, foi deliberada pelo Conselho Nacional Antidrogas

(CONAD), parte integrante do Gabinete de Segurança Institucional, em decorrência de um

processo de realinhamento da Política Nacional Antidrogas até então vigente.

A Carta Brasileira de Prevenção Integrada na Área de Saúde na perspectiva da Educação

Física foi elaborada com o objetivo de democratizar as conferências e debates realizados no

Fórum Nacional de Prevenção Integrada da Área de Saúde, promovido pelo Sistema

CONFEF/CREFs (Conselho Federal e Regionais de Educação Física) na cidade de Belo

Horizonte, nos dias 8 e 9 de setembro de 2005. A tarefa de construção e formatação do

documento foi delegada pelo Sistema CONFEF/CREFs ao recém falecido Prof. Dr. Manuel José

Gomes Tubino, então Presidente da Federação Internacional de Educação Física (FIEP), e

aprovada pelos participantes do Fórum na sessão de encerramento.

A metodologia utilizada foi a da Análise de Discurso desenvolvida por Orlandi (2001),

que objetiva identificar não apenas o conteúdo discursivo ou a subjacência à que este remete, mas

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o modo como foram produzidos os discursos em vias de se mapear os múltiplos sentidos que eles

evocam.

Em princípio, cada documento seria analisado separadamente para só depois se

estabelecerem relações e comparações entre as partes. No entanto, apesar de constituírem

documentos distintos, observou-se semelhança entre as marcas lingüísticas e os sentidos à que

estas conduziram, mesmo sendo diferentes discursos. Isso direcionou o tratamento e a

apresentação dos resultados da análise como se fossem de um único e mesmo documento. Não se

buscou com isso negar as diferenças, mas ressaltar a correspondência semântica entre as partes

analisadas.

Depois do tratamento da Análise do Discurso, os dados encontrados foram interpretados à

luz do referencial teórico e, quando pareceu necessário, foram incorporados novos referenciais de

análise para uma maior fundamentação interpretativa.

Por fim, teceram-se considerações e sugestões finais relativas ao problema inicialmente

proposto.

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CAPÍTULO II

II. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

II.I. Entre a Verdade e a aparência: o Imaginário Social

Segundo Nietzsche (1983), para existir socialmente e em rebanho, se faz necessário um

acordo de paz que se esforce para que a “guerra de todos contra todos” desapareça ou, pelo

menos, se minimize até um grau aceitável. Nesse sentido, a verdade surge como a descoberta de

uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, que é fixada como aquilo que

doravante deve ser “verdade”. Esta verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança

que deve sempre ser respeitado por todos, uma vez que se funda no consenso e na confiança

recíproca entre os membros de uma comunidade.

No entanto, diz Nietzsche (1983), a concepção desta verdade surge de nossa observação

que, costumeiramente inexata, toma um grupo de fenômenos como um só e o denomina um fato,

intercalando entre um fato e outro um espaço vazio, isolando-o. Criamos assim pressuposições

baseadas em uma seqüência de fatos e espaços vazios que, por engano, acreditamos poder dispor

em uma ordem de “espécies de fatos”, não isolando apenas o fato singular, mas também os

grupos de fatos pretensamente iguais. Falamos então de caracteres iguais, de fatos iguais, apesar

de não haver nem um nem outro.

A palavra e o conceito são os fundamentos mais explícitos que nos levam a acreditar

nesse isolamento de grupos e ações. Através deles não nos limitamos a designar as coisas,

pensamos mesmo captar originalmente o “verdadeiro” nelas. Palavras e conceitos, segundo

Nietzsche (1983), nos induzem a pensar as coisas mais simples do que são, umas separadas das

outras, indivisíveis, cada uma sendo em e para si mesma. As palavras tornam-se conceitos

quando não devem mais servir como recordação para a vivência primeira, individualizada e

única, à qual devem seu surgimento, e, ao mesmo tempo, tem de servir a um sem número de

casos mais ou menos semelhantes, porém, tomados rigorosamente, nunca iguais.

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Apesar de acreditarmos saber algo das coisas mesmas, não sabemos nada de uma

qualidade essencial, seja ela qual for. Sabemos apenas de numerosas ações individualizadas e

desiguais que igualamos pelo abandono do desigual e que chamamos por essência. Mas não

possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que, de forma alguma, correspondem às

entidades de origem. Esquecemos que é assim que se passa: mentimos de maneira designada,

inconscientemente e segundo hábitos seculares. Sendo justamente por esta inconsciência, por este

esquecimento, que chegamos ao sentimento da verdade.

Nesse sentido, as verdades são apenas ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas

que, com o passar do tempo, se tornam gastas e sem força sensível, como moedas que perderam

sua efígie e agora só valem como metal, e não mais como moedas. Não passam, portanto, de:

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas, poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias (Nietzsche, 1983, p. 48).

No entanto, como bem lembra Nietzsche (1983), apesar de justificar, está obrigação que a

comunidade possui de, para existir, ter de estabelecer “verdades”, isto é, de ter que mentir

segundo uma convenção sólida e em rebanho, não nos diz de onde provém o impulso mesmo à

verdade. Pois conhecer a fragilidade estrutural da verdade não revela nada que indique a origem

de sua força e efetividade.

Segundo Lévi-Strauss (1989), o uso de termos na linguagem se dá em função dos

interesses de cada sociedade em particular que, de acordo principalmente com suas necessidades

e interesses intelectuais, e também com suas necessidades e utilidades práticas, introduz um

princípio de ordem no universo. Princípio este que se dá por intermédio do agrupamento de

coisas e seres, estabelecendo uma classificação que, qualquer que seja, possui uma virtude

própria em relação à ausência de classificação: “Toda classificação é superior ao caos” (p. 36).

A exigência de ordem, diz Lévi-Strauss (1989), está na base de qualquer pensamento, pois

este pode suportar as inevitáveis armadilhas da dúvida e da derrota, mas nunca a desordem. Há

no pensamento uma exigência de determinismo imperiosa e intransigente que procura reduzir a

forma caótica de perceber a uma ordenação, mesmo que apenas uma classificação ao nível das

propriedades sensíveis.

Esta exigência de ordem aparece de forma esclarecedora em alguns mitos que versam a

respeito da criação do universo. Nesses, antes da criação do mundo, só havia o caos, isto é, a

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indiferenciação, a confusão absoluta. A criação se dá exatamente a partir do momento em que

ocorre uma ordenação, uma classificação. O livro do Gênese é um verdadeiro compêndio que

descreve nos mínimos detalhes este processo, que principia com a separação-criação divina dos

céus e da terra, da luz e das trevas, e continua com a criação de todos os seres vivos até, enfim, o

homem. A partir de então é o próprio homem quem se faz o criador, nomeando os seres,

constituindo e multiplicando os povos (que são devidamente ordenados em enormes cronologias)

e expandindo seu domínio pelo mundo.

A criação divina é, nesse sentido, sinônimo de ordenação. Para criar o mundo, Deus deu

ordem ao caos. E o homem, à sua imagem e semelhança, cria seu mundo por meio da ordenação

de tudo aquilo que o pensamento é capaz identificar no caos da percepção. Como disse Eliade

(1992), trabalhando a terra desértica, o homem repete o ato divino e organiza o caos, dando-lhe

uma estrutura, formas e normas. Nascem assim as coisas, e dá-se a cada coisa seu lugar.

Segundo Eliade (1992), nada pode começar, nada pode se fazer, se não há uma orientação

prévia. Nenhum “mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço

profano” (p.36). Para que ocorra um ato de criação é necessário que, antes, se opere uma ruptura

na homogeneidade, é preciso que seja descoberto um “ponto fixo”, um “centro”, a partir do qual

se torna possível se orientar no mundo caótico. O sagrado se caracteriza justamente por ser esta

referência absoluta a partir do qual se estabelece a ordem do mundo e se faz possível viver

realmente.

Nesse sentido, pode-se dizer que a verdade está para o pensamento assim como o sagrado

está para o homem religioso, ou seja, ela funda um “mundo intelectual”, criando referências no

caos da psique. A verdade é uma espécie de “firme fundamento” sobre o qual se estrutura o

pensamento. É por isso que a criação divina não colocou o homem em um lugar qualquer do

espaço, mas no Éden, um jardim paradisíaco na qual o homem podia viver sem problemas, livre

das escolhas das quais dependia sua felicidade ou infelicidade. O Éden é a antítese do caos, nele

tudo vive na mais perfeita ordem: “toda árvore (é) agradável à vista e boa para (ser) comida”

(Gêneses, cap., ver. , p. 7). Aquele que vive no Éden vive assim na “serena alegria despreocupada

da ignorância paradisíaca” (Bauman, 2003, p. 15), aquele estado de felicidade primitiva que

antecede a perda da inocência.

No Éden a “verdade” se encontra em sua forma mais “pura”. Porque se a verdade é a

antítese do caos, ela não pode existir como “coisa em si”, mas apenas pela fé nela depositada.

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Afinal, a ordem precisa ser sempre descoberta, inventada ou mesmo imposta sobre o caos, nunca

existindo por si mesma. Mas, quando imersa em um estado de inocência, na ingenuidade da fé, a

verdade não quer mais conhecer suas possíveis causas nem se acredita efeito de nada, sua única

preocupação é para com sua própria efetividade.

A busca da “verdade” que advêm de um raciocínio lógico, em sua intenção de encontrar

uma essência, uma verdade absoluta, uma “coisa em si”, tem de se pautar no tênue fio de

conceitos abstratos. O que a leva a se distanciar cada vez mais do vivido. Pois, ao buscar uma

ordem absoluta, a verdade racional se afasta cada vez mais da própria vida, que não suporta uma

ordem absoluta.

Para se afirmar enquanto “firme fundamento”, a verdade tem de estar acima das coisas

humanas, deve ser divina, advir de um poder incontestável, ser sagrada. Uma verdade racional,

por sua própria natureza, é sempre contestável. Já uma verdade sagrada não exige provas ou

explicações: ou ela é ou ela não é uma verdade. A verdade sagrada aceita a “vida como ela é”, ou

seja, não rejeita em sua ordem a própria desordem.

Como não poderia deixar de ser, portanto, no centro do paraíso está a árvore da sabedoria,

a árvore do bem e do mal. Aquele que quiser permanecer no paraíso deve se manter indiferente à

natureza daquilo que o faz paradisíaco, sem tentar compreender os “porquês” nem muito menos

tomar para si a responsabilidade de sua própria felicidade. Porque quem da árvore do

conhecimento comer o fruto terá seus olhos abertos pela perda da inocência. E jamais poderá

reviver a dádiva que só pôde usufruir em seu estado de inocência.

A verdade está, nesse sentido, inseparavelmente unida à inocência ou, na forma de um

desejo de descobrir um caminho de volta ao estado de inocência, ao desejo de (re)encontrar o

paraíso (ou a “verdade”). Ao comer do fruto proibido e perder sua inocência, o homem acaba

acreditando que, não se esquecendo de sua perda e permanecendo firme em sua busca, poderá

reencontrar seu paraíso. Porém ele não se dá conta de que a inocência só é inocência justamente

por ser um estado de espírito ignorante de si mesmo, isto é, alheio a sua própria condição. E não

percebe que a decisão de se manter fiel à memória de sua perda é contraditória ao próprio desejo

de voltar ao estado de inocência, pois sua lembrança o prende a consciência de não estar mais no

paraíso.

Aquele que procura a “verdade em si” procura no fundo a um paraíso perdido, porque

aquele que vive “em verdade” não está preocupado com ela, mas apenas permanece nela. E se em

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algum momento é dado ao homem voltar ao estado da inocência, é somente por meio do

esquecimento de sua própria condição, e nunca pela fidelidade a está mesma condição. Porque a

inocência é sempre ingenuidade ou esquecimento, isto é, ausência de ciência ou perda de

“consciência”.

Lispector (1998) faz uma belíssima descrição dessa necessidade de viver em inocência, de

ser ingênuo perante a própria vida.

Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas superficialmente. Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto. O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum fervor o que era o meu “mal” ( p. 32).

Há em nós uma propensão invencível de nos deixarmos enganar e a ficarmos como que

enfeitiçados de felicidade diante do disfarce e da aparência. Como bons mentirosos, precisamos

“mentir” para nós mesmos até que nos esqueçamos de nossa própria mentira, que então ganha

força e se efetiva como verdade. Propensão que, nas palavras de Bachelard (1991), se alimenta da

morte, aquela que “coloca uma máscara sobre o rosto vivo” (p. 173.). “A morte”, diz o autor, “é

máscara absoluta”, que se pinta tão mais bela quanto mais forte o cheiro da terra, assim como as

mais belas miragens acompanham as mais áridas paisagens.

Assim, apesar da aparente fragilidade da verdade, sem ela, diz Nietzsche (1983), a vida

torna-se totalmente insuportável. E mesmo quando somos subitamente acordados em meio ao

sonho para a consciência de que estamos sonhando, ainda temos, assim como um sonâmbulo tem

de continuar sonhando para não desabar, de continuar sonhando para não sucumbir. Porque a

aparência não é simplesmente o contrário de alguma essência. Tudo o que se sabe dizer de

qualquer essência é, no fim, apenas os predicados de sua aparência. A aparência é o próprio

eficiente e vivente, que de tão longe que vai na zombaria de si mesma leva-nos a crer que tudo é

aparência, dança de espíritos e nada mais. E mesmo aquele que se acredita um “conhecedor”

dessas verdades, nem por isso deixa de dançar a sua própria dança.

As imagens agradáveis e amistosas, assim como as sérias, sombrias e tristes que cada um

de nós experimenta dentro de si com aquela onicompreensão desfilam à nossa frente não apenas

como um jogo de sombras, pois as pessoas vivem, sofrem e se alegram com tais cenas. Foi nesse

sentido que Cassirer (…) caracterizou o homem como um animal symbolicum, que vive não

apenas em mundo físico, mas em meio às emoções imaginárias, carregadas de esperanças e

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temores, de ilusões e desilusões, de fantasias e sonhos. Os homens, diz o autor, vivem em um

universo simbólico no qual os fios da linguagem, da religião, das artes, dos mitos, dos ritos,

tecem uma rede simbólica que constitui a experiência humana.

Como disse Chevalier (2002): “Vivemos num mundo de símbolos - um mundo de

símbolos vive em nós” (p. XII). Só conhecemos o mundo tal como ele nos parece por intermédio

dos símbolos. Os símbolos não são simples representações, são verdadeiras realizações do

mundo. Eles não representam uma realidade, eles fundam uma realidade. Se, como dissemos

anteriormente, um mundo precisa sempre ser fundado por intermédio da organização do caos,

podemos dizer que os símbolos são como estacas que fixam a vida imaginária à vida perceptiva,

originando um ponto zero, um centro a partir do qual se dá a fundação do mundo4. O simbolismo

é assim:

Um dado imediato da consciência total, isto é, do homem que se descobre a si mesmo como tal, do homem que toma consciência de sua posição no universo; essas descobertas primordiais estão ligadas de modo tão orgânico ao seu drama, que o próprio simbolismo determina tanto a atividade de seu subconsciente como as mais nobres expressões de sua vida espiritual (Eliade, 47, apud Chevalier, 2002, p. xxiii).

Através de uma experiência cosmológica, os símbolos realizam uma revelação existencial

do homem a si próprio. Os símbolos se relacionam a uma experiência totalizante, da qual não

podemos apreender o valor através de uma análise lógica e fragmentadora. Diferente da lógica

conceitual, a lógica “simbólica” pressupõe um princípio de inclusão, de solidariedade. Um

símbolo só pode ser compreendido enquanto um microcosmo, um mundo total. No cerne de uma

imagem, os símbolos condensam toda uma experiência espiritual, transcendendo lugares e

tempos, situações individuais e circunstâncias contingentes, e assim solidarizam realidades

aparentemente as mais heterogêniais relacionando-as a uma realidade mais profunda.

Como disse Chevalier (2002), às forças centrífugas do psiquismo, que o levariam a se

dispersar numa multiplicidade de sensações e emoções, o símbolo impõe uma força centrípeta

capaz de estabelecer um centro ao qual o múltiplo se referencia e onde encontra uma unicidade.

A percepção de um símbolo situa-nos, nesse sentido, dentro de um universo espiritual próprio.

Pois os símbolos condensam a experiência total do homem, atando-o ao mundo de maneira que 4 Vale lembrar a conceituação de identidade elaborada por Froom (1968), para quem o “eu” é como um centroorganizador ativo da estrutura de todas as atividades, reais e potenciais, de cada um de nós. A identidade do “eu” refere-se à categoria de ser, de maneira que eu sou “eu” apenas na medida em que estou vivo, interessado, relacionado e ativo.

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este não se sinta um estranho no universo, mas situado numa imensa rede de relações. E aquele

que percebe a relação simbólica encontra-se na posição de centro do universo.

Este universo simbólico é o lugar em que habitamos. Não conhecemos um “mundo” senão

por ele. Apesar da sua impalpabilidade, ele é tão concreto quanto a nossa própria noção de

mundo. Nele estamos em casa - seja ela agradável ou não –, e nele viveremos por toda a nossa

vida. Mas isso não trás em si uma limitação, já que sua natureza passeia pela efusividade do

etéreo tão habilmente quanto pela imobilidade das rochas. Entre a memória e o esquecimento, o

trauma e a felicidade, a destruição e a criação, a morte e a vida, este universo se mantém em

permanente movimento. E assim como é capaz de se transformar quase sem deixar vestígios, ele

também pode carregar marcas profundas e indissociáveis.

De alguma forma, este universo já estava aí quando chegamos. De outra, ele se constrói

junto conosco. Se acreditando enquanto herança cultural e histórica, ele é o “berço” dos homens.

Se reproduzindo e se transformando, se afirmando e se resignificando, ele vai sendo apropriado

por suas “crias” na mesma medida em que estas se tornam os novos pais de um novo universo.

Assim, nos impondo em certa medida e nos submetendo em outra, dialogamos e combatemos

com ele constantemente. Não somos seus servos ou escravos - apesar de muitas vezes a relação

parecer pender para este lado – nem seus senhores absolutos – apesar de muitas vezes

acreditarmos que sim.

A este universo perpetuado de geração a geração, se reproduzindo e se transformando, se

afirmando e se resignificando, universo no qual somos, ao mesmo tempo, filhos, pais e irmãos

assim como senhores, servos e escravos, e que permanece em constante movimento, mais ou

menos instável, mais ou menos mutável, mais ou menos apreensível, é a ele que chamaremos por

imaginário. Imaginário que se constitui, nas palavras de Durand (1989), como o “capital

antropológico” do homo sapiens.

Segundo Durand (1989), no imaginário não existe antagonismo entre razão e imaginação,

mas ambas são ferramentas na construção do mundo. Sua construção é eminentemente simbólica,

isto é, sinônima da própria criação do homem e do mundo. O imaginário é um conjunto de

imagens e relações de imagens que se constroem no “trajeto antropológico”, isto é, na incessante

troca entre as pulsões subjetivas e assimiladoras do sujeito e as intimações objetivas que

procedem do meio cósmico e social. Assim, a produção de imagens se situa em um percurso que

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vai desde o biológico até o sociocultural, sem que haja hierarquia ou ruptura em graus de verdade

ou ilusão.

O imaginário não existe isolado em cada um de nós, mas, como diz Maffesoli (2001), só

existe enquanto coletivo, pois ultrapassa o indivíduo impregnando o coletivo ou, pelo menos,

parte do coletivo. O imaginário encarna uma complexidade transversal que atravessa todos os

domínios da vida e concilia o que é aparentemente inconciliável. Ele estabelece vinculo, é

cimento social que liga, une em uma mesma atmosfera e, portanto, não pode ser individual. O

imaginário não deve ser entendido como um fator de construção ou de fixação de algo, isto é,

como uma instituição, mas sim como uma sensibilidade, uma dimensão ambiental que

permanece, uma matriz, uma atmosfera, uma aura que não possui uma função determinada e que

aparece como uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém

ambígua, perceptível, mas não quantificável.

Assim, diz Maffesoli (2001), o imaginário aparece como uma aura de um ideal,

envolvendo-o, para além do racional que o compõe, com uma sensibilidade, um sentimento, um

afetivo. Aquele que adere a um ideal não o faz apenas por razões necessárias e suficientes, mas

também por outros componentes, como o afeto, a emoção, o desejo de estar junto e o lúdico. E

são parâmetros como o onírico, o lúdico, a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o irracional, os

sonhos, que, constituindo “as construções mentais potencializadoras das chamadas práticas” (p.

6), formam como que uma dimensão orgânica do espírito que é tanto condicionada quanto

indutora das chamadas práticas.

Para Bachelard (1989), o imaginário é o local no qual se elaboram os meios mais

requintados de se abrir ao mundo. Ao abrirmos a via imaginal de percepção do mundo e de nos

mesmos, o reino das imagens nos cria. Pois a imaginação em Bachelard (2002) não é, como

sugere a sua etimologia, a faculdade de formar imagens. Mas é, antes, a faculdade de deformar as

imagens fornecidas pela percepção, libertando-nos das imagens primeiras. Assim, se não há

mudança de imagem, união inesperada de imagens, não há imaginação. Se uma imagem presente

não faz pensar em uma imagem ausente, se uma imagem ocasional não promove uma explosão

de imagens, não há imaginação, e sim percepção, lembrança de uma percepção, memória.

O valor de uma imagem se mede pela extensão de sua auréola imaginária Pois a

imaginação, esta faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, exagera a todos os

nossos sentidos, deformando nossas percepções e aumentando os valores da realidade. “A

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imaginação inventa mais que coisas e dramas, inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos

que têm novos tipos de visão” (Bachelard, 2002, p. 18).

O imaginário, portanto, este mundo das aparências tão real e concreto a nossa experiência

de mundo, que ao mesmo tempo nos cria e é criado por nós, tem na imaginação sua faculdade

mais expressiva, aquela que se encarrega de mediatizar a relação do homem com o cosmos,

criando e recriando mundos, fazendo valer ou desacreditando verdades. As verdades não são

assim apenas fruto da razão crítica e consciente, mas da expressão simbólica de um mundo

percebido e vivido tal como um sujeito o experimenta, isto é, de todo o seu psiquismo, afetivo e

representativo, consciente e não-consciente, individual e social, imaginário e perceptivo.

II.II. Da vontade e da responsabilidade social

A concepção lúdica do mundo toma a origem do cosmos e da existência humana como

incriada e natural, no sentido de não ser dominada por um Deus superior, criador e regulador do

universo e da vida, e sim como realidade autônoma, fundamentalmente livre e não redutível a

necessidades exteriores. Nesta concepção, o cosmos está entregue ao acaso, e não a uma vontade

suprema, controladora do fluxo do devir. Por mais que seres dominados por seus desejos tentem

imprimir ao cosmos a direção de suas próprias vontades, o cosmos não se rende nem se submete.

Nietzsche (1983), em seu texto O eterno retorno, afirma que, se o mundo tivesse um alvo,

este já deveria estar alcançado. Se o mundo pudesse enrijecer, secar, morrer, isto é, tornar-se

“nada”, ou mesmo se pudesse chegar a um estado de equilíbrio, ou a um alvo que encerrasse em

si a duração, a inalterabilidade, enfim, se “o vir-a-ser pudesse desembocar no ser ou no nada” (p.

396), então há muito já haveria de ter terminado todo vir-a-ser e, conseqüentemente, também

todo pensar e todo “espírito”. Pois o “espírito como um vir-a-ser” (p.395) dá prova de que o

mundo não pode ter nenhum alvo, sendo inepto ao ser.

Para Nietzsche (1983), a ideia de um mundo criado, que começa em algum momento, não

se sustenta. O mundo é apenas algo que subsiste, e não algo que vem a ser ou que perece. Aliás, é

antes algo que vem a ser, que perece, mas que nunca começou a vir a ser e que nunca cessou de

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perecer, pois conserva-se em ambos, vivendo de si próprio, fazendo de seu próprio excremento o

seu alimento.

A este movimento do acaso, que na concepção lúdica é fruto do próprio movimento do

cosmos, denominamos, quando coincidente com a nossa vontade, sorte, e, quando divergente,

azar. “Sorte no jogo, azar no amor”, diz um ditado, em uma maneira de dizer que “não dá para se

ter sorte em tudo na vida”, pois isso é coisa para poucos escolhidos, aqueles que nasceram

“voltados para a lua”. O que reflete uma confiança na justiça divina (ou de qualquer outro tipo)

que, diante do acaso, distribui a cada um sua devida cota de sorte e de azar. Mesmo que em

alguns casos, as exceções, ela erre na mão.

A lição de moral? Você ainda depende da sua própria “força de vontade”. Não entregue

seu destino às mãos do acaso. Você só precisa confiar em si mesmo e ter responsabilidade para

“escrever sua própria sorte”. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, diz a música. Não

desista de seus sonhos, siga em frente, pois, como diz outro ditado contemporâneo, “querer é

poder”.

Está ideia central da “força de vontade”, que encontramos em todas estas expressões, se

assemelha em grande medida àquilo que Nietzsche (1990) chamou por “memória da vontade”:

uma verdadeira continuidade no querer, que, mesmo diante de todo um mundo de coisas novas e

outros atos da vontade5, se mantém (ou pelo menos tenta se manter) firme até ultrapassar a

barreira que separa o “primitivo” farei do cumprimento da vontade.

Esta vontade ativa, que caracteriza a “memória da vontade”, no entanto, exige daquele

que deseja se manter ligado ao próprio futuro como promessa se fazer responsável, isto é,

metódico, regular, necessário, tanto com respeito ao próximo como por respeito às suas próprias

ideias. Assim, a responsabilidade é uma vontade de controle que, alimentada e orientada pela

experiência passada, avança de costas para o futuro, olhando para o passado num desejo de

impor, pela previsibilidade, seu domínio sobre o acaso, o futuro. A responsabilidade é fruto da

necessidade de se sentir seguro diante do desconhecido, de traçar seu destino conforme a própria

5 A relação com o próximo, diz Nietzsche (1990), se dá em constante conflito, um se opondo e se medindo com o outro constantemente. Sendo está a origem da mais antiga relação entre os indivíduos, a relação entre credor e devedor, que estrutura o contrato entre a comunidade e seus membros. Em troca de proteção da vida e da fazenda, do gozar da paz e da confiança, da imunidade contra certos danos e perigos que os que estão fora se expõe, enfim, da segurança, deve-se comprometer a viver em paz com a comunidade, isto é, agir com responsabilidade. Em caso contrário, a comunidade, o credor, cobrará sua dívida. E só aquele que violar o compromisso, que faltar com a sua palavra para com a comunidade que lhe assegurava tantas regalias, é que compreenderá a importância que tinha sua posse.

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vontade, possível e realizável a partir de uma série de restrições e comportamentos condizentes

com o objetivo a ser perseguido.

Nietzsche (1983) faz uma distinção entre o homem racional e o homem intuitivo que, de

certa forma, pode caracterizar algumas diferenças entre o que poderíamos chamar por homem

responsável e homem irresponsável6. Segundo o autor, ambos os homens, o racional e o intuitivo

(ou responsável e irresponsável, respectivamente), cada qual à sua maneira, desejam ter domínio

sobre a vida. O primeiro procura enfrentar suas principais necessidades por meio do cuidado

prévio, da prudência e da regularidade. O segundo, como “herói eufórico”, procura não ver estas

mesmas necessidades e toma a vida somente disfarçada em aparência e em beleza como real.

O homem racional, diz Nietzsche (1978), guiado por seus conceitos e abstrações, deseja

com estes apenas se defender da infelicidade. Sem, no entanto, conquistar de suas abstrações uma

felicidade para si mesmo, ele continua da melhor forma possível a sua luta para se libertar da dor.

Já o homem intuitivo, fora a defesa contra o mal, colhe desde logo, já de suas intuições, um

constante e torrencial contentamento, entusiasmo e redenção. E quando sofre, sofre sem dúvida

mais veementemente que o homem racional. E até mesmo sofre com mais freqüência, pois, por

não saber (ou não querer) aprender da experiência, sempre torna a cair no mesmo buraco em que

caiu antes. O homem intuitivo é não-racional tanto no sofrimento quanto na felicidade: grita alto

e nada o consola. Já o homem racional, que, de resto, só procura a retidão, a verdade, a

imunidade às ilusões e a proteção contra as tentações de fascinação, desempenha, na infelicidade,

a obra-prima do disfarce. Trazendo não o palpitante e móvel rosto humano, mas como que uma

máscara com digno equilíbrio de traços, ele não grita nem altera sua voz, permanecendo, mesmo

debaixo da pior tempestade, envolto em seu manto de aparente indiferença.

O homem responsável ou racional é aquele em que a vida é como um passado que se

mantém vivo e avança sobre o futuro. A duração é para ele sinônimo de vida, de permanência. E

o fato de durar é o que lhe dá a certeza de estar, ou melhor, de permanecer vivo. Sua identidade

(o seu “eu”) é uma constante acumulação que segue em sua marcha roendo o futuro e cada vez

mais inflada. A história em marcha, a memória da humanidade, os heróis eternizados são, nesse

sentido, a expressão de sua vontade de duração que não aceita o fim, que não se dá por vencida e

se lança ao futuro como uma bola de neve, cada vez maior. Ao manter vivos os feitos de hoje na

6 O termo irresponsável é aqui utilizado apenas num sentido antagônico ao sentido de responsabilidade dado por Nietzsche (1990).

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memória da geração seguinte, e assim por diante, ele cria uma cronologia humana que, de pai

para filho, se fixa na eternidade.

O problema é que, ao fazer do fim a eternidade, o homem racional se deita à sombra da

morte. Há aí uma inversão de polaridades: é do findar-se que sobrevêm o seu eternizar-se. Pois o

preço para vencer a morte é mortificar a vida. Uma troca justa, já que, para nós, homens, só a

morte é eterna. O homem que se quer racional e responsável, visando alcançar no amanhã, acaba

por se colocar no hoje como num passado, e não num presente. Faz do presente o passado de um

futuro eterno. Para ele, o aqui e agora não é mais que um passado em busca de um amanhã

perfeito. Este homem busca o controle e, no próprio ato de controlar, mata a vida. Paradoxo

daquele que, querendo-se imortal, se usa da morte como aliada. Temendo profundamente a vida,

por ser esta em si mesma desordenada e incontrolável, converte-a em morte, a única certeza da

vida. Tendência mórbida que torna os homens frios, distantes, devotos da “lei e da ordem”. E

tudo aquilo que possa ameaçar a está ordem é sentido como um ataque satânico contra seus

valores sagrados.

Jesus deu seu exemplo: mártir da vida, vencedor da morte. E como discípulos fez mais

que apenas doze, fez uma nação, os Ocidentais. Assumindo as mais diversas expressões, está

mortificação da vida se espalhou por todo o ocidente. E tal atitude levou, nas palavras de Durand

(1981), as suas instituições a tomarem uma postura de privação da atitude sonhadora, da atitude

simbólica, e conseqüentemente a atribuírem ao homem apenas necessidades práticas, inserindo-o

num contexto puramente funcional, burocrático, tecnocrático.

Para o homem intuitivo e irresponsável, por sua vez, ocorre uma inversão. O tempo é

compreendido como instante e, portanto, é essencialmente efêmero, fugidio. Para este, a duração

não suporta nenhum intervalo, pois que este já é uma morte. A morte é incansável, e não há um

instante sequer de trégua. Os acontecimentos permanecem apenas em sua efetividade. Viver é

sentir-se vivo. Só o momentâneo tem direito à vida. Desligar um botão não implica em um

intervalo, mas no fim do processo. Cada noite de sono é uma pequena morte e um pequeno

renascer para o homem intuitivo.

É o reino de Cronos, o devorador, insaciável em seu apetite paterno. Nada pode resistir à

ferocidade de sua fome. Para este senhor do tempo, um filho novo é carne fresca; e a angústia da

morte iminente se resolve em gula, ou qualquer outro pecado: tudo em excesso. Exceder! O

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primeiro e único mandamento de Cronos. Exceder os relógios, exceder os tabus, exceder a vida

pela própria vida. Tudo o mais é morte e tédio.

Do fragmento de Heráclito (2002) que diz: “O nome do arco, vida; sua obra, morte (p.

203)”, diríamos então que, um arco sem tensão não representa nada, pois que isento de vida. Um

arco com pouca tensão é uma vida comedida, que intenta evitar a morte não imputando à flecha a

força necessária para um golpe mortal: melhor é viver aleijado, com as dores de Quirão. Mas um

arco que se tenciona ao limite do romper quer um golpe certeiro, uma morte fulminante. Busca

aquela intensidade de vida que não requer golpe de misericórdia. Apenas uma flecha no alvo e

seu destino estará selado.

O homem, no entanto, não pode viver simplesmente como racional ou intuitivo, pois sua

natureza passeia por estas duas tendências sem, no entanto, poder abdicar de qualquer uma das

duas. O que parece é que uma ou outra tendência parece predominar em determinados contextos

e épocas. No mais, como disse Nietzsche (1983), o que se passa é que vemos oposições onde

deveríamos ver apenas transições, diferenças de grau que, em nossa observação inexata, leva-nos

a tentar entender e decompor o universo em opostos, como, por exemplo, a razão e a intuição.

O próprio do pensamento dicotômico, ao demarcar os opostos, parece ser mesmo limitar a

caótica “realidade” dentro de dois extremos e assim, de certa forma, a manter sob controle, ao

menos sob uma ordem inteligível ao pensamento. Os opostos, atuando como abstrações em si

mesmas inalcançáveis, como bem e mal, início e fim, vida e morte, criam limites capazes de

abranger todo o mundo e suas infinitas possibilidades. Assim, até o mais estranho e

aparentemente inexplicável dos fenômenos se torna familiar e, nesse sentido, passível de se

enquadrar e ser compreendido pela ordem do pensamento.

Mas, voltando ao tema da responsabilidade, quando guiado por um intenso senso de

responsabilidade, parece que o homem toma (ou ao menos tenta tomar) para si os rumos de sua

própria vida. Atitude semelhante à daquele que toma para si o fogo dos deuses. E seu primeiro

passo nesse sentido é erigir no céu um Deus com D maiúsculo, que se coloque acima das Moiras,

onipotente e onipresente, impondo o julgo da sua vontade sobre o fluxo do cosmos e da vida.

Este Deus, com seu poder de fazer o mundo caminhar segundo a sua vontade, cria o

homem segundo a sua imagem e semelhança, dando a ele, portanto, o seu “livre-arbítrio”, isto é,

o poder de trilhar o seu caminho conforme a sua própria vontade e vaidade. No entanto, se

invertermos a ordem deste pensamento, poderíamos então dizer que este Deus, o Pai, é uma

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projeção deste homem, o filho, elevada ao infinito. Ou seja, o homem, em seu desejo de se

afirmar como o “dono do mundo”, entroniza para si um Deus que representa seus anseios. A

partir de então os homens não são mais uma raça, mas a raça, os escolhidos de Deus, cada qual

com seus próprios anseios e desejos, unidos unicamente pela vontade de (re)encontrar o paraíso,

isto é, de vencer as limitações humanas, com todas as suas dores e tristezas.

Este primeiro passo se caracteriza pela elevação de um extremado senso de

responsabilidade a toda a sociedade, que, constituída por homens de vontade própria, os

indivíduos, evoca ideais comuns em nome de Deus, do Estado, das Instituições, do Ser, e assim

procura por meio de tudo aquilo que dura (como a sua vontade), que é estável e consistente,

alcançar, segundo um acordo racional, contratual, utilitário e funcional, um objetivo, seja ele um

projeto político, econômico, social, ou de qualquer outro tipo, desde que voltado a elevar está

sociedade a um lugar melhor.

Por meio de um elevado senso de responsabilidade social, ancorada na razão, acredita-se

assim poder controlar o fluxo do devir no sentido de um ideal comum, baseado na fé de que “o

povo, unido, jamais será vencido”. Este ideal comum à que se almeja atingir é, no fim, um

paraíso na terra, na qual o homem pretende viver em total harmonia com seus iguais, superando

assim as guerras, a fome, a doença, enfim, a morte.

O segundo passo é então roubar a esse mesmo Deus o fogo divino, como um titã que,

após servir como peça chave à vitória Divina, se volta com toda a sua astúcia contra este mesmo

Deus e a favor dos homens. Confiando cada vez mais em seu poder titânico de Prometeu, que,

como diz o próprio nome, é o prudente, o previdente, o homem chama a si mesmo a total

responsabilidade de ser o “dono” do seu mundo. Como dizem as palavras de Nietzsche (2005):

A aspiração ao “livre-arbítrio”, (…) essa aspiração em tomar a inteira e última responsabilidade de seus atos, aliviando Deus, o universo, os antepassados, o acaso, a sociedade, não é senão o desejo de ser precisamente essa causa sui e de se puxar a si mesmo pelos cabelos7 (…) para sair do pântano do nada e entrar na existência (p. 51).

Está aspiração ao “livre-arbítrio” de que nos fala Nietzsche, ao chamar para si a total

responsabilidade dos seus atos, realiza um duplo movimento que, ao mesmo tempo, serve como

vetor de emancipação dos indivíduos, estimulando sua autonomia e os tornando portadores de

7 Referência à popular anedota alemã sobre o barão de Münchhausen, que pretendia por esse método sair de um poço onde havia caído.

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direitos, e, por outro lado, cria um ambiente de insegurança crescente, fazendo de todos e cada

um responsáveis e obrigados a dar à vida um sentido não mais predeterminado a partir de fora.

Para se fazer senhor de si e do mundo, o homem teve de cometer um sacrilégio. Como diz

o mito8, o fogo divino foi roubado, e não naturalmente outorgado ao homem. Por isso Prometeu

teve de padecer com assombrosa profundidade a sua dor. E também o homem, tal qual um

prometeu acorrentado, sente-se aprisionado por suas próprias regras de controle e

quotidianamente torturado por sua consciência de águia que, apesar da sua natureza aérea, não

encontra mais aberturas para a transcendência.

A empreitada da vontade coletiva de alcançar um paraíso, como não poderia deixar de ser,

falhou. O único fim a que chegou foi o seu próprio fim. E agora, com a queda destes grandes

ideais, a responsabilidade, antes atitude coletiva e consciente para um mundo melhor, se faz

sentir como imposição inalienável pela direção e pelas conseqüências de seus próprios atos.

Como diz Bauman (2005), a “livre escolha” pode até ser uma ficção, mas a presunção do

direito de escolher livremente faz dessa ficção uma realidade que se faz sentir como uma pressão

esmagadora que, apesar de oferecer recompensas irresistíveis, não pode ser eliminada pelo desejo

ou pela argumentação, nem muito menos ser rechaçada ou ignorada. “Quer seja livre ou não a

escolha, o preceito de escolher livremente e de definir todas as ações como resultados desta não

é, com toda certeza, uma questão individual” (p. 33).

Assim, continua Bauman (2005), mesmo que o direito e o dever da livre escolha sejam

premissas tácitas ou reconhecidas da individualidade, estas premissas não são suficientes para

garantir o direito à individualidade. E, nesse sentido, nem sempre a prática da individualidade

corresponde ao padrão imposto pelo dever da livre escolha. O que faz com que prática da livre

escolha seja, para muitos, fora de alcance. Afinal, no caminho que vai da individualidade de jure

à individualidade de fato, existem muitos obstáculos.

Despedaçados, fragmentados em indivíduos soterrados pelo peso da própria

responsabilidade, alguns ainda tentam manter a esperança de, por si só, alcançar algo de divino.

Entram assim em um estado de “guerra civil”, na qual, cada um por si, combate uma guerra na

qual não importam os métodos, mas apenas os resultados. Do que surgem os vários métodos

pouco ou nada ortodoxos, como vomitar a própria comida ou ingerir anabolizantes em busca de

um corpo que, justamente por ser considerado ideal (isto é, divino), é impossível de ser

8 Prometeu Acorrentado.

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alcançado. Estes métodos muitas vezes acabam por dar resultados, porém seus efeitos colaterais

são quase sempre piores se comparados ao benefício que proporcionam. E não podemos esquecer

da própria droga, que, quando utilizada com fins de alcançar os famosos “paraísos artificiais” de

Baudelaire, pode degenerar em vício.

O homem se encontra assim semelhante àquele Dionisio que, adorado como Zagreus,

ainda criança foi despedaçado pelos Titãs. Despedaçamento que, segundo Nietzsche (2007),

representa o verdadeiro sofrimento dionisíaco, caracterizado pelo estado da individuação

enquanto fonte e causa primordial de todo sofrimento. Nesse estado, em si mesmo rejeitável,

resta à esperança se dirigir para a possibilidade de vivenciar o renascimento de Dionísio, isto é, a

possibilidade de reestabelecer sua unidade, decretando assim o fim da individuação. O que, por

esta simples esperança, faz com que um raio de alegria se espalhe pelo semblante deste mundo

destroçado em indivíduos.

Nesse sentido, parece que é Dionisio, o deus da libertação e da espontaneidade, aquele

que nos faz esquecer das proibições e dos tabus, o deus da metamórphosis, que leva o homem a

alienar-se de bom grado na esperança de uma transfiguração, quem arrebenta nossas correntes de

Prometeu acorrentado. Dionisio simboliza a ruptura das inibições, das repressões e dos recalques.

É o deus que vem romper com as barreiras que separam os homens dos deuses, se manifestando

nos excessos da embriaguez, na qual se testemunha o violento esforço da humanidade para

libertar sua alma dos limites terrenos.

Segundo Brandão (1995), os devotos de Dionisio acreditavam sair de si pelo processo do

êxtase, o que implicava num mergulho de Dionisio em seu adorador através do entusiasmo, de

modo que o homem, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se anér,

isto é, herói9, um varão que ultrapassa o métron, a medida de cada um. A transformação operada

no homo dionysiacos pelo êxtase e pelo entusiasmo liberta-o - fazendo-o herói – das correntes

que o faziam prometeu aprisionado. Pois se um simples mortal não é capaz de romper tais

correntes, não se pode dizer o mesmo de um herói com sua força e poder divinos.

O homem, portanto, em meio a seu sofrimento, recorre a Dionísio, aquele capaz de

romper provisoriamente com suas correntes de prometeu. No entanto, a cada novo rapto do fogo

divino por meio dos subterfúgios de prometeu, um novo aprisionamento solitário e um novo

9 Segundo Chevalier (1994), o herói é aquele que apresenta o duplo caráter do homem na terra e do deus no céu, simbolizando na união das forças celestes e terrestres a vitória da alma humana sobre suas fraquezas.

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mergulho no tártaro, seguidos pela tortura cotidiana da águia se abaterão sobre o homem. O que

pode induzi-lo a compulsão seja ela qual de que tipo for.

Este retorno de Dionísio, segundo Maffesoli (1995), se caracteriza na saturação dos

valores da modernidade, que, com seu ideal democrático, está em vias de ser substituído por

aquilo que se pode chamar de ideal comunitário. Ideal este que dá novamente sentido a elementos

arcaicos que, tidos aparentemente como ultrapassados pela racionalização do mundo,

caracterizam um retorno das imagens, da importância do contágio emocional.

Para Maffesoli (1995), existe nesse ideal algo do transe antigo, que tinha por função

essencialmente reforçar o estar-junto daqueles que participavam dos mesmos mistérios10. Vive-se

assim, de modo mais ou menos consciente, uma forma de estar junto que não esta voltada a ideais

longínquos, racionais, universais, que visa à realização de uma sociedade perfeita no porvir, mas

sim dedicada a organizar o presente, tentando se tornar o mais hedonista possível.

Ao progresso linear e seguro, característico da modernidade, Maffesoli (2006) afirma que

está em vias de suceder uma espécie de “regresso”, que caracteriza o “tempo das tribos”. A vida

em sociedade não se faz mais a partir de um indivíduo, poderoso e solitário, fundamento do

contrato social, da cidadania desejada ou da democracia. Há saturação do indivíduo e do

individualismo, fundamentos de todos os sistemas teóricos ocidentais. O “tempo das tribos” é o

maior revelador desta saturação.

O tribalismo, diz Maffesoli (2006), é uma declaração de guerra ao esquema

substancialista que marcou o ocidente: o Ser, Deus, o Estado, as Instituições, enfim, a tudo aquilo

que dura, que é estável, consistente. Nas “tribos contemporâneas”, pouco importa um objetivo a

ser atingido ou mesmo o projeto político, econômico, social a ser atingido. Elas preferem viver o

prazer de estar junto, a intensidade do momento e aproveitar o mundo tal como ele é. Ante a uma

estrutura patriarcal, vertical, está se sucedendo uma estrutura horizontal, fraternal. Não mais um

indivíduo ativo, que possui o domínio de si e da natureza, mas uma nova relação com a

alteridade, com esse outro que é o próximo, que é a natureza. Relação que aceita a alteridade pelo

que ela é.

O laço social, diz Maffesoli (2005), não é mais unicamente contratual, racional, utilitário

ou funcional, mas contém uma boa dose de não-racional, de não-lógico, algo que se exprime na

10 O mistério, no sentido aqui entendido por Maffesoli (2005), é aquilo que se partilha com alguns e que conseqüentemente serve de cimento, reforça o sentimento de pertença e favorece uma nova relação com o ambiente social e com o ambiente natural.

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efervescência de todas as formas ritualizadas - como o esporte, a música, o consumo, as drogas,

as revoltas e explosões sociais - ou, em geral, totalmente espontâneas. O tribalismo é assim

caracterizado por uma ênfase no cotidiano e em seus rituais, nas emoções e paixões coletivas, na

importância dada ao corpo em espetáculo e ao gozo contemplativo, na revivescência do

nomadismo, enfim, em tudo aquilo simbolizado pelo hedonismo dionisíaco.

Não mais a dominação do “princípio do logos”, com sua razão mecânica e previsível,

razão instrumental e estritamente utilitária, mas um retorno do “princípio de eros”. Antes de ser

um fenômeno político, econômico ou social, o tribalismo é um fenômeno cultural, que ressalta a

alegria da vida primitiva, da vida nativa. É, na concepção de Maffesoli (2006), uma verdadeira

revolução espiritual que, longe dos valores universalistas ou racionalistas, exacerba o arcaísmo

no que ele tem de fundamental, estrutural e primordial. O tribal diz e rediz a origem, restituindo

vida àquilo que tendia a se esclerosar, se aburguesar, se institucionalizar.

O tribalismo caracteriza uma união entre o arcaísmo e a vitalidade, que Maffesoli (2006)

associa ao mito do “puer aeternus”, a “criança eterna”, um pouco lúdica, um pouco anômica. É

um retorno à infância não apenas individual, mas produtor de cultura, que induz a uma nova

relação com a alteridade.

Há nessa “velha criancinha” uma tolerância, uma generosidade inegáveis que tiram sua força dessa memória imemorial da humanidade que “sabe”, de saber incorporado, que além ou aquém das convicções, dos projetos de todos os tipos, dos objetivos mais ou menos impostos, há vida e sua inesgotável riqueza, vida sem finalidade nem uso, simplesmente vida (Maffesoli, 2006, p. 10).

A “criança eterna” é um pouco amoral, às vezes mesmo imoral. Mas esse imoralismo

possui uma ética particular pelo fato de unir fortemente seus diversos protagonistas, que, em seus

atos, suas maneiras de ser, sua música, na encenação de seus corpos, reafirmam uma fidelidade

ao que são. Assim, toda ocasião é boa para se viver, em grupo, a perda de si no outro, da qual “a

perpétua criança que é Dionísio e as bacanais que ele incita são exemplos acabados” (Maffesoli,

2006, p. 9).

Vive-se, conforme Maffesoli (2005), sob uma ética da estética, isto é, sob um ethos

constituído a partir das emoções compartilhadas e vividas em comum. E é no vibrar em comum,

no sentir em comum e no experimentar coletivamente a tudo, que cada um se permite, movido

pelo ideal comunitário, sentir-se em casa nesse mundo. Vivência está que se dá, em grande

medida, sob uma forma de jogo teatral: o jogo do mundo, o mundo como jogo. Não se trata mais,

portanto, de uma história construída por um indivíduo contratualmente associado a outros

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indivíduos racionais, mas de uma pessoa (persona) que só existe em sua relação com o outro. Do

enclausuramento na fortaleza do próprio espírito, em uma identidade (sexual, ideológica,

profissional) intangível, se impõe a perda de si, o dispêndio e outros processos que ressaltam a

abertura, o dinamismo, a alteridade, a sede do infinito.

Segundo Maffesoli (2006), a identidade agora se afirma em seu aspecto mutável e caótico,

se assumindo enquanto verdade conforme suas fronteiras temporais ou espaciais. A identidade

não diz mais respeito só ao indivíduo, mas também ao agrupamento no qual ele se situa. De

acordo com as situações e a ênfase dada em tal ou tal valor, as relações estabelecidas consigo

mesmo, com o outro e com o meio ambiente, ela pode ser modificada. O indivíduo, portanto, não

tem mais a substancialidade que, de modo geral, lhe haviam atribuído a partir do iluminismo. É

preciso se desfazer da ilusão de um indivíduo senhor de si mesmo e de sua história e reconhecer a

ideia de persona, isto é, de máscara mutável capaz de se integrar numa variedade de cenas e

situações que só adquirem valor quando representadas em conjunto.

O indivíduo, diz Maffesoli (2006), é um alguém livre, que contrata e se inscreve em

relações igualitárias. Já a pessoa é tributária dos outros, é alguém que aceita um dado social e se

inscreve em conjunto orgânico. O indivíduo possui uma função; a pessoa um papel. Nas palavras

do autor:

[…] o indivíduo é causa e efeito da lógica da identidade. Senhor de sua história, capaz, com outros indivíduos autônomos, de fazer a história do mundo, ele é educado para exercer uma função nas instituições programadas pela sociedade. A pessoa, em contrapartida, tem identificações múltiplas, suas máscaras (persona). Estruturalmente dependente dos outros (heteronomia), ela se limita a desempenhar papéis nesses conjuntos de afetos que são as tribos (Maffesoli, 2006, p. 95).

O indivíduo pode se estabelecer no âmbito de um partido, de uma associação, de um

grupo estável, e assim assume uma função na sociedade. A pessoa representa papéis, tanto em

sua atividade profissional quanto nas diversas tribos que participa. Ela pode, de acordo com seus

gostos (sexuais, culturais, religiosos), mudar seu figurino e assim assumir os mais variados

lugares (papéis), a cada dia, nas peças do theatrum mundi. A pessoa é assim apenas uma

condensação em perpétuo desequilíbrio. Ela se inscreve em um grupo, do qual é apenas uma

parte, e só tem valor enquanto pertence a este grupo. Sua teatralidade instaura e reafirma a

comunidade. Não mais um pertencimento conforme uma equivalência racional de ordem política,

mas um pertencimento orgânico, que transcende o indivíduo.

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Parece ser justamente a está impermanência e maleabilidade comum às tribos e às pessoas

que habitam nesse nosso “novo” contexto, que Bauman (2005) se refere quando atribui a nossa

sociedade a qualidade de ser “líquido-moderna”, isto é, uma sociedade na qual seus membros

atuam sob condições tão instáveis que não se sustentam por um tempo mínimo necessário para a

consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir.

Nesta sociedade líquido-moderna, Bauman (2005) afirma que as condições de ação e as

estratégias de reação se tornam tão rapidamente obsoletas que não dão à seus atores a chance de

aprendê-las efetivamente. É cada vez mais difícil prever as tendências futuras a partir de eventos

passados, o que faz dos prognósticos algo arriscado e freqüentemente enganoso. A vida líquida

(aquela que é própria a uma sociedade líquido-moderna) é, portanto, uma vida precária, de

constante incerteza, que não pode manter sua forma ou permanecer em seu curso por muito

tempo.

Assombrada pelo horror da expiração, a vida na sociedade líquido-moderna não é mais

empurrada pelas maravilhavas imaginadas no ponto final dos trabalhos modernizantes, mas sim

pela necessidade de correr o mais rápido possível para se manter no mesmo lugar, longe da lata

de lixo onde serão jogados os retardatários. A vida líquida é uma sucessão de reinícios que não

perdoa os que ficam para trás. E é justamente por isso que os finais rápidos e indolores, sem os

quais seria inimaginável qualquer reinício, passam a ser os momentos mais desafiadores e

inquietantes para seus membros. Do início ao fim, diz Bauman (2005), a ênfase está em esquecer,

apagar, desistir e substituir. A constância, a aderência e a viscosidade das coisas, tanto animadas

quanto inanimadas, são os piores e mais assustadores perigos.

A velocidade, e não mais a duração, é o que importa. Alcançando-se a velocidade certa,

torna-se possível consumir toda a eternidade na duração de uma existência individual. “A

incerteza de uma vida mortal em um universo imortal foi finalmente resolvida: agora é possível

parar de se preocupar com as coisas eternas sem perder as maravilhas da eternidade” (Bauman,

2005, p. 15). Viver tudo aquilo que algum dia se almejou vivenciar, mas que só a eternidade

poderia oferecer, no pequeno espaço de tempo de uma vida mortal: eis a promessa do mundo

líquido-moderno.

No mundo passado, onde o tempo passava mais lentamente e resistia à aceleração,

buscava-se escapar a torturante consciência de uma vida curta e mortal diante da riqueza infinita

do universo eterno com esperanças de reencarnação ou ressurreição. No mundo contemporâneo,

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que não conhece nem aceita limites à aceleração, tais esperanças são descartadas em prol da

compressão de um número cada vez maior de vidas no intervalo de duração da existência mortal.

À preocupação com a eternidade, se impõe agora a preocupação com o infinito.

Para quem almeja o infinito, diz Bauman (2005), a lealdade é motivo de vergonha, não de

orgulho. Aquele que não quer ficar para trás precisa manter a vigilância. Uma identidade que

preze pela coerência e pela consistência jamais poderá dar conta das múltiplas possibilidades a

serem experimentadas. É preciso que, tal como a reencarnação e a ressurreição dos velhos

tempos, a identidade seja um meio de ir além, de ultrapassar os limites do que se é para se

transformar em alguém que não é. Daí que os membros de nossa sociedade líquido-moderna se

ocupam constantemente em compor, descompor e recompor suas identidades. O que deu origem

a está “cultura híbrida” que busca sua identidade na liberdade - duramente conquistada, e agora

estimulada - de desafiar e menosprezar as fronteiras de um mundo demarcado por cercas que

entravam os movimentos e escolhas possíveis.

Parece que, destroçado pela opressiva individuação e sobre o enorme peso da

responsabilidade nela implícita, o homem procura de todas as formas se libertar de seu

sofrimento, evocando a Dionísio para que este, encarnando em seu corpo, o possua e o liberte de

suas amarras, restabelecendo assim sua comunhão com os seus há tanto tempo perdida. Mas,

como esta libertação é sempre efêmera, fugidia, o homem precisa se manter em constante

movimento, sempre “correndo atrás do prejuízo”.

O homem, portanto, se encontra diante da paradoxal vontade de abdicar da vontade.

Atormentado pela vontade frustrada de reencontrar o paraíso perdido, ele está “entre a cruz e a

espada”. Ao que prefere, diante da morte, desembainhar sua espada e partir para um combate

franco e incessante, que não pode parar sob o risco de morte. Mas nesta luta ele não está só, pois

agora anda em bandos, permanecendo o mais próximo dos seus a fim de se manter forte e

protegido. “O que sobrou do céu”? Talvez, como diz a música, não muito mais do que “as cores

escondidas, nas nuvens da rotina”11.

11 Letra da música O que sobrou do céu, da banda o Rappa, composta por Marcelo Yuka.

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II.III. Ética e moral no contexto da pós-modernidade

Em seu texto “Ética pós-moderna”, Bauman (1997) afirma que a perspectiva ética da pós-

modernidade consiste em rejeitar as maneiras tipicamente modernas de tratar seus problemas

morais. Não no sentido de abandonar os conceitos morais propriamente modernos, mas sim no de

que estes precisam ser revistos para receberem um novo tratamento. Para o autor, enquanto na

modernidade se propunham alvos impossíveis de se atingir (tentando atingir o que se podia

atingir), na pós-modernidade, apesar do reconhecimento de que certas pretensões são falsas e

certos objetivos inatingíveis, os alvos da modernidade não deixaram de ser desejáveis. A grande

diferença é que, no caso da pós-modernidade, a grande máscara das ilusões se rasgou.

Conforme Bauman (1997) uma sociedade pode ser considerada moderna na medida em

que, ao tentar sem cessar, ainda que em vão, “abarcar o inabarcável”, substituindo a diversidade

pela uniformidade, a ambivalência pela ordem coerente e transparente, acaba por produzir ainda

mais divisões e ambivalências do que aquelas das quais tentava se livrar. Para esse autor, o fato

de o desenvolvimento da modernidade ter forçado os homens e as mulheres a condição de

indivíduos, com vidas fragmentadas, separadas por diferentes metas e funções frouxamente

relacionadas, cada qual a ser buscada em um contexto diferente e conforme uma pragmática

distinta, levou estes mesmos homens e mulheres a condição de “tomadores de decisão”, que não

podiam mais agir simplesmente pela força do hábito, mas que precisavam calcular, medir e

avaliar para chegarem ao “modo certo” que, antes praticamente unitário e indivisível, agora se

dividia em “economicamente sensato”, “esteticamente agradável”, “moralmente apropriado”,

dentre outras formas relativas de escolha entre o certo e o errado.

Segundo Bauman (1997), esta relatividade moral da modernidade, advinda do vazio

deixado pela agora ineficaz supervisão moral da Igreja, chamou a atenção dos legisladores e

pensadores modernos para o fato de que a moralidade, antes tida por “traço natural” da vida

humana, precisava ser planejada e inoculada na conduta humana. Assim, embora a condição

existencial dos homens e das mulheres da modernidade fosse muito diferente do que era antes, a

antiga pressuposição de que a vontade livre acaba sempre por fazer escolhas erradas e assim

verga para a licenciosidade, terminando por se tornar inimiga do bem, continuava dominando a

mente dos pensadores e as práticas dos legisladores.

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No entanto, os antigos preceitos morais preconizados pela Igreja, agora em grande medida

desacreditados, precisavam ser substituídos por uma nova moral que não deixasse nada a dever à

revelação cristã nem muito menos às tradições locais e particularistas. A ética dos filósofos

deveria substituir a Revelação da Igreja com a pretensão ainda mais radical e inflexível de

validade universal. E para tanto era preciso encontrar uma justificativa suficientemente sólida

para fazer valer os preceitos de um novo código ético universalmente obrigatório.

A solução encontrada, diz Bauman (1997), foi substituir Deus pelo Homem, ou seja, ao

invés de fundamentar os preceitos éticos em alguma autoridade supra ou extra-humana, era a

própria “natureza humana” quem deveria servir de base para o desenvolvimento do novo código

ético. A ambiciosa ideia era a de fundar uma ordem inteiramente humana na terra, que se erigisse

apenas com a ajuda das capacidades e recursos humanos.

Acontece que este suposto potencial moral intrínseco à “natureza humana”, “descoberto”

pelos pensadores modernos, ainda não havia sido revelado. Pois, como afirma Bauman (1997), a

“natureza humana” era um potencial “ainda não” realizado e irrealizável por conta própria, mas

que, com a ajuda da razão e dos portadores da razão, poderia ser desenvolvido. As pessoas, ainda

que incapazes de descobrir sem ajuda poderiam ser iluminadas quanto aos padrões éticos que

poderiam encontrar em si mesmas desde que guiadas pelos filósofos (aqueles que possuem acesso

mais direto a razão) e colocadas em um ambiente cuidadosamente planejado para favorecer e

recompensar a conduta moral - função da qual os legisladores se encarregariam.

Afirmava-se, portanto, que era necessário dizer as pessoas quais eram seus verdadeiros

interesses, de modo que elas aprendessem que fazer o bem era a escolha racional porque tal

atitude traria benefícios e recompensas para os que o praticassem. Quanto àqueles que se

recusavam a escutar ou pareciam duros de ouvido, estes precisavam ser forçados a comportarem-

se de acordo com o que os seus reais interesses exigiam.

Foi nesse sentido, segundo Bauman (1997), que os filósofos e legisladores modernos

tentaram impor uma ética onicompreensiva e unitária na forma de um código coeso de regras

morais que pudessem ser ensinadas a todos. Tal código deveria ser cuidadosa e habilmente

elaborado com base na razão, a única capaz de cumprir com o que a crença não estava mais

fazendo, isto é, regular o relacionamento entre os homens não menos, e talvez mais e melhor (de

forma mais civilizada, pacífica e racional), do que no período em que estes estavam “cegos” pela

fé e no qual seus sentimentos, ainda não dominados nem domesticados, corriam selvagens.

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Assim, o moderno pensamento ético e a prática por ele recomendada preconizavam que os

indivíduos livres (pois que situados nas modernas condições de vida) deveriam ser prevenidos de

usarem sua liberdade para fazer o mal. Pois a liberdade do indivíduo, em função da

imprevisibilidade das suas conseqüências, era suspeita de ser fonte de instabilidade, elemento

caótico que precisa ser refreado para de assegurar e manter a ordem. Nesse sentido, Bauman

(1997) afirma que a ideia moderna era a de desenvolver as capacidades individuais de

julgamento, administrando os focos de interesse individuais de forma que a busca de cada

indivíduo por seu interesse o levasse a obedecer à ordem preconizada pelos legisladores.

Segundo Bauman (1997), várias foram as tentativas de construir um código moral que,

não mais se escondendo sob os mandamentos de Deus, proclamasse a todos que havia sido “feito

pelo homem” e que, apesar disso (ou por isso mesmo), deveria ser aceito e obedecido por “todos

os seres humanos”. O grande problema era que o julgamento individual, pelo simples fato de ser

individual e, portanto, não estar exclusivamente enraizado na autoridade dos defensores da lei e

da ordem, não poderia jamais ser inteiramente manipulável. O que resultou em uma situação de

conflito constante entre a autonomia dos indivíduos e a heteronomia de administração racional.

Tal situação permaneceu durante a sociedade moderna como um artifício auto-

admitidamente “não feito pelo homem”, no sentido de que este era um conflito ainda não

resolvido, mas em princípio perfeitamente resolvível, como se fosse um transtorno temporário,

uma espécie de imperfeição residual no caminho da perfeição. Este resto de não-razão no

caminho do domínio da razão, sinal de ignorância ainda não totalmente superada na relação entre

os indivíduos e os interesses comuns, foi combatido pelos filósofos e legisladores modernos por

meio das bandeiras gêmeas da universalidade e da fundamentação.

Segundo Bauman (1997), a universalidade significava o domínio de um conjunto de leis

sobre todo o território no qual se estendia a soberania dos legisladores. Sua justificativa, dada

pelos filósofos modernos, era a de que toda criatura humana, pelo simples fato de participar de

uma “natureza humana universal”, tinha as mesmas necessidades morais e, portanto, deveria

reconhecer tais leis como um direito seu e, por isso mesmo, aceitá-las como obrigatórias.

Para a prática legislativa, Bauman (1997) afirma que a fundamentação nada mais era do

que os poderes coercitivos do estado que faziam da obediência as regras a expectativa mais

sensata. De modo que uma regra era bem fundamentada na medida em que gozava do suporte

desses poderes. Já para os filósofos, regras bem fundamentadas eram aquelas em que as pessoas,

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de quem se esperava obediência, cressem ou pudessem ser convencidas de que seguí-las era a

coisas mais certa a ser feita. E, nesse sentido, para agir moralmente, os indivíduos deveriam antes

de tudo aceitar as regras de comportamento moral como que representando de fato o que é o agir

moral. O que certamente não aconteceria caso não estivessem convencidos de que agir

moralmente é mais agradável do que agir sem moral.

Para Bauman (1997), esta busca perseverante e inflexível de regras que “se fixarão” e de

fundamentações que “não se abalarão” extraia suas forças da fé na praticabilidade e no triunfo

último do humanismo, isto é, no vislumbrar de uma sociedade livre de toda e qualquer

contradição irremovível. “Com esta fé, os dedos chamuscados não doeriam demais, não haveria

esforços inúteis, e o fracasso das esperanças de ontem só incitaria os exploradores a esforços

ainda maiores hoje” (p. 15).

Apesar de todas as modernas receitas presumidamente infalíveis terem, por fim, falhado, a

esperança mesma de encontrar uma receita verdadeiramente “a toda prova” jamais deixou de

existir nem foi totalmente desacreditada. O ideal de se chegar a um código ético não-ambivalente

e não-aporético permaneceu animando o pensamento e a prática morais da modernidade.

Acontece, segundo Bauman (1997), que uma moralidade não-aporética e não-ambivalente

é uma impossibilidade prática. E a descrença nesse ideal de progresso da modernidade é

justamente aquilo que caracteriza a pós-modernidade. Pois os longos e sérios esforços da

modernidade, por terem sido enganosos, sempre estiveram destinados a terminar no insucesso.

Tendo como resultado o fim das pretensões de se viver sob uma moral universal, que se

caracterizava por sua rigidez e a noção de projeto, por sua busca de produtividade e seu

puritanismo, enfim, pela lógica do dever-ser.

Para Maffesoli (2005), esta forma de estar-junto moral ou político que prevaleceu durante

a modernidade não passou de uma forma profana da religião. A partir do momento em que a

substância divina começou a perder sua substância e o progresso deixou de ser considerado como

um imperativo categórico, a existência social se viu entregue a si mesma. Foi assim que a

deidade, antes entidade tipificada e unificada, tendeu a se diluir no coletivo para se tornar o

divino social. E o mundo, que até então estava “nas mãos” de um poder central encarregado de

governá-lo, se vê agora entregue a si mesmo e valendo por si mesmo.

Segundo Maffesoli (2005), enquanto as sociedades mecânicas, das quais a modernidade é

exemplo, tendem a homogeneizar-se, tomando um único valor ou um conjunto de valores

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diretamente operacionais como seu fundamento, as sociedades complexas como a pós-

modernidade são, por construção, fragmentadas em uma multiplicidade de valores totalmente

heterogêneos entre eles mesmos.

Os resultados, como bem observou Bauman (1997), estão representados na dificuldade de

assumir e suportar as responsabilidades advindas da ausência de uma autoridade superior12.

Porque se antes podíamos confiar em uma autoridade mais forte que nós, que se responsabilizava

pela adequação das nossas escolhas e assim partilhava conosco uma boa parte de nossa

“excessiva” responsabilidade, agora estamos abandonados a nossa “própria sorte”, solitários, ao

sabor de nossa própria consciência.

A pós-modernidade é assim um tempo de ambigüidade moral fortemente sentida. Nela

desfrutamos de uma liberdade de escolha tão grande que nos lança em um estado de incerteza

angustiante. Porque a escolha não é mais entre seguir as normas ou transgredi-las – posto que não

há mais um conjunto de normas definido para se seguir ou transgredir-, mas é entre qual dos

inúmeros e diferentes tipos de normas e autoridades escolher. Não existem mais conformistas ou

revolucionários. Cada ato de obediência é também um ato de desobediência. Nenhuma autoridade

é suficientemente forte e altiva para desaprovar todas as outras e pretender o monopólio. E seja

qual for a opção de cada indivíduo, logo fica claro que nenhuma delas é capaz de abstê-lo da

angustiante responsabilidade. Por fim, não se pode confiar (ao menos plenamente) em nenhuma

autoridade nem deixar de suspeitar de qualquer pretensão à infalibilidade.

Ansiamos assim por alguma espécie de guia no qual possamos confiar e sobre o qual

possamos nos apoiar a fim de retiramos de nossos ombros o pesado e assombroso fardo de

responsabilidade por nossas escolhas. E nesse esforço por escaparmos do sentimento de solidão e

impotência diante de nossas decisões, acabamos muitas vezes por nos livrarmos de nosso eu

individual, quer por submissão a novas formas de autoridade, quer por conformação compulsiva a

padrões socialmente aceitos.

No entanto, da mesma forma que gera um intenso sentimento de angústia, a

heterogeneidade dos valores e o relativismo moral acabam por deixar um grande vazio revelador

de um enorme campo de possibilidades. A ausência de referências sólidas e incontestáveis abre

12 Fromm (1968) observa que a palavra responsabilidade perdeu seu sentido original enquanto conceito no âmbito da liberdade e passou a ser usada no sentido da não-liberdade, isto é, como sinônimo de dever. Assim, a palavra responsabilidade, que dizia respeito a disposição de escutar a voz de sua própria consciência humanista independente de ordens dadas por qualquer outra pessoa, passou a se referir a uma consciência autoritária, que se caracteriza por ser essencialmente a disposição de seguir as ordens das autoridades a quem a pessoa se submete.

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um buraco a ser preenchido ao “sabor da imaginação”. Porque, como diz Maffesoli (…), o vazio

não é a mesma coisa que o nada, mas sim uma condição de possibilidade do que está para nascer.

Ou seja, o vazio é algo a ser vivido.

Tal “vazio de regras” remete a uma observação de Caillois (1994), quando este afirma que

naqueles jogos em que não existem regras, ou na qual estas não são rígidas e fixas, a ficção, o

sentimento de “como se” substitui a regra e cumpre a mesma função. Assim, toda vez que um

jogo acompanha a consciência de que a conduta seguida é um fingimento ou uma simples

mímica, é a consciência da irrealidade do comportamento adotado que separa da vida corrente e

ocupa o lugar da legislação arbitrária que define as regras do jogo.

Parece que o apartar da obrigação moral, antes um imperativo categórico contra a qual era

inútil e até perigoso se rebelar, acaba por provocar uma reação semelhante à descrita por Caillois

em nosso atual contexto pós-moderno. Ou seja, o vazio da ausência de regras bem definidas,

baseadas na premissa de que um dia realizaríamos nosso projeto de um mundo ideal, passa a ser

preenchido por uma espécie de grande jogo de “faz-de-conta” no qual a teatralidade é sentida

como denominador comum das situações da totalidade da existência social. Sem um projeto de

futuro a ser alcançado, fazemos “como se” a fim de não dependermos inutilmente uma energia

necessária a este enfrentamento cotidiano ao destino que é a existência. Pois, se o fim do ideal de

superação progressiva das limitações, que se manifestava em suas diversas alienações,

demonstrou a impossibilidade de se alcançar um mundo livre de suas violências naturais, das

quais a morte é o resumo paroxístico, ele também revelou que a limitação possui um papel

fecundante, uma vez que a vida não pode jamais ser indefinida nem infinita, mas precisa de

limites para que possa efetivamente ser.

Segundo Maffesoli (2005), nesse contexto caracterizado por um enorme relativismo

moral, o laço social não é mais predominantemente contratual, racional, baseado no utilitarismo e

na funcionalidade, mas contém muito de não-racional, de não-lógico. O que não quer dizer que

não existam mais códigos específicos, mas sim que uma nova ética, denominada pelo autor como

uma ética da estética, na qual as emoções e as experiências compartilhadas funcionam como um

vetor de criação. O valor, a admiração, os gostos partilhados tornam-se vetores de uma ética “sem

obrigação”, senão aquela de fazer parte do corpo coletivo, nem sanção, a não ser a de ser

excluído do grupo em caso de perda de interesse (inter-esse).

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Para compreendermos esta ética da estética, Maffesoli (2005) afirma que precisamos

tomar a emoção como uma estrutura antropológica, e não apenas como um simples fenômeno

antropológico ou um estado de espírito sem conseqüências. Nesse sentido, as emoções

partilhadas e vividas em comum constituem o cimento que me liga ao outro e realiza o laço

social. O que nos possibilita considerar a ideia de um estar-junto que, via emoção, realiza uma

religação mística sem objeto particular, no sentido de uma agregação social que tem nos

elementos objetivos, como o trabalho, as festas, a ação militante, apenas um pretexto para

legitimar a relação com o outro.

Nesse sentido, Maffesoli (2005) acredita que só interessa realmente a atmosfera afetiva

em que cada um se sente mergulhado. O que pode ser constatado no vai e vem de um grupo ao

outro, no desengajamento e na irresponsabilidade que marcam a época pós-moderna. Tais

fenômenos se organizam naquilo que o autor chama de redes, isto é, condensações ocorridas em

processos de massificação constante que dão origem a tribos mais ou menos efêmeras que

comungam valores minúsculos e que, como em um balé sem fim, se chocam, se atraem e se

repelem numa constelação de contornos mal definidos e extremamente fluidos. Assim, a ênfase é

posta naquilo de que todos participam, ou seja, mais na soma do que nas partes.

Esta “tatilidade contemporânea”, considerada por Maffesoli (2005) como uma forma

contemporânea de relação com o outro que prescinde da mediação racional e utilitária, pode ser

compreendida como um horror do vazio capaz de levar à participação grupal sem reservas e sem

nenhuma razão que, no limite, chega mesmo a prescindir do sujeito, ao menos enquanto àquela

entidade separada que se consolidou na tradição ocidental.

II.IV. Esquecer e vir-a-ser: o espírito lúdico

Nietzsche (2003), em sua Segunda consideração intempestiva, faz uma série de

considerações sobre o valor e a falta de valor da história. Para o autor, a história só deve servir na

medida em que serve a vida, isto é, na medida em que serve a ação. Pois há um grau de impulso

histórico no qual a vida definha e se degrada, passando a servir apenas ao abandono confortável

da vida ou da ação, ou mesmo ao embelezamento da vida egoísta e da ação covarde e ruim.

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Segundo Nietzsche (2003), o homem só se torna homem por sua capacidade de usar o que

passou em prol da vida e de fazer história uma vez mais a partir do que aconteceu. Assim, o

homem se admira de si mesmo por não esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que

passou. E por mais longe e mais rápido que ele possa correr, a corrente do passado corre junto a

ele. “É um milagre: o instante em um átimo está aí, em um átimo já passou, antes um nada,

depois um nada, retorna entretanto ainda como um fantasma e perturba a tranqüilidade de um

instante posterior” (p. 8).

Por esta sua incapacidade de esquecer, Nietzsche (2003) afirma que o homem inveja ao

animal, uma vez que este está ligado de forma tão fugaz a seu prazer e desprazer que nunca se

sente melancólico ou enfadado. O animal vive a-historicamente, não sabendo se disfarçar nem

esconder nada, aparecendo de forma direta e plena a todo momento, não podendo ser outra coisa

senão sincero. O animal esquece e vê cada instante de sua vida morrer imerso na escuridão,

extinguindo-se para sempre.

Já o homem, ao contrário, está sempre se opondo ao peso cada vez maior do que passou,

sendo oprimido por este peso que o inclina para seu lado, incomodando seus passos como um

fardo invisível e obscuro, que ele muitas vezes aparenta negar, mas que, nem por isso, deixa de

afligi-lo como a lembrança de um paraíso perdido. E mesmo a criança, que ainda não tem nada a

negar de seu passado, brincando assim entre o passado e o futuro em uma bem-aventurada

cegueira, logo tem de ser perturbada em sua brincadeira e arrancada ao esquecimento.

É, portanto a memória, diz Nietzsche (2003), aquela através do qual o sofrimento e o

enfado se aproximam do homem para lembrá-lo que sua existência é no fundo um imperfectum

que nunca será acabado, que não permite ao homem esquecer. E mesmo a morte, que enfim traz o

ansiado esquecer, ao mesmo tempo em que apaga a memória também extingue o presente e a

existência, reafirmando, desta maneira, aquele conhecimento de que a existência é apenas um

ininterrupto ter sido, algo que vive de se negar e de se consumir, isto é, de se contradizer.

Assim, qualquer felicidade, seja ela a menor ou a maior felicidade, é sempre fruto do

poder esquecer ou, dito de outra forma, da faculdade de se sentir a-histórico. Pois aquele que não

é capaz de se instalar no limiar do instante, esquecendo a todo o seu passado, e que não consegue

“firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo” (Nietzsche,

2003, p. 9), jamais saberá o que é felicidade nem fará algo que faça aos outros felizes. É sobre a

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capacidade de sentir a-historicamente, perseverando assim em direção ao mais importante e

originário, que reside o fundamento sobre o qual pode crescer algo verdadeiramente humano.

Olhando para trás, ele se sente cego; escutando o que se passa ao seu redor, percebe o estranho como um som surdo e desprovido de significação; o que em geral percebe, ele jamais tinha percebido assim antes; tão sensivelmente próximo, colorido, ressonante, iluminado, como se ele o apreendesse ao mesmo tempo com todos os sentidos (Nietzsche, 2003, p. 12).

Nesse estado, o homem se pergunta se até então não havia sido apenas um bobo de

palavras e opiniões alheias. Com sua memória girando incansavelmente em círculos, fraca e

cansada para escapar a esta situação, o homem se encontra no estado mais injusto do mundo,

estreito e ingrato frente ao passado, cego para os perigos e surdo para as advertências, como em

um pequeno redemoinho em um mar morto de trevas e esquecimento. Este estado a-histórico de

ponta a ponta, contudo, é injusto apenas com aquilo que se encontra atrás dele, porque só conhece

o direito daquilo que deve vir a ser agora, esquecendo a maior parte das coisas para fazer apenas

uma.

Se libertando do julgo da vontade, esta memória pelo qual é feito prisioneiro do que foi e

do que ainda será, o homem a-histórico se coloca aquém do “ser” e além do “dever ser”, se

tornando pleno movimento, num vir-a-ser permanente e completamente despreocupado com

finalidades outras que não o próprio prazer de se manter em movimento. O homem agora não se

encontra mais preocupado em fugir de ou chegar a algum lugar, mas apenas em começar e

recomeçar infinitamente de novo. A vontade não é mais para ele um senhor a quem deve seguir, o

que, entretanto não quer dizer que ela se extinguiu por completo, pois, como diz Nietzsche

(1990): “O homem prefere a vontade do nada ao nada da vontade” (p.142). O caso é que ela não

está mais no controle, pois não há mais controle. Há somente um movimento no qual a vontade e

ação se encontram inseparavelmente conjugados, unidos no ato que se realiza, sem antes nem

depois.

É então que, precisamente aqui, o espírito lúdico se manifesta. Na total liberdade do agir e

da vontade, que, juntos e misturados, se tornam um só e mesmo movimento impresso no próprio

vir-a-ser em que se encontra, o homem se entrega nas mãos do acaso. Mas não sem luta, e luta

constante, pois o lúdico é um movimento que nasce da tensão entre opostos que, permanecendo

unidos e distintos ao mesmo tempo, em conflito e harmonia, com períodos de preponderância de

um ou de outro, subsiste fora de qualquer princípio gerador ou necessidade externa ao

movimento.

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O lúdico é um movimento gratuito e repetitivo que impulsiona de maneira permanente a

vida e o mundo, numa relação constante entre construção-desconstrução-reconstrução,

eternamente na mesma inocência e isento de discernimento moral. Pois o espírito lúdico, por não

ser guiado por nenhuma vontade da memória, não está preso a nenhuma necessidade de “ser” ou

“dever ser”, sejam convenções morais ou qualquer outro tipo de determinação histórica.

A atividade lúdica situa-se além de sua determinação histórica, seja ela biográfica ou

cultural. O lúdico é a-histórico por excelência, não se reduzindo a nenhuma necessidade política,

econômica, social, ou de qualquer outro tipo. O que, no entanto, não quer dizer que a atividade

lúdica esteja fora da “realidade”, mas apenas que ela não se explica por, nem se limita à nenhuma

condição temporal, física, histórica, cultural ou social. O lúdico não existe senão amparado por

um contexto, mas parece sempre transcender, no sentido de se esquecer pertencente, a qualquer

que seja o seu contexto. Anterior a manifestação do espírito lúdico, está o esquecimento e sua

conseqüente libertação.

Com certa licença poética, diríamos que esquecer é se libertar de todos aqueles traumas e

complexos que Freud tão bem caracterizou em seus estudos. É apagar momentaneamente a sua

própria biografia, como que por meio de um super-inflar do inconsciente e seu poder de absorver

em suas trevas as lembranças indesejáveis e prejudiciais à saúde da psique. É deixar-se levar

pelas forças profundas do inconsciente, ou, na linguagem de Jung, do inconsciente coletivo, se

expressando estereotipadamente segundo sentimentos míticos e arquetípicos.

Nietzsche (2003) fala de uma força plástica que, crescendo a partir de si mesma, se

transforma e incorpora ao que é estranho e passado, curando assim as feridas e reconstituindo por

si mesma as formas partidas e perdidas. E aquilo à que tal força não consegue subjugar, ela

precisa saber esquecer. Pois há um grau de insônia e de sentido histórico a partir do qual o

vivente, seja ele um homem, um povo ou uma cultura, se degrada e, por fim, sucumbe.

Bachelard (1989) chega a desenvolver a ideia de uma sublimação pura, isto é, de uma

sublimação que nada sublima, mas que é “aliviada da carga das paixões, liberada do ímpeto dos

desejos” (p. 13). Nesta esfera, enquanto o espírito13 se abranda e relaxa, a alma se mantém em

vigília, sem tensões, repousada e ativa. Os problemas sem esperança de solução para a reflexão

são continuamente solucionados pela atividade viva da imaginação. O mundo adquire então uma

felicidade que lhe é própria, independentemente do drama a que esteja sujeito. 13 Bachelard (1989) afirma que a “consciência associada à alma é mais repousada, menos intencionalizada que a consciência associada aos fenômenos do espírito (p. 6)”.

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O esquecimento, portanto, se não permite ao homem penetrar em um mundo novo, ao

menos lhe dá a possibilidade de se apropriar de maneira nova do seu próprio mundo. Como nos

fala Marcel Proust14: “Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras,

mas ter um olhar novo”. Este olhar pueril, que vê ao mundo como se fosse pela primeira vez,

afasta-nos em proximidade e intimidade com o antigo, nos desprendendo das antigas amarras

para então vivermos o mais livre e intensamente no aqui e agora. Vive-se assim um recomeçar,

um retorno ao espírito da infância: “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar,

um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação”

(Nietzsche, 2006, p. 38).

O lúdico é um movimento a serviço da vida que se anuncia pelo esquecimento, vencendo

desta forma a imobilidade da vontade que, sobrecarregada pela obrigação de “ser” ou “dever ser”,

se vê aliviada, como se dela fosse retirada um peso das costas. A manifestação do espírito lúdico

se dá em uma esfera livre de toda crítica, seja ela intrínseca ou extrinsecamente motivada, na qual

o sensível e o inteligível se fundem em um impulso único, sem distinções, que se engaja

completamente em seu próprio movimento e ação.

Pois se o ato de saber, como fala Nietzsche (2003), ao reconhecer o poder histórico de um

fenômeno, isto é, sua ilusão, sua injustiça, sua paixão e em geral tudo o que há de profano

envolto na obscuridade daquele fenômeno, esteriliza o poder deste mesmo fenômeno, o espírito

lúdico restaura seu encanto. E é nesse sentido que Campbell (2002) afirma que todo ato

verdadeiramente criador deve romper com as regras. Não no sentido de que as regras não devam

ser estudadas e praticadas, mas sim que, após aprendê-las, é preciso esquecê-las. É preciso, pois,

que o saber seja acompanhado de igual esquecimento do saber; e só então a inspiração fluirá.

Mas um homem que não possui o poder de esquecer e que está condenado a ver por toda

parte um vir-a-ser não pode mais acreditar em seu próprio ser, se vendo perdido em meio a esta

torrente do vir-a-ser na qual tudo se desmancha em pontos móveis. Porque, como lembra

Nietzsche (2003), se a todo agir liga-se um esquecer, aquele que deseja sentir apenas

historicamente é semelhante àquele que se obriga a abster-se de dormir, vivendo apenas de

ruminação e de ruminação sempre repetida.

O espírito lúdico surge então, para aquele que está mortificado por seu próprio sentido

histórico, como uma possibilidade de ressurreição, de renovação, de afirmação da vida. Ao

14 Proust, anotações pessoais.

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permitir ao homem se libertar de sua vontade de dominação, o espírito lúdico alivia o peso de sua

responsabilidade para com o mundo, deixando-o livre para se manifestar junto a este não mais

como servo ou senhor, mas como parte integrante de uma única e mesma condição, caracterizada

pelo inocente e repetitivo movimento que orienta e impulsiona a vida: o nascer-morrer para

renascer.

O espírito lúdico, portanto, não se reconhece enquanto essência ou dono do mundo. Mas,

reconhecendo a fragilidade de seu mundo de faz de conta, ao invés de sucumbir, renasce pela e na

possibilidade de vir-a-ser o que quiser. Pois a mesma verdade que não se sustenta ao exame

apurado é também aquela que oferece infinitas possibilidades de representação. O espírito lúdico

“faz da vida um verdadeiro palco”, no qual a comédia e a tragédia da vida se representam em

“carne e osso”.

II.V. O sagrado esporte e a profana droga

“I’m clean”, respondeu o americano Michael Phelps, o maior campeão das olimpíadas

modernas, ao ser questionado sobre a possibilidade de doping em uma entrevista coletiva

realizada durante os jogos olímpicos de Pequim. A afirmativa, em linhas gerais, revela uma

distinção entre um lado “limpo”, em que se concentra o esporte, e um lado “sujo”, à que fica

renegado o doping (ou seja, as drogas). Ao dizer “Estou limpo”, Phelps também nega estar

“sujo”, dopado, drogado. Seu discurso expressa a crença de que uma atleta, para competir nos

jogos olímpicos, deve ter seu corpo livre de contaminações. Pois as drogas são substâncias

impuras, que poluem aqueles com quem entra em contato, mesmo que indiretamente. Assim, um

atleta contaminado contamina a todo o ambiente olímpico; e por isso deve ser rechaçado.

Em recente artigo da revista Piauí intitulado “Atletas, dopai-vos”, Harazin (2008) nos

lembra que: “As ratazanas do doping esportivo estão sempre à espreita de algo novo para sua

clientela voraz” (p. 34). O doping, mais uma vez, se associa à ideia de “sujeira”. Aqueles que

habitam seu submundo, as “ratazanas”, correm por entre os “esgotos” atrás de alimentos para

suas “crias”. Como ratos a espreita de comida, vagam por entre as sombras atrás de novos

métodos e substâncias capazes de nutrir o “voraz” apetite que demanda dos atletas do esporte de

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alto nível. Porém, ao contrário das verdadeiras ratazanas à que estamos acostumados, não vivem

no esgoto, a procura de migalhas e sobras, mas têm a sua disposição verdadeiros banquetes (ou

coquetéis), fornecidos – extra-oficialmente, é claro - por laboratórios farmacêuticos devidamente

regulamentados15. Verdadeiras maravilhas da ciência moderna que, capazes de revolucionários

avanços no âmbito da saúde, são também co-responsáveis por proezas olímpicas.

Assim, as substâncias e métodos empregados nas práticas de doping não são considerados

impuros em si, já que quando utilizadas para fins considerados nobres possuem uma aprovação

quase que unânime. Semelhante a comida de maneira geral, que de alimento sagrado passa a lixo

quando saí da mesa e é depositada na lixeira, as práticas de doping só adquirem conotação

negativa, se tornando “sujas”, quando entram no “mercado negro”. A diferença é que, no caso do

doping, o “lixo” não é aquilo que sobra ou que está estragado, mas produtos quase sempre dentro

do prazo de validade e com padrão de qualidade garantido. A conotação negativa não advém do

próprio produto, mas das intenções de seu uso.

A sujeira, como nos esclarece Douglas (1991), é um símbolo de impureza, de algo capaz

de contaminar àquilo com o qual entra em contato. Sempre que a sujeira “toca” em algo, ou este

algo se torna sujo ou a própria sujeira se purifica16. Daí que a mesma mão suja que contamina a

comida seja purificada pela água. Assim como uma água contaminada pode, ao invés de limpar,

sujar. O fato é que o limpo e o sujo, o puro e o impuro não são sempre opostos absolutos, mas

podem ser categorias relativas. Aquilo que é limpo em relação a uma situação pode ser sujo em

relação à outra e vice-versa.

Na prática esportiva, por exemplo, o uso de determinadas substâncias consideradas

dopantes é autorizado no caso de alguns atletas portadores de determinadas necessidades

especiais e terminantemente proibido para todos os outros atletas. Já substâncias desconhecidas

ou ainda não detectáveis pelos métodos antidoping são, na prática, “limpas”, uma vez que seu

uso ou não passa desapercebido e, portanto, está isento de sanções ou punições. Só a partir do

15 Pouco antes da abertura dos Jogos Olímpicos em Pequim, inspetores do governo chinês visitaram 257 empresas produtoras de anabolizantes e hormônios peptídicos, além de 2.739 atacadistas e 340 mil varejistas. As investigações levaram à suspensão da produção de 30 empresas e à cassação de licença de 25 outras firmas distribuidoras de substâncias que podem ser aproveitadas para doping. Além disso, as autoridades chinesas tomaram medidas contra 318 sites que divulgavam informações sobre a venda de anabolizantes e hormônios peptídicos.16 O que podemos tirar daqui é que o isolamento do esporte e de seus praticantes do contato com as drogas é uma questão essencial para a manutenção da “natureza” de ambos, pois, caso não sejam preservados à parte, dar-se-á início a um processo de profanização do esporte assim como, por outro lado, de naturalização das drogas.

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momento em que puderem ser detectadas é que o uso destas substâncias se tornará “sujo”,

podendo inclusive “sujar” e invalidar as conquistas do passado.

Nesse sentido, a “sujeira”, no que concerne ao doping, esta muitas vezes associada à

noção de segredo. Se um atleta, como nos revela a já citada afirmativa de Phelps, deve ser

necessariamente “limpo”, ele acaba sendo obrigado, no caso de estar se dopando, a ocultar a

impureza de seus atos para dar-lhe a aparência inversa. O segredo possibilita assim a

transmutação do impuro em puro. Por outro lado, a revelação do segredo, como ocorreu

recentemente com o próprio Phelps, que foi flagrado inalando maconha em uma festa com

amigos, realiza o movimento contrário, transformando o puro em impuro.

A quebra do segredo leva a condenação daquele que foi pego “jogando sujo”. No caso de

Phelps, a “mancha” em sua carreira exemplar, que exigiu um pedido de desculpas ao “mundo”, e

a perda de um dos seus patrocinadores foram suficientes, já que o atleta não foi “desmascarado”

durante nenhuma competição. Já no caso de um atleta que seja flagrado num exame antidoping

ocorrido no decorrer de uma competição, a punição será muito mais severa, mesmo que esta

competição já tenha terminado.

Este tipo de punição retroativa sugere que o julgamento daquilo que é bom ou mal está

relacionado muito menos às circunstâncias materiais de um ato do que com os motivos e

disposições do agente infrator. Não é porque o doping tenha sido higienicamente maléfico ou

benéfico, ocasionando algum dano ou benefício à condição física de um atleta durante a

competição, que ele deve ser punido, mas sim porque ele representa um estado espiritual de

indignidade. Um atleta sob o efeito de substâncias dopantes é indigno de participar entre os

“puros”, e por isso suas conquistas devem ser invalidadas e ele deve ser afastado ou banido do

meio sacro-santo-esportivo.

É claro que um campeão pode ter suas habilidades postas em dúvida, afinal, até que ponto

sua vitória se deve principalmente a méritos próprios ou a benéficos proporcionados por uma

substância proibida? Não podemos negar as evidências de que o uso de algumas substâncias

proibidas corresponda a melhoras significativas no desempenho físico. Mas será possível creditar

somente a elas os resultados de toda uma vida de sacrifícios e trabalho duro?

É comum a ideia de que “muitos (atletas) submeteram-se a longos e cansativos

treinamentos” enquanto “outros, porém, foram somente à farmácia”. No entanto, ao contrário

desta primeira impressão, via de regra o uso de drogas não se dá no sentido de aliviar o fardo,

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mas sim no de possibilitar enfrentar um fardo ainda mais pesado. As substâncias dopantes não

operam milagres. Sem muito sacrifício e dedicação, não se faz um campeão. As drogas em geral

são utilizadas para que os atletas suportem um nível de treinamento sobre-humano, que seria

impossível de se alcançar sem a ajuda de recursos considerados moralmente duvidosos. O

problema, nesse sentido, não se concentra no uso ou não de drogas, mas na interminável busca de

superação, isto é, na constante tentativa de elevação do humano ao super-humano.

E por que não falar também das novas tecnologias empregadas nos materiais esportivos e

das diferentes condições financeiras à que os atletas de diferentes países tem acesso? Por que não

limitar o uso de tecnologias e a quantidade de investimentos a ser empregada na preparação dos

atletas? Por que não oferecer a todos as mesmas condições de treinamento? Ou será justo que uns

tenham tudo do “bom e do melhor” e outros corram descalços? Não são apenas as substâncias

ilícitas as responsáveis pela injustiça no esporte, mas também e principalmente as substâncias,

equipamentos e métodos lícitos de treinamento à que só uns poucos tem acesso.

E quanto às outras substâncias que não proporcionam aumento de rendimento? Porque um

atleta deve ser afastado de sua profissão por utilizar algumas substâncias como a maconha e a

cocaína que, dizem, fazem mal à saúde e nem mesmo apresentam uma melhora de rendimento

significativa? Por que esta mesma lógica não vale para o álcool e o tabaco? Se um atleta

profissional se encontra em uma situação em que precisa de ajuda, porque, em vez de ajudá-lo,

puní-lo com o afastamento de sua profissão e assim contribuir para a sua marginalização quando,

dizem os especialistas em toxicomania, ele precisaria ser tratado e reintegrado à sociedade? Por

que o esporte é a única profissão em que um trabalhador, apesar de não ter diretamente sob sua

responsabilidade a segurança de seus companheiros, deve ser punido pelo uso de drogas que,

aliás, objetivam melhorar seu desempenho?

A lista de indagações que põem em xeque os argumentos antidoping é grande e poderia

continuar se alongando. No entanto, mesmo contra todas estas incoerências, os argumentos

antidoping continuam vigorando e suas práticas repressivas se tornam cada vez mais severas.

Para se ter uma ideia geral, vale revisar o esclarecedor artigo de Tavares (2008), que versa a

respeito dos argumentos que fundamentam a proibição do doping em termos de seu mérito

lógico, dando ênfase à capacidade do discurso antidoping em fazer valer a proposição da

imoralidade do doping.

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O objetivo de Tavares (2008) não é examinar os argumentos antidoping pelo caráter de

sua veracidade, mas sim pela competência de serem auto-suficientes e necessários ao combate do

uso de drogas no esporte. Nesse sentido, o autor destaca e examina o que ele entende serem os

cinco principais argumentos antidoping, a saber: (1) o doping é potencialmente perigoso à saúde;

(2) o doping melhora o desempenho esportivo; (3) o doping é uma ajuda artificial ao desempenho

esportivo; (4) o doping desloca as competições esportivas das arenas para os laboratórios; (5) a

prática de doping por parte de uns força outros a adotarem as mesmas práticas.

O argumento do risco à saúde, segundo Tavares (2008), parece ser aquele que demonstra

apresentar maior força e visibilidade. Com raízes no discurso médico, “um tipo de discurso de

intervenção freqüentemente de ordem moral” (p. 2) que aparece quase sempre revestido e

validado por um tom de cientificidade, este primeiro argumento parte do princípio de que as

evidências técnicas em que se fundamenta legitima-o como regulador do comportamento

individual e social.

No entanto, apesar de reconhecer que o uso de algumas substâncias pode ser danoso à

saúde, Tavares (2008) afirma que, na prática esportiva em si, quanto maiores são os níveis de

exigência de rendimento maiores são os riscos potenciais contra a saúde de seus praticantes. De

modo que as atividades físicas envolvem riscos que aumentam proporcionalmente ao nível das

exigências físicas envolvidas na atividade praticada. Assim, diante da quantidade de lesões,

dores, torções e fraturas que vivenciam os atletas de alto nível, torna-se risível a ideia de que o

doping precisa ser proibido simplesmente porque pode causar algum dano à saúde.

Com relação à eficácia ou não das substâncias e procedimentos considerados doping,

Tavares (2008) nos lembra que, tomando mais uma vez em conta a prática esportiva, o objetivo

de todo treinamento esportivo de alto nível é tão somente a melhora do desempenho. Logo, se a

busca constante da melhora do desempenho faz parte da própria natureza da competição

esportiva, por que um artefato capaz de servir a este elemento central da prática esportiva seria

por si mesmo, algo condenável? Quando colocada frente às conseqüências práticas do uso de

outros elementos acessórios a prática esportiva, como o uso de equipamentos de última geração, a

ideia de que o uso de drogas é moralmente errado apenas porque potencializa o desempenho

torna-se insustentável.

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Acontece, entretanto, que tal argumento parece estar baseado em alguma derivação do

conceito de fair play17, para o qual o aumento da performance a todo custo parece ser ofensivo a

uma ética fundamental do esporte. Nesse ponto, observa-se claramente a grande contradição de

uma atividade que, caracterizada por uma busca constante de superação, se vê externamente

(moralmente) limitada em seus meios de alcançar tal superação.

No que diz respeito à ideia de que o doping é uma ajuda artificial e, portanto, condenável,

Tavares (2008) indaga que, sob este ponto de vista, os implementos utilizados para o

desenvolvimento das condições físicas necessárias ao progresso atlético também seriam

artificiais. Pois, de acordo com o critério da “des-natureza”, há de se convir que se torna quase

impossível separar e justificar a legitimidade do uso ou não dos suplementos, das vitaminas, dos

esteróides anabólicos, da testosterona ou mesmo das próprias práticas “anti-naturais” do

treinamento esportivo, como a hipertrofia provocada por exercícios contra a resistência.

Com efeito, diante da questão da artificialidade, se faz necessário perguntar se não há

apenas uma série implementos à prática esportiva que são artificialmente desenvolvidos para

ampliarem as potencialidades do gesto esportivo humano, como, também, se muitos dos próprios

gestos esportivos não são, eles mesmos, artificiais? Afinal, não é artificial o que é próprio do

fazer humano? Ou seja, tudo aquilo que é produzido pelo homem e que não é capaz por si mesmo

de se auto reproduzir?

O quarto argumento, que defende que o desenvolvimento de substâncias dopantes acaba

por deslocar as competições esportivas dos estádios para os laboratórios de farmacologia, perde

credibilidade diante da constatação de que não há deslocamento das competições para os

laboratórios de fisiologia, para os centros de treinamento ou de tecnologia que também são

destinados a melhora da performance esportiva. Ou será que as pesquisas desenvolvidas nesses

laboratórios são menos válidas do que as dos laboratórios de farmacologia?

Ainda sob a perspectiva da competitividade deslocada, Tavares (2008) lembra que as

competições internacionais, na medida em que os países ricos possuem recursos materiais e

tecnológicos muito superiores, inclusive no que diz respeito a produção de drogas cada vez mais

eficientes e não detectáveis pelos exames antidoping, acabam por ser fortemente injustas. O que

levanta a pergunta: será que a liberação do uso do doping possibilitaria a utilização de todo o

potencial tecnológico por parte dos países ricos e assim aumentaria ainda mais as diferenças? Ou 17 Tavares (2008) afirma que, de forma bastante genérica, o fair play pode ser compreendido como uma atitude de prática esportiva moralmente boa.

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será que este potencial já não é amplamente utilizado18 e simplesmente mascarado pelo dilema

ético e legal que vigora atualmente?

Por fim, Tavares (2008) lembra que, se é possível afirmar que o uso de doping é imoral

porque força aqueles que não querem a usá-lo, também é possível afirmar que o nível de

treinamento sobre-humano hoje requerido também é imoral no sentido de não dar outra opção

para aqueles atletas que desejam chegar ao alto nível, senão treinar no mesmo nível que ele

imagina ou sabe que os outros estão treinando. E, como não poderíamos deixar de acrescentar, é

justamente esta exigência de um supertreinamento uma das principais motivações ao uso de

substâncias e métodos de doping.

Parece, portanto, que os argumentos lógicos elaborados com o intuito de fundamentar a

proibição do doping não são suficientes para legitimar ou fomentar o combate ao uso de drogas

no esporte. O fato é que as explicações lógicas, por si mesmas, não são capazes de justificar uma

adesão à causa do combate às drogas no esporte. Tal movimento de oposição exige que o corpo

social se sinta de alguma forma ameaçado por forças encarnadas nas drogas. Para

compreendermos estas “forças mobilizadoras” e os significados que sustentam o imaginário do

combate ao doping acreditamos ser necessário voltarmos à resposta de Phelps, dando uma maior

ênfase à relação entre o “limpo” e o “sujo”, o “puro” e o “impuro”.

Segundo Douglas (1991), a comparação entre os comportamentos a respeito da sujeira em

várias partes do mundo, permite considerar que, quanto mais nos aprofundamos nas ideias de

sujeira, “mais óbvio se torna que estamos estudando sistemas simbólicos” (p. 49). Para a autora,

existem duas notáveis diferenças entre as ideias contemporâneas de profanação e aquelas das

culturas tidas como “primitivas”. A primeira diferença é relativa ao fato de que a atual

necessidade de se evitar a sujeira é considerada uma questão de higiene ou estética que não se

relaciona com a religião. A segunda diferença leva em conta que o conhecimento de organismos

patogênicos, dominando a atual noção de sujeira, transformou de tal modo a forma de pensar em

sujeira que torna difícil não associá-la a um contexto de patogenicidade.

Segundo Douglas (1991), se formos capazes de analisar as bases do ato de evitar a sujeira

antes de sua transformação pela bacteriologia, ou seja, de abstrair patogenia e higiene de nossa

18 Se pensarmos que as substâncias e métodos utilizados nas práticas de doping são oriundos de pesquisas de última geração, que recebem enormes quantidades de recursos e são realizadas por empresas com tecnologia de ponta, torna-se questionável a suposição de que a liberação do doping representaria um grande salto no sentido de potencializar seus efeitos e aumentar ainda mais a distancia entre os países ricos e pobres.

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noção de sujeira, voltaremos à velha definição de sujeira como um tópico inoportuno. Nela, a

sujeira nunca é um acontecimento único, isolado, mas uma contravenção de uma ordem, de um

conjunto de relações ordenadas, de um sistema. Na medida em que o estabelecimento de uma

ordem implica na rejeição de elementos inapropriados, a sujeira surge como um subproduto de

uma classificação sistemática de coisas.

A ideia de sujeira, portanto, só pode ser compreendida enquanto imersa no campo do

simbolismo, sendo suja toda anomalia encontrada em um sistema ordenado. O comportamento de

poluição é uma reação que condena os objetos ou ideias que confundam ou contradigam as

classificações tidas por ideais. Assim, as regras de sujeira exigem um processo de separação por

meio do qual algumas coisas e pessoas estarão sujeitas a restrições e outras não. Tais restrições

pretendem proteger o sagrado contra a profanação e o profano contra a intrusão do divino.

Acontece que não existe um espaço sagrado ou profano por excelência, pois que o

sagrado e o profano são sempre um a condição de existência do outro. Existe, sim, a tentativa de

separá-los, que é fundamental a tentativa de ordenar o mundo. Como disse Eliade (1992), a

primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano, se mostrando como

qualquer coisa absolutamente diferente do profano. É a partir desta diferenciação que o sagrado

funda o mundo. Porque o mundo profano é homogêneo e indiferenciável, mas o sagrado opera

uma ruptura, uma quebra, estabelecendo porções de espaço qualitativamente diferentes. O

sagrado cria um ponto de referência, um centro que permite a orientação no que antes era uma

extensão homogenia e infinita.

Nesse sentido, a sujeira é uma anomalia que ameaça a posição de “firme fundamento” que

o sagrado representa na sustentação de um sistema simbólico. Algo ou alguém impuro não pode

comungar com o sagrado sob o risco de destruição da própria ordem. Quando isto ocorre, é

preciso que seja prontamente realizado um ritual de purificação, que pode ser caracterizado por

um simples lavar das mãos ou mesmo pelo sacrifício de um “bode expiatório”. Caso este ritual

não seja realizado, o sagrado é desacreditado e perde sua eficiência. Pois tudo o que é sagrado,

sob o risco de se tornar impuro diante do menor contato com a sujeira, deve ser protegido contra

a profanação.

Segundo Douglas (1991), toda impureza justifica uma rejeição, de modo que alguém

impuro está sujeito a acusação e a execração, carregando consigo um rótulo que pode levá-lo ao

exílio ou a morte. Assim também, um atleta flagrado num exame antidoping ameaça a pureza do

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esporte e, por isso mesmo, além de ser afastado ou mesmo banido do meio esportivo, acaba

sempre estigmatizado.

Nesse sentido, ao afirmar que está “limpo”, Phelps está também afirmando que o esporte é

um espaço sagrado em nossa cultura e que, por isso mesmo, deve ser protegido contra a poluição

do doping. A prática esportiva exige que os atletas estejam “limpos”, porque um atleta “sujo”

pelo uso de drogas profana o sacrossanto território do esporte. Daí que, em casos de

contaminação, o responsável por tal profanação deve ser julgado e punido por um tribunal,

servindo de exemplo (bode expiatório) para todos.

Segundo Douglas (1991), existem várias formas de lidar com a sujeira. De forma negativa

é possível ignorá-la, não percebê-la ou, percebendo-a, condená-la. Já de forma positiva podemos

simplesmente confrontá-las e tentar criar um novo padrão de realidade onde elas tenham um

lugar. No caso do doping esportivo, é possível observar que a posição predominante é a de

negação, de condenação. Mas é necessário reconhecer que a negação do doping é também um ato

positivo, pois que o confronta e relega-o às áreas de “esgoto”, local no qual toda sujeira deve ser

jogada e pelo qual é levada para o subterrâneo, longe do espaço sagrado.

Todo e qualquer sistema de classificações dá origem a anomalias, assim como toda e

qualquer cultura também apresenta meios de lidar com eventos ambíguos ou anômalos. Dentre

estes meios, Douglas (1991) destaca os seguintes: (1) a ambigüidade é freqüentemente reduzida

pela decisão entre uma ou outra interpretação; (2) uma anomalia pode ser fisicamente controlada;

(3) a evitação de coisas anômalas confirma e reforça as definições às quais elas não se ajustam;

(4) a atribuição de perigo coloca um assunto acima de possíveis discussões, reforçando a

conformidade; (5) símbolos ambíguos podem ser utilizados para enriquecer um significado ou

para chamar a atenção a outros níveis de existência.

Ao aproximarmos estes meios da proibição do doping esportivo, podemos observá-los em

ação na seguinte ordem: (1) O uso do doping é terminantemente proibido, não havendo espaço

para discussões; (2) os exames antidoping eliminam as anomalias sociais identificando-as e

excluindo-as; (3) a reprovação absoluta do doping reafirma a pureza do esporte; (4) a afirmação

enfática dos riscos do doping faz da proibição assunto hegemonicamente não aberto a

contestações; (5) a presença do doping no esporte demonstra que a “tentação” é grande e que “o

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caminho é longo e a porta estreita” (o que leva muitos a se “perderem”)19, mas que a superação é

heróica e a vitória gloriosa.

Constata-se assim que um sistema simbólico se constitui no esporte valorizando uma

prática sã, sem doping, bem como uma imagem de pureza do atleta. Tudo aquilo que pode

macular ou obscurecer esta pureza deve ser combatido. O que pode ser constatado no artigo 7 da

26º reunião da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 1991:

El deporte de alto nivel y el practicado por todos deberán ser protegidos contra cualquier

desviación. Las serias amenazas para sus valores morales, su imagen y su prestigio que

representan ciertos fenómenos como la violencia, el dopaje y los excesos comerciales deforman

su naturaleza misma y alteran su función educativa y sanitaria (UNESCO, 1991).

Nesse sentido, podemos afirmar que o doping esportivo é um paradigma da sociedade

contemporânea, na qual o combate ao doping é a expressão localizada de um fenômeno mais

amplo. O esporte representa exemplarmente os valores sagrados da moral e da ética universais.

As drogas, por sua vez, são impuras porque fazem “tremer” estas bases morais sobre as quais se

firmou a nossa sociedade e, logo, a uma de suas mais lídimas expressões, o esporte. Como

reconhece a recomendação número 5 do MINEPS II (1988), intitulada “Luta contra o doping”, o

doping no esporte é parte do problema geral do consumo ilícito de drogas na sociedade. Pois, se o

objetivo da Convenção Internacional contra o Doping no Esporte realizada pela Unesco em 2005

foi o de “promover a prevenção e o combate do doping no esporte, com vista à sua erradicação”

(art. 1, p. 5), é porque este objetivo não é exclusivo ao âmbito esportivo, mas provém de uma

questão maior, também manifesta no esporte.

Diante destas considerações, a pergunta que nos parece ser a mais razoável é: como o

esporte, também ele “vítima” das drogas, pode ser capaz de preveni-las e combatê-las? Se o

esporte não é páreo para as drogas nem mesmo dentro de seus próprios domínios, como pretende

“vencê-las” fora? A resposta a estas perguntas parece não estar no esporte em si, mas na

hierarquia simbólica que o coloca em oposição direta às drogas. Enquanto representante do

sagrado na simbólica social, o esporte é um instrumento de purificação social que, por meio das

19 Como aparece em um site da Internet: “O grande volume de dinheiro gerado pelos patrocinadores e os atrativos louro$ para os vencedores estão tentando os atletas a tomarem a via mais curta para o topo. É aí que entram as drogas” (grifo meu, Revista Eletrônica de Química, s.d.).

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suas funções educativa e sanitária, é capaz de “limpar” as “impurezas” – na qual se incluem as

drogas - e assim esterilizar o meio social de possíveis ameaças à sua saúde.

Tal perspectiva permite compreender o fato de que o esporte, mesmo sendo um meio de

prevenção e combate às drogas, pode ser ele mesmo contaminado pela presença e pelo uso de

drogas. Afinal, não é apenas o puro quem pode agir sobre o impuro; o sagrado também pode ser

contaminado pela sujeira. O não quer dizer que o sagrado, em sua essência, deixa de ser puro.

Assim como um tecido branco não deixa de ser branco quando sujo, o sagrado, quando

profanado, pode ser limpo e restituir sua brancura. É claro que certas maculas acabam por marcar

profundamente, deixando verdadeiras manchas indissociáveis do tecido. No entanto, a grande

maioria delas se resolve com um simples ritual de purificação, como podemos constatar nas

punições e nos castigos aplicados à atletas descuidados.

Parece, portanto, que é nesta “essência culturalmente adquirida” do esporte que

encontramos as fundamentações e justificativas que dão a este fenômeno a fama de grande

instrumento de prevenção e combate às drogas. Muito mais do que as qualidades intrínsecas à

prática esportiva propriamente dita, são as qualidades simbolicamente vinculadas que garantem

ao esporte o status de que ele está impregnado.

II.VI. Jogo e Significado

Na perspectiva de Huizinga (1980), o jogo é uma função significante que ultrapassa os

limites das atividades puramente físicas ou biológicas. O jogo não se liga à outra coisa que não

seja o próprio jogo, não havendo nele qualquer outra espécie de finalidade a não ser jogar. O jogo

deve ser considerado em si mesmo e no que ele significa para os próprios jogadores, pois, quem

joga põe sempre alguma coisa “em jogo” que transcende suas necessidades imediatas de vida e dá

um sentido a sua ação. Sendo legítimo avaliar e compreender o jogo como uma “totalidade”, isto

é, como uma forma específica de atividade que se caracteriza por ser distinta da vida “comum”,

em si mesma “significante”, e que se apresenta como uma função social.

O autor acredita que o jogo não é passível de definição exata em termos lógicos,

biológicos ou estéticos. O que obriga àquele que procura compreender sua natureza e significado

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a se limitar em descrever suas principais características. Com este objetivo, o autor distingue as

características do jogo em formais (voluntariedade, regras, espaço-tempo próprios, evasão da

vida real) e informais (tensão e incerteza, representação do “faz-de-conta”, o “mais uma vez”

como repetição, superação e auto-superação).

Antes de mais nada, Huizinga (1980) afirma que é preciso distinguir o jogo como uma

atividade voluntária que, se sujeita a ordens, deixa de ser jogo para ser no máximo uma imitação

forçada. Aquele que joga o faz porque gosta de jogar. É aí que reside a sua liberdade. A única

necessidade do jogador é a necessidade do prazer de jogar. Se esta necessidade se esvai, o

jogador abandona o jogo. Nem sempre no sentido de sair fisicamente, mas ao menos no de sair

“de jogo”. O jogo jamais é imposto enquanto tarefa, necessidade física ou dever moral. Pois o

jogo não desempenha funções morais nem se liga às noções de obrigação ou dever.

A segunda característica destacada por Huizinga (1980) é a de que o jogo não é nem vida

“corrente” nem vida “real”. Trata-se, ao contrário, de uma evasão da vida “real” para uma esfera

temporária de atividade com orientação própria. O jogo participa da esfera do “faz de conta”.

Sem, entretanto, que está consciência de “fazer de conta” impeça de algum modo que o jogo se

processe sob a maior seriedade. Motivo pelo qual o autor afirma ser impossível se dizer que “o

jogo não é sério”, porém perfeitamente possível se dizer que “o jogo é a não-seriedade”. Nunca

há um contraste bem nítido entre o jogo e a seriedade, de forma que a aparente inferioridade do

“faz de conta” é sempre superada pela seriedade do jogo. O jogo então se torna sério e a

seriedade, jogo.

O jogo não pertence à vida “comum”, diz Huizinga (1980), ele se situa à parte do

mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos. É, em sua qualidade de

distensão, um intervalo na vida cotidiana que, no entanto, não deixa de ser parte integrante da

vida em geral. O jogo se insinua sempre como uma atividade temporária e desinteressada,

autônoma em sua finalidade e direcionada a uma satisfação que consiste em sua própria

realização. A finalidade a que obedece é, portanto, intrínseca ao próprio jogo e não redutível a

necessidades exteriores.

O jogo, conforme Caillois (1994), não apresenta conseqüências para a vida real, se

opondo a seriedade desta e por isso sendo taxado de frívolo. O jogo não produz nada: nem bens

nem obras. Ao final de uma partida, tudo pode e deve voltar a começar no mesmo ponto, sem que

nada de novo tenha surgido: nem produtos manufaturados, nem colheita ou tampouco ampliação

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de capital. O jogo é uma ocasião de puro gasto de tempo, de energia, de habilidade e com

freqüência de dinheiro, que se destina à compra de acessórios ou ao aluguel de um espaço

apropriado.

A terceira característica a que se refere Huizinga (1980) é o fato de que o jogo se

distingue da vida “comum” tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. Para que o jogo

ocorra, diz o autor, é preciso que haja certo isolamento e certa limitação de tempo e de espaço. O

jogo possui um caminho e um sentido próprios, tem início e fim. Porém esta limitação não

impede que, mesmo depois de chegar ao fim, o jogo permaneça como uma criação nova do

espírito, um “tesouro a ser preservado pela memória” (p. 13). A sensação de estar

“separadamente junto numa situação excepcional, de partilhar algo importante, de se afastar do

resto do mundo numa recusa das normas habituais, conserva sua magia para além da duração de

cada jogo. O que possibilita ao jogo ser transmitido e se tornar uma tradição, podendo ser

repetido a qualquer momento.

Segundo Huizinga (1980), a limitação no espaço é mais flagrante do que a limitação no

tempo, pois todo jogo existe e se passa no interior de um campo previamente delimitado, seja ele

material ou imaginário, deliberado ou espontâneo. Há sempre um terreno de jogo em cujo interior

se respeitam determinadas regras, um mundo temporário dentro do mundo habitual dedicado à

prática de uma atividade especial.

Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea. Tal como não há diferença formal entre o jogo e o culto, do mesmo modo o “lugar sagrado” não pode ser formalmente distinguido do terreno do jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial (Huizinga, 1980, p. 13).

Ao se adentrar no círculo do jogo, as leis e os costumes da vida cotidiana perdem

validade. Cada um é diferente e faz coisas diferentes. Nesse mundo reina uma nova ordem

específica e absoluta. E é precisamente aqui que se encontra a quarta característica do jogo: “ele

cria ordem e é ordem” (Huizinga, 1980, p. 13). O jogo introduz na confusão da vida e na

imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exigindo uma ordem suprema e

delicada.

Para que um jogo aconteça, diz Huizinga (1980), suas regras devem ser bem definidas a

ponto de não permitirem brechas para discussões. Pois à menor desobediência, o jogo é privado

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de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. As regras do jogo devem ser respeitadas como

verdades inabaláveis. Se algum jogador desrespeita ou ignora as regras é considerado um

“desmancha-prazeres”, um covarde que destrói o mundo mágico do jogo e, por castigo, deve ser

expulso. Pois um “desmancha-prazeres” ameaça a própria existência da comunidade de

jogadores, privando-os da ilusão do jogo. Ao se retirar de um jogo, o jogador denuncia o caráter

relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, havia se encerrado com os outros. A

desobediência às regras é a derrocada do mundo do jogo e conseqüentemente seu fim.

Como diz Caillois (1994), o jogo não tem mais sentido que o jogo mesmo. E aquele que

se nega a jogar denuncia o absurdo das regras, que, puramente convencionais, não possuem

nenhum sentido. Pois não há nenhuma razão para que as regras sejam como são e não de outra

maneira. Quem não as aceita como acima de toda discussão, imperiosas e absolutas, deve

necessariamente considerá-las uma extravagância manifesta. Mas aquele que se propõe a jogar,

aceitando as regras precisas e arbitrárias como irrecusáveis, penetrará em um espaço definido no

qual, durante um tempo determinado, as confusas e complicadas leis da vida serão substituídas

pela delicada, porém suprema, ordem do jogo. Por si mesma, a regra cria uma ficção. E a ficção,

o sentimento de como se, substitui a regra e cumpre exatamente a mesma função.

Todo jogo é, portanto, um sistema de regras, que nada mais são do que convenções

arbitrárias, imperativas e inapeláveis que definem o que é e o que não é jogo, determinando o

permitido e o proibido. E o fato de que as regras não podem ser violadas sob nenhum pretexto, já

que isto resultaria no fim do jogo, implica que o jogo só se mantém pelo desejo de jogar, ou seja,

pela vontade de respeitar as regras. É preciso jogar o jogo ou não jogar em absoluto. Pois o jogo

é uma atividade livre, que só se joga quando se quer e durante o tempo que se quer.

A palavra jogo, segundo Caillois (1994), não designa apenas a atividade específica a que

dá nome, mas também a totalidade das figuras, dos símbolos e dos instrumentos necessários a

essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo. Nesse sentido, falar em jogo é se

referir a conjuntos complexos e enumeráveis em que um elemento a mais ou a menos torna o

jogo impossível ou falso, a menos que a retirada ou o aumento de um ou vários elementos se

anuncie de antemão e responda a uma intenção precisa. Essa ideia de totalidade cerrada, completa

em um princípio e imutável, concebida para funcionar sem outra intervenção exterior que a

própria energia que a move, certamente constitui uma inovação preciosa em um mundo

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essencialmente em movimento, cujos elementos são praticamente infinitos e, por outra parte, se

transformam sem cessar.

O jogo é, nesse sentido, uma “redução”20 do universo a um “campo de jogo”, na qual o

tempo e o espaço dispersos e ilimitados ganham contornos mais facilmente observáveis e

manipuláveis. Ao delimitar as regras segundo o qual se pode e se deve proceder, o jogo limita as

possibilidades de ação dos jogadores. As regras do jogo criam limites claros e precisos dentro dos

quais os jogadores devem aprender a exercer sua liberdade e, nesse movimento, aprender a jogar.

O jogo consiste então, diz Caillois (1994), na necessidade de encontrar, de inventar

imediatamente uma resposta que seja livre dentro dos limites das regras. A liberdade do jogador é

uma margem concedida a sua ação que é essencial para o jogo e em parte explica o prazer que

este suscita.

O jogo é uma atividade que, por mais paradoxal que possa parecer, ao delimitar limites,

ao invés de aprisionar, liberta. As regras do jogo são, mais do que limites, parâmetros norteadores

que possibilitam o estabelecimento de uma ordem inconteste (já que contestá-la é desistir de

jogar ou criar um novo jogo). Em situação de jogo, o jogador se coloca em uma condição na qual

suas atitudes e movimentos serão sempre direcionados por esta ordem absolutos, que, de maneira

clara e precisa, não deixa dúvidas quanto ao que é ou não permitido.

As regras do jogo não são impostas de maneira autoritária, mas acordadas entre os

próprios jogadores. Os jogadores possuem o direito de, segundo suas vontades e interesses,

concordarem ou discordarem, participarem ou não. Ninguém é obrigado a jogar. Para participar, é

preciso antes consentir com as regras e as condições de jogo. Nem a própria decisão de jogar é

irrevogável, pois é sempre possível voltar atrás e abandonar o jogo. Jogar é, portanto, uma

expressão de livre-arbítrio.

No mundo “real” e ordinário, diferente ao jogo onde as regras são autoimpostas, as regras

são superimpostas. O jogo da vida deve ser jogado segundo regras externas ao próprio jogo. E

não admite que nenhum de seus jogadores infrinja ou renuncie a suas regras, sob o risco de serem

aprisionados (em cárceres públicos ou privados) ou mesmo expulsos (às vezes por pena de

20 Segundo Lévi-Strauss (1989), para conhecermos um objeto em sua totalidade, temos a tendência de proceder começando por suas partes. Fazendo com que a resistência que ele opõe seja sobrepujada com a divisão da totalidade. A redução da escala surge então como um meio de inverter esta situação. Pois, quando menor, a totalidade de um objeto nos parece menos perigosa: “pelo fato de ser quantitativamente diminuída, perece-nos qualitativamente simplificada” (p. 45). Assim, no modelo reduzido, o “conhecimento do todo precede o das partes” (p. 45). E, mesmo que isso não passe de uma ilusão, a razão deste procedimento é justamente criar uma ilusão que gratifique, intelectual e sensivelmente, com um prazer estético.

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morte). As leis e seus fiscais se impõem ao “cidadão” a fim de lhe resguardar seus direitos e

deveres. A educação serve ao ensino das regras e das habilidades necessárias para “vencer na

vida”. Um jovem bem educado, como um bom jogador, será capaz de se mover com liberdade

dentro dos limites socialmente estabelecidos.

No entanto, para que o jogo seja realmente jogo, isto é, uma expressão lídima de

liberdade, suas regras, como verdades que devem ser incontestáveis, mais do que aceitas como

deveres apresentados ou mesmo impostos, devem ser aceitas de maneira espontânea e irrestrita.

Pois as regras são sustentadas pelo desejo de jogar; e nunca o contrário. Quando não há algo

maior do que a própria regra, o jogo não se sustenta. Quando, porém, as regras são tomadas por

todos e cada um como sagradas21, o jogo estabelece um espaço-tempo limitado na qual reina a

mais perfeita ordem. E assim conjuga em si dois aspectos que, como diz Bauman (2003), muito

dificilmente são capazes de se conciliar sem atrito: a segurança e a liberdade.

O espaço de jogo isola dos riscos da vida “real”, permitindo aos jogadores se

movimentarem em uma esfera na qual a possibilidade de erro não traz maiores conseqüências que

a frustração momentânea de uma derrota. O jogo, então, oferece a seus jogadores a chance de

enfrentar os riscos e andar nos limites de suas capacidades. Daí ser considerado por muitos como

uma atividade de superação. Pois os limites estabelecidos pelo jogo, ao invés de restringirem a

liberdade, a ampliam ao extremo.

Quem joga, portanto, ao se apegar às respectivas regras do jogo, se vê separado da vida

corrente, que não conhece nenhuma atividade que um jogo possa tratar de reproduzir fielmente.

Essa consciência da irrealidade fundamental do comportamento adotado que separa o jogo da

vida corrente ocupa então o lugar das leis ordinárias e instaura momentaneamente uma nova

legislação, que é a única que conta.

Assim, como diz Retondar (2004), o jogo, enquanto um fenômeno eminentemente

humano e, como tal, é simbólico22, se enreda em uma lógica própria de sentidos a ponto de o

indivíduo acionar sua produção imaginária e transformar um singelo movimento em abertura

singular para um mundo diferenciado na qual tem acesso a uma nova possibilidade de ser ou

21 Retondar (2004) afirma que o sagrado do jogo não remete ao sagrado religioso, mas sim para o de uma realidade que funda uma relação espaço temporal própria sem qualquer tipo de corolário moral e de profundo significado para o sujeito.22 O símbolo, conforme Chevalier (apud Retondar 2004), exprime o mundo percebido e vivido tal como o sujeito o experimenta. E não em função de uma razão crítica ou de sua consciência, mas em função do conjunto de todo o psiquismo, tanto o afetivo e o representativo quanto, principalmente, o inconsciente.

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daquilo que se deseja ser. Quando o jogo se manifesta, os jogadores fundam um mundo próprio

caracterizado pela descontinuidade com o tempo23 mundano. É o tempo próprio do contrato com o

jogo, que os jogadores estabelecem entre si e que escapa a noção de tempo socialmente

construído.

O jogo, diz Retondar (2004), é uma porta de abertura para a manifestação do lúdico, ou

seja, para a evasão da realidade. O jogo funda um mundo diferenciado na qual o jogador,

embalado pelo princípio de voluntariedade e do prazer de viver aquilo que não vive ou gostaria

de viver, potencializa seus desejos, sonhos e crenças. A evasão lúdica é então uma fuga da

realidade, uma compensação de uma realidade que não suporta em si a presença do espírito de

liberdade, do faz-de-conta, do prazer intenso e da irresponsabilidade para com tudo aquilo que é

utilitário e funcional.

O lúdico, metaforicamente falando, é a alma do jogo. O jogo é a materialização do lúdico: local onde a liberdade e a imaginação se potencializam para garantir ao homem múltiplas produções de sentidos sobre o mundo e sobre a vida, de maneira gratuita, espontânea, embalada pelos desejos e paixões mais secretas (Retondar, 2004, p. 178).

Para Retondar (2004), o jogo se apresenta como um lócus privilegiado de tensão na qual o

homem emerge como possibilidade de construção de sua realidade. Retornar ao jogo é sempre

retornar para uma nova possibilidade de “Ser” no mundo; é apropriar-se inventivamente do

mundo de forma simbólica para dar-lhe novas texturas, cores, sons, ritmos e gostos. O que faz da

produção de sentidos do ato de jogar e da tomada de decisões no interior do jogo sempre uma

decisão muito séria para quem joga, pois, na medida em que se abre para o simbólico, a certeza é

sempre uma possibilidade frágil e efêmera. O jogo não para, seu desfecho é sempre por demais

rápido: ao mesmo tempo em que proporciona alegria também conjuga a tristeza do tempo

passado. Daí o seu permanente transito, a sua indefinição como marca e o seu repetir-se como

busca incessante de preencher alguma coisa que faltou e que nunca será preenchida, o que se

evidencia, paroxisticamente, na atitude compulsiva.

23 Elias (1998) afirma que a ideia de tempo não remete nem a um “decalque” conceitual de um fluxo objetivamente existente nem a uma forma de experiência comum à totalidade dos homens e precedente a qualquer contato com o mundo. Mas faz parte dos símbolos que os homens são capazes de apreender e com os quais, em um dado momento da história da sociedade, são obrigados a se familiarizar como meios de orientação. O tempo é então um símbolo social que regula e impõe uma certa ordem às propriedades de escoamento e impermanência que caracterizam o encaminhamento da vida individual para o processo natural de morte.

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O interesse pelo e no jogo está, segundo Callois (1994), intrinsecamente ligado à

incerteza, que garante pela dúvida diante do acaso a emoção de um final incerto e talvez

inesperado. Um desfecho conhecido de antemão, sem possibilidade de erro nem surpresa, que

conduza claramente a um resultado inelutável, é incompatível com a natureza do jogo. Faz-se

necessária uma renovação constante e imprevisível da situação, tal como a que se produz a cada

ataque ou a cada contra-ataque em esgrima ou em futebol.

É nesse sentido que Huizinga (1980) destaca o elemento da tensão, isto é, da incerteza e

do acaso, como não menos importante no jogo. Enquanto decorre o jogo, tudo é movimento,

mudança, alternância, sucessão, associação, separação. Nada é estável ou presumível, estando o

jogo sempre aberto aos “golpes” de sorte ou de azar. E quanto mais competitivo for o jogo mais

apaixonante se torna, chegando a extremos nos jogos de azar e competições esportivas.

O jogo, diz Retondar (2004), é antes de tudo um símbolo de luta contra a morte, contra o

perecível, contra a imobilidade. O acaso no jogo simboliza o conflito entre a morte e a vida, entre

a esperança e a desesperança. Enquanto há jogo, há espaço para o aleatório, para o imponderável

se manifestar. O jogo, seja por meio do combate, da sorte, do simulacro ou da vertigem, detona

um movimento entregue a aventura e ao risco que o jogador tenta controlar e acredita que

realmente pode controlá-lo. O que garante ao jogo seu poder de atração e envolvimento, uma vez

que através dele o jogador aciona a crença de que é possível dialogar com o mistério da vida a

seu favor.

O jogo se dá em um movimento de construção e desconstrução que implica numa

reconstrução simbólica de si, sem qualquer necessidade moral exterior ao próprio processo de

criação, mas profundamente relacionada a uma necessidade espiritual de se relacionar com o

mundo de forma simbólica. E nesse sentido o jogo deve ser visto como fim e meio em si mesmo:

fim porque não deseja ser reconhecido moralmente e meio porque, ao não desejar ser

reconhecido, se apropria do mundo o mais livre e gratuitamente possível para se reconhecer

simbolicamente nele.

No entanto, Retondar (2005) afirma que jogar também implica estratégias e táticas que

não podem se organizar com base no descompromisso, na gratuidade pura, nem em outros tantos

elementos que traduzem a instabilidade, mas sim em uma disciplina. Não que a disciplina seja

mais importante que a espontaneidade, mas sim que o espontâneo só tem título de cidadania

quando suportado pela disciplina preparada por ele. Pois o mistério e o imprevisível só podem

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aparecer como resultado de uma dada produção. Mas nunca se colocarão diante e por sobre a

técnica.

II.VII. Do jogo ao esporte

Segundo Retondar (2004), os jogos, ainda que não esgotem em si mesmos uma forma

explicativa ou definidora, dizem muito a respeito dos interesses e motivações de uma época. No

atual contexto social, na qual a noção de jogo se confunde à noção de esporte, torna-se

imprescindível compreender a relação entre estes dois fenômenos que englobam conceitos

confusos e contraditórios.

O esporte, no ato de sua realização, isto é, no “calor de uma partida”, manifesta-se como

um grande jogo repleto de emoções e incertezas do qual, apesar de todos os treinamentos e

investimentos realizados no sentido de ter o maior domínio possível sobre os resultados, não se

pode garantir de antemão o desfecho. Vem daí a célebre frase sempre repetida no meio

futebolístico: “um jogo se ganha dentro de campo”. Ou seja, não se alcança uma vitória no

esporte sem se entrar em campo e se colocar em jogo com os seus adversários, sejam eles quais

forem.

É claro que a incerteza do resultado esportivo varia segundo uma série de condições e, por

isso mesmo, nem sempre é fortemente sentida. No entanto, mesmo aquelas atividades tidas por

previsíveis jamais estão livres da manifestação do chamado “elemento surpresa”. Este pode até

não alterar o resultado final de uma partida, mas, sem dúvida, pode garantir muitos momentos de

prazer e exaltação. Assim também, as noções de proeza e de espetáculo podem garantir ao

esporte um grande poder de atração. O que fica claro, por exemplo, nos jogos da liga nacional de

basquete americano, nos quais a realização de grandes jogadas individuais ou coletivas atuam

como um “show à parte”, isto é, uma espécie de “jogo dentro do jogo” na qual ganha quem

realizar as maiores proezas.

Queremos chamar a atenção aqui para o fato de que o esporte, mesmo que muitas vezes

pareça algo extremamente diverso do simples jogo, deve toda sua força e seu vigor à porção de

jogo que carrega em seu DNA. Ou seja, o esporte, por mais que tenha se afastado ao limite,

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jamais deixou ou deixará de ser um jogo. Dentro dos campos, das quadras, das piscinas ou das

pistas, o que continua a se encenar é o velho e conhecido jogo. Tudo aquilo que se desenvolveu e

se desenvolve ao entorno do esporte é, no fundo, uma maneira de promover o espetáculo do

jogar. E o esporte, pode-se dizer, é uma espécie de tecnologia de ponta do lúdico, que por meio

da espetacularização exacerbada do ato de jogar encanta pessoas em todo o mundo.

Aliás, diga-se de passagem, se os esportes são hoje uma linguagem universal que coloca

em contato as populações de várias partes do mundo, independentemente de cultura, raça ou

língua, é graças ao fato de a sua linguagem ser a linguagem do jogo. Pois, como já tivemos a

oportunidade de ver um pouco antes, o jogo é eminentemente “vazio de sentido”, uma vez que

ele não tem sentido senão no próprio ato de sua realização. Dessa maneira, os esportes não

trazem, no próprio ato de sua realização, nenhum tipo de propósito ideológico ou de qualquer

outra espécie. Estando por isso livres de julgamentos morais e éticos que por algum motivo

pudessem recriminá-los. O que possibilita a livre circulação da linguagem esportiva pelos mais

variados contextos e condições.

Todas as críticas direcionadas a atividade esportiva são, nesse sentido, mal direcionadas.

Porque o esporte, por si mesmo, é uma atividade “neutra”, como acabamos de dizer; os seus usos

é que não são. Qualquer crítica à atividade esportiva deve ser feita àqueles que se apropriam dela

para fins outros que não o próprio desejo de jogar. O esporte, em si, será sempre inocente, assim

como a arma utilizada pelo assassino. É a intenção de quem aperta o gatilho quem deve ser

julgada, não o instrumento utilizado. E o único objetivo intrínseco ao esporte é o de ser jogado.

Nem mesmo aquelas críticas direcionadas ao esporte enquanto uma atividade

essencialmente meritocrática não se sustentam diante da neutralidade do esporte. A competição é,

sim, um dos principais componentes do ato esportivo, mas no sentido de que este traz em si um

desejo de competir, de se “colocar em jogo”, de medir forças em uma esfera não dominada pelo

senso de realidade. O desejo de competir, nesse sentido, não está voltado para fins externos à

própria competição, como o de conquistar títulos, dinheiro, fama e reconhecimento por sua

vitória. É a vitória em si que interessa. A emoção de conquistá-la no próprio ato e momento da

conquista.

É claro que o esporte está estreitamente vinculado à lógica da competição, como podemos

constatar na esmagadora maioria de seus eventos, porém não podemos confundir a intenção de

um evento, de quem participa dele, de quem joga nele, com o jogo esportivo propriamente dito.

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Se os protagonistas do esporte, os jogadores, não estiverem focados no desejo de jogar, estando

mais preocupados com as recompensas ou punições que podem vir a sofrer em decorrência do

resultado de uma competição, o espetáculo esportivo estará comprometido. Um jogo esportivo

em que seus integrantes estejam “desligados” do próprio ato de jogar, mais preocupados com

pressões externas ao jogo do que com ele mesmo, perde toda a sua vida, graça e encantamento, e

assim se torna chato e entediante. E mesmo que o “circo esteja montado” com todas as suas luzes

e pompas, nada mais será capaz de garantir o espetáculo.

Assim, o jogo é quem sustenta e dá vida ao esporte. Na hora em que a “bola rola”, nada

mais deve importar se não a vontade de jogar. A vitória, é claro, é o alvo a ser alcançado. Mas

para se alcançá-la é preciso primeiro jogar intensamente cada lance, cada jogada, cada centímetro

de pista, cada gota de água, conquistando-os um de cada vez, um depois do outro, até a conquista

ou derrocada final. O que difere o esporte do jogo, nesse caso, é que o primeiro exige uma

dedicação extra ao jogo. A exigência de rendimento de um atleta obriga-o a manter um regime de

treinamento em sua vida “real”. Mas, mesmo que o treino em si não siga a lógica do jogo, o

objetivo final de todo treinamento é sempre o de melhorar a capacidade de um atleta jogar.

O sonho de ser um atleta, de vencer na vida através de um jogo, assim como o de se tornar

um grande campeão, traz em si uma série de motivações e objetivos que, sem dúvida,

ultrapassam a esfera do jogo. Porém, um atleta que não goste de jogar, de se colocar “em jogo”,

provavelmente não irá muito longe em sua carreira. Para se chegar a ser um campeão é preciso

colocar “o coração na ponta da chuteira”. Pois por mais que o talento seja um pré-requisito para

se tornar um bom atleta, sem dedicação não se “chega lá”. E como ser dedicado a algo no qual

não se tem prazer em realizar? Assim, se o esporte for apenas uma maneira utilizada para se

alcançar dinheiro e glória, sem que haja absolutamente nenhum prazer em praticá-lo, tal

empreitada muito provavelmente fracassará.

Os esportes estão entre as mais reconhecíveis e intercambiáveis atividades supérfluas

praticadas em todo o mundo. Seu poder de expansão advém de um fundo de motivações gratuitas,

e não devido aos fins para os quais são repetidamente indicados, como, por exemplo, o

desenvolvimento da saúde, da educação, de valores morais e éticos. Aquele que pratica esportes

com o único e exclusivo objetivo de melhorar sua saúde logo deixará de fazê-lo. Pois a prática do

esporte, quando realizada por obrigação, e não por prazer, perde sua principal fonte de

motivação.

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Os esportes são um campo de jogo na qual se confronta o vazio da vida, isto é, a

necessidade premente de inventar, emprestar e inventar um sentido. Como nas artes e na música,

o jogo esportivo está sempre à procura de um sentido que falta. No entanto, esse jogo não tem a

intenção de encontrar um sentido. Ele vive de construir sentidos vivos, que só possuem sentido

enquanto próprio movimento de construção e desconstrução de sentidos. Assim, a atividade

esportiva em si, entendida aqui como um jogo, parte de um nada e termina em outro nada, sempre

em busca de vivenciar sentidos profundos e efêmeros.

Não estamos querendo dizer com isso que os esportes não possuam nem produzam

sentidos dentro da sociedade. Pelo contrário. A força do esporte advém justamente do fato de

que, a partir de sua ausência de significado, ele está sempre fazendo sentido e pondo em cena

conteúdos conflitivos e catárticos que o transformam em uma espécie de vespeiro universal de

congraçamento e violência. É lidando de maneira não verbal com o núcleo de violência instituinte

e constituinte da sociedade, a um só tempo elaborando-o e expondo-se ao risco de trazê-lo à tona,

que o esporte se torna um vínculo intrigante que atravessa todos os tipos de fronteiras.

Os esportes tratam de converter as rivalidades em uma dádiva ritual equilibradora, capaz

de catalisar as violências potenciais e acumuladas, chamando-as sobre si, ora exacerbando-as, ora

diluindo-as. Por meio da combinação da violência com a reciprocidade festiva, o esporte exorciza

o conflito principal desviando-o para formas de conflito rotineiro e reparatório. Assim, o esporte

é um instrumento de elaboração de diferenças em um campo neutro, festivo e polêmico que,

através de um diálogo não verbal projetado no terreno da disputa lúdica, extrai sua força da

simbolização e da ritualização de um combate que, sem se dedicar a fins literalmente agressivos,

decide, sob o olhar dos outros, quem detém por um momento o domínio de uma modalidade.

Acontece que esta mesma violência que o esporte é capaz de catalisar para um âmbito

neutro, em que o conflito se dá de maneira lúdica e ritual, também pode realizar o movimento

contrário e exacerbar do campo esportivo para o campo da vida em geral, dando origem a

violentos confrontos entre jogadores e torcedores rivais. Exemplos que dão conta desta eclosão

de agressividade não faltam no mundo esportivo e estão aí para mostrar que a intenção de fazer

do esporte um meio de saciar o demens que há em cada um de nós, termina muitas vezes por

surtir o efeito contrário.

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II.VIII. Algumas particularidades do esporte

Segundo Grifi (1989), o esporte requer algo diverso da simples prática ou desejo de jogar.

Mesmo acentuando traços de outras atividades, o esporte o faz dentro de sua rede de significados.

E se no espírito do esportista não atua, de modo mais ou menos consciente, um conjunto de

motivações e valores específicos, não há esporte, pois uma atividade só merece ser chamada de

esporte quando é executada para realizar certas intenções em conformidade a certas normas que

se definiram no curso da história.

Pode-se afirmar, em princípio e sob forte caráter elucidativo, que todo esporte, antes de

ser esporte, é jogo. Contudo, o jogo não é esporte nem o esporte, jogo. O esporte só é esporte a

partir da conjunção de uma série de fatores. De modo que o que caracteriza e diferencia um

esporte em relação ao jogo é sua ornamentação, ou seja, tudo aquilo que se institui, se edifica e se

espetaculariza ao em torno do que seria apenas jogo.

Para que haja esporte é preciso que os campos se tornem estádios, os times se tornem

clubes, os jogadores se tornem atletas, e que tudo isso se torne um espetáculo. É necessário que

haja estrutura, planejamento, organização, recursos financeiros e humanos, pois o esporte,

diferentemente ao jogo, que se basta a si mesmo enquanto atividade realizada por si e para si

mesma apresenta uma enorme estrutura que se constrói e se estabelece ao em torno de sua

simples realização.

Os pré-requisitos para que um jogo ocorra, a saber, uma regra e os jogadores (um ou mais,

dependendo da própria regra), são também pré-requisitos para que se realize o esporte, porém não

todos. O esporte exige ainda outros tantos pré-requisitos, que incluem: regras estabelecidas por

instituições como as ligas, federações e confederações (e não regras livres estabelecidas de

acordo com as necessidades dos próprios jogadores); presença de árbitros reconhecidos por estas

mesmas instituições (para se jogar não se faz necessária nenhuma autoridade externa aos próprios

jogadores, que são também seus próprios árbitros); atletas que, diferentemente dos jogadores,

precisam ser anteriormente treinados e preparados para a prática do esporte; a presença de

expectadores e a necessidade de áreas próprias para abrigá-los, como os estádios e as quadras;

distribuição de prêmios para os vencedores, como as medalhas e os troféus que representam está

vitória; retorno econômico e financeiro.

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O esporte exige condições ideais de jogo, e por isso possui uma organização formal

específica, institucionalizada em nível local, estadual, nacional e internacional. As regras do

esporte são padronizações formais e escritas, trabalhadas de modo pragmático e legitimadas por

meios racionais e burocráticos. O esporte deve ser jogado em um espaço claramente delimitado,

dentro de certos limites de tempo, com o número de participantes fixos, distribuídos igualmente

entre os lados, conforme as determinações das regras. Suas regras são controladas por árbitros

que, externos ao próprio jogo, são oficialmente destinados e certificados como responsáveis pela

manutenção da ordem. Na ocorrência de uma falta, o árbitro deve parar o jogo e aplicar as

devidas penalidades já previstas pela regra.

No esporte, todos competidores estão subordinados a regras comuns que pairam sobre

eles como uma lei que os iguala. Trata-se, nesse sentido, de um contrato de equivalência sobre

bases abstratas que visa a uma concorrência em que a diferença de status depende apenas dos

acasos e dos talentos investidos em campo. E é exatamente por estar associado à ideia de uma

concorrência justa que as regras do jogo devem ser rígidas, prescritas na forma de leis que, ao

mesmo tempo em que dá aos atletas iguais condições de jogo, também os obriga a se adaptarem a

elas em busca da melhoria de rendimento.

No mundo do esporte, a preocupação primordial é a de superação de si e do outro. O que,

em algumas circunstâncias, leva a comportamentos como a fraude, o doping, a deslealdade e até

mesmo a agressão. É a lógica de um mundo dominado pelo espírito de competição, pela

satisfação da glória pessoal ou nacional. Assim, o esporte competitivo é excludente, pois só estão

aptos a participar dele uma minoria de indivíduos afortunados. Os incapazes ou menos capazes,

pela lei do esporte, não tem vez. Apenas os fortes sobrevivem. Aqueles que descobrem o seu

esporte, aquilo que sabem fazer melhor do que ninguém, estes serão retribuídos com dinheiro e

reconhecimento. Os “outros” devem permanecer no ostracismo.

O esporte reflete a ideia de progresso. No esporte não há apenas a vitória de um homem

sobre o outro, pois um atleta não supera somente a si mesmo ou ao outro com o qual compete

diretamente, mas sim a própria limitação humana. Na ideia de superação indefinida dos recordes,

o esporte reflete a tendência das novas gerações de irem, em todas as áreas, cada vez mais longe

que as gerações passadas. As competições esportivas ultrapassam a impossibilidade de se colocar

frente a frente diversas gerações de atletas: “quando os homens não podem se encontrar em uma

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competição, o objeto faz-se intermediário, o metro e o cronômetro servem como ponto de

referência para confrontar o que foi feito” (Grifi, 1989, p. 251).

Esta permanente e severa luta que se estabelece na busca um novo recorde exige do

esportista um treinamento vigoroso. O que implica na necessidade de dedicação quase que total

ao esporte e transforma-o em um verdadeiro trabalho, muitas vezes desgastante e até mesmo

agressivo à saúde do atleta. Assim, enquanto para um jogador, jogar é apenas uma forma de

exercer sua liberdade de uma forma prazerosa. Para um atleta, jogar pode ser uma forma de

emancipação social, econômica, e até mesmo política. Pois o esporte oferece a seus jogadores um

reconhecimento, isto é, a chance de “vencerem na vida” e se estabelecerem como ídolos

nacionais ou mesmo mundiais. Assim também, no âmbito dos interesses políticos e estratégicos

das instituições sociais e dos Estados, os esportes são apropriados como instrumentos capazes de

trazerem benefícios que se estendem para muito além da simples prática esportiva.

O esporte já foi utilizado como um instrumento de grande utilidade pela sociedade civil,

pela iniciativa privada, por instituições estatais e órgão governamentais, por divisões militares,

por instituições educacionais e religiosas, enfim, por uma série de instituições diferentes e com

objetivos os mais variados. Nesse sentido, o esporte acaba sendo apropriado por outras

instituições em função de sua fácil instrumentalização e direcionamento para interesses diversos.

Assim, o esporte sempre foi e continua a ser utilizado como um instrumento capaz de

alcançar uma série de objetivos externos a sua própria prática. Esta parece mesmo ser uma das

mais importantes marcas que o diferencia do jogo, posto que este último se realiza unicamente

em função do prazer de sua própria realização. O esporte, portanto, se caracteriza por ser um

fenômeno que ultrapassa a sua simples realização enquanto jogo, ganhando novas e múltiplas

dimensões que se desenvolvem e formam um universo ao redor do jogo, o universo esportivo. No

entanto, como já dissemos antes, não podemos jamais nos esquecer de que o esporte, em seu

núcleo lúdico, não é nem político, nem econômico, nem militar, não podendo, por isso mesmo,

ser reduzido a nenhum dos interesses para o qual é utilizado.

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II.IX. Drogas e embriaguez

Droga é definida, em sentido amplo, por Escohotado (2004), como toda substância que,

em vez de “ser vencida” pelo corpo (e assimilada como simples nutriente ou eliminada como

dejeto), é capaz de “vencê-lo”, provocando, mesmo que em doses quase insignificantes se

comparadas com as de outros alimentos, grandes alterações orgânicas, anímicas ou de ambos os

tipos. As drogas, diz o autor, não são remédios ou venenos, mas ambos, inseparavelmente. A cura

e a ameaça se solicitam reciprocamente nas drogas. A fronteira entre o prejuízo e o benefício não

existe senão na própria vivência por parte do usuário da droga.

No âmbito do presente trabalho, porém, o termo droga será tratado como toda substância

que, além de ser capaz de provocar a embriaguez, é ingerida com a intenção24 de se embriagar.

Por tratar do uso voluntário de drogas, o presente estudo toma a intenção dos usuários como de

grande valia. Isto porque, a interpretação e a percepção aos efeitos das drogas refletem diferenças

contextuais extremamente sutis. O que oferece às intenções dos usuários vital importância no

processo de compreensão do uso e dos próprios efeitos das drogas.

Bucher (1992) chega mesmo a afirmar que não existe droga a priori, pois são a atividade

simbólica e a motivação do consumidor que fazem com que uma substância se transforme em

droga. Assim, uma substância química só passa a ser uma droga quando, dentro de um

determinado contexto de relações simbólicas e ambientes, passa a ser compreendida como tal.

Becker (1976) afirma que as drogas possuem um caráter multiforme e atuam de maneira

variada de pessoa para pessoa ou em uma mesma pessoa em ocasiões diferenciadas. Os efeitos

das drogas são relativos não apenas à própria droga, dependendo da quantidade e da maneira que

esta é ingerida, mas também ao usuário, dependendo do estado psicofisiológico que a pessoa se

encontra e da situação social na qual ocorre a ingestão da droga.

As drogas, segundo Becker (1976), quase sempre tem mais de um efeito sobre o

organismo. Estes efeitos podem ser classificados em principais e colaterais. Principais são

24 Subordinar a classificação de uma substância à intenção de seu usuário é centrar no usuário, e não em suas próprias qualidades, a caracterização do que é ou não droga. Se pensarmos, por exemplo, no caso de Albert Hofmann, que descobriu inesperadamente as propriedades embriagantes do LSD ao ingeri-lo durante experiências científicas, constataremos que, mesmo diante da não intenção de Hofman, o LSD não deixou de ser nem de fazer o efeito de uma droga. No entanto, o presente estudo não objetiva desenvolver um conceito geral do que é droga, mas apenas esclarecer o que se entende por droga stricto senso.

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aqueles desejados ao ingerir uma droga. Colaterais são aqueles não esperados ou não desejados

após a ingestão da droga. No entanto, o que é um efeito colateral ou um efeito principal irá variar

segundo a perspectiva aplicada. A desorientação mental poderia ser um efeito colateral não

desejado por um médico, mas um efeito principal desejado por um consumidor ilícito de drogas.

O conhecimento que um usuário possui sobre uma determinada droga influencia à

maneira como ele a usa, interpreta e responde a seus efeitos múltiplos, e lida com as

conseqüências da experiência. Assim como, inversamente, o que ele não sabe também influencia

a experiência, impossibilitando certas interpretações e ações baseadas em um conhecimento que

não existe. Convencionalmente, os usuários centram o foco e reconhecem apenas um ou alguns

desses efeitos, ignorando aqueles que são irrelevantes para o benefício que buscam.

No caso do presente estudo, a embriaguez provocada pelas drogas será considerada

sempre como um efeito principal, e nunca como colateral. E a caracterização do que é ou não

droga, que pegamos emprestada à Jünger (2001), está diretamente ligada à noção de embriaguez.

O que, sem dúvida, exige uma investigação mais aprofundada do fenômeno da embriaguez e de

suas variações.

Jünger (2001), em seu texto Drogas, embriaguez e outros temas, afirma que o estado de

embriaguez pode ser alcançado recorrendo-se não apenas a certa droga, mas também a uma dada

quantidade ou a um determinado grau de concentração. A dose pode ser muito fraca, não

permitindo ultrapassar a consciência normal, ou muito forte, levando à inconsciência. O uso

habitual de um mesmo tipo de droga torna cada vez mais difícil observar a medida certa para

provocar os efeitos desejados. O que torna a droga cada vez mais perigosa e demonstra que o

preço exigido pelo prazer não cessa de subir, culminando em um retrocesso ou no deixar-se

arruinar, corpo e bens. E mesmo um fumador suficientemente disciplinado para se contentar com

um cigarro matinal não deixará por isso de se viciar, desde que assim consiga uma intensidade no

prazer que, até então, apesar de um consumo muito mais intenso, não tinha conseguido. O que, a

propósito, faz ressurgir a tentação.

Quando o efeito da droga se atenua, diz Jünger (2001), é preciso ou se reforçar a droga ou

a concentração. O que pode ser facilmente observável no caso de quem bebe ou fuma quando

começa a aumentar o consumo habitual e passa depois a variedades mais fortes. Há ainda uma

terceira opção, que consiste em modificar a freqüência, passando da dose cotidiana a excessos

raros e solenes. Nesse caso não é a dose que se reforça, mas a sensibilidade. Assim, a dose se

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apóia na receptividade do indivíduo. Enquanto ao de natureza sutil basta uma alusão, ao

insensível se faz necessário uma dose reforçada. A dose que provoca a embriaguez pode ser

mínima ou até mesmo nula se a sensibilidade for suficiente. A disposição para a embriaguez pode

se tornar tão violenta que mesmo um simples modo de comportamento baste, podendo até

dispensar todas as drogas, o que se pode constatar nas ligações entre as abstinências, vigílias e

jejuns com os estados de êxtase.

Escohotado (2004) concorda que, seguindo-se métodos ascéticos como o silêncio, a

solidão e algumas formas mais severas de mortificação, são possíveis se alcançar experiências

místicas de grande intensidade. O autor chega mesmo a levantar a hipótese de que estes

exercícios talvez possam modificar o metabolismo cerebral de modo análogo ao derivado da

utilização de certas substâncias psicoativas. O que justificaria as semelhanças encontradas entre

os relatos de experiências visionárias de usuários de drogas com os de místicos ou santos que não

fazem uso de drogas embriagantes.

Para Jünger (2001), o fato de ser possível atingir estados de excitação e de meditação

semelhantes ao da embriaguez sem o uso de drogas25, prova que a droga suscita forças mais

gerais que a de uma intoxicação específica. “Ela é uma chave de reinos fechados à percepção

normal, mas não é a única” (p. 36). O autor acredita que a noção de embriaguez é insuficiente

para caracterizar esses estados, a não ser que esta se alargue de modo a que nela se incluam

fenômenos diversos ou mesmo contraditórios.

A ação da droga é ambivalente, diz Jünger (2001), agindo tanto sobre a ação e a vontade

como sobre a contemplação e o olhar puro. Dois poderes que, apesar de parecerem excluir-se, são

freqüentemente desperto pelo mesmo agente. As drogas podem ser utilizadas na qualidade de

excitantes e de estimulantes, de soníferos, de narcóticos e de alucinógenos; servem tanto para

diminuir quanto para avivar a sensibilidade. Tendências que implicam a fuga na insensibilidade

ou na excitação, via estimulantes, das energias vitais. No interior dessa ambivalência encontra-se

uma vasta escala que, tanto de um lado como do outro, leva à perda da consciência e finalmente à

morte.

Quanto ao aspecto ativo e voluntário da embriaguez, Jünger (2001) afirma que:

O homem embriagado não teme a companhia; sente-se bem no meio do alegre tumulto e não procura a solidão. Acontece, freqüentemente que o seu comportamento seja excêntrico, mas

25 O site www.i-doser.com comercializa sons que, segundo o próprio site, promovem alterações da consciência semelhante àquelas provocadas pelo uso de drogas.

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usufrui de uma indulgência especial de que o homem sóbrio não beneficia. O bem-humorado torna-se mais simpático que o triste, o bebedor já “tocado” é objeto de uma indulgência geral, sendo, muitas vezes, considerado como um inimigo do aborrecimento e um animador do ambiente. Um mensageiro de Dionisio aparece para abrir a porta do mundo da folia. O contágio faz-se sentir mesmo sobre aqueles que mantém o sangue-frio (Jünger, 2001, p. 38).

Segundo Jünger (2001), esta atividade intensificada, que não se pode fingir ignorar, deu à

palavra embriaguez o seu cunho próprio. Constatando a tendência do lado visível das coisas de

encontrar na linguagem, como em outras formas, uma dimensão mais vasta do que do lado

oculto. É a face luminosa absorvendo a face sombria. No entanto, o autor lembra que a palavra

“embriaguez”, se bem que incida sobre a exaltação evidente das energias vitais, abrange também

o abatimento e os estados de letargia e imobilidade que lembram o sono e o sonho. O que ocorre

é que, quando pretende alcançar o estado de sonolência, o usuário comporta-se de forma diferente

daquele que procura à excitação. Em vez de companhia, deseja a solidão:

Mas se o toxicômano evita a sociedade, não é apenas porque tem inúmeras razões para a temer, mas porque, por natureza, é levado a procurar a solidão; a sua maneira de ser não é de caráter comunicativo, mas antes receptivo. Fica sentado como perante um espelho mágico, imóvel, ensimesmado, e é sempre do seu próprio eu que tira prazer, quer sob a forma de pura euforia, quer sob a de um mundo de imagens inventadas pelo seu ser mais íntimo e que sobre ele refluem. Existem assim lâmpadas cuja luz fluorescente pode transformar uma pedra cinzenta em pepita de ouro (Jünger, 2001, p. 39).

Jünger (2001) afirma ainda que estimulantes e narcóticos também podem ser usados

conjuntamente, ou melhor, uns contra os outros. É como imaginar a carga de uma balança onde,

para cada peso acrescentado põe-se um contrapeso no outro prato, criando-se assim um equilíbrio

artificial, até que o travessão da balança não agüenta tamanha carga e se parte. Portanto, assim

como a embriaguez se manifesta por fenômenos diversos e freqüentemente contraditórios, a

droga também produz efeitos igualmente variados. Uma e outra se completam e se unem em um

conjunto com grande extensão.

Quanto a esta contraditória ambivalência dos efeitos da droga, Escohotado (2004) propõe

uma elucidativa distinção entre dois tipos de embriaguez, a de possessão e a de viagem. A

embriaguez de possessão ou rapto é aquela que se realiza com drogas que “emborrachan”26,

excitando o corpo à arrebatamentos de frenesi e aniquilando a memória e a consciência crítica.

Seus agentes são aquelas drogas capazes de, em doses elevadas, produzirem uma mescla de

26 O termo emborrachan pode ser traduzido para o português como “emborracham” ou, mais precisamente no texto, como “embriagam”. Preferimos todavia manter o termo em espanhol utilizado pelo autor porque, como estamos tratando da classificação de tipos de embriaguez, falar em um tipo de embriaguez que se caracteriza por embriagar seria redundante.

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desinibição e entorpecimento anímico propenso ao transe orgiástico (entendendo orgia no sentido

de confusão, desordem, tumulto). Com o acompanhamento de músicas e danças violentas, seus

usos buscam um frenesi que libere do eu e promova a ocupação de seu espaço por um espírito

tanto mais redentor quanto menos se pareça lúcido. Seus efeitos promovem a estupefação e o

esquecimento por meio de um transe surdo e mudo - ainda que fisicamente muito vigoroso - que

se conclui em um reparador esgotamento.

A embriaguez de viagem ou estática, por sua vez, é aquela que se realiza com drogas que

desenvolvem espetacularmente os sentidos, criando estados anímicos de grande atividade

visionária. Seus agentes são plantas de baixa toxicidade que induzem a um transe caracterizado

pela preservação da memória (a recordação de estar submetido a uma alteração da consciência

permanece) e por uma disposição ativa que, ao invés de ser possuída pelo espírito, busca possuí-

lo. O essencial dos efeitos destas drogas – que coincidem surpreendentemente com as viagens

místicas sem indução química – é uma excursão psíquica caracterizada por dois momentos

sucessivos.

O primeiro momento é o voo mágico ou “subida”, no qual o usuário vislumbra a

horizontes desconhecidos ou apenas suspeitados, vencendo grandes distâncias até ser capaz de se

ver de fora, como um outro objeto do mundo. O segundo momento é o que Escohotado (2004-2)

chama por viagem propriamente dita, que em esquema implica em começar temendo enlouquecer

para acabar vivenciando a experiência da morte, e em seguida renascer purificado do temor da

vida e da morte. Nesse caso, apesar de se considerar que o êxtase está centrado na fase de

renascimento, a seqüência extática compreende todo o conjunto e – quando o caso é favorável –

se resolve em alguma forma de serenidade beatífica.

Enquanto a experiência de viagem é a de um eu que abandona momentaneamente o seu

corpo e se transforma em espírito, a experiência de possessão está mais para a de um corpo que

abandona momentaneamente seu eu, transformando-se em reparador silêncio e insensibilidade.

Utilizando a linguagem de Nietzsche, Escohotado (2004-2) diz ser possível se categorizar a

experiência de possessão como dionisíaca e a de viajem como apolínea.

Os impulsos apolíneos e dionisíacos, segundo Nietzsche (2007), existem sob uma enorme

contraposição, ambos ao mesmo tempo tão diversos e caminhando lado a lado, na maioria das

vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas. Estes dois

impulsos, separados entre si como os universos artísticos do sonho e da embriaguez, se

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manifestam, o primeiro, na alegre necessidade da experiência onírica expressa pelos gregos na

figura de Apolo, e o segundo, no delicioso êxtase dionisíaco pelo qual o subjetivo se esvaece em

completo autoesquecimento.

Nietzsche (2007) afirma que Apolo é o deus “resplendente”, a divindade da luz que reina

sobre a bela aparência do mundo interior da fantasia. A imagem de Apolo nunca ultrapassa

àquela linha delicada a partir da qual a imagem onírica passa a atuar de modo patológico e

engana como realidade grosseira. Apolo representa a mais sublime expressão da inabalável

confiança e tranqüilidade. Seu olho é “solar”, mantendo sua liberdade frente às emoções mais

selvagens, com a sapiente tranqüilidade do deus planador. E mesmo quando mira colérico e mal-

humorado, ainda paira sobre ele a consagração da bela aparência.

No estado apolíneo, o mundo do dia fica velado, dando lugar a um novo mundo que,

ainda que mais ensombrado e em incessante mudança, nasce diante dos nossos olhos, mais claro,

mais compreensível, mais comovedor do que o outro. Apolo se caracteriza como a esplêndida

imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o

prazer e toda a sabedoria da “aparência” e sua beleza. A perfeição do estado apolíneo e sua

verdade superior, em contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível,

seguida de uma profunda consciência da natureza reparadora e curativa do sono e do sonho, são o

análogo simbólico da aptidão divinatória e das artes, a mercê das quais a vida se faz possível e

digna de se viver.

Por outro lado, sob a magia do dionisíaco, que se nos apresenta, conforme Nietzsche

(2007), o mais próximo possível pela analogia da embriaguez, selam-se os laços dos homens para

consigo mesmos e para com a natureza, em uma grande festa de reconciliação. Nesse estado cada

qual se sente não apenas unificado, conciliado e fundido com seu próximo, mas um só e mesmo

com o Uno-primordial. Cantando e dançando, o homem se manifesta como membro de uma

comunidade superior. Ele desaprende a andar e a falar, estando prestes a, dançando, sair voando

pelos ares. Seus gestos falam apenas do encantamento. O homem se sente como um deus, e

caminha ele próprio tão extasiado e enlevado como em seus sonhos vira os próprios deuses

caminharem. “O homem não é mais artista, torno-se obra de arte”(p. 28).

A aproximação do dionisíaco, segundo Nietzsche (2007), se manifesta quando milhões de

seres frementes se espojam no pó, num jubilo à alegria que vem acompanhado da libertação das

forças da imaginação. O êxtase do estado dionisíaco, com a aniquilação das usuais barreiras e

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limites da existência, contêm, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda

vivência pessoal do passado. E assim se separam, através de um abismo de esquecimento, o

mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Graças ao evangelho da harmonia universal, o

escravo é agora um homem livre. Todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a

arbitrariedade ou a “moda impudente” estabeleceram entre os homens se rompem.

Para Nietzsche (2007), o apolíneo e seu oposto, o dionisíaco, são como que poderes

capazes de satisfazerem de maneira imediata e por via direta. O primeiro, por seu lado, como um

mundo figural de sonho, cuja perfeição independe de qualquer conexão com a altitude intelectual

ou a educação artística do indivíduo. O segundo, por seu e outro lado, como realidade inebriante

que também não leva em conta o indivíduo, mas procura mesmo destruí-lo e libertá-lo por meio

de um sentimento místico de unidade. Assim, ambos são poderes que possuem certo caráter

comum que independe da capacidade intelectual daqueles nos quais se manifestam.

De Quincey (2001) faz uma elucidativa distinção entre os efeitos do ópio e do vinho, que

se assemelham respectivamente ao estado apolíneo e ao estado dionisíaco. Segundo o autor, os

prazeres oferecidos pelo vinho são como uma chama, sempre crescentes e tendentes a uma crise,

depois da qual eles decaem. Já o ópio é um brilho permanente e imutável, proporcionando um

prazer agudo seguido de um prazer crônico. O vinho perturba as funções mentais; o ópio

acrescenta a elas a mais especial ordem, lei e harmonia. O vinho assalta a autodeterminação; o

ópio a revigora demasiadamente. O vinho, até certa medida, tende a exaltar e sustentar o

intelecto. Mas, a partir dessa medida, ele evapora e dispersa as energias intelectuais. Já o ópio

parece sempre compor o que tendia a se agitava e concentrar o que estava se diluindo. O vinho

deturpa e confunde os julgamentos, além de dar um brilho artificial e exaltar as admirações e os

desprezos, as paixões e os ódios do bebedor. O ópio, ao contrário, dá a todas as faculdades, ativas

ou passivas, grande serenidade e harmonia, fornecendo assim, com relação à índole e aos

sentimentos morais em geral, “aquele calor vital que é aprovado pelo julgamento e que

provavelmente sempre acompanhou a constituição física de uma saúde antediluviana e ancestral”

(p. 83).

Tanto o ópio quanto o vinho, diz De Quincey (2001), promovem uma expansão do

coração e dos atos benevolentes, contudo há aí uma sensível diferença, pois na rápida elevação da

bondade que vem junto à embriaguez pelo vinho, quase sempre existe um caráter que denuncia o

conteúdo de tantas afeições: “Os homens trocam apertos de mão, juram fidelidade eterna e

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derramam lágrimas – sem que nenhum mortal saiba a razão: e a criatura sensual está claramente

sobressaindo (p. 83). Já no caso do ópio, no entanto, a expansão dos sentimentos benignos não se

apresenta como em um acesso febril, e sim como um saudável retorno àquele estado de espírito

que se segue à remoção de uma antiga dor ou angústia. Enquanto um homem bêbado sente-se

freqüentemente sob o domínio da parte brutal de sua natureza, o comedor de ópio sente que está

dominado pela parte mais divina de seu ser, ou seja, suas afeições estão em completa serenidade

e sobre tudo brilha a luz do majestoso intelecto.

A caracterização e a distinção entre os estados apolíneos e dionisíacos demonstram que a

embriaguez, comumente associada apenas aos estados dionisíacos, se manifesta também por

outras formas de expressão. Aliás, mesmo a distinção entre os estados apolíneos e dionisíacos

não se refere a dois estados claramente definidos, independentes e separados, cada qual com suas

drogas e efeitos específicos.

O fenômeno da embriaguez é, sem dúvida, mais complexo do que qualquer descrição que

possamos fazer a seu respeito. E para demonstrar como estes estados não se mantêm rígidos nem

facilmente reconhecíveis, faremos uso de uma detalhada descrição que Baudelaire (1998)

realizou dos efeitos do haxixe. O autor descreve os confusos e instáveis efeitos da embriaguez

pelo haxixe, relatando como um impulso lúdico-dionisíaco se manifesta junto a um impulso

apolíneo como resultado de alterações da consciência desencadeados pelo uso de uma mesma

droga.

Baudelaire (1998) afirma que os efeitos do haxixe se apresentam de maneira muito

variada, às vezes se manifestando como uma alegria imoderada e irresistível, outras como uma

sensação de bem estar e de plenitude de vida, e até mesmo como um sono equívoco e cheio de

sonhos. Entretanto existem fenômenos que se reproduzem com bastante regularidade, o que

permite a identificação de uma espécie de unidade na variedade. Nesse sentido, o autor categoriza

os efeitos do haxixe em três fases bastante fáceis de serem distinguidas.

A primeira fase é caracterizada por uma extravagante e irresistível hilaridade, que se

apodera do sujeito na forma de acessos de alegria, aparentemente não motivada, que se

reproduzem freqüentemente, separados apenas por intervalos de entorpecimento durante a qual a

pessoa tenta, em vão, se concentrar. Nesse estado, Baudelaire (1998) afirma que o homem

embriagado, se observado por outro sóbrio, assemelha-se a um louco assim como, para o homem

embriagado, o bom senso e regularidade de pensamento do homem sóbrio alegra e diverte como

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um gênero particular de demência. Ocorre uma inversão de papeis, na qual o sangue frio do

homem sóbrio leva o embriagado aos limites da ironia, gozando de uma alegria incompreensível

para quem não está sob os efeitos do haxixe.

Esses primeiros efeitos, tão bem conhecidos pelos usuários de maconha, se relacionam à

aproximação de Dionisio, o deus da libertação e da espontaneidade, aquele que nos faz esquecer

das proibições e dos tabus. Dionisio simboliza a ruptura das inibições, das repressões, dos

recalques. Ao adentrar no estado dionisíaco, parece que o usuário de haxixe, acostumado a ter

“tudo sob controle”, relaxa e se deixa levar, antes “espectador” do que “senhor” de si mesmo.

Manifestando a alegria de se libertar do “peso” do “eu”, de todas as responsabilidades e

obrigações atribuídas a um indivíduo na sociedade, o usuário, sob o efeito da droga, solta uma

longa e intensa gargalhada, daquelas que chamam aos olhos as lágrimas e roubam aos pulmões

todo ar.

Entretanto, Baudelaire (1998) afirma que esta alegria alternadamente lânguida e pungente,

este mal estar dentro do prazer, geralmente dura pouco tempo, uma vez que logo se inicia a

segunda fase. Nesse segundo momento, a harmonia das ideias torna-se tão vaga e o fio condutor

que liga seus conceitos, tão finos, que apenas eles mesmos, homens embriagados, se

compreenderão. O que não pode ser verificado, já que todos compartilham da mesma ilusão.

Assim, depois do estado de alegria infantil, há como que um apaziguamento seguido por uma

sensação de frescor nas extremidades e uma grande fraqueza de todos os membros.

Nesse segundo momento, após esta intensa sensação de libertação, os efeitos do haxixe

parecem submergir a consciência em um jato de imagens que, sobrepondo uma imagem sobre

outra num fluxo ininterrupto, provoca uma fuga das imagens, um esquecimento constante. A

consciência se liquidifica, os pensamentos “escorrem por entre os dedos”. À conhecida pergunta:

“do que eu estava falando mesmo?”, escapam as respostas. A consciência acostumada a trabalhar

à “rédea curta”, se afrouxa. Não mais um “eu” que pensa, mas um pensamento que pensa por si

mesmo. A “cabeça ativa”27.

No fim desta fase, diz Baudelaire (1998), manifesta-se uma sagacidade, uma acuidade

superior a todos os sentidos, participando igualmente deste processo o olfato, a visão, a audição e

o tato. Os olhos passam então a enxergar o infinito e os ouvidos a escutar sons quase inaudíveis

27 Expressão utilizada pela banda brasileira “Planet Hemp” para se referir aos efeitos da maconha.

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no centro do maior tumulto. É o inicio das alucinações28, na qual lentamente, sucessivamente os

objetos ganham aparências estranhas, se deformam, se transformam. Ao que se seguem os

equívocos, os desprezos, as transposições de ideias que geram sensações como sons se revestindo

de cores e cores se enchendo de música, analogias que se revestem de uma vivacidade fora do

comum, e assim penetram, invadem, deprimem o espírito com seu caráter despótico.

Nesses estados, Baudelaire (1998) afirma que é comum ocorrer uma despersonalização e,

conseqüentemente, a objetividade desenvolve-se de modo tão anormal que a contemplação dos

objetos externos faz com que você esqueça a própria existência e confunda-se, em seguida, com

eles:

Seu olhar se fixa em uma árvore harmoniosa curvada pelo vento. (…) Primeiramente, você empresta á árvore as suas paixões, seus desejos ou sua melancolia; os gemidos e as oscilações tornam-se seus e, logo, você é a árvore. Da mesma forma, o pássaro que plana no fundo do céu representa inicialmente o imortal anseio de planar acima das coisas humanas; mas eis que você é o próprio pássaro. Eu o imagino sentado e fumando. Sua atenção repousara longamente sobre as nuvens azuladas que exalam do seu cachimbo. A ideia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna, tomará conta de seu espírito, e você aplicará em seguida esta ideia aos seus próprios pensamentos, à sua matéria pensante. Por um estranho equívoco, por uma espécie de transposição ou de qüiproquó intelectual, você se sentira evaporando e atribuirá a seu cachimbo (no qual você vai se sentir curvado e encolhido como o tabaco) a estranha faculdade de fumá-lo (Baudelaire, 1998, p. 37).

Este estado, que segundo Baudelaire (1998) os orientais chamam de “Kief”, já não se trata

mais de algo turbulento e tumultuoso, mas sim de um êxtase calmo e imóvel, uma resignação

gloriosa, onde há muito já não se é seu próprio mestre e, no entanto, não se sofre nenhum tipo de

aflição. A dor e a ideia do tempo desaparecem e, se às vezes ousam produzir-se, são rapidamente

transfiguradas pela fantástica sensação dominante. Toda essa experiência ocorre em um pequeno

espaço de tempo que, quando muito, ultrapassa o limite de um minuto sem, no entanto, se

prolongar demasiado. Passa-se então, com extremo esforço, um breve intervalo de lucidez antes

de ser novamente levado por outra corrente de ideias que transportará com seu turbilhão ainda

por outro minuto de nova eternidade. O homem assim embriagado vivencia uma desproporção do

tempo e do ser, que se alteram completamente pela intensidade de sensações e ideias. É como

28 Segundo Baudelaire, não devemos entender o termo alucinação em seu sentido mais estrito, pois uma nuança muito importante distingue a alucinação pura, tal como é utilizada na nomenclatura médica, da alucinação ou, melhor, do desprezo dos sentidos no estado mental ocasionado pelo haxixe. No primeiro caso, a alucinação é súbita, perfeita e fatal, não encontrando nem pretextos nem desculpas no mundo dos objetos externos. No segundo caso, a alucinação é progressiva, quase involuntária, e não se torna perfeita, tornando-se madura apenas pela ação da imaginação, isto é, ela tem um pretexto, uma raiz no meio ambiente e no tempo presente que dará início, através da imaginação, a alucinação de formas naturais.

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viver várias vidas humanas em um curto espaço de tempo, se transformando em um fantástico

romance que, ao invés de escrito, seria vivo.

Nesta terceira e última fase, o usuário experimenta um imergir no estado apolíneo, local

no qual a aparência, que até então vislumbrava apenas uma simples árvore, se eleva àquilo que

Nietzsche (2007) chamou por “um novo mundo como que visional da aparência, do qual nada

vêem os que ficaram enleados na primeira aparência” (p. 37). Pairando como um pássaro no mais

puro deleite, em um indolor contemplar radiante de olhos bem abertos, o fumador de haxixe se

liberta através da aparência. Sentado acima das coisas humanas, o fumador permanece tranqüilo e

submerso em sua contemplação de fumar-se a si mesmo.

Jünger (2001) afirma que estas visões não se reportam a um princípio estranho, mas a uma

exaltação e um refinamento da imaginação. A imaginação é capaz de promover uma evasão ao

mundo dos sonhos e proporcionar como que um caminho direto para o prazer: “O mundo começa

a falar e a responder ao espírito num excesso exuberante. As coisas parecem carregar-se de

potencial; a sua beleza, a sua ordem inteligível ressaltam com uma nova frescura” (Jünger, p.34).

Assim como nos sonhos, diz Jünger (2001), nos libertamos do fenômeno e penetramos na

exuberância do mundo das imagens. A embriaguez conduz a um rapto prometeico da luz e das

imagens, proporcionando uma incursão nesse recinto reservado aos deuses. Lugar onde o tempo

esta a mercê da imaginação: “A roda do moinho que jorravam as imagens não rodava no tempo”

(Jünger, p. 265). É o poder das imagens que se assinala e nos mantém cativos do seu encanto,

chegando mesmo, em situações mais intensas, a nos absorver para uma nova realidade.

Jünger (2001) acredita que as drogas, apesar da multiplicidade dos seus efeitos

embriagantes, baseiam sua ação em alterar a percepção do tempo, um dos pilares da existência.

Ao que se liga necessariamente à maneira como percebemos o espaço. A embriaguez nos

transporta para uma nova perspectiva de tempo, na qual este tanto pode se abreviar como se

alongar, aproximando-nos de um princípio mais forte pelo qual somos alegremente surpreendidos

ao mesmo que igualmente assaltados por um sentimento de receio e aflição. É esta a natureza

própria da embriaguez, isto é, a de fuga para fora do mundo mensurável e enumerável e, por

conseguinte, a aproximação29. Mais do que uma dispensa no tempo; é uma dispensa do tempo.

29 Jünger (2001) utiliza o termo aproximação para designar a tentativa de ultrapassar os limites do tempo e do espaço. Segundo o autor, como está ultrapassagem só pode ser realmente consumada com a morte, o que a droga faz é aproximar-nos deste além vida. Desta forma, por mais que não se vença a barreira do tempo, ao menos vislumbra-se a possibilidade de vencê-lo, o que para nós, homens, sempre foi uma boa nova.

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Comparando o tempo a um rio, Jünger (2001) afirma que, ao nos estimularmos com a

droga, diminuímos o leito deste rio, forçando-o a correr mais rapidamente e a descer em turbilhão

através de redemoinhos. O mesmo se passa às ideias, à mímica e aos gestos. O homem

embriagado pensa e age mais rapidamente do que o homem sóbrio, agindo de forma tanto menos

previsível quanto mais impulsiva. Já sob a influência dos narcóticos, o tempo passa mais

lentamente. As margens recuam na distância, o rio corre de forma mais pacífica. Quando o

atordoamento começa, parece que a consciência vai à deriva, como um barco através de um lago

na qual já não se vêem os limites. O tempo deixa de ter margens e transforma-se em um mar.

O poder de alterar a percepção do tempo e do espaço é também descrito por vários outros

autores. De Quincey (2002), em suas Confissões de um comedor de Ópio, diz que “um comedor

de ópio é feliz demais para observar a passagem do tempo” (p. 94). Já Huxley (2002), em As

portas da percepção, afirma que sua “experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida,

também podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua

transformação” (p. 31).

Huxley (2002) acredita que as drogas são um caminho para autotranscendência,

permitindo ao homem ver-se livre da rotina e da percepção ordinária para observar o mundo não

mais dominado pela ideia de sobrevivência ou mesmo por termos e ideias, mas sim de forma

direta e incondicionalmente. O autor comenta que, sob o efeito da droga, as relações espaciais

perdem muito de seu valor: “A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e

lugares, e sim com a existência e o significado” (p. 30). E acrescenta: “Eu examinava minha

mobília, não como o utilitário, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em

mesas; (…) mas como o esteta puro” (p. 31).

A droga, diz Baudelaire (1998), promove um aumento anormal e tirânico do tempo e do

espaço que também se aplica a todos os sentimentos e a todas as ideias. Sob o efeito da droga, o

espírito afronta ao mundo sem tristeza e sem medo, olhando com certa delícia melancólica

através dos anos profundos e se entranhando audaciosamente em infinitas perspectivas. Porque os

fenômenos desencadeados pela experiência da embriaguez não se produzem no espírito de

maneira confusa, com o tom agudo da realidade e da desordem do mundo exterior. O olhar

interior transforma tudo, dando a todas as coisas o complemento de beleza que lhes falta para que

sejam verdadeiramente dignas de nos serem agradáveis.

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O universo dos seres então se ergue diante de nós com uma nova glória até então não

suspeitada. As cores ganham uma energia inusitada, penetrando o cérebro com uma intensidade

vitoriosa. As formas, em suas linhas sinuosas, se mostram como uma linguagem definitivamente

clara, onde se pode ler a agitação e o desejo das almas. A música fala-nos de nós mesmos e narra

o poema de nossas vidas. Cada movimento rítmico marca um movimento conhecido em nossa

alma, cada nota transforma-se em palavra e o poema inteiro entra em nosso cérebro, como um

dicionário dotado de vida. A música se incorpora em nós como se nos fundíssemos a ela.

Vivenciamos assim um estado misterioso e temporário do espírito no qual a profundidade da

vida, sobrecarregada de seus múltiplos problemas, se revela completamente no espetáculo, por

mais trivial e natural que seja que se nos apresenta aos olhos.

Nesse estado, Baudelaire (1998) afirma que a harmonia, o equilíbrio das linhas e a

eurritmia dos movimentos aparecem-nos como necessidades, de maneira que sentimo-nos

dotados de uma maravilhosa aptidão para compreendermos o ritmo imortal e universal. Nem

mesmo nos faltando beleza pessoal nos veremos como uma nota destoante do mundo de

harmonia e beleza improvisado por nossa imaginação. Chega-se então a um grau de prazer e de

serenidade onde o homem é levado a admirar-se, levando por terra toda contradição, a tal ponto

que tudo se faz motivo de prazer e a vida se enche de uma plenitude capaz de inspirar um orgulho

desmensurado.

Diante de um mundo em perfeita harmonia, a necessidade de controlar, de se auto-

controlar, se perde por completo. Porque a vontade de controle serve apenas à causa da ordem, a

necessidade de impor uma ordem a um mundo caótico. Mas para aquele que agora vive na mais

perfeita ordem, a vontade não tem mais “porquês”. A vontade perde todas as suas motivações

para se impor, para se fazer efetiva. E as noções de tempo e espaço, enquanto símbolos que

mediam a nossa relação com o mundo deixam igualmente de exigirem controle. Como disse

Aguêiev (2003): “Sob a ação da cocaína meu eu de sensibilidade adquiria dimensão tão vasta que

o eu de autocontrole deixava de funcionar” (p. 171).

Estar dispensado do tempo é então estar dispensado da necessidade de viver segundo as

leis da responsabilidade, das exigências sociais ou pessoais, da necessidade de “ser” ou “dever

ser”. Não mais um tempo controlado, pré-determinado, que possui um início e que sempre acaba

em um fim, mas um tempo sem passado nem futuro, que existe apenas na intensidade do aqui e

agora, que não traz consigo a preocupação com o amanhã ou com as correntes do passado.

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Romper com o tempo. Viver a experiência da liberdade em toda a sua intensidade, como se a vida

começasse sempre e novamente do “zero”, sem limites, aberta e pronta para infinitas

possibilidades de acontecimento.

Mais profundamente, estar dispensado do tempo é transcender a precária e limitada

condição de existir no tempo e no espaço. É viver semelhante a um deus capaz de criar e recriar

mundos ao sabor de sua própria imaginação. Como se o mundo fosse apenas a manifestação de

um si mesmo onipotente, onipresente e onisciente. Contudo, este mundo não é passível de ser

conscientemente controlado, pois que não é possível se controlar a própria imaginação. Este

mundo é a livre expressão da imaginação. Ele não está sujeito as imposições da vontade, que

procura controlar os acontecimentos a fim de alcançar a saciedade. E por isso mesmo a viagem da

droga nem sempre leva a lugares agradáveis.

Jünger (2001) caracteriza a atuação e a atração da droga sobre o espírito em três estágios:

primeiro, pelo seu aspecto de impulso vital, depois, de animação espiritual e, finalmente, de

catapulta diante do muro do tempo. O impulso vital corresponde a uma aproximação diminuta, na

qual o esquecimento dos problemas ordinários cria uma centelha de liberdade e dá novo ânimo ao

espírito que se encoraja a buscar novas aventuras.

Já a animação espiritual corresponde a uma aproximação média e tem como benefício o

fato de as ondas do ser rebentarem mais vigorosamente sobre o mundo. “Quando os pensamentos

se confundem e se rebaixam, sobressai o desejo que lhes dá origem” (Jünger, 2001, p. 133). As

coisas e as pessoas ainda conservam mais ou menos os seus contornos familiares, mas já quase

não possuem nem categoria nem nome; ao mesmo tempo adquirem uma “carga mágica”. São, por

um lado, vistas de uma maneira mais densa e nítida – muitas vezes, mais do que o desejável – e,

por outro lado, novas perspectivas fazem-nas recuar para uma grande distância.

Por fim, a aproximação em seu sentido mais forte leva-nos a novas realidades, fazendo-

nos penetrar nos elementos, nos espíritos, nos deuses. O que não quer dizer que nos tornemos

idênticos a eles, mas sim a nós mesmos. Chamamos a nós à parte de ausência compreendida no

nosso ser. Somos conduzidos até a orla do tempo, até o seu mistério e conseqüentemente até bem

próximos da morte. “Aproximamo-nos, transitoriamente, é certo, da enorme riqueza que

compartilhamos e que nos foi incessantemente de novo prometida. No tempo, não suportaríamos

a sua visão. Mas a aproximação pode levar até à transparência (Jünger, 2001, p. 73, 74).

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A entrada na última câmara, a câmara da morte, nos é recusada. O tempo não é vencido,

mas apenas o episódio de prevermos que este possa ser vencido é para nós uma boa nova pelo

qual somos alegremente surpreendidos ao mesmo que igualmente assaltados por um sentimento

de receio e aflição. “A embriaguez é, assim, semelhante à chama – aquece e brilha, mas também

cega e queima” (Jünger, 2001, p. 106). O fato de conseguirmos representar-nos o além demonstra

que estas imagens não visam algo muito distante, mas sim um horizonte que está próximo e que

projetamos segundo nossas próprias concepções. As drogas são veículos que através de alterações

na percepção temporal podem nos facilitar a aproximação, promovendo assim uma exaltação da

consciência vital.

Mas as drogas, como disse Baudelaire (1998), não introduzem algo de sobrenatural na

consciência. A droga é um espelho que aumenta, mas um simples espelho: “O homem quis

sonhar, o sonho governará o homem; mas este sonho será o filho de seu pai” (p. 22). A droga cria

o exagero tanto do indivíduo como também das circunstâncias e do meio. O que dá à escolha do

local e do momento do uso vital importância sobre a experiência

É preciso lembrar, no entanto, que a alteração do tempo provocada pela droga apresenta

conseqüências. O fluxo é seguido pelo refluxo, as cores pela palidez, o mundo torna-se cinzento e

aborrecido. A atmosfera proporcionada pela embriaguez é necessariamente cortada por

interrupções. Interrupções que irão depender, dentre outras razões, da toxidade da droga. A

euforia ligeira provocada pelo ato de fumar tabaco pode ser reproduzida alguns minutos depois.

Já os efeitos de outras drogas mais fortes podem ser tão violentos que o drogado nunca mais

deseje senti-los.

É a possibilidade do excesso que, conforme Jünger (2001), vem da palavra excedere, que

significa “sair de”. Na qual o que se abandona é a norma; e o que se passa por excessivo

dependerá dessa norma. Ao se modificar o meio circundante se concede uma tolerância mais ou

menos limitada. Em nosso contexto atual, onde os relógios representam um papel cada vez maior,

a tolerância apresenta-se limitada: a máquina não tolera nenhuma saída, por mais breve que seja,

fora do tempo mensurável. Saída esta que, no fundo, representa um abandono do tempo normal.

O que parece tanto mais suspeito quanto é certo que o império dos relógios se dilata cada vez

mais.

Nesse contexto, a droga só é aceita com o objetivo de aumentar a normalidade. O que

pode ser constatado por todas essas pílulas e comprimidos que permitem corrigir as desafinações

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físicas e psíquicas. Vivemos em um mundo que se põe unicamente a serviço do simples

acontecimento e de sua economia, onde as exigências do Estado, ao afivelarem ainda mais a

máscara da sociedade, podem se tornar insuportáveis, restando ao indivíduo a possibilidade de se

subtrair a essas exigências, motivo pelo qual as drogas são hoje um grande atrativo. Esse atrativo

sem dúvida pode servir como uma grande armadilha, pois, como disse Leão (2002), a

hermenêutica da droga deve ser tratada como essencialmente ambígua, articulando-se em duas

dimensões. Mais profundamente, exprime a dinamização de um projeto de jovialidade e de

futuro. Mais superficialmente, nos caminhos de sua concretização situacional, desvirtua-se num

compromisso com a própria essência da sociedade afluente e da subjetividade moderna, uma vez

que participa da mesma atitude de controle e domínio.

Assim, no esforço de controlar a própria jovialidade e de dominar o próprio futuro, na

tentativa de eliminar por uma técnica o próprio mistério do homem, a droga, que deveria ser meio

de libertação da jovialidade, se transforma, pela dependência que induz, na pior escravidão, isto

é, na escravidão de uma liberdade aparente e artificial. “A conversão se torna aversão à

jovialidade, a libertação se torna fuga do futuro, o misticismo se torna perda do destino próprio”

(2002, p. 43). Por isso Baudelaire (1998) fez questão de lembrar que, aquele que se deixar

dominar pela embriaguez não encontrará mais harmonia entre os órgãos e os prazeres, e então

não conseguirá mais se movimentar e interagir com as coisas materiais sem um grande esforço de

coragem. O feitiço então se volta contra o feiticeiro: a mesma droga que foi capaz de intensificar

a sensação de liberdade também irá aprisionar e subtrair a liberdade.

Burrughs (2005) nos fala de maconheiros que a partir de um determinado momento não

conseguem mais se divertir sem o uso da maconha. Após experimentarem a intensa sensação de

prazer e liberdade oferecida pela droga, o mundo ordinário se torna monótono e aborrecido sem a

mesma. Assim como Narciso, que após vislumbrar a mais bela das imagens perde seu interesse

por tudo o mais a seu redor, o usuário não encontra equivalência no mundo real e objetivo com o

“maravilhoso mundo reencantado” pela droga.

Jünger (2001) acredita que o ponto mais importante a ser considerado no mito de Narciso

se encontra no desejo para sempre insatisfeito. Narciso apaixonou-se por sua própria imagem

refletida e consumiu-se tanto nesse desejo, nunca satisfeito, que morreu. Essa mesma aspiração

devoradora é também uma característica da droga e da sua utilização: o desejo fica sempre aquém

da satisfação. As imagens atraem como uma miragem no deserto; a sede torna-se mais ardente.

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Tal desejo, no entanto, não se origina na droga em si, mas na fome inextinguível do espírito. “No

fundo, todo prazer é espiritual, é no espírito que reside está fonte inesgotável que brota sob a

forma de desejo insaciável” (Jünger, 2001, p. 13). O equilíbrio, portanto, não está na matéria, mas

no homem que a usufrui. E aquele que deseja extirpar a mania da droga, tem de substituí-la por

um equivalente espiritual.

II.X. Drogas e atualidade

O tema das drogas está para a atualidade como aqueles antigos castelos mal-assombrados,

infestados de fantasmas de existência duvidosa que causam medo e arrepio diante da menor

aproximação. Com seus enormes portões, que dão entrada ao que dantes parece ter sido a

residência de nobres e reis, estes castelos ostentam em suas torres e jardins uma glória passada.

De algum tempo para cá, infestados por terríveis criaturas fantasmagóricas, estes magníficos

territórios foram trancados e isolados na tentativa de se evitar a livre circulação e a difusão destes

seres indesejáveis.

Tem-se por consenso que aquele que se aventura nesse território amaldiçoado acaba por

ser perseguido, assombrado e aprisionado30 dentro destes castelos, perdendo o até então direito

inalienável de ir e vir à mercê de sua própria vontade. Um usuário de drogas é por isso conhecido

como aquele que perdeu sua liberdade e tornou-se um escravo, um viciado. Mas, como sempre

fazem questão de lembrar, foi ele mesmo quem escolheu se enveredar por este caminho. Sendo,

portanto, o único e verdadeiro responsável por sua própria (má) sorte. O caminho da droga é

assim considerado um caminho de mão única, com destino certo e previamente anunciado aos

quatro ventos. Não há outra saída senão passar longe, dar meia volta e bater em retirada. O que, é

certo, foi extensivamente avisado. “Não se aproxime”, dizem os avisos, “casa mal-assombrada”. 30 Vale citar o recente caso do lutador de jiu-jítsu e pentacampeão de vale-tudo Ryan Gracie, que, com vestígios de uso de maconha, cocaína, crack e remédios na urina, foi preso armado de uma faca ao tentar roubar um segundo carro e uma moto. O lutador, que logo depois morreu encarcerado na prisão, havia antes confidenciado a um amigo que acreditava estar sendo perseguido, sintoma recorrente em usuários de determinados tipos de drogas (Jornal do Brasil, p. A7, 16/12/2007). Demonstra-se assim que tais concepções não são infundadas. No entanto, dentro do universo de usuários de drogas, tais relatos representam apenas uma pequena parcela do montante de relatos a respeito dos usos e efeitos relacionados ao uso de drogas. O que implica na necessidade de não se aceitar exclusivamente uma visão hegemônica do uso de drogas como algo degradante e doentio, mas se abrir para novas abordagens que considerem a polissemia do “mundo das drogas”.

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No entanto, diante dos “fatos da realidade”, parece que as inúmeras advertências tem sido

insuficientes. A sociedade vem perdendo progressivamente as forças no combate às drogas. O

desejo de erradicá-las torna-se cada vez mais distante, deixando mesmo de ser utópico. Muitos já

assumiram e ainda vem assumindo uma nova postura frente a esse quadro aparentemente

desmotivante. Falam em Redução de Danos e outras estratégias que objetivam minimizar o ainda

problema da droga. E esse ainda não é porque o uso de drogas não pode vir a trazer uma série de

problemas ao usuário. Mas sim porque fazer da droga um problema em si e por si é tentar relegá-

la ao mundo das sombras, isto é, reduzir as múltiplas dimensões em que as drogas habitam ao

campo problemático da doença e do vício.

Como diz Araújo e Mota (2005), a “questão das drogas”, via de regra, é abordada dentro

de um discurso de demonização das drogas, na qual predominam as descrições do uso de drogas

ilícitas. Por conseqüência, o conceito de droga aparece majoritariamente associado à esfera da

moralidade jurídico-policial. O que projeta sobre os usuários de drogas ilegais o status de “foras

da lei”, de criminosos. A sociedade acaba então por estigmatizar os usuários, marcando-os como

indivíduos perigosos, que devem ser combatidos e marginalizados.

O consumo de drogas, diz Araújo e Mota (2005), está assim associado a julgamentos

morais que são automaticamente transferidos a seus usuários. Os “bons bebedores” são aqueles

que conseguem adequar o uso da droga com o cumprir de suas responsabilidades sociais. Já um

“mau bebedor” é aquele que perde o controle sob o uso da droga e se degrada socialmente, sendo

assim condenado à exclusão social. E até mesmo os usuários de medicamentos prescritos, os de

uso “controlado”, são considerados como pessoas “perturbadas”, que não são capazes de

“caminhar com as próprias pernas”.

A ilegalidade da droga e a discriminação social a que estão sujeitos seus usuários,

segundo Velho (1998), fazem com que a questão do uso de drogas deva ser tratada como parte de

um estilo de vida e visão de mundo. Isto porque, embora existam grandes diferenças entre as

pessoas e os grupos que utilizam regularmente tóxicos, há uma forte característica em comum

que é o caráter ilegal do uso. A ilegalidade torna a todos os usuários dessas drogas infratores da

lei e, conseqüentemente, pertencentes de grupos de desviantes.

Por se tratarem de grupos que estão cotidianamente sujeitos a uma série de ameaças e

inseguranças, vivendo na permanente possibilidade de serem descobertos, acusados e

estigmatizados, esses grupos são obrigados a desenvolverem complexos sistemas de

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reconhecimento para garantir a segurança na obtenção e no consumo de drogas. O que leva ao

desenvolvimento do que Velho (1998) chamou de “certa esoterização do comportamento”, isto é,

o desenvolvimento de um vocabulário especializado, de sinais de identificação, de roupas de

determinado tipo, expressão corporal, etc. Características que vêem a compor um “mapa de

classificação de pessoas e lugares”, que permitem certa flexibilidade de reações e

comportamentos.

Zimberg (1984) denomina esses sistemas de reconhecimento por “rituais sociais”, que são

padrões estilizados de comportamento prescritos em torno do uso de determinadas substâncias, na

qual estão incluídos métodos de aquisição e consumo, escolha do meio físico e social para o uso,

atividades associadas ao consumo e a maneiras de se evitar e lidar com possíveis efeitos

negativos da droga. Os “rituais sociais” atuam como elementos reforçadores das “sanções

sociais”, que nada mais são do que o conjunto dos valores e regras de conduta compartilhados

informalmente por grupos e de leis e políticas formais que regulamentam o uso de drogas. Assim,

os “rituais sociais” e as “sanções sociais” constituem as formas de controle social vigentes tanto

em uma cultura como um todo quanto em pequenos grupos específicos. As “sanções sociais”

indicam se e como uma determinada substância pode ser usada e os “rituais sociais” transmitem e

reafirmam esse conhecimento no grupo.

Para Zimberg (1984), quando o uso da droga é regido por “rituais sociais”, isto é, por

regras, valores e padrões de comportamento, os usuários são capazes de apresentar um uso

“controlado”, que, diferente do uso “compulsivo”, não se dá de maneira desordenada e intensa.

Os “rituais sociais”, a partir de noções como a de uso aceitável ou condenável, da delimitação de

meios físicos e sociais seguros para o uso, são capazes de manter certo controle sob o uso da

droga.

Segundo Becker (1976), a ilegalidade da droga obriga o usuário a se basear no

conhecimento gerado em grupos consumidores para administrar seu consumo e interpretar sua

experiência. Não existindo bulas ou receitas médicas indicando o quanto e como se deve ingerir

uma determinada droga ou mesmo quais os efeitos principais e colaterais provocados por esta,

são nas informações acumuladas por meio da comparação de experiências de consumidores que,

ligados direta ou indiretamente por um longo período de tempo, se dá a origem do que o autor

denominou por “cultura da droga”, isto é, um conjunto de entendimentos comuns sobre a droga,

suas características e a maneira de melhor utilizá-la.

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Entretanto, para além de uma perspectiva apenas prática e utilitária, é preciso lembrar que

adesão a um valor não se faz apenas por razões necessárias e suficientes, mas também por outros

motivos como, por exemplo, o afetivo, o emocional, o desejo de estar junto e o lúdico. Pois,

como diz Maffesoli (2001), a relação entre o indivíduo e a sociedade não repousa apenas sobre

um contrato racional que liga um indivíduo ao outro, mas também na existência de um mundo

“imaginal”, isto é, uma empatia que me torna, com o outro, participante de um conjunto mais

amplo, totalmente contaminado por ideias coletivas, emoções comuns e imagens de todos os

tipos.

Maffesoli (1995) afirma ainda que um objeto qualquer, por ocasião de um rito

particular31, tal como um totem para as tribos primitivas, pode adquirir um poder de imagem e

consequentemente, assumir uma função icônica, isto é, tornar-se um vetor de comunhão que

interessa menos pela mensagem que deve transportar do que pela emoção que faz compartilhar.

Assim, um objeto qualquer - em nosso caso a droga – pode congregar valores, ideias e emoções

comuns, estabelecendo-se como vínculo, como cimento social que liga, que une numa mesma

atmosfera.

A relação do homem com a droga estabelece valores não apenas de cunho individual,

necessário e prático, mas também comunitário, afetivo, imaginário e simbólico. A droga pode

atuar como um “objeto imajado”, isto é, objeto que ultrapassa sua objetividade adquirindo uma

aura de mistério. Onde o mistério é aquilo que se partilha com alguns e que consequentemente

serve de cimento, reforça o sentimento de pertença e favorece uma nova relação com o ambiente

social e com o ambiente natural.

MacRae e Simões (2003), em pesquisa realizada nas cidades de São Paulo e Salvador

sobre a “subcultura da maconha, seus valores e rituais nas cidades”, enfatizam que, após ser

obtida a cannabis, seu consumo parece se dar de maneira marcadamente similar não apenas nas

cidades estudadas como, provavelmente, nos outros centros urbanos do Brasil. O que acontece é

que as “subculturas da maconha”, com suas técnicas de consumo e terminologias adotadas,

seguem os padrões encontrados na “cultura jovem internacional”, originária da Europa e dos

Estados Unidos e extensamente difundida no Brasil nas últimas três décadas.

Esta padronização dá aos usuários de drogas uma enorme mobilidade social, já que o fato

de compartilharem de uma mesma linguagem e hábitos em comum pode servir como uma

31 Vale aqui citar o ritual da “roda de fumo” , muito bem demonstrado por MacRae e Simões (2003).

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“abertura” à socialização, permitindo aos usuários se sentirem “em casa” mesmo que longe de

casa, desde que estejam em presença de seus “semelhantes”. Abre-se assim a possibilidade de os

usuários se locomoverem entre e pertencerem a diferentes espaços no qual, de outro modo,

provavelmente lhes estariam vedados.

Dentre os rituais e costumes descritos por MacRae e Simões (2003), podemos citar a

situação da “roda de fumo”, ritual no qual os usuários fazem o cigarro de maconha passar de mão

em mão, seguindo sempre o princípio de circular o baseado32 (que apesar de nem sempre formar

uma “roda” no sentido estrito do termo, estabelece uma ordem para a passagem do baseado) e

fazer com que todos os presentes dêem cada qual o mesmo número de tragadas. Ora, os rituais,

como bem nos lembra Maffesoli (2006), para além de sua funcionalidade, não são propriamente

teleológicos, isto é, orientados para um fim. Mas, pelo contrário, são repetitivos, tendo por

principal função reafirmar o sentimento que um dado grupo tem de si. Por meio da repetição

constante os rituais reafirmam a identidade e asseguram a perdurância do grupo. De forma

semelhante, também o costume, que o autor define como “o conjunto dos usos comuns que

permite a um conjunto social reconhecer-se como aquilo que é” (p. 54), fundamenta o estar-junto.

O costume é um laço misterioso que, raramente formalizado ou verbalizado, serve para

concretizar, para atualizar a dimensão ética33 de toda socialidade34. Em suas diversas expressões,

como no beber junto, no fumar junto, na “pelada”35, no jogar conversa fora, enfim, nos assuntos

banais que pontuam a vida de todos os dias, os costumes provocam um “sair de si” que cria uma

aura específica que serve de cimento para o grupo.

Observando usuários de maconha, Becker (…) distingue a seguinte sucessão de estágios

até que um iniciante, em um processo de aprendizagem que se dá pela troca de conhecimento

com usuários mais antigos, se torne e permaneça um consumidor regular de maconha: 1. aprender

a tragar de maneira correta e assim absorver a substância; 2. aprender a reconhecer os efeitos, já

que não são muito evidentes à primeira vista, e associá-los ao uso da substância; 3. aprender a

perceber os efeitos como algo prazeroso e a lidar com eles de modo a obter o melhor resultado

possível em termos de prazer procurado; 4. aprender a lidar com as formas de controle social que

32 Cigarro de maconha.33 Para Maffesoli (2006) a ética é, de certa forma, o cimento que fará com que diversos elementos de um conjunto dado formem um todo.34 Maffesoli (2006) utiliza o termo socialidade para se referir à coexistência social como tal, que poderia ser caracterizada como a “forma lúdica da socialização” (p. 141), onde o lúdico é aquilo que nada tema ver com finalidade, utilidade ou mesmo praticidade.35 Jogo de futebol recreativo.

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desaprovam esse hábito por meio do desenvolvimento de estratégias de: obtenção da substância,

manutenção do segredo diante de não usuários, justificação para consigo mesmo por seu

comportamento moralmente condenado.

O trabalho de Becker demonstra que, para se tornar um usuário de maconha, é preciso,

assim como um neófito, ser iniciado nos segredos e rituais de uso da droga. Atitude que, segundo

Maffesoli (2006), favorece a autoconservação e permite ao grupo se desenvolver de maneira

quase autônoma no seio de uma entidade mais ampla. O segredo funciona como um mecanismo

de proteção em face às formas superimpostas de poder, e assim fortalece o grupo. O segredo é

uma lei não escrita, um código de honra, uma moral clânica que de maneira quase intencional

protege contra o que é exterior. O fato de partilhar alguma coisa, dá força aos iniciados e

dinamiza sua ação.

O segredo é um meio de estabelecer contato com a alteridade no quadro de um grupo

restrito que, ao mesmo tempo, condiciona a atitude deste grupo diante do exterior, qualquer que

seja ele. “Ao contrário de uma moral imposta e exterior, a ética do segredo é, ao mesmo tempo,

federativa e equalizadora” (Maffesoli, 2006, p. 159). A confiança entre seus membros se exprime

por intermédio de rituais e signos de reconhecimento, que não possuem outro fim senão o de

fortalecer o pequeno grupo diante do grande grupo. A partilha secreta do afeto confirma os laços

próximos e permite resistir às tentativas de uniformização.

Para Maffesoli (2006), o segredo, enquanto resistência ritualística dos grupos e da massa,

é mais ardiloso do que ofensivo, podendo se exprimir por meio de práticas ditas alienadas ou

alienantes, como, no caso, o uso de drogas. Nas práticas do silêncio, diferentemente do combate,

que sempre tem um objetivo a atingir para além daqueles que o praticam, o inimigo tem menos

importância que o laço social que elas tecem. A solidariedade é uma necessidade imperiosa que

leva a agir passionalmente.

Assim, para além de um simples mecanismo de fuga da responsabilidade social, as drogas

podem servir como um vetor de comunhão capaz de aproximar e fortalecer o contato com a

alteridade, formando e protegendo um grupo perante um contexto social mais amplo. As drogas

servem como um meio de quebrar as barreiras, de aproximar os indivíduos intensificando a

empatia. Com o seu poder de “sensibilizar os sentidos”, as drogas favorecem a comunhão, pois

rompem as barreiras que separam os indivíduos, levando-os a comungarem “em espírito e em

verdade”.

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É por isso que as drogas não se submetem a permanecerem encarceradas na escuridão.

Elas também gostam da luz do dia, das festas e dos momentos de alegria. O caso do álcool é, a

este respeito, muito elucidativo. Estando quase sempre associado a ocasiões em que o prazer é o

centro da festa, o álcool representa a droga da descontração, da desinibição, do romper com o

tédio e com a tristeza. Mas não só as drogas legais como o álcool e tabaco, também as drogas

ilegais são cultivadas pela atual juventude enquanto drogas festivas.

O ecstasy, por exemplo, cultuado nos festivais de música eletrônica, é conhecido como a

“droga do amor”, capaz de, por seus efeitos, criar uma atmosfera lúdica na qual o amor, a

empatia, a alegria e os afetos se intensificam sobremaneira. Não é à toa que a muitas destas novas

drogas se associem nomes como “bala” (MDMA) e “doce” (LSD). Balas e doces são

representativos da esfera eminentemente lúdica da infância. Diante da qual o mundo dos adultos,

com suas ocupações mesquinhas e profissões enrijecidas que há muito já perderam a vida, não

representa nada nem tem valor algum.

As “balas” e os “doces” adoçam a vida, fazendo os olhos brilharem de um brilho que só as

crianças, em sua inocência e ingenuidade, são capazes de sentir. Porque se os “adultos”

continuam a passar para lá e para cá, sempre ocupados e envolvidos com coisas que parecem

grandiosas e importantes, a “criança” redescoberta pela droga apenas os observa como se

observa-se a algo de estranho, a partir da profundeza do próprio mundo, da amplitude de sua

solidão, que agora já é ela mesma um trabalho, um cargo e uma profissão. Sob o efeito das

“balas” e dos “doces’ os usuários abandonam sua atitude de defesa e de desprezo frente ao

mundo, substituindo-a por uma nova postura de inocência e ingenuidade.

Esta ingenuidade é, em certo sentido, aquela para a qual Schiller cunhou o termo naïf e

que Nietzsche (2007) caracterizou como um “total engolfamento na beleza da aparência” (p. 35).

O ingênuo, nesse sentido, é um sonhador que, em meio à ilusão do mundo onírico e sem

perturbá-la, declara que prefere permanecer sonhando mesmo sabendo que tudo não passa de um

sonho. Sua ingenuidade manifesta a existência de um profundo prazer interior na contemplação

do sonho, de uma satisfação mais elevada do apetite primevo pela aparência. É assim uma forma

de se elevar do mundo da aparência ordinária a um novo mundo como que “visional da

aparência”, do qual todos aqueles que permanecerem atados a primeira aparência jamais poderão

contemplar.

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Parece ser nesse sentido que Nascimento (2005) afirma que os festivais de música

eletrônica devem ser considerados como uma expressão de uma “cultura estética” que propõe

uma nova realidade na qual a natureza e o mundo não são mais vivenciados enquanto dominantes

ou mesmo dominados pelo homem, mas como um campo de possibilidades em que o homem está

livre para “jogar” com todas as suas faculdades e com a natureza. O que implica em poder dizer

que a busca de comunhão por meio dos festivais de música eletrônica é, em certo sentido, uma

forma de resistência poética diante da civilização atual. Ao se entregar à magia, ao imaginário,

aos jogos, aos ritos, aos mitos, e a tudo o que remete as profundezas do ser, o homem diz não às

leis da moral, da justiça, da economia, do tempo, do mundo material e de tudo aquilo que o

sufoca e aprisiona.

O uso de drogas favorece a formação de laços sociais, criando um espírito de

solidariedade no qual os indivíduos, até então sujeitos e entregues às “leis do mercado”, podem se

refugiar. Mas não somente no sentido de fuga, mas, principalmente, no sentido de resistência.

Através da emoção e do afeto ao qual seus efeitos favorecem, as drogas criam uma ambiência

estética (no sentido de sentir em comum), que põe abaixo as barreiras e defesas entre os

indivíduos. O que proporciona uma aproximação da alteridade e sua conseqüente sensação de

acolhimento e fortalecimento. O homem então não se encontra mais abandonado na “selva” de

um mundo globalizado. E sim reconhecido por e participante dos seus.

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CAPÍTULO III

III. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

III.I. A Análise do Discurso na perspectiva de Orlandi

Orlandi (1994) afirma que o discurso, em um sentido amplo, pode ser definido como

efeito de sentido entre locutores. Considerando a linguagem em relação à constituição dos

sujeitos e à produção dos sentidos, o discurso supõe não apenas um sistema significante como

também a relação deste sistema com sua exterioridade, posto que sem história não há sentido.

Assim, os efeitos entre os locutores e, em contrapartida, a dimensão simbólica dos fatos, só fazem

sentido e adquirem significado em função da inscrição da história na língua.

A Análise do Discurso, segundo Orlandi (1994), leva em conta tanto a ordem própria da

linguagem, área específica da Lingüística, como o sujeito e a situação, campo originalmente

outorgado às Ciências Sociais. Exercendo sua prática crítica, a Análise do Discurso demonstra

que o recorte de constituição dessas disciplinas, que levam a essa separação necessária entre

linguagem e exterioridade e se constituem nela, acaba por negar a existência do discurso.

A Análise do Discurso, no entanto, não se resume à aplicação da Lingüística sobre as

Ciências Sociais ou vice-versa, mas produz realmente outra forma de conhecimento que tem por

objeto próprio o discurso. A Análise do discurso não junta simplesmente o que está separado

nessas diferentes ordens de conhecimento, mas trabalha essa separação necessária de maneira a

estabelecer sua prática na relação de contradição entre esses diferentes saberes. Assim, diz

Orlandi (1994), a Análise do Discurso se importa em colocar questões para a Lingüística no

campo de sua constituição, indagando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que

coloca questões para as Ciências Sociais em seus fundamentos, interrogando a transparência da

linguagem, do sujeito e do sentido sobre a qual essas ciências se estruturaram.

A relação com a exterioridade tem, para Orlandi (1994), um lugar não só importante como

definidor na Análise do Discurso. O que resulta na necessidade de se compreender a história não

como sucessão de fatos com sentidos já dados e dispostos em ordem cronológica, mas como fatos

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que reclamam sentidos cuja materialidade não é possível de ser apreendida senão no discurso. O

processo de significância é um movimento contínuo definido pela materialidade da língua e da

história. Todo discurso, já que necessariamente determinado por sua exterioridade, remete a outro

discurso, presente nele por sua ausência necessária. A partir do primado do interdiscurso (o

dizível, a memória do dizer), todos os sentidos são sempre referidos a outros e daí tiram sua

identidade, sua realidade significativa.

Para a Análise do Discurso há sempre determinação histórica do sentido, de modo que

nenhum sentido está fixado a priori, como essência das palavras, nem muito menos pode ser

qualquer um. Não existe assim uma relação termo-a-termo entre as coisas e a linguagem. O

mundo e a linguagem constituem ordens diferentes, incompatíveis em suas naturezas próprias. A

possibilidade mesma dessa relação se faz através da ideologia, entendida aqui como o imaginário

mediador da relação do sujeito com suas condições de existência.

A ideologia, segundo Orlandi (1994), não é apenas constitutiva da relação do mundo com

a linguagem como é também a própria condição para essa relação. Assim, como diz a autora:

Na Análise do Discurso se trabalha com os processos de constituição da linguagem e da ideologia e não com os seus “conteúdos”. A ideologia não é “x”, mas o mecanismo de produzir “x”. No espaço que vai da constituição dos sentidos (o interdiscurso) à sua formulação (o intradiscurso) intervêm a ideologia e os efeitos imaginários” (1994, p. 56).

No que diz respeito à ideologia, portanto, não se trata de procurar “conteúdos”

ideológicos que mascaram a realidade, mas sim os processos discursivos em que a ideologia e a

linguagem se constituem de forma a produzir sentidos. O discurso, nesse sentido, é um processo

social cuja especificidade está em que sua materialidade é lingüística. Através do discurso o

mundo é trabalhado e apreendido pela linguagem.

Acontece, no entanto, que a relação do homem com a linguagem é constituída por uma

injunção à interpretação que nos leva, diante de um objeto simbólico qualquer, a interpretar o que

este objeto quer dizer. Nesse movimento interpretativo, o sentido por nós atribuído acaba por nos

parecer como uma evidência, um conteúdo já-lá. E apesar de a significância ser um movimento

contínuo determinado pela materialidade da língua e da história, nega-se a interpretação no

contexto em que ela se dá em função da impressão de um sentido que se “reconhece” já-lá.

Este efeito da literalidade, segundo Orlandi (1994), é produzido pela ideologia, que,

sustentando-se sobre o já-dito, os sentidos institucionalizados e admitidos como “naturais”, cria o

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efeito da evidência e da unidade e assim naturaliza o que é histórico. No entanto, como já foi dito,

a ideologia não é ocultação, mas sim função necessária entre linguagem e mundo: “A ideologia é

interpretação de sentidos em certa direção, determinada pela relação da linguagem com a história,

em seus mecanismos imaginários” (Orlandi, 1994, p. 57). A ideologia é assim trabalho da

contradição entre mundo e linguagem. E apesar de não existir uma relação direta entre a

linguagem e o mundo, esta relação funciona como se fosse, graças ao imaginário.

A Análise do Discurso, na perspectiva de Orlandi (1994), põe em causa justamente a

ilusão do sujeito e a da transparência das palavras e da linguagem com seus sentidos já-lá. Para

tal, em vez de considerar os conteúdos das palavras, procura compreender o funcionamento do

discurso na produção dos sentidos a fim de se explicitar o mecanismo ideológico que o sustenta.

III.II. O objeto de estudo

A metodologia da Análise do Discurso na perspectiva de Orlandi (…) foi aplicada a três

documentos, a saber: Política Nacional do Esporte (Brasília, 2005); Política Nacional sobre

Drogas (Brasília, 2005); Carta Brasileira de Prevenção Integrada na Área de Saúde na perspectiva

da Educação Física (CONFEF, 2006).

Os dois primeiros documentos, que tratam das políticas nacionais do esporte e das drogas,

respectivamente, foram elaborados com o objetivo de traçar algumas diretrizes políticas no

âmbito nacional a fim de orientar as ações governamentais e sociais no que diz respeito a como

lidar com estes dois fenômenos de grande repercussão mundial. A Política Nacional do Esporte

(PNE) foi desenvolvida na II Conferência Nacional do Esporte, realizada em Brasília no ano de

2005, por iniciativa do Ministério do Esporte. A Política Nacional sobre Drogas (PNSD),

concebida também em Brasília e no ano de 2005, foi deliberada pelo Conselho Nacional

Antidrogas (CONAD), parte integrante do Gabinete de Segurança Institucional, em decorrência

de um processo de realinhamento da Política Nacional Antidrogas até então vigente.

A Carta Brasileira de Prevenção Integrada na Área de Saúde na perspectiva da Educação

Física (CBPIAS) foi elaborada com o objetivo de democratizar as conferências e debates

realizados no Fórum Nacional de Prevenção Integrada da Área de Saúde, promovido pelo

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Sistema CONFEF/CREFs (Conselho Federal e Regionais de Educação Física) na cidade de Belo

Horizonte, nos dias 8 e 9 de setembro de 2005. A tarefa de construção e formatação do

documento foi delegada pelo Sistema CONFEF/CREFs ao recém falecido Prof. Dr. Manuel José

Gomes Tubino, então Presidente da Federação Internacional de Educação Física (FIEP), e

aprovada pelos participantes do Fórum na sessão de encerramento.

A ideia inicial era analisar os documentos separadamente, para só depois aproximá-los e

compará-los. No entanto, a semelhança encontrada em algumas marcas linguísticas, assim como

nos sentidos a que estas remetiam, nos fez mudar de estratégia metodológica e apresentar uma

análise unificada composta por fragmentos retirados de todos os documentos, cada qual

devidamente referenciado.

Vale observar que, no presente trabalho, os termos esporte e droga não devem ser

entendidos como conceitos, mas como noções. Isso porque, como diz Maffesoli (2007), não

devemos constranger a heterogeneidade da vida à unicidade do conceito. Para este autor, o

conceito unifica, simplifica, reduz, e por isso não dá conta da vida que eclode e arrebenta a todas

as coleiras que lhe tentem (im)pôr. O rigor excessivo dos conceitos acaba por afastar do real,

atrapalhando assim a compreensão do pluralismo existencial que exige uma generosidade de

espírito que deve tudo aceitar e nada subtrair de sua parcela de mistério. Para compreendermos a

vida em toda a sua complexidade, a ideia de noção, que exprime desejo e preocupação intelectual

sem com isso coagir ou apenas tangenciar o problema, permite a percepção da heterogeneidade,

mantendo juntas, cada uma delas com certa autonomia, coisas que foram feitas em pedaços. A

atitude nocional também evita que se transforme uma verdade local numa verdade universal,

fornecendo, acerca de um mesmo objeto, esclarecimentos diversos que indicam que cada objeto é

a um só tempo isto e aquilo.

Assim, não pretendemos superar as contradições implícitas ao emprego dos termos droga

e esporte, mas, pelo contrário, desejamos justamente enfatizar esta complexidade contraditória e

trabalhar com ela. Quando falarmos em atividade física, educação física, desporto, exercício

físico, estaremos, de maneira geral, nos referindo à ampla noção de esporte. De forma

semelhante, a palavra droga não será desmembrada em adjetivos como ilegal, legal, artificial,

natural, ou de qualquer outro tipo, devendo ser entendida como uma noção que compreende os

vários sentidos e significados sociais e imaginários para o qual o termo droga pode ser e é

empregado.

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III.III.Análise do discurso

As marcas lingüísticas encontradas nos documentos foram: Esporte; Droga; Prevenção.

Tais marcas foram desenvolvidas segundo os sentidos revelados por cada uma delas

III.III.I. O Esporte como marca linguística.

2. A marca esporte aparece com o sentido de direito de todos:

“o esporte é um direito de todos” (PNE, p. 13);

“afirmação do esporte e do lazer como direitos sociais dos cidadãos” (PNE, p. 6);

“a educação física é um direito humano de todas as pessoas” (CBPIAS, p. 7).

A afirmação de que o esporte é um ‘direito de todos’ trás em si o objetivo de garantir a

todos a oportunidade de praticar esportes. O acesso ao esporte, nesse sentido, é um “direito

humano e social” que não pode ser negado a nenhum cidadão brasileiro.

“o acesso ao esporte é um direito a ser garantido ao cidadão brasileiro” (PNE, p. 1);

“ampliar o acesso ao esporte de rendimento” (PNE, p. 8);

“democratizar e universalizar o acesso ao esporte e ao lazer” (PNE, p. 22);

“dando oportunidade a crianças e adolescentes de vivenciarem a prática do esporte”

(PNE, p. 8).

Acontece que o fato de ser um direito não oferece, por si só, a garantia de acesso desejada.

Todo direito, para que seja realmente um direito, exige a existência de algo ou alguém que

garanta a sua plena realização. Não adianta proclamar que o esporte é um direito de todos sem

que nada seja efetivamente feito para que o esporte se concretize como um direito de todos, pois

um direito é sempre uma “prerrogativa, que alguém possui, de exigir de outrem a prática ou

abstenção de certos atos, ou o respeito a situações que lhe aproveitam” (Ferreira, 1975, p. 478).

No caso, a responsabilidade de se fazer cumprir este direito recai sobre o Estado.

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“O acesso ao esporte e ao lazer é direito de cada um e dever do Estado” (PNE, p. 23).

O esporte, nesse sentido, se manifesta como uma atividade de tal importância aos olhos do

governo brasileiro que este se autoimpõe à responsabilidade e à obrigação de garantir a cada

cidadão brasileiro o livre acesso às atividades esportivas. Sem entrar no mérito da capacidade do

governo brasileiro de fazer valer este direito, o mais notável aqui é o prestígio atribuído às

práticas esportivas por parte dos governantes brasileiros. Afinal, à que se deve tamanha

valorização do esporte a ponto de torná-lo um direito a ser garantido a todo cidadão brasileiro?

O atributo “direito”, que se refere, dentre outras coisas, a uma “faculdade concedida pela

lei” (Ferreira, 1978, p. 478), legitima a prática esportiva enquanto algo que é justo, reto e

conforme a lei. Esta validação não se limita à esfera jurídica, mas se expande a quase todas as

esferas da sociedade. O esporte é praticamente uma unanimidade. Em nosso atual contexto social,

não restam dúvidas a respeito de suas qualidades e dos benefícios que sua prática pode vir a

proporcionar a todos os cidadãos. De maneira que ser anunciado como um “direito de todos” é o

resultado desse enaltecimento do esporte.

O esporte é um direito e, como não poderia deixar de ser, está do lado direito, aquele que

corresponde ao “lado do corpo humano em que a ação é, no tipo normal, mais forte e mais ágil”

(Ferreira, 1978, p. 478). Ou seja, o esporte se encontra do lado da ordem, posto que o lado direito

é o lado da técnica, o mais coordenado, o melhor controlado, aquele que obedece aos comandos

de seu senhor mais pronta e exatamente. E como dizem alguns dos tratados do esporte, a

atividade esportiva é capaz de desenvolver o autocontrole (self-control), sendo por isso mesmo

considerada um elemento fundamental para a formação do caráter e da personalidade dos

homens.

Vale ressaltar que a palavra “direito”, enquanto adjetivo, se refere a uma extensa gama de

qualidades como, por exemplo: íntegro, probo, honrado, leal, franco, sincero, aprumado, ereto,

dentre outras que não deixam negar sua origem virtuosa. Ser direito é, nesse sentido, ser correto.

Tudo aquilo que é direito participa do “politicamente correto”, do “moralmente bom”, do que

“faz bem”, do saudável, enfim, de toda a gama de comportamentos e atitudes considerados

“positivos” no imaginário social vigente.

“Direito” também se refere ao “que segue sempre a mesma direção; reto, direto”, e que,

conseqüentemente, “não é curvo” (Ferreira, 1978, p. 478). É direito o que possui um sentido, um

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objetivo; que não se perde nem dá voltas em direção ao seu destino. O caminho direito é o

caminho reto, que não se desvia de seus princípios nem fins. Nesse sentido, o esporte propicia um

caminhar direito porque ajuda a estabelecer metas e prepara para alcançá-las, evitando que

aqueles que o praticam se percam ou se enveredem pela estrada dos vícios e dos maus hábitos.

Quem pratica esporte, dizem os seus defensores, não se desvia de suas metas, mas segue firme

em direção a “reta final” até cruzar a “linha da vitória”. 36 Assim, se o esporte é hoje considerado

um “direito de todos”, é porque ele comunga com os valores “direitos”, isto é, com o conjunto de

valores que compreendem os pensamentos, as atitudes e os comportamentos “politicamente

corretos” em nosso atual contexto social.

3. A marca esporte no sentido de desenvolvimento humano.

“o esporte é condição essencial para o desenvolvimento humano” (PNE, p. 19);

“A pratica de esportes promove o desenvolvimento da nação” (PNE, p. 2);

“O “desenvolvimento humano” é uma tese que permeia toda ação do Ministério do

Esporte” (PNE, p. 16).

O esporte é reconhecido hoje como uma atividade capaz de promover o desenvolvimento

humano, ou seja, de fazer progredir, aumentar e melhorar tudo aquilo que é relativo ao homem.

Tal afirmativa nos leva a levantar duas indagações: qual o sentido da palavra homem nesse

contexto; e o que significa o seu desenvolvimento?

A ideia de desenvolvimento humano nos remete ao ideal de progresso do homem no

sentido de alcançar a superação de suas limitações. Acreditando ser capaz de, por suas próprias

forças, ultrapassar a condição miserável em que vive, o homem encarna o mito de Prometeu e

rouba para si a responsabilidade de governar o mundo. Nesse movimento, guiado pelo projeto

finalista de edificar um paraíso na terra, o homem acaba por tomar a si mesmo como referência e

critério últimos para estabelecer uma nova ordem no mundo.

36 Como disse o então candidato à e hoje eleito prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em sua campanha televisionada: “O legal do esporte é isso, o esporte diz pra você: você tem uma meta pra cumprir. Para isso você precisa treinar. Você precisa se preparar. Precisa se qualificar para chegar lá na reta final, lá na linha da vitória” (2008).

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Tal proposta se aproxima da proposta humanista que, segundo Savater (1998), se

caracteriza por considerar o homem como única base real dos valores que vão reger as ações e

instituições humanas. Os critérios de avaliação do humanismo não são recebidos de nenhuma

Entidade superior – natural ou sobrenatural – ao qual se deva acatar, mas sim descobertos pela

ciência e convencionados pela sociedade, assim como desejados e impostos pela criadora vontade

dos homens.

Nesse sentido, podemos dizer que, na concepção humanista, a palavra homem passa a ser

escrita com h maiúsculo e a vir sempre precedida de artigo definido. Não mais um homem

qualquer, mas o Homem, no sentido de um reconhecimento efetivo da condição humana

universal que, não se resumindo meramente a uma natureza compartilhada, também exprime uma

idêntica comunidade ultra-política de desejos, direitos, deficiências e capacidade criadora.

É verdade que, como já vimos em nossa revisão de literatura, o ideal de superação dos

flagelos que afligem a vida se vê hoje profundamente desacreditado em função dos próprios

rumos da humanidade, que, longe de viver no sonho da “liberdade, igualdade, fraternidade”, está

cada vez mais “sufocada, desigual e violenta”. No entanto, assim como no mito de Prometeu,

mesmo diante de um sofrimento intenso e profundo, os homens permanecem confiantes na vitória

final de seus próprios poderes.

O esporte, nesse contexto, aparece como mais um dos instrumentos capazes de serem

manipulados pelos “detentores do fogo” com o fim de reverterem à situação desfavorável em que

se encontram. Assim, da mesma forma que os artifícios do industrioso Ulisses, o esporte aparece

como uma alternativa para, mesmo diante dos maiores problemas e dificuldades, manter o

homem firme e confiante em seu propósito de retornar a sua casa original: o paraíso. E o esporte,

na qualidade de meio de “desenvolvimento humano”, é tido por uma poderosa ferramenta a ser

utilizada nesta luta contra as forças do anti-humanismo, como, por exemplo, as guerras, a fome, a

pobreza, a ignorância, a destruição do meio ambiente, as doenças.

“O esporte (…) reafirma seu potencial no desenvolvimento social e econômico de uma

nação, especialmente nas áreas de saúde, educação e meio-ambiente” (PNE, p.2).

A UNESCO também valoriza a importância do esporte no desenvolvimento dos povos na convicção de que o esporte e a educação física podem contribuir positivamente nas problemáticas de saúde e do bem-estar, na diminuição de desigualdades, no resgate de valores e princípios, entre outras questões. (PNE, p. 2)

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“o esporte poderá promover valores vitais para a convivência harmoniosa de um povo”

(PNE, p. 20);

O esporte aparece como uma verdadeira panacéia para os males da atualidade. Ele é capaz

de prevenir e combater a praticamente todos os problemas que atravancam o progresso da

humanidade. Daí que ele seja hiper-valorizado como um instrumento de potencialização das

“qualidades humanas”.

A atividade física sistematizada e o Esporte (…) são considerados por todos os diferentes segmentos de profissionais da área da Saúde como excelentes meios minimizadores e facilitadores na busca de saídas e soluções para os problemas que vêm recrudescendo de forma progressiva na sociedade atual (CBPIAS, p. 3).

Exaltado e prescrito pelos profissionais da saúde, utilizado e reconhecido pelos

educadores, o esporte é um instrumento de ação dessas duas entidades sagradas em nosso

imaginário: a Saúde e a Educação. Dois poderes elevados ao status de “salvadores da pátria” por

suas virtudes de “detentores do conhecimento” e, por isso mesmo, ditadores dos valores, dos

hábitos, da moral e dos bons costumes na sociedade. É nesse sentido, nos parece, que o esporte se

enraíza no imaginário social como um poderoso instrumento de “desenvolvimento humano”.

4. A marca esporte no sentido de atividade educacional.

(O esporte) deve promover o desenvolvimento da Cultura Corporal nacional, cultivar e incrementar atividades que satisfaçam às necessidades lúdicas, estéticas, artísticas, combativas e competitivas do povo, tendo como prioridade educá-lo em níveis mais elevados de conhecimento e de ação que se reflitam na criação de possibilidades de solução de problemas sociais que, no momento, impedem o progresso social (PNE, p. 14).

Segundo Ferreira, a educação, de maneira geral, pode ser compreendida como sendo um

“processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser

humano em geral, visando à sua melhor integração individual e social”, assim como “o cabedal

científico e os métodos empregados na obtenção de tais resultados” (1978, p. 499).

Tal definição, encontrada em um dicionário de grande circulação e reconhecimento

nacional, está em sintonia com a noção de que o processo educativo, do qual o esporte é um

instrumento, é um processo de desenvolvimento humano. Ressalte-se que o fato desse processo

visar uma “melhor integração individual e social” revela que a educação, da forma aqui

compreendida, tem entre seus principais objetivos a superação das desigualdades sociais e dos

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comportamentos desviantes. Os problemas sociais a serem solucionados se referem, em grande

medida, ao baixo índice de integração dos indivíduos ao ideal social. Um indivíduo bem

integrado se comporta da maneira esperada, isto é, não possui vícios, não comete crimes, não é

depravado, é pacífico, alfabetizado, independente, está incluído no mercado de trabalho, possui

um lugar onde morar, dentre outras características que revelam sua boa educação. Aqueles que

não correspondem a esse perfil precisam ser submetidos a um trabalho de inclusão social que, no

fundo, corresponde à superação de suas deficiências e falhas, sejam elas físicas, intelectuais,

econômicas, morais, éticas, ou de qualquer outra espécie.

A educação simboliza um meio por meio do qual se torna capaz a “solução de problemas

sociais que (…) impedem o progresso social”. Ela é o instrumento mais indicado para a tarefa de

superação do que a sociedade acredita ser, com suas falhas, injustiças e desigualdades, em

direção ao que a sociedade crê que deveria ser, livre de toda miséria e desgraça humana. Nesse

sentido, o processo educativo não pode se dar de forma livre e espontânea, mas deve ser dirigido

segundo metas pré-determinadas em função dos objetivos a serem alcançados. Para tanto, existe

um enorme cabedal métodos e técnicas disponíveis aos educadores - aqueles que, ao menos

hipoteticamente, estão no controle – para que esses direcionem seus alunos no sentido de

alcançarem os objetivos previamente estipulados.

Essa aparente capacidade de influenciar os resultados de amanhã em prol dos objetivos de

hoje fez, e ainda faz, da educação um consagrado meio de emancipação do homem, capaz de

realizar o ideal de superação das desigualdades e sofrimentos que afligem a humanidade. A

educação é assim depositária da fé em um futuro melhor. Ela representa uma ação fundada, acima

de tudo, na esperança. Esperança de manter viva e compartilhar as tradições e os costumes

pessoais, familiares, culturais, comunitários, nacionais; esperança de uma sociedade mais justa,

mais prospera, mais evoluída, livre de suas intempéries, de suas desgraças, enfim, de um amanhã,

senão grandioso, ao menos melhor. E se a prática educativa nem sempre condiz com estes

objetivos, ela, por outro lado, quase sempre se justifica para e é aceita por todos em função desses

preceitos.

A educação se insere no imaginário contemporâneo como um dos pilares sobre o qual

deve se erigir uma sociedade que se pretenda ideal. A ideia geral é a de que sem educação não há

salvação. Uma sociedade que não invista em educação jamais irá escapar ao inferno do

subdesenvolvimento, permanecendo na miséria em que se encontra. Mas um povo que priorize o

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processo educativo, formando cidadãos bem educados, disciplinados e tecnicamente preparados,

será capaz de se salvar das desgraças e intempéries da condição humana.

Nesse contexto, o esporte, como um dos mais eficientes instrumentos educativos, além de

suprir às “necessidades lúdicas, estéticas, artísticas, combativas e competitivas”, saciando a todo

o conjunto social - que assim se torna manso e pacífico -, ainda é capaz de promover a formação

e o fortalecimento do caráter, da vontade, da responsabilidade, da moral, da complacência física,

do espírito de grupo e de liderança, do autocontrole, enfim, de todas as qualidades reconhecidas

como engrandecedoras em nossa sociedade. Assim, acredita-se que a prática esportiva

direcionada possa formar cidadãos exemplares, que saibam exercer sua liberdade de forma

responsável e eficiente em prol do desenvolvimento humano e social.

Para atribuir um sentido educativo ao esporte é preciso espelhar objetivos educacionais nos princípios da cidadania, da diversidade, da inclusão social e da democracia, que perpassam esta Política, porque eles representam valores, hábitos e atitudes possíveis de serem formadas por meio da prática do esporte (PNE, p. 14).

“o Ministério do Esporte entende que o esporte é educacional quando efetiva a

participação voluntária e responsável da população” (PNE, p. 14).

O processo educativo se baseia tanto na fomentação dos valores, dos costumes, das

crenças e dos mitos impregnados na história, na cultura e no imaginário de um povo, como nos

desejos e nos anseios que este mesmo povo alimenta como perspectiva de futuro. Assim, se o

esporte, para adquirir um sentido educativo, deve se espelhar nos “princípios da cidadania, da

diversidade, da inclusão social e da democracia”, é porque estes representam os “valores, hábitos

e atitudes” fomentados no imaginário como capazes de realizar o ideal social. Não é à toa,

portanto, que o esporte, para ser educacional, deve ser entendido como uma atividade baseada no

princípio da voluntariedade e do prazer, segundo o qual cada indivíduo, de maneira responsável,

decide livre e conscientemente participar. Estes “objetivos educacionais”, no qual deve se

fundamentar a prática esportiva manifestam as próprias estruturas míticas e ideológicas

fomentadoras do discurso em questão.

5. A marca esporte no sentido de promoção da saúde.

“o esporte e a educação física podem contribuir positivamente nas problemáticas de saúde

e do bem-estar” (PNE, p. 2);

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“Os programas de esporte devem servir como ferramenta eficaz para a promoção e

preservação da saúde” (PNE, p. 24).

“a atividade física é um meio eficiente e barato de promoção da saúde e do bem-estar

geral” (CBPIAS, p. 4);

“a educação física tem como papel fundamental o desenvolvimento e a manutenção da

saúde, contribuindo nos campos físico e mental” (CBPIAS, p. 8)

A ideia de promover remete ao sentido de “dar impulso”, de “trabalhar a favor”, de

“favorecer o progresso”, “fazer avançar”, assim como ao de “ser a causa”, “causar, gerar,

provocar, originar” (Ferreira, 1978, p. 1145). Nesse sentido, o esporte, enquanto atividade física,

não apenas trabalha em prol da saúde como também gera saúde. Além de grande incentivador o

esporte ainda é citado como grande produtor de saúde.

O conceito de saúde, até pouco tempo, era compreendido como “um estado do indivíduo

cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normais” (Ferreira, 1978, p.

1277). Mais atualmente, no entanto, a Organização Mundial de Saúde define o conceito de saúde

como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de doença

ou enfermidade”37. Logo, se antes ter saúde era estar dentro da normalidade, agora é estar acima

da normalidade. Porque a normalidade é um estado vulnerável, que permanece muito próximo da

anormalidade. Não basta mais, como antes, estar livre das doenças e apto a realizar as

necessidades normais do dia a dia, agora é preciso ser invulnerável, o que só pode ser garantido

por uma saúde olímpica, uma saúde de atleta.

De acordo com tal concepção de saúde, não é de se estranhar que o esporte seja

considerado um grande aliado da saúde. Para além da capacidade de prevenir e combater

inúmeros fatores de risco capazes de desencadear uma série de doenças degenerativas, o esporte

potencializa a eficiência de vários sistemas orgânicos e estimula a liberação de substâncias e

hormônios na corrente sangüínea capazes de provocar uma intensa sensação de prazer e bem-

estar. O resultado são homens e mulheres não apenas saudáveis como hiper-saudáveis.

37 Tal definição exagerada mais uma vez nos põe em contato com o desejo de plenitude, de superação total da condição miserável do homem.

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“As atividades físicas reconhecidamente atuam como ações diretas sobre as doenças

cardiovasculares, câncer, diabetes, estresse, ansiedades, depressões, hipertensões, controle da

osteoporose e conduções das enfermidades crônicas” (CBPIAS, p. 9).

Os benefícios do exercício corporal proporcionados pelas práticas físicas estimulam os vários sistemas orgânicos, especialmente o cardiopulmonar, contribuem eficazmente para o controle do peso corporal, auxiliam a manutenção da pressão sangüínea em níveis aceitáveis, atuam na integridade dos sistemas osteo-articular, nervoso e muscular, e propiciam a descontração, compensando o estresse da vida moderna, entre outras funções (CBPIAS, p. 4).

O esporte, nesse contexto, surge como grande aliado na luta contra as enfermidades que

acometem a humanidade contemporânea. E se a ele é dado o status de imprescindível na

conquista da saúde, é porque ele é respeitado como um instrumento de superação da humanidade.

O esporte possibilita o sobrelevar das capacidades humanas além das fronteiras da normalidade.

Porque, apesar de um corpo normal não está enfermo, ele também não possui escudos nem armas

suficientes para resistir bravamente ao ataque das enfermidades. Já um físico atlético não se

entrega facilmente, mostrando-se apto a enfrentar as ameaças e intempéries da vida. Assim, se o

ideal de saúde não é mais o normal, é porque o normal é extremamente humano, no sentido de ser

limitado, frágil e incapaz. “a falta de exercícios regulares e a diminuição significativa da

exigência de atividades físicas nas tarefas diárias acabam se constituindo ou resultando em fator

importante para o desenvolvimento de doenças degenerativas (CBPIAS, p. 3).

A realização de “exercícios regulares” é tida não apenas como necessária como também

imprescindível. Aquele que não dedica uma boa parcela de seu tempo ao esporte está fadado a

sofrer com o “desenvolvimento de doenças degenerativas”. O esporte é a escolha sensata de

quem deseja ter saúde. Aos sedentários e obesos, só resta se redimirem ou logo padecerem.

Dentro desta perspectiva de saúde, o corpo é considerado um organismo que tende sempre

para a enfermidade. Caso não tomemos as devidas precauções, ele fatalmente adoecerá. A

escolha de uma vida sedentária, isto é, sem o hábito da prática de esportes, não tardará em revelar

seus efeitos nefastos. Assim, a prática esportiva é uma atividade imprescindível na permanente

corrida pelo ideal de saúde.

Nesse contexto, vale lembrar que a identidade dos conceitos genéricos de saúde e de

doença, assim como o estabelecimento dos limites mais ou menos difusos entre ambos,

descansam, segundo Pedraz (2006), ou sobre um critério de estado ideal imaginário ou sobre um

critério estatístico que discrimina entre a normalidade ou a anormalidade no funcionamento

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corporal. Em qualquer um dos dois casos nos deparamos com algo mais do que uma simples

descrição técnica. Primeiro, porque a representação do estado ideal pode receber, e de fato

recebe, muitas e distintas interpretações de acordo com o contexto cultural. Segundo, porque a

delimitação das fronteiras da normalidade responde a critérios que se relacionam com um

paradigma científico e a sempre arbitrária estreiteza ou amplitude com que são interpretadas a

partir dos comportamentos e das funções corporais.

A saúde ou enfermidade, portanto, não constituem fatos, mas sim relações resultantes de

processos classificatórios elaborados pelo homem. São, sobretudo, classes dentro de um marco

conceitual e explicativo construído e legitimado social e imaginariamente com o objetivo da

aproximar e organizar a experiência de forma satisfatória. Nesse sentido, são saudáveis apenas

aqueles que correspondem aos critérios estabelecidos por este sistema simbólico. Cabendo aos

excluídos lutarem pela posição de sadios ou se entregarem à condição de enfermos.

Assim, ao atentarmos para o fato de que, atualmente, o conceito de saúde não se define

mais pela ausência de enfermidade nem pela condição de normalidade, e sim por um estado de

plenitude física, mental e social, constatamos que o ideal de saúde contemporâneo é não apenas

irreal como pode ser extremamente cruel. O que pode ser constatado nestas formas de

culpabilização que se materializam nas insistentes campanhas antiobesidade, anti-tabaco, anti-

drogas, que são, no fundo, anti-obesos, anti-fumadores, anti-drogados, assim como nas

campanhas de incentivo à forma físico-desportiva que tomam por referência a saúde, valorizando

os atributos desportivos e seu necessário calvário: as dietas, os exercícios físicos e outros

métodos.

O fato mais importante a ser constatado, no entanto, é que o esporte se afirma como uma

atividade imprescindível diante do ideal de saúde contemporâneo. Pode-se até supor, indo um

pouco mais além, que o esporte é o único caminho capaz de realizar este ideal. Afinal, a partir do

momento em que ser saudável é ter o condicionamento de um atleta, só será saudável aquele que

dedicar uma boa parcela de sua vida à prática de exercícios físicos.

A noção de plenitude física, mental e social, que serve de parâmetro delimitador entre a

saúde e a doença, não exige apenas o cuidado de se manter longe das enfermidades, mas impõe

também a necessidade de se estar sempre “correndo” para se manter no mesmo lugar, isto é,

saudável. Se a saúde era um estado passivo, agora ela é um estado ativo que exige,

conseqüentemente, um “estilo de vida ativo”. Nesse sentido, o esporte é justamente o meio

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através do qual adquirimos o “preparo físico” para nos mantermos na “corrida pela saúde”. Sem

ele, somos incapazes de superarmos o constante degenerar corporal e alcançarmos a idealizada

plenitude.

6. A marca esporte também remeteu ao sentido de incentivo à prática esportiva.

“promover ampla mobilização, articulação e participação popular em torno das questões

do Esporte e do Lazer” (PNE, p.11);

“iniciativas empenhadas em inserir e valorizar o esporte” (PNE, p. 7)

“um esforço coletivo em prol do desenvolvimento do esporte no país” (PNE, p. 8)

Depois de todos os benefícios anteriormente atribuídos ao esporte, não é de se estranhar

que entre os principais objetivos da Política Nacional do Esporte esteja o de “incentivar à prática

esportiva”. Este incentivo parece uma conseqüência obvia se tomarmos em conta os supostos

ideológicos que justificam o esporte em nossa sociedade. É nesse sentido, nos parece, que o

esporte recebe hoje o incentivo do Estado.

“reconhecer a tendência da intervenção do Estado e o caráter das contribuições para o

desenvolvimento do Esporte” (PNE, p. 2);

“intensificar a participação do Estado e investir no esporte de base” (PNE, p. 8);

“apresentar propostas para a elaboração de Programas e Projetos Nacionais nas áreas de

Esporte e Lazer” (PNE, p. 11).

O esporte é um instrumento de trabalho dos ideais preconizados no discurso oficial das

políticas públicas. Seu incentivo é também um incentivo ao ideal mítico-prometeico da superação

das limitações humanas por intermédio da razão e da técnica. Assim, ao intensificar sua

participação e investir no esporte, o Estado está, no fundo, investindo em si mesmo, em suas

próprias esperanças.

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III.III.II. A droga como marca lingüística

1. A marca droga no sentido de redução.

“Diminuir o impacto dos problemas socioeconômicos, culturais e dos agravos à saúde

associados ao uso de álcool e outras drogas” (PNSD, p. 9)

“redução dos riscos, das conseqüências adversas e dos danos associados ao uso de álcool

e outras drogas para a pessoa, a família e a sociedade” (PNSD, p. 9)

As drogas são famosas em nossa sociedade por seus poderes de sedução e de

escravização, que atraem e viciam os usuários, fazendo-os dependentes de seus efeitos. Em

virtude de seus prazeres, que as tornam um grande atrativo, principalmente para jovens inocentes

e indefesos, as drogas, assim como o fascinante canto das sereias leva a todos os que o escutam

às profundezas do oceano, encantam de tal forma à seus usuários que estes caminham

voluntariamente para as profundezas do vício. Seus poderes são considerados de tal magnitude

que mesmo os mais fortes se veem indefesos diante dela. Fazendo frente e sobrepujando a todo o

entusiasmo pela vida, as drogas acabam por se estabelecerem como a única fonte de satisfação do

usuário. Assim, todo o gosto pela existência se perde e se fixa na droga. E a ausência da droga

passa inevitavelmente a ser vivida como um estado de angústia incontrolável e constante; só

aliviado pela próxima dose. Esta impiedosa e angustiante ausência da droga leva à atitudes

violentas e criminosas por parte dos usuários, que, descontrolados, perdem a razão e não medem

mais as conseqüências de seus atos.

Em função de tal concepção do uso de drogas e de seus efeitos, não é se estranhar que as

drogas sejam hoje consideradas um dos principais inimigos do desenvolvimento social,

principalmente quando se constata que, mesmo frente a todas as estratégias e meios de combate

empregados contra, as drogas não param de se disseminar nem de ampliar seu rol de tipos e

qualidades. Semelhante a um astucioso vírus, sempre que perante dificuldades em se multiplicar,

as drogas sofrem mutações que deixam o organismo hospedeiro - no caso, o corpo social -

impotente para com seu poder de reprodução e contaminação.

Para piorar, o combate a esse “vírus social” que é considerada a droga, dá origem a efeitos

colaterais violentíssimos, que podem ser facilmente constatados na guerra contra o narcotráfico.

O remédio, como acontece também em muitos outros casos, acaba provocando mais danos do

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que a própria “doença”. Na medicina, porém, quando se constata que a terapia de cura acaba por

ser mais danosa do que o mal que pretende curar, via de regra, busca-se uma nova solução, que

passa pela suspensão do tratamento e vai em direção à outras maneiras de superação da

enfermidade. No “mal das drogas”, todavia, o exemplo médico não é seguido e a guerra às drogas

termina por fazer cada vez mais vítimas. Aliás, como muitos defendem, talvez a própria

“enfermidade da droga” seja uma criação própria da nossa sociedade. Não no sentido de que a

toxicomania não existe e não acomete a alguns de nossos membros, mas sim no de que o uso de

drogas, enquanto traço comum em todas as culturas conhecidas, nunca representou, quando não

oficialmente proibido, um risco social generalizado como hoje representa.

Para os defensores da legalização, a proibição amplifica, e muito, os danos passíveis de

serem provocados pelas drogas, ainda mais no que diz respeito aos efeitos colaterais advindos da

guerra às drogas. O fato que sustenta e dá vantagem a abordagem legalizadora é que a proibição

ao uso de drogas, desde seus primórdios, jamais obteve êxitos maiores e mais significativos do

que suas consequentes perdas. O que, contraditoriamente, acaba por alimentar ainda mais as

justificativas para a manutenção e a ampliação de investimentos no combate às drogas.

“obter redução (…) das conseqüências adversas do uso e do tráfico de drogas ilícitas e do

uso indevido de drogas lícitas” (PNSD, p. 2)

A utilização dos termos “diminuir” e “reduzir” nos chama a atenção para um ponto

interessante do movimento proibicionista vinculado pela Política Nacional sobre Drogas. Ao

invés de propor a eliminação ou o fim dos problemas associados ao uso de drogas, fala-se em

minimização dos mesmos. Ou seja, o ideal de superação total e final do inimigo parece estar

cada vez mais desacreditado pelos próprios responsáveis pela elaboração das estratégias de

combate às drogas. De forma sutil, a divulgação do objetivo de reduzir as conseqüências

negativas do uso de drogas acaba por declarar a impotência da política de proibicionismo frente

ao poderoso inimigo. Não estamos dizendo, com isso, que o ideal de viver em mundo sem drogas

deixou de ser desejado, como podemos constatar no primeiro pressuposto da Política Nacional

sobre Drogas:

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“Buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do

uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas” (PNSD, p.1)

No entanto, o ideal de construir uma sociedade “protegida”, e não livre, já dá sinais claros

do esmorecimento do movimento antidrogas, agora descrente em sua própria capacidade abolir o

uso de drogas. Ao falar em proteção, o discurso da Política Nacional Sobre Drogas está dizendo

que, como não é possível vencer o “mal”, o mais apropriado é se resguardar dele. Se antes o

ponto principal a ser discutido eram os meios de se promover a erradicação das drogas ilícitas e a

proteção ao abuso das drogas lícitas, a impossibilidade prática de eliminar as drogas ilícitas as

colocou, nesse sentido, no mesmo patamar das drogas lícitas. A postura em relação às drogas em

geral passa então a priorizar a proteção da sociedade, seja ela representada nos usuários ou não-

usuários, dos potenciais estragos, diretos ou indiretos, passíveis de serem ocasionados por estas

substâncias.

As drogas ainda são consideradas coisas ruins que produzem conseqüências ruins. Este é

um mal com que a sociedade se vê obrigada a conviver, porém não sem expressar sua

desaprovação. Como podemos constatar nas campanhas obrigatoriamente impressas nas caixas de

cigarro, ainda que seu uso seja legal, a morte está estampada na droga. O indivíduo fumador deve

ter consciência deste “fato”, podendo, por conta própria, se proteger dos males e das toxinas

contidos naquele maço. Para aqueles que optam pela “melhor opção”, isto é, a de não fumar, há a

ajuda de leis que os protegem de serem “fumadores passivos”, evitando-se assim que sejam

involuntariamente contaminados pela “fumaça impura” em ambientes públicos. Quanto aos ainda

jovens demais para terem consciência de seus atos e decisões, estes devem ser protegidos do

fumo não só pela proibição como também pelo controle da veiculação midiática e pela educação.

No caso das drogas ilegais, por sua vez, toda a sociedade é considerada como incapaz de

se proteger das armadilhas destas substâncias. Assim, estas devem permanecer proibidas em

função do entendimento de que, como diz Savater (1998), diante da droga ninguém pode ser

livre. Logo, a única forma de garantir a saúde moral do povo é retirar a ocasião do pecado: a

droga. Nessa perspectiva, as drogas põem em risco o “domínio de si” e, conseqüentemente,

precisam ser mantidas longe dos indivíduos autônomos e conscientes. A grande contradição é que

os “senhores de si” não podem tomar a livre decisão de usar drogas sob o risco de perderem a

posição de senhorios. A irresistibilidade da droga é assim considerada uma séria ameaça ao

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“autocontrole necessário à emancipação do homem”, que, por isso mesmo, deve ser isolado e

protegido deste mal.

“Estabelecer estratégias de redução de danos voltadas para minimizar as conseqüências

do uso indevido, não somente de drogas lícitas e ilícitas, bem como de outras substâncias”

(PNSD, p. 10).

Uma das principais estratégias de minimização dos males provocados pelas drogas é a da

Redução de Danos. Através da oferta de materiais descartáveis, de instruções de higiene, de

auxilio médico, terapêutico e outros mais, procura-se proteger os usuários dos possíveis estragos

intrínsecos ou colaterais ao uso de drogas. Quando falha o escudo da proibição e da

conscientização, entre em cena esta outra forma de proteção, que se caracteriza por intentar evitar

que os danos inerentes ao uso de drogas. A redução de danos é assim uma espécie de “sexo

seguro”: já que as pessoas sempre fizeram, fazem e vão continuar fazendo sexo, que pelo menos

usem camisinha. Ou seja, se é impossível acabar com o uso de drogas, que está prática aconteça

da forma mais segura (ou menos insegura) possível. A lição final é a de que, como não é possível

erradicar as drogas, pode-se ao menos tentar viver em uma sociedade em que os usuários de

drogas estejam protegidos de seus efeitos nocivos.

“Reduzir as conseqüências sociais e de saúde decorrentes do uso indevido de drogas para

a pessoa, a comunidade e a sociedade” (PNSD, p. 4)

Outro ponto que merece destaque aqui é a utilização da expressão “uso indevido de

drogas”, que nos permite fazer duas considerações associadas. Em primeiro lugar, falar em “uso

indevido” remete ao fato de também há um “uso devido”. E a classificação do que é ou não

devido está entregue nas mãos das autoridades médica, jurídica e governamental que, nesse

sentido, possuem o poder de influenciar diretamente os hábitos e costumes da sociedade,

determinando, por um lado, o que é devido e é bom, e, por outro, o que é indevido e é ruim. Em

segundo lugar, o fato de haver uma determinação do que é devido e do que é indevido, coloca a

responsabilidade pelo uso correto ou incorreto de drogas nas mãos de cada um, individualmente.

Cabe a cada indivíduo um direito de escolha que, no fundo, só lhe dá o direito de escolher pelo

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certo. Quem opta pelo uso indevido deve estar ciente de que, mesmo que a droga não crie

problemas em circunstancia de seus efeitos, pode ser punido. E, vale lembrar, as punições são, na

grande maioria das vezes, piores do que as conseqüências do uso da droga.

A responsabilização do indivíduo parte do princípio de que cada um é considerado

consciente dos seus atos e atitudes. Tal consciência, no entanto, só vale quando se trata da

realização da escolha “certa”, pois, do contrário, o indivíduo perde sua liberdade de ação e pode

até mesmo ser encarcerado, mesmo que seus atos não façam mal a ninguém, incluindo a ele

mesmo. Assim, contrária à redução de danos, parece que a proibição associada à criminalização

das drogas promove um aumento dos danos.

A estratégia de redução de danos surge como uma alternativa ao fracasso da guerra às

drogas que revela uma mudança significativa quanto à forma de pensar o “problema da droga”.

Tal mudança está no fato de que a política de redução desvia o foco da droga para o usuário da

droga, manifestando a compreensão de que as autoridades responsáveis por lidar com a questão

também devem estar preocupadas com aqueles que usam, querem usar ou deixar de usar drogas, e

não apenas com a droga em si.

Para a redução de danos, o uso de drogas não deixa de ser considerado uma prática

perigosa e maléfica, mas isso não quer dizer que os usuários não possam se drogar com um

mínimo de proteção. Dessa forma, um pequeno passo é dado no sentido de um uso de drogas

responsável, que não toma o usuário por um jovem ingênuo perante a maquiavélica droga. No

entanto, as drogas permanecem como inimigas com as quais é preciso negociar a fim de se evitar

o pior. E os usuários, apesar de não serem mais vistos, pelo simples fato de usarem drogas, como

bandidos que devem ser presos, continuam sendo julgados como pessoas que precisam de ajuda.

2. A marca droga no sentido de repressão ao tráfico.

“Combater o tráfico de drogas e os crimes conexos” (P. 4).

O tráfico de drogas e os crimes associados a essa prática estão entre as atividades

consideradas pelas autoridades do Brasil e do mundo como uma das principais origens da

violência e da falta de segurança. No entanto, traficar nada mais é do que comercializar algo,

independentemente do que seja. O tráfico só se torna ilegal quando aquilo que se quer

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comercializar é ilegal. No caso, a ilegalidade do narcotráfico advêm da proibição da

comercialização das drogas.

Como já vimos anteriormente, as drogas são substâncias consideradas malditas em nossa

sociedade. O que implica na proibição de se consumir todas as substâncias assim denominadas.

Logo, aqueles que se encarregam de produzir, espalhar e difundir esta maldição precisam ser

combatidos e detidos a fim de impedir o avanço do mal.

“Desmantelamento do crime organizado, em particular do relacionado com as drogas”

(PNSD, p. 2);

“impedir a utilização do território nacional para o cultivo, a produção, a armazenagem, o

trânsito e o tráfico de drogas ilícitas” (PNSD, p. 2);

“Controlar e fiscalizar (…) todo o comércio e transporte de insumos que possam ser

utilizados para produzir drogas, sintéticas ou não” (PNSD, p.12);

“estrangular o fluxo lucrativo desse tipo de atividade (corrupção e lavagem de dinheiro

ilegal) que diz respeito ao tráfico de drogas” (PNSD, p. 4);

“impedir que bens e recursos provenientes do tráfico de drogas sejam legitimados no

Brasil e no exterior” (PNSD, p.12).

Numa espécie de caça às bruxas, os defensores da sociedade empregam todos os meios

possíveis nesta empreitada, ainda que para isso precisem ser cruéis. Os culpados são tomados

como “bodes-expiatórios” e sacrificados em prol da purificação do meio social. Pois só o castigo

destes é capaz de restabelecer a ordem perdida.

“Assegurar recursos orçamentários (…) para o aparelhamento das polícias especializadas

na repressão às drogas” (PNSD, p. 13).

A polícia é a instituição responsável pela manutenção da ordem. Através de meios

próprios, entre os quais se incluem o uso da persuasão e do diálogo, assim como da força e da

intimidação, o trabalho dos policiais consiste basicamente em coibir a ação de contraventores,

isto é, de todos aqueles que se oponham a lei.

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A violência financiada pelo tráfico de drogas é resultado deste enfrentamento entre as

autoridades que proíbem e o “mercado negro” que insiste em comercializar. O uso de armas e da

violência por parte dos traficantes é uma reação ao fato de que estes mesmos métodos são

utilizados pela policia. Por um lado, para impedirem o comercio ilegal de drogas, os policiais

usam sua força armada. Por outro, para protegerem seu negócio, os traficantes também se armam.

Cria-se assim uma verdadeira guerra na qual vence a lei da violência.

Quem financia e movimenta este conflito são os lucros do comercio ilegal de drogas e o

dinheiro investido pelo governo no combate a este tráfico. O problema é que, como não poderia

deixar de ser, em nosso atual contexto neoliberal, o comercio destes fetiches tão desejados que

são as drogas movimenta a economia com enormes quantias de divisas. E, pelo fato de ser

proibido, este lucrativo comercio fica relegado ao “mercado negro”, que, para funcionar, precisa

encontrar maneiras de impedir que os mecanismos de fiscalização e controle cumpram suas

funções. Quanto mais estes mecanismos apertam o cerco ao comercio ilegal de drogas, mais caro

fica manter o negócio. O que implica em um aumento no preço da droga e na criação de novos

mecanismos e estratégias para burlar e combater à proibição. Assim, quanto mais se investe no

combate ao tráfico, mas os traficantes investem na promoção de seu comercio.

Acontece que, devido ao monopólio dos preços por parte dos traficantes, estes alcançam

uma enorme margem de lucros no comercio de drogas. O que torna praticamente impossível

erradicar ou pelo menos enfraquecer significativamente esta prática dentro de um contexto

proibicionista. O resultado, que na maioria das vezes é só o aumento da violência e dos danos

oriundos dos combates entre policiais e traficantes de drogas, termina por justificar a aplicação de

novos recursos orçamentários que, no fim, nunca são suficientes para resolver o problema. O

investimento de recursos no combate ao tráfico de drogas se assemelha assim a um “poço sem

fundo”, no qual quanto mais se investe, tanto mais se perde.

“A redução substancial dos crimes relacionados ao tráfico de drogas ilícitas e ao uso

abusivo de substâncias nocivas à saúde, responsáveis pelo alto índice de violência no país, deve

proporcionar melhoria nas condições de segurança das pessoas” (PNSD, p. 10);

O combate ao narcotráfico e aos crimes a ele relacionados é assim justificado em função

da violência e da falta de segurança oriundos do comércio ilegal e dos danos provocados à saúde

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pelo uso de drogas. Não se questiona, todavia, se estas alegações são realmente suficientes ou

necessárias para validar a política proibicionista atualmente empregada contra as drogas. Se for

olhado com atenção, pode-se ver que o que mais alimenta a violência envolvida na questão do

narcotráfico é o fato de as drogas serem substâncias proibidas. Porque, não fosse por isso, as

drogas seriam como quaisquer outras mercadorias legais, que podem ser facilmente adquiridas

em locais apropriados e são produzidas de acordo com normas específicas, incluindo controle de

qualidade, validade determinada e preço de mercado.

Assim, parece que, inversamente ao que se prega oficialmente, a violência e o crime

associado ao tráfico de drogas só chegaram ao ponto crítico em que se encontram hoje em função

do proibicionismo. Como um “tiro pela culatra”, a política de guerra às drogas, sob o pretexto de

combater, acaba por alimentar cada vez mais o que pretende destruir. E ao invés destes pífios

resultados levarem a uma nova maneira de encarar o problema, eles fortalecem ainda mais os

argumentos em prol da proibição da droga. Através de um processo de retro-alimentação

constante, o proibicionismo estimula o narcotráfico, que alimenta o proibicionismo, e assim por

diante. Na forma de um ciclo vicioso, este movimento produz uma imensa “bola de neve” que

não para de crescer e, conseqüentemente, de causar o esmagamento e a destruição por onde

passa.

Nem mesmo o argumento de que as drogas fazem mal a saúde é capaz de justificar a

política de proibicionismo. A ilegalidade só torna as drogas ainda mais perigosas à saúde, uma

vez que não existe um controle de qualidade que garanta a integridade das substâncias que se está

ingerindo nem bulas contendo informações a respeito de como usar, qual a concentração do

princípio ativo, quais as indicações, as reações esperadas, as reações adversas, as interações

medicamentosas, dentre outras informações importantes ao usuário.

Aliás, como bem observou Savater (1998), o argumento de que as drogas devem ser

perseguidas em função dos males que provocam a saúde é uma derivação da perseguição

religiosa, na qual a saúde física é hoje o substituto laico da salvação espiritual. Se as drogas eram

perseguidas por razões religiosas, que reprovavam seus efeitos orgiásticos (isto é, os transtornos

que produziam na alma e nos costumes), hoje são perseguidas por razões “científicas”, que

reprovam seus efeitos no corpo, como as enfermidades, os gastos de recuperação, a

improdutividade, a morte, e na disciplina laboral. Tal observação indica que a proibição das

drogas, muito mais do que uma questão política, econômica ou social, é uma questão simbólica

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que se enraíza, para além da clareza da razão, nos mitos e ideologias que sustentam e alimentam

o imaginário social. Por mais que o raciocínio lógico demonstre por A + B que a legalização é a

atitude mais coerente a ser tomada no combate ao tráfico de drogas e a violência associada, tal

decisão é contraditória aos valores sobre os quais se erigiu a nossa sociedade.

As drogas são conhecidas por seus efeitos que alteram a consciência, desviam a atenção,

prejudicam a memória, enfraquecem a vontade, enfim, por todos os motivos pelos quais foram, e

ainda são, oficialmente rechaçadas e marginalmente adoradas. O uso de drogas, nesse sentido, é

contrário a todas as virtudes enaltecidas em nosso imaginário, como a força de vontade, a boa

memória, a concentração e a lucidez. Não é à toa, portanto, que elas são tão temidas atualmente:

elas encarnam o medo mor da perda do controle de si; o medo da manifestação de Dionísio.

Assim, baseado na crença de que as drogas promovem a desordem da consciência e do

organismo, assim como o descontrole dos indivíduos e de suas capacidades, o que acaba por

desestabilizar o ponto de apoio sobre o qual deve se erigir uma sociedade desenvolvida, justa e

racional, as políticas destinadas as drogas, via de regra, defendem o combate ao uso e ao tráfico

destas substâncias.

III.III.III. A prevenção como marca lingüística

3. A marca prevenção aparece no sentido de importante estratégia.

“A questão da prevenção, em qualquer área, é de suma importância e relevância”

(CBPIAS, p. 2);

“os notáveis em todos os setores são unânimes em estabelecer a “prevenção” como fator

estratégico no combate às injustiças sociais, à violência, ao analfabetismo, à evasão escolar, à

proliferação de doenças, à exclusão social, ao doping, à utilização de drogas e tantos outros

problemas que coexistem na sociedade contemporânea” (CBPIAS, p. 2).

A prevenção nos remete ao ato ou efeito de prevenir, isto é, de ver de maneira antecipada

e preventiva. A estratégia preventiva representa exemplarmente a atitude de Prometeu, aquele

que vê antes, que prevê. Nesse sentido, a prevenção é uma atitude prometeica que se fundamenta

em uma perspectiva de futuro, procurando antecipar os acontecimentos a fim de se preparar para

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o amanhã com base em sua capacidade de antecipar o devir. Seu objetivo é básicamente o de

controlar o fluxo dos acontecimentos a seu favor, dispondo-se de maneiras de se evitar possíveis

perdas e danos a objetivos e projetos futuros.

A importância da estratégia de prevenção está em evitar que coisas indesejáveis

aconteçam. Ao invés de combater às adversidades já instaladas, com suas conseqüências e efeitos

danosos muitas vezes irreversíveis, a atitude preventiva consiste em evitar que a “semente seja

germinada”. Nesse sentido, a disseminação de uma ideologia preventiva é capaz de desenvolver

um excessivo senso de responsabilidade que, se internalizado por todos os indivíduos da

sociedade, acaba por se tornar um poderoso meio de controle social, para o bem ou para o mal.

A atitude preventiva participa do otimismo de espírito característico da ideologia

prometeica. Acreditando ser capaz de modificar o mundo por meio da correção dos costumes e

dos homens, o pensamento que prevê, iluminado pelo fogo da razão, procura agir sobre o devir

humano. Assim, se a prevenção figura como fator de “suma importância e relevância” no

combate aos “problemas que coexistem na sociedade contemporânea”, é porque ela representa

exemplarmente a crença dos homens em si mesmos como “senhores do destino”.

O grande problema deste tipo de comportamento é que, na tentativa de impor ao fluxo do

devir uma direção pré-determinada, aquele que deseja ter “tudo sob controle” acaba por se impor

uma sufocante disciplina, tendo em vista que a prevenção não é, na verdade, uma capacidade de

enxergar ou adivinhar o porvir, mas sim de tentar manipular o futuro com base no conhecimento

passado e na avaliação das condições presentes. E a empresa de ordenar o acaso e as incertezas

de todos os acontecimentos numa dada direção exige enorme dedicação, atenção e energia.

Quanto maior a vontade de controle maior deverá ser o vigor empregado. No fim, o desejo de

controle se volta contra seu próprio senhor e lhe impõe o controle.

A ideia de prevenção, dessa forma, pode revelar uma vontade de controle obsessiva que,

mascarada pela “boa fama” da estratégia preventiva, é capaz de disseminar e ainda justificar uma

espécie de “necessidade de autocontrole” generalizada. Toda ação passa então a exigir uma

reflexão preventiva que inibe tanto mais os movimentos quanto mais difícil for o objetivo a ser

alcançado. Assim, semelhante ao Prometeu de Esquilo, o homem prevenido se vê acorrentado e

torturado pela própria fé depositada na pretensão de manipular o fluxo do devir, acreditando que,

no fim, se libertará de suas amarras em um ato de heroísmo herculíneo e alcançará a vida eterna

doada pelo sábio Quirão.

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O ideal fomentado pelo mito prometeico é o do progresso que caminha no sentido da

superação heróica das limitações humanas que nos aprisionam até a libertação final representada

em nosso último e maior inimigo, a morte. O desenvolvimento da técnica, que simboliza o poder

concedido ao homem pelo fogo divino roubado por Prometeu, alimenta a crença nesse ideal, que

se tornará possível por meio dos avanços científicos e tecnológicos da humanidade.

A estratégia de prevenção, com suas técnicas nascidas da intuição de que “melhor é

prevenir do que remediar”, manifesta o objetivo de viabilizar a construção de um mundo melhor

no amanhã. Contudo, no ato de sua realização, acaba muitas vezes por oprimir mais do que por

aliviar o fardo da humanidade. E, nesse sentido, a atitude preventiva representa de forma

paradigmática o paradoxo do Prometeu acorrentado: o aprisionamento oriundo do apaixonado

desejo de libertação.

“Os campos da Prevenção e da Promoção da Saúde têm se deslocado progressivamente

para o centro das atenções na área da saúde, da educação, da economia, do trabalho, da justiça

social, do transporte, do urbanismo e obras, da segurança, do meio ambiente e outras, tanto no

setor público como no privado” (CBPIAS, p. 3).

O fato de o campo da prevenção estar se deslocando para o centro das atenções de

praticamente todas as instituições sociais pode ser reconhecido como um forte indício de que o

discurso mítico prometeico ainda serve de base à simbólica na qual se vinculam as principais

diretrizes estabelecidas e divulgadas por estas mesmas instituições.

Vale notar também que os mecanismos de controle social antes impostos abrupta e

externamente, agora são mais sutis e internalizados. Afinal, se um indivíduo livre “não pode” ser

obrigado por ninguém, a não ser por ele mesmo, é preciso que ele, em sua individualidade, esteja

convencido da importância de se prevenir. Cada um precisa agir segundo sua própria consciência;

ser seu próprio vigia. O que, se olharmos com atenção, já é uma estratégia de prevenção. Se cada

um fosse capaz de evitar ou pelo menos controlar ainda dentro de si mesmo a manifestação dos

impulsos “indesejáveis”, não ocorreriam mais guerras ou conflitos para serem remediados. Todo

mal secaria ainda na semente; e os frutos do homem seriam apenas paz e esperança.

Tal estratégia, ainda que não realizável totalmente, não deixa de ser eficiente. Seu método

é colocar a responsabilidade pelos problemas decorrentes da vida nas mãos dos próprios

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indivíduos, que, conscientes de suas possibilidades de prevenção – já que conscientizados pelos

profissionais da saúde ou de outras áreas “de referência” em nosso atual contexto social – passam

da condição de vítimas inocentes à de culpados, ainda que por negligência. Assim, não são mais

as enfermidades acometem ao homem, mas o homem que se deixa acometer por elas. Seus

próprios (maus) hábitos são os grandes responsáveis por sua própria desgraça.

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CAPÍTULO IV

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

IV.I. Comentários e ponderações

A dúvida que nos trouxe até aqui recaía sobre o argumento de que o esporte é capaz de

prevenir e combater o uso de drogas. Nossa hipótese de trabalho partiu da suposição de que esta

competência outorgada ao esporte não advém da própria relação que este fenômeno desenvolve

com as drogas, mas da crença de que o esporte, considerado uma atividade essencialmente

benéfica, repele e nega o uso de drogas, uma atividade essencialmente maléfica. A carência de

estudos, pesquisas, ou mesmo exemplos factuais que dessem conta da eficácia do esporte contra o

uso de drogas, não apenas fortaleceu nossa hipótese inicial como também nos obrigou a buscar

novas alternativas para prosseguirmos com nosso trabalho. Isto porque, nosso objetivo inicial,

que era analisar a todo e qualquer discurso que engrandecesse o esporte na “luta” contra as

drogas, acabou se deparando com a escassez de material correspondente.

Apesar de existirem um sem número de campanhas midiáticas e projetos sociais

divulgando a prática esportiva como um dos mais eficientes métodos anti-drogas, nenhum deles

se dedica a explicar de que forma se dá este processo. Já os documentos políticos de instituições

nacionais ou internacionais se limitam a ressaltar, em frases soltas, raras e breves, que este é mais

um dos muitos benefícios oferecidos pelo esporte. Diante destes fatos, nossa primeira impressão

foi a de que este era um discurso “vazio”, no sentido de que não encontrava nenhum tipo de

suporte que o validasse. Sob um olhar mais atento, no entanto, começaram a se revelar

fundamentos que, se não ofereciam uma explicação científica à ação do esporte sob a droga, ao

menos nos permitiam compreender a forma como havia se produzido e se disseminado este

discurso.

A carência de documentos que tratassem dos efeitos da prática esportiva sob o uso de

drogas deixava claro que as bases deste discurso precisariam ser buscadas em documentos que

decorressem a respeito de cada um destes dois fenômenos em particular. Foi nesse sentido que

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empregamos a análise das políticas nacionais do esporte e sobre as drogas, assim como da Carta

de Prevenção Integrada da Área da Saúde na Perspectiva da Educação Física. Nesta escolha,

pesou também o fato de que em um discurso político, normalmente, há uma pretensão de ajustar

uma realidade à sua própria concepção de realidade. Carregando uma preocupação programática

que o leva a recusar e até mesmo combater a tudo o que não se harmoniza com sua concepção, o

discurso político muitas vezes parte do princípio de que “sabe” não apenas o que a sociedade é

como também o que ela deve ser. E, ao atuar dessa forma, ele acaba por expressar o seu ideal de

sociedade, revelando as bases míticas e ideológicas sob as quais se fundamenta sua concepção de

realidade.

Como mostramos na análise do discurso, os documentos analisados expressam a fé no

ideal de progresso da humanidade em direção a uma sociedade mais desenvolvida, social,

econômica e tecnologicamente, na qual os indivíduos, vivendo em um ambiente de paz e

harmonia, possam exercer sua liberdade de maneira autônoma e integral. Tal ideal se vincula ao

mito de Prometeu, aquele que roubou o fogo divino e o entregou aos homens, evidenciando que é

a própria humanidade, ancorada em sua livre capacidade de decisão, quem deve se

responsabilizar por sua própria sorte. Esta responsabilidade, antes delegada aos deuses, exige que

o homem cultive qualidades como a força de vontade, o autocontrole, a responsabilidade, a

memória, a razão e a consciência, indispensáveis a todo aquele que pretenda fazer cumprir seus

projetos de hoje no amanhã incerto.

Dentro deste contexto, ao passo que os esportes são apropriados como uma poderosa

ferramenta a serviço do ideal social, as drogas são categorizadas como um dos seus maiores

entraves. As práticas esportivas trabalham e promovem os valores, hábitos e atitudes

preconizados como favoráveis ao desenvolvimento da humanidade; as drogas, por sua vez,

desvirtuam os homens e desfavorecem o seu progresso. Assim, o esporte, representando um

instrumento do sagrado, e as drogas, representantes do profano, ocupam posições opostas na

hierarquia simbólica de nossa sociedade. Podemos resumir esta relação estabelecida entre os

esportes e as drogas de acordo com o seguinte quadro de associação de ideias:

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Esporte Droga

Direito Proibição

Desenvolvimento Declínio

Educação Crime

Autocontrole Descontrole

Força de vontade Desânimo

Concentração Desatenção

Disciplina Indisciplina

Consciência Inconsciência

Memória Esquecimento

Razoável Desajuizado

Ordem Desordem

Liberdade Vício

Moral Imoral

Saúde Doença

Vida Morte

De maneira simples, o quadro proposto acima nos permite visualizar que todas as

características citadas são “positivas” quando do lado do esporte e “negativas” quando do lado

das drogas. Tal constatação, longe de ser uma trivialidade, mostra que esses dois fenômenos estão

impregnados de valores que neles são depositados por uma “vontade de potência” desejosa de

imprimir-lhes sentidos e funções específicas. Os esportes servem ao instituído; as drogas ao

indeterminado. Os esportes prezam pela ordem; as drogas promovem a desordem.

Assim, as qualidades associadas ao esporte ou a droga, longe de serem intrínsecas a esses

fenômenos, lhes são imaginariamente vinculadas dentro de um sistema simbólico. Não há

nenhum tipo de essência no esporte ou na droga que os façam ser benéfico ou maléfico,

respectivamente. O conflito entre estes dois fenômenos é motivado pela tensão entre duas forças

muito poderosas e opostas: a prometeica e a dionisíaca. O esporte simboliza as forças

prometeicas e seu apelo à ordem; as drogas as forças dionisíacas e sua incitação à desordem.

A atitude prometeica nega a tudo aquilo que não pode prever, a tudo o que é

desconhecido, se apegando às suas previsões de futuro como uma corrente fixada à rocha. Preso

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ao Cáucaso, Prometeu acredita ser capaz de enfrentar a todas as dores e desgraças que se

abaterem sobre ele, desde que não abra mão de suas próprias certezas. Para dar continuidade a

seus projetos, ele tem de se sacrificar, abrindo mão de seus desejos e vontades imediatos em prol

de um futuro grandioso. Através do sacrifício de hoje é que ele alcançará a glória no amanhã.

Este é o preço que Prometeu tem de pagar em troca de seus objetivos. A atitude dionisíaca, por

sua vez, detesta a qualquer tipo de apego ou de aprisionamento. Esquecendo-se de todas as

proibições e de todos os tabus, Dionísio se atira ao desconhecido de corpo inteiro, guiado

unicamente pela espontaneidade e pelo desejo de derrubar a todos os limites. Ele o deus que

rompe com as correntes de Prometeu e o liberta de suas dores e sofrimentos, levando seus

devotos a saírem de si e se perderem em êxtase.

Assim, se o esporte é consagrado como um meio de prevenir e combater as drogas é

porque ele é considerado um instrumento capaz de afirmar os valores do ideal prometeico e ainda

“manter sob controle” as forças dionisíacas presentes em cada um de nós. Já as drogas, correndo

no sentido contrário, são consideradas anomalias que encarnam o medo das forças dionisíacas e

por isso devem ser combatidas.

Por fim, cabe ressaltar que os resultados da presente pesquisa, ainda que caminhem no

sentido de confirmar nossa hipótese de trabalho, não podem ser considerados conclusivos. O mais

importante é que ele possa ampliar o conhecimento e a compreensão do assunto, mostrando que

devemos sempre desconfiar do que, a princípio, nos parece óbvio. Assim, esperamos abrir uma

nova via de questionamentos que não aceite o discurso de que o esporte é capaz de prevenir e

combater o uso de drogas como uma verdade já estabelecida e irrefutável.

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CAPÍTULO V

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