O Estado e o Controle Das Prisões

12
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 399-410, Maio/Ago. 2009 399 Analía Soria Batista Este artigo analisa o problema da produção do controle e da ordem em prisões brasileiras, utilizando as perspectivas histórica e sociológica, e levanta a hipóteses de que, no Brasil, convivem duas modalidades de construção da ordem e do controle nas prisões. Uma delas, minoritária, baseia-se na prerrogativa do Estado na gestão do dia a dia prisional. A outra é relativa à negociação da pacificação do presídio entre o Estado e as lideranças dos presos. Embora, no primeiro caso, a prerrogativa do Estado possa ser vinculada às condições institucionais adequadas e, no segundo (negociação entre o estado e as lideranças dos presos) às condições precárias dos presídios, como superlotação, número reduzido de agentes penitenciários, entre outros, a análise apontou que ambas as modalidades traduzem formas de relacionamentos e interações sociais historicamente produzidas entre o Estado e a sociedade, que remetem à fundação da República, recriadas através do habitus dos atores sociais, não se restringindo exclusivamente ao espaço social das prisões. PALAVRAS-CHAVE: prisões, Estado, agentes penitenciários, controle, ordem. INTRODUÇÃO Um aspecto frequentemente apontado, nos estudos sobre as prisões brasileiras, é a perda quase total do controle do Estado sobre a vida cotidiana dos detentos nos estabelecimentos. Ao “descontro- le” ou “desordem” observados corresponderia a emergência de um “controle” ou “ordem”, exercido pelos próprios internos, organizados em coletivos denominados “comandos”, com suas lideranças sem- pre violentas, que disputam poderes e hierarquias impondo regulamentações sobre o dia a dia da prisão. Em estudo sobre as rebeliões nos presídios entre os anos de 1990 e 2001, Sallas (2006, p. 3) indica que esses episódios revelaram uma baixa capacidade do Estado em controlar a dinâmica prisional, em fazer valer princípios fundamentais de respeito à integridade física dos indivíduos presos, permitindo que grupos cri- minosos imponham uma ordem interna sobre a massa dos presos. ESTADO E CONTROLE NAS PRISÕES Analía Soria Batista * Nesse contexto, o autor levanta a hipótese de que o Estado, representado pelo corpo dirigente lo- cal, não tem mais o controle efetivo da maioria das prisões sob sua responsabilidade, conseguin- do assegurar a paz interna somente pela delega- ção do dia a dia prisional às lideranças desses grupos criminosos. Assim, o controle dentro das prisões ou é exercido pelo Estado, que impõe a ordem, ou pelos internos, significando, nesse último caso, que o Estado perdeu o controle efetivo. É nesse sentido que as noções de “controle e descontrole” e “ordem e desordem” são construídas como polaridades analíticas, isto é, processos sociais dicotômicos e a- históricos. Nessa direção, e fazendo referência ao problema da segurança pública no Brasil, Soares e Guindani (2007) criticam a abordagem positivista da experiência brasileira sobre a barbárie, isto é, a explicação desse processo a partir das dicotomias de ordem versus anomia, sendo a primeira ideali- zada e a segunda observada como patologia, explicada em função de desvios ou transgressões, independentemente dos processos geradores da ordem. * Doutora em Sociologia. Professora do Instituto de Ci- ências Sociais - ICS, Departamento de Sociologia da Uni- versidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Cep: 70910-900. Brasília - DF - Brasil. [email protected] / [email protected]

description

O Estado e o Controle Das Prisões

Transcript of O Estado e o Controle Das Prisões

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    399

    Anala Soria Batista

    Este artigo analisa o problema da produo do controle e da ordem em prises brasileiras,utilizando as perspectivas histrica e sociolgica, e levanta a hipteses de que, no Brasil,convivem duas modalidades de construo da ordem e do controle nas prises. Uma delas,minoritria, baseia-se na prerrogativa do Estado na gesto do dia a dia prisional. A outra relativa negociao da pacificao do presdio entre o Estado e as lideranas dos presos.Embora, no primeiro caso, a prerrogativa do Estado possa ser vinculada s condies institucionaisadequadas e, no segundo (negociao entre o estado e as lideranas dos presos) s condiesprecrias dos presdios, como superlotao, nmero reduzido de agentes penitencirios, entreoutros, a anlise apontou que ambas as modalidades traduzem formas de relacionamentos einteraes sociais historicamente produzidas entre o Estado e a sociedade, que remetem fundao da Repblica, recriadas atravs do habitus dos atores sociais, no se restringindoexclusivamente ao espao social das prises.PALAVRAS-CHAVE: prises, Estado, agentes penitencirios, controle, ordem.

    INTRODUO

    Um aspecto frequentemente apontado, nosestudos sobre as prises brasileiras, a perda quasetotal do controle do Estado sobre a vida cotidianados detentos nos estabelecimentos. Ao descontro-le ou desordem observados corresponderia aemergncia de um controle ou ordem, exercidopelos prprios internos, organizados em coletivosdenominados comandos, com suas lideranas sem-pre violentas, que disputam poderes e hierarquiasimpondo regulamentaes sobre o dia a dia da priso.

    Em estudo sobre as rebelies nos presdiosentre os anos de 1990 e 2001, Sallas (2006, p. 3)indica que esses episdios revelaram

    uma baixa capacidade do Estado em controlar adinmica prisional, em fazer valer princpiosfundamentais de respeito integridade fsica dosindivduos presos, permitindo que grupos cri-minosos imponham uma ordem interna sobre amassa dos presos.

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    Anala Soria Batista*

    Nesse contexto, o autor levanta a hiptesede que

    o Estado, representado pelo corpo dirigente lo-cal, no tem mais o controle efetivo da maioriadas prises sob sua responsabilidade, conseguin-do assegurar a paz interna somente pela delega-o do dia a dia prisional s lideranas dessesgrupos criminosos.

    Assim, o controle dentro das prises ou exercido pelo Estado, que impe a ordem, ou pelosinternos, significando, nesse ltimo caso, que oEstado perdeu o controle efetivo. nesse sentidoque as noes de controle e descontrole e ordeme desordem so construdas como polaridadesanalticas, isto , processos sociais dicotmicos e a-histricos. Nessa direo, e fazendo referncia aoproblema da segurana pblica no Brasil, Soares eGuindani (2007) criticam a abordagem positivistada experincia brasileira sobre a barbrie, isto , aexplicao desse processo a partir das dicotomiasde ordem versus anomia, sendo a primeira ideali-zada e a segunda observada como patologia,explicada em funo de desvios ou transgresses,independentemente dos processos geradores daordem.

    * Doutora em Sociologia. Professora do Instituto de Ci-ncias Sociais - ICS, Departamento de Sociologia da Uni-versidade de Braslia.Campus Universitrio Darcy Ribeiro, Asa Norte. Cep:70910-900. Braslia - DF - Brasil. [email protected] /[email protected]

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    400

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    Com base em uma pesquisa emprica compa-rativa realizada durante os anos de 2006 e 2007 emprises do Distrito Federal e de Gois junto aos Agen-tes Penitencirios e os internos, cujos objetivos fo-ram mais amplos e diversificados, tentarei aqui esbo-ar uma leitura, ainda preliminar, sobre o problemado controle e da ordem nas prises.1 Minha hipte-se a de que, no Brasil, convivem duas modalidadesde construo da ordem e do controle nas prises.Uma delas, minoritria, baseada, principalmente,sobre a prerrogativa do Estado na gesto do dia a diaprisional.2 A outra, baseada sobre a negociao dapacificao do presdio entre o Estado e as lideran-as dos presos. Embora, no primeiro caso, a prerro-gativa do Estado possa ser vinculada s condiesinstitucionais adequadas e, no segundo (negociaoentre o estado e as lideranas dos presos), s condi-es precrias dos presdios, como superlotao, n-mero reduzido de agentes penitencirios, entre ou-tros. Consideramos que ambas as abordagens tradu-zem formas de relacionamentos e interaes sociaishistoricamente produzidas entre o Estado e a socieda-de, recriadas atravs do habitus dos atores sociais eque no se restringem ao espao social das prises.

    O habitus entendido por Bourdieu (1983,p. 46, 47) como

    ... um sistema de disposies durveis etransponveis que, integrando todas as experin-cias passadas, funciona, em cada momento, comouma matriz de percepo, apreciao e ao etorna possvel cumprir tarefas infinitamente di-

    ferenciadas, graas transferncia analgica deesquemas adquiridos em uma prtica anterior.

    Ainda, o habitus experimentado e postoem prtica na medida em que as conjunturas deum campo o estimulam. Campo seria um espao derelaes entre grupos com distintos posicionamentossociais, espao de disputa e jogos de poder. Segun-do Bourdieu, a sociedade composta por vrioscampos, vrios espaos dotados de relativa autono-mia, mas regidos por regras prprias. O habitus,produto da histria, se configura como um sistemade disposies aberto, que afetado por novas ex-perincias e, nesse sentido, criado e recriado.

    Na anlise, proponho-me a discutir a pro-duo de determinadas relaes e modos deinterao entre o Estado e a sociedade no processode constituio da Repblica brasileira, processossociais que contriburam para criao e recriaode disposies nos atores sociais, isto , esque-mas de percepo, apreciao e ao que, de modosingular, continuam presentes na atualidade, re-velando antagonismos, contradies, opresses epoderes no espao da instituio prisional.

    Assim, pois, a instituio prisional consti-tui cenrio privilegiado de manifestao de com-plexos processos de controle social e de produoda ordem, traduzidos em modalidades de relaese interaes sociais historicamente produzidos ereproduzidos atravs do habitus dos atores soci-ais. Trata-se, no entanto, de dinmicas sociais queexcedem esse espao social em suas manifestaes,consequncias e significados. Por isso, emboraconsidere a priso espao privilegiado para com-preender as dinmicas de controle social e de cons-truo da ordem na atualidade, o estudo pretendeapontar para a importncia de analisar o fenme-no que nos ocupa sem restringi-lo esfera jurdicaou penal e institucional.

    ESTADO E SOCIEDADE

    Para compreender o fenmeno do controlee da produo da ordem atualmente, no interiordas prises brasileiras, proponho abandonar tem-

    1 A pesquisa, coordenada pelas professoras Lourdes M.Bandeira e Anala Soria Batista, foi financiada pela Secre-taria Nacional de Segurana Pblica (SENASP- MJ). NoDistrito Federal, a investigao baseou-se na priso mas-culina denominada Centro de Internamento e Reeduca-o (CIR), e na priso feminina, denominada Colmeia.Em Gois, o campo emprico foi o complexo PenitencirioOdenir Guimares, de Aparecida de Gois, e o presdiofeminino Centro de Insero Social (CIS) Consuelo Nasser.Realizaram-se observaes etnogrficas, entrevistas emprofundidade com agentes, diretores, psiclogos e famili-ares dos internos. Tambm foram realizados grupos fo-cais com os internos e as internas. Foram feitas em tornode 100 entrevistas e 19 grupos focais, os quais permiti-ram interagir com 85 internos e internas.

    2 Os Agentes Penitencirios de Braslia so policiais (Pol-cia Civil) que desempenham a funo de agentes peni-tencirios. Isso significa que seus salrios so significa-tivamente superiores aos dos agentes de outros Estadosda Federao, que no so policiais civis, como no casode Gois. Agregam-se a isso outras condies, como ascaractersticas do prdio, o estilo de gesto penitenciriaadotado, os recursos disponveis e as estratgias de se-gurana e inteligncia utilizadas que permitem manteras iniciativas de controle do Estado dentro da priso.

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    401

    Anala Soria Batista

    porariamente o espao institucional da priso pararefletir sobre um momento considerado chave naconstituio das relaes entre o Estado brasileiroe a sociedade: a fundao da Repblica. No centrodesse debate, encontra-se o problema da constru-o da cidadania.

    Carvalho (1987) aponta que a Repblica bra-sileira conseguiu se consolidar com um mnimo departicipao eleitoral, excluindo o movimento popu-lar do governo e da cultura.3 Segundo o autor, o va-zio da excluso poltica e cultural foi paulatinamentepreenchido pela produo de novos ordenamentos,ou outras repblicas, por parte das classes popu-lares. Essas outras repblicas acabaram produzindosuas prprias regulamentaes e modalidades de re-soluo dos conflitos e criando comunidades de sen-timentos em torno de suas manifestaes culturais.Tambm produziram modos singulares de contato earticulao com o ordenamento jurdico estatal, re-presentado pelas leis da Repblica, os burocratas daesfera jurdica, a polcia e os polticos, isto , com osrepresentantes do poder.

    O dficit de cidadania que feudalizou juri-dicamente a sociedade brasileira propiciou a pro-liferao de modos singulares dos no-cidadosse relacionarem com o poder e com os poderosos,e vice-versa. Indiferena, pragmatismo para conse-guir favores dos poderosos e violncia, quando seconsiderava que o Estado pretendia regular os di-reitos e valores tidos pelas classes populares comofora de sua rbita de poder, caracterizaram e pare-cem caracterizar ainda as complexas relaes entrea sociedade e o Estado no Brasil.

    Desse modo, junto com Carvalho (1987), possvel refletir que, em face da ausncia de direi-tos, isto , do dficit de cidadania que se instau-rou paulatinamente, at se consolidar como umtrao peculiar da sociedade brasileira, foi sendoproduzida uma viso cnica e irnica do poder.Sem espao sociopoltico para a sua participaopblica, as classes populares construram seusmodos especficos de participao social nos bair-

    ros, nas associaes, nos grupos tnicos, e assimpor diante. Desse modo, expandiu-se uma varie-dade de ordenamentos jurdicos que coexistiam,competiam ou conflitavam com o ordenamentojurdico estatal. Como aponta Carvalho, a comple-xa trama das relaes entre as classes populares eo poder acabou se traduzindo num conluio entreordem e desordem, lei e transgresso.

    At o presente, o fenmeno do pluralismojurdico associado ao dficit de cidadania constituium trao marcante da sociedade brasileira (Carcova,1998). Na dcada de 70 do sculo passado, SousaSantos (1980) discutiu essa questo focando suaanlise no processo histrico, jurdico e social desurgimento de uma favela do Rio de Janeiro. A situ-ao inicial de ilegalidade da favela e as aes vio-lentas do Estado para desalojar os moradores com afora policial foram fatores fundamentais (emborano os nicos) para se compreenderem as razesdo aparecimento, muito embora frgeis, de formassingulares de resoluo dos conflitos na comunida-de, isto , de outro ordenamento jurdico. Em sn-tese, na medida em que o poder judicirio estavavedado para os moradores da favela, pois ela resul-tava de processos de ocupao ilcitos luz do di-reito oficial, a comunidade produziu seu prpriodireito, o direito de Pasrgada.

    Consideramos que a anlise sobre o exerc-cio do controle do Estado nas prises precisa le-var em conta que a ordem que se consegue manternessas instituies, seja ela percebida como per-da de controle por parte do Estado, ou como con-trole efetivo por parte do Estado pode ser consi-derada como caudatria de determinados habitusou disposies dos atores sociais. Isso significaque a dinmica dessa ordem, nos processos deinterao entre os agentes penitencirios e os in-ternos, produzida e recriada sobre a negao his-trica do reconhecimento do status de cidadosdesses ltimos e sobre uma viso irnica e cnicado poder por todos compartilhada.

    De outro lado, esses no-cidados so cida-dos de outras repblicas que coexistem com arepblica hegemnica, caudatrios de suas regula-mentaes, sentimentos, emoes e referncias

    3 Mas, o fato de as elites se apegarem aos costumes euro-peus da belle poque no impediu a aproximao dessasclasses com a cultura da elite, modelando novas realida-des sociais, assim como uma nova identidade coletiva.

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    402

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    culturais. Caudatrios de habitus produzidos nasmodalidades histricas de relacionamentos einteraes com os representantes do poder estatal.De uma parte e de outra, do lado do Estado e dolado dos internos, o dficit de cidadania colocadoa nu no espao social da priso poder ser preen-chido pelo que resta de prticas como favoritismo,corrupo, tortura, delao e, claro, tambm daaplicao das leis. Por isso, talvez resulte inade-quado tomar a aparncia de ordem ou a aparnciade desordem nas prises pela realidade da produ-o do controle e da ordem efetiva. Essa ltimaresulta de enquadramentos e transgresses queenvolvem representantes do Estado, como agen-tes, policiais, juzes, advogados, entre outros, e osprprios internos.

    Assim, a fragilidade dos direitos ou a suanegao tem como contrapartida a substituio pormodalidades singulares de relacionamento einterao social entre os envolvidos nesses proces-sos sociais. Tais modalidades no podem ser ocul-tadas ou invisibilizadas pela invocao dos concei-tos de sociedade disciplinar de Foucault (1987)ou de instituio total de Goffman (2003). H oressaibo da negao histrica do status de cidada-nia para as classes populares brasileiras pelos po-derosos e h, nelas, a presena material e simblicadas outras repblicas, construdas no vazio danegao da participao pblica e dos direitos soci-ais. H, pois, habitus estimulados da sociedade bra-sileira atualizados no espao social da priso.

    MODALIDADES DE ORDEM E CONTROLENAS PRISES

    O estudo realizado permitiu identificar duasmodalidades de construo da ordem e do contro-le nas prises. No caso da priso analisada no Dis-trito Federal, o controle sobre o cotidiano aparececomo prerrogativa do Estado; na priso estudadaem Gois, como produto de um processo de nego-ciao entre os agentes que representam o Estado eos internos, realizado atravs de suas lideranas.Trata-se, prima facie, de modos diferenciados de

    articulao entre os representantes do Estado e osdos internos que se expressam em interaes erelaes sociais peculiares e complexas.

    A anlise sobre cada um dos casos das pri-ses, que denominarei Priso do DF e Priso deGois, estrutura-se em dois momentos. O primeiroapresenta observaes extensivas sobre a priso,visando a contextualizar espacial e esteticamente oscenrios das relaes e interaes sociais entre osagentes e os internos. O segundo descreve e analisaa dinmica das relaes e interaes sociais a partirdo estudo das regulamentaes da vida cotidiananas prises, focadas na intimidade, apontando paraseus antagonismos, contradies, oposies, opres-ses e poderes. Nas prises, a intimidade dos inter-nos se constitui em espao poltico, arena de dis-puta, isto , da imposio e negociao de regrasque visam ao estabelecimento de um cotidiano sub-metido ao controle. desse modo que as prticassociais relativas s regulamentaes sobre a intimi-dade revelam as lutas pelo poder entre os agentes eos presos e entre os prprios internos. Giddens(1998) considera a intimidade como esfera da vidasocial onde acontecem as relaes pessoais, os afe-tos, a vida ertica, os amores filiais ou fraternaiscom os outros significativos.

    CONTROLE E ORDEM COMO PRERROGATIVADO ESTADO: a priso e as regulamentaesda vida cotidiana em priso do Distrito Federal

    At pouco tempo, a penitenciria masculi-na do Distrito Federal localizava-se relativamentedistante do meio urbano.4 Com relao ao deno-minado Plano Piloto da cidade de Braslia, ela dis-tava em torno de 25 km. Mas a cidade se expandiue, atualmente, ela se localiza perto de uma diversi-dade de condomnios de classe mdia e de umavila de trabalhadores pobres, tradicionalmente clas-sificada como cidade-dormitrio. Apesar da pro-

    4 Comumente, as prises so alvo de processos debanimento que permitem mant-las afastadas dos lo-cais mais urbanizados, para preservar os cidados livresda nocividade que uma parte significativa da socieda-de lhes atribui.

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    403

    Anala Soria Batista

    ximidade desses conglomerados urbanos, o aces-so at a unidade estudada difcil: necessriodescer, seguindo um caminho de asfalto que ser-penteia entre os morros. Parece estar localizada nasprofundezas da terra. De um lado, apenas osmorros a rodeiam; do outro, eles foram transfor-mados pelas construes precrias da vila de tra-balhadores pobres.

    Interessante se torna apontar que as gradese alambrados que rodeiam essa unidade, no con-seguiram, inicialmente, prender a nossa ateno.Acostumados como estamos paisagem urbana decondomnios e casas gradeadas, a penitenciria seapresenta muito mais como continuidade do esti-lo de urbanizao que vem sendo adotado na cida-de de Braslia e suas redondezas, nas ltimas d-cadas, como uma ruptura da geografia possvel.Em razo disso, produz-se uma contradio na ex-perincia do observador: o sentimento de ruptura produzido pela localizao da penitenciria; e a ex-perincia de continuidade relativa paisagemconstruda pelos arames e grades que a rodeiam.

    So esses aspectos mais exteriores que per-mitem, inicialmente, observar a penitenciria comocontinuidade e ruptura em relao sociedade quea cria, mantm e reproduz. Alm disso, certascontinuidades e rupturas entre a rua e a penitenci-ria so construdas discursivamente com base nosenso moral dos agentes. O discurso desses agen-tes divide a sociedade em dois grupos bem defi-nidos: os criminosos e os normais. Prima facie, oscriminosos pertencem penitenciria, e os ditosnormais sociedade dos homens livres.

    No interior da priso masculina, um agenteentrevistado medita e observa: ... h um mundol fora e h um mundo aqui dentro.... Essa ex-presso indicativa da construo discursiva so-bre duas moralidades: a do mundo dos corretos ea dos incorretos, a dos transgressores, que orien-tam seu comportamento por prescries diferen-tes das impostas pela ordem jurdica, e a dos quevivem em harmonia com essa mesma ordem. Nodiscurso proferido, cada um desses mundos apa-rece, discursivamente, como uma totalidade decoisas que pertencem a domnios diferentes. As-

    sim, a sociedade e a penitenciria podem serconstrudas como territrios peculiares e distan-tes, acenando para uma ruptura entre a sociedadee o mundo dos presdios. Como j indicado, alocalizao geogrfica, nas profundezas da terra,colabora para a construo dessas fronteiras sim-blicas, traduzindo, de certa maneira, a experin-cia radical de se trabalhar na instituio e, eviden-temente, a do encarceramento. O mundo aquidentro o dos transgressores, rotulados como cri-

    minosos, o pior da sociedade, afirma um agente.5

    Mas tambm o discurso dos agentes indicacertas continuidades entre a rua e a penitenciria.O interior da penitenciria construdo comocontinuidade de uma rua considerada perigosa:

    ... a penitenciria, no perodo diurno, est em totalmovimento. Durante a noite, os detentos so coloca-dos nas celas, mas a, quem vai entrar num pavilhode 20 celas? Tem o mesmo perigo que a gente entrarnuma quadra perigosa. Voc pode correr o risco dealgum, l na ltima cela, pedir um socorro mdico eas primeiras celas j estarem devidamente prepara-das com facas artesanais, por exemplo.

    Os pavilhes assemelham-se a ruas perigo-sas da cidade, caracterizadas pelas armadilhas, osassaltos, os estupros: eis ai a continuidade entre acidade e o presdio. O presdio construdo comocontinuidade da parte abjeta da cidade.

    Uma guarita serve de passagem para o in-gresso nas instalaes da priso. Para entrar, ne-cessrio atravessar um molinete e registrar-se nobalco, deixando em escaninhos certos objetos,como telefones celulares, por exemplo. No se in-gressa sem ser conduzido por um agente. direi-ta, observa-se um bloco trreo, onde funciona aadministrao da priso; em frente, h o prdioprincipal, lugar onde se localizam os pavilhes comsuas celas e o setor de ensino da priso. Na entra-da do prdio principal, h um cartaz com a se-guinte inscrio: Jesus te ama. Debaixo do car-taz, um agente armado e com vrias algemas de-penduradas no cinto parece estar aguardando al-gum comando, distraidamente. Esse prdio tam-

    5 Esses socialmente apontados como os piores seroalvo de novo julgamento classificatrio no interior dainstituio, sendo produzido um grupo social mencio-nado como os piores dos piores do presdio, aquelesfinalmente destinados ao isolamento do Pavilho deSegurana Mxima (PSM).

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    404

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    bm possui uma guarita onde necessrio se re-gistrar. Depois dela, visualiza-se um corredor es-treito e comprido, em cujas celas de grade se ob-servam os internos recm-chegados ao lugar ou emvias de serem transferidos de setor. Tecnicamente,aguardam a triagem.

    Ao entrar no prdio principal, o agente, comvoz firme, exige dos internos virarem de costas,ficarem de ccoras, longe das grades, olhando paraa parede. Algemados, eles se movimentam seminquietao ou curiosidade pela nossa presena.So apenas corpos que se movimentam.

    Ingressamos na priso junto com os agen-tes, cujos corpos se dispem, como escudos pro-tetores, entre ns e os internos, face proximida-de das celas transitrias que os albergam. Essaperformance dos agentes do Estado visa a comu-nicar que o local considerado perigoso. Elesenfatizam que o lugar oferece riscos, situao quecontribui para criar em ns um sentimento de ex-pectativa, curiosidade e certo nervosismo. No cor-redor, cruzamos com alguns internos que traba-lham dentro da priso. Quando nos visualizam,param e automaticamente ficam de costas, olhandopara a parede, evitando-nos, e desse modo quenos deixam passar, roando seus corpos no corre-dor estreito. Pouco depois, passamos pelo parlatrio,lugar onde os internos fazem sexo com suas espo-sas ou namoradas, em finais de semana, durante asvisitas ntimas. Cada interno tem direito a quatrovisitas, uma delas, pode ser ntima. Em mdia,esse cadastro pode ser renovado a cada seis meses. o chefe de ptio6 quem elabora a lista dos inter-nos que desejam receber visita ntima. O tempo es-tipulado de 40 minutos, e ultrapass-lo determinaa interdio da consumao do desejo: o internopoder ter a visita ntima suspensa.

    Chama a ateno que, do outro lado do cor-redor, em frente ao parlatrio, est situado o Pavi-lho de Segurana Mxima, destinado queles queso considerados lideranas negativas pelosAgentes. Nesse pavilho, h vinte e trs internos.

    As paredes da priso esto descascadas. Porvezes, observamos gua no piso dos corredores,como se houvessem limpado o local recentemen-te. Percebe-se um cheiro estranho, azedo, que lem-bra o dos hospitais pblicos.

    Chegamos a um ptio. Dois agentes muni-dos com cassetete de madeira (os que nos acompa-nham tm cassetetes comuns) observam os inter-nos do posto de servio.7 Os internos tomambanho de sol. Um Agente explica:

    ... durante o dia, ningum pode ficar nas celase, noite, ningum pode ficar no ptio. A rotinado detento assim por causa da segurana, noporque se pense que ele precisa de banho desol, mas para evitar confabulaes.

    Entre os internos e ns h a performancedos agentes e as grades. Os internos conversamem grupos, mais ou menos numerosos. Parecemmuito jovens, h negros, mulatos e brancos, essesltimos em menor proporo. Todos com a cabearapada. Usam vestimentas comuns, shorts, cami-setas e chinelos, e alguns exibem tatuagens nosbraos. As paredes descascadas do ptio apresen-tam desenhos infantis tradicionais, de Walt Disney.Logo que somos percebidas, os internos nos olham,juntam-se e comentam. Os agentes se apressam adizer que, na cadeia, necessrio evitar a circula-o de pessoas e as aglomeraes. Tambm experi-mentamos dificuldades para escutar o que os agen-tes nos dizem, pois h barulho constante, vozes,conversas.

    Aproveitando que os internos permanecemreunidos no ptio, visitamos as pequenas e sufo-cantes celas. Observamos que, do lado direito de-las, h uma estrutura de concreto com um colchoe roupa de cama. Essas celas abrigam dois ou trsinternos, mas h apenas uma cama. Do lado es-querdo, uma escada de concreto conduz ao ba-nheiro. No lugar onde deveria estar o chuveiro, huma garrafa de plstico. No existe vaso sanitrio,apenas um buraco. Uma meia parede separa o ba-

    7 O posto de servio o local destinado aos agentesencarregados da vigilncia dos internos durante o banhode sol no ptio.

    6 Denomina-se chefe de ptio o agente encarregado doatendimento social e sanitrio dos internos e que enca-minha suas solicitaes, escolhendo aquelas que avaliacomo prioritrias.

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    405

    Anala Soria Batista

    nheiro do lugar onde os internos dormem e reali-zam suas refeies.

    Nas paredes das celas, h desenhos de ar-mas de fogo e de Jesus Cristo. Nelas, h diversasinscries:

    Viciados, vida louca, paz, liberdade.

    Roubaste minha alma.

    Voc venceu este deserto, fui e nunca mais.

    Apocalipse.

    Porque para Deus nada impossvel.

    Adoro poder durar uma noite mais a alegria vempela manh.

    Se Deus est por nos, quem ser contra nos? Nin-gum.

    Voc no sabe como caminhar na mira de uma HK.

    nessa priso que o Estado tem assumidoa prerrogativa de regulamentar uma parte impor-tante da vida cotidiana dos internos. A jornada organizada em funo de rotinas carcerrias, taiscomo banho de sol,8 recolhimento,9 confere,10 visi-tas de familiares e relacionamentos sexuais. Essasaes so orientadas por normas e procedimentosjustificados pelo discurso a respeito da necessida-de de manuteno da segurana, isto , de evitar asarmadilhas dos internos. Tais rotinas so consti-tudas por exigncias que dizem respeito aodisciplinamento do corpo dos internos, tais comoevitar olhar nos olhos dos superiores, ou caminharcom a cabea baixa e as mos atrs, entre outras.Tais exigncias podem motivar questionamentos. Emque medida o disciplinamento da fala, dos gestos edo corpo dos internos um elemento de seguran-a? Em que medida constitui um tipo de controleque objetiva a humilhao do interno?

    Embora a regulamentao de uma parte signi-ficativa da vida ntima dos internos constitua prer-rogativa do Estado, h espaos de intimidade no

    submetidos ao controle dos agentes. Por exemplo,a sexualidade do interno regulamentada at certoponto. H uma espcie de taylorizao dos en-contros ntimos dos internos, que tm direito, nocaso dos homens, a receber esposas, namoradas eamigas, como apontado anteriormente. Mas a ins-tituio estabelece determinadas interdies, como,por exemplo, a proibio de os homens fazeremsexo com outros homens nesses espaos formal-mente preparados para o momento higinicoda atividade sexual. Assim, a verso oficial doencontro ntimo entre o interno e a mulher aconte-ce sob o olhar atento do Estado, embora a versono-oficial do encontro ntimo entre internos sejaregulamentada pelos prprios internos. H encon-tros sexuais consensuais e abusos. No caso des-ses ltimos, conta-se com a indiferena dos agen-tes do Estado, existindo um acordo tcito no quediz respeito menor interferncia oficial possvelnesse espao de intimidade dos prisioneiros.

    O comportamento do interno na priso alvo de monitoramento, recompensa e punio,realizados pelos agentes. De fato, os internos soclassificados em quatro nveis, em funo de seucomportamento: comportamento muito mau,11 com-portamento mau, comportamento bom e compor-tamento excelente. Essa classificao, que apontao grau de sujeio dos detentos ordem da insti-tuio, constitui um parmetro para eles terem aces-so ou no s atividades educativas e de trabalhooferecidas na priso. Na medida em que os direi-tos dos internos (educao e trabalho) no so ga-rantidos pelo Estado, embora sejam estabeleci-dos como direitos na Lei de Execues Penais (LEP,1984), a classificao dos internos permite a dis-tribuio desses bens escassos,12 que funcionam

    8 O banho de sol o momento em que os internos soconduzidos aos ptios da priso.

    9 O recolhimento o momento em que os agentes proce-dem retirada dos internos dos ptios, aps o banho desol. O recolhimento acontece mediado por uma srie deprocedimentos de segurana. Os internos tm de sen-tar-se no cho com as mos atrs, enfileirados. A retira-da acontece de forma ordenada, seguindo ordem dosagentes que os organizam, uma fila de cada vez.

    10 O confere o procedimento realizado por um agente,para conferir o nmero de presos por cela, aps o reco-lhimento do banho de sol.

    11 Os socialmente apontados como os piores sero alvode novo julgamento classificatrio no interior da insti-tuio, sendo produzido um grupo social mencionadocomo os piores dos piores do presdio, aqueles final-mente destinados ao isolamento do Pavilho de Segu-rana Mxima (PSM).

    12 A LEP garante a remio penal por meio do trabalho,estabelecendo que, a cada trs dias trabalhados, o presotem o direito de descontar um dia da pena a ser cumpri-da. Ela reproduziu tambm, em seu contedo, a ideia deEstado democrtico de Direito, segundo o qual o cum-primento da pena no pode implicar a perda ouminimizao dos direitos fundamentais. Assim, o art.41 da LEP estabelece os direitos elementares que devem

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    406

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    como recompensas para quem aceita ou simulaaceitar a sujeio ordem institucional. Assim, naprtica, a educao e o trabalho no constituemaspectos vinculados lgica da reintegrao socialdos internos, embora a LEP pregue o carterressocializador da pena. Necessrio enfatizar queum nmero significativo de agentes no acreditana possibilidade de reintegrao dos detentos sociedade.13

    Os internos classificados com comporta-mento excelente, alm de terem acesso s ativida-des educativas e de trabalho, residem em celas-dormitrios, separados dos demais internos, poisso aqueles que colaboram com os agentes nas es-tratgias de inteligncia destinadas a descobrir in-dcios de guetizao na priso, como por exem-plo, a formao de comandos.

    Essas classificaes tm impacto na regulaoda vida ntima dos internos, pois seus direitos visita ntima, relao com familiares, entre ou-tros, dependero da avaliao que os agentes fa-am de seu comportamento na priso. nesse jogode sujeies e resistncias entre agentes e internosque se podem manifestar diversas trocas, caracte-rizadas como transgresses: imposies, lealdades,delaes, entre outros.

    A regulamentao institucional de uma par-te das relaes e interaes sociais do interno pres-supe a negao, no espao da priso, da proce-dncia comunitria dos internos, ou seja, dos po-deres, hierarquias e valores culturais prprios dosdetentos. A prerrogativa do Estado em controlar omais possvel a vida cotidiana na priso implicaimpedir sua guetizao. Isso exige vigilncia per-manente para barrar qualquer indcio de surgimentode comunidades, em suas formas organizativas,como quadrilhas, gangues ou comandos crimino-sos. Assim, o confinamento na priso significa,at certo ponto, o confinamento da prpria comu-nidade. A estratgia de impedir a formao de co-

    letivos dentro da priso visa a manter os guetos14 distncia, para que sua lgica poluda no con-tamine o espao social da priso.

    Nesse caso, os membros dos guetos, queforam arrancados de suas condies comunitriasde vida, so cotidianamente considerados pelosrepresentantes do Estado como inimigos epsicticos.15 Essas representaes dos internosmediatizam as relaes e interaes sociais com osagentes, orientados pelo pressuposto do contatozero com os internos. O pressuposto ideolgicodo ideal de igualdade, na prtica, acaba sendo ne-gado pelo habitus dos agentes, que fragiliza a con-siderao do interno como um sujeito digno derespeito, isto , como um igual. Por essa via,verifica-se o desrespeito aos direitos dos que per-manecem presos.

    A priso, como produo material e simb-lica, resulta, na prtica, de uma luta cotidiana dosrepresentantes do Estado contra a possibilidadede guetizao de seu ambiente. No se pode afir-mar at que ponto o Estado consegue, mas o en-durecimento do controle e da disciplina, duranteos ltimos anos, abarcando inclusive os familiaresdos presos, pode ser observado como resultantedesse esforo para manter a priso imune amea-a do gueto.

    De fato, observamos registros fotogrficos doptio da priso antes do endurecimento do con-trole e da disciplina, realizados por agentes maisantigos durante as visitas dos familiares dos pre-sos. Neles, s percebemos tendas feitas com len-

    ser assegurados aos que esto sob a responsabilidade doEstado: alimentao, vesturio, educao, instalaeshiginicas, assistncia mdica, farmacutica eodontolgica.

    13 Para uma compreenso da nova cultura do controle e desua relao com a descrena sobre as possibilidades dereintegrao social dos detentos, ver Garland (2001).

    14 Na sua forma completa, o gueto ... uma instituio deduas faces, na medida em que serve a funes opostaspara dois coletivos aos quais une em uma relaoassimtrica de dependncia. Para a categoria dominante,sua funo circunscrever e controlar, o que se traduzno que Max Weber chamou de cercamento excludenteda categoria dominada. Para esta ltima, no entanto,trata-se de um recurso integrador e protetor na medidaem que livra seus membros de um contato constantecom os dominantes e permite colaborao e formao deuma comunidade dentro da esfera restrita de relaescriada. O isolamento imposto pelo exterior leva a umaintensificao do intercmbio social e cultural dentro dogueto. O gueto o produto de uma dialtica mvel etensa entre a hostilidade externa e a afinidade internaque se expressa como uma ambivalncia no nvel doconsciente coletivo. Wacquant (2004).

    15 Interessa destacar que a psicopatia considerada relati-vamente rara; uma estimativa a situa em 10% ou menosda populao prisional e em 3% da populao geral. Doren(1996).

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    407

    Anala Soria Batista

    is, o que tornava invisveis ou privativas as visi-tas. Hoje, a construo de tendas est proibida.

    Nessa modalidade de ordem e controleprisional, a lgica da segurana predomina sobre ada reintegrao social. O atendimento psicolgicodos internos tambm atrelado lgica da segu-rana, na medida em que o profissional instadoa colaborar como informante e se integra s estrat-gias de inteligncia, se necessrio, chegando a in-terpelar os familiares dos detentos.

    Da perspectiva do padro das interaes en-tre os agentes e os internos, observa-se que o Esta-do mantm o controle e impe disciplina na priso,regulando o mais possvel a vida cotidiana dosdetentos, classificando-os, interpelando-os para quecolaborem e delatem. O Estado os recompensa quan-do obedecem, facilitando-lhes o acesso educa-o, ao trabalho, ao mdico e a outras regalias, e ospune quando no se sujeitam, interditando-lhes oacesso ao trabalho e educao, dificultando-lhes oacesso aos mdicos e s regalias. O Estado perseguesem descanso as possveis lideranas, integrando,em suas estratgias de inteligncia, outros profissi-onais do presdio, os internos que se sujeitam e osfamiliares que so manipulados. Nessas dinmicasinterativas, a troca de favores, o estabelecimento delealdades, os favoritismos e transgresses das leis,entre outras, esto presentes.

    ORDEM COMO NEGOCIAO ENTRE ESTA-DO E INTERNOS: a priso e a regulamenta-o da vida cotidiana em priso de Gois

    Ingressamos no Complexo Penitenciriopassando pelo lado direito de uma guarita. Osguardas pediram para descer do carro, para efetu-ar nosso registro. Depois, continuamos circulan-do de carro at ao setor da Administrao, ondefomos recebidos pelo Diretor do Complexo. Poste-riormente, outros funcionrios nos encaminharampara a priso objeto de nosso estudo, distante,aproximadamente, uns cem metros da Adminis-trao. Dentro do Complexo, possvel ir de uma

    unidade a outra a p. O local silencioso earborizado, e por ele transitam alguns dos inter-nos com roupas da cor azul, com a inscrio Re-educando, na parte posterior. Alguns deles exe-cutam suas tarefas fumando maconha.

    Para ingressar na priso, temos de atraves-sar um porto de ferro, com dois ou trs policiaismonitorando essa movimentao. Somos informa-dos de que essa priso data da dcada de 60. Ob-servamos sinais de deteriorao em seus muros eparedes, pintados de uma cor amarela envelhecidaque teima em se desvanecer e descascar, deixandoexpostas as lajotas e pedaos de cimento. Vem nossa mente a esttica cinematogrfica de Carandirue as impresses sobre suas misrias, sujeiras,imprevisibilidades e inseguranas.

    Observamos o ptio da priso de cima, isto, de uma passarela que nos permite uma viso re-lativa. Destaque-se que, durante o banho de sol dosinternos, os agentes monitoram o ptio dessa mes-ma passarela. O ptio dos internos est divididoem dois espaos. De um lado h uma quadra deesportes e algumas rvores, onde os internos jogamfutebol ou conversam, circulando livremente; dooutro, h tendas armadas com lenis, uma barbea-ria, um local para reunies religiosas, mesas de si-nuca, cantinas. Percebe-se, no entanto, que o ptioconstitui um espao de intimidade dos internos. Aproliferao de cantinas (muitas) e mesas de sinucaconstitui indcios da natureza das relaes einteraes sociais entre agentes e internos. Trata-sede concesses que segundo, os agentes, fazem dapriso colnia de frias ou mamo com acar.No foi possvel visitar as celas, mas somos infor-mados sobre a presena de DVDs e TVs a cabo emalgumas delas. A privacidade e a intimidade dosinternos permanecem nebulosas, pois no foramexplicitadas para as pesquisadoras, como no casoda priso estudada no Distrito Federal. Os agentesinformaram basta os presos quererem pra cadeiavirar. Nesse primeiro momento associamos essaassimetria de poderes s condies ruins dainfraestrutura da priso.

    Durante uma de nossas visitas, ocorreu umincidente revelador do padro de relacionamento

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    408

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    entre os agentes e os internos. Aguardvamos pararealizar as entrevistas, caminhando pela parte ex-terna do setor de Administrao do Complexo Pe-nitencirio, quando escutamos tiros, vindos dapriso objeto de nosso estudo. Nesse momento,um agente segurou meu brao, arrastando-me ato interior do prdio da Administrao. Os funcio-nrios se mostravam inquietos e nervosos, algunscorriam de um lado para outro, passando informa-es, situao que contribuiu para aumentar nossaexpectativa. Desde a noite passada, tinham se espa-lhado ameaas de rebelio em vrias unidades doComplexo Penitencirio, movimento promovidopelos internos da priso que estvamos estudando.Em funo disso, os Agentes Prisionais convoca-ram a Polcia Militar, que ingressou na unidade,enfrentando, segundo fomos informados, uma alarebelde. Nessa operao, a polcia tirou dos inter-nos celulares e drogas. Esse incidente revelou queo ingresso da PM na priso foi a resposta dos repre-sentantes do Estado em face dos rumores de rebe-lio que tinham se espalhado. Para os agentes, issoindicava que os internos estavam dispostos a que-brar os acordos de pacificao estabelecidos em fun-o de certas trocas. Observamos que a manutenodesses acordos resulta de uma frgil dinmica, ba-seada em trocas, lealdades, ilegalidades, exercciosde dominao e opresso entre os internos e os agen-tes e entre os prprios internos.

    Em Gois, observou-se que o Estado delegauma parte importante da regulao da vida cotidi-ana da priso aos prprios internos, organizadosem grupos de natureza diversa, representados porlideranas. Essa delegao age como moeda detroca pela manuteno da paz nas instituies.

    Esse modelo de controle do Estado na pri-so revela as relaes historicamente estabelecidasentre o Estado e a populao pobre e excluda,muitas das quais permanecem at hoje. O Estadopermite a guetizao da priso, isto , aceita quea lgica social do gueto seja instalada no dia adia da priso e, em troca, exige a pacificao, isto, a participao das lideranas dos detentos nocontrole das aes de fuga e das violnciasinterpessoais entre os internos, entre outros as-

    pectos. Sob esses parmetros, so estabelecidospactos entre os agentes e as lideranas dos inter-nos, caracterizados pela fragilidade e instabilida-de, embora a sua ruptura seja percebida pelos ato-res sociais como exceo. Tem-se, nesse caso, oEstado reconhecendo a presena de outras rep-blicas, produzidas pela populao mais pobre,desprovida de cidadania.

    A delegao da gesto da vida cotidiana dapriso s lideranas dos internos aparece justificadapelo discurso institucional sobre a necessidade depromover a reintegrao social dos presos, o queexigiria incentivar o desenvolvimento de compor-tamentos responsveis e disciplinados. Essa dele-gao teria esse sentido. Mas a reforma, a reabilita-o e a redeno, no existem no gueto.

    A lgica do gueto reaparece na organiza-o dos internos em comandos, com suas lide-ranas que repartem o controle sobre diferentesaspectos do cotidiano da priso. Por exemplo, aindicao das celas em que iro habitar os recm-chegados, a estipulao de tarefas que devero serrealizadas nas celas, pavilhes ou mesmo nas ofi-cinas de trabalho. As lideranas escolhem os pre-sos que iro trabalhar nessa ou naquela oficina, nacozinha, na lavanderia e assim por diante. As li-deranas, inclusive, indicam quem ser privilegia-do com a administrao da lanchonete, lugar es-tratgico para implementar o trfego de drogas nainstituio. Elas tambm decidem se um internocondenado por estupro poder ter garantida suapermanncia nos pavilhes, sem ser morto pelosoutros internos, em troca de lealdade e servido.Assim, tambm a dura lei da cadeia, produzida ereproduzida pelos internos, pode admitir excees:tudo depende das circunstncias, isto , do que sepossa obter em troca dessa flexibilidade.

    O controle sobre espaos e atividades gera aimposio de todo tipo de constrangimento aos pre-sos contribuies financeiras, doao de alimen-tos, relacionamentos sexuais, colaborao com as ati-vidades ilegais dentro e fora da priso , envolven-do, muitas vezes, os prprios familiares dos presos.

    Nesse modelo, o considerado ru acabarse transformando em reeducando, termo que

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    409

    Anala Soria Batista

    contrasta com o de inimigo, no modelo analisa-do para a instituio do Distrito Federal. Tudo pa-rece indicar a prevalncia, na priso, da lgica dareintegrao social. Mas, como assinalado, dificil-mente a lgica do hipergueto conduzir algum reintegrao. Muito pelo contrrio, a violnciainterpessoal, a brutalidade e a imprevisibilidadeacabaro reforando, em cada interno, a experin-cia coletiva do banimento.

    CONSIDERAES FINAIS

    Nas prises estudadas, os agentes peniten-cirios ou prisionais reconhecem a presena dogueto e de suas complexidades, embora estabele-am relaes diferentes com seus membros. Emgeral, para eles, na instituio do Distrito federal(DF), o gueto se constitui na principal ameaa paraa segurana prisional, e, em funo disso, as estra-tgias de inteligncia se dirigem identificao edestruio dos indcios de sua presena. A severi-dade das regulamentaes do dia a dia da prisopretende barrar o mais possvel o surgimento dasregulamentaes dos internos. Esse foco autorizamodalidades de relacionamento e interaes soci-ais com os internos que traduzem conluios, trans-gresses, opresses, interdies, delaes, entreoutras. Para os agentes de Gois, o gueto constituio recurso para a pacificao da priso. Nela, a paz,no sentido de evitar fugas e mortes, negociadacom as lideranas dos presos em troca da liberda-de para realizar negcios e regulamentar o dia adia. Os acordos resultam frgeis e podem ser rom-pidos a qualquer momento. No primeiro caso, oEstado luta abertamente contra o gueto; no segun-do, usa o gueto para pacificar o presdio, entregan-do para as lideranas a custodia dos internos maisfracos, que sero submetidos s regulamentaesopressivas e violentas estabelecidas pelos que de-tm o poder. Ambas as modalidades de controle eda ordem nas prises expressam complexas din-micas sociais entre os representantes do Estado eos internos, com a presena de represso, opres-so, conluio, ordem e desordem, o que caracteriza

    o relacionamento histrico entre o Estado e os se-tores populares, atualizado no espao social dapriso pelo habitus dos agentes. Tais relaes tam-bm podem ser observadas em outros espaos so-ciais, nas favelas, nas feiras de pirataria, nas feirasinformais, entre outros.

    (Recebido para publicao em outubro de 2008)(Aceito em dezembro de 2008)

    REFERNCIAS

    BOURDIEU, Pierre. Sociologia. (organizado por RenatoOrtiz). So Paulo: tica, 1983.

    CARCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito. So Pau-lo: Editora LTr, 1998.

    CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio deJaneiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhiada Letras, 1987.

    DOREN, Denis. Understanding and Treating thePsychopath. Northvale. NJ: Jason Aranson, 1996.

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da pri-so. Petrpolis: Vozes, 1987.

    GARLAND, David. The Culture of control: crime and soci-al order in contemporary society. Oxford: OxfordUniversity Press, 2001.

    GIDDENS, Anthony. Las transformaciones de laintimidad: sexualidad, amor y erotismo en las sociedadesmodernas. Madrid: Ed. Ctedra, 1998.

    GOFFMAN, Erving. Manicmios, prises e conventos.So Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.

    SALLAS Fernando. As rebelies nas prises: novos signi-ficados a partir da experincia brasileira. Sociologias. Por-to Alegre, v. 8 n. 16, p. 274-307, dez. 2006.

    SOARES, Lus Eduardo; GUINDANI, Miriam. La tragediabrasilea, la violencia estatal y social y las politicas de seguridadnecesaria. Nueva Sociedad. n. 208, 2007. p. 56-72.

    SOUSA SANTOS, Boaventura de. Notas sobre a histriajurdico-social de Pasrgada. In: SOUTO, Claudio; FAL-CO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e Direito, So Paulo:Livraria Pioneira Editora, 1980. p. 88-89.

    WACQUANT, Loc, Que gueto? Construindo um con-ceito sociolgico. Revista de Sociologia e Poltica. Curitiba,n. 23, 2004. p . 155-164,

  • CA

    DE

    RN

    O C

    RH

    , Sal

    vado

    r, v

    . 22,

    n. 5

    6, p

    . 399

    -410

    , Mai

    o/A

    go. 2

    009

    410

    ESTADO E CONTROLE NAS PRISES

    ETAT ET CONTROLE DANS LES PRISONS

    Anala Soria Batista

    Ce travail analyse le problme de la productiondu contrle et de lordre dans les prisons brsiliennesen tenant compte des perspectives historique etsociologique et soulve lhypothse selon laquelle, auBrsil, il y a deux manires de construire lordre et lecontrle dans les prisons. Lune delles, minoritaire, estbase sur la prrogative de lEtat pour la gestionquotidienne des prisons. Lautre est relative langociation de la pacification de la prison entre lEtatet les leaders des prisonniers. Mme si, dans le premiercas, la prrogative de lEtat peut tre lie aux conditionsinstitutionnelles adquates et, dans le deuxime cas(ngociation entre ltat et les leaders des prisonniers),aux conditions prcaires des prisons - telles que lasurpopulation, le nombre rduit dagents pnitentiaires,entre autres -, lanalyse montre que les deux modalitssont le reflet des formes de relations et dinteractionssociales historiquement produites entre lEtat et lasocit qui remontent la fondation de la Rpubliqueet qui sont recres par lintermdiaire de lhabitusdes acteurs sociaux mais qui ne se limitent pasexclusivement lespace social des prisons.

    MOTS-CLS: prisons, Etat, agents pnitentiaires, contrle,ordre.

    STATE AND CONTROL IN THE PRISON SYSTEM

    Anala Soria Batista

    This paper analyzes the problem of the orderand control production in Brazilian prisons, using thehistorical and sociological perspectives, and brings thehypotheses that, in Brazil, two modalities ofconstruction of order and control in the prisons happentogether. One of them, minoritary, is based on the Statesprerogative of daily prisional administration. The otherregards the negotiation of the prison pacificationbetween the State and the prisoners leaderships.Although, in the first case, the prerogative of the Statecan be linked to the appropriate institutional conditionsand, in the second (negotiation between the State andthe prisoners leaderships) to such precariousconditions of the prisons, as overcrowding, reducednumber of penitentiary agents, the analysis pointedout that both modalities translate forms of relationshipsand social interactions historically produced amongthe State and society, that go to the foundation of theRepublic, recreated through the social actors habitus,not limiting exclusively to the social space of theprisons.

    KEYWORDS: prisons, State, penitentiary agents, control,order.