O “etnocídio” na literatura brasileira: uma introdução · Resumo Pretendeu-se com ......
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O “etnocídio” na literatura brasileira: uma introdução1
Ellen dos Santos OLIVEIRA2
Resumo
Pretendeu-se com esta pesquisa analisar a representação da prática etnocida na literatura
brasileira. Para o que é proposto, focar-se-á: nos Sermões do Padre Antônio Vieira, cuja
produção denota a intenção etnocida; e O Guarani e Iracema, de José de Alencar, obras
que evidenciam o “etnocídio” sofrido pelos seus heróis em nome da construção
nacional. Trata-se, portanto, de um trabalho introdutório sobre a representação do
“etnocídio” na Literatura Brasileira.
Palavras-chave: “Etnocídio”. Literatura brasileira. Padre Antônio Vieira. José de
Alencar.
Abstract
It was intended with this research analyze the representation of ethnocide practice in
Brazilian literature. For what is proposed, it will also focus: the Father Antonio Vieira
Sermons, whose production denotes the ethnocide intention; and The Guarani and
Iracema, José de Alencar, works that show ethnocide suffered by their heroes in the
name of national construction. It is, therefore, an introductory work on the
representation of ethnic cleansing in Brazilian Literature.
1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como um dos requisitos de avaliação para a obtenção
do grau de especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto
– SP, sob a orientação da profa. Dra. Rosemary Conceição dos Santos.
2 Graduada em Letras Português e suas respectivas Literaturas pela Faculdade São Luís de França (FSLF-
SE). Especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá (CUBM-SP).
Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), na área de estudos Literários e linha de
pesquisa Literatura e Cultura. Membro do CIMEEP - Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos
Épicos da Universidade Federal do Sergipe. Membro fundadora do NEC - Núcleo de Estudos de Cultura
da UFS (grupo de pesquisa). É poetisa, contista e Escritora. É autora dos trabalhos literários: O despertar
de um domingo (conto); Rabiscos Poéticos (Poesias); Coleção Poesias que gritam: “Não ao Racismo”,
“Não à violência”; (poesias); Memórias de Infância, parte 1 (contos); Memórias de Infância, parte 2
(contos); Poesias Nuas (poesia); É tempo de Amar, vol.01 (poesias); É tempo de Amar, vol. 02 (poesias);
O instante (contos). Essas obras estão disponíveis para leitura no site:
http://www.bookess.com/profile/ellen_oliveira/books/# Também já publicou em várias Antologias pela
Câmara Brasileira de Jovens Escritores, recebendo o certificado de “Qualidade Literária” por seus
trabalhos. CEP: 49075-100, Aracaju-Sergipe. E-mail: [email protected].
Keywords: ethnocide. Brazilian literature. Father Antonio Vieira. José de Alencar.
1. Introdução
Persiste o vício de algumas sociedades tentarem impor sua cultura, considerada
superior, a outras sociedades consideradas incultas e bárbaras. Tal prática configura o
que trataremos como prática etnocida, que consiste numa espécie de violência cultural
da qual vitimou índios e escravos colonizados.
Diferentemente do “genocídio”, em que o genocida tem consciência de estar
fazendo mal ao outro, violentando-o ao tirar-lhe a vida, no “etnocídio” seus agentes
acreditam estar praticando o bem ao insistir na mudança do modo de vida daquele que é
violentado culturalmente. Para esses agentes, trata-se de uma mudança positiva. Uma
vez que irá elevá-lo de sua condição de inferioridade cultural.
Pouco se tem discutido sobre a representação do “etnocídio” na Literatura, até
porque o “etnocídio” é apontado por Pierre Clastres (2006) como um termo criado
recentemente para cumprir uma necessidade terminológica, uma vez que o termo
“genocídio”, de uso difundido, tem sido ineficaz para explicar o tipo de violência, que
consiste na imposição cultural de uma raça sobre outra.
Acreditando ser o “etnocídio” uma violência sublime de dominação cultural que
merece ser analisada e discutida nos estudos contemporâneos, pretende-se com este
trabalho apresentar uma proposta metodológica que sirva de orientação para análise da
representação desse tipo de violência na literatura. Tal proposta apresenta um caráter
interdisciplinar e transita pelo viés do comparativismo, uma vez que essa discussão gira
em torno de conceitos de cultura, etnografia e literatura.
Nessa proposta, a princípio, foi apresentado e discutido o conceito “etnocídio”,
bem como sua origem e seu desenvolvimento, de modo a compreender a diferença entre
os termos “etnocídio” e “genocídio”, e a aplicabilidade de cada um. Na sequência foi
feito um mapeamento dos principais estudos, disponíveis, sobre o “etnocídio”. Na
segunda parte, foi feita uma análise do “etnocídio” em algumas obras coloniais da
literatura brasileira. Tais obras são: os Sermões do Padre Antônio Vieira, cuja produção
denota a intenção etnocida; e O Guarani e Iracema, de José de Alencar, obras que
evidenciam o “etnocídio” sofrido pelos seus heróis em nome da construção nacional.
Este trabalho se insere no âmbito dos Estudos de cultura, especificamente os
estudos literários, e pretende com ele contribuir com os estudos contemporâneos acerca
de cultura e identidade. Vale ressaltar, que o conceito de cultura adotado nesse estudo
refere-se ao defendido por Geertz em seu livro A interpretação das culturas:
O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios
abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado (GEERTZ, 2008, p.04).
Assim, entende-se por cultura as várias teias de significado produzidas pelo
homem, sendo que tais teias o amarram. Ao propor um estudo sobre tal cultura, propõe-
se um estudo interpretativo à procura de significados sobre o próprio homem e sobre
sua cultura. A obra literária integra um sistema de comunicação, onde ela produz
significados. Ou seja, o texto literário é entendido como uma prática discursiva, tendo e
vista o que Foucault afirmou, sobre discurso, em seu livro A Ordem do discurso: “o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar
(FOUCAULT, 1996, p.10)”.
2. Sobre o “etnocídio”
Pierre Clastres (2004), em Arqueologia da violência, situa o “etnocídio” como
sendo um termo surgido recentemente para “satisfazer uma necessidade de precisão
terminológica”, porém, a “utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente seu
lugar de origem, a etnologia, para cair de certo modo no domínio público.” Segundo o
autor, esta nova palavra estava destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro
termo exprimia. Justificando que o “genocídio, palavra de uso difundido há muito mais
tempo, já era considerada inadequada ou imprópria a cumprir essa nova exigência”
(CLASTRES, 2004, p.55).
Desde 1946, quando criado o conceito jurídico de “genocídio”, no processo de
Nuremberg, para punir um tipo de criminalidade até então desconhecida e que
configura-se no extermínio dos judeus europeus pelos nazistas alemãs, que o
“genocídio” nasceu enraizado no racismo e foi praticado nas guerras coloniais a partir
de 1945 até os dias atuais. Apesar do “genocídio” antissemita dos nazistas ter sido,
legalmente, o primeiro a ser jugado ele não foi o primeiro a ser praticado, embora tenha
sido essa violência que mais tenha despertado a atenção devido o seu grande rastro
destruidor de povos indígenas desde o descobrimento da América em 1942 até hoje. No
entanto, o “genocídio” nasce enraizado no “etnocídio”. Ambas as violências tem como
base o preconceito à raça e à cultura do outro, considerado inculto, ou inferior em
termos de cultura.
Foi partindo da experiência sobre esse tipo de violência, ocorrida no Continente
Americano, que vários etnólogos e especificamente Robert Jaulin começaram a pensar o
conceito de “etnocídio”. Assim, formulado primeiramente pelo etnólogo Robert Jaulin
em sua obra La Paix Blanche: introduction à l’ethnocide, o “etnocídio” a principio foi
criado para tratar de uma terrível realidade indígena na América do Sul, quando os
índios eram impedidos de praticarem sua língua, sua crença religiosa, em suma, sua
cultura.
Partindo da definição de Jaulin, Clastres diferencia o “etnocídio” do “genocídio”
afirmando que:
Se o termo genocídio remete à idéia de "raça" e à vontade de
extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a
destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na
situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio,
portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento
de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em
suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os
mata em seu espírito (CLASTRES, 2004, p.56).
O “genocídio” e o “etnocídio” têm em comum visão idêntica de olhar
negativamente para o outro. Ou seja, o outro é a diferença, mas é acima de tudo é a má
diferença. Para Clastres, essas duas atitudes, a “genocida” e a “etnocida”, distinguem-se
pela natureza do tratamento reservado à diferença. Isto é, o espírito “genocida” quer
pura e simplesmente negar a diferença, exterminando os outros porque eles são
considerados maus. Já o espírito “etnocida” admite a relatividade do mal na diferença.
O “etnocida” julga que os outros são maus, mas é possível melhorá-los. Por isso o
“etnocida”, ao visualizar a diferença no outro, obriga-os a se transformarem até que eles
se tornem idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. Essa negação
etnocida do outro conduz a uma identificação a si (CLASTRES, 2004, p.56).
Depois de um crescente número de denúncias em foros internacionais sobre a
prática do “etnocídio”, como uma perda de identidade cultural na América Latina, que
foi celebrado pela UNESCO, em dezembro de 1981 em Costa Rica, o documento que
tratou expressamente sobre o “etnocídio”, a “Declaração de San José”. O documento
relata que o caso de “etnocídio” é um processo complexo, pois possui raízes históricas,
sociais, políticas e econômicas. Logo, tal documento assim define essa violência
cultural:
El etnocidio significa que a un grupo étnico, colectiva o
individualmente, se le niega su derecho de disfrutar, desarrollar y
transmitir su própria cultura y su própria lengua. Esto implica una
forma extrema de violación masiva de los derechos humanos,
particularmente del derecho de los grupos étnicos al respecto de su
identidad cultural, tal como lo establecen numerosas declaraciones,
pactos y convênios de las Naciones Unidas y sus organismos
especializados, así como diversos organismos regionales
intergubiernamentales y numerosas organizaciones no
gubiernamentales (BONFIN, Guillermo; IBARRA, Mario; VARESE,
Stefano; Et al., 1982, p.23).
Os primeiros a praticarem o “etnocídio” foram os missionários, na América
Latina e em outras regiões. Como propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam
para substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente. As viagens dos
missioneiros, primeiros “etnocidas”, para exploração de continentes e aventuras, embora
que sem intenções capitalistas, adquiriu, de certa forma, uma grande dimensão
econômica. Uma vez que, como afirma Hobsbawm (1977), em A Era do Capital,
Explorar significava não apenas conhecer, mas desenvolver, trazer o
desconhecido e, por definição, os bárbaros e atrasados para a luz da
civilização e do progresso; vestir a imoralidade da nudez selvagem
com camisas e calças, com uma providencial e beneficente manufatura
de Bolton e Roubaix, levar as mercadorias de Birmingham que
inevitavelmente arrastavam a civilização para onde quer que fossem
(HOBSBAWM, 1977, p.66).
A expansão do evangelho, através dos missioneiros, acabou sendo uma prática
lucrativa e favorável ao comércio, e até comprometeu o interesse do Estado, sendo uma
prática beneficente para a relação Igreja-Estado. A imposição da religião Ocidental foi
uma forma de moldar o cidadão aos interesses dessa aliança, em nome da civilização. A
imposição do evangelho foi uma forma de tirar a selvageria do índio e transformá-lo em
um cidadão cristão. Segundo Clastres (2004):
A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a
diferença — o paganismo — é inaceitável e deve ser recusada; a
seguir, que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo
abolido. É nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro,
mau no ponto de partida, é suposto perfectível, reconhecem-lhe os
meios de se alçar, por identificação, à perfeição que o cristianismo
representa. Eliminar a força da crença pagã é destruir a substância
mesma da sociedade. Aliás, é esse o resultado visado: conduzir o
indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da selvageria à civilização. O
etnocídio é praticado para o bem do selvagem. [...] A espiritualidade
do etnocídio é a ética do humanismo (CLASTRES, 2004, p. 57).
O espaço no qual se destacam o espírito e a prática “etnocidas” é determinado
segundo duas sentenças: a primeira proclama a hierarquia das culturas, há as que são
inferiores e as que são superiores; e a segunda endossa a superioridade absoluta da
cultura ocidental, em que a cultura dominante só pode manter com as outras e, em
particular, com as culturas primitivas, uma relação de negação. Para o “etnocida”, trata-
se de uma negação positiva, no sentido de que ela intenciona suprimir o inferior
enquanto inferior para içá-lo ao nível do superior (CLASTRES, 2004, p.57).
A prática do “etnocídio” parte de uma visão etnocêntrica, já que avalia e julga as
diferenças culturais a partir de um modelo de cultura. Por isso Clastres afirma que o
“Ocidente seria etnocida porque é etnocêntrico, porque se pensa e se quer a civilização”.
A sociedade ocidental é considerada a mais etnocida de todas as outras porque ela
constitui uma sociedade com Estado, diferentemente da sociedade bárbara, por
exemplo, já que o “etnocídio” resulta na “dissolução do múltiplo no um”. A nação é
constituída, ou o Estado é detentor do poder, quando as pessoas, sobre as quais se
exerce a autoridade do Estado, falam a mesma língua. E nesse processo ocorre a
supressão das diferenças culturais (CLASTRES, 2004, p.59).
A nação é construída a partir de um sentimento coletivo de nacionalismo. Um
nacionalismo que tem como regra o compromisso de dever político de seu povo à
organização política que abrange e representa a sua nação, de maneira que tal
compromisso supera as outras obrigações públicas e qualquer outro tipo de obrigação. A
nação é uma invenção. As nações criadas para classificar os homens como um destino
político acabam se constituindo como um mito, uma vez que em nome de nacionalismo,
ocorre a supervalorização de uma cultura sobre outra e, às vezes, ao adotar culturas
preexistentes e transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente
suprimi outras culturas preexistentes(GELLNER apud HOBSBAWM, 1917, p. 18).
Nesse contexto, o “etnocídio”, supressão das diferenças sócio-culturais, insere-se
na natureza e no funcionamento do Estado, a fim de uniformizar a relação que os
indivíduos mantêm com este. Ou seja, a violência “etnocida” pertence essencialmente
ao Estado. Logo, toda organização estatal é “etnocida”, uma vez que o “etnocídio” é o
modo normal de existência do Estado. Há, portanto certa universalidade do “etnocídio”,
no sentido de ser característico não apenas de um vago "mundo branco" indeterminado,
mas de todo um conjunto de sociedades que são as sociedades com Estado. A reflexão
sobre o “etnocídio” passa por uma análise do Estado (CLASTRES, 2004, p.61).
A violência “etnocida” se dá em uma disputa hegemônica de poder, em que a
construção das identidades do sujeito colonizador, ou dominador, o “etnocida”, e o
sujeito colonizado, ou dominado, aquele que é vítima do “etnocídio”, se dá a partir da
relação ao desejo de existir para o outro, onde: de um lado o dominador não quer perder
o lugar para o dominado, e ver o “etnocídio” como uma solução de manter-se no poder
e fazer o outro submeter-se a ele; e do outro lado, o dominado anseia alcançar a posição
ou o nível cultural do colonizador e aceita o “etnocídio” vendo nele uma forma de
realizar esse desejo. No final acaba não sendo nem o primeiro (o colonizador), e nem
mais o segundo (o colonizado), mas sim um terceiro, isto é, um sujeito híbrido. Logo, a
submissão ao outro se dá a partir do objeto de desejo, que é a cultura do outro, e não
como um destino sofrido do exterior.
Em síntese, pode-se dizer que, ao fazer a análise da representação do “etnocídio”
nas obras coloniais é preciso ter em mente que o “etnocídio” é uma violência com
intuito de dominação cultural, só que diferente do “genocídio”, o “etnocídio” é um
violência “disfarçada”, uma vez que o “etnocida” acredita estar fazendo o bem ao
exercê-lo. Tal prática justifica-se na supervalorização de umas culturas sobre outras.
Para o “etnocida” a sua cultura é a boa e a do outro é a má. Por isso, aquele que pratica
o “etnocídio” tenta mudar o outro acreditando está fazendo o bem ao impor sobre o
outro a sua cultura.
3. Perspectiva de análise do “etnocídio” na literatura brasileira
Análise o “etnocídio” na literatura brasileira é um desafio necessário para se
compreender a hegemonia cultural que ocorreu e ocorre até os dias atuais, e assim
entender como se constituiu o modelo cultural no qual se insere nossa sociedade cada
dia mais capitalista. A colonização indígena e africana se deu com base no “etnocídio”.
Se pretendermos analisar a representação do “etnocídio” na literatura brasileira,
temos várias obras colonialistas que podem servir de fonte para análise. Os Sermões do
Padre Antônio Vieira é um bom começo para compreender como se deu o “etnocídio”
praticado pelos primeiros missioneiros no Brasil colonial.
3.1 A intenção “etnocida” no “Sermão da sexagésima”, do Padre Antônio Vieira
O padre Antônio Vieira foi um missionário de destaque na Companhia de Jesus.
Ele é consensualmente considerado uma das personagens mais importantes da história
de Portugal e do Brasil no século XVII. Vieira, ao falar de sua vida, o faz
considerando-a como uma comédia irônica, ao afirmar que “Não há maior comédia que
a minha vida: e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou
zombar do mundo, não tenho mais que olhar pra mim” (VIEIRA apud ABREU, 2009,
p.17).
O jesuíta, além de membro da companhia de Jesus, desempenhou vários ofícios:
foi pregador e mestre exímio da língua portuguesa, a ponto de ser reconhecido por
Fernando Pessoa como o “Imperador da Língua Portuguesa”; foi um diplomata da
restauração de Portugal, pois como jesuíta e homem do púlpito desempenhou o ofício
de embaixador itinerante ao serviço da causa da restauração da independência nacional;
foi considerado amigo de judeus e cristãos novos por defendê-los, pois percebia que
estes eram importantes na reorganização da atividade comercial e financeira de
Portugal, recém restaurado, e na consolidação de sua independência. Tanto na Europa
como nas colônias, Vieira foi um grande evangelizador e defensor dos índios, uma
missão que ele empenhou com grande esmero e dedicação; foi profeta do Quinto
Império, pois, em um país mergulhado nas ondas do sebastianismo, exortou em seu
sermão “Felicidades de Portugal, juízo dos anos que vêm” o retorno desse império; e
por fim, foi vítima do Santo Ofício, pois se os inquisidores viviam da fé, os jesuítas
morriam por ela (ABREU, 2009, p.17-25).
O estudo de sua obra é indispensável para compreender a sociedade brasileira no
século XVII e, principalmente, entender como se deu as primeiras práticas de
“etnocídio” que ocorreu pelos missionários aqui no Brasil nesse período. Já que foram
esses os jesuítas os propagadores militantes da fé cristã que se esforçaram para
substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente, isto é, pela fé
católica.
Pois, se os apóstolos hão de agradar a todas as criaturas, hão de pregar
também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos? Hão de
pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni Creaturae; não
porque houvessem os apóstolos de pregar às pedras, e aos troncos, e
aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as nações e
línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de
achar homens tão irracionais como os brutos, e tão insensível como os
troncos, e tão duros e estúpidos como as pedras (VIEIRA, 2000-b,
p.420 – grifo meu).
Em seus Sermões é nítida a preocupação com os efeitos da pregação do
evangelho na vida social. Conforme ele mesmo prega, em seu conhecido Sermão da
Sexagésima, os sermões são ou devem ser um instrumento divino destinado à expansão
do cristianismo, à correção dos erros dos cristãos, à construção de uma sociedade
efetivamente católica, à salvação eterna. Em O sermão do décimo-quarto da série do
rosário, o missionário adverte que “ninguém pode subir ao céu, senão incorporando-se
com Cristo como todos nos incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo
Cristo por meio da fé e do Batismo [...]” ( VIEIRA, 2000-a, p. 645).
Assim, Vieira recomendava aos reticentes para que agissem conforme a palavra
de Deus, e via no batismo, que consiste na confirmação da conversão ao catolicismo, ou
seja, entrega total de corpo e espírito ao Deus do cristianismo. Demonstrando a
convicção de que somente agindo dessa forma poderiam herdar o prêmio da vida eterna.
O padre Antônio Vieira acreditava fielmente que era preciso converter o mundo.
Para ele, assim como qualquer pessoa que empreende o etnocídio, tal conversão seria
um bem que ele poderia fazer humanidade. Já que, na perspectiva de seus agentes, o
etnocídio é uma tarefa necessária para elevar o outro, considerado inferior, à mesma
condição cultural.
Nos sermões de Vieira percebe-se o desejo etnocida, uma vez que o padre adota
como missão o desejo de mudar a cultura do outro, ou seja, de que o evangelho alcance
todas as pessoas do mundo e as converta à religião Ocidental, ao cristianismo.
Tal missão justifica-se pela crença de que o único caminho para a salvação é
através da conversão à religião católica, e por isso o jesuíta tem como lema missionário
a “obrigação de pregar o evangelho a toda criatura”. A fim de cumprir tal missão
acabaram impondo violentamente o evangelho do cristianismo como uma forma de tirar
a selvageria do índio e transformá-lo em um cidadão cristão. Assim, o etnocídio se
realiza a partir de tal conversão.
Vieira sempre defendeu que a palavra falada ou escrita, tem o poder de intervir
na sociedade como força posta ao serviço da transformação dos costumes (ABREU,
2009, p.21). Segundo as palavras metafóricas do orador inaciano o Sermão é a palavra,
e esta é a semente que deve ser bem plantada e cuidada, para que venha a gerar frutos
nos corações daqueles que a ouve, conduzindo-os à conversão ao Cristianismo. E com
isso à efetivação da prática etnocida.
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um
de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou
da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão,
há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a
doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um
homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e
luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se
tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz.
Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a
conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se
a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é
necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a
doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre
com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das
almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus,
do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta?
Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
(Padre Antônio Vieira, em Sermão da Sexagésima, 1965).
Vieira pregava que apesar de no Brasil os missionários encontrar facilidade em
converter os índios, havia uma necessidade de trabalhos contínuos de evangelização
para que estes permanecessem convertidos, pois muitos desses nativos, recém-
convertidos à fé cristã, acabavam tendo uma recaída a sua cultura de origem. Assim,
conforme suas palavras, para Vieira
Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais
dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados;
resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com
a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande
trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que
receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de
mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações,
pelo contrário – e estas são as do Brasil – que recebem tudo que lhes
ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem
replicar, sem duvidar, sem resistir, mas são estátuas de murta que, em
levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura,
e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É
necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez,
que lhes cortem o que vicejam os olhos, para que creiam o que não
vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que
não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes
decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das
ações e costumes bárbaros e gentilidade. E só desta maneira,
trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se
pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura
dos ramos ( VIEIRA, 2000-b, p. 425).
Em O sermão da quinta-feira da quaresma, Vieira atribui à criação de Portugal
como uma obra divina que justificará a prática evangelizadora dos jesuítas portugueses
que se empenharam em suas missões por todo o mundo à conversão dos povos
considerados bárbaros que habitavam os continentes Asiático, Africano e Americano.
Os missionários dedicaram-se para que, através da evangelização, os idólatras aos falsos
Deuses fossem convertidos ao o único e verdadeiro Deus, o do cristianismo.
Para que fez Deus Portugal, e para que levantou no mundo esta
monarquia, senão para desfazer ídolos, para converter idólatras, para
desterrar idolatrias? Assim o fizemos e fazemos, com glória singular
do nome cristão, nas Ásias, nas Áfricas, nas Américas. Mas como se
os mesmos ídolos se vingaram de nós, derrubamos as suas estátuas, e
eles pegaram-nos as suas cegueiras. Cegos, e com os olhos abertos,
como ídolos: Oculos habent et non videbunt. Cegos, e com os olhos
abertos, como o povo de Israel: Populum caecum, et oculos habentem.
Cegos, e com olhos abertos, como Saulo: Apertis oculis, nihil videbat.
E cegos finalmente, e com os olhos abertos, como os escribas e
fariseus: Ut videntes caeci fiant (VIEIRA, p. 240).
Em Sermão da Rainha Santa Isabel, ele fala sobre o ato de converter como um
poder divino. Assim, o etnocídio será moldado e não visto como uma violência cultural,
mas algo superior à humanidade, um ato divino. Conforme diz o Padre Vieira:
Porque o domínio de um reino, e de muitos reinos, e de todos os
reinos, cabe na jurisdição de um homem rei; mas converter uma
substância em outra é poder mais que humano, é poder mais que real,
é poder divino. Tais foram neste caso os poderes daquela rainha, sobre
todos os reis e rainhas do mundo. Mas ainda não está ponderado o fino
da maravilha (VIEIRA, p. 435).
3.2 A prática “etnocida” em O Guarani e Iracema, de José de Alencar
Bosi (1992) aos analisar a trilogia indianista de Alencar, apresenta argumentos
coerentes para afirmar que a ficção romântica brasileira mais representativa não passou
de um “mito sacrificial”. O autor referia-se às obras O Guarani e Iracema. Para o autor,
o mais correto, no imaginário pós-colonial, é que o índio fosse retratado como um
selvagem rebelde diante do colonizador. Afinal, era o índio nativo por excelência em
face o invasor, o americano, mas não foi isso que se sucedeu, como enfatiza Bosi
(1992):
O índio de Alencar entra em intima comunhão com o colonizador.
Peri e, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como
sua Iara, ' 'senhora'', e vassalo fidelíssimo de dom Antonio. No
desfecho do romance, em face da catástrofe iminente, o fidalgo batiza
o indígena, dando-lhe o seu próprio nome, condição que julga
necessária para conceder a um selvagem a honra de salvar a filha da
morte certa a que os aimorés tinham condenado os moradores do
solar: A conversão, acompanhada de mudança de nome, ocorre
igualmente com o índio Poti, de Iracema, batizado como Antonio
Felipe Camarão, o futuro herói da resistência aos holandeses (BOSI,
1992, p.177)
Tanto em Iracema como em O Guarani a entrega do índio ao branco
colonizador é incondicional e justificado pelo amor romântico. Por esse amor os índios
se entregam de corpo e alma, sacrificam suas vidas, abandonam sua família e traem sua
tribo de origem. É uma partida sem retorno.
3.2.1 O heroísmo na conversão ao cristianismo em “O Guarani”
Entendendo o “etnocídio” como uma forma de destruição dos modos de vida e
pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em O
Guarani, de José Alencar, o “etnocídio” consiste no processo de supressão da
indianidade tendo-se em vista a invenção do cidadão brasileiro, muito embora, na
perspectiva de seus agentes, o extermínio não seja assumido, propriamente, como
“etnocídio”. Trata-se, ao contrário, como afirma Pierre Clastres (2004) de uma tarefa
necessária, exigida pelo humanismo inscrito no núcleo da cultura ocidental. Assim, em
O Guarani a prática do “etnocídio” justifica-se pelo princípio do amor romântico,
traduzido na devoção quase religiosa que Peri sente pela virgem Cecilia.
Na narrativa heroica e romântica envolvendo Peri e Cecília, o índio irá assumir a
posição do servo amoroso das cantigas medievais. Tal como se idealizava na prática do
amor cortês, o protagonista passará a idolatrar a moça branca como se fosse a imagem
da virgem sagrada. Apresentando a face doce da dominação cultural, Ceci lhe ordenará,
em princípio, que o índio aceite como sua a casa de seus pais e, assim, abandone a
própria tribo. Uma vez, ao lado da família Portuguesa, vivendo em função de um amor
platônico, o índio se afastará, irreversível e gradativamente, de sua cultura original.
Assim, o amor de Peri por Ceci e a força sobre-humana que ela exerce sobre ele a
transformará em uma etnocida funcional.
Segundo Clastres (2004), o “etnocida” reconhece a relatividade do mal na
diferença, para ele os outros são maus. Em O Guarani o mal é representado pelo índio
em sua essência primitiva, isto é, aquele que vive e compartilha de sua cultura indígena,
e tem o colonizador como um inimigo. Na narrativa indianista, os maus são
representados pelos considerados selvagens e vingativos Aimorés, que colocavam em
risco a vida de Ceci e de sua família quando buscaram vingança pela morte de sua
princesa causada, acidentalmente, pelo irmão de Cecília.
Na visão do narrador, que se identifica ou, pelo menos, parece simpatizar com a
visão do colonizador, apesar de serem maus, os Aimorés poderiam vir a ser convertidos,
como aconteceu com Peri, mas para isso seria necessário algo que desencadeasse a
mudança. No caso de Peri, o amor incondicional é o grande estandarte da mudança
consentida. Em função desse amor, Peri está disposto a matar não somente a sua
cultura, como também o próprio corpo.
Em função desse amor exacerbado e idealizado será legitimado o etnocídio do
índio Peri. A prática etnocida, na narrativa, se constitui a partir de dois eventos, que
definem a destruição da identidade cultural de Peri: o abandono da tribo e a assimilação
linguística e cultural. Como afirma Antônio Candido, dentre outras coisas, José de
Alencar abordou a questão da identidade pelo aspecto fundamental da linguagem
(CANDIDO, 2004). Afinal, conduzir o colonizado a falar a mesma linguagem que o
colonizador era um fator importante e decisivo na construção da nação brasileira que se
pretendia formar.
Em O Guarani, a propósito, o processo “etnocida” começa quando ocorre a
supressão da fala original do índio, que aos poucos substituirá o dialeto indígena pelo
português. A propósito, já no primeiro contato entre Peri e a família de Cecília, ocorrido
quando a jovem é salva da morte por um ato heroico do índio, ressalta-se a alteridade
linguística do protagonista.
Por ordem da amada Cecília, Peri abandona a vida ao lado de seu povo, a sua
casa e a sua mãe, para viver uma vida de servidão e renúncia. Pela jovem o índio deixa
sua tribo para viver na casa do colonizador. A ordem dada, contudo, não é o resultado
de um amor correspondido, mas sim fruto da gratidão e do estranho prazer de ordenar,
tal como fica expresso. Ao amor incondicional de Peri, Cecília opõe, inicialmente,
repugnância, ingratidão e antipatia, sentimentos que serão superados após três meses de
convivência com o herói:
Passaram três meses.
Cecília que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia
pelo selvagem, quando lhe ordenara que ficasse, não se lembrou da
ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia.
Quando o índio chegava-se a ela, soltava um grito de susto; ou fugia,
ou ordenava-lhe que se retirasse; Peri que já falava e entendia o
português, afastava-se triste e humilde (ALENCAR, 1999, p.77).
O primeiro olhar de Cecília para Peri é pelos olhos da diferença. Ao visualizar a
diferença no índio, Ceci é tomada por sentimentos de recusa. Não obstante, embora
tivesse incorporado os hábitos do cavalheiro português, Peri lembrava-se com certo
saudosismo de sua condição original, “de sua tribo, de seus irmãos que ele havia
abandonado há tanto tempo, e que talvez àquela hora fossem também vítimas dos
conquistadores de sua terra” (ALENCAR, 1999, p. 51). No entanto, as lembranças de
seu povo e de sua tribo não eram suficientes para fazê-lo retornar ao convívio de seu
povo, pois o único sentimento de “pertença” que lhe restava ligava-se ao seu vínculo
emocional com Cecília: “— Peri só ama o que a senhora ama; porque só ama a senhora
neste mundo: por ela deixou sua mãe, seus irmãos e a terra onde nasceu” (ALENCAR,
1999, p.85).
A propósito, vale observar o triângulo estabelecido entre o protagonista, sua
mãe, a personificação da cultura autóctone, a quem Peri abandona por Ceci, por sua vez,
a personificação da Virgem que o herói vira em meio a um combate contra a tribo
inimiga:
A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável;
sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa
Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia
personificado em Cecília.
Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha
sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face
cor de cobre.
— Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai: e
queima a cabana de Ararê.
— Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua
mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o
filho de Ararê ao campo onde nasceu.
Peri abanou a cabeça com tristeza:
— Peri não voltará! (ALENCAR, 1999, p.76)
Cumpre por fim ressaltar a relação entre colonização e cristianização tal como
esta se configura na narrativa de Alencar. Nesse caso, aculturar-se corresponde a
cristianizar-se, sendo uma coisa condição sine qua non da outra. Revive-se, assim, no
romance, o mesmo argumento que justificou a expansão ultramarina e o consequente
processo de colonização portuguesa, sendo, em O Guarani, a conversão à religião do
colonizador, o bem do amor com que Peri será recompensado. As boas intenções de
Ceci, no entanto, não deixam de expressar a atitude etnocida aí subjacente:
Educada no fervor religioso de sua mãe, embora sem os prejuízos que
a razão de D. Antônio corrigira no espírito de sua filha, Cecília tinha a
fé cristã em toda a pureza e santidade. Por isso se afligia com a idéia
de que Peri, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua
alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia
suas preces. (ALENCAR, 1999, p.124)
E, na sequência:
Conhecia que a razão, por que sua mãe e os outros desprezavam o
índio, era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento queria
elevar o amigo e torná-lo digno da estima de todos. Eis a razão por
que ficara triste; era a gratidão por Peri, que defendera sua vida de
tantos perigos, e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma.
(ALENCAR, 1999, p.124)
Cecília encarna a atitude e o pensamento do colonizador, na medida em que
submete o objeto de sua apreciação afetiva à total negação cultural. Durante a narrativa,
Peri expressa bem a recusa de atender ao desejo “etnocida” de sua amada quando resiste
à conversão. No entanto, esta recusa tinha uma única razão: a de proteger a amada. O
cumprimento da promessa de conversão se dá no instante em que Cecília se vê
ameaçada de morte pelos guerreiros indígenas Aimorés. Elevando-se, assim, a
conversão de Peri ao cristianismo a um ato heroico. Dessa forma, o índio terá,
finalmente, não somente a alma de um cavalheiro português, como também o nome, isto
é, o nome que lhe dá por empréstimo o colonizador.
Logo, em O Guarani, o “etnocídio” se institui a partir de dois processos
estruturantes: a renúncia e a assimilação cultural. Tais eventos apontam para a perda do
sentimento de “pertencimento” cultural, que, no caso, é substituído pela condição cativa
do pertencimento espiritual ao outro que encarna a posição do dominador. Para Peri, a
negação cultural é um sacrifício necessário à prática do amor romântico, incondicional,
que ele nutre pelo seu outro espiritual. Para Ceci, em contrapartida, o etnocídio é um
meio positivo de elevar Peri à condição de igual perante a ideia de Deus cristã.
Conclui-se que o etnocídio observado em O Guarani, e do qual Peri é vítima,
acaba sendo elevado a um ato de heroísmo quando este aceita à religião Ocidental como
sua. A esse ato heroico foi concedido um prêmio ao herói Peri. O prêmio da salvação
eterna.
3.2.2 A virgem dos Lábios de Mel e a doce escravidão
Assim como em O Guarani, em Iracema, a heroína indígena também se
submete à cultura do outro. Por Martim, o estrangeiro, a virgem dos lábios de mel,
abandona sua pátria, a nação Tabajara, e a religião, da qual era virgem sacerdotisa, e
guardiã do segredo de jurema.
Em Iracema o “etnocídio” está relacionado à construção da nação brasileira.
Nessa obra, Alencar retoma a lenda do Ceará para narrar as origens do Brasil a partir da
união simbólica entre o branco colonizador e o índio. Ou seja, a união entre a cultura
Ocidental e a cultura indígena que, conforme a perspectiva do narrador, dará início à
cultura brasileira.
No entanto, é possível constatar que tal união se dá a partir da submissão e
renúncia da índia ao branco. A esse respeito, Machado de Assis comenta a respeito de
Iracema: “Não resiste, nem indaga: desde que os olhos de Martim se tocaram com os
seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão” (apud BOSI, 1992, p.178).
Assim, a submissão da selvagem ao branco é retratada também como um ato heroico,
configurando um mito sacrificial.
Diante disso, seria um exagero pensar o etnocídio em Iracema, já que a índia
não se converte à religião cristã? Talvez não. Embora a origem do “etnocídio” esteja
relacionada a esse tipo de conversão, da cultura indígena à cultura cristã, não significa
que essa seja a única forma de imposição de uma cultura a partir da negação de outra.
Pois sendo o “etnocídio” entendido como a mudança de vida de um povo, na história da
virgem indiana há uma grande mudança cultural, principalmente, no que diz respeito ao
estilo de vida que a índia possuía na cabana de Araquém, antes da chegada do cristão
Martim. Na narrativa Iracema não era como as outras moças virgens de sua aldeia, e
logo Martim passa a conhecer o fato:
O pajé vibrou o maracá, e saiu da cabana, porém o estrangeiro não
ficou só.
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de
Araquém, e os guerreiros vindos para obedecerlhe.
— Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante
a noite; e o Sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma.
E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.
— Tu me deixas? perguntou Martim.
— As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.
— Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à
cabana do pajé.
— Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o
segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé
a bebida de Tupã.
O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.
A grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da
alegria. Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a
dança em trono a rude cadência. O pajé inspirado conduzia o agrado
tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã( ALENCAR,
1998, p. 21).
Iracema era identificada como alguém de uma grande representação cultural
para seu povo. Afinal, ela era a virgem sacerdotal, guardiã do segredo de Jurema e
protetora de seu povo, quase uma divindade. Através dela falava o Deus Tupã. Era
compartilhada a crença de que a índia possuía uma força sobrenatural. Ela reconhece
sua força quando disse a Martim, diante da ameaça de Arapuã, o chefe guerreiro
tabajara, que “A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse
Iracema travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama seu povo”
(ALENCAR, 1998, p.30).
Martim, protegido pela princesa indígena, passou a conhecer a força da moça e
também sua fraqueza. O inimigo Arapuã diz aquilo que o moço branco, encantado pela
índia, já temia: “Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela
morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém lhe tocará, todos o servirão”
(ALENCAR, 1998, p. 46). Com a índia, Martim está protegido. Já Iracema, com branco,
está sujeita à morte.
Na narrativa alencariana é passada uma ideia de inocência do colonizador
português. Isso é bem visível no momento em que Iracema se entrega a Martim que
estava sonolento sem forças para resistir ao amor, pois havia bebido licor de jurema que
oferecido pela índia.
No decorrer da narrativa, ao se entregar ao amor por Martim e com isso trair sua
religião e sua tribo, Iracema será reduzida a uma condição naturalmente feminina.
Como mulher, a índia sofre silenciosamente por ser desprezada por Martim, que
nostálgico abandona a índia e, quando retorna, encontra-a em seus últimos suspiros
vitais, desfalecendo e morrendo pela dor da saudade. Dos braços da jovem índia Martim
recolhe seu filho Moacir, que, vale ressaltar, recebeu esse nome por ser filho do
sofrimento da índia.
Por Moacir, o filho mestiço, Iracema sofreu amamentando com o próprio
sangue. Moacir representa o povo brasileiro nascido da relação romântica da
Colonização. Metaforicamente, um povo alimentado com o sangue da cultura que o
gerou, considerando Iracema como a representação cultural indígena que, assim como
sua cultura, morre em nome dessa união que dará origem à nação brasileira.
Nesse contexto de simbolização, Iracema representa a cultura e o povo indígena,
este retratado, pela ideologia romântica, como o índio submisso ao estrangeiro e traidor
de suas origens nativas, que se comporta favoravelmente diante do outro colonizador.
Martim representa a cultura e o povo Ocidental, este enfeitiçado pela mitologia indígena
e seduzido pela beleza exótica das índias.
Apesar de Iracema não converter-se ao cristianismo, a intenção “etnocida” de
Martim é denunciada no último capítulo da narrativa quando o moço Cristão retorna ao
Ceará, conforme havia prometido a Poti, irmão de Iracema. Os guerreiros indígenas
aguardavam o retorno do branco, e a promessa logo é cumprida conforme demonstra o
trecho abaixo:
Poti com seus guerreiros esperava na margem do rio. O cristão lhe
prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia
os olhos ao mar a ver se branqueava ao longe a vela amiga.
Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e
são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das
brancas areias, derramou-se por todo seu ser um fogo ardente, que lhe
requeimou o coração: era o fogo das recordações acesas.
A chama só aplacou quando ele tocou a terra onde dormia sua esposa;
porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do jataí
nos ardentes calores, e refrescou sua pena de lágrimas abundantes
(ALENCAR, 1998, p. 121).
De volta ao Ceará, Martins, na companhia dos índios, funda “o mairi dos
cristãos”, ou seja, a cidade cristã, conforme lê-se na narrativa:
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para
fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua
religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.
Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria
ele que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis
tivessem ambos um só deus, como tinham um só coração.
Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei,
a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos.
Sua fama cresceu, e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz
primeiro.
A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará,
medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e
o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá.
Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu
amigo branco; Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas
margens da Mocejana.
Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos
guerreiros brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do
Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.
Em Iracema, narrativa mítica da fundação da nação brasileira, a prática
“etnocida” ocorre quando há a dissolução do múltiplo no um, ou seja quando há a
supressão das diferenças para que a nação venha ser constituída. Isso é uma
característica da sociedade Ocidental, que para deter o poder estatal busca suprimir as
diferenças culturais. Tal narrativa se fortalece como o mito do nacionalismo, pois
pretende explicar a história de um Brasil que, ao logo de sua história, supervalorizou a
cultura do Ocidente em relação à cultura indígena.
Na narrativa mítica de Alencar, o “etnocídio”, supressão das diferenças culturais,
insere-se na natureza e no funcionamento do Estado com o propósito político de
uniformizar a relação que os brasileiros mantêm com este, como se o nacionalismo
justificasse o etnocídio. Passando a ideia de que o sacrifício é preciso em nome da
construção da nação.
4. Considerações finais
Conclui-se “genocídio” e “etnocídio” têm em comum o sentido de destruição ou
morte. Contudo, no primeiro caso, trata-se da morte carnal ou física, e, no segundo, da
morte espiritual ou da cultura. Assim, etnocídio pode ser traduzido como destruição
sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que
empreendem essa destruição.
Nos Sermões do padre Antônio Vieira percebe-se a intenção etnocida no desejo
de conversão dos índios ao cristianismo. Em O Guarani e Iracema de José de Alencar,
o “etnocídio” consiste no processo de supressão da indianidade tendo-se em vista a
invenção do cidadão brasileiro, muito embora, na perspectiva de seus agentes, o
extermínio não seja assumido, propriamente, como “etnocídio”. Trata-se, ao contrário,
como afirma Clastres (idem) de uma tarefa necessária, exigida pelo humanismo inscrito
no núcleo da cultura ocidental.
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