O exílio através da cultura da mídia - Persépolis e a Revolução Iraniana

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 O EXÍLIO ATRAVÉS DA CULTURA DA MÍDIA: PERSÉPOLIS E A REVOLUÇÃO IRANIANA David Marinho de Lima Junior Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ I. Introdução A relação entre o Ocidente e a República Islâmica do Irã  é marcada pelos estereótipos e pelas definições reducionistas reproduzidos por discursos oficiais e através da mídia ocidental. Principalmente após a revolução iraniana em 1979, o fundamentalismo religioso e o radicalismo político foram colocados como características intrínsecas ao país. Conseqüentemente à eleição de Mahmoud Ahmadinejad para o cargo de presidente em 2005, com seu discurso antiimperialista, anti-sionista e, notavelmente, antiamericano, o Irã voltou a ocupar lugar de destaque nos noticiários e a ser assiduamente abordado nos discursos dos especialistas 1 . Para uma melhor compreensão dos acontecimentos atuais é fundamental retomar o inicio deste processo histórico. A revolução iraniana derrubou, em fevereiro de 1979, o Xá Mohammed Reza Pahlavi, um governante conduzido ao poder e apoiado pelos norte-americanos 2 . O governo pró-Ocidente do Xá deu lugar à República Islâmica do Irã, construída sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini. O Xá havia se tornado muito impopular em seu país por seu projeto de ocidentalização acelerada 3 , assim como pela violência com a qual perseguia seus opositores através de sua polícia secreta, a temida Savak. Pahlavi era também uma figura facilmente identificável com a defesa dos interesses norte-americanos dentro do Irã. Em oposição, Khomeini lançou algumas diretrizes ideológicas que foram seguidas  pelos governos seguintes, tais como a indep endên cia em relação às duas su perpotências 1  O especialista seria a pessoa que estuda um determinado assunto e t em o poder de legiti mar determina do discurso. A produção acadêmica não está desligada d as circunstâncias políticas em que são escritas,  portanto, o sabe r do especialista é freqüe ntemente usado como uma forma de dominação leg ítima. Esta definição está presente na obra SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 2  KINZER, St ephen. Todos os homens do Xá: o golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 3  Uma das atitudes do Xá que mais provocou descontentamento entre o povo do Irã foi a proibição do uso do véu pelas mulheres.

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Artigo apresentado no IX congresso da Associação Latino-Americana de Estudos Africanos e Asiáticos do Brasil em 2008

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O EXÍLIO ATRAVÉS DA CULTURA DA MÍDIA: PERSÉPOLIS E A

REVOLUÇÃO IRANIANA

David Marinho de Lima Junior

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

I. Introdução

A relação entre o Ocidente e a República Islâmica do Irã  é marcada pelos

estereótipos e pelas definições reducionistas reproduzidos por discursos oficiais e

através da mídia ocidental. Principalmente após a revolução iraniana em 1979, o

fundamentalismo religioso e o radicalismo político foram colocados como

características intrínsecas ao país. Conseqüentemente à eleição de MahmoudAhmadinejad para o cargo de presidente em 2005, com seu discurso antiimperialista,

anti-sionista e, notavelmente, antiamericano, o Irã voltou a ocupar lugar de destaque nos

noticiários e a ser assiduamente abordado nos discursos dos especialistas1.

Para uma melhor compreensão dos acontecimentos atuais é fundamental retomar

o inicio deste processo histórico. A revolução iraniana derrubou, em fevereiro de 1979,

o Xá Mohammed Reza Pahlavi, um governante conduzido ao poder e apoiado pelos

norte-americanos2. O governo pró-Ocidente do Xá deu lugar à República Islâmica do

Irã, construída sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini.

O Xá havia se tornado muito impopular em seu país por seu projeto de

ocidentalização acelerada3, assim como pela violência com a qual perseguia seus

opositores através de sua polícia secreta, a temida Savak. Pahlavi era também uma

figura facilmente identificável com a defesa dos interesses norte-americanos dentro do

Irã. Em oposição, Khomeini lançou algumas diretrizes ideológicas que foram seguidas

pelos governos seguintes, tais como a independência em relação às duas superpotências

1 O especialista seria a pessoa que estuda um determinado assunto e tem o poder de legitimar determinadodiscurso. A produção acadêmica não está desligada das circunstâncias políticas em que são escritas,portanto, o saber do especialista é freqüentemente usado como uma forma de dominação legítima. Estadefinição está presente na obra SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como Invenção do Ocidente.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001.2 KINZER, Stephen. Todos os homens do Xá: o golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror noOriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.3 Uma das atitudes do Xá que mais provocou descontentamento entre o povo do Irã foi a proibição do usodo véu pelas mulheres.

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da época, a resistência à ocidentalização e a identificação dos Estados Unidos e Israel

como os principais inimigos dos iranianos4.

Os Estados Unidos passaram a ser considerados pelos revolucionários como o

“Grande Satã”. Para a cristandade, Satã representaria o mal supremo, mas esse

maniqueísmo não se aplica da mesma forma no Islã. Segundo Karen Armstrong, noxiismo o Satã representa o tentador, uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de

apreciar os valores espirituais do mundo invisível e que, necessariamente, se submeteria

à vontade de Alá5. Desta forma, antes de demonizar o inimigo de forma cristã, o intuito

seria de ridicularizá-lo.

Desde a deposição de Reza Pahlavi, o Irã se tornou uma fonte de preocupação

constante para os norte-americanos, que buscavam manter sua influência político-

econômica na região. Porém, era o inverso que acontecia, ao menos na esfera política.

Após enfrentar, sem qualquer sucesso, a crise dos reféns6, Jimmy Carter sofreu umaderrota expressiva para Ronald Reagan nas urnas, e foi no exato momento de sua posse

que os reféns foram libertados em Teerã. Um incômodo recado havia sido deixado, o Irã

deixava a condição de aliado norte-americano, logo ocidental, para demonstrar que

tinha o poder de influenciar diretamente a política interna da maior potência do

Ocidente capitalista.

Em 1980 tem inicio a guerra Irã – Iraque (1980-1988), na qual os norte-

americanos apoiaram abertamente o Iraque de Saddam Hussein, eleito à época o mais

novo aliado da superpotência no Oriente Médio. O principal interesse dos Estados

Unidos em apoiar o Iraque era impedir a expansão dos ideais revolucionários de

Khomeini pela região7, atentando para o fato de que o próprio Iraque poderia se tornar

um foco de expansão da revolução, uma vez que a população iraquiana é

majoritariamente xiita8. Para tanto, Saddam obteve total apoio da Casa Branca. Esse

4 ZACCARA, Luciano. Los enigmas de Iran: sociedad y política em la República Islámica. 1ª ed.,

Buenos Aires: Capital Intelectual, 20065 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e noislamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.6 A crise dos reféns teve inicio em 1979, quando um grupo de estudantes ocupou a embaixada norte-americana em Teerã reivindicando, dentre outras coisas, a extradição do Xá. A crise só terminou com aliberação de todos os reféns, em 1981.7 A expansão da revolução para todo o mundo islâmico, e a libertação de todos os muçulmanos do jugoocidental eram, dentre as propostas de Khomeini, as que mais afligiam os norte-americanos.8 Apesar de possuir uma população predominantemente xiita, o Iraque era governado por SaddamHussein, um líder sunita. Para uma exposição mais detalhada da oposição entre xiitas e sunitas, verARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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apoio incluía a não oposição ao uso indiscriminado de armas químicas 9 por parte dos

iraquianos, mesmo com todas as denúncias de organismo internacionais e do próprio

Irã.

O fim da guerra Irã – Iraque ocorreu próximo ao fim da Guerra Fria, e nesse

momento o imaginário ocidental começava a substituir o inimigo comunista peloinimigo árabe. Essa transição é sensível no cinema produzido em Hollywood, filmes

como  Rambo (1985) e Top Gun (1986) que ajudavam a difundir o militarismo e o

conservadorismo, foram seguidos por filmes como  Águia de aço I (1985) e II (1988) e

Comando Delta (1986), que profetizam a troca do inimigo comunista pelo arquiinimigo

árabe. A cultura da mídia10 cumpre um papel fundamental na construção da imagem que

o Ocidente tem hoje da Republica islâmica do Irã, assim como do mundo islâmico como

um todo.

Segundo Douglas Kellner, a cultura veiculada pela mídia tem o poder de seduziro público e levá-lo a identificar-se com os padrões ideológicos vigentes11. Para Noam

Chomsky, além de ser fundamental na fabricação de consenso, a mídia ocidental seria

também responsável por criar os inimigos necessários para legitimar ações militares

pelo mundo, elegendo os monstros a serem combatidos após o suposto fim do

comunismo12. Uma vez que o comunismo não mais representa o mal maior a ser

destruído, um novo inimigo prioritário é eleito: o Islã13.

O presente trabalho utiliza a obra de animação Persepolis para analisar a forma

como a revolução iraniana ainda é representada em pleno século XXI. Persepolis é uma

produção francesa e norte-americana de 2007 que narra a história de uma menina

durante o processo revolucionário no Irã e seus desdobramentos. O filme baseia-se nos

relatos da própria menina, Marjane Satrapi, publicados em quatro volumes entre 2000 e

2003, e editados originalmente na França em forma de HQ.

Através desta contextualização, analisaremos como o cinema, uma das formas de

mídia de maior alcance no mundo, ainda contribui para a disseminação de um discurso

9 A utilização de armas químicas havia sido proibida desde 1925, segundo o protocolo de Genebra.10 Entende-se por cultura da mídia o conjunto de informações veiculadas através da televisão, cinema,radio, jornais e revistas, que ajudam a modelar opiniões políticas e comportamentos sociais, fornecendomaterial com que as pessoas forjam sua identidade. Para uma explicação mais detalhada do conceito, verKELLNER, Douglas. A Cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o modernoe o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.11 KELLNER, Op. cit. 12 CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. Rio de Janeiro:Graphia, 2003.13 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio deJaneiro: Objetiva, 1997.

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orientalista14, uma vez que apesar de a obra ser de autoria de uma iraniana, ela escreve

no Ocidente e para o Ocidente.

II. Persepolis e a Revolução

O filme retrata bem as primeiras movimentações pré-revolucionárias. Mostra

uma menina empolgada com a abertura cultural de seu país, declarando-se fã de ícones

do consumo ocidental, como o cinema e a marca Adidas. Mas ao mesmo tempo, mostra

uma menina que sonha em ser “a maior profeta das galáxias”. Essa dualidade só é

possível porque ela integra uma família abastada, que, ao contrário da maior parte da

população, tem acesso ao consumo e vê com bons olhos essa abertura. Para o grosso da

população, a influência externa, predominantemente norte-americana, era simplesmente

a razão de sua miséria.A menina é apresentada bem cedo às arbitrariedades do governo do Xá. Alguns

parentes e amigos da família estão presos e sob tortura. Em determinado momento, o pai

da menina vê-se obrigado a explicar-lhe que o Xá não era escolhido de Deus e mostra a

ela como se deu a condução da dinastia Pahlavi ao poder através da influência ocidental.

A menina descobre que seu avô havia sido assassinado pelo governo do pai do Xá por

ser integrante da família real deposta, e, por ser comunista, a figura do avô exerce certo

fascínio sobre a criança, mas o pai lembra a ela que mesmo sendo de caráter violento, o

governo do primeiro Xá foi responsável pela modernização do país.

A narrativa é permeada pelas intervenções das movimentações urbanas. Os

gritos de “morte ao Xá” ecoam na sala de estar da família de Marjane. Em uma das

seqüências mais belas do filme, um jovem desarmado é alvejado pelo exército em

repressão a uma manifestação contra o governo. Seus companheiros ao invés de se

dispersarem, erguem seu corpo simbolizando o martírio que estavam dispostos a

enfrentar. Os pais da menina participavam das manifestações, demonstrando a coalizão

que se desenhava nos primeiros momentos da revolução. Secularistas e Ulemás 15,

intelectuais e leigos, parcelas da elite e grande parte das massas lutavam lado a lado,

todos unidos pela deposição do Xá.

14 O conceito de Orientalismo, de Edward Said, parte do principio que o Oriente é uma invenção doOcidente. Toda categoria criada para definir o oriental passa necessariamente pelo filtro dos valoresocidentais, que normalmente se colocam em uma escala evolutiva superior ao objeto de sua análise. Parauma explicação mais detalhada do conceito, ver: SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente comoInvenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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A violência passava a ser uma constante ainda mais explícita. Várias

manifestações acabaram com numeroso mortos. A insatisfação com o regime era

exponencialmente crescente. Mais do que qualquer orientação ideológica, o Islã gerava

o sentimento de unidade e impulsionava as camadas populares contra o regime. Nesse

clima ganhava força o discurso de uma das mais influentes figuras religiosas do país, oAiatolá Khomeini.

Perseguido por Reza Pahlavi, Khomeini foi exilado no Iraque e depois na

França. Suas mensagens eram assiduamente aguardadas no Irã e eram precariamente

transportadas através até de fitas K-7. A figura de Khomeini foi fundamental para a

disseminação do sentimento anti-Xá e anti-Ocidente. Apesar de sua importância no

processo revolucionário, ele não é representado no filme, talvez para evitar uma

centralização no aspecto religioso da revolução, ao qual sua figura se tornou

indissociável.Com a revolução vitoriosa e Reza Pahlavi deposto, a euforia deu lugar à

incerteza. Os setores revolucionários seculares não tardaram em perceber que rumos

bem distintos do que seria uma revolução liberal ou comunista estavam sendo tomados.

Um plebiscito decidiu pela instituição de uma República Islâmica quase que por

unanimidade. Khomeini foi apontado como líder supremo da revolução e passou a

desenhar o que seriam as principais diretrizes revolucionárias. Tais diretrizes não

incluíam reformas liberais, e muito menos uma guinada à esquerda. O Islã passou a ser

a principal bandeira da revolução e a principal arma contra a presença ocidental.

Desencadeou-se uma nova onda de perseguições. As forças que agiam em

conjunto com os líderes religiosos passaram a ser consideradas inimigas da revolução.

Os tempos de medo e perseguição estavam de volta.

Nesse contexto, Marjane recebe com tristeza a noticia da prisão de seu tio, que

havia sido um influente comunista nos primeiros momentos daquele processo. Logo

após visitá-lo em uma prisão em estado deplorável, ele é morto. A repressão passou a

ser uma constante também no governo revolucionário, mas com uma diferença: algumas

vezes o Xá comprava seus opositores com dinheiro ou com exílio, já os clérigos

preferiam aplicar a humilhação pública16.

15 Guardiões das tradições legais e religiosas do Islã16 ALI, Tariq. Confronto de fundamentalismos – Cruzadas, jihads e modernidade. Rio de Janeiro:Record, 2005.

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Da proibição do véu passa-se à obrigação do seu uso. Da euforia do consumo

experimentado pela elite, passa-se a demonização institucional de tudo que vem do

Ocidente. Essas são polarizações bem demonstradas no filme e que nos fazem pensar

que os iranianos saíram de um regime repressor para outro, como se houvessem pulado

da frigideira para o fogo. Ambos regimes eram repressores, mas com uma diferençaimportante: a República Islâmica contava com amplo apoio popular. Era inegável que a

maioria dos iranianos queriam o governo islâmico17.

Boa parte da população era religiosa e não tinha acesso ao consumo, logo, as

medidas tomadas pelo governo islâmico que mais saltavam aos olhos ocidentais não

afetavam da mesma forma o iraniano comum. Numa perspectiva orientalista é muito

difícil aceitar o “retrocesso” revolucionário.

Não faz parte dos objetivos deste trabalho definir se a revolução foi boa ou ruim

numa perspectiva maniqueísta. É importante manter em vista o sentimento anti-ocidental fomentado pelo colonialismo e em seqüência pelo imperialismo norte-

americano. A Revolução Iraniana devolveu um sentimento de nação ao povo, definiu

uma identidade e representou, antes de qualquer coisa, a ruptura com o modelo

ocidental.

III. Marjane e o exílio

Em meio ao terror da guerra Irã – Iraque, com seus bombardeios constantes, e a

repressão violenta por parte do regime, a família de Marjane decide enviá-la para fora

do País. No filme, o comportamento contestador da menina havia se tornado um perigo

para sua própria vida. Muitos iranianos deixaram seu país por correr risco de vida, seja

pela guerra ou pela violência repressora.

Em seu ensaio “Reflexões sobre o exílio”18, Edward Said apresenta algumas

distinções entre exilados, refugiados, expatriados e emigrados. Os primeiros seriam

aqueles que por algum motivo acabassem banidos de seu país. Os refugiados são os que

se apresentam como um fenômeno da modernidade, significando grandes grupos de

pessoas que se vêem obrigadas a sair do território onde costumam habitar. Expatriados

seriam os que voluntariamente vão morar em outro país por questões sociais ou

17 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e noislamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.18 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 2003.

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pessoais. E por último, os emigrados seriam aqueles que saem do seu país por questões

estritamente pessoais, como trabalho, ou representando o seu Estado, como os

diplomatas.

O caso de Marjane deve ser encarado como um caso de exílio, uma vez que,

apesar de ter escolha, ficar poderia significar a morte. Ao contrario do governo do Xá,não havia mais a possibilidade do exílio para os opositores do regime. Na ausência de

tal possibilidade, a condição de expatriado perde o sentido. Sair do país em certos casos

era uma questão de sobrevivência, e isso vai além das questões sociais e pessoais, não

caracterizando, portanto, uma escolha necessariamente voluntária.

Marjane vai morar na Áustria e continua a estudar no Liceu francês do novo

país. Deslumbra-se com a fartura e com o consumo liberado, que contrastam com o

racionamento e com as restrições de seu país em guerra. Suas origens despertam a

curiosidade de seus primeiros amigos, afinal, ela já assistiu a uma guerra e a umarevolução, coisas que a juventude austríaca só conhecia através dos livros. Mesmo

diante de todas as novidades e possibilidades, seus primeiros momentos no exílio são

descritos com melancolia.

Com o tempo, Marjane se adapta melhor ao modo de vida ocidental. Passa a

freqüentar festas e a viver novas experiências que seriam fatalmente condenadas em seu

país, como o uso de álcool. Ela começa também sua vida amorosa, passa por situações

diversas, grandes amores e decepções.

Sofre também com o preconceito por ser iraniana, é rotulada como uma

selvagem por uma freira cristã, sempre reagindo energicamente. Em outro momento, em

uma conversa com um rapaz em uma festa, ela nega ser iraniana alegando ser francesa.

Por esse episódio ela vira motivo de deboche para um grupo de meninas, que afirmam

que ela jamais poderia passar por uma francesa. Já assombrada por sua consciência, que,

representada por sua avó, havia lhe feito lembrar suas origens e como ela não devia

negá-las, ela enfrenta o grupo reafirmando sua identidade nacional19.

Marjane não se identificava com o modelo de governo que foi instaurado em seu

país. O signo do Islã não era a referência que ela tinha de sua terra natal. As figuras

sisudas e as mulheres cobertas, como foram representadas no filme, não eram a imagem

que ela gostaria de guardar na memória ao lembrar do Irã. No momento em que negou

19 A identidade nacional para o não-ocidental estaria muito mais ligada à comunidade de nascimento e àsua cultura nativa do que às questões de identificação com o Estado Nacional. SMITH, Anthony.Identidade Nacional, Lisboa: Gradiva, 1997. 

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ser iraniana, na verdade era o Irã pós revolucionário que ela estava negando. Sentia

vergonha de ser associada aos estereótipos ocidentais sobre sua cultura. Sentia vergonha

principalmente por não concordar com as diretrizes lançadas pela revolução.

Esse é um dos propósitos do exílio, fazer o exilado sentir que não pertence mais

àquela comunidade nacional. Porém, a noção de identidade nacional vai além disso. Opróprio nome do filme, Persepolis, remete à antiga capital do império persa, indicando

uma identificação da autora, Marjane Satrapi, com uma outra noção de nacionalidade, à

parte das que foram delimitadas pela revolução. Ela não deixa de ser iraniana por não se

identificar com a República Islâmica, suas raízes seriam mais profundas que isso, ela

compartilha da mesma comunidade de nascimento e da mesma cultura nativa que todos

os outros iranianos, revolucionários ou não.

Ao final de um período conturbado, em que, após uma decepção amorosa,

Marjane passa a morar nas ruas e acaba ficando muito doente, ela resolve voltar ao Irã.Já curada, ela volta a Teerã e reencontra sua família. O exílio havia deixado marcas

profundas, a ponto de ela pedir aos pais que jamais perguntassem o que havia

acontecido em Viena.

IV. Conclusão

O filme faz uma abordagem pertinente do que foi a revolução de 1979. Da

euforia dos primeiros momentos ao recrudescimento da violência no regime. A

experiência vivida por Marjane Satrapi é um relato que contribui para a análise do

período, porém é apenas um ponto de vista dentre muitos. A experiência dela não parte

dos subúrbios de Teerã, mas sim de uma confortável sala de estar de uma família que

tinha acesso ao consumo, entre outros benefícios trazidos com a modernização.

Seu olhar é fortemente influenciado pelo padrão ocidental. Ela quer consumir a

cultura do Ocidente, sua música, suas roupas e seu estilo de vida. Não que isso fosse

algo errado, mas de fato não era essa a realidade da grande maioria da população

iraniana. As profundas diferenças sociais e o Estado corroído pela corrupção foram

heranças do colonialismo e agravados com o imperialismo norte-americano.

Um grande sentimento anti-Ocidente era forte nas camadas mais populares, que

tendiam a concentrar sua indignação nos ícones que representavam a sociedade de

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consumo. A rejeição à cultura ocidental não era apenas uma imposição de um regime

autoritário, era também uma demanda popular. Assim como a questão do véu, que havia

sido proibido no governo do Xá causando grande insatisfação, e que na revolução

ganhou um significado de resistência à influência ocidental.

É fato que o regime era opressor e violento, mas ele não deve ser analisadoapenas da perspectiva do Ocidente. Os aspectos particulares da cultura iraniana e do Islã

devem ser levados em consideração para propiciar uma compreensão mais completa do

processo revolucionário.

É importante mantermos em mente que não é possível desvincular a obra do

momento histórico em que é produzida. O fato de o filme ser uma produção de 2007,

não escapa à influência da eleição de Mahmoud Ahmadinejad em 2005. O novo

presidente do Irã é considerado um radical dentro de seu próprio país, não só para o

Ocidente, por ser um fiel seguidor das diretrizes revolucionárias propostas porKhomeini, o que lhe garante um grande apreço popular. Sua postura diplomática é

desafiadora e fonte de incômodo para as potências ocidentais.

Obviamente não é o caso de atribuir ao filme Persepolis uma ligação direta com

questões de Estado ou propaganda. Porém, o discurso presente no filme pode ser

analogamente associado à atual condição política do país, fomentando no imaginário

ocidental uma imagem deturpada e unilateral de uma República Islâmica intransigente e

violenta.

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