O FETICHISMO NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO

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O FETICHISMO NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO A música constitui a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Chamamos de decadência do gosto musical quando a paz da música apresenta-se perturbada por excitações bacânticas. Todos tendem a obedecer à moda musical, assim não se pode qualificar de dionisíaca a consciência musical contemporânea de massas. A arte responsável é orientada por critérios: lógico e ideológico; e verdadeiro e falso. A existência do ser humano se tornou uma problemática, pois o seu direito à liberdade de escolha não o permite viver mais empiricamente. O seu gosto por determinada musica é julgado pelo fato da canção de sucesso ser conhecida por todos; lembrando que, gostar de um disco de sucesso é o mesmo que reconhecê-lo. Ao estar cercado por mercadoria musicais padronizadas, o individuo não consegue decidir com liberdade o que lhe é apresentado. Ainda que tudo que é oferecido é tão semelhante, valorizando apenas o detalhe biográfico ou mesmo a situação concreta em que a musica é ouvida. O termo “clássica” designa as categorias da música- seria. Embora as músicas destinadas ao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo as categorias mencionadas. Tem-se observado que a música de entretenimento, ao invés de entreter, contribuiu ainda mais para o emadurecimento dos homens. E ainda, preencheu os vazios de silêncio entre as pessoas frágeis tomadas pelo medo e cansaço. No terceiro livro da República de Platão há proibições dos modos musicais como os “moles” – que no dizer sábio grego é 1

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Resumo de um artigo de Adorno sobre o Fetichismo na Música e a Regressão na Audição

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O FETICHISMO NA MÚSICA E A REGRESSÃO DA AUDIÇÃO

A música constitui a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria

para o seu apaziguamento. Chamamos de decadência do gosto musical quando a paz da

música apresenta-se perturbada por excitações bacânticas. Todos tendem a obedecer à moda

musical, assim não se pode qualificar de dionisíaca a consciência musical contemporânea de

massas. A arte responsável é orientada por critérios: lógico e ideológico; e verdadeiro e falso.

A existência do ser humano se tornou uma problemática, pois o seu direito à liberdade de

escolha não o permite viver mais empiricamente. O seu gosto por determinada musica é

julgado pelo fato da canção de sucesso ser conhecida por todos; lembrando que, gostar de um

disco de sucesso é o mesmo que reconhecê-lo. Ao estar cercado por mercadoria musicais

padronizadas, o individuo não consegue decidir com liberdade o que lhe é apresentado. Ainda

que tudo que é oferecido é tão semelhante, valorizando apenas o detalhe biográfico ou mesmo

a situação concreta em que a musica é ouvida.

O termo “clássica” designa as categorias da música-seria. Embora as músicas

destinadas ao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo as categorias

mencionadas. Tem-se observado que a música de entretenimento, ao invés de entreter,

contribuiu ainda mais para o emadurecimento dos homens. E ainda, preencheu os vazios de

silêncio entre as pessoas frágeis tomadas pelo medo e cansaço.

No terceiro livro da República de Platão há proibições dos modos musicais como os

“moles” – que no dizer sábio grego é “se recomendam em banquetes e orgias”. Proibi-se

também a flauta e instrumento de “muitas cordas”. Platão gosta de ridicularizar o flautista

Mársias censurado pelo moderado Apolo. Essas recriminações fazem parte do progresso

social e do aspecto estético especifico. Os aspectos censurados entram na grande música

ocidental pelo prazer dos sentidos como porta de entrada para a dimensão harmônica e

colorística; a pessoa como portadora da expressão e da humanização da própria musica. Essa

variedade dos encantos e da expressão conduz à síntese musical que conserva a unidade de

aparência, a qual, fixa-se a imagem de uma situação social em que esses elementos de

felicidade seriam mais do que mera aparência. A Flauta Mágica constitui apenas um momento

em si mesmo. Após a Flauta Mágica nunca mais se conseguiu reunir música séria e música

ligeira.

Na era do capitalismo, os fermentos antimitológicos da música conjuram contra a

liberdade que havia sido a causa de sua proibição. O prazer do momento e da fachada de

variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, assumindo

o papel de comprador e consumidor passivo. A unidade sintética é sacrificada aos momenros

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parciais. Os momentos isolados de encantamento não são reprováveis em si mesmos. Pois são

capazes de oferecer ao indivíduo isolado que há muito tempo já deixou de existir. Ao se

isolarem, o prazer e o encanto enfraquecem o espírito. A sua força de redução sobrevive

somente quando as forças de renuncia são maiores. O próprio conceito de ascético é dialético

na música. A ascese se transformou em característica e bandeira da arte avançada. A arte

considera negativa a possibilidade de felicidade. Toda arte ligeira e agradável tornou-se

meramente ilusão. O prazer só tem um lugar ainda onde há presença imediata, tangível,

corporal. Somente se mantém fidelidade à possibilidade do prazer onde cessa a mera

aparência.

A nova etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do

prazer no próprio prazer. A expressão “prazer artístico” e “gosto artístico” assumiram um

significado curioso e cômico. O fascínio das canção da moda exerce a sua influência desde o

período inicial da burguesia. Tal fascínio atacou o privilégio cultural das camadas sociais

dominantes. Ao se estender pela sociedade, a sua função se modificou, atingindo todos os

tipos de música. A música ligeira propiciou entretenimento e distração aos ouvintes e

incentivou e promoveu os chamados valores culturais em virtude do modo de cultivá-los. A

música séria tem a sua história na fuga da banalidade e como aspecto negativo reflete os

traços da música ligeira. A superioridade da música ligeira em relação à séria tem como

fundamento a passividade que coloca o consumo da música ligeira em oposição às

necessidades objetivas daqueles que a consomem. Na realidade, as pessoas apreciam a música

ligeira e só tomam conhecimento da música séria por motivos de prestígio social. Ambas as

esferas da música resulta de uma contradição não resolvida. Não é possível formar o todo

com a soma das duas metades. Mas as modificações do todo aparecem em cada uma delas.

A produção musical avançada se independentizou do consumo. O resto da música

séria é submetido à lei do consumo, pelo preço do seu conteúdo. A música clássica e ligeira

são manipuladas à base das chances de venda. A música “Music, maestro, please” obteve

êxito após Toscanini ser condecorado pela opinião pública. O reino daquela vida musical é

denominado de Fetiches. As reações dos ouvintes dirigiram ao sucesso acumulado, o qual

pareceu ser comandado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio. Nos Estados

Unidos, a Quarta Sinfonia de Beethoven se perde entre as autênticas raridades. Nasce um

círculo vicioso onde o mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso. Melodia é

considerada com um “achado” – termo inadequado para a musica considerada clássica – do

compositor, já que se pode levar pra casa como uma coisa comprada, assim como é atribuída

ao compositor como sua propriedade legal. O campo que o fetichismo musical mais domina é

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o da valorização pública dada às vozes dos cantores. Antigamente exigia-se doas ases do

canto alto virtuosismo técnico. Atualmente, ter boa voz e ser cantor são expressões

sinônimas. O cantor nem precisa dominar os recursos técnicos. Apenas que sua voz seja

particularmente potente ou aguda para legitimar o renome de seu dono. As vozes dos cantores

constituem bens sagrado de valor igual a uma marca de fabricação nacional. Em muitos casos,

as vozes perdem o encanto e soam como imitações dos arrivistas. Um violino bom pode ser

distinguido por um ouvido especializado. O progresso das fábricas de violino atribui um valor

maior aos instrumentos antigos. Os atrativos dos sentidos, da voz e dos instrumentos são

fetichizados e destituídos de suas funções únicas.

O fetichismo musical não pode ser deduzido por meios psicológico. A música atual

é denominada pela característica de mercadoria, já que seus valores não são compreendidos

ou apreendidos pelo consumidor. Nos Estados Unidos, a música é utilizada como instrumento

para a propaganda comercial de mercadorias que é preciso comprar para poder ouvir música.

Marx descreve o caráter fetichista da mercadoria como a veneração do que é autofabricado na

qualidade de valor de troca alienado ao produtor e ao consumidor. Segundo Marx, a forma

mercadoria devolve aos homens os caracteres sociais do seu trabalho como caracteres dos

produtos desse trabalho. Assim, reflete a relação social com o trabalho como uma relação

social de objetos existentes fora deles. Trata-se do reflexo daquilo que se paga no mercado

pelo produto. Podemos exemplificar quando um consumidor paga pela entrada de um

concerto de Toscanini. O valor do uso desse produto consiste no mesmo valor da troca que foi

feita por ele. Já que, neste caso, o valor do uso é uma aparência ilusória. Assim, podemos

especificar o caráter fetichista da música: os efeitos direcionados ao valor da troca criam a

aparência do imediato, porém a falta de relação com o objeto desmente essa aparência. O

fator que ainda mantém coesa a sociedade da mercadoria é a transferência do valor de uso dos

bens de consumo para o seu valor de troca dentro de uma constituição global, onde o prazer

que se emancipa no valor de troca assume traços subversivos. Esse prazer transforma os

consumidores em escravos, pois são induzidos a adquirir a mercadoria para saciar a sua

vontade, deixando-se enganar totalmente.

As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens da cultura sofrem

alterações constitutivas. O valor de recordação das partes dissociadas possui na própria grande

música uma composição do romantismo tardio. A decadência do fetiche é um perigo para o

próprio fetiche, conservando o seu caráter fitichista ao se aproximar das músicas de sucesso.

A obra dos momentos renuncia à sua espontaneidade. A função essencial das representações

musicais apresenta uma obra depravada com um enorme aparato que procura afastar dela a

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depravação. A prática dos arranjos separa os “achados”, coisifica e os arranca do seu

contexto original; quando executado isoladamente, perde seu caráter de necessidade dentro da

harmonia sinfônica e se transforma em uma peça comum. A técnica dos arranjos se converte

no principio da colorística. Na música ligeira, os arranjadores são os únicos músicos dotados

de alguma formação, podendo manipular os bens da cultura com muito maior desenvoltura. O

argumento que alega que os arranjos contribuem para o barateamento da execução é anulado

praticamente à constatação de riqueza de instrumentação dos arranjadores. Os arranjos

acabam tendo custo substancial maior que uma interpretação da versão original da obra.

Na monocromia, há perda de objetividade na articulação que dá plasticidade à

partitura original de Wagner. Assim, o ouvinte abandona-se do som da melodia dominante. O

segredo do arranjo é não deixar nada tal como é e manipular tudo com que topar pela frente.

A pratica dos arranjos provém da música de salão. É a pratica de entretenimento que

exige qualidade dos bens da cultura. Tal entretenimento difundi em todo o campo da vida

musical, e a verdadeira música desaparece. Atualmente a musica é vista para satisfazer às

supostas necessidades das massas. Replica-se que uma mercadoria embolorada é exatamente

o que os ouvintes desejam. Tal réplica é desaprovada por levar os consumidores a

concordarem com os critérios dos produtores. Entretanto, o processo de fetichização invade

até mesmo a música supostamente séria.

A consciência dos ouvintes está em perfeita sintonia com a música fetichizada.

Ouve-se a música conforme os preceitos, pois a depravação da música não seria possível se

houvesse resistências por parte do público. No pólo oposto ao fetichismo na música opera-se

uma regressão da audição. Com isso dizemos que a audição moderna regrediu e permaneceu

num estado infantil. O seu primitivismo caracteriza os que foram privados de sua liberdade.

Manifestam o ódio de alguma coisa, mas preferem adiar para poder viver tranqüilo.

Regressivo é o papel que desempenha a atual música de massas na psicologia das suas

vitimas. Na tal canção infantil há a ridicularização masoquista do próprio desejo de recuperar

a felicidade perdida.

A audição regressiva ocorre, por exemplo, no momento em que uma propaganda é

anunciada, fazendo com que o a consciência do comprador e do ouvinte seja alternados à

comprar sua paz de espírito, tornando a mercadoria oferecida em sua propriedade. O caráter

fetichista da música produz a sua própria máscara. Somente esta identificação confere às

músicas de sucesso o poder que exercem sobre as vitimas.Opera-se esta identificação na

seqüência do esquecer e do recordar, a qual esta ligada ao título ou às palavras do refrão da

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música de sucesso. Esse comportamento de esquecer e recordar da música chama-se de

descontração.

Os ouvidos que somente têm capacidade para ouvir o que registram o atrativo

sensorial abstrato, ao invés levarem os momentos de encantamento à síntese, constituem

ouvidos de má qualidade. Existe um mecanismo neurótico, cujo sinal seguro é a rejeição

ignorante e orgulhosa de tudo que sai do costumeiro.

O êxtase se realiza quando se obedece à música, tornando suficiente para substituir o

próprio conteúdo. No ritual do êxtase não se dança nem se ouve musica “por sensualidade”,

mas sim, imitar gestos de pessoas sensuais.

O ouvinte fetichista mais perfeito é o rádio-amador, pois o que lhe interessa é saber

o que esta ouvindo através do seu aparelho particular.

O torcedor fanfarrão que domina os estádios brilha pela capacidade de improvisação,

embora tenha que tocar piano e casa durante horas para executar os ritmos apresentados.

Os ouvintes regressivos apresentam muitos traços em comum com o homem que

precisa matar o tempo porque não tem outra coisa com que exercitar o seu instinto de

agressão, e com o trabalhador de meio expediente.

Se a audição regressiva progredisse, em comparação com a individualista, isto

aconteceria apenas no sentido dialético de que se adaptaria à brutalidade que progride. A

audição regressiva está a cada momento pronta a degenerar com violência.

Pelas fotografias e pelo cinema, o efeito do que é moderno envelhecido, utilizado

como choque pelo surrealismo, passou a ser a mera divisão daqueles cujo fetichismo se

prende ao presente abstrato.

Os ouvintes regressivos são realmente destrutivos. Suas tendências se dirigem contra

os mesmos elementos que são odiado pelos ouvintes fora da moda, ou seja, contra a rebeldia

como ta, a não ser que esta se apresente acobertada pela espontaneidade tolerada de excessos

coletivos.

Enaltece um aspecto positivo da nova música de massas e da audição regressiva: a

vitalidade e o progresso técnico, a ampla aceitação coletiva e relação com uma pratica

indefinida, em cujos conceitos entrou a autodenuncia dos intelectuais, os quais em ultima

analise podem eliminar a sua alienação das massas porque unificam sua consciência com a

atual consciência de massas.

A audição regressiva constitui um inimigo impiedoso não só dos bens culturais que

poderíamos chamar “museologico”, mas também da sagrada da musica como instancia de

sujeição e repressão dos instintos.

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Embora a audição regressiva não constitua sintoma de progresso na consciência da

liberdade, é possível que inesperadamente a situação se modificasse, se um dia a rate, de mãos

dadas coma sociedade, abandonasse a rotina do sempre igual. Para esta possibilidade, a

música produziu um modelo, não a música popular, mas a artística..

Não se pode colocar sob o signo a musica nova e radical que nos seus representantes

mais avançados, se apóia nele e o invoca paradoxalmente como precursor. Esta nova musica

propõe-se a resistir conscientemente à experiência da audição regressiva.

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