o Funk Como Simbolo Da Violencia Carioca
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O FUNK COMO SMBOLO DA VIOLNCIA CARIOCAO FUNK COMO SMBOLO DA VIOLNCIA CARIOCA
HERMANO VIANNAHERMANO VIANNA
texto apresentado no Ciclo de Debates Cidadania e Violncia, organizado pela Copea/UFRJ, etexto apresentado no Ciclo de Debates Cidadania e Violncia, organizado pela Copea/UFRJ, e
publicado no livro Cidadania e Violncia, organizado por Gilberto Velho e Marcos Alvito, epublicado no livro Cidadania e Violncia, organizado por Gilberto Velho e Marcos Alvito, e
lanado pelas Editora UFRJ e Editora FGV, 2006lanado pelas Editora UFRJ e Editora FGV, 2006
Como afirmou Gilberto Velho na conferncia que deu incio a este Ciclo de Debates, oComo afirmou Gilberto Velho na conferncia que deu incio a este Ciclo de Debates, o
conflito parte constitutiva da vida social, em todas as sociedades, sejam elas consideradas simplesconflito parte constitutiva da vida social, em todas as sociedades, sejam elas consideradas simples
ou complexas. O equilbrio, quando h equilbrio, sempre momentneo e precrio. Existindoou complexas. O equilbrio, quando h equilbrio, sempre momentneo e precrio. Existindo
vises de mundo e estilos de vida contrastantes, fatos bsicos de toda vida social, o conflito atuarvises de mundo e estilos de vida contrastantes, fatos bsicos de toda vida social, o conflito atuar
como um pano de fundo, mesmo dos momentos considerados mais "equilibrados" ou "pacficos". como um pano de fundo, mesmo dos momentos considerados mais "equilibrados" ou "pacficos".
Tendo essas afirmaes como pontos de partida, possvel se perguntar: quando o conflitoTendo essas afirmaes como pontos de partida, possvel se perguntar: quando o conflito
vai ser visto ou classificado como violento? Pois nem todos os conflitos so considerados violentos.vai ser visto ou classificado como violento? Pois nem todos os conflitos so considerados violentos.
Se assim fosse, a vida social seria particamente invivel, um estado constante de guerra de todosSe assim fosse, a vida social seria particamente invivel, um estado constante de guerra de todos
contra todos. Muitas vezes os grupos ou indivduos em conflito encontram solues pacficas paracontra todos. Muitas vezes os grupos ou indivduos em conflito encontram solues pacficas para
tornar possvel, sem acabar o conflito, sua convivncia numa mesma sociedade. A vida social podetornar possvel, sem acabar o conflito, sua convivncia numa mesma sociedade. A vida social pode
mesmo ser considerada como essa negociao constante e permanente de diferenas, conflituosasmesmo ser considerada como essa negociao constante e permanente de diferenas, conflituosas
ou no, de todos os tipos. ou no, de todos os tipos.
Outras vezes, o conflito passa desapercebido, ou transformado em segredo. EstudosOutras vezes, o conflito passa desapercebido, ou transformado em segredo. Estudos
clssicos sobre o "anonimato relativo" proporcionado pela complexidade sciocultural das grandesclssicos sobre o "anonimato relativo" proporcionado pela complexidade sciocultural das grandes
metrpoles mostram como determinadas diferenas no so percebidas por diferentes grupos sociaismetrpoles mostram como determinadas diferenas no so percebidas por diferentes grupos sociais
e tambm como o mesmo indivduo pode participar de vrios grupos sociais, alguns delese tambm como o mesmo indivduo pode participar de vrios grupos sociais, alguns deles
conflitantes entre si, sem que membros de um grupo tenham conhecimento de sua participao nosconflitantes entre si, sem que membros de um grupo tenham conhecimento de sua participao nos
outros. Poderamos ficar horas analisando cada uma dessas situaes, mas a questo principal queoutros. Poderamos ficar horas analisando cada uma dessas situaes, mas a questo principal que
gostaria de desenvolver no debate de hoje a seguinte: como um determinado conflito se tornagostaria de desenvolver no debate de hoje a seguinte: como um determinado conflito se torna
visvel para os vrios grupos sociais que dele participam e, mais do que visvel, passa a visto comovisvel para os vrios grupos sociais que dele participam e, mais do que visvel, passa a visto como
violento, sendo tratando como tal pelas instituies encarregadas da segurana da sociedade?violento, sendo tratando como tal pelas instituies encarregadas da segurana da sociedade?
Em sociedades da complexidade da nossa, sabemos que fenmenos que so consideradosEm sociedades da complexidade da nossa, sabemos que fenmenos que so considerados
violentos para determinados grupos no so para outros. Por exemplo: as danas executadas emviolentos para determinados grupos no so para outros. Por exemplo: as danas executadas em
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shows de msica punk podem ser vistas como violentas pelos pais dos adolescentes que delashows de msica punk podem ser vistas como violentas pelos pais dos adolescentes que dela
participam. Mas para esses adolescentes, elas so "apenas" diverso. Um observador semparticipam. Mas para esses adolescentes, elas so "apenas" diverso. Um observador sem
familiaridade com as negociaes do capitalismo contemporneo pode pensar que, em muitosfamiliaridade com as negociaes do capitalismo contemporneo pode pensar que, em muitos
momentos, o prego das bolsas de valores se transforma em praa de guerra. momentos, o prego das bolsas de valores se transforma em praa de guerra.
H alguns casos em que a violncia percebida como tal, mais ou menos consensualmente,H alguns casos em que a violncia percebida como tal, mais ou menos consensualmente,
por vrios grupos sociais, mas essa viso no contamina a totalidade do espao social onde opor vrios grupos sociais, mas essa viso no contamina a totalidade do espao social onde o
acontecimento considerado violento foi gerado. As brigas que ocorreram recentemente em boatesacontecimento considerado violento foi gerado. As brigas que ocorreram recentemente em boates
freqentadas pela alta classe mdia carioca foram reportadas como violentas pelos jornais, masfreqentadas pela alta classe mdia carioca foram reportadas como violentas pelos jornais, mas
ningum falou - pelo menos no gerando algum tipo de consenso - que as boates de classe mdianingum falou - pelo menos no gerando algum tipo de consenso - que as boates de classe mdia
so territrios violentos ou produtores de violncia. A mesma sorte no teve o circuito de bailesso territrios violentos ou produtores de violncia. A mesma sorte no teve o circuito de bailes
funk do Rio de Janeiro.funk do Rio de Janeiro.
De alguma maneira, s vezes at como personagem considerado central, eu acompanhei aDe alguma maneira, s vezes at como personagem considerado central, eu acompanhei a
transformao do funk carioca em fenmeno acusado de violento. Esta minha interveno no debatetransformao do funk carioca em fenmeno acusado de violento. Esta minha interveno no debate
de hoje deve ser considerada como um depoimento pessoal, no muito distanciado, como deveriade hoje deve ser considerada como um depoimento pessoal, no muito distanciado, como deveria
ser uma anlise antropolgica. Vejamos, em linhas bem gerais, como tudo aconteceu.ser uma anlise antropolgica. Vejamos, em linhas bem gerais, como tudo aconteceu.
H um marco na histria da relao entre o funk do Rio de Janeiro e o desenvolvimento daH um marco na histria da relao entre o funk do Rio de Janeiro e o desenvolvimento da
percepo da violncia (e das causas dessa violncia) na vida recente da cidade. Esse marco bempercepo da violncia (e das causas dessa violncia) na vida recente da cidade. Esse marco bem
visvel e at mesmo bvio: trata-se do famoso "arrasto" que aconteceu principalmente na praia dovisvel e at mesmo bvio: trata-se do famoso "arrasto" que aconteceu principalmente na praia do
Arpoador, no domingo ensolarado de 18 de outubro de 1992. Tenho dvidas se aquilo foi mesmoArpoador, no domingo ensolarado de 18 de outubro de 1992. Tenho dvidas se aquilo foi mesmo
um arrasto. Acho mesmo que foi a tentativa das galeras de diferentes favelas cariocas (vejam bem,um arrasto. Acho mesmo que foi a tentativa das galeras de diferentes favelas cariocas (vejam bem,
no falo galeras de funkeiros) de encenar na areia da praia o "teatro da violncia" que inventaramno falo galeras de funkeiros) de encenar na areia da praia o "teatro da violncia" que inventaram
nas pistas de dana das centenas de bailes funk realizados semanalmente em quase todos os bairrosnas pistas de dana das centenas de bailes funk realizados semanalmente em quase todos os bairros
da cidade. Penso tambm que no foi a primeira vez que aquilo aconteceu no Arpoador, uma dasda cidade. Penso tambm que no foi a primeira vez que aquilo aconteceu no Arpoador, uma das
praias preferidas por essas galeras. Algumas razes, que desconheo mas imagino que tenham sidopraias preferidas por essas galeras. Algumas razes, que desconheo mas imagino que tenham sido
polticas (j que o Rio vivia s vsperas de uma eleio municipal na qual Benedita da Silva erapolticas (j que o Rio vivia s vsperas de uma eleio municipal na qual Benedita da Silva era
apontada como favorita), fizeram com que as imagens da "confuso" da praia repercutissemapontada como favorita), fizeram com que as imagens da "confuso" da praia repercutissem
escandalosamente em todo o Brasil atravs de uma edio suspeita de vdeo exibida no Fantsticoescandalosamente em todo o Brasil atravs de uma edio suspeita de vdeo exibida no Fantstico
da TV Globo. Algum precisa estudar o que realmente aconteceu nos bastidores daquela "notcia".da TV Globo. Algum precisa estudar o que realmente aconteceu nos bastidores daquela "notcia".
Mas seja qual for o resultado de sua pesquisa, nada ser suficiente para mudar as imagens queMas seja qual for o resultado de sua pesquisa, nada ser suficiente para mudar as imagens que
ficaram gravadas na memria urbana carioca: aquilo foi mesmo um perigoso arrasto e osficaram gravadas na memria urbana carioca: aquilo foi mesmo um perigoso arrasto e os
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danarinos de baile funk, da noite para o dia (como "comprovavam" as manchetes de todos osdanarinos de baile funk, da noite para o dia (como "comprovavam" as manchetes de todos os
jornais de segunda-feira), se viram transformados numa espcie de inimigos pblicos "nmero um"jornais de segunda-feira), se viram transformados numa espcie de inimigos pblicos "nmero um"
pelas foras que queriam encontrar bodes expiatrios para as inumerveis "crises" que, diziam epelas foras que queriam encontrar bodes expiatrios para as inumerveis "crises" que, diziam e
ainda dizem, fazem do Rio um fim do mundo social, ou incio do fim da prpria possibilidade deainda dizem, fazem do Rio um fim do mundo social, ou incio do fim da prpria possibilidade de
vida social no mundo.vida social no mundo.
O arrasto me deu muito trabalho. No exagero: praticamente toda semana recebo aO arrasto me deu muito trabalho. No exagero: praticamente toda semana recebo a
ligao de um jornalista querendo marcar uma entrevista sobre funk. Mas pelo menos fui poupadoligao de um jornalista querendo marcar uma entrevista sobre funk. Mas pelo menos fui poupado
de uma tarefa que considerava um pouco enfadonha e um tanto absurda. Se essa mesa-redondade uma tarefa que considerava um pouco enfadonha e um tanto absurda. Se essa mesa-redonda
estivesse acontecendo no perodo pr-arrasto, eu estaria aqui carregado de gravador, fitas e fotos,estivesse acontecendo no perodo pr-arrasto, eu estaria aqui carregado de gravador, fitas e fotos,
para mostrar o que era funk para uma platia, acadmica ou no, que geralmente nunca tinha ouvidopara mostrar o que era funk para uma platia, acadmica ou no, que geralmente nunca tinha ouvido
o som grave "cavernoso" de uma bateria eletrnica e que balbuciava ao pronunciar as duas letras deo som grave "cavernoso" de uma bateria eletrnica e que balbuciava ao pronunciar as duas letras de
DJ. Hoje o meu trabalho muito mais fcil. Meus interlocutores, querendo ou no, passaram porDJ. Hoje o meu trabalho muito mais fcil. Meus interlocutores, querendo ou no, passaram por
um processo, quase diria violento, de familiarizao com sons e imagens provenientes do mundoum processo, quase diria violento, de familiarizao com sons e imagens provenientes do mundo
funk. funk.
Confesso que essa familiarizao tirou um pouco do encanto das minhas palestras. NoConfesso que essa familiarizao tirou um pouco do encanto das minhas palestras. No
gostava muito de sair carregando gravadores por a (principalmente numa cidade "violenta" como ogostava muito de sair carregando gravadores por a (principalmente numa cidade "violenta" como o
Rio de Janeiro), mas me lembro com nostalgia da reao dos iletrados em funk. Tocar aquelas fitasRio de Janeiro), mas me lembro com nostalgia da reao dos iletrados em funk. Tocar aquelas fitas
provocava em alguns deles uma revelao prxima da epifania. Eles me diziam: "ento isso que aprovocava em alguns deles uma revelao prxima da epifania. Eles me diziam: "ento isso que a
minha empregada escuta sem parar"; ou ento "agora eu entendo por que minha empregada chegaminha empregada escuta sem parar"; ou ento "agora eu entendo por que minha empregada chega
to cansada nos fins de semana" (algum deveria escrever um estudo sobre as empregadas comoto cansada nos fins de semana" (algum deveria escrever um estudo sobre as empregadas como
mediadoras centrais da cultura urbana carioca). Aquilo que eu presenciava nessas palestras era umamediadoras centrais da cultura urbana carioca). Aquilo que eu presenciava nessas palestras era uma
prova conclusiva para outro debate antropolgico no qual Gilberto Velho tambm foi uma figuraprova conclusiva para outro debate antropolgico no qual Gilberto Velho tambm foi uma figura
central: a relao entre exotismo e familiaridade. O que extico nem sempre est distante. Numacentral: a relao entre exotismo e familiaridade. O que extico nem sempre est distante. Numa
grande cidade, o extico pode morar ao lado e nunca ser familiarizado. O arrasto foi o "operadorgrande cidade, o extico pode morar ao lado e nunca ser familiarizado. O arrasto foi o "operador
lgico" que subitamente transformou o funk extico, num funk familiar. E como esse caso tambmlgico" que subitamente transformou o funk extico, num funk familiar. E como esse caso tambm
prova: a transformao familiarizante nem sempre uma domesticao. O funk ficou muito maisprova: a transformao familiarizante nem sempre uma domesticao. O funk ficou muito mais
"selvagem" ao se tornar familiar."selvagem" ao se tornar familiar.
O que mais me interessa no funk do Rio, desde o comeo de meu trabalho de campo nosO que mais me interessa no funk do Rio, desde o comeo de meu trabalho de campo nos
bailes at hoje, no o seu aspecto que poderia ser considerado violento. De incio, o que me levoubailes at hoje, no o seu aspecto que poderia ser considerado violento. De incio, o que me levou
a estudar os bailes foi justamente a possibilidade de um fenmeno daquela proporo existir naa estudar os bailes foi justamente a possibilidade de um fenmeno daquela proporo existir na
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cidade em que vivia sendo ignorado pelos membros dos vrios grupos sociais com os quais eucidade em que vivia sendo ignorado pelos membros dos vrios grupos sociais com os quais eu
convivia. A violncia (apesar de referncias constantes a brigas e de uma teoria da festa como jogoconvivia. A violncia (apesar de referncias constantes a brigas e de uma teoria da festa como jogo
com a violncia ser parte fundamental do meu trabalho) no foi tambm uma questo muitocom a violncia ser parte fundamental do meu trabalho) no foi tambm uma questo muito
discutida pela banca que aprovou minha dissertao de mestrado nem pelos primeiros leitores, pr-discutida pela banca que aprovou minha dissertao de mestrado nem pelos primeiros leitores, pr-
arrasto, do livro (O Mundo Funk Carioca, Jorge Zahar Editor) que publicou essa dissertao. Oarrasto, do livro (O Mundo Funk Carioca, Jorge Zahar Editor) que publicou essa dissertao. O
que chamava a ateno dos leitores eram outros aspectos daquilo que chamei de mundo funkque chamava a ateno dos leitores eram outros aspectos daquilo que chamei de mundo funk
carioca. As resenhas e matrias que saram na imprensa na poca da publicao do livro (1988)carioca. As resenhas e matrias que saram na imprensa na poca da publicao do livro (1988)
ilustram o que tento dizer. A revista Isto resumia meu trabalho como: "leitura agradvel sobre oilustram o que tento dizer. A revista Isto resumia meu trabalho como: "leitura agradvel sobre o
mundo dos disc-jqueis e dos ritmos de base negra, que alegram os bailes da periferia carioca."mundo dos disc-jqueis e dos ritmos de base negra, que alegram os bailes da periferia carioca."
(8/6/1988) A Veja iniciava sua matria (sem assinatura) com um prembulo que hoje seria(8/6/1988) A Veja iniciava sua matria (sem assinatura) com um prembulo que hoje seria
dispensvel: "Quase todos os brasileiros que j ouviram a palavra funk a associam, com maior oudispensvel: "Quase todos os brasileiros que j ouviram a palavra funk a associam, com maior ou
menor preciso, a um gnero de msica americana [...] Para uma parcela considervel da juventudemenor preciso, a um gnero de msica americana [...] Para uma parcela considervel da juventude
carioca, funk bem mais que isso - uma palavra mgica sob a qual se abriga um ritual. Essescarioca, funk bem mais que isso - uma palavra mgica sob a qual se abriga um ritual. Esses
jovens [...] formam uma comunidade com cdigos de conduta prprios na maneira de se vestir,jovens [...] formam uma comunidade com cdigos de conduta prprios na maneira de se vestir,
falar, se divertir e namorar." (11 de Maio, 1988) preciso deixar explcito: o jornalista no falou defalar, se divertir e namorar." (11 de Maio, 1988) preciso deixar explcito: o jornalista no falou de
brigar. A matria do Jornal do Brasil fala de violncia em apenas uma nica frase: "s vezes abrigar. A matria do Jornal do Brasil fala de violncia em apenas uma nica frase: "s vezes a
excitao tanta que se converte em briga." Isso depois de dizer que o objetivo do danarino " umexcitao tanta que se converte em briga." Isso depois de dizer que o objetivo do danarino " um
s: gastar energias, suar, ficar numa boa." E descreve a sada de um baile com os seguintes termos:s: gastar energias, suar, ficar numa boa." E descreve a sada de um baile com os seguintes termos:
"todos voltam para casa, fazendo barulho nos nibus, gritando nas ruas. So onze horas, todo"todos voltam para casa, fazendo barulho nos nibus, gritando nas ruas. So onze horas, todo
mundo trabalha na segunda-feira. hora de descansar. O baile gozou." (11/5/88) No parece omundo trabalha na segunda-feira. hora de descansar. O baile gozou." (11/5/88) No parece o
mesmo Jornal do Brasil ( claro, estou simplificando as coisas para tornar mais claro meumesmo Jornal do Brasil ( claro, estou simplificando as coisas para tornar mais claro meu
argumento - sei que um jornal no homogneo) que quase seis anos depois publicava outraargumento - sei que um jornal no homogneo) que quase seis anos depois publicava outra
matria com o ttulo "Galera funk mata rival a tiros dentro do nibus"(21/1/94) ou que lista entre asmatria com o ttulo "Galera funk mata rival a tiros dentro do nibus"(21/1/94) ou que lista entre as
"Ameaas das favelas" (ttulo de um editorial publicado em 5/2/94) os seguintes "perigos" que no"Ameaas das favelas" (ttulo de um editorial publicado em 5/2/94) os seguintes "perigos" que no
param de crescer: "Tiroteios, guerras de quadrilhas, bailes funks, lixo lanado para baixo, invasoparam de crescer: "Tiroteios, guerras de quadrilhas, bailes funks, lixo lanado para baixo, invaso
das reservas florestais, desrespeito propriedade particular, tudo se avizinha do delrio." Mudou odas reservas florestais, desrespeito propriedade particular, tudo se avizinha do delrio." Mudou o
Jornal do Brasil? Mudaram os funkeiros? Ou mudou a maneira com a qual determinados gruposJornal do Brasil? Mudaram os funkeiros? Ou mudou a maneira com a qual determinados grupos
sociais do Rio (entre eles aqueles dos jornalistas) preferem ver e se relacionar com os bailes funk?sociais do Rio (entre eles aqueles dos jornalistas) preferem ver e se relacionar com os bailes funk?
O baile, depois do arrasto, passou a ser visto como um fenmeno, antes de qualquer coisa,O baile, depois do arrasto, passou a ser visto como um fenmeno, antes de qualquer coisa,
violento. A violncia, e no a diverso, se transformou na sua principal marca, e os funkeiros foramviolento. A violncia, e no a diverso, se transformou na sua principal marca, e os funkeiros foram
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estigmatizados.estigmatizados.
A facilidade como que a estigmatizao do funk aconteceu pode nos dar algumas lies.A facilidade como que a estigmatizao do funk aconteceu pode nos dar algumas lies.
Mais uma vez: como isso aconteceu (da ignorncia mais ou menos total maior ou menorMais uma vez: como isso aconteceu (da ignorncia mais ou menos total maior ou menor
criminalizao do fenmeno)? Quais foram os agentes principais dessa transformao? Que gruposcriminalizao do fenmeno)? Quais foram os agentes principais dessa transformao? Que grupos
sociais (e seus diferentes interesses) estiveram envolvidos na criao dessa nova imagem - violentasociais (e seus diferentes interesses) estiveram envolvidos na criao dessa nova imagem - violenta
- do funk? E o que, no funk, tornou mais fcil a aplicao da nova imagem? No tenho respostas- do funk? E o que, no funk, tornou mais fcil a aplicao da nova imagem? No tenho respostas
para todas essas perguntas. Uma srie de pesquisas (trabalhosas: pois, de incio, envolvem muitospara todas essas perguntas. Uma srie de pesquisas (trabalhosas: pois, de incio, envolvem muitos
grupos sociais diferentes - jornalistas, polticos, policiais, favelados, donos de equipes de som, etc,grupos sociais diferentes - jornalistas, polticos, policiais, favelados, donos de equipes de som, etc,
cada um deles exigindo metodologias diferentes para serem estudados) seria necessria paracada um deles exigindo metodologias diferentes para serem estudados) seria necessria para
comear a ter uma idia mais precisa sobre como tudo aconteceu e quais so as verses divergentescomear a ter uma idia mais precisa sobre como tudo aconteceu e quais so as verses divergentes
sobre esses acontecimentos. O que possvel, agora, apenas sugerir alguns pontos que nosobre esses acontecimentos. O que possvel, agora, apenas sugerir alguns pontos que no
deveriam ser esquecidos na conduo dessas pesquisas.deveriam ser esquecidos na conduo dessas pesquisas.
O fato de no haver uma familiaridade, para voltar a usar esse termo, com o funk facilita suaO fato de no haver uma familiaridade, para voltar a usar esse termo, com o funk facilita sua
demonizao. Correndo o risco de fazer uma generalizao precipitada, acho plausvel afirmar quedemonizao. Correndo o risco de fazer uma generalizao precipitada, acho plausvel afirmar que
o grau de "exotismo" de um fenmeno social uma funo quase direta da possibilidade de v-loo grau de "exotismo" de um fenmeno social uma funo quase direta da possibilidade de v-lo
transformado em esteretipo por grupos para os quais esse fenmeno considerado extico. Portransformado em esteretipo por grupos para os quais esse fenmeno considerado extico. Por
exemplo: a realidade das boates de zona sul freqentadas pela classe mdia mais familiar paraexemplo: a realidade das boates de zona sul freqentadas pela classe mdia mais familiar para
jornalistas, geralmente tambm originrios da classe mdia, que muitas vezes escrevem sobrejornalistas, geralmente tambm originrios da classe mdia, que muitas vezes escrevem sobre
crimes que a acontecem. Sendo assim, mais difcil que participem da criao de uma imagemcrimes que a acontecem. Sendo assim, mais difcil que participem da criao de uma imagem
dessas boates como antros criminosos. O desconhecimento tanto de jornalistas como de leitores,dessas boates como antros criminosos. O desconhecimento tanto de jornalistas como de leitores,
para continuar falando da mdia impressa - que teve um papel decisivo na imagem que muitospara continuar falando da mdia impressa - que teve um papel decisivo na imagem que muitos
grupos sociais cariocas hoje tm do funk, criou as condies necessrias para a fixao da imagemgrupos sociais cariocas hoje tm do funk, criou as condies necessrias para a fixao da imagem
violenta (mas poderia ter sido qualquer outra imagem, mais ou menos fiel complexidade daviolenta (mas poderia ter sido qualquer outra imagem, mais ou menos fiel complexidade da
realidade) do baile funk.realidade) do baile funk.
Um bom tema para investigao seria tentar perceber como se desenvolveu essa distnciaUm bom tema para investigao seria tentar perceber como se desenvolveu essa distncia
(simblica ou no) e esse desconhecimento entre grupos de elite e grupos das classes populares do(simblica ou no) e esse desconhecimento entre grupos de elite e grupos das classes populares do
Rio de Janeiro, distncia/desconhecimento que fizeram do funk - apesar de todo seu barulho - umaRio de Janeiro, distncia/desconhecimento que fizeram do funk - apesar de todo seu barulho - uma
msica inaudvel durante mais da metade de seus 25 anos de existncia e popularidade na cidade.msica inaudvel durante mais da metade de seus 25 anos de existncia e popularidade na cidade.
As formas de interao entre elite e classes populares so muito variadas e tomam feies muitoAs formas de interao entre elite e classes populares so muito variadas e tomam feies muito
diferenciadas dependendo da poca histrica ou mesmo do bairro onde ocorre. Essas relaes quasediferenciadas dependendo da poca histrica ou mesmo do bairro onde ocorre. Essas relaes quase
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sempre dependem da existncia de mediadores que circulam entre os vrios grupos sociaissempre dependem da existncia de mediadores que circulam entre os vrios grupos sociais
colocando em contato diferentes vises de mundo. Acredito que o papel desses mediadores, no Riocolocando em contato diferentes vises de mundo. Acredito que o papel desses mediadores, no Rio
de Janeiro do incio deste sculo, foi decisivo para, por exemplo, a transformao do samba - umade Janeiro do incio deste sculo, foi decisivo para, por exemplo, a transformao do samba - uma
msica que tambm poderia ter adquirido uma imagem principalmente violenta - em smbolomsica que tambm poderia ter adquirido uma imagem principalmente violenta - em smbolo
nacional brasileiro. O funk foi "incapaz" de produzir seus mediadores. Ou melhor, a realidade socialnacional brasileiro. O funk foi "incapaz" de produzir seus mediadores. Ou melhor, a realidade social
do Rio de Janeiro, com suas divises cada vez mais intransponveis entre asfalto e morro, entre zonado Rio de Janeiro, com suas divises cada vez mais intransponveis entre asfalto e morro, entre zona
sul e zona norte, no favorece (para usar uma palavra educada) a criao de instncias mediadoras.sul e zona norte, no favorece (para usar uma palavra educada) a criao de instncias mediadoras.
As coisas ficariam nesse nvel de grupos separados e ignorantes uns dos outros se aAs coisas ficariam nesse nvel de grupos separados e ignorantes uns dos outros se a
realidade social no fosse muito mais complexa e surpreendente do que mandam as cartilhas de umrealidade social no fosse muito mais complexa e surpreendente do que mandam as cartilhas de um
certo planejamento urbano multicultural. claro que a mediao cultural cada vez mais difcil decerto planejamento urbano multicultural. claro que a mediao cultural cada vez mais difcil de
acontecer numa cidade que vive sob o tratamento de choque separatista do atual Rio de Janeiro.acontecer numa cidade que vive sob o tratamento de choque separatista do atual Rio de Janeiro.
Mas acredito, e essa uma profisso de f tanto terica quanto poltica, que as instnciasMas acredito, e essa uma profisso de f tanto terica quanto poltica, que as instncias
mediadoras (e os mediadores) so imprescindveis em regime de complexidade social emediadoras (e os mediadores) so imprescindveis em regime de complexidade social e
heterogeneidade cultural. Novas mediaes so criadas a todo instante, onde menos se espera.heterogeneidade cultural. Novas mediaes so criadas a todo instante, onde menos se espera.
Quando a mdia no perdia uma oportunidade de bombardear o funk, sua mais querida estrela, logoQuando a mdia no perdia uma oportunidade de bombardear o funk, sua mais querida estrela, logo
ela - a Xuxa, fazia um trabalho "de base", tornando o funk popular entre as crianas mais abastadasela - a Xuxa, fazia um trabalho "de base", tornando o funk popular entre as crianas mais abastadas
da Zona Sul da cidade, penetrando at naqueles condomnios que foram construdos para evitar,da Zona Sul da cidade, penetrando at naqueles condomnios que foram construdos para evitar,
com guaritas e os mais novos recursos de vigilncia eletrnica, o contato com o lado "violento" docom guaritas e os mais novos recursos de vigilncia eletrnica, o contato com o lado "violento" do
Rio. preciso evitar outros esteretipos, outras simplificaes e esquematizaes sobre a realidadeRio. preciso evitar outros esteretipos, outras simplificaes e esquematizaes sobre a realidade
social: nem a mdia uma entidade homognea, nem a elite, nem o povo tambm o so. Hsocial: nem a mdia uma entidade homognea, nem a elite, nem o povo tambm o so. H
opinies, vises de mundo, estilos de vida diferentes em cada um desses grupos. E o editorialista doopinies, vises de mundo, estilos de vida diferentes em cada um desses grupos. E o editorialista do
Jornal do Brasil que lista o baile funk ao lado do lixo e dos traficantes das favelas pode desconhecerJornal do Brasil que lista o baile funk ao lado do lixo e dos traficantes das favelas pode desconhecer
que seu filho faz parte do f-clube do DJ Marlboro. O extico pode viver dentro dos quartos deque seu filho faz parte do f-clube do DJ Marlboro. O extico pode viver dentro dos quartos de
nossos familiares, bem ao lado dos nossos prprios quartos.nossos familiares, bem ao lado dos nossos prprios quartos.
Do outro lado do tnel, ou da cidade partida, os prprios funkeiros tambm no so umaDo outro lado do tnel, ou da cidade partida, os prprios funkeiros tambm no so uma
entidade homognea. H posies divergentes entre eles no que diz respeito a viso dos bailes comoentidade homognea. H posies divergentes entre eles no que diz respeito a viso dos bailes como
ambientes violentos ou produtores de violncia. No incio do meu trabalho de campo nos bailes, euambientes violentos ou produtores de violncia. No incio do meu trabalho de campo nos bailes, eu
no tinha nenhum medo de freqent-los, talvez por ignorncia ou otimismo incurvel. Mas quandono tinha nenhum medo de freqent-los, talvez por ignorncia ou otimismo incurvel. Mas quando
comecei a ficar amigo de alguns funkeiros, logo passei a ter toda espcie de receios. Eles gostavamcomecei a ficar amigo de alguns funkeiros, logo passei a ter toda espcie de receios. Eles gostavam
de me passar uma imagem violenta dos bailes, talvez para serem "sinceros", talvez para me assustar,de me passar uma imagem violenta dos bailes, talvez para serem "sinceros", talvez para me assustar,
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talvez porque a imagem violenta seja atraente para determinados tipos de "subculturas" urbanastalvez porque a imagem violenta seja atraente para determinados tipos de "subculturas" urbanas
(no por acaso que o grupo de rock brasiliense Legio Urbana gravou uma msica chamada(no por acaso que o grupo de rock brasiliense Legio Urbana gravou uma msica chamada
Baader-Meinhoff Blues que contm oBaader-Meinhoff Blues que contm o seguinte verso: "A violncia to fascinante / E nossasseguinte verso: "A violncia to fascinante / E nossas
vidas so to banais"). Talvez os funkeiros no esperassem que os outros grupos sociais cariocasvidas so to banais"). Talvez os funkeiros no esperassem que os outros grupos sociais cariocas
fossem acreditar nessa ou divulgar essa imagem (quantos jovens so "valentes" s porfossem acreditar nessa ou divulgar essa imagem (quantos jovens so "valentes" s por
perfomance?) e us-la contra seu principal divertimento. O feitio se voltou contra os feiticeiros (e aperfomance?) e us-la contra seu principal divertimento. O feitio se voltou contra os feiticeiros (e a
antropologia nos ensinou a relacionar a eficcia simblica com muitos tipos de feitiaria). Desfazerantropologia nos ensinou a relacionar a eficcia simblica com muitos tipos de feitiaria). Desfazer
o feitio uma tarefa muito complexa: vide a quantidade de raps que hoje tentam provar para oo feitio uma tarefa muito complexa: vide a quantidade de raps que hoje tentam provar para o
mundo que o baile no , ou no deve ser, violento. Mesmo que os bailes "de briga" continuem a sermundo que o baile no , ou no deve ser, violento. Mesmo que os bailes "de briga" continuem a ser
extremamente populares.extremamente populares.
A relao dos bailes com diversas formas de conflito social bvia. Na pista de dana, h oA relao dos bailes com diversas formas de conflito social bvia. Na pista de dana, h o
conflito jovem/adulto, o conflito homem/mulher, o conflito charme/balano, e tantos outros. Hconflito jovem/adulto, o conflito homem/mulher, o conflito charme/balano, e tantos outros. H
principalmente conflitos entre as galeras, e o baile um espao importantssimo para construo daprincipalmente conflitos entre as galeras, e o baile um espao importantssimo para construo da
identidade dessas galeras, em oposio/contraste com outras galeras. Todo tipo de festa envolveidentidade dessas galeras, em oposio/contraste com outras galeras. Todo tipo de festa envolve
muitos conflitos, mais ou menos latentes, mais ou menos aparentes. Assim como todo o resto damuitos conflitos, mais ou menos latentes, mais ou menos aparentes. Assim como todo o resto da
vida social. Se esses conflitos vo se tornar violentos, ou se vo passar a ser vistos como violentos,vida social. Se esses conflitos vo se tornar violentos, ou se vo passar a ser vistos como violentos,
essa - e foi s para isso que tentei chamar a ateno durante toda esta minha fala - uma outra longaessa - e foi s para isso que tentei chamar a ateno durante toda esta minha fala - uma outra longa
histria. histria.