O gesto me basta. Poética de Rosana Paste

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O gesto me basta Fico a me perguntar a forma para escrever sobre um artista e sua poética sem falar-lhe, quando minha proximidade com ambos se daria, naturalmente, com idas e vindas de e-mails - daqueles que nos fazem lembrar como é trocar cartas - ou por uma direta conversa ou contato telefônico. Essas ocasiões não ocorreram e, no debruçar na obra que a mim chegou e na memória que habito de conversas e escritos da artista que me restam, coloco-me na prepotência e na margem ao erro de dizer e contar - brevemente - sobre o gesto de Rosana Paste. Afinal, a reflexão que parte de um trabalho artístico, parafraseando Moacir dos Anjos, "é um ato que se destina, portanto, a um inevitável fracasso, e cujo praticante não pode almejar mais do que, a cada nova tentativa de realizá-lo, "falhar melhor" e de modo mais afirmativo e claro" 1 . Lembro-me de uma conversa para um vídeo 2 entre o crítico Frederico Morais e o artista Cildo Meireles, quando se questionavam sobre o que é mais importante: o artista e a obra ou apenas a obra? Concordando com Frederico, mas também não discordando de Cildo, penso que tanto o artista quanto a sua obra são fatos inegáveis para a fruição de seus contextos, que se retroalimentam. Rosana, em sua obra-publicação eumuseu rosana paste, revela lúcida o imbricamento entre seu trabalho de arte e sua vida como mulher e como artista. Essa nuance, que perpassa se não toda a sua poética, é assunto que diz tanto do seu eu que, caso sua trajetória não a fizesse artista, sua vontade infinda de vida tornaria seu corpo como campo poético, um alcance do "se" na possibilidade do olhar estético. Entender-se como experiência artística é o pulso próprio de sua potência. Se a experiência é o que nos passa, nos acontece e nos toca, como nos diz Jorge Larrosa 3 , Rosana navega na experiência de um atravessar de afetos, em que o outro pode estar demasiadamente presente. Como nas fotografias da série geografia genética (2013/2015), que apresentam as mãos da mãe, do filho e da própria artista, as camadas de memórias afetivas revelam seu estado: um corpo/tempo que não se pode lutar contra. Suas marcas são seus elos, sua história como uma pintura em constante processo. Entre rainhas (2014) é exemplar da precisa entrega na percepção crítica do sensível. O vermelho veludo nas pequenas cadeiras em aço, contraponto do inox impermeável, é também o prazer da malícia e da sensatez, o rouge dos lábios tão presente em sua boca e risada etéreas, pulsante nos trabalhos objetos da artista. Não importa, eu amo! (1994), não apresentado nessa exposição mas contido em eumuseu e referencial de sua poética, ecoa voz e grafia que desvelam a necessidade de se doar atenta ao mundo, à redoma das coisas e sentimentos, ao vislumbre do horizonte que aconchega e engana. O corpo de Rosana Paste é território poético. Em o corpo, trabalho de 1998, seus pés, nariz, boca, seios, vulva e marcas respondem ao tempo que esculpe as medidas de sua existência. O título Se eu não tivesse nascido, à página 14 de eumuseu, reverbera as indagações de cada detalhe do ar que penetra, da razão que pressiona. Essa busca e pesquisa do mundo é sugerida em DoNa rosana (2014), uma cadeira quase impossível de se sentar que nos coloca no porquê do tempo e num desejo de criança: agir o presente, minha possibilidade de estado incerto entre o real e o imaginário.

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Texto Crítico sobre a artista Rosana Paste por Renan Andrade

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O gesto me basta

Fico a me perguntar a forma para escrever sobre um artista e sua poética sem falar-lhe, quando

minha proximidade com ambos se daria, naturalmente, com idas e vindas de e-mails - daqueles

que nos fazem lembrar como é trocar cartas - ou por uma direta conversa ou contato telefônico.

Essas ocasiões não ocorreram e, no debruçar na obra que a mim chegou e na memória que

habito de conversas e escritos da artista que me restam, coloco-me na prepotência e na margem

ao erro de dizer e contar - brevemente - sobre o gesto de Rosana Paste. Afinal, a reflexão que

parte de um trabalho artístico, parafraseando Moacir dos Anjos, "é um ato que se destina,

portanto, a um inevitável fracasso, e cujo praticante não pode almejar mais do que, a cada nova

tentativa de realizá-lo, "falhar melhor" e de modo mais afirmativo e claro"1.

Lembro-me de uma conversa para um vídeo2 entre o crítico Frederico Morais e o artista Cildo

Meireles, quando se questionavam sobre o que é mais importante: o artista e a obra ou apenas a

obra? Concordando com Frederico, mas também não discordando de Cildo, penso que tanto o

artista quanto a sua obra são fatos inegáveis para a fruição de seus contextos, que se

retroalimentam.

Rosana, em sua obra-publicação eumuseu rosana paste, revela lúcida o imbricamento entre seu

trabalho de arte e sua vida como mulher e como artista. Essa nuance, que perpassa – se não toda

– a sua poética, é assunto que diz tanto do seu eu que, caso sua trajetória não a fizesse artista,

sua vontade infinda de vida tornaria seu corpo como campo poético, um alcance do "se" na

possibilidade do olhar estético.

Entender-se como experiência artística é o pulso próprio de sua potência. Se a experiência é o

que nos passa, nos acontece e nos toca, como nos diz Jorge Larrosa3, Rosana navega na

experiência de um atravessar de afetos, em que o outro pode estar demasiadamente presente.

Como nas fotografias da série geografia genética (2013/2015), que apresentam as mãos da mãe,

do filho e da própria artista, as camadas de memórias afetivas revelam seu estado: um

corpo/tempo que não se pode lutar contra. Suas marcas são seus elos, sua história como uma

pintura em constante processo. Entre rainhas (2014) é exemplar da precisa entrega na percepção

crítica do sensível. O vermelho veludo nas pequenas cadeiras em aço, contraponto do inox

impermeável, é também o prazer da malícia e da sensatez, o rouge dos lábios tão presente em

sua boca e risada etéreas, pulsante nos trabalhos objetos da artista. Não importa, eu amo!

(1994), não apresentado nessa exposição mas contido em eumuseu e referencial de sua poética,

ecoa voz e grafia que desvelam a necessidade de se doar atenta ao mundo, à redoma das coisas e

sentimentos, ao vislumbre do horizonte que aconchega e engana.

O corpo de Rosana Paste é território poético. Em o corpo, trabalho de 1998, seus pés, nariz,

boca, seios, vulva e marcas respondem ao tempo que esculpe as medidas de sua existência. O

título Se eu não tivesse nascido, à página 14 de eumuseu, reverbera as indagações de cada

detalhe do ar que penetra, da razão que pressiona. Essa busca e pesquisa do mundo é sugerida

em DoNa rosana (2014), uma cadeira quase impossível de se sentar que nos coloca no porquê

do tempo e num desejo de criança: agir o presente, minha possibilidade de estado incerto entre o

real e o imaginário.

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É bem possível entrever em a ilha (1999) o contato de memórias entre a matéria e o imaterial.

Ao conjugar contrastes, a intimidade dessa singularidade e incoerência táteis constrói um

desconforto ao passo que um refúgio contingente. Pode-se não falar do belo estético, mas sim de

um terreno que convoca contextos: Rosana une, nesse trabalho, o chumbo à madeira

sobrevivente oriunda do mangue, o sururu da praia que rememora a maresia e seu cabelo

autorreferente. Em a ilha, os opostos não existem como no contraste de materiais que o artista

Nuno Ramos tanto endossa em sua obra. Em Rosana a união é das distâncias que o espaço e o

tempo dissolvem e que ressurgem numa efusão afetiva com o lugar.

Perceber a imagem mais nítida do afeto passível de entrega que oferece Rosana Paste é,

verdadeiramente, o caminhar em cartografias na espessura do sensível.

Renan Andrade

1 ANJOS, Moacir dos. Crítica, Moacir dos Anjos / [coordenação da série e apresentação Luiza Mello &

Marisa Mello] - Rio de Janeiro: Automatica, 2010, p. 20.

2 DOMINGO com Frederico Morais, Um. Direção: Guilherme Coelho. Matizar Produções Artísticas. Rio

de Janeiro - RJ, 2011. 60 min. Son, Color, Formato: DVD.

3 BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João

Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, n.º 19. Rio de Janeiro: Anped, 2002, p. 21.