O HÉRACLES DE LUCIANO DE SAMÓSATA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Flvia Freitas Moreira

HRACLES DE LUCIANO DE SAMSATA: O HERI MULTIFACETADO

BELO HORIZONTE JUNHO DE 2011

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FLVIA FREITAS MOREIRA

HRACLES DE LUCIANO DE SAMSATA: O HERI MULTIFACETADO

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre

rea de Concentrao: Estudos Clssicos Linha de Pesquisa: Literatura, Histria e Memria Cultural Orientador: Prof. Dr. Jacyntho Jos Lins Brando

BELO HORIZONTE JUNHO DE 2011

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Ficha catalogrfica elaborada pelos Bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG

L937h.Ym-h

Moreira, Flvia Freitas. Hracles de Luciano de Samsata [manuscrito] : o heri multifacetado / Flvia Freitas Moreira. 2011. 110 f., enc. Orientador : Jacyntho Jos Lins Brando. rea de concentrao : Estudos Clssicos. Linha de Pesquisa : Literatura, Histria e Memria Cultural. Dissert ao (m est rado) Universidade Federal d e Minas Gerais, Faculdade de Letras. Bibliografia: f. 104-110.

1. Luciano, de Sam sata. Hracles Crtica e interpretao Teses. 2. Heracles (Mitologia grega) Teses. 3. Narrativa (Retrica) Teses. 4. Deuses gregos Teses. 5. Heris Mitologia Teses. 6. Literatura grega Teses. I. Brando, Jacyntho Jos Lins. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Ttulo. CDD: 888.7

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Agradecimentos

Ao Colegiado de Ps-Graduao por propiciar um excelente espao para pesquisas, Aos professores da rea de Estudos Clssicos pelo constante apoio, Aos amigos pela presena e nimo inabalvel, minha famlia incondicional

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Se realmente desejas que te elogiem por teu estilo, bem como ser famoso entre as massas, foge e evita esta classe de expresses; comea pelos melhores poetas e os l com a tutela de mestres; passa logo aos oradores e, quando estejas familiarizado com a sua dico, muda

oportunamente para Tucdides e Plato, mas depois de ter-te exercitado muito na formosa comdia e na majestosa tragdia. Porque, uma vez que tenhas libado todas as suas belezas, sers algum nas letras. Pois agora, sem te dares conta, pareces com os fabricantes de bonecas da gora, as quais esto pintadas por fora de vermelho e azul, mas por dentro so de barro e frgeis. (Luciano, Lexfanes, 22-23.)

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Resumo

Este trabalho trata de Luciano de Samsata, escritor srio do sculo II d.C., e, especificamente, de uma de suas obras menos conhecidas: o prefcio Hracles. Nos primeiros captulos foi dada maior ateno ao escritor e a sua modalidade de escrita, s correntes filosficas e literrias a que se vinculou e ao momento histrico vivido por Luciano. O estudo da obra em questo est centrado na alterao que um heri grego, Hracles, sofrer ao ser relacionado com outras divindades: Hermes e gmio. Procede-se a um estudo do gnero do texto e apresentada traduo do mesmo, feita segundo a edio crtica de Jacques Bompaire, publicada por Les Belles Lettres em 1993. Finalmente evidenciam-se as caractersticas de cada um dos deuses que participam da constituio do Hracles gmio de Luciano, descrito no texto, bem como da tcnica usada por Luciano para mesclar os diferentes deuses.

Palavras-chave: Luciano, Hracles, prolali

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Abstract

This study analyses one of the lesser-known work of Lucian of Samsata, a syrian writer of the second century AD: the prelude Heracles. In the early chapters were given more attention to the writer and his mode of writing, the literary and philosophical currents that he is linked and the historical moment experienced by Luciano. This study is centered on the metamorphosis that the greek hero, namely Heracles, suffer to be changed into another divinity from the confluence of two gods: Hermes and Ogmios. Finally were shown the characteristics of each of the gods who participated in the formation of Heracles-Ogmios (described in the prelude) and the narratives techniques used by Lucian to amalgamate the gods. After this, the genre of the text is studied and is presented the translation of the prolali, according the Jacques Bompaires critical edition, published by Les Belles Lettres in 1993.

Key-words: Lucian, Heracles, prolali

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Sumrio

Introduo: Luciano de Samsata...........................................................................10 Captulo 1: Luciano e seu tempo.............................................................................12 1.1. Um srio no Imprio Romano...........................................................................17 1.2. A escolha dos caminhos.....................................................................................21 1.3. O corpus lucinico.............................................................................................26 1.4. Luciano e a Segunda Sofstica...........................................................................31 1.5. A escrita lucinica.............................................................................................35 1.6. A mmesis.........................................................................................................38 Captulo 2: A prolali Hracles..............................................................................41 2.1. Traduo...........................................................................................................42 2.2. O orador e seu pblico......................................................................................49 2.2.1. O estranhamento............................................................................................49 2.2.2. A soluo do enigma.....................................................................................52 2.2.3. O deus e o orador...........................................................................................54 2.2.4. O outro e o prprio........................................................................................57 Captulo 3: Deuses e heris.....................................................................................63 3.1.1. Hracles.........................................................................................................63 3.1.2. Os trabalhos...................................................................................................66 3.1.3. Deus, homem, heri.......................................................................................69 3.1.4. O heri civilizador.........................................................................................72 3.1.5. Heri desmedido............................................................................................73 3.1.6. Intelectualizao............................................................................................76 3.1.7. O Hracles de Luciano...................................................................................77 3.1.8. O patrono dos cnicos.....................................................................................79 3.1.9. Hracles-gmio.............................................................................................81 3.2. Hermes..............................................................................................................82 3.2.1. Hermes nos poemas picos............................................................................85 3.2.2. Senhor do logos.............................................................................................89 3.2.3. Hermes e a escrita.........................................................................................90 3.2.4. O Hermes de Luciano....................................................................................93 3.2.5. Hermes e o lgos em Luciano......................................................................94 3.2.6. Psicopompo...................................................................................................96 8

3.3.gmio................................................................................................................97 3.3.1. O gmio de Luciano.....................................................................................100 Concluso: de trs um..............................................................................................103 Referncias bibliogrficas.......................................................................................107

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Introduo

Este um trabalho sobre Luciano de Samsata mais exatamente sobre uma de suas mais breves obras: o prefcio Hracles. Nosso objetivo tratar de uma obra deste autor, srio de nascimento, grego por educao e cidado do Imprio Romano. Discutiremos o problema que cerca sua biografia, para o que dispomos de poucos dados, a maioria deles retirados de suas prprias obras. Para tal, utilizaremos os estudos feitos por Jacques Schwartz, Jos Alsina, Jacques Bompaire e Jacyntho Lins Brando. Teremos em vista tambm a transmisso e a primeira fortuna crtica da sua obra, com os registros da Suda e de Fcio. Procuraremos dar uma viso de alguns textos dentre a extensa obra de Luciano oitenta e seis textos conservados at os dias de hoje e que levantam grandes problemas de interpretao. O que pretendemos no mais que caracteriz-los, agrupando-os, por afinidade, em conjuntos que levam em conta a temtica e a forma de apresentao. Ser abordada tambm a escrita lucinica e sua no-adequao aos moldes vigentes em sua poca, ou seja, o seu carter inovador e variado, que impede que Luciano possa ser simplesmente enquadrado na Segunda Sofstica. Passaremos pela sua produo retrica, pelos dilogos cmicos, pela pardia, e estudaremos a relao de Luciano com a tradio da chamada stira menipeia. Para perfazer esse percurso, que tem como ponto de chegada e motivao a anlise de Hracles, discutiremos, no primeiro captulo, a forma como Luciano se insere

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em um momento e em um movimento cultural especfico de sua poca, buscando entender em que medida esta nova maneira de escrever o influenciou. O segundo captulo ser dedicado prolali Hracles. Situaremos o texto quanto ao seu gnero e suas especificidades. Apresentaremos nossa traduo e o analisaremos. No terceiro captulo, estudaremos a formao do Hracles de Luciano, descrito em Hracles como um deus celta de nome gmio. Neste ponto, demonstraremos as especificidades do personagem e evidenciaremos suas semelhanas e diferenas com o heri tradicional dos gregos. Faremos ainda um levantamento das outras aparies de Hracles em algumas das obras lucinicas e as contraporemos ao Heracles-gmio. Com o mesmo intuito, exploraremos as conexes deste ltimo com Hermes, tendo em vista a presena, nele, de traos do deus. Ao final, desejamos evidenciar o que as trs divindades tm em comum e quais das suas caractersticas foram utilizadas por Luciano na composio de seu Hracles celta.

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Captulo 1 Luciano e seu tempo

Luciano nasceu na Sria, tendo vivido durante o segundo sculo de nossa era. Sobre sua vida pouco se sabe e a maioria dos estudos que se fazem a esse respeito tm como base suas prprias obras. Do que se sabe no h consenso e seus principais bigrafos tentam delimitar as datas de nascimento e morte atravs de fatos histricos, como, por exemplo, as guerras de Marco Aurlio e Lcio Vero contra os partos. Jacques Schwartz,1 aps estudar detalhadamente fatos histricos que se podem depreender da obra de Luciano, no chega a propor uma datao exata para a vida do autor, situando o ano de seu nascimento em cerca de 119 ou um pouco mais tarde2 e a sua morte por volta do fim do reinado de Marco Aurlio. Jacques Bompaire3 localiza em 120 seu nascimento e sua morte sob o reinado de Cmodo, entre 180 e 192. Jos Alsina4 tambm tenta delimitar as datas mestras da existncia de Luciano, estabelecendo o ano de 125 para o nascimento e por volta de 192 para a sua morte. curioso que, tendo vivido e escrito tanto, Luciano no tenha recebido menes de seus contemporneos, com exceo, se a interpretao for correta, da

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SCHWARTZ, 1965, p. 9-21. SCHWARTZ, 1965, p. 14. 3 BOMPAIRE, 1993, p. xii-xv. 4 ALSINA, 1981, p. 22-27.

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que se deve a Galeno, preservada apenas na traduo de uma de suas obras para o rabe. Embora Filstrato tenha tratado, em sua Vida dos sofistas, de inmeros oradores contemporneos de Luciano, nada diz sobre ele, o que representa o silncio mais desconcertante e significativo, por duas razes: de um lado, porque a Filstrato que se deve a criao do termo segunda sofstica para caracterizar a oratria do segundo sculo; por outro lado, porque ele no considera que Luciano possa ser tido um dos integrantes desse conjunto. As demais referncias a Luciano se devem a autores cristos, a partir do sculo IV, as mais consistentes datando j da poca bizantina. Uma das mais importantes se encontra na Biblioteca de Fcio, que foi Patriarca de Constantinopla entre 858 e 886. Seu livro constitudo por anotaes de leitura, incluindo resumos e comentrios de obras. Luciano referido em mais de um ponto, sendo de se destacar que, no cdice 128, recebe uma avaliao de conjunto como no se encontra com relao maior parte dos autores abordados, mostrando como Fcio parece ter-se interessado especialmente por sua obra:

Lido de Luciano o texto sobre Falris e diferentes dilogos dos mortos e das prostitutas, alm de outros livros sobre diferentes assuntos, nos quais, em quase todos, faz comdia dos costumes dos gregos, tanto do erro e da loucura de sua fabricao dos deuses, quanto de sua irresistvel tendncia para a intemperana e a impudncia, as estranhas opinies e fices de seus poetas, a decorrente errncia de sua organizao poltica, o curso anmalo e as vicissitudes do resto de suas vidas, o carter jactancioso de seus filsofos, pleno nada mais que de hipocrisia e vs opinies. Em suma, como dissemos, sua ocupao fazer, em prosa, comdia dos gregos. Parece ser dos que no respeitam absolutamente nada, pois, fazendo comdia e brincando com as crenas alheias, ele prprio no define a que honra, a no ser que algum diga que sua crena em nada crer. Todavia, sua expresso excelente: faz ele uso de um estilo distinto, corrente e enfaticamente brilhante, mais que nenhum outro ele ama a claridade e a pureza, associadas a brilho e grandeza proporcionada. Sua composio to

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harmoniosa que parece, ao que o l, que ele no diz palavras mas uma certa melodia agradvel, sem canto aparente para os ouvidos, saboreiam os ouvintes. Em resumo, como dissemos, seu discurso excelente, mas no convm aos argumentos com os quais ele mesmo sabe que brinca, ridicularizando-os. Que ele prprio dos que no crem em absolutamente nada, a epgrafe de seu livro d a entender, pois diz assim: Eu, Luciano, isto escrevi, coisas antigas e estpidas sabendo, pois estpido tudo para os homens, at o que parece sbio. Entre os homens no h, em absoluto, nenhuma inteligncia, mas, o que admiras, isso para outros risvel.5

O comentrio de Fcio importante porque, apesar de criticar o contedo da produo de Luciano, ou seja, os temas de que ele trata, reconhece a excelncia do seu estilo. Parece-nos que Fcio leu boa parte da obra de Luciano, o que permitiu-lhe conhec-la bastante bem, permitindo-lhe a distino entre as duas esferas referidas. Separar as duas camadas do texto significa ter apreo pela literatura e no apenas julgar apressadamente um autor, o que torna valiosa a apreciao de Fcio. Como se v, ele afirma que o estilo de Luciano distinto, corrente e enfaticamente brilhante, pois ele, mais que nenhum outro ama a claridade e a pureza, associadas a brilho e grandeza. Ao afirmar tais coisas, fica claro que o autor bom em seu ofcio, tem uma escrita aprazvel e deve ser conservado e citado no nmero dos escritores ilustres. Pelas caractersticas positivas atribudas ao estilo, supe-se que Fcio recebeu de modo aprazvel os textos de Luciano que afirma ter lido, o que confirma a perenidade dos efeitos por ela pretendidos muito alm da poca do prprio autor e apesar das grandes mudanas ocorridas entre a Antiguidade tardia e a Idade Mdia bizantina. Esse fato, as qualidades do estilo, deve ser tido como uma das principais razes para a conservao, pelo que se pode

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FCIO, Biblioteca, 128. Traduo de Jacyntho Lins Brando.

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saber, da totalidade das obras de Luciano, que nunca deixaram de ser lidas, anotadas, comentadas e criticadas durante sculos a fio. J no tocante ao contedo, a apreciao de Fcio se encaminha na direo contrria, uma vez que, segundo ele, o discurso de Luciano no convm aos argumentos com os quais ele mesmo sabe que brinca, ridicularizando-os. Nada escapa de seu riso: nem os costumes, a poltica, as crenas e a vida dos gregos, nem seus deuses, poetas e filsofos. preciso salientar que, mesmo encontrandose numa poca e num mundo bastante diferentes do sculo V, Fcio grego e tem apreo pelas tradies antigas, tendo sido um dos lderes do renascimento cultural de sua poca. Portanto, em seu comentrio h um certo incmodo diante de um autor que trata de tal modo o passado de sua cultura. Todavia, se ele, no s como cristo, mas membro da mais alta hierarquia eclesistica, poderia considerar que a crtica lucinica s crenas pags seriam justificadas, o que parece incomod-lo mais que ela no se faz em nome de uma outra verdade, a do cristianismo, por exemplo, mas que Luciano parea ser algum que no respeita absolutamente nada, no dizendo a que atribui algum valor, a no ser que algum diga que sua crena em nada crer. Como se v, o problema no est em ridicularizar as crenas alheias, mas em no faz-lo em nome de alguma coisa em que se acredite. E, pelo que Fcio percebe, Luciano no cr em nada, como o epigrama do prprio autor, com que se abre sua obra, afirma. Nisso estaria a razo do incmodo que sua obra provoca no leitor. Do comentrio de Fcio o que mais nos interessa, contudo, a separao das camadas a que j nos referimos. Isso porque esse procedimento pode ser tomado como um dos mais caractersticos do modo como ele escreve e, como veremos, indispensvel para se entender o texto de que nos ocuparemos. De fato, em Hracles, apesar de sua brevidade, a mesma tcnica de sobreposio de 15

camadas que d a tnica. Isso justificaria mesmo a escolha do heri como tema, j que se trata de uma figura hbrida, a que a tradio atribuiu traos em princpio dspares, qual Luciano acrescenta novas camadas, tomadas de outras figuras, nomeadamente Hermes e o deus celta gmio. Se, por um lado, Hracles sempre forte e vestido com a pele de leo, o contedo interior do personagem que sofre as mudanas ao gosto do autor. Assim, num certo sentido, tambm em Hracles, de um modo bastante marcado, Luciano confirma o procedimento percebido por Fcio: num estilo brilhante, tecendo uma melodia agradvel, descreve um heri totalmente diferente do esperado. O heri em que os gregos viam uma parte de sua identidade manipulado de tal forma que, no fim da exposio, j no se reconhece no Hracles tradicional. Menos benevolente o verbete da Suda, enciclopdia de autor annimo escrita no sculo X, que assim resume a vida de Luciano:

Luciano, samosatense, o chamado blasfemo ou difamador ou ateu, para dizer mais porque, em seus dilogos, atribuiu ser risvel at o que se diz sobre as divindades. Era, de incio, advogado em Antioquia, na Sria, mas, no tendo tido sucesso, voltou-se para a logografia e escreveu infindveis obras. Diz-se ter sido morto por ces, posto que foi contaminado pela raiva contra a verdade, pois, na vida de Peregrino, o infame atacou o cristianismo e blasfemou contra o prprio Cristo. Por isso, tambm pagou, com a raiva, a pena devida neste mundo e, no futuro, sua herana ser o fogo eterno, na companhia de Satans. 6

O que mais chama a ateno no verbete da Suda a forma como Luciano morre: atacado por ces. Essa efabulao parece indicar o modo como os cristos que no se encontravam mergulhados num ambiente cultural como o de Fcio receberam a sua obra, entendendo como ataques suas breves e esparsas referncias ao cristianismo. possvel que se pense que o autor da Suda conte Luciano no6

Suidae Lexicon, 683. Traduo de Jacyntho Lins Brando.

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nmero dos cnicos, o que j era a opinio tambm de Isidoro de Pelusa, o prprio Luciano parecendo demonstrar simpatia por essa corrente filosfica em vrias de suas obras. Assim, poderia tratar-se de uma espcie de vingana, que lhe atribui uma morte atravs dos animais que do nome quela escola. Isso explicaria que se atribusse sua morte ao ataque de ces raivosos e, ainda mais, que seu destino fosse o fogo do Inferno, como pagamento pela raiva com que ele tratara de tudo e de todos.

1.1.

Um srio no Imprio de Roma O dado mais seguro de que dispomos sobre Luciano sua origem: ele srio, natural de Samsata, a capital da Comagena, uma regio semita que passou a pertencer ao Imprio Romano em 65 a.C.7 Portanto, quando Luciano nasce, sua ptria j pertencia h quase dois sculos ao Imprio, estando bem integrada no orbe romano. Nessa poca, Samsata era um centro comercial importante, permitindo um grande trnsito de ideias, o que possibilitou o surgimento de muitas figuras de relevo. Alm de Luciano, so srios de nascimento Mximo de Tiro, Porfrio, Jmblico, Alcfron, Don Crisstomo e os representantes da escola jurdica de Beirute.8 Como todos esses intelectuais, acredita-se que Luciano percorreu muitas regies do Imprio, incluindo a Palestina, a Jnia, o Egito, Rodes, Cnido, a Glia e a Itlia, o Ponto e Antioquia. Nesses percursos, ele entrou em contato com vrias correntes de pensamento, com diferentes instituies e costumes, com os diferentes povos que, como ele, tinha como caracterstica principal estarem sob a gide de

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ALSINA, 1981, p. 23. ALSINA, 1981, p. 11.

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Roma, embora mantendo suas diferenas. O espao em que ele se move, vive e escreve pode ser definido, no que tem de mais distintivo, como multitnico e multicultural, contando, entretanto, com dois grandes conjuntos que garantiam que fosse um e no fragmentado: no oeste, a koin latina; no leste, a grega. Mais que simplesmente uma territorializao em termos lingusticos, se trata tambm de uma partilha no sentido cultural, embora de um conjunto com inmeros pontos de comunicao, que garantiam a unidade no s poltica, como tambm em todos os aspectos da vida material e espiritual. Este um aspecto de fundamental importncia para o tema de que trataremos, pois, em Hracles, Luciano pe em cena personagens que pertencem no parte grega do Imprio, mas latina: o deus gmio e o filsofo celta que lhe explica o sentido do quadro em que o deus se representa. Trata-se de uma situao excepcional, pois, na maior parte do restante de sua obra, Luciano se apresenta inteiramente mergulhado no espao grego do Imprio, tratando de seus costumes e instituies. Portanto, perceber que viso Luciano tem de Roma e de seu poder importante para que se entenda a compreenso que ele prprio forma de si, de seu mundo e de sua obra. A posio de autor em relao a Roma e especialmente as inferncias de tal posicionamento a partir da obra Nigrino tm sido discutidas de maneira fervorosa pelos estudiosos de Luciano. No verbete dedicado a Luciano no Dictionnaire des philosophes antiques, Fuentes Gonzles resume a discusso:

A ideia de um Luciano conspirador da resistncia contra Roma, esprito profunda e violentamente inspirado por sentimentos anti-romanos (antiimperialistas), uma ideia defendida especialmente por Perreti, deve ser rejeitada, como observa Bompaire (...) mesmo se essa hiptese tenha sido retomada com vigor por Brando. De nossa parte, estamos dispostos a conhecer que preciso guardar-se de mascarar, atravs de uma viso

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puramente literria, toda a dimenso ideolgica que a obra de Luciano possa ter tido em sua poca. Dito isso, a ideia de um Luciano que, com seu Nigrino, age como ativista quase revolucionrio parece-nos muitssimo exagerada.9

Alm das opinies citadas, outros, como Jones,10 defendem que Luciano no tem inteno de criticar poltica e culturalmente o ambiente em que vive e textos como Nigrino seriam motivados por questes pessoais.11 Acreditamos que Luciano tenha reaes e opinies crticas em face do mundo em que vive e as expe em sua obra, seja de forma explcita e intencional, seja de maneira mais velada e residual. Luciano um srio helenizado. Essa informao, por si s, nos d uma ideia da sua relao com o Imprio Romano, pois se, de um lado, faz dele algum integrado na cultura dominante, por outro lado no deixa que se esquea de que ele se encontra, pelo menos na forma como se apresenta em algumas obras, como algum que nunca deixou de sentir-se parte, uma espcie de agregado. Ele vive num espao de encontros entre culturas, inserindo-se no lugar que lhe possvel, o que no configura uma situao bem definida, nem mesmo tranquila, mas um estatuto complexo que se expressa por meio de inmeras adeses e recusas. Em algumas obras transparecem as opinies de Luciano sobre o mundo em que vive, as quais podem nos ajudar a perceber como ele se situa nesse espao e tempo. Em Nigrino, narrando uma ida cidade de Roma, ele fornece algumas pistas. A obra uma carta dirigida a Nigrino, um filsofo platnico, que escolheu viver, ao invs de em Atenas, em Roma. O objetivo est em descrever como ele prprio, Luciano, se converteu de adepto da retrica a discpulo da filosofia. Um dado importante que essa converso se deu em Roma, numa ocasio em que o

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FUENTEZ GONZLEZ, Nigrinus, p.715-716. In BRANDO, 2009, p.168-169. JONES, 1986, p. 78-9. 11 Cf. BRANDO, 2009. p. 168, nota 10.10

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narrador esteve na cidade para tratar dos olhos e acabou tendo os olhos da alma abertos pelas palavras de Nigrino. Ora, essa abertura dos olhos da alma decorre da descrio que far Nigrino tanto da capital do Imprio, em que se concentra todo tipo de vcios, quanto de Atenas, idealizada como uma cidade de filsofos. Conforme suas palavras, Roma no convm para aqueles

que experimentaram alguma vez a liberdade, que conheceram a franqueza e contemplaram a verdade; ela agrada somente aos que vivem no meio da adulao e da servido, que entregaram sua alma ao prazer, que amam a riqueza, o ouro, a prpura e o poder. Suas ruas e praas encontram-se cheias de prazer para os olhos, os ouvidos, as narinas, a goela e o sexo e a busca desenfreada de prazer conduz a toda sorte de vcios, como adultrio, avareza e perjrio.12

Essa descrio pretende deixar claro que Roma no um bom lugar para os que praticam os princpios gregos da liberdade, da franqueza e da verdade, os quais encontram seu lugar prprio em Atenas, apresentada sob um prisma inteiramente positivo, inclusive quanto o lugar possvel para a prtica de uma filosofia capaz de conservar puro o carter dos homens. No caso de Nigrino, essa filosofia parece ser a platnica, tanto pela referncia a uma cidade ideal, ainda que concretizada em Atenas, quanto pela identificao da personagem como filsofo platnico. Embora esteja em Roma, Nigrino vive fora da cidade, um cidado especial, um estudioso consciente de que perpetua, em seu modo de vida e em sua viso de mundo, a herana dos antigos.13 O esplio dos antigos seria o conhecimento a respeito da filosofia, da literatura e do modo de vida grego. Luciano utiliza todo este conjunto de saberes para fazer, a seu modo, uma leitura do tema platnico da cidade ideal contraposta cidade inchada pelo luxo e pelos vcios. Porm a relao

12 13

LUCIANO, Nigrino, 15-16. Traduo de Jacyntho Lins Brando, in BRANDO, 2009, p. 170. BRANDO, 2001, p. 197.

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do escritor com esse legado se d de forma livre e independente, o que ressalta ainda mais a desenvoltura da escrita lucinica. Brando analisa assim o uso dos ideais platnicos no Nigrino:

Se a Repblica permanece como modelo do dilogo lucinico, se Plato cone de relevo no jogo de representaes que se estabelece, o platonismo, enquanto doutrina, aparece bem pouco na obra. Mais uma vez, Luciano no repete: usa da herana como herdeiro legtimo; investe-a dos sentidos pertinentes a seu tempo. No deve estranhar o leitor que os eixos se desloquem: no filsofo, reala-se a viso da cidade ideal, no contraponto com as existentes, entre as quais, com relevo, se destaca Atenas; no Nigrino, sublinha-se a luxuosa cidade existente, no contraponto com a ideal, agora identificada com Atenas.14

Luciano expressa sua opinio a respeito do Imprio e se mostra contrrio ao tipo de vida levado em Roma, que metonmia de todo o domnio romano. Mais que isso, aponta uma opo melhor, tendo por base uma construo ideal a respeito de Atenas, que ele provavelmente absorveu durante o seu processo de educao.

1.2.

A escolha dos caminhos Um texto que apresenta importantes dados para a compreenso do percurso intelectual de Luciano Um sonho, tambm conhecido como Vida de Luciano. Ainda que possa se tratar de uma pea ficcional, constitui, ao lado de Nigrino, em que ele representa, em primeira pessoa, como vimos, o que se entende que tenha sido sua converso filosofia, em plena maturidade, Um sonho narra, tambm em primeira pessoa, como, na juventude, ele teria escolhido a Paideia em detrimento da Escultura a que estava destinado pela famlia. Deixando de lado o problema de se o texto pode ser considerado efetivamente autobiogrfico, o

14

BRANDO, 2001, p. 197-198.

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tomaremos como testemunho da biografia literria que Luciano compe para si, evidenciando no s sua escolha entre dois ofcios, mas entre sua origem sria e a cultura grega. A eleio de um ofcio pautada por dois pontos: o primeiro era baseado no desejo de aprender uma arte e com isso ganhar dinheiro suficiente para a sobrevivncia; o segundo fator leva em conta o que seria mais adequado para uma pessoa livre. Tomando em considerao essas duas balizas, os pais do jovem enviam-no para a oficina do tio, a fim de que aprendesse a arte da escultura. Depois de no obter sucesso nas aulas e ainda apanhando do tio, o menino volta para a casa e busca consolo junto sua me. quando sonha um sonho to claro que em nada desmerece a realidade,15 no qual duas opes se lhe apresentam: a Paideia e a Escultura. O jovem se sentia tentado a seguir ora uma, ora outra. Cada uma das personagens tenta convenc-lo para que a siga. A personificao da Escultura usa como argumento o fato de ser-lhe familiar, pois ele pertence a uma famlia de escultores, e promete-lhe fama e estabilidade. Por seu lado, a Paideia promete que, caso se torne seu discpulo, ele adquirir grandes saberes sobre o passado e ter o esprito adornado com sensatez, justia, piedade, bondade, moderao, inteligncia, constncia, amor pelo belo e paixo pelo mais sublime.16 Depois de ouvir o discurso de cada uma delas, o jovem elege a Paideia em detrimento da Escultura. A escolha fictcia da Paideia uma imagem da escolha real que Luciano parece ter feito. A primeira analogia feita em relao Escultura e a Retrica, j que a atividade de um retor semelhante ao que propunha a representante da Escultura: o escultor tornar-se-ia famoso entre os homens, em contrapartida seria

15 16

LUCIANO, Um sonho, 5. Todas as tradues so de nossa autoria, salvo indicao em contrrio. LUCIANO, Um sonho, 10.

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sempre um trabalhador submisso a seus superiores. De forma similar, a escolha da Escultura implicaria tambm na eleio da cultura familiar, pois ao escultor dito: nunca irs a outra terra abandonando tua ptria e aos teus, e todos te elogiaro e no por teus discursos.17 Podemos depreender que, se o jovem identificado com Luciano escolhesse a arte de esculpir, estaria preso sua terra.Melhor dizendo, seria um escultor e teria meios de vida, atendendo assim o primeiro ponto que norteia a escolha do ofcio, mas estaria privado do que prega o segundo ponto: a liberdade. Ao eleger a Paideia, o protagonista se filia tradio grega, tendo em vista um grande conhecimento e a possibilidade de deixar sua terra e os seus, a crer-se no que afirma a Paideia:

no sers desconhecido ou ignorado em terra estrangeira. (...). E quando, por alguma casualidade, pronunciares um discurso, a maioria te escutar de boca aberta, espantando-se e felicitando-te pela fora de teus argumentos, bem como a teu pai, por sua boa sorte. Dizem que alguns dos homens chegam a ser imortais (...), pois, ainda que te afastes da vida, nunca deixars de estar em contato com os homens com cultura e em companhia dos melhores.18

Como se v, aquele que se dedica Paideia poder ser conhecido e admirado tambm em terra estranha, e estar prximo do conhecimento dos grandes homens do passado, isto , ter acesso ao cnone. Foi esta a escolha de Luciano, que saiu da Sria e se helenizou, atravs da Paideia. Significativamente o ltimo exemplo fornecido pelo texto o de Scrates, que tambm seguiu primeiro a Escultura e depois se voltou para a Paideia, obtendo sucesso indiscutvel e fama imperecvel.

17 18

LUCIANO, Um sonho, 7-8. LUCIANO, Um sonho, 12.

23

Passemos agora a outro texto, Dupla Acusao, em que Luciano parece querer representar mais uma escolha, a do Dilogo em substituio Retrica. A situao apresentada na obra a de um tribunal em que ocorrem vrios julgamentos, com todos os elementos necessrios para isso: Zeus patrocina-o, a Justia preside-o e Hermes faz o papel de promotor. Aquele que ser julgado uma personagem denominada Srio, que podemos identificar como uma representao ficcional do prprio Luciano. Do que ele acusado de infidelidade. A Retrica se diz trada pelo Srio e afirma que ele a abandonou aps ela ter dele cuidado, desde quando era jovem, inclusive incluindo-o fraudulentamente entre os gregos. Aps a longa exposio de tudo que fez pelo rtor srio, ela finalmente o acusa de ajuntar-se de forma indecente ao Dilogo, e descreve as mudanas pelas quais ele passara:

Em vez de expressar o que quer em voz alta, entretece e recompe em slabas umas frases curtas, as quais dificilmente poderiam se motivo, para ele, de um elogio unnime ou uma ovao; o que se observa, da parte do auditrio, apenas um sorriso e um sacudir as mos dentro dos limites, assentir um pouco com a cabea e referendar as palavras com um ligeiro suspiro.19

O mais surpreendente, contudo, que, por seu lado, o Dilogo tambm acusa o Srio de agravos e desprezo, pois os altos assuntos que antes o interessavam foram trocados por matrias rasteiras e comuns maioria. Segundo suas palavras, o Srio o prendeu

com o gracejo, o jambo, o cinismo, upolis e Aristfanes, homens terrveis em satirizar as coisas mais graves e em ridicularizar o que correto; finalmente, tendo desenterrado um certo Menipo um daqueles antigos ces que ladra muito e, ao que parece, mordaz tambm introduziu-o em mim,

19

LUCIANO, Dupla Acusao, 28.

24

um tipo amedrontador, como verdadeiro co, o qual morde em segredo, uma vez que rindo que, ao mesmo tempo, morde.20

Apresentados esses argumentos, o Srio se defende contestando um de cada vez. Contra a acusao de haver trado a Retrica, ele afirma que ela sim que o trara, pois se agora entregava a todos que a procuravam e por isso no era mais digna como no tempo em que se revestia de moderao.21 Acrescenta ainda que, para ele:um homem j de quase quarenta anos, era melhor ver-me livre daquela confuso dos processos judiciais e deix-los aos membros do jri, evitando acusaes de tiranos e elogios de magnatas, e, no caminho da Assembleia ao Liceu, dar um passeio em companhia do melhor homem, o Dilogo, discutindo tranquilamente, sem necessidade alguma de elogios nem de aplausos.22

Quanto ao Dilogo, diz o Srio que ele, antes, era antiptico e fastidioso, por andar nas nuvens, entregue a assuntos sem nenhuma relao com a vida, motivo por que o trouxe para o cho, mais prximo dos homens, e o forou a sorrir para que fosse mais grato aos espectadores. Para conseguir isso, fez com que trocasse a mscara trgica que antes usava por outra, cmica e satrica, quase ridcula, mais prxima do cinismo de Menipo que dos detalhes de Plato, por exemplo. Pelo exposto, fica claro que, no Srio, Luciano representa algo de si, principalmente pela temtica da escolha que parece ter feito j na maturidade, quando teria abandonado a carreira de rtor para dedicar-se ao dilogo cmico, que constituiria a mais importante de suas invenes. A representao dessas escolhas, contudo, tem ainda um outro sentido: ainda que trocando a terra natal pela paideia grega, ele nunca deixou de se sentir um srio helenizado, o que se confirma pela20 21

LUCIANO, Dupla Acusao, 33. Traduo de Jacyntho Lins Brando, in BRANDO, 2001, p.116. LUCIANO, Dupla Acusao, 31. 22 LUCIANO, Dupla Acusao, 32.

25

prpria representao de si enquanto tal, num dilogo de maturidade como Dupla acusao; do mesmo modo, ainda que abandonando a retrica pela filosofia, como ele representa tanto em Nigrino como em Dupla acusao, no se pode dizer que se tenha tornado inteiramente filsofo, nem que tenha abandonado inteiramente a retrica. Portanto, a apresentao ficcional de cada escolha vale menos enquanto expressa abandonos e adeses, que na medida em que nos apresenta Luciano como algum que, tendo parte em culturas, disciplinas e gneros de discurso diferentes, leva adiante um projeto prprio cuja principal marca a diversidade.

1.3.

O corpus lucinico Luciano escreveu muito e textos muito diferentes entre si, como diatribes filosficas, cartas satricas, tratados didticos e pardias dos clssicos gregos. A ele so atribudos oitenta e seis obras, embora se discuta a autenticidade de alguns textos, tema que foi estudado mais profundamente por Jaques Bompaire. No entraremos nesse mrito, porque o texto que nos interessa no tem sua autenticidade posta em dvida. As obras de Luciano podem ser separadas em trs grandes grupos, como faz Jos Alsina,23 segundo o qual a classificao pode ser feita pela temtica ou pela forma. Levando-se em conta a temtica, as obras podem ser divididas como se apresenta em seguida. As obras de carter retrico seriam aquelas mais claramente sofsticas, dentre as quais se destaca Elogio da mosca, em que se mostra toda a capacidade retrica de nosso autor, pois ele consegue tecer elogios mosca atravs de uma escrita perfeita e com grande habilidade argumentativa. Outro tipo de obras

23

ALSINA, 1981, p. 30-31.

26

retricas so as cfrases ou descries , como em Dipsadas, dedicada a uma exposio, maneira de Herdoto, da fauna curiosa do deserto da Lbia. Ainda neste grupo esto as chamadas prolalia, que so as pequenas peas introdutrias, como Hracles, nas quais, segundo Bompaire,24 Luciano excelente. Esse tipo de texto costuma ser includo no conjunto de obras escritas aps 157, na segunda metade da carreira de Luciano, quando ele deixa o trabalho de sofista,25 embora a retrica ainda subsista nos opsculos, porm de forma mais velada. Os textos da segunda fase abarcam temticas variadas e passam a ser mais artificiais tanto no estilo, quanto pelo contedo. Aqui cabe recordar a observao de Fcio, que separa estilo e contedo, a qual parece ecoar na apreciao de Bompaire, segundo o qual Hracles brilhante quanto ao estilo, de uma virtuosidade incontestvel,26 mas, quanto ao contedo, uma obra de interesse menor.27 J as obras de carter satrico e moralizante abrangem textos de vrios gneros, como Nigrino, em que se representa uma possvel converso de Luciano filosofia, e se discute tambm a loucura humana, o orgulho e a corrupo de costumes.28 O exame dos disparates humanos ainda feito nos dilogos menipeus, dos quais os dois principais representantes so Icaromenipo e Necromncia. No primeiro narrada a anbase de Menipo, que voa at a Lua em companhia de Hermes e chega manso dos deuses, fazendo crticas aos filsofos, a seus pretensos conhecimentos e escolas. No segundo, temos a catbase do mesmo Menipo, quando ele passeia pelo Hades acompanhado por Tirsias e descreve o que v, fazendo uma dura crtica contra os filsofos e os ricos.

24 25

BOMPAIRE, 1993, p. XVIII. BOMPAIRE, 1993, p. XVIII 26 BOMPAIRE, 1993, p. XIX. 27 BOMPAIRE, 1993, p. XVIII. 28 ALARCN, 1981. p. 110-111.

27

Os dilogos de tendncia menipeia so aqueles que trazem caractersticas da escrita de Menipo, como os motivos e os tipos. Uma marca da escrita chamada menipeia a mistura de prosa e verso,29 com grande diversidade de citaes e trechos parodiados dos autores cannicos, como Homero e Eurpides, recurso bastante recorrente na obra de Luciano. Apesar de ele se utilizar dos motivos menipeus em algumas de suas obras, o nosso autor d a eles uma unidade e um ritmo, um tom, uma substncia que lhe so prprias,30 ou seja, Luciano tem um estilo pessoal que torna legtimas suas criaes, com suas lies morais, inseparveis da fantasia, da stira e do humor. Exemplo disso o dilogo Galo, cuja temtica novamente a crtica riqueza e a exaltao do modo de vida dos cnicos. A obra lana mo de um entrecho fantstico, as sbias lies de um galo a seu amo, um sapateiro com sonhos de riqueza, a ave revelando-se, na sequncia do dilogo, nada menos que uma das metempsicoses de Pitgoras, alm de ter experimentado tambm muitas outras vidas anteriores, o que a pe em condies de garantir a seu dono, na linha da crtica dos cnicos riqueza, que a melhor das existncias aquela regulada pela simplicidade. H ainda aqueles textos que poderamos chamar de discursos de atualidade, nos quais so tratadas questes relativas contemporaneidade do escritor e apresentados fatos e personagens que viveram na sua poca. Dentre os discursos da atualidade podemos destacar algumas obras que seriam em alguma medida autobiogrficas, como Nigrino, Apologia e Tu s um Prometeu em teus discursos. Nesta ltima, Luciano explica o verdadeiro sentido de sua inveno literria: o dilogo cmico, produzido pela mistura do dilogo socrtico com a comdia.

29 30

BOMPAIRE, 1993, p. XXI. BOMPAIRE, 1993, p. XXI.

28

Um importante representante desse grupo Alexandre ou o falso profeta, por muitos considerada a derradeira obra de nosso autor. O texto constitudo por uma carta endereada ao epicurista Celso, tendo como tema as falcatruas de Alexandre de Abonotico, que, para conseguir riqueza, funda um orculo e explora sem nenhum escrpulo a credulidade no s das pessoas comuns, ganhando a confiana at de altos funcionrios de Roma, como um certo Rutiliano, que, tornando-se seu mais fervoroso devoto, termina por lhe dar a prpria filha em casamento. A morte de Peregrino, endereada ao cnico Crnio, e tem carter biogrfico, pois narra de maneira parcial a vida do personagem-ttulo, que, dentre outras, coisas seguiu o cristianismo por um tempo e se fez queimar vivo durante os jogos olmpicos de 165. Ambas as cartas tratam de temas de interesse pessoal de Luciano e expressam suas opinies, na maior parte das vezes, segundo Bompaire, de maneira agressiva.31 Finalmente, nesse conjunto cabe ainda o tratado Como se deve escrever a histria, dirigido a Flon, em que Luciano tece uma stira ferina contra os historiadores gregos que se dedicavam a adular os vencedores romanos, por ocasio da guerra contra os partos, apresentando ainda preceitos sobre como a histria deveria ser escrita com verdade, iseno e justia. Se tomamos a forma como critrio para classificar as obras de Luciano, podemos perceber que prevalecem os dilogos. Eles podem ser breves conversas entre poucos personagens, sem nenhuma introduo, como so os Dilogos dos mortos, um conjunto de trinta conversas sem nenhum prefcio ou mesmo alguma indicao de quem so os personagens e de onde ocorrem os debates. Neles esto presentes os temas menipeus e o aspecto informal no tocante transio entre os dilogos, de forma que cada uma das conversas se aproxima bastante do formato dos mimos.31

BOMPAIRE, 1993, p.XVII.

29

Os chamados pastiches jurdicos so aqueles em que o estilo e contedo nos remetem aos tribunais e julgamentos, e as personagens se portam como se estivessem no diante do jri. Nestes textos, geralmente divindades e homens divergem sobre algum assunto e, ao fim do julgamento, so promulgados decretos dos deuses contra os filsofos ou os falsos deuses, ou dos deuses subterrneos contra os ricos.32 Exemplos de tais pastiches so Zeus confundido, Fugitivos, Timo e Dupla acusao. Alguns dilogos so de cunho filosfico, seguindo os moldes de Plato. Um exemplo Hermtimo, em que se discutem os muitos caminhos religiosos e filosficos existentes e a postura dos homens diante da brevidade da vida e do pouco que se pode conhecer de tantos sistemas. Outros, como Os retratos e Dilogos das Cortess, tm um contedo mais direcionado recreao literria. So marcados pela cfrase e pelo elogio de figuras conhecidas. J em outros tipos de dilogo h alguma introduo e o texto adquire caractersticas de um drama em miniatura,33 como o caso de Assembleia dos deuses e Zeus trgico. Neles, os personagens no apenas conversam. Eles seguem um programa e poderamos dizer que atuam como numa encenao teatral. Como aponta Alarcn,34 o dilogo contm vrias citaes de poetas e de tragedigrafos, imitaes de passagens importantes da literatura lrica e dramtica, e usa tpicos j conhecidos, tomados sobretudo da tragdia, numa sequncia de passos, quais sejam: a convocatria da assembleia dos deuses e a exposio dos motivos que os trazem ali; a discusso ou agn; e a concluso. H ainda duas narrativas ficcionais em prosa, que podemos entender como autnticos romances ou pardias de romances: Narrativas verdadeiras e Lcio ou o32 33

BOMPAIRE, 1993, p. XXIII. ALSINA, 1981, p. 31. 34 ALARCN, 1981, p. 326-328.

30

asno. A segunda explora a situao extraordinria em que o protagonista Lcio, que fala em primeira pessoa, descreve sua experincia de ter-se transformado num burro, conservando contudo a inteligncia humana e passando pelas mais estranhas aventuras; a primeira constitui uma ampla pardia das narrativas fabulosas devidas a antigos poetas, historiadores e filsofos, em que Luciano, que se apresenta com seu prprio nome como o protagonista das aventuras mirabolantes, narradas em primeira pessoa, descreve uma viagem lua, a vida no interior de uma baleia, uma visita Ilha dos Bem-aventurados, usando da mais absoluta liberdade de criao.

1.4.

Luciano e a Segunda Sofstica Um tema que ocupa muito os comentadores a relao de Luciano com a Segunda Sofstica, diante do silncio de Filstrato, a que j nos referimos. Embora no se possa afirmar que Luciano se enquadre nesse movimento hegemnico em sua poca, preciso ter em vista que se trata do ambiente intelectual em que ele vive e escreve. No se trata, assim, de entender sua produo como caudatria de seu meio, mas de perceber como ela se ope e dialoga com ele. A Segunda Sofstica constituiu uma escola retrica que buscava escrever de acordo com os cnones do perodo clssico, nos termos do que se costuma chamar de aticismo. Entende-se por aticismo a busca de uma pureza lingustica e estilstica que retoma como padro os escritores mais antigos, em especial aqueles dos sculos V e IV a. C., como Demstenes, Pricles, Hiprides, squines, Lsias, Iscrates, Plato, Aristteles, Tucdides e Xenofonte.35 Conforme declara Filstrato na Vida dos Sofistas, no se trata de simplesmente repetir o que teria sido a primeira sofstica, cujo ponto de partida era Grgias, mas de dar continuidade a uma segunda sofstica, cujo iniciador se reconhece em squines, que viveu

35

BOMPAIRE, 2000, p. 89.

31

tambm nos sculos V-IV a. C., mas fundou uma nova tradio oratria. Afima ele, logo no prefcio de seu livro:A antiga sofstica, mesmo quando prope temas filosficos, acostumou-se a discuti-los difusa e longamente; pois ela discursava sobre a coragem, sobre a justia, sobre heris e deuses, e como o universo foi feito em sua presente forma. Mas a sofstica que a seguiu, que no devemos chamar de nova, pois velha, mas de segunda, esboou os tipos do homem pobre e rico, de chefes e tiranos, e manipulou argumentos que so relativos a temas definidos e especiais, para os quais a histria mostra o caminho. Grgias de Leontino fundou a forma mais velha na Tesslia, e squines, filho de Atrometo, fundou a segunda, depois que foi exilado da vida poltica em Atenas e tornou-se conhecido na Cria e em Rodes; e os seguidores de squines manusearam seus temas de acordo com as regras da arte, enquanto os seguidores de Grgias o fizeram como bem entenderam.36

Ainda que a definio proposta por Filstrato seja bastante limitada, restringindo-se a caractersticas de temas e estilos de oratria, a crtica contempornea tende a dar uma abrangncia maior ao movimento, considerando que ele abrange o chamado renascimento grego do segundo sculo, acontecido sob a gide de imperadores filo-helnicos como Adriano, Antonino Pio e, sobretudo, Marco Aurlio. Conforme Pernot:

A Segunda Sofstica no se limitava admirao pelo passado e pelas funes oficiais exercidas pelos sofistas. Ela comportava tambm formas de devoo ntimas e exacerbadas, experincias de misticismo, um modelo de holy man dotado de poderes sobrenaturais, toda uma cultura filosfico-religiosa, relaes com o platonismo, com o judasmo e o cristianismo, e ainda uma prtica literria rica e diversificada, que se estende, para alm do discurso retrico, poesia, autobiografia, epistolografia, narrao dos sonhos, ao romance.37

36 37

FILSTRATO, Livro I, 481. In WRIGT, 1921. Traduo de Carlos Eduardo de Souza Lima Gomes. PERNOT, 2006, p. 30.

32

Segundo o mesmo estudioso,38 o movimento aticista buscava, alm do uso de uma lngua literria apurada, tambm a incluso de autores de origem brbara no universo da cultura de expresso grega. Noutros termos, esses escritores de origem diversificada, que todavia adotaram a paideia grega, com a imitao dos antigos procurariam constituir para si mesmos um lugar legtimo ao lado dos grandes autores do passado. Conforme Ipiranga Jnior:

para os gregos, na verdade, o mundo da pica seria o de um passado numa distncia absoluta, isolado que estava da contemporaneidade, do tempo do escritor e de seus ouvintes. A viso de mundo da pica fornece as origens, a arkh, o princpio que consolida e unifica a cultura. A cultura seria o fundo, o reservatrio de mitos e lendas, um espao de mortos, dos que passaram, do passado. Para um grego ou helenizado, a experincia da cultura, da paideia, no pode deixar de ser uma experincia de catbase, de descida (...), de um aventurar-se tambm no passado pico e heroico.39

Assim, procede-se a uma atualizao de temas, personagens, fatos e costumes do passado. Segundo Mestre,40 a Segunda Sofstica foi tambm uma forma de as elites gregas marcarem sua presena no Imprio Romano, buscando a manuteno da cultura grega41 atravs da figura de heris civilizadores como Hracles e Teseu. Como um grupo dominante na cena cultural, cujo trao principal estava no uso da lngua grega, na sua variante aticista, tanto nas situaes quotidianas quanto na literatura, eles buscavam criar para si e para os seus uma identidade helnica; ou seja, escrever em tico e buscar o passado e o cnone do quinto sculo so formas de legitimao no contexto do Imprio Romano. No mais na gora, mas na escola, o conhecimento antigo ser aprendido atravs do que foi escrito sob a forma de manuais, mtodos e tcnicas. Nesse

38 39

PERNOT, 2000, p. 191. IPIRANGA JNIOR, 2000, p. 104-105. 40 MESTRE, 2003, p. 435. 41 MESTRE, 2003, p. 438.

33

perodo, a filosofia e a retrica passaram a ser vistas como complementares, especialmente a partir do edito de 74, de Vespasiano,42 que concedia privilgios especiais aos gramticos e aos rtores. Neste momento tambm foram criadas ctedras de retrica pagas pelo Estado, j que a essa disciplina vista pelo Imprio como instrumento poltico e social. No h dvida de que Luciano deve ter seguido as vrias etapas desse sistema escolar, estabelecido desde o incio do perodo helenstico e na sua poca referendado pela administrao romana. Na escola, ele teria passado por todos os nveis previstos para a formao do orador, envolvendo leituras, estudo de tratados sobre a arte oratria, exerccios preliminares de vrios gneros, tais quais repetio, composio sobre um tema obrigatrio, s vezes defendendo, ora acusando, discusso sobre qualquer assunto moral, descrio, demonstrao ou refutao de causas imaginrias, num processo de formao que tinha como objetivo que, ao final, o orador estivesse completamente apto a defender ou atacar qualquer causa. Esse percurso formativo deixou marcas claras na produo de Luciano, especialmente no grupo de obras que, acima, inclumos nas de tendncia retrica, incluindo aquela que nosso objeto, o prefcio Hracles. Contudo, diferentemente de muitos de seus contemporneos, preciso reconhecer que Luciano foi alm do que previa sua formao, no se reduzindo a ser um simples orador. Isso embora, pelo que se pode deduzir de algumas obras, como o prprio Hracles, que parece ter sido composto quando ele j se encontrava numa idade avanada, ele nunca tenha deixado a atividade de apresentao de discursos de carter epidtico, mesmo quando, aps declarar que trocara a retrica pela filosofia, provavelmente na maturidade, passa a dedicar-se

42

LESKY, 1995, p. 867.

34

principalmente composio de seus dilogos cmicos e de experincias ficcionais mais ousadas, como Narrativas verdadeiras.

1.5.

A escrita lucinica Luciano, em seus escritos, procura antes de tudo reviver os princpios da Grcia clssica, no escrevendo na lngua falada em seu tempo, mas como se fazia nos sculos V e IV a.C. Nesse momento, a literatura est centrada na releitura ou reescrita dos clssicos, de maneira que no importa tanto que mito ou fato se v abordar, e sim como ser abordado, pois a mitologia, a histria e as tradies j eram conhecidas da maioria das pessoas cultas, de modo que a nfase maior se pe nos recursos utilizados para dar nova vida aos diferentes temas. Como resultado dos preceitos aticistas e da sua formao cultural ampla, a escrita lucinica ser entrecortada por aluses a outros autores, s vezes de forma explcita, outras vezes de uma forma residual e natural. Em Hracles esto presentes, como em boa parte da obra de Luciano, vrias citaes de Homero, uma de Eurpides e outra de Anacreonte. Dessa forma fica demonstrado que Luciano conhece muito bem as obras clssicas e sabe como utiliz-las para criar uma nova escrita num contexto, j bem diferente do daqueles outros escritores, renovando os gneros literrios com que trabalha. Alm de influenciado pela Segunda Sofstica, Luciano tambm e principalmente conhecido por ser um escritor de stiras menipeias. Embora muito pouco se saiba sobre o prprio Menipo de Gadara, um escravo srio, conterrneo, portanto, do nosso autor, que teria sido um dos mais eminentes representantes da escola cnica, a tradio lhe atribui a autoria de treze livros sobre a ignorncia dos homens e a inutilidade da filosofia.43 Suas obras no chegaram at ns, mas temos

43

ALARCN, 1981, p. 407.

35

notcia de que suas stiras eram caracterizadas por algumas aes realizadas por filsofos, tais quais as viagens celestes, os banquetes, os leiles pblicos e viagens a mundos subterrneos, entre outros. Tais elementos podem ser encontrados na obra do samosatense: as viagens celestes descritas em Icaromenipo, a caracterizao de seres de outros planetas em Narrativas verdadeiras, o banquete em obra homnima, os leiles em Leilo de Vidas, e as viagens a mundos subterrneos nos Dilogos dos mortos. A stira menipeia caracterizada por ser uma mistura de elementos srios e cmicos, que se chama, na lngua grega,44 de spoudogeloon, um gnero que explora intencionalmente a juno do riso com temas graves. Caracteriza-se tambm por pardias e certo fundo edificante, peculiares da literatura cnica, bem como a quebra de hierarquias e de valores e pela inverso dos mesmos, levando a um rebaixamento e a uma igualao das pessoas, desprezando para isso seus ttulos e condies econmicas. Exemplo desse tipo de texto a obra lucinica intitulada Dilogos dos Mortos. A pardia, em Luciano, amplamente utilizada, e no s nos textos com tendncia menipeia, tendo como finalidade tanto criticar o modo de escrita que era utilizado por aqueles que contavam histrias fantsticas como se fossem verdadeiras, quanto deixar expresso seu reconhecimento para com a grande literatura do passado. De acordo com Bakhtin, um autor pode usar o discurso de um outro para os seus fins, pelo mesmo caminho que imprime nova orientao semntica ao discurso que j tem sua prpria orientao e a conserva. Sendo esse movimento que configura a pardia, esse discurso (...) deve ser sentido como o de um outro e em um s discurso ocorrem duas orientaes semnticas, duas vozes.45

44 45

BRANHAM, in MATUREM, 2009, p. 131. BAKHTIN, 1981, p. 189.

36

Um exemplo desse uso est presente em Narrativas verdadeiras, em que so feitas crticas aos procedimentos dos narradores das literaturas de aventuras. O tom parodstico fica evidente na forma do texto e em recursos como o prembulo, as hiprboles e as frmulas estereotipadas.46No prefcio se faz um pacto ficcional com o leitor explicando o objetivo com o qual se escreveu o texto e deixa claro que sero contadas mentiras, mas de modo convincente e verossmil, como convm a uma leitura de evaso. No caso de Narrativas Verdadeiras so apresentadas duas vozes: uma que est no incio do texto e tem a funo de apresentar a obra aos leitores e deixar claro que mente, mas ao menos assume a mentira; e outra que adota o papel de narrador e personagem da viagem empreendida e no mede esforos para descrever os lugares incrveis em que esteve. Na sua tentativa de escrever como escreviam seus antecessores, tendo Menipo como arqutipo, Luciano criou o dilogo cmico, em que une a comdia ao j conhecido dilogo filosfico, dando uma nova forma e funo ao gnero, at ento mais conhecido pelos escritos platnicos. Este recurso ser utilizado na literatura cmica, satrica e retrica, no s por Luciano, mas pelos outros sofistas. Segundo Ipiranga Junior,47 a prosa lucinica tanto se distinguiria da poesia anterior pica, lrica, teatro quanto manteria uma relao de alteridade com os outros discursos em prosa histrico, filosfico, retrico, mdico etc., formando o que podemos chamar de um mosaico da realidade vivida pelo autor no seu tempo. A escrita de Luciano de Samsata no distinta apenas para ns. Em seu tempo j provocava reaes variadas. Filstrato, em sua Vida dos Sofistas, no inclui Luciano em nenhuma das dez categorias em que dividiu e organizou os

46 47

ALARCN, 1981, p.176-177. IPIRANGA JUNIOR, 2000, p. 6.

37

sofistas de seu tempo. Um possvel motivo para isso poderia residir no fato de que a escrita de Luciano no poder ser reduzida a um dos modelos descritos por Filstrato. A escrita lucinica emblemtica e pe atritos em questo48: seja entre o novo e o velho, o helnico e o brbaro, seja entre os gregos do segundo sculo e do passado; por isso to representativa de seu tempo.

1.6.

A mmesis A escrita literria que vigora no perodo Imperial est baseada na tradio dos textos dos sculos anteriores. Trata-se de uma relao com a memria e na qual a palavra tem valor de verdade quando usada por certos grupos de pessoas incumbidas de trabalhar com o lgos. Esta relao j ocorria no perodo helenstico no tocante poesia oral. Na ocasio o poeta detinha a condio de portador da verdade altheia em detrimento do esquecimento lthe.(...) na extensa antiguidade que se prolonga desde a poca dos poemas homricos at fins do sculo VI, a ideia de altheia entrosa-se diretamente ao culto da memria, tomada como palavra do que e do que foi, palavra intemporal disposio dos videntes, o adivinho, o sacerdote, e o poeta, que, a partir deste, assegurar o louvor ou o oprbrio, a lembrana ou o esquecimento dos heris. Enquanto oposta a Lthe, Altheia uma palavra unvoca, desconhecedora das sombras e, como tal, bloqueadora de qualquer reflexo sobre a mmesis.49

A partir da concretizao da escrita e da possibilidade de efetivamente retomar o que j havia sido registrado surge o conceito de mmesis, que ser modificado ao longo do tempo e de acordo com as correntes filosficas em vigor. Filsofos como Grgias, Plato e Aristteles estudaram a natureza da mmesis. O conceito no atinge apenas a mimese retrica que est diretamente ligada escrita,

48 49

MESTRE, 2003, p. 437. LIMA, 1980, p.13.

38

mas amplo e considera as outras artes como a msica e a pintura que tambm utilizavam os processos mimticos. Aristteles dedicar os captulos de 1 a 5 da Potica ao estudo da mmesis, nos quais se pode depreender que a sua concepo ser diferente das anteriores.Se para Grgias a mmesis era insignificante e para Plato condenvel,50 para Aristteles o conceito ser positivo.(...) embora o Estagirita tenha usado mimesis a partir do contexto platnico, sua acepo diferir a partir mesmo de sua distinta base ontolgica. Assim como a forma se realiza na concreo da matria, assim a mimesis se cumpre na concreo de um mmema. Mais do que nunca, mimesis no pode ser tomada como imitatio. Vramos que isso no seria correto sequer em Plato, pois a imagem no o duplo da coisa a que se refere e porque incapaz de representar as Ideias. (...) Em Aristteles, ao invs, a mimesis partilha das leis que governam a physis, uma potencialidade (dynamis) que explode em um produto (ergon).51

A mmesis52 foi entendida por Bompaire como uma referncia ao patrimnio literrio.53 A escrita mimtica conduziria imitao retrica ou literria, por isso o escritor usa o recurso da mmesis para encontrar nos livros o que enriqueceria ou corrigiria a sua prpria escrita, numa atitude de emulao e admirao pelo autor tomado como modelo. Tal recurso no consiste em copiar o antes escrito, mas em tomar para si o estilo de um determinado escritor para, a partir da, criar o prprio texto.

(...) A mmesis exprime em seu sentido comum a ao de reproduzir as caractersticas de qualquer coisa ou de qualquer um, de representar a realidade em seu sentido mais amplo, inclusive seu aspecto acerca do tempo, a atualidade. O imitador aquele que copia seu objeto, sem que o imitador e o

50 51

LIMA, 1980, p. 46. LIMA, 1980, p. 47. 52 BOMPAIRE, 2000, p. 123-152. 53 BOMPAIRE, 2000, p. 63.

39

objeto possuam um vnculo necessrio com a arte, sobretudo com a arte de escrever.54

A tcnica de escrever segundo os princpios da doutrina retrica da imitao j estava presente em Dioniso de Halicarnasso e, conforme Bompaire,55 teve uma longa existncia latente depois da poca clssica grega, como vimos nas conceituaes de Plato e Aristteles. Era conhecida tanto na literatura grega quanto na latina, pois fazia parte do sistema de ensino como consequncia da leitura e da crtica56 que se pode fazer tanto da literatura contempornea como da literatura dos sculos anteriores. A imitao pode dar-se de diversas formas, desde a imitao do passado at a imitao de aes e personagens trgicas das quais se copiava o gnero, o nome, a ao. Porm o resultado da mimese ser outra obra, com referncias primeira mas distinta daquela, pois uma atualizao na qual esto includos outros elementos que fazem parte do conhecimento de mundo do autor da mimese. Na obra de Luciano a mimese est sempre presente, embora em graus variados, dependendo do texto e da tcnica de composio utilizada. Um exemplo Alexandre, em que a mimese comea pelo modelo utilizado: Luciano escreve seu texto como se fosse uma tradicional correspondncia dirigida a Celso, que seria o autor de Contra Orgenes.

54 55

BOMPAIRE, 2000, p. 21. BOMPAIRE, 2000, p. 26. 56 BOMPAIRE, 2000, p. 59.

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Captulo 2 A prolali Hracles

O Hracles de Luciano um prlogo, em grego, prolali, modelo de texto que, segundo Branham,57 interessante no apenas como exemplo excelente, tpico da retrica, mas tambm como mostra do objetivo esttico da escrita lucinica. No perodo Imperial o pequeno opsculo geralmente utilizado na abertura necessrio como texto independente por causa de sua funo social. Embora se relacionem a outros discursos, as prolalia em si so produes literrias autnomas; essa a marca de uma faceta literria mais profissional, pois o prefcio ganha autonomia e passa a ser uma importante parte da exposio de um sofista, pois tinha a funo de introduzir o tema a ser discutido e de despertar a ateno do pblico. Numa assembleia de cidados cultos e letrados, os prembulos passam a ser elementos ilustrativos e/ou estimulantes para discutir uma determinada temtica. Nesse contexto Luciano conhece seu pblico e sabe que ele consistir num grupo de pessoas educadas segundo o estudo dos textos clssicos58 e conhecedoras da mitologia e suas representaes. Sabe tambm que, apesar disso, pode chegar a um equilbrio entre o conhecimento do passado e uma nova temtica, bem localizada no presente, a partir do que j era familiar ao seu pblico.

57 58

BRANHAM, 1939, p. 38. CABRERO, 2006, p. 14.

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Em Hracles esto presentes, como em boa parte da obra de Luciano, vrias citaes de poemas homricos, das tragdias e de poesia lrica. As menes a estes textos ocorrem pelo fato de a prolali ser uma pardia, no sentido defendido por Karavas,59 ou seja, uma obra na qual a capacidade de utilizar textos j conhecidos com uma finalidade diferente e atualizada dos mesmos valorizada. Na prolali de Luciano so reconhecidos os elementos caractersticos desse tipo de narrativa curta, que costuma trabalhar com mitos ou descries, a obra em pauta sendo mistura de gneros, em que esto presentes a narrao digesis e a descrio kphrasis. Um trao importante do prlogo a relao com a audincia, pois, por tratar-se de tema conhecido, diramos de domnio pblico, o orador ter que ser muito eficiente e possuir grande capacidade de persuaso para conseguir convencer os ouvintes, o que no nos parece ter sido um obstculo para Luciano. Em Hracles o heri, conhecido de toda a audincia, aparecer, nas palavras do orador, primeiro com o que tem de mais peculiar: a fora, as vestes, as armas. Depois ser descrito como o mais estranho dos seres ao perder seu principal atributo e ser adjetivado exatamente pelo que lhe menos caracterstico: a eloquncia.

2.1. Traduo Segue a nossa traduo do texto grego, de acordo com a edio de Jacques Bompaire, publicada pela Belles Lettres em 1993.

1. 1. Os Celtas chamam Hracles de , gmio no idioma do pas, e a imagem

59

KARAVAS, El orador-cisne: Luciano, la retrica e los rtores, 2006, p. 159.

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do deus pintam muito diferente. Para . eles um velho, est nas ltimas, calvo , , na fronte, totalmente grisalho nos

, cabelos restantes, a pele enrugada e queimada at a negritude como so as dos velhos marinheiros: mais pensarias

ser Caronte ou algum Jpeto dos que esto de debaixo do Trtaro; qualquer

um que, por comparao, no seja . Hracles. Sendo assim, tem, ao mesmo tempo, a vestimenta de Hracles, pois revestido pela pele do leo e tem na mo direita a clava, a sacola de flechas suspensa de lado e mostra o arco teso na , mo esquerda, , 2. . 2. e sem dvida Hracles nisso tudo. E ' eu acreditava ento que era por

insolncia para com os deuses gregos que os celtas cometiam estas

arbitrariedades na pintura de Hracles, , vingando-se na representao, porque , certa vez percorreu a terra deles, fazendo pilhagem, quando, procurando . o rebanho de Gerio percorreu a maior

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parte dos povos do Ocidente. 3. 3. No entanto o mais extraordinrio da imagem ainda no disse: pois aquele velho Hracles arrasta pelas orelhas grande nmero de homens, todos

. presos. As cadeias so cordas finas de ouro e mbar aos trabalhados mais belos

semelhantemente

. ' colares. E, apesar de serem conduzidos por cadeias assim to fracas, no

, , desejam a fuga, que conseguiriam facilmente, nem de todo resistem, ou com os ps nem apoiam em sentido , contrrio do transporte, agitando-se. Pelo contrrio, seguem serenos e

, jubilosos. Todos de bom grado louvam - seu condutor, apressam-se todos e, por , quererem adiantar-se, relaxam a cadeia, . dando a entender que ficariam irritados

, se fossem soltos. O que me pareceu mais extraordinrio de tudo no

hesitarei tambm em dizer: pois no , tendo o pintor onde ligar a extremidade , das cordas, j que Hracles levava a , clava na mo direita e, na esquerda, o

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arco, furou a ponta da lngua do deus e , o fez conduzi-los a partir daquela. Alm . do mais, ele se volta para os que conduz e sorri. 4. ' 4. Por muito tempo permaneci olhando estas coisas, cheio de admirao,

desconcerto e indignao. Um celta que , estava ao lado, no ignorante das nossas

coisas, como demonstrou tendo falado

,, , , perfeitamente o grego, um filsofo, , , , penso, com relao s coisas da ptria eu a ti, estrangeiro, digo, desatarei o

. enigma da pintura, pois me pareces muito perturbado por causa dela. A eloquncia, ns, os celtas, no

, ' , pensamos como vocs, os helenos; acreditamos que ela seja um Hermes, . , assimilamo-la a Hracles porque ele de longe muito mais forte que Hermes. , No admires que seja representado , velho: pois a eloquncia gosta de exibir plenamente seu vigor apenas na velhice, , se falam a verdade vossos poetas, por

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. um lado as mentes dos jovens so inconstantes60, por outro a velhice tem , algo mais sensato a dizer juventude61. Por isso da lngua de vosso Nestor flui o , mel, e os oradores de Troia lanam uma voz de lrio62, pois lrios se chamam, 5. , . 5. se bem me lembro, essas flores. Se, pois, o velho, este Hracles a Eloquncia puxa os homens presos , pelas orelhas sua lngua, no te , admires, conhecendo o parentesco das orelhas com a lngua. No um ultraje ' contra ele se a tem perfurada. Lembro, , disse ele, uns jambos de comdia que , , aprendi de vs, que dizem que, com

' , relao aos tagarelas, a lngua de todos . perfurada na ponta.

6.. ' 6. Em suma julgamos que Hracles realizou tudo pela eloquncia, por ser sbio, e venceu sobretudo pela

, persuaso. As flechas dele so palavras, . penso , agudas, certeiras e rpidas e , , que ferem as almas. Vs dizeis tambm

60 61

HOMERO, Ilada, III, 108. EURPIDES, Fencias, 530. 62 HOMERO, Ilada, III, 152.

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que as palavras so aladas.

. 7. . 7. Isso disse o celta. E quando eu pensava comigo mesmo sobre esta , apresentao aqui hoje, se me fazia bem em, nesta idade e h muito tendo interrompido as apresentaes pblicas, de novo submeter-me ao veredicto de , tantos juzes, por lembrar

oportunamente do quadro. Pois at , agora tenho medo de que a algum de vs tenha dado a impresso de agir de ' , forma totalmente pueril, querendo ser jovem apesar da idade, e de que algum , rapazinho entendido em Homero me , censurasse dizendo sua fora foi

, dissolvida e a rdua velhice te , alcanou, fraco agora teu servo, . ' lentos teus cavalos63, lanando-me isso , na cara. Mas quando me lembro daquele Hracles ancio, me sinto estimulado a tudo fazer e no tenho vergonha de ser ousado sendo da

63

HOMERO, Ilada, XIII, 103 ss.

47

8. . 8. mesma idade que o personagem do quadro. De forma que dou adeus , , fora, rapidez, beleza e todos os bens , corporais, e teu Eros, poeta de Teos, vendo meu queixo grisalho, voe para , longe, se quiser, nos ventos de asas de . ouro. Hipoclides no se inquietar. Com eloquncia agora seria bem possvel ' rejuvenescer, florescer, voltar

, plenitude da vida e arrastar pelas , orelhas o maior nmero de pessoas e lanar muitas flechas, sem nenhum

. pavor nem que sua sacola se tenha . esvaziado sem que se percebesse. Vs como me consolo da minha idade e da minha velhice! Por isso tive a coragem

de arrastar o barco encostado h tanto tempo e de novo lan-lo ao meio do . ', , ' mar. Que sejam, deuses, certos os , ventos para ns, pois agora mais do que nunca necessitamos de um vento que , , infla as velas, favorvel e

, companheiro64 para que algum, se nos , mostramos dignos, nos diga aquele

64

HOMERO, Odisseia, XX,149.

48

.

verso homrico que coxa mostra o velho sob seus farrapos!65

2.2.

O orador e seu pblico O prlogo em questo constitudo principalmente por uma descrio kphrasis de uma pintura vista na Glia. A princpio, a simples viso da obra de arte causa no espectador curiosidade e espanto. Trata-se da representao de um Hracles brbaro, descrito por um brbaro. Luciano explora um aspecto diferente allkoton do deus, pois se trata de um velho e, relaciona-a com uma divindade celta pouco conhecida, o brbaro gmio. O efeito que se busca, portanto, o de mostrar um heri grego fora de casa, fora do seu local de culto, mas no menos conhecido e respeitado. A obra possui um carter poltico evidente pois alguns imperadores, especialmente Cmodo, usavam a imagem do heri para fazer propaganda de si e da ao imperialista romana. Para Arantes Junior,66 a descrio do Hracles-gmio seria uma encruzilhada cultural, pois, ao mesmo tempo em que confirma a associao de Hracles com o poder de dominao de Roma, faz tambm uma crtica ao uso que o imperador fazia do mito.

2.2.1.

O estranhamento Analisemos pargrafo a pargrafo as cenas descritas em Hracles. Na

primeira parte temos a imagem do Hracles celta, que apresenta muitas diferenas em relao ao heri tradicional.

65 66

HOMERO, Odisseia, XVIII, 74. ARANTES JUNIOR, 2008, p.118 e seguintes.

49

Os Celtas chamam Hracles de gmio no idioma do pas, e a imagem do deus pintam muito diferente. Para eles um velho, est nas ltimas, calvo na fronte, totalmente grisalho em quanto resta dos cabelos, a pele enrugada e queimada at a negritude, como so as dos velhos marinheiros: pensarias ser um Caronte um Jpeto ou algum dos que esto debaixo do Trtaro mais que Hracles.67

Essa representao inicial do heri que jamais envelheceu como um velho decrpito tem como propsito despertar a curiosidade do pblico e prender de imediato sua ateno, o que demonstra a habilidade do orador. Esse tipo de recurso, que trabalha com o estranhamento do que prprio, dos mais caractersticos da potica de Luciano, e pela aproximao de traos em princpio incompatveis que ele frequentemente no s elabora suas personagens, como, inclusive, os gneros que explora, a exemplo do dilogo cmico. Apresentar Hracles como velho a uma audincia grega seria algo equivalente a pintar, por exemplo, para um pblico cristo, Jesus como ancio e no na fora da idade. Mais ainda, como se trata de uma cfrase, o recurso e a surpresa que ele provoca so superlativizados, pois como o prprio Luciano declara no prlogo A sala, o efeito da experincia visual supera em muito o discurso, a no ser que se alie quela e busque nela fazer-se mais forte.68 Observa-se, neste mesmo sentido, que os traos caractersticos de Hracles que se apresentam a seguir so tambm os iconogrficos e no alguns dos episdios de suas faanhas transmitidos pelos discursos de poetas e prosadores. Noutros termos: se Hracles realizou muitos feitos esse foi diferentemente retratado em prosa e verso, sua identidade se define pela pele de leo, a clava, a sacola de flechas e o arco. Bastam esses elementos para se garantir que se trata de Hracles, mesmo que estejam eles postos num corpo que nada tem a ver com o67 68

LUCIANO, Hracles I. LUCIANO, A sala, I.

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heri. O efeito de estranhamento que se obtm, de fato, decorre dessa discrepncia entre o corpo e seu revestimento e todo o texto ser elaborado pela explorao de aparentes descompassos entre forma e contedo. Provocada a surpresa inicial com a simples descrio da imagem muito diferente , literalmente, uma forma muito outra, o narrador passa para a busca de uma explicao que produz um efeito retrico de retardamento. Ele sabe como agir, no entregando ao pblico tudo o que sabe, como aconteceria se prosseguisse de imediato na descrio da pintura. Com efeito, o desvio deixa o quadro e traz cena um episdio das histrias sobre Hracles, a saber, o seu trabalho de busca dos bois de Gerio. Trata-se, evidentemente, de uma justificativa simplria, baseada em uma possvel vingana dos celtas contra o deus, com a qual o orador finge ignorncia, conduzindo seu auditrio, de modo que continue a raciocinar com ele. Na sua simplicidade, a tese da vingana no explica nada, mas mostra, ao mesmo tempo, que no em outros discursos, mas na prpria imagem, que se encontra a chave para sua compreenso. Esse interldio aparentemente apaziguador apenas refora o que h de mais paradoxal : a multido puxada pelas orelhas, atada ponta da lngua de Hracles por finas cadeias de ouro e mbar. Mesmo que ainda de trate da cfrase do quadro, esse novo dado introduz na cena um trao episdico, pois apresenta Hracles como se estivesse realizando um de seus trabalhos e, como nos demais conhecidos do pblico, enfrentando perigos. De fato, a iconografia do heri explora a representao visual de entrechos de sua mitologia, pois o carter de Hracles depende inteiramente de seus feitos. Ele no se fez famoso pela beleza, ou pelos dizeres ou por qualquer outra coisa que no fosse a ao. Ele representa, enfim, o heri que age, em geral sob o comando de outros, sem necessidade de que ele prprio justifique por qu. Em resumo: Hracles equivale a ao, no sendo de 51

estranhar que toda sua saga se organize em torno de seus trabalhos. Nesse sentido, a ao que no quadro se apresenta, alm de inteiramente nova e entendida como paradoxo, porque no envolve violncia, mas um domnio que se faz estranhamente da boca para os ouvidos, do mesmo modo que do quadro para os olhos, o inusitado trabalho de Hracles prende o espectador.

2.2.2.

A soluo do enigma At esse ponto o que se tem a descrio do narrador grego, que est no

pas dos celtas e v o quadro e ento interfere:Ento, um celta que estava ao lado, no ignorante dos nossos costumes, como demonstrou ao falar perfeitamente grego, um filsofo, penso, com relao s coisas da sua ptria, disse desatarei para ti, estrangeiro, o enigma da pintura, pois me pareces muito perturbado em face dela. 69

De novo se procede a uma mudana de rumo na exposio, pela introduo dessa personagem, o celta no ignorante de nossos costumes , que fala grego e d a impresso de ser um filsofo (...) com relao s coisas de sua ptria . De um lado, portanto, h a constatao de que a estranheza do quadro s poder ser esclarecida por um estrangeiro, mais ainda, brbaro, que, contudo pode faz-lo porque circula entre dois mundos: a sua ptria e a do narrador. Sem essa mediao de um sbio brbaro, o enigma permaneceria sem soluo, mas necessrio que esse sbio seja um filsofo a filosofia sendo um dos elementos que mais distinguem os gregos, no espao multicultural do Imprio Romano pois, do contrrio, ainda que ele fosse o mais sbio dos sbios, de nada adiantaria seu saber.Quando ele expe em grego para o narrador, o sentido da pintura, procede a uma autntica traduo, tanto por falar grego, quanto69

LUCIANO, Hracles. IV.

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no sentido de que traduz o que o quadro significa, o que fica claro quando, para fazer-se entender prope a correspondncia entre o Hermes grego e o Hracles celta. Ressalte-se ainda que introduzir essa personagem no relato, alm do colorido que d ao estilo, pela reproduo de seu discurso que confere profundidade ao prlogo, provoca uma interessante inverso de papis: o narrador, que via com olhos gregos o deus estrangeiro, agora tratado como estrangeiro . Antes, na nica tentativa de entender o quadro, ele apelava para o mito grego relativo ao episdio de Gerio, ou seja, quis ler o outro pelos padres do prprio. Na relao de que agora se estabelece, uma vez que nomeia tanto o hspede quanto o anfitrio, o filsofo celta demonstrar muito mais abertura, como se constata pelo esforo de traduzir, em termos compreensveis para um grego, os elementos iconogrficos do quadro: a) Hracles equivale ao Hermes grego, pois representa o ; b) ele no pode ser jovem, como entre os gregos, pois a fora do exibe seu apogeu s na velhice, como garante o Nestor de Homero; c) quem vence no a fora bruta do Hracles grego, mas o poder do que o Hracles celta detm. Um elemento que parece de grande importncia a relao entre lngua e ouvido. Evidentemente, de uma perspectiva ingnua, se poderia pensar que o sucesso de um estaria na capacidade de quem fala. Todavia, o que parece que se sugere que isso tambm depende das capacidades de quem ouve. A multido que se prende lngua do deus, com efeito, entrega-se a ele sem opor resistncia, ou seja, mostra-se receptiva com relao ao . Saliente-se que a finalidade da prpria prolali, pelo menos daquela prolali que atinge seu 53

objetivo, ou seja, fazer com que a lngua seja parente do ouvido, criando o canal de comunicao entre os dois rgos. As cadeia de ouro e mbar simbolizam visualmente, portanto, esses canais um recurso que, hoje, poderia parecer extremamente atual, pois remete a uma espcie de telecomunicao.No se deve pensar que as finas correntes tenham como funo prender fisicamente a multido o que faria sentido caso se tratasse do Hracles grego, que inteiramente e s ao pois a forma como age o diferente.Ele igualmente poderoso e at mais poderoso que os atos, pois prende de um modo mais duradouro, uma vez que, passada a superfcie do corpo, atinge, pelos ouvidos, a alma.Sem dvida estamos diante de um Hracles psicagogo, condutor de almas, e, portanto, se poderia dizer que ele tambm filsofo.Assim, as flechas que ele atira so como as palavras aladas de Homero, as quais voam da boca ao ouvido e efetivamente uma representao pictrica dessas palavras aladas que se tem diante dos olhos, num novo movimento de traduo. 2.2.3. O deus e o orador No stimo pargrafo a palavra, que antes estava com o celta, retomada pelo narrador grego e este se coloca no presente da enunciao. A partir da faz uma reflexo sobre sua idade avanada e busca justificar sua atividade oratria atravs da lembrana do Hracles celta.E quando eu pensava comigo mesmo sobre este prlogo de hoje, se seria bom, nesta idade e h muito tendo interrompido as apresentaes pblicas, de novo submeter-me ao veredicto de tais juzes, ocorreu-me lembrar oportunamente do quadro. At agora, portanto, estava com medo de que, a algum de vs, eu parecesse faz-lo de forma totalmente pueril, querendo ser jovem apesar da idade, e de que algum rapazinho entendido em Homero me censurasse, dizendo: sua fora foi dissolvida, a rdua velhice te alcanou, fraco agora teu

54

servo, lentos teus cavalos, e lanasse-me isso na cara. Mas quando me lembro daquele Hracles ancio, sinto-me estimulado a tudo fazer e no tenho vergonha de ser ousado sendo da mesma idade que o quadro.70

Enquanto o celta falava sobre a eloquncia e sobre o Hracles hbil no manejo das palavras, o narrador grego pensa em si mesmo e em sua carreira como retor. Temos a impresso de que ao ouvir palavras to positivas sobre o poder da persuaso , o grego deseje ser ele o sujeito da ao de vencer tudo pelas palavras. Para isso havia traado uma estratgia, que consistia em levar os ouvintes a acreditar que ele, mesmo velho, nas ltimas, calvo na fronte, totalmente grisalho no que resta dos cabelos, e com a pele enrugada ainda pode se submeter ao juzo de uma plateia. Seguindo o seu projeto para conquistar a benevolncia do pblico, o narrador buscou a assimilao a Hracles, j que ele um heri conhecido e cultuado como um deus. No entanto no ser ao heri tradicional que se dar a assimilao. Ser ao Hracles dos celtas, ou seja, a um heri que , a princpio, o famoso filho de Zeus, mas que possui outras caractersticas que sero trabalhadas pelo narrador para que o novo heri seja adequado a sua finalidade. Sero feitas mudanas no que concerne a: a) idade, j que Hracles descrito em idade avanada; b) origem, pois Hracles est associado ao pas dos celtas; c) principal identificao do heri, que passa da fora fsica fora das palavras.

70

LUCIANO, Hracles, 7.

55

No conjunto essas trs mudanas permitiram a modelagem de uma nova divindade e, consequentemente, a aproximao do narrador a ela. Mas para que a identificao do narrador grego com Hracles seja efetiva, antes necessrio ressaltar a identificao entre o autor, Luciano, e o narrador grego, j que esse tambm estaria velho, estrangeiro e est h muito tempo sem pronunciar discursos. Segundo Schwartz,71 a prolali teria sido escrita em 175 d.C., poca em que Luciano j era velho e teria voltado a pouco para Atenas, depois de sua estada no Egito. Comecemos pela idade: Hracles sempre representado jovem e vigoroso, sempre forte. No prlogo em questo ele est descrito como velho para que possa ocorrer uma maior identificao com o narrador, j que este, efetivamente, est nas ltimas e quer se mostrar ainda capaz de conduzir a alma da plateia, assim como o seu Hracles conduz a alma dos homens. Com relao origem, ocorre uma tripla identificao, pois tanto o autor Luciano estrangeiro, quanto o narrador grego, quanto o heri, que est posto longe de sua terra, entre os celtas. Por mais que Hracles seja conhecido e cultuado, est fora do seu domnio e seu culto s possvel quando incorporado aos ritos e divindades locais. A ltima modificao a que mais ser desenvolvida no texto. Trata-se de dar a Hracles o poder das palavras, substituindo suas armas tradicionais pela oratria, dando condies ao heri de ser agora senhor do . Feitas as mudanas necessrias, o narrador/autor j preparou o pblico para lev-lo a refletir em consonncia com suas palavras e a julgar favoravelmente o prlogo que acaba de ser construdo e tambm a apresentao do srio que h

71

SCHWARTZ, 1965, p. 128-129.

56

muito tendo interrompido as apresentaes pblicas, de novo se ps sob veredicto de juzes.De forma que dou adeus fora, rapidez, beleza e todos os bens corporais, e teu Eros, poeta de Teos, vendo meu queixo grisalho, voe para longe, se quiser, nos ventos de asas de ouro, pois Hipclides no se inquietar. Com a eloquncia agora seria muito possvel rejuvenescer, florescer, voltar flor da idade e arrastar pelas orelhas o maior nmero de pessoas e lanar muitas flechas, sem nenhum pavor de que minha sacola se tenha esvaziado sem que eu percebesse. Vs como me consolo da minha idade e da minha velhice! Por isso tive a coragem de arrastar o barco encostado h tanto tempo e de novo lan-lo no meio do mar. Que sejam, deuses, certos os ventos para vs, pois agora mais do que nunca necessitamos de um vento que infla as velas, favorvel e companheiro, para que, se nos mostramos dignos, algum nos diga aquele verso homrico que coxa mostra o velho sob seus farrapos! 72

Na ltima parte do prlogo o narrador se mostra convencido de que apesar da idade capaz de rejuvenescer, florescer, voltar flor da idade e arrastar pelasorelhas o maior nmero de pessoas. Finalmente, feita uma apologia eloquncia e

o narrador se consola de sua velhice por se considerar preparado para voltar plenitude da vida e rejuvenescer atravs da eloquncia, tal qual o heri da exposio que acabara de fazer e por isso pode retomar seu ofcio de retor.

2.2.4.

O outro e o prprio

Pode-se dizer que o instrumento principal da construo do prlogo de Luciano est na explorao de vrias formas de alteridade, a qual consiste, conforme a formulao de Hartog,73 na ausncia aparente de fronteiras, mas, ao mesmo tempo, na confirmao evidente tanto da fronteira quanto da distncia. No72 73

LUCIANO, Hracles, 8. HARTOG, 1999, p. 97.

57

se trata de um recurso exclusivo do texto de que tratamos, mas que se expande consideravelmente por toda a obra de Luciano, ele prprio um brbaro helenizado:

Ele o brbaro helenizado que, sado da Sria, cuja populao na sua maior parte parece ter sido semtica, foi um escritor de grego. Assim como os gregos esto deslocados de seu tempo, presos Antiguidade Clssica, o srio helenizado Luciano se desloca da lngua e cultura prprias de sua regio. 74

Por ser um viajante, algum que est em constante trnsito, o autor pode nos levar a percorrer um espao de alteridade junto ao heri grego e, ao mesmo tempo, nos aproxima do celta que faz a exegese do quadro. Ambos, ou melhor, os trs, autor, heri e exegeta, encontram-se numa relao de alteridade. A partir da conscincia da diversidade dos personagens, o autor trabalha o que h de diferente no Hracles celta. Afinal, o que faria com que um grego que participasse do auditrio do samosatense reconhecesse e ao mesmo tempo desconhecesse aquele seu to familiar heri? Conforme Hartog, um dos mecanismos mais caractersticos para se elaborar um discurso sobre o outro constitudo pela inverso:

Dois exemplos mostram a que ponto ela [a inverso] constitui uma tentao sempre presente para a narrativa que pretendia dizer o outro: num primeiro momento, levanta-se a diferena; num segundo momento, ela traduzida ou apreendida pondo-se em ao um esquema de inverso. (...) Quando se trata dos costumes, a diferena transforma-se em inverso. Alm disso, o enunciado tem pretenses de universalidade: a inverso mede-se com relao ao resto do gnero humano. 75

74 75

IPIRANGA JNIOR, 2000, p. 44. HARTOG, 1999, p. 230.

58

Pela negao Luciano faz o heri mostrar-se diferente o suficiente para ser reconhecido como um grego. Ao dizer que Hracles, chamado gmio pelos celtas, pintado de forma diferente, o que se torna evidente o que ele tem de igual, de grego. Da mesma forma, fica