O Homem do Teto - Frank Pires

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1 Frank Pires

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Conheça a história fascinante de Alberto, o homem que morreu e teve um destino inesperado: nem o céu, nem o inferno e muito menos o purgatório. E sim, o teto de seu quarto. Vendo e ouvindo tudo o que se passava em sua casa, sem no entanto ter sua presença notada por ninguém, acompanhe com Alberto o desenrolar dessa trama no mínimo curiosa: habitar o teto do quarto.

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Frank Pires

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O HOMEM DO TETO

Frank Pires

2013

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Agradecimentos

Quem escreve um livro tem sempre uma dívida de

gratidão com um grande número de pessoas. Por isso,

expresso meus sinceros agradecimentos a todos que, de

alguma forma, colaboraram para a realização deste

livro, em especial ao grande amigo, Jornalista Walrimar

Santos, Assessor de Comunicação da Polícia Civil do

Estado do Pará, pela gentileza, pelo apoio e incentivo a

todas as minhas aventuras como escritor.

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“A liberdade é um cachorro vira-lata.” (Millôr Fernandes)

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“E se o dia acordar cinzento, a gente pinta o céu de

azul-felicidade e pinta um arco-íris no cantinho de cada

página.” (Karla Thayse Mendes)

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À minha linda esposa Elziane Pires,

grande lutadora, eu dedico meus

livros e meu sincero amor.

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Capítulo I

__Alberto! Alberto! Acorda por favor. Acorda

meu amor. Não faz isso. Alberto! Alberto!

Não sei dizer como isso aconteceu comigo. Era

uma madrugada chuvosa e lembro-me de ter ouvido o

barulho gostoso de chuva caindo próximo a janela do

meu quarto até umas duas da madrugada.

Acordei minha mulher só para reclamar de dor de

cabeça. Coisa de marido carente, mas a dor realmente

estava muito forte. Depois, lembro-me de ter tomado

dois comprimidos de um analgésico e deitei de novo.

Olhei para minha Silvana, mas ela voltara a

dormir toda encolhida, alisei sua fronte, beijei-a na testa

e adormeci. Há muito tempo não me sentia tão tranquilo

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ao dormir. Era um sono profundo e arrebatador. Foi

quando acordei assustado com os gritos de Silvana.

__ Alberto! Alberto! Acorda por favor. Acorda

meu amor. Não faz isso. Alberto! Alberto!

Não dava para eu entender quase nada do que ela

falava e o quarto estava ainda escuro. Porém havia

algo estranho naquilo tudo. As palavras proferidas por

ela começavam a se decifrar na minha mente sonolenta e

senti como se não estivesse na cama.

__ Alberto! Alberto! Acorda por favor.

__ O que foi Silvana? __ Perguntei, tentando

entender tudo aquilo.

__ Silvana! Silvana! __ respondi pra ela.

A luz do quarto acendeu e foi aí que tudo

começou a fazer sentido ou ficar confuso. Sei lá.

Um clarão de luz me cegou por alguns instantes.

Eu podia ouvir mais vozes no quarto, eram meus filhos,

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Amanda e Paulo, aquele clima de desespero, de gente

chorando, telefonando pedindo socorro.

Quando abri os olhos, minha primeira visão foi

uma cena que só podia ser sonho. Não tinha outra

explicação para o que eu estava vendo naquele momento.

Era algo estarrecedor, além da imaginação: eu podia ver

minha cama, e nela, minha mulher chorando e gritando,

agarrada ao meu corpo, imóvel, estático e pálido.

Era como se o “eu” que estava no teto, estivesse

suspenso no ar, flutuando por sobre a nossa cama. E lá

do alto eu podia me ver. Só podia ser um sonho, ou

melhor, um terrível e inimaginável pesadelo.

Fechei os olhos novamente, abri e nada. A visão

era a mesma, Amanda não se continha e se abraçou com

Silvana. Vi quando Paulinho alisou meus cabelos.

Meu filho andava de um lado para o outro do

quarto com o telefone na mão.

__ Paulo! Paulinho meu filho, eu to aqui em

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cima. Olha pra cá. Aqui em cima. Filhão, to aqui!

Nada disso era suficiente e eu sabia que algo

estava muito errado naquilo que eu estava presenciando.

Eu simplesmente estava no teto do meu quarto, olhando

pra baixo e vendo minha linda família em desespero pelo

que parecia ser a minha morte. Mas eu sabia que não

estava morto, estava acordado e vivo. Pelo menos eu

achava que sim.

Fechei os olhos mais uma vez, e dessa vez com

mais força e disse a mim mesmo: “agora eu vou acordar

desse pesadelo”.

“Acorda Alberto! Acorda Alberto! Acorda!”.

Eu dizia para mim mesmo em pensamentos,

insistia, insistia e me concentrava para acordar. Porém,

de nada adiantou essas tentativas de despertar.

Acho que eu abri e fechei os olhos umas trinta

vezes, sem sucesso. Olhei de novo pra baixo e vi o

desespero de minha esposa, o que me fez tentar confortá-

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la. Seu desespero também me fez desesperar e eu

comecei a repetir:

__ Silvana meu amor. Olha pra cá! To aqui em

cima. Tá tudo bem. __ Eu gritava forte.

Minha filha se ajoelhou ao lado do meu corpo e

nessa hora minha garganta ficou seca. Fiz um

tremendo esforço tentando fazer com que ela me ouvisse.

Tentei sair do lugar onde estava, mas não conseguia me

mexer, eu me sentia paralisado.

Eu podia ouvir o pranto das pessoas que eu mais

amava e isso estava me torturando, me enlouquecendo.

Como eu podia estar no teto do quarto? Como fui

parar lá? E se era um sonho, por que não conseguia

acordar? Eu pensava.

Fui tomado por uma angústia horrível, vendo

minha família em prantos por mim.

Nesse momento concentrei meus esforços

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mentais para me convencer que tudo era um sonho,

fechei os olhos mais uma vez e fiquei assim por horas.

Acho que de alguma forma adormeci.

Não sei ao certo quanto tempo fiquei nesse

estado, mas quando despertei pude ver que minha

realidade era sombria: eu continuava no teto.

Acordei no exato instante em que os paramédicos

ainda faziam um último esforço para me fazer voltar e

em seguida puseram meu corpo em uma maca e o

levaram.

Minha mente era um turbilhão de imagens,

emoções e sentimentos. Uma grande confusão estava em

minha mente estava me levando a um estado de loucura.

Foi quando me desliguei um pouco dos meus

familiares e comecei a pensar no que poderia ter

acontecido comigo. Alguma coisa deve ter dado

errado.__pensei.

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A gente ouve falar de céu, de inferno, de

purgatório, de limbo e até de alma penada, mas nunca

ouvi dizer que alguém morreu e ficou grudado no teto do

quarto.

Aparentemente, a impressão que eu tinha, era que

justamente isso tinha acontecido comigo.

Eu estava literalmente e inacreditavelmente

grudado com as costas no teto do quarto, com o olhar

fixo para baixo. Pensei em rastejar de costas até outro

cômodo da casa, mas não conseguia sequer me mover.

__Deus! Cadê você? Tem alguém aí em cima? Eu

morri? Ninguém vem me buscar? Isso é horrível! Não

quero ver isso! Alguém! Me tira daqui! __ Eu gritei e

repeti várias vezes essas frases, algumas até desconexas e

cada vez eu gritava mais alto, porém não era ouvido por

ninguém.

Minha mente confusa imaginava o que podia ter

dado errado na minha viagem ao mundo espiritual, se é

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que havia um “mundo espiritual” me esperando, porque

naquele momento eu só tinha sido apresentado ao

“mundo do teto”.

Talvez eu estivesse diante de um erro de

percurso, um atalho errado, uma parada pra reabastecer.

Só sei que nem o paraíso e muito menos o inferno

era ali.

Conclusão óbvia: Eu não chegara ao meu destino.

Não concluíra a minha jornada.

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Capítulo II

Quando minha mulher entrou no quarto,

sozinha, roubou toda a minha atenção. Cabisbaixa, com

os olhos vermelhos de tanto chorar, inconsolável. Abriu o

lado do guarda roupa onde meus pertences pessoais

estavam, pegou uma de minhas camisas e levou ao rosto.

Eu podia ouvir o soluçar da minha amada esposa.

A vontade de abraçá-la era tanta que não me controlei e

comecei a chorar de novo. Dessa vez, não era mais um

choro contido, e sim um choro de dor, como criança

mesmo.

Silvana, minha mulher, era uma pessoa

extraordinária, estávamos casados há dezenove anos e foi

muito difícil ter de vê-la nesse estado, sofrendo tanto.

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Eu não parava de pensar nas coisas que ela teria

que fazer sozinha, sem mim.

Como empresário, eu sempre fiz tudo do meu

jeito, controlando todas as ações e decisões, poupando-a

de maiores preocupações e aborrecimentos, de se

envolver nos negócios e agora... eu estava...morto.

Nunca pensei na morte como algo real, que

estivesse por perto, muito menos que morreria jovem. Na

verdade, eu vivia pensando em realizar coisas nos anos

futuros, como viajar somente nós dois para uma segunda

lua de mel. Não havia em mim preocupação com o tema

“morte”.

É claro que eu tomava precauções com relação a

segurança pessoal e até ia regularmente a consultas

médicas, realizava exames com frequência, mas nada

além do normal.

Acho que eu sempre fora da seguinte linha de

pensamento: “quando chega a sua hora, o avião cai em

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cima da sua casa e só morre você”.

Por isso, talvez, não esperasse morrer. Não assim:

dormindo.

Eu era até certo ponto despreocupado, não

pensava de forma negativa. Eu sempre tivera saúde. Já

tinha feito “eletro”, “eco”, “esteira”, “ultrassom” e até a

tal da “endoscopia”, todo tipo de exames, até com certa

regularidade.

Quando eu completei 40 anos, lá estava eu

fazendo exame de próstata. Nunca me descuidei.

É claro que às vezes eu cometia certos abusos,

uma picanha gorda aqui ou um pernil ali, mas eu achava

que estava bem. Pelo menos eu morri de morte

“morrida” e não de morte “matada”. Pensei.

O fato é que eu estava morto na flor dos meus 45

anos. Como diria o meu amigo de “bola”, o Tobias: “o

homem trabalha, trabalha e trabalha e na hora de gastar

o dinheiro, morre”.

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Grande Tobias! Um gênio! Pensei.

Tobias devia estar lá no meu enterro. Aliás, deve

ter dado muita gente no meu enterro, afinal de contas,

sou muito querido, não tenho inimigos.

O fato de eu ter morrido dormindo deve ter

despertado a curiosidade de todo mundo, ainda mais os

vizinhos e conhecidos ou mesmo os funcionários e os

parentes mais distantes. Eu até posso imaginar o que eles

devem estar comentando sobre o que teria acontecido:

“Será que foi infarto?”. “Não. Acho que foi

AVC”. “Dizem que foi morte súbita”. “Parece que ele

jantou e foi dormir de barriga cheia e, morreu”.

Eu particularmente acreditava na hipótese de ter

tido um AVC, que é o famoso “derrame”, justamente por

me lembrar da dor de cabeça infernal que eu tivera de

madrugada, mas não tinha como eu saber, era só uma

suspeita.

Ainda no teto e sem noção de tempo, eu tinha

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emoções mescladas e confusas. Lapsos de memória,

lembranças diversas dos fatos que marcaram minha vida.

Lembranças dos meus pais, que, diga-se de

passagem, ainda estão vivos e muito bem de saúde.

Apesar de que, a gente faz um monte de exame, gasta

uma fortuna em plano de saúde, toma remédios

caríssimos e morre dormindo. “Pra morrer basta estar

vivo”, já diz o ditado popular.

Enquanto eu me embrenhava nessas lembranças,

minha filha tentava confortar Silvana.

__ Mãe. Não fica assim. Nós temos que ser

fortes. O papai não ia querer que a gente ficasse

chorando o tempo todo. __disse Amanda.

__É verdade minha filha. Mas eu não consigo.

Quando penso que conversamos a noite e lembro que

fizemos planos pra viajar. Lembro-me dele colocando

minha cabeça do seu braço e me beijando a testa. Me dá

uma angustia tão grande minha filha. Por quê? Porque

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meu Deus? Logo ele, tão cheio de vida, tão bom, tão

trabalhador. Porque isso?

__ Deus sabe de todas as coisas mãe. Ele quis

assim e quem somos nós para questionar? Temos sim é

que rezar muito por ele.__respondeu minha filha, cheia

de fé, aos questionamentos da mãe.

Nesse momento, Amanda e Silvana se abraçaram

e choraram juntas. E então eu percebi que eu já

conseguia ouvir bem o que elas falavam. O que antes

eram apenas sussurros, gritos e palavras desconexas, já

se transformara em diálogos nítidos.

O problema é que ao ouvi-las, me dava um

tremendo desespero e eu tentava gritar e dizer que eu

estava lá. Lá em cima: no teto do quarto. Sim, no teto,

sem poder fazer nada mais, não virei anjo e nem

demônio, não podia proteger e nem prejudicar ninguém.

Não podia fazer mais nada, mas estava lá, pensando,

sentido e sofrendo.

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“Penso, logo existo”. Como? Como isso pode

ser possível? Não sei! Pensei.

Depois de morrer e acordar no teto, a verdade é

que eu não sabia de mais nada.

O mais intrigante é que eu não estava revoltado

ou com raiva de alguém, como de Deus ou algo assim.

Eu estava “na minha”. Eu estava quieto. Bom,

nem tão quieto assim.

Eu só tinha que me acostumar a ouvir as

conversas sem me intrometer, mesmo porque ninguém

me ouviria mesmo. Isso sim era angustiante.

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Capítulo III

Eu tinha a estranha sensação que as horas não

passavam, ou pelo menos eu não sentia da mesma forma

que antes.

Aparentemente eu não percebia o tempo

passando, dentro desse conceito terreno de segundos,

minutos, horas. Não sei como explicar isso. Ou talvez eu

não me lembrasse das coisas que eu julgava menos

importantes.

Eu até me lembrava de quando entravam pessoas

no quarto, e tinha a clara consciência que na maior parte

do dia o quarto fica vazio.

Não sabia há quanto tempo eu tinha ido parar no

teto; eu precisava ouvir as conversas para ter alguma

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noção exata das coisas. Mas ouvir também era difícil.

Quando falaram sobre uma missa que haviam

celebrado, imaginei que já tinham se passado sete dias da

minha morte. O tempo passava rápido no teto.

Depois de, acho que um mês, lembro que alguns

parentes se reuniram no quarto e cada um começou a

lembrar de fatos, histórias e episódios vivenciados

comigo. Coisas engraçadas. Minha irmã Laura era a que

mais contava coisas de nossa infância. Falava das

traquinagens, das brigas e confusões que eu aprontava.

Silvana ficou séria, com um semblante triste.

__O que foi minha cunhada? Não fique assim.

Sei que estamos todos muito abalados e tristes. Mas sei

também que não é isso que o Alberto ia querer. Vamos ter

forças! __disse minha irmãzinha querida à minha esposa,

no intuito de tentar consolá-la, sem ter a mínima noção

que eu estava lá em cima, não no céu, e sim no teto.

__ Me desculpem. É que amanhã é domingo e eu

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lembrei que o Alberto sempre gosta de cozinhar no

domingo. E naquela noite tínhamos conversado sobre

esse domingo e ele disse que iria cozinhar camarão. Ele

sabia que é a comida que eu mais gosto. __ Silvana

falava e soluçava ao mesmo tempo, num choro

incontido.__pobre Silvana, minha linda esposa.

__pensei.

__ Então vamos fazer o seguinte: amanhã vamos

fazer um delicioso camarão em homenagem ao Alberto e

a Silvana. __ respondeu Laura, conseguindo arrancar de

minha amada esposa um sorriso tímido e contido.

Nesse instante Bilu entrou no quarto abanando o

rabo como se tudo estivesse dentro da normalidade. Bilu

era o cãozinho da família. Um “poodle toy” que estava

conosco há mais de dois anos, comprei ele filhotinho e

dei de presente pra Amanda.

Eu nunca consegui entrar em casa de surpresa,

por causa do escândalo que o Bilu sempre fazia quando

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eu chegava do trabalho.

Enquanto elas comentavam sobre como o tempo

passava rápido, Sílvia, minha cunhada, começou a

lembrar de fatos engraçados de bem pouco tempo atrás.

Sempre fomos muito amigos e eu sempre tinha uma

piada nova para lhe contar ou brincar com ela sobre

algum pretendente a namorado.

Bilu entrou nesse exato instante. Ele estava

estranho. Minha esposa então comentou:

__O Bilu está estranho desde aquela noite.

__Deve ser saudade. Ele é muito apegado ao

Alberto. Os animais sentem as coisas. Até as coisas

espirituais. Dizem até que podem pressentir coisas ruins

ou até a morte dos donos. __disse Laura.

__ Credo! Acende uma vela mana. __ Sílvia era

dessas supersticiosas ao extremo.

__Vela? Acender vela pra quê? __minha mulher

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perguntou em tom de espanto e descrença, nunca fora

devota ou supersticiosa.

__ Dizem que clareia os caminhos e trás bons

fluídos. E um pouco de fé não faz mal a ninguém. Mal

não vai fazer. __continuou minha cunhada com seu

argumento.

“Clarear?” pensei. A luz do quarto estava quase

me cegando quando ficava acesa. Eu ficava o tempo todo

do lado da lâmpada. Acender vela pra quê? Até que a

pergunta de Silvana fazia sentido pra mim.

Eu queria era descer dali e andar pela casa,

mesmo que fosse no escuro mesmo.

Bilu entrou, parou perto da cama e olhou pra

cima em minha direção. Pensei que o danado estava

olhando para a lâmpada, pois como eu disse antes, era

uma luz forte. Mas ele me fitou e de repente começou a

latir. Latiu a primeira vez, a segunda, sem tirar os olhos

de mim.

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__Bilu! Bilu! Você tá me vendo?__perguntei ao

poodle como que esperasse uma resposta.

Como eu tinha absoluta certeza que ele não podia

me ver, afinal, ninguém podia me ver, resolvi relembrar

uma brincadeira que eu fazia com ele. Era só repetir três

vezes o nome dele, para que o cachorro ficasse

“elétrico”, ele rodopiava e ficava de pé, apoiado nas

patas traseiras.

E foi o que eu fiz:

__ Bilu, Bilu, Bilu!

Nem precisei falar alto. Bilu ficou doidinho

olhando pra mim. Deu uma rodadinha e ficou de pé.

Nessa hora, Silvana levantou da cama num tremendo

susto.

__Que foi Silvana? __ Laura assustou-se também

com o jeito da minha esposa.

__ O Bilu. Meu Deus! Vocês viram isso? Viram o

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que ele fez?

__ Viram o quê Silvana? Você está assustando a

gente.

__Toda vez que o Alberto chama o nome dele, ele

faz isso.

__ Calma Silvana. Isso é coisa de bicho. O

Alberto não está aqui, ninguém chamou o Bilu. Então vai

ver, o cachorrinho está lembrando-se do Alberto e

resolveu ficar brincando com você.

__ Eu disse pra ela acender uma vela, isso não

deve ser coisa boa.__Insistiu Sílvia na história da vela.

__ Que vela que nada. Isso não é nada de mais. O

que você precisa é de descanso, minha cunhada. Nós

vamos embora e te deixar a vontade pra você descansar.

E tira esse cachorro daqui pra você não ficar

impressionada. __ E foi o que Laura fez, tirou o Bilu do

quarto e ajeitou tudo pra Silvana descansar.

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Capítulo IV

Agora eu sabia que o cachorrinho podia me ver

e me ouvir. Mas depois do que aconteceu, não deixaram

mais o pobre animalzinho entrar no quarto. Achavam que

ele sentia o meu cheiro nas roupas que ainda estavam no

armário. E para que ele não assustasse mais ninguém

latindo para o teto.

Mal sabiam eles que lá no teto, grudado,

totalmente perdido e anônimo, estava eu. Sem saber o

que eu era e porque estava ali?

Talvez eu tivesse me transformado numa mistura

de aranha com lagartixa e estivesse condenado a vagar

pelo teto do quarto por toda a eternidade. Mas não havia

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nada em mim que confirmasse essa suspeita, como pelos

enormes ou novos braços e pernas.

Aliás, “vagar” eu ainda não conseguia, apesar

dos esforços para me locomover aos outros cômodos da

casa.

Depois de algum tempo e muita paciência e

esforço, eu já conseguia me movimentar um pouco ao

redor do meu eixo, o que não era nada de significante.

Porém era o máximo que eu podia fazer.

O quarto ficava cada dia menos frequentado pois

minha mulher passava a maior parte do tempo fora.

Aliás, a casa era de um silêncio enlouquecedor.

Inúmeras vezes Silvana tentou agir normalmente

dentro do quarto, mas acredito que era atormentada

pelas lembranças e se acabava em lágrimas, sem

conseguir dormir.

Jamais imaginaria que ela fosse sentir tanto a

minha ausência. Por diversas vezes fiquei emocionado ao

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vê-la em suas orações silenciosas.

Acendeu uma vela numa espécie de altar

improvisado numa cômoda e pôs uma foto minha. Em

seguida orou em voz alta:

__Oh Deus! Não quero questionar a tua vontade.

Tu sabes de todas as coisas. Mas estou tão triste, tão

desmotivada e preciso da Tua ajuda pra continuar

lutando. Preciso de Ti Senhor, preciso muito de Ti, da

Tua mão me sustentando. Ajude-me a vencer.

Depois ela rezou um “Pai nosso” e deitou em

nossa cama. Porém não conseguiu dormir. Rolava de

um lado para o outro numa insônia angustiante me

fazendo ficar no mesmo estado. De repente, ela levantou-

se e saiu.

Tudo aquilo também era angustiante pra mim e

eu pedia a Deus, aos santos, aos anjos, para que alguém

resolvesse minha situação.

Eu não podia e nem queria ficar no teto do quarto

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pra sempre. Isso ia de encontro a todas as teorias,

crenças, lendas e mitos que já ouvira falar em vida.

Acredito que na literatura existente no mundo, nunca se

ouviu falar de “morrer e ir para o teto”.

Talvez eu não tenha sido tão bom assim, e a

qualquer hora o “coisa ruim” fosse aparecer e me levar.

Talvez um lindo anjo de Deus me levasse pela mão em

direção às mansões celestiais. Talvez, talvez, talvez. Eu

queria certezas.

Várias ideias povoavam meus pensamentos,

inclusive a de que nenhuma das duas opções iria

acontecer.

Talvez nada disso realmente existisse, era uma

alucinação, ou eu fosse uma alma penada, sem rumo,

sem destino e fadado a assombrar o teto da casa de

alguém. Talvez eu fosse uma cobaia de Deus, num

experimento de um novo tipo de sala de espera pós-

morte. Vez por outra olhava para minhas costas, para ver

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se asas de anjo estavam nascendo.

Que fim triste o meu, seria até cômico se não

fosse trágico.

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Capítulo V

A cada dia eu me sentia mais só. Nem o Bilu

entrava mais no quarto e isso estava me angustiando. O

pobrezinho fora proibido de entrar, pois tinham medo do

poodle ficar traumatizado.

O único que podia me ver e ouvir, não tinha mais

acesso ao quarto por causa de seu comportamento no

mínimo estranho.

O pior é que o cachorrinho arranhava a porta

querendo entrar e até chorava.

__ Bilu pare com isso! __ ouvi a voz de minha

filha brigando com ele.

Amanda abriu a porta do quarto e entrou, sendo

automaticamente seguida por Bilu.

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Acendeu a luz e parou perto da cama. No

instante em que entrou, Bilu olhou pra cima e latiu. O

danado estava me vendo. Não tinha outra explicação para

aquilo.

Minha filha não estranhou nada. Foi até uma

gaveta da cômoda e pegou um álbum de fotografias.

Visivelmente triste, ela sentou na cama e começou a

folhear o álbum. A cada paginada, lágrimas molhavam

seu lindo rosto adolescente. Por um instante pensei que

ela iria logo embora, mas eu estava enganado, ela ficou

lá por horas. Abraçou o álbum de nossas fotos e deitou-se

pensativa. Não demorou muito e minha princesinha

adormeceu.

Bilu ficou algum tempo me olhando, mas depois

o danadinho deu um salto pra cima da cama, como

sempre fazia e deitou-se ao lado de Amanda, como que

compartilhando do mesmo sofrimento.

As lembranças povoavam minha mente,

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remetendo-me a época da infância de meus filhos. Eu

fora um bom pai. Um pai presente, amigo, carinhoso e

atencioso. Momentos que guardarei pra sempre dentro da

minha essência, do meu “eu” verdadeiro e esse “eu” não

morreu, está vivo e consciente de tudo.

Ali no teto, vendo minha filhinha sofrendo e sem

poder abraçá-la e consolá-la, a angústia me consumia a

alma.

Pensei na importância de realizarmos as coisas

enquanto estamos perto de quem amamos. De falarmos o

que é realmente importante, principalmente no que diz

respeito a sentimentos, enquanto estamos em vida.

Eu não podia mais dizer a minha princesinha que

eu a amava e nem podia prometer que estaria sempre

com ela, para protegê-la e orientá-la.

Não estaria perto para vê-la vencendo mais um

degrau importante da vida, a faculdade. Amanda estava

prestes a se formar e eu não estaria lá. Tudo isso me veio

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a mente como um turbilhão de reflexões e minha cabeça

parecia que ia explodir. Fechei os olhos com força, muita

força e apaguei.

Durante certo tempo eu não tinha vontade de ter

consciência das coisas, desejava que a morte não fosse

dessa forma que eu estava vivenciando.

Eu queria que a morte, a temida morte, realmente

apagasse tudo. Mas não era assim, pelo menos comigo.

Eu era o homem que morava lá em cima, no teto. E lá eu

estava só, completamente só. Eu falava e ninguém ouvia,

eu gritava em vão, eu tinha ideias que não serviam pra

nada e sentimentos que eu não conseguia expressar. Eu

era o retrato da solidão.

Naquele instante eu queria ter dito tanta coisa pra

Amanda, para que ela se sentisse segura, motivada,

amparada. Mas minha filha jamais saberia de minha

estada no teto do quarto a observá-la em sua dor.

Como eu podia me sentir culpado por ter

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morrido?

Não tive culpa. Eu simplesmente morri. E eu

estava aborrecido comigo mesmo por isso.

Não conseguia controlar a raiva de mim mesmo.

Amanda e Paulo eram minha vida e motivação.

Quem tem a alegria de ter um casal de filhos sabe do que

eu estou falando. E eu sempre fui um bem-aventurado,

um homem de sorte.

Meus filhos eram unidos, amáveis, estudiosos,

atenciosos e respeitadores. Sei que muitos pais não tem

essa benção de ter filhos assim, mas eu tinha.

Paulo sempre foi um rapaz honesto e de caráter.

Cuidava da irmã e tinha um afeto com a mãe que

emocionava qualquer um. Um “gentleman”. O

verdadeiro e quase extinto cavalheiro. Por isso sempre

digo que sou um abençoado: tive na terra, em vida, uma

família que só me trouxe alegrias.

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Tínhamos tudo para usufruir dessas dádivas,

colher os frutos de tanto trabalho. Mas eu não estaria

mais entre eles, e não participaria das próximas alegrias.

Como eu poderia não estar tão triste? É claro que

eu estava arrasado com tudo isso.

Meu maior desejo naquele momento era

entender, não a razão da minha morte, isso eu até

aceitava bem, afinal de contas já tinha acontecido

mesmo, portanto, não tinha direito a “recurso”, mas eu

adoraria que alguém me explicasse porque eu estava ali,

no teto, sem rumo.

Por alguns instantes eu me sentia um turista,

chegando a um hotel que está lotado, que tem que

aguardar vaga para se hospedar. Sendo que, no meu

caso, nem sei se existe um quarto pra mim, lá na terra

dos mortos.

Eu já tinha lido vários relatos, visto

documentários e já tinha até conhecido pessoas que

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passaram pela chamada experiência de “quase morte”, as

chamadas “EQM”.

Acho que todo mundo tem curiosidade de saber o

ocorre na antessala da morte, por isso procuramos

conhecer esses relatos feitos por pessoas "ressuscitadas".

Mas no meu caso foi diferente. E isso é que me

deixava intrigado. Eu não tive massagem cardíaca e

estimulador elétrico para restaurar a minha consciência, e

se tive, não funcionou. Eu fui direto pro outro lado e nem

senti. Eu estava dormindo.

Nem posso usar a expressão “do outro lado”,

como disse antes, porque isso não aconteceu, eu fui para

o lado de cima do quarto.

Deixando de lado tantas lamúrias e voltando a

falar dos documentários e livros que tinha lido sobre

“quase morte”, lembro-me bem que os cientistas estavam

imbuídos nessa pesquisa e analisavam os relatos de quem

passou pela experiência, com o intuito de comparar as

Page 42: O Homem do Teto - Frank Pires

42

semelhanças entre eles.

E pensando nisso, nada se compara a esse fim

melancólico que eu tivera. Comparando os relatos com

a minha experiência, fora o fato de a grande maioria ter a

sensação de “projeção do corpo”, não há nenhuma

semelhança.

A projeção do corpo é a experiência mais comum

a todos os que “quase morreram”. É a famosa sensação

de flutuação e na maioria das vezes a pessoa diz que

deixou o corpo e pairou em cima dele.

Algumas pessoas também relatam a sensação de

caminhar em um túnel. Isso mesmo: se locomover em

um túnel escuro.

Essa experiência então é que eu não tinha tido

mesmo. Bem que seria bom dar uma caminhada, mesmo

que fosse a um túnel escuro e assustador. Olha que eu

adoraria ter tido essa sensação.

Outros relatos dizem respeito a famosa “visão da

Page 43: O Homem do Teto - Frank Pires

43

luz”. A luz que brilha e nos chama em direção a ela.

Também não vi essa famosa luz.

Tirando a luminária do quarto que ficava do meu

lado, às vezes quase me cegando, nenhuma outra luz,

clarão, “ser iluminado” ou uma espécie de áurea,

realmente nada aparecera para mim, nem para dizer um

“oi”.

Há ainda aquelas pessoas que dizem que tiveram

um encontro com pessoas já mortas, que podem ser

pessoas muito queridas que já morreram, reconhecidas

ou não, “seres sagrados”, “entidades” não identificadas

ou “seres de luz”, muitas vezes símbolos da própria

religião, como um santo ou uma santa, ou até mesmo o

próprio Deus.

Bem, eu não vi ninguém, apenas meus familiares

vivos. Ah! E o Bilu, é claro, aliás, foi o único que me viu

e se comunicou comigo, digo, latiu pra mim.

Analisando friamente todos os indícios, todos os

Page 44: O Homem do Teto - Frank Pires

44

fatos, eu chegara à conclusão que aquilo não era uma

experiência de “quase morte”, principalmente pelo

seguinte motivo: o retorno à vida.

A decisão de voltar a viver é voluntária e

normalmente associada a alguma tarefa que ficou

inacabada, pendente ou à existência de filhos. Algo que

realmente nos prenda, pelo menos por mais algum tempo

na terra.

Porém, até aquele momento, ninguém tinha me

dado a opção de voltar a viver. Não tinha aparecido

ninguém, sequer para me oficializar da minha morte. Isso

é uma falta de respeito. Pensei. Sabe aqueles filmes, tipo:

“Alguém lá em cima gosta de mim”. Pois é! Aparece

“um cara” lá em cima, um anjo e autoriza o morto a

voltar e consertar as coisas. Comigo não foi assim.

Ninguém apareceu. Então, sendo assim, eu tinha que

admitir que eu estivesse morto mesmo.

Page 45: O Homem do Teto - Frank Pires

45

Capítulo VI

Eu tinha chegado a seguinte conclusão: a morte

não era mais a mesma!

Não dá pra ter medo da morte assim. Pensei.

Pelo menos essa tal “dona morte” que me fora

apresentada não assustava ninguém. Ela era suave,

calma, tranquila e totalmente sem grandes e magníficas

surpresas.

Lembro que quando eu assisti aos tais relatos de

“quase morte”, eu ouvira expressões do tipo

“indescritível”, “inenarrável” ou “inefável”, “impossível

de ser reproduzida com fidelidade em palavras”. Para

mim era tudo uma grande besteira.

Page 46: O Homem do Teto - Frank Pires

46

Eu não tinha como usar qualquer desses adjetivos

para definir o que eu estava passando no teto, como um

recluso.

Se as experiências de milhares de pessoas que

“quase morreram” não se encaixam na descrição do

além, feita por nenhuma doutrina em particular, ficava

difícil, portanto, tentar explicá-las a partir da religião.

Muito menos a minha experiência. Acho que nem a

ciência conseguiria desvendar esse enigma.

É claro que os neurocientistas têm explicação pra

todo esse processo de “quase morte”, como, falta de

oxigenação no cérebro, alucinações, estresse, entre

outros. Nem quero entrar nesse debate, pois isso não

aconteceu comigo. Nada aconteceu comigo, nada.

Eu tinha aceitado que para o meu caso, não

existia uma realidade objetiva, uma resposta coerente.

Apenas suposições.

Dizem também que quem passa pela experiência

Page 47: O Homem do Teto - Frank Pires

47

de “quase morte”, aprende a valorizar a vida, a encarar a

vida de outra forma. Mas eu sempre valorizei a vida,

amo viver, amo estar perto dos meus filhos, da minha

esposa, dos meus amigos. Amo a vida mais que tudo.

Lembrei-me de Amanda. Voltei meu olhar para a

cama e ela não mais estava lá. Tinha ido embora e eu

nem percebi. Estava envolto em meus pensamentos e

lamentações.

Fiquei muito triste e resolvi rezar:

“O que está acontecendo aqui? Por favor, Deus,

mostra para mim o que você é. Eu quero muito conhecer

a realidade da minha situação”.

E mais uma vez, não houve resposta.

Page 48: O Homem do Teto - Frank Pires

48

Capítulo VII

Quando eu senti a terceira lambida no rosto,

uma alegria incontrolável invadiu meu coração: eu estava

vivo! Tudo não passava de um sonho e finalmente eu

estava acordando, ou melhor, sendo acordado pelas

lambidas no rosto que o Bilu dava para nos acordar pela

manhã. E ele só parava de lamber quando a gente

acordava mesmo, levantava da cama e ia cuidar da vida.

Eu abri os olhos lentamente e vi os olhos do

poodle me olhando. Com a língua pra fora da boca, ele

latiu pra mim, como se dissesse: acorda Alberto!

Espreguicei-me como um urso que esteve

hibernando por seis meses.

Procurei Silvana ao meu lado, porém não achei.

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49

Assim como não achei a cama. Olhei para baixo e lá

estava a cama. Eu continuava no teto. Então como o Bilu

subiu no teto?

__ Bilu. Como você veio parar aqui em cima? __

perguntei ao cachorro enquanto lhe fazia um agrado. Ele

me olhou e latiu abanando o rabo.

“Bilu morreu”. Pensei naquele momento. “Meu

Deus! O Bilu morreu e veio pro teto comigo. Como isso

foi acontecer?”

Isso estava começando a ficar mais e mais

interessante e minha esperança de que tudo fosse um

sonho, ou melhor, um pesadelo horrível, tinha terminado.

Não era sonho, era muito real. Eu e meu cachorrinho

agora estávamos juntos no teto e mortos, é claro. A não

ser que Bilu estivesse tendo uma experiência de “quase

morte”, o que eu achava impossível de um cachorro

passar. Mas do jeito que as coisas estavam acontecendo,

eu já não duvidava de mais nada.

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50

__ Mamãe, poxa. O Bilu não podia ter morrido. A

gente passando por tudo isso e agora acontece mais uma

tragédia. A culpa foi minha. Eu não o segurei direito e ele

se soltou, ele correu pra rua eu não consegui segurá-lo.

Foi minha culpa. __ Amanda estava inconsolável.

__ Minha filha. Tenha calma. O Bilu sempre foi

assim. A culpa não foi sua. Ele, que por ser irracional não

tinha a noção do perigo. Ninguém tem culpa, Amanda.

Nem você, nem o Bilu e muito menos o pobre do homem

que atropelou ele.

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51

Bilu fora atropelado. Fiquei muito triste ao ouvir

isso. “Que morte terrivelmente dolorosa”.

Enquanto eu pensava no sofrimento do cachorro,

ele me lambeu de novo. Queria brincar comigo.

__ Bilu, seu danado. Nem parece que foi

atropelado rapaz. __ falei pra ele, soltando uma

gargalhada em seguida.

Bilu só queria brincar o tempo todo. Depois

deitava ao meu lado e dormíamos juntos. Acordávamos,

brincávamos e ficávamos esperando alguém entrar no

quarto.

Eu me sentia cada vez mais sonolento, não tinha

mais ânimo pra nada, só queria dormir. Dormir pra

sempre. Às vezes, quando alguém entrava no quarto e eu

por algum motivo não percebia, Bilu me avisava, ora me

lambendo, ora latindo, mas sempre dava um jeito de me

acordar.

Page 52: O Homem do Teto - Frank Pires

52

Já tinha visto Silvana chorando, Paulo chorando,

Amanda chorando. Já tinha visto sofrimento demais.

De que adiantava eu estar ali se não podia fazer

nada por eles. Não podia aliviar a dor de nenhum deles.

E por amá-los tanto, não suportava mais vê-los passar

por aquilo tudo.

Muitos poetas tentam definir o amor. Alguns

chegam perto, mas a maioria só conhece a teoria do

verdadeiro amor.

Feliz é aquele que ama! Não existem barreiras

que possam conter a chama do amor. Dádiva divina com

que nos presenteou o Criador, bálsamo sublime para o

espírito.

Por isso, mesmo morto, eu estava vivo, por causa

dessa chama, desse bálsamo, dessa força, desse tudo

chamado “amor”.

Agora sim, eu sabia o verdadeiro e inconfundível

sentido do amor.

Page 53: O Homem do Teto - Frank Pires

53

Eu não seria mais um teórico do amor dizendo “te

amo muito”, como se pudéssemos mensurar esse sublime

sentimento, ou pesá-lo numa balança de farmácia.

Eu era todo amor e o amor era eu em pessoa, a

personificação do amor.

A lógica é, sem dúvida alguma, a ciência do

pensamento. Alisei o queixo, pensativo, tentando

encontrar uma lógica para o meu estado.

Enquanto eu pensava, Bilu veio em minha

direção e passou o focinho próximo ao meu rosto, como

se quisesse me dizer alguma coisa. Ele começou a emitir

um som como um gemido, um choro.

__ Que foi Bilu? Hein rapaz? Fala para o papai.

Fala!

Nessa hora a porta do quarto se abriu.

Eram homens uniformizados com roupas de uma

empresa de transporte e mudança. Dois deles começaram

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54

a desmontar os móveis do quarto, enquanto os outros

dois embalavam roupas e miudezas. Minha família

estava indo embora da casa.

Page 55: O Homem do Teto - Frank Pires

55

Capítulo VIII

Os funcionários da empresa eram ágeis e

rapidamente deixaram o quarto vazio. Eu e Bilu

olhávamos aquela movimentação pasmos. Eu não havia

pensado nessa possibilidade.

Porque vocês estão se mudando? Para onde vão?

Pensei.

Eu não sabia responder nem há quanto tempo eu

estava morto, imagina ter respostas para essas coisas.

Meu mundo, minha vida, limitava-se ao quarto e

naquele momento eu estava mais perdido que cachorro

de pobre em dia de mudança.

Por falar em cachorro, Bilu deitou, entrelaçou as

patas dianteiras e relaxou a cabeça em cima. Ficava

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56

olhando para as paredes, sem expressar nenhuma reação.

Ninguém entrou no quarto depois que a mudança

foi embora. Eu fiquei na expectativa de alguém adentrar

e dizer alguma coisa, mas isso não aconteceu.

Eu tinha perdido todo o acesso às informações. E

não sabia de mais nada.

Agora eu estou totalmente fora da família e

estava fadado ao esquecimento. Pensei.

Tentei me locomover em direção ao corredor que

me levaria à sala de estar e consequentemente a varanda,

onde teria uma visão da rua. Missão impossível! Nem

consegui dar uma volta ao redor do meu corpo.

E nem adiantava ter crise de nervosismo ou gritar,

ninguém escutaria. Era o fim. Só me restava pensar,

horas e horas, dias, semanas, meses, anos, séculos pra

pensar e esperar.

__ Bom menino! __ falei enquanto fazia um

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57

afago no cãozinho, que também devia estar se sentindo

abandonado.

Às vezes não nos damos conta de como esses

seres são iluminados e parecem enviados por Deus para

alegrar nossas vidas, modificar nossos hábitos e até

nossas relações.

Eles chegam às vezes filhotes, e aos poucos

conquistam nosso amor. Primeiro nos aborrecem, nos

estressam, nos irritam, mas no final somos vencidos pela

doçura canina ou felina.

Passamos por isso na infância e quando adultos,

os filhos nos convencem que temos que tê-los em casa.

Bilu, quando filhote, já era dengoso, fazia uma

gritaria quando era deixado sozinho e Amanda corria e

lhe cobria de carinho.

Como disse antes, ele é um “Toy”, uma raça

muito especial, são delicados, inteligentes, dóceis, gentis

e extremamente apegados aos donos, estes cãezinhos são

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58

perfeitos para ficar no colo, dormir no pé da cama ou

tirar uma soneca no sofá.

Sua função primordial é dar e receber carinho e

isso o Bilu fazia muito bem. Era o carinho em pessoa,

um doce, cheio de dengo.

Quando eu era criança, tínhamos um cãozinho

“vira-lata” que batizamos de “Pirata”, isso devido a uma

mancha ao redor de um dos olhos, que não me recordo se

era o direito ou o esquerdo.

Ele era todo branquinho e tinha essa mancha

pretinha de nascença em um dos olhos. Acho que ao

longo de sua vida, Pirata abanou o rabo cerca de um

trilhão de vezes ou mais. Às vezes segurávamos o rabo

pra ele parar de balançá-lo, mas era impossível.

Vivíamos em uma casa com um quintal enorme, o

que nos permitia fazer diversos tipos de brincadeiras e o

Pirata fazia questão de participar de todas. Aquele

cachorro sim vivia a vida. Era um fanfarrão, comia de

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59

tudo, enterrava ossos pelo quintal, se sujava todo depois

que tomava banho.

Era um indisciplinado e incorrigível. Hoje em dia

temos todos os cuidados, seguimos todas as regras que a

indústria de produtos “pet” nos impõe, vacinas em dia,

idas ao veterinário se o cão emitiu um som diferente ou

se está “deprimido”. O bom e velho osso, nem pensar e

mesmo assim o cãozinho adoece.

Pirata era livre, comia comida de gente, corria o

tempo todo.

Millôr Fernandes disse sabiamente: “A liberdade

é um cachorro vira-lata”.

Pirata não tinha medo de encarar ninguém, era

um “puxa briga” inato, se fosse um estranho e tentasse

chegar perto do portão, lá estava ele fazendo a maior

zoada do planeta. Era, sem dúvida, o nosso supercão.

Ele era rápido, corria como um velocista, quando

fugia pra rua era um desespero, todos corriamos atrás

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60

dele. Driblava os carros, não tinha medo de nada, era

doido pra entrar numa briga com um cão maior que ele,

desafiava mesmo.

Na rua ele não obedecia ninguém, só o meu pai.

Aliás, todo mundo obedecia meu pai. Ele só falava uma

vez e tanto o Pirata quanto nós, entrávamos com o rabo

entre as pernas.

Sinceramente, eu achava que o Pirata ia viver pra

sempre, e quase que ele consegue essa façanha. Morreu

de velhice, o danado, e foi enterrado com honras no

quintal de casa.

Falar sobre o Pirata me faz reafirmar a ideia de

que quanto mais eu conheço as pessoas, mais eu gosto do

meu cachorro.

Fernando Sabino disse que o valor das coisas não

está no tempo que elas duram, mas na intensidade com

que acontecem. Por isso existem momentos

inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas

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incomparáveis.

Pirata, meu cãozinho vira-lata conseguiu ser

inesquecível, inexplicável e incomparável.

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Capítulo IX

Estávamos sós, habitando o teto de um quarto,

de uma casa desabitada e solitária. O que eu sou? Pensei.

Um espírito, um fantasma, uma alma, um ser, um “sei-

lá-o-quê”.

Eu e meu cachorro no teto. Esperando um

“alguém” aparecer.

E finalmente um dia, o tal “alguém” apareceu.

Ele entrou pela porta do quarto vazio, deu alguns

passos e olhou pra cima. Vestia terno branco e não me

era nem um pouco familiar. Tinha um aspecto sério e os

olhos puxados, como de origem asiática. Lembrava-me o

“Sr. Miyagi” da primeira versão do filme “Karatê Kid”,

porém tinha cabelos pretos e era mais alto, pelo menos

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63

eu acho que era mais alto.

A princípio pensei ser um corretor, mas quando

ele sorriu pra mim, seu rosto se iluminou, então pensei: é

agora!

Pensei que o fato de todas as crenças situarem na

Ásia o berço da humanidade, tivesse alguma coisa a ver

com suas feições asiáticas.

__ Você veio me buscar? __ foi inevitável a

pergunta. Ele não respondeu, apenas sorriu um sorriso

irritante.

Quando Bilu o viu, levantou-se automaticamente,

ficou todo “elétrico” e latiu.

O tal homem que vestia o terno branco, num

movimento rápido estendeu os braços em direção ao teto

e Bilu pulou, caindo em suas mãos.

Não sei como ele fez aquilo. Fiquei estático, aliás

como sempre. Ele se virou e foi embora levando minha

Page 64: O Homem do Teto - Frank Pires

64

única companhia.

Claro que eu fiz um estardalhaço que deve ter

acordado até Deus.

__Volta aqui! Volta! Devolve meu cachorro. __

eu gritava o mais alto que podia.

Ninja ladrão de cachorro! Pensei.

Chorei copiosamente. E balbuciava palavras

desconexas, tamanho era o desespero de ficar sozinho.

Fiquei indignado com aquilo. Se o cara não

queria me levar, pelo menos deixasse o cachorro.

“Pelo menos, Bilu foi para o céu dos cães. Não.

Acho que foi para o céu dos “toys”. Não pode haver um

céu coletivo para todos os cães. Eles não suportariam as

travessuras do Pirata lá”.

Meus insanos pensamentos povoavam minha

mente confusa.

E eu? Eu aceitaria ir para o céu dos “toys”, dos

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65

cães, dos “vira-latas”. Eu aceitaria ir pra qualquer lugar.

Mas eu não fui. Fiquei lá. E acho que o Bilu já

deveria ter ido muito antes.

Acho que essa transição deve ser automática para

os cães, mas ele optou por ficar comigo lá no teto. Me

“dar uma força”, fazer companhia pra que eu não me

sentisse tão só.

Grande amigo esse Bilu. Por isso vou amar

sempre esse cachorro. Meus cães amores: Pirata e Bilu.

Ali no teto eu era uma ilha cercada de mim por

todos os lados e não me suportava mais. E depois de

enjoar de minha insuportável companhia, eu mesmo

tinha me abandonado.

Isolado de tudo e de todos, só o amor me fazia

companhia e entendo agora que pela primeira vez eu

estava amando mais a todos do que a mim mesmo.

O amor por Silvana, por meus filhos, por meus

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66

familiares e amigos. Esse amor tinha dominado meu

coração.

No teto, eu desaprendi a amar, para aprender a

amar de novo. Fiquei tempo suficiente comigo mesmo

para desapegar-se de mim.

A verdade é que, por vezes, somos uma soma

incompleta. Tornamos-nos numa coletânea de incertezas,

angústias, manias, lamentos, vícios e defeitos. Até o

magnífico e transformador amor chegar.

O físico e cosmólogo britânico Stephen Hawking

em seu livro “O universo numa casca de noz”, citou

Shakespeare:

"Eu poderia viver recluso numa casca de noz e

me considerar rei do espaço infinito".

A verdade nisso é que não devemos ficar reclusos

em nosso próprio universo, seja ele do tamanho que for,

e sim expandir nossos pensamentos em direção ao

infinito.

Page 67: O Homem do Teto - Frank Pires

67

Até então, eu era o rei do quarto. Um espaço

ínfimo, solitário e triste.

Era difícil manter a serenidade e principalmente a

sobriedade na minha situação, que mais parecia um

exílio. Cercado pela solidão, eu não tinha alternativa a

não ser tentar manter vivas as lembranças maravilhosas

que eu tinha daquele quarto.

Olhando para o espaço onde antes ficava nossa

cama, tentava por vezes, em vão visualizá-la, para

relembrar os momentos íntimos que tivemos durante

todos esses anos.

Essas lembranças me alimentavam a alma e me

faziam encarar a minha nova realidade.

Eu sofria por não ter mais a possibilidade de

acompanhar o dia a dia da minha família. Não vê-los e

não saber como e onde estavam.

Eu não sabia se todo mundo que morre vai para o

teto do quarto, ou para o piso do banheiro. Não sabia que

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68

tipo de experiência era aquela a que fui submetido e não

entendia o motivo.

Lembrei-me de Cora Coralina:

“Se a gente cresce com os golpes duros da vida,

também podemos crescer com os toques suaves da

alma". Eu quem o diga! Pensei.

É bem certo que eu sempre gostei de Cora

Coralina, era uma grande inspiração, me fazia pensar: Se

ela publicou seu primeiro livro com 76 anos, um dia

também vou escrever.

Cora Coralina é tão perfeita que eu poderia citá-la

para cada problema da vida. Ela é como medicina

alternativa. Prescrevo, sem sombra de dúvida, a qualquer

pessoa, “doses” diárias do remédio milagroso “Cora

Coralina” para curar qualquer mal.

Diria a minha filha Amanda:

“Nada do que vivemos tem sentido, se não

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69

tocarmos o coração das pessoas”...

Diria a meu filho Paulo:

“O que vale na vida não é o ponto de partida e

sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás

o que colher”...

Diria a minha amada esposa Silvana:

“Recria tua vida, sempre, sempre. Remove

pedras, planta roseiras e faz doces. Recomeça!”.

E finalmente, para mim. Acho que diria a mim

mesmo:

“Todos estamos matriculados na escola da vida,

onde o mestre é o tempo.”

Resistência: era a síntese do que eu estava

vivendo naquele estado inesperado. Eu resistia o máximo

que podia, para não enlouquecer.

A verdade é que o homem mostra seu valor acima

de tudo, pela sua resistência!

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70

Se eu tinha lições importantes e fundamentais a

aprender com aquela experiência, acho que eu estava no

caminho certo.

Já não estava mais tão ansioso quanto ao futuro e

nem me fazia as mesmas perguntas perturbadoras, do

tipo “o que acontecerá comigo?”; “quando vão me tirar

daqui?”.

Apenas ficava em silêncio.

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71

Capítulo X

Novos moradores chegaram à casa que antes

era o abrigo de minha amada família. A movimentação

era intensa e logo o quarto estava habitado novamente.

Eu não queria saber dos detalhes, não me prendia

mais a eles e não me importava mais se a casa tinha sido

alugada ou vendida.

Os novos moradores eram muito organizados e

um jovem de nome Carlos ficou com o quarto.

Eu sempre achei meu quarto, ou meu antigo

quarto, grande demais, mas com a quantidade de coisas

que aquele rapaz tinha, ficou um “ovo”.

O computador dele ficou no exato lugar onde

antes ficava o meu, assim não precisaria usar extensão

elétrica, pois a tomada ficava próxima.

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72

Surpreendeu-me quando arrumou algumas telas

para pintura e diversos materiais para esse tipo de arte

magnífica.

A arte é a expressão do belo. O artista não busca

a unanimidade, não é um copista, é um desbravador.

Eu estava diante de um grande e talentoso artista,

com telas lindas. Algumas delas ele pôs nas paredes e ao

olhá-las atentamente, uma imagem em especial me

chamou a atenção: um homem deitado com as mãos

apoiando a nuca e com as pernas cruzadas. Seria uma

pintura normal se não fosse um detalhe: o homem estava

no teto de um quarto.

Imediatamente me vi retratado naquele quadro. A

tela refletia a minha realidade.

Não saberia dizer que estilo o jovem Carlos

usava, sou leigo no assunto, mas eu já era um grande

admirador de sua arte.

Ter a casa ocupada novamente me deu certa paz.

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Apesar de falar pouco e raramente receber visitas, Carlos

era absorvido pela sua arte, me levando junto com ele,

numa viagem insólita e revigorante. Eu era sua plateia.

Admirava os detalhes da preparação da tela, dos

materiais, a seleção das cores, o rascunhar.

Pintores e poetas pintam muitos dos sonhos que

lhes vão à alma. O poeta não escreve poesia para si

mesmo, escreve para quem precisa dela.

Quem nunca sonhou ser um poeta? Quem nunca

sonhou ser pintor? Escrever telas e pintar poemas. Os

poetas e os pintores são anjos. São seres divinos,

celestiais e eternos, pois sua arte não morre jamais.

Por isso devem ser reverenciados.

“O homem do teto”: Título dado por mim à sua

tela (sem sua permissão é claro) ocupava lugar de

destaque entre as dezenas outras. Vez por outra ele ficava

a observá-la, como que esperando que ela lhe dissesse

alguma coisa. Coçava o queixo, punha as mãos na

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cintura, ia e voltava, para depois voltar a fixar os olhos

no quadro. Carlos parecia buscar algo em sua arte, talvez

enxergar o que ainda não fora visto.

Enquanto Carlos mergulhava seus pensamentos

indecifráveis na tela, eu pensava na minha história. Essa

história toda daria um livro. E que livro!

Se eu estivesse vivo, até tentaria escrevê-la: A

história de um homem que morreu e foi parar no teto.

Por um instante percebi uma mudança no

semblante de Carlos.

Foi aí que, numa atitude impensada, eu resolvi

enviar minha mensagem a ele da forma mais grotesca

possível:

__Ei Carlos, escreve um livro cara! __gritei em

sua direção, esperando que talvez ele recebesse as

vibrações do berro tremendo que eu dera lá de cima.

Quase que de imediato, ele concordou comigo,

Page 75: O Homem do Teto - Frank Pires

75

como se tivesse tido uma brilhante ideia.

__Vou escrever um livro! __disse ele,

levantando-se rapidamente.

Carlos correu ao computador, abriu o editor de

textos e digitou: “O teto”. Depois de algum tempo

mudou para: “Vivendo no teto” e depois, “O homem que

vivia no teto”. E assim ele ficou horas testando títulos,

sem, no entanto decidir por qualquer um.

Um escritor e grande amigo certa vez me

confidenciou que sempre deixava os títulos dos seus

livros por último, era a última etapa depois da obra

pronta. Mas eu também conhecera outros escritores que

não conseguiam desenvolver uma história se não tiver o

título. Acho que Carlos era um desses.

Durante uns três dias ele não conseguira escrever

uma palavra sequer. Simplesmente não conseguia

ultrapassar a barreira do título. Mas ele queria escrever.

Chegava a bater levemente a cabeça no monitor

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76

do computador, talvez querendo que as ideias se

organizassem em sua mente.

E mais uma noite Carlos foi dormir sem escrever

uma única frase. Depois de dias pensando, não saíra do

título.

Por mais boa vontade que o jovem Carlos tivesse,

ele não era um escritor, não tinha o dom. E para o livro,

apesar da ideia martelar seu cérebro dia e noite, faltava-

lhe a inspiração. Aquilo que faz com que as páginas

fluam como águas torrenciais vindas de um manancial

escondido e secreto, a fagulha que gera a combustão da

pólvora e finda com o estampido, a explosão de palavras

que arrebatam o escritor.

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77

Capítulo XI

Naquela manhã, o jovem Carlos acordou

indisposto e não saiu do quarto.

A impossibilidade de organizar as ideias no papel

e fazer algo que aparentemente ele considerava simples,

o estava consumindo. Pintava com tanta facilidade,

porém não conseguia iniciar uma narrativa simples, de

uma ideia que tivera.

Preocupada, sua mãe entrou no quarto levando

seu desjejum. Ela era uma senhora de uns 70 anos, muito

simpática e de cabelos branquinhos. Por ser o “caçula”

dos filhos homens, ainda usufruía de certos mimos, como

uma preocupação exacerbada de sua genitora.

__ O que você tem meu filho? Não me parece

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78

bem. Você nem foi tomar café. Parece estar preocupado

com alguma coisa. O que aconteceu? Foi alguma

namorada? __ perguntou-lhe Dona Constância, enquanto

colocava a bandeja de café no colo do rapaz.

__ Não é nada mãe. Nada que a senhora deva se

preocupar. Coisa minha mesmo. __ respondeu-lhe

afetuosamente.

__ Vamos lá meu filho. Pode me contar. Desabafa

com a mamãe. Às vezes a gente precisa compartilhar os

problemas, as coisas que nos afligem.__ falou-lhe

sabiamente.

__ É besteira minha. Eu estou com umas ideias e

não consigo escrevê-las. É só isso. __ falou ele,

esfregando os olhos com força.

__ Escrever? Eu nem sabia que você escrevia

menino. Pra mim isso é novidade. E se você não

consegue escrever suas ideias meu filho, então as pinte.

__ disse isso, beijou-lhe a testa e saiu. Fazendo com que

Page 79: O Homem do Teto - Frank Pires

79

um sorriso nascesse no rosto desmotivado do rapaz.

Foi o estalo que Carlos estava buscando. Sua mãe

lhe dera a solução.

__ Vou rabiscar vários rascunhos da história que

eu tenho na cabeça e depois as escrevo. __disse o pintor

e quase um futuro escritor, em voz alta no quarto.

E assim o fez. E eu, lá de cima, apenas observava

e, é claro, também compartilhava da mesma empolgação,

vibrava a cada instante, a cada tomada de decisões.

Conforme Carlos pensava na história, ele fazia o

rascunho. Como um filme quadro a quadro, destacando

as cenas mais importantes e que serviriam de base para a

narrativa. Às vezes errava e começava de novo.

Era um dom sensacional, ele rabiscava com

maestria, sem tremer um músculo sequer.

Aquilo tudo me empolgava muito, mas algo me

surpreendeu ainda mais. Quando Carlos terminou o

Page 80: O Homem do Teto - Frank Pires

80

primeiro esboço, parece que num passo de mágica a

inspiração apareceu.

Carlos foi de novo ao computador e começou a

escrever o que rascunhara.

As palavras até surgiram com mais facilidade e

ele escrevia a realidade de um homem que ao morrer foi

habitar o teto de seu quarto.

Seu objetivo era limitar a narrativa da história de

um homem comum que, por algum motivo, ao morrer

não seguiu o caminho que todos seguem, ou seja, o curso

natural das coisas.

Por uma “falha” no sistema, por uma questão de

aprendizado, por vontade própria, nada disso importava

na narrativa de Carlos. O que importava é que um

homem morreu e passou a morar no teto da casa.

Como ele lia o que escrevia em voz alta, percebi

que o personagem de Carlos tinha mais locomoção do

que eu. Assombrava a casa toda, enquanto eu nunca tinha

Page 81: O Homem do Teto - Frank Pires

81

conseguido sair do quarto. Não ia a lugar algum.

Enquanto ele tentava escrever ou pintava, as

vezes soltava risos que contagiavam o quarto. A história

era engraçada e por isso, ele tinha a preocupação de não

torná-la “porta-voz” ou “bandeira” de nenhuma religião

ou coisas do gênero. Não era esse o objetivo.

Enquanto lia em voz alta os textos que escrevia,

me proporcionava certo conforto de ouvir a narrativa

deitado na posição clássica “Alberto no teto”: mão

embaixo da nuca e pernas cruzadas.

E também me fez ver que sua narrativa era

desordenada, sua história era vazia e até desconexa.

Ele era um fracasso como escritor e entendi que

eu e Carlos não tínhamos desenvolvido nenhum tipo de

comunicação telepática ou mediúnica.

Talvez uma tremenda coincidência, pelos menos

para mim, pois sei que ele jamais acreditaria que isso

fosse possível.

Page 82: O Homem do Teto - Frank Pires

82

O fato é que estar no teto de um quarto, que já

pertencia a outra pessoa, um jovem que dificilmente saía

do quarto, foi uma experiência muito importante.

A solidão diminuíra bastante, no entanto, ali não

era mais o meu lugar. Eu era um intruso e não tinha o

direito de ser espectador da vida de outras pessoas que

não tinham nada a ver comigo ou com minha família.

Senti uma enorme repulsa a minha presença

naquele quarto e um grande conflito moral se alojou em

meu peito.

A verdade é que já estava na hora do homem do

teto partir. Faltava apenas descobrir como.

Page 83: O Homem do Teto - Frank Pires

83

Capítulo XII

__Carlos! O que você está escrevendo, meu

filho? __ perguntou dona Constância, toda desconfiada,

enquanto Carlos fechava a página do editor de textos

rapidamente.

__Nada de mais, mãe. __ respondeu ele, tentando

despistar o faro investigativo de Dona Constância.

__Você ainda é pintor, não é? __ Insistiu ela,

talvez com medo que o filho abandonasse a pintura.

Dona Constância era uma mãe orgulhosa de ter um filho

pintor e por vezes se gabava junto às amigas.

__ Sou sim mãe. É que senti vontade de escrever

e estou fazendo um teste. Inclusive quero sua opinião. __

respondeu o rapaz, compartilhando com outra pessoa

Page 84: O Homem do Teto - Frank Pires

84

pela primeira vez, o enredo do futuro livro.

__ Minha opinião sobre o quê?

__ Mãe, é o seguinte: eu estou escrevendo a

história de um homem que morreu e seu espírito foi

morar no teto do quarto. O que a senhora acha disso?

__Acho ridículo! Que coisa absurda! Meu filho

ninguém vai gostar dessa história. Ninguém morre e vai

para o teto. As almas vão para o céu, para o inferno ou

para o purgatório.__ e sem deixá-lo argumentar, ela

continuou: ___Quem decide isso é São Pedro. Então é

melhor você continuar sendo pintor mesmo. Você é um

grande pintor, pinta coisas lindas. Esquece isso de ser

escritor. __ finalizou a mãe, não economizando em

sinceridade.

__ Tá bom mãe. Deixa pra lá. Eu já estava

batendo cabeça mesmo. Escrever é muito difícil.__falou

ele enquanto sua mãe deixava o quarto Ela abriu a porta

e antes de sair do quarto, olhou para o filho e disse:

Page 85: O Homem do Teto - Frank Pires

85

__Meu filho, lembre-se de uma coisa: Cada um

com seu talento, cada um com seu dom.

Sábia, essa Dona Constância. Pensei.

Nitidamente decepcionado, pois a opinião da mãe

era sempre muito importante, ele fechou o arquivo do

livro do computador e depois apagou.

Lá se foi pra lixeira o que seria a história do

único homem que morreu e foi morar no teto do quarto.

Um conto absurdo, mas real.

Com o passar dos dias, eu me desligava das

coisas que se passavam no quarto de Carlos e já não me

interessava mais tentar qualquer tipo de comunicação

paranormal ou coisa do tipo.

A desistência de Carlos em escrever, tinha me

deixado profundamente triste, mas por outro lado, ele

parecia uma “topeira” e não saberia escrever como eu

Page 86: O Homem do Teto - Frank Pires

86

realmente desejava que a história fosse narrada.

A verdade é que eu queria a minha história,

contada com riqueza de detalhes, com paixão, com a

emoção que só quem viveu a história consegue passar ao

leitor. E isso, com toda a certeza, ele não conseguiria

fazer. E muito menos eu. Nunca vi um morto, preso no

teto, escrever uma linha sequer.

E talvez, se eu tivesse a oportunidade de escrever

tudo o que vivera e o que sentira; tudo aquilo que refleti

enquanto estava no teto do quarto, seriam milhares de

páginas, recheadas de emoções e sentimentos, sorrisos e

lágrimas.

Desde criança eu sempre tive o hábito da leitura,

era um leitor inveterado, ávido por alimentar minha alma

de conhecimento e absorver emoções dos bons livros.

Adorava citá-los para meus filhos e vez por outra ouvia

deles comentários do tipo:

“Lá vem o papai com suas citações”.

Page 87: O Homem do Teto - Frank Pires

87

Eu sempre tinha uma frase como exemplo, ou

mesmo um ditado popular que se encaixava

perfeitamente às mais diversas situações.

Quando Dona Constância entrou no quarto àquela

manhã, tinha um único objetivo: tirar Carlos do quarto.

__Vamos! Levanta! Vai dar uma caminhada por

aí. Acorda Carlinhos! __ disse-lhe a mãe, esforçando-se

para parecer autoritária, com sua voz suave e doce.

__Mãe, me deixa dormir. __respondeu Carlos de

maneira preguiçosa, sem deixar de obedecer a “ordem”

da mãe, levantando-se ainda que lentamente.

__ Meu filho, você precisa se exercitar. Respirar

ar puro, ver a vida. Fica só aqui dentro pintando,

inventando estórias mirabolantes e engordando. __

Enquanto ela falava me arrancava sorrisos.

Não adianta! As mães são assim mesmo. Estão

sempre preocupadas. Deixam se consumir pelo amor que

sentem por nós.

Page 88: O Homem do Teto - Frank Pires

88

__ Poxa mãe. Tá muito cedo. Porque isso de

caminhar agora? __Carlos ainda tentava argumentar.

__Chega de vida sedentária. Sabe aquele homem

que é o dono dessa casa que a gente mora? __ Perguntou

ao filho, se referindo a mim. Já estou sendo citado como

exemplo negativo. Agora ela vai dizer a ele que se não se

exercitar, vai morrer igual a mim. Pensei.

__ Sei sim mãe. O que tem ele?

__ Pois é, parece que é Alberto o nome dele. Ele

ainda está em coma no hospital. Sabe por quê? Tal de

“AVC”. “Derrame”. Então, se você não quiser ter um

“derrame cerebral”, levanta daí e mais fazer exercícios.

__ respondeu-lhe Dona Constância, me deixando pasmo

ao ouvir aquilo que dissera.

Eu não morri. Estou em coma! Pensei

rapidamente.

Eu estava em coma? Como assim? Onde? Então,

eu não estava morto? Eu… Eu estou vivo. Vivo!

Page 89: O Homem do Teto - Frank Pires

89

Enquanto pensava, minha alegria era tanta que eu

chorava e sorria ao mesmo tempo.

Parei um pouco de soluçar, para tentar ouvir mais

informações da simpática senhora, mas ela já tinha saído

do quarto, levando consigo o jovem Carlos, que seria

obrigado a se transformar num esportista.

Mas o principal eu já sabia, eu estava “Vivinho

da Silva”. Bom. Nem tão vivo assim, afinal de contas

“em coma”, é quase morto; mas também é “quase vivo”.

Mas, como eu pude achar que estava morto?

Pensei que tinha realmente morrido, porque vi meu

corpo, vi os paramédicos, vi meu corpo sendo levado e

minha família chorando. Preciso admitir que nenhum

deles jamais usou a palavra “morto”. Creio que fora uma

conclusão minha pra lá de precipitada, e todo esse tempo

eu me considerava um defunto. Mas a partir daquele

momento eu começaria a ver minha realidade de outra

perspectiva.

Page 90: O Homem do Teto - Frank Pires

90

“Eu quero descer daqui. Eu quero descer daqui.

Eu quero descer daqui.”

Concentrei toda a força do meu pensamento nessa

frase: Eu quero descer daqui.

Foi quando ouvi uma voz que me disse:

__Então desce!

Page 91: O Homem do Teto - Frank Pires

91

Capítulo XIII

Olhei ao meu lado e lá estava ele. O cara que

levou o Bilu. Ele estava bem ali, ao meu lado deitado no

teto do quarto.

__Como assim desce? Eu não consigo. Estou

preso aqui, não está vendo? __retruquei veementemente.

__ Você se prendeu aqui. Agora você precisa se

soltar pra podermos seguir em frente.

__ Como assim “seguir em frente”? Eu vou

morrer de verdade agora?

__Está vendo só? Você tem tanto medo de

morrer, que se amarrou aqui no teto pra não seguir em

frente.

__Medo?

Page 92: O Homem do Teto - Frank Pires

92

__Isso mesmo. Medo. É a única razão de você

ainda estar aqui. Quero que venha comigo, precisamos

ter uma conversa, pois o tempo está passando e você não

vai poder esconder-se aqui pra sempre.

__Eu não estou me escondendo.

__ Está sim. Você vem comigo?

__Vou sim. É seguro? Não vai acontecer nada

comigo?

__Não. Fique tranquilo e deixa-me guiar você.

__Mas, eu não ando com estranhos. Preciso saber

o seu nome e quem ou “o quê” você é?

__Meu nome é Aluízio. E eu sou um amigo, estou

aqui para ajudar.

__Tudo bem Aluízio. Vamos!

Foi uma decisão que eu jurava que não era

minha, mas era. Ao tomar a decisão de acompanhar

Aluízio, minha cintura desprendeu-se do teto e enfim eu

Page 93: O Homem do Teto - Frank Pires

93

tive a sensação de flutuação.

Quando segurei sua mão, minha mente foi

tomada por imagens luminosas e pude ver uma luz forte,

vinda em minha direção.

O que houve em seguida foi algo inenarrável,

indescritível e inefável. Eu jamais conseguiria descrever

tal visão.

Num lapso de tempo, enquanto viajávamos

através do túnel, dentro da luz, Aluízio me explicava

tudo o que acontecera comigo. A dor de cabeça; o

remédio que tomei; o Acidente Vascular Cerebral; o

resgate; o estado de coma. Falou ainda dos esforços de

meus familiares para me manter vivo; a transferência

para um hospital de maior porte; a mudança da família

para mais perto do hospital.

Após todo o esclarecimento, pude compreender

minha situação afinal. Mas ainda faltava entender uma

coisa. Então perguntei para Aluízio:

Page 94: O Homem do Teto - Frank Pires

94

__Porque fiquei preso no teto?

__Não sabemos exatamente como você se

prendeu lá. Ao contrário do que se pensa, não temos

todas as respostas. Mas por alguma razão, você

conseguiu ficar lá. E não conseguíamos tirá-lo. Só

mesmo você poderia fazer isso. Deixamos até seu

cachorrinho tentar convencê-lo a sair. Mas você não quis

ir atrás dele.

__E agora? O que eu faço? __Enquanto

terminava de “bombardear” Aluízio com várias

perguntas, paramos.

Estávamos em um corredor com várias portas.

Era nitidamente um corredor de um hospital. Era lá que

eu estava.

__É aqui que eu estou? Digo, é aqui que meu

corpo está? É esse o hospital?__perguntei-lhe, ávido por

respostas.

__Sim. É aqui que você está internado.__

Page 95: O Homem do Teto - Frank Pires

95

respondeu-me.

__Há quanto tempo estou em estado de coma?

__São 76 dias dormindo profundamente.

__É muito tempo! Será que vou conseguir

acordar? Estou assim a mais de um mês. Será que eu

ficarei com sequelas? Desculpe-me tantas perguntas,

você não é médico, não pode saber dessas coisas.

__Sou sim.

__ O quê?

__Médico. Eu sou médico. E vou te esclarecer

tudo antes de você decidir.

__Decidir o que? Eu pensei que já estava

decidido. Eu vim até aqui pra voltar, certo?

__Isso é você quem vai decidir Alberto. Se você

vai ficar ou vai voltar para sua família, é você quem vai

escolher. Ninguém vai poder decidir isso pra você__

Completou Aluízio, que agora eu sabia, era Dr. Aluízio.

Page 96: O Homem do Teto - Frank Pires

96

Ele tinha sido médico na terra.

Aluízio passou a me explicar meu estado de

saúde.

__Uma das principais causas de coma no mundo

é o que chamamos "Acidente Vascular Cerebral" ou

AVC.

O AVC ocorre devido à interrupção súbita do

fluxo sanguíneo para o cérebro. Foi o que aconteceu com

você. __explicou-me pacientemente Aluízio.

__Que tipo de consequências eu terei de

enfrentar? Vou voltar a viver normalmente? __ perguntei-

lhe.

__ Se você conseguir voltar do estado de coma...

__ “Conseguir”? Como assim se eu “conseguir”?

__ interrompi Aluízio antes mesmo que terminasse a fala.

__ Quer dizer que, eu não voltarei agora, ou no memento

em que decidir voltar?

Page 97: O Homem do Teto - Frank Pires

97

__Não é bem assim Alberto. Isso vai depender de

vários fatores. O coma é uma grande agressão ao sistema

nervoso central e quanto mais tempo a pessoa ficar nesse

estado, maior poderá ser essa lesão cerebral e mais difícil

vai ser o retorno dela ao estado de consciência.

__E qual é a minha realidade agora? Que chances

eu tenho?

__ Alberto, você teve imediata paralisia do lado

esquerdo, inchaço cerebral, que evoluiu muito rápido,

entrou em coma e pode a qualquer momento ter morte

cerebral. Essa é a sua realidade.

__Meu Deus! __exclamei sem ter mais o que

dizer, tamanho era o meu estado de estupefação.

__Você está travando uma luta pela vida. Durante

esses 76 dias você já passou por algumas cirurgias. A

equipe médica fez de tudo para controlar a pressão

intracraniana e você passou por dois procedimentos

cirúrgicos no total, no espaço de três dias. Há alguns dias

Page 98: O Homem do Teto - Frank Pires

98

você foi submetido a uma cirurgia para fazer a

reconstrução da calota craniana. Seu estado ainda é uma

incerteza, pois você ainda não respondeu a estímulos,

então só resta esperar.

__E se eu quiser voltar? O que eu devo fazer?

__Você só vai saber se tentar. Você ficou muito

tempo no teto do quarto, com medo.

Por um instante, pensei em como seria minha

vida pós-AVC. Nem certeza eu tinha se iria acordar e

nem quando isso aconteceria. De acordo com as

explicações de Aluízio, eu poderia ter sequelas graves,

como perda de algum sentido, comprometimento dos

movimentos e de locomoção e até perda da memória.

Mas mesmo com todas essas incertezas, eu estava

totalmente convicto que queria tentar.

Eu tinha certeza de uma coisa: minha amada

família estaria me esperando para cuidar de mim e me

ajudar no que fosse preciso.

Page 99: O Homem do Teto - Frank Pires

99

Nada nesse mundo poderia se comparar a alegria

que meus familiares e amigos teriam com meu retorno.

__Você vem comigo ou vai ficar? __Perguntou-

me Aluízio.

__Você até agora me falou do que pode acontecer

se eu escolher ficar. Porém nada me disse sobre a

segunda opção.

__O que você quer saber?

__O que tem do outro lado?

__Não sei. __ disse ele.

__Como assim, não sabe? Você veio de lá certo?

Tem que saber!

__Não é bem assim Alberto. O que tem do outro

lado pra mim, não significa que vai ser o mesmo para

você. Assim como o que tem para você, não

necessariamente terá para outra pessoa. __continuou sua

explanação. __Para que você saiba o que há lá, terá que

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100

desistir de voltar e vir comigo. E na hora certa nos

separamos, minha missão é deixá-lo na porta, de

qualquer uma das opções. O resto é com você.

__Só assim eu saberei?

__Isso. Só assim você saberá. E então, o que você

decide? Não temos mais tempo.

__Eu vou ficar! __Respondi-lhe convicto que a

minha decisão era sem dúvida a mais certa. Eu queria

mesmo voltar, ainda que isso significasse recomeçar do

zero, como uma criança de colo.

__Tudo bem. Então preciso ir. Espero que tudo

fique bem. __Falou Aluízio num tom de despedida, mas

sempre com um semblante sério.

__E como vai ser agora? Digo, quando eu

precisar me comunicar com você, o que eu faço? É só eu

chamar e você aparece?

__Não. Não nos falaremos mais. Minha missão

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101

com você já está cumprida. Eu lhe expliquei o que

aconteceu e quais as suas alternativas. Você fez a sua

escolha e agora é com você. __Fiquei triste com a

resposta, o Aluízio parecia ser um “cara legal”.

__Tudo bem. Eu entendo, mas ainda tenho

perguntas. O que eu faço agora? Entro dentro do meu

corpo e acordo?

__Você vai descobrir sozinho. __respondeu-me

Aluízio. E desapareceu, deixando um rastro de luz,

brilhante como o sol. Não vá. E desculpa por ter te

chamado de “ninja ladrão de cachorro”. Pensei.

Um pena mesmo ele ter partido.

Aluízio era, com toda a certeza, um ser

iluminado, ele sabia das coisas que a maioria de nós não

sabe. Adoraria aprender mais com ele sobre o caminho

da sabedoria. Imagino que ele não me apareceu por acaso

e quem sabe um dia nos veremos novamente.

Page 102: O Homem do Teto - Frank Pires

102

Capítulo XIV

Essa minha jornada estava longe de acabar e

disso eu tinha certeza.

Com a ida de Aluízio, quase que de imediato fui

trasladado para o CTI e a visão que tive foi chocante.

Quando se tem um AVC hemorrágico como o que

eu tive, e sobrevive, você não pode pensar no que

perdeu, como os movimentos, a independência, a

capacidade de locomoção, essas coisas, deve-se refletir

sobre o que se ganha: uma nova chance.

Eu encontrei um lugar pra me instalar no CTI: o

teto.

Até que a visão de lá era privilegiada pra mim. Lá

de cima, eu conseguia me ver entubado, desfigurado,

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103

deformado e desacordado. Era algo assustador. Não era

tão simples como eu pensava, pois não tinha nenhum

controle sobre nada e nem sabia quanto teria.

Estava em um hospital particular, com todos os

recursos, incluindo uma excelente equipe médica. O que

precisava ser feito, foi feito.

Eu recebia atenção total da equipe de

enfermagem e havia uma grande expectativa com o meu

retorno.

Agradeci a Deus por ter me dado condições de ter

acesso a tudo isso, pois sabia que a grande maioria das

pessoas que dependem da saúde pública não teria

resistido, ou talvez nem tivesse conseguindo leito para

internação.

__Vamos, Seu Alberto. Tá na hora do banho.

__Falou-me a jovem da equipe de enfermagem, como se

eu estivesse consciente.

Emocionei-me com os cuidados que recebia da

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104

profissional. E com certeza, assim como ela, outros

profissionais estavam cuidando de mim nesses dias de

internação.

Eu parecia estável, já respirava sem ajuda de

aparelhos e tinha uma expressão serena. Minha

atividade cerebral era monitorada o tempo todo. E

mesmo assim, a qualquer momento, eu ainda podia ter

morte cerebral, o que significava em outros termos,

morte baseada na ausência de todas as funções

neurológicas.

Sigmund Freud disse certa vez que “é possível

que a morte em si não seja uma necessidade biológica.

Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como

amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao

mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o

desejo de manter-se e o desejo da própria destruição. Do

mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a

assumir a forma original, assim também toda a matéria

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105

viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir

a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica.

O impulso de vida e os impulsos de morte habitam lado a

lado dentro de nós. A morte é a companheira do Amor.

Juntos eles regem o mundo”.

Não sei se concordo com ele em tudo, mas

realmente a vida e morte habitam lado a lado dentro de

nós. E mesmo depois da barreira do físico, nesse estado

espiritual ou emocional, as sensações de vida e de morte

continuavam a povoar minha consciência. Não como

uma luta de sentimentos, mas como uma dança

coordenada onde cada um tem a sua apresentação

independente, e você acaba aplaudindo àquela que mais

lhe atraiu.

De acordo com a “teoria” de Aluízio, eu saberia o

que fazer para voltar. Mas eram teorias complexas

demais para o meu pequeno conhecimento humano. Eu

não sabia de nada. Já estava no CTI há dias esperando e

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106

nada.

Se voltar ao meu corpo dependia de vontade

minha, porque ainda não tinha voltado, será que pelo

mesmo motivo que ficara no teto do quarto todo aquele

tempo? Ou não era isso que eu desejava realmente?

Confesso que era como se algo me atraísse para o

“outro lado”, por um instante até pensei em fugir dali e

vagar pelo universo procurando outro caminho. Talvez

ainda desse tempo de alcançar Aluízio e encarar o que

havia por trás da outra porta.

Será que Freud estava certo, quando disse que

“biologicamente, todo ser vivo, não importa quão

intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo

Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia

pelo seio de Abraão”. Pensei nisso com um ar de

ansiedade e curiosidade.

As coisas estavam mais confusas ainda para mim;

novamente estava dominado pelo maldito medo. Fora ele

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107

que me prendera no teto do quarto e agora estava me

prendendo no teto do CTI.

Preciso perder o medo. Preciso voltar. Pensei.

A força do pensamento positivo, a fé. Eu tinha

que voltar. Eu tinha que enfrentar os obstáculos futuros,

não importando quão grandes eles fossem. Eu era um

milagre! E isso bastava.

Foi quando percebi que minha capacidade de

“flutuação” estava desaparecendo e já não conseguia

ficar grudado no teto. Não tive medo.

Aos poucos eu ia descendo, não por vontade

própria, foi algo involuntário e até inesperado.

Minha esposa estava dormindo sentada numa

poltrona ao lado da cama. Olhei-a enquanto descia

lentamente.

Que mulher extraordinária! Pensei. Ela estava lá.

Apesar do medo. Ela não saiu de lá. Preciso voltar para

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108

ficar com ela. Os filhos um dia seguirão seu caminho.

Mas ela estaria lá comigo no nosso caminho. Não podia

deixá-la. Eu pensava nisso tudo enquanto continuava

descendo do teto lentamente.

Vou acordar mais forte, mais experiente, mais

cheio de vida e fé. Pensava e dizia a mim mesmo.

A fé é uma conquista difícil, podemos perdê-la a

qualquer momento. Por isso é preciso exercitá-la sempre,

todos os dias.

A força magnética que me atraía era mais forte do

que eu. Uma força que me puxava para baixo, em

direção ao meu corpo. Não reagi, era algo natural, como

o curso de um rio.

Deixei-me levar por ela, entreguei-me totalmente,

sem medo, àquele mistério.

Minha linda esposa levantou-se, afagou meu

rosto com carinho e beijou-me a testa. Como eu amava

aquela mulher. Ela caminhou até o banheiro.

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109

Olhei para minhas mãos e eu estava

desaparecendo. Mãos, braços, aquela imagem do que

seria meu espírito ou minha alma ia esvaindo-se diante

de mim.

Quando Silvana voltou, caminhou lentamente em

direção ao meu leito.

Tinha uma aparência cansada. Estava exausta.

Ela não desistiu de mim. Porque eu desistiria dela?

Pensei.

Senti uma pontada no coração. Algo muito

estranho estava acontecendo e percebi que aquele era um

momento muito importante para o futuro da minha

existência. E enquanto me aproximava do leito onde meu

corpo repousava, perdi completamente a consciência.

Senti o processo transitório me afetando e um

mal estar horrível tomou conta de mim. A cabeça toda

doía bastante.

A sensação de secura na boca era muito forte e

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110

era como se todos os músculos do meu corpo tremessem,

num processo convulsivo e incontrolável. Mas meu

corpo terreno estava imóvel no leito.

Não sei quanto tempo durou isso, mas a vontade

de abrir os olhos e ver onde eu estava era inevitável.

Um redemoinho de imagens dominou minha

mente. E embarquei numa viagem extraordinária ao som

de cachoeiras e ventanias, que eu só posso descrever

como uma experiência indescritível, inenarrável e

inefável, simplesmente impossível de ser reproduzida

com fidelidade em palavras. Era mágico!

Então tive a mais linda visão que nenhum ser

humano pode imaginar: vi uma espécie de mandala com

tons esverdeados. Eram centenas de tonalidades de

verde. Era a coisa mais incrível e mais linda que meus

olhos já viram!

Mergulhei nela como se fosse um portal da vida.

A vida é verde, de todos os tons possíveis. E ao ver a

Page 111: O Homem do Teto - Frank Pires

111

mandala, eu vi o amor, a esperança, a gratidão, a força.

Ela girava e eu girava com ela, ia penetrando em

suas camadas de várias dimensões.

Não tenho como narrar os sentimentos e

pensamentos que me acompanhavam naquele momento.

Seria mentira dizer que pensei “nisso” ou “naquilo”. Não

sei no que pensei. Eu segui viagem até o fim da mandala.

E quando cheguei ao fim só pensei em acordar. Então

acordei.

Page 112: O Homem do Teto - Frank Pires

112

Capítulo XV

Senti a luz rasgando meus olhos. Uma sensação

de ardor, somada a profunda emoção me fizeram

lacrimejar e meus olhos finalmente puderam ver, mesmo

que um tanto embaçado, o movimentar de minha linda

Silvana.

Ela agia com naturalidade, andava de um lado

para o outro, como que pensando em mais um dia de luta

que teria pela frente.

Eu só podia olhar e nada mais. E nem tentava

fazer mais que isso. Para mim, era o que bastava: Ver.

Que sensação maravilhosa! Que prazer para

minha alma! Eu estava vivo! Pensei com alegria.

Eu não tinha a mínima ideia do amanhã e não me

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113

importava. O mais importante é que eu estava vivo.

Silvana foi até sua bolsa e voltou com um terço

na mão, junto com um pequeno livro de orações diárias.

Aproximou-se da cama, sentou-se na cadeira,

apoiou sua cabeça na cama, próximo a minha perna e

pôs-se a rezar em pensamentos.

Ela não percebera em meu rosto, senão teria visto

meu olhar fitando-a com admiração e amor.

Ela rezava segurando o terço e eu queria alisar

seus cabelos, mas ainda não podia mexer-me. Minha

boca e minha garganta estavam secas demais e não

conseguia falar, nem emitir som algum. Como vou

chamá-la? Pensei.

Mas naquele momento mágico e único, me

contentava e me saciava apenas olhá-la. Todas as minhas

emoções, todo o meu corpo debilitado e frágil, todas as

minhas células, tudo em mim celebrava a vida.

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Como era bom estar de volta! Uma nova chance

me fora dada e eu não a desperdiçaria. Abraçaria a vida

com todas as forças.

Muitas pessoas acordam do coma, abrem os olhos

e não tem ninguém por perto. Eu me sentia mais ainda

abençoado, pois minha primeira visão fora o rosto de

minha amada esposa.

Senti meus olhos cansados e os fechei novamente

enquanto Silvana clamava a Deus por um milagre.

Abri novamente os olhos e aos poucos e

lentamente minha visão foi se estabilizando com o

ambiente do CTI.

Não dava para saber se era dia ou noite, é um

ambiente isolado de tudo. Mas ela estava lá, isso era o

mais importante.

Coisa linda é a gente poder se comunicar por

meio da alma, sem que palavra alguma necessariamente

aconteça. E foi isso que aconteceu. Não precisei chamá-

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la, ou mesmo tocá-la. Apenas olhava para ela. E penso

que ela sentiu.

Ela me disse depois, quando conversávamos

sobre tudo o que acontecera, que no momento em que

orava, teve a estranha sensação de estar sendo observada.

E estava.

Silvana interrompeu suas preces para me olhar e

viu meus olhos abertos. Olhei no fundo dos seus olhos e

ela nos meus. Era minha cara-metade. Meu amor. Ficou

pálida e começou a chorar. Alguém da equipe médica

correu pensando que eu tinha morrido. Mas quando

chegou viu justamente o contrário. Era vida e não morte.

Depois de 82 dias, eu acordara do coma. Eu era o seu

milagre.

__O que aconteceu? __a enfermeira perguntou-

lhe.

__Deus está mostrando a Sua Glória! __ ela

respondeu.

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Capítulo XVI

É possível alguém em coma interagir com o

meio através de sua energia vital, seu espírito, sua alma,

ou qualquer outro nome que queiramos dar ao “eu”

verdadeiro?

Alguém pode afirmar categoricamente que não,

mas eu sei o que vivi nesses 82 dias em que estive “fora

de mim”.

Sei onde fui e com quem me comuniquei,

podendo até dar detalhes de coisas e pessoas.

Talvez eu não possa explicar, e nem o Aluízio, o

motivo pelo qual eu tenha permanecido no teto do meu

quarto por tanto tempo, estando meu corpo em outro

lugar.

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Para os médicos e cientistas, essa ainda é uma

área nebulosa, são opiniões e teorias divergentes.

Sabemos que existem inúmeros relatos de

pacientes que dizem interagir, sentem, ouvem, pensam e

se emocionam, embora o corpo não possa demonstrar.

Cada escolha que fazemos na vida é uma

revolução e uma grande revolução estava acontecendo

em mim.

Eu escolhera viver e todas as minhas células,

todas as moléculas, todos os músculos estavam em uma

revolução. Era a vitória da vida.

Minha esposa chorava compulsivamente e me

olhava nos olhos.

__Eu te amo! __ ela falou-me.

Não pude responder. Eu ouvia, compreendia, mas

não interagia.

Até tentei responder, mas não consegui. Teria que

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ser com a voz da alma.

Nem todos acordam do coma da mesma forma,

eu tinha a compreensão das coisas perfeitamente, mas

nem sempre é assim.

A notícia do meu retorno espalhou-se

rapidamente e logo o hospital estava cheio de parentes,

amigos e até curiosos.

Durante algum tempo eu só podia mexer os olhos

e era com eles que eu me comunicava, piscando.

Era bom saber que eles se esforçavam para

estabelecer um diálogo comigo através de sinais. Isso era

bom para mim.

Minha recuperação a partir daí foi gradual. Eu era

acompanhado por médicos de diversas especialidades,

além de uma equipe de fisioterapeutas, massagistas,

acupunturistas, nutricionistas, entre outros.

Além dos olhos, depois passei a movimentar

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primeiro os dedos, as mãos e fui evoluindo a cada dia.

Um dia de cada vez, sem pressa, sem medo.

Apesar de ainda não falar, podia ouvir bem meus

pais, meus filhos e minha esposa. Eram muitas histórias

tristes e engraçadas e compartilhávamos todos os dias

esses momentos de atualização.

Num momento em que estávamos a sós, Silvana

me disse que nunca desistira de mim. Que acreditava

com todas as forças que eu voltaria e que a qualquer

momento eu iria abrir os olhos e dizer: voltei amor!

Também me disse que uma coisa estranha

aconteceu no hospital. Disse que numa noite, um médico

apareceu no CTI e falou com ela. Disse-lhe para ter

calma e fé que tudo iria se resolver, que logo eu iria

acordar do coma. Depois, o médico alisou minha cabeça

e foi embora, não mais voltando ou sendo visto pelo

ambiente hospitalar. Tudo isso seria até normal e ela

ficaria uns dias sem pensar nisso, se não fosse um

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detalhe que ocorreria dias depois: Ao passar pelos

corredores da administração do hospital, vira na parede

um quadro com a foto do médico que falara com ela. Ao

perguntar a uma secretária sobre como falar com aquele

médico, esta lhe respondeu que seria impossível, pois

este era um dos fundadores do hospital e já havia

morrido há mais de vinte anos.

Ouvi atentamente a história contada por Silvana e

fiquei impressionado com ela. Mas minha esposa falou

com naturalidade. Ela não tinha medo. E disse-me que

não contara a ninguém o que ocorrera, pois poderiam

pensar que ela estava louca.

Posteriormente, quando já falava e me

locomovia, pedi a Silvana que me levasse até o quadro

do médico. Ao chegar tive a grata confirmação de minha

suspeita. Era ele, o Dr. Aluízio.

Silvana foi a única pessoa para quem contei sobre

o que eu vivera nos dias de coma. Nunca contei a mais

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ninguém sobre minha experiência, guardei-a comigo

durante muito tempo, compartilhando esse segredo

apenas com ela. Contei-lhe sobre o teto, sobre Bilu,

sobre o Dr. Aluízio e sobre tudo o que senti e aprendi.

Ela ouviu-me atentamente, depois me abraçou com

ternura e disse-me:

__ Você é um abençoado. Viu tudo isso e está

aqui para contar. Não tenha medo de algum dia alguém

disser que isso não aconteceu. O importante é o seu

coração. __ falou, me fazendo chorar.

Sei o que eu vi, o que senti e o que passei, mas

confesso que por vezes me pego pensando em outras

hipóteses para tudo isso.

Sempre me pergunto se não foi tudo um sonho,

uma grande ilusão. O que eu posso dizer é que não se

deve perder nunca a esperança, é possível sim superar

esses momentos críticos e muitas vezes desesperadores.

E mesmo que os maiores especialistas digam o contrário,

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não desista, não perca a fé e a esperança, pois a palavra

final é de Deus. Se você tem esperança, logo, você tem

tudo.

Por mais que essas experiências de “quase morte”

não possam ser materializadas em provas concretas, eu

vivi isso.

Não posso dizer que passei a levar uma vida

normal, porque tive algumas sequelas e

consequentemente, alterações significativas no meu

modo de vida, tendo a minha família que se adaptar as

mudanças que vieram.

Mas agradeço imensamente a nova chance que

me fora dada e tenho procurado aproveitar o máximo a

vida em toda a sua plenitude, em especial com minha

família.

Não voltamos a morar na casa antiga, que

acabamos vendendo para Dona Constância, porém fiz

questão de pedir permissão aos novos proprietários do

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imóvel, para, pela última vez, visitar o quarto que antes

fora meu e de Silvana, e agora pertencia a Carlos.

Olhei para o teto, em direção ao local onde eu

tinha ficado por mais quase três meses e recordei alguns

dos momentos de dor e aprendizado que passei do “outro

lado”.

Nunca saberei como e porque fui parar lá, bem

como, porque fiquei tanto tempo naquele estado de

transição, mas aprendi muito e tive uma oportunidade

única de acompanhar o amor e dedicação de minha

família para me manter vivo.

Ainda tinha uma coisa a fazer e fiz: comprei a

tela “O Homem do Teto”, do jovem artista Carlos e dei a

ela um lugar de destaque na sala de estar de minha nova

casa.

Paguei um bom preço pela tela e ele ficou muito

feliz, servindo até como um incentivo ao seu trabalho

talentoso.

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Casa nova, vida nova, tudo novo, inclusive o

cãozinho de estimação.

Para tentar compensar a ausência de Bilu, dei de

presente à Amanda uma “York Shire” linda e fofinha,

batizada como “Lilica”.

Ela é muito esperta e já aprendeu alguns truques.

O problema é que as vezes Lilica entra correndo no

quarto e me dá um basta susto: fica latindo sem parar,

olhando para o teto.

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FIM