O Homem Medíocre

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O Homem Medocre (1913)Jos Ingenieros (1877-1925)

INTRODUO A MORAL DOS IDEALISTASi. a emoo do ideal. ii. de um idealismo com fundamento na experincia. iii. os temperamentos idealistas. iv. o idealismo romntico. v. o idealismo estico. vi. smbolo.I A emoo do idealQuando orientas a proa visionria em direo a uma estrela, e desdobras as azas para atingir tal excelsitude inacessvel, ansioso de perfeio rebelde mediocridade, levas em ti o impulso misterioso de um Ideal. scua sagrada, capaz de te preparar para grandes aes. Cuida-a bem; se a deixares apagar, jamais le se reacender. E se ela morrer em ti, ficars inerte: fria bazfia humana.Vives apenas devido a essa partcula de sonho que te sobrepe ao real. Ela o liz do teu brazo e penacho do teu temperamento. Signos inumerveis a revelam: quando se te aperta a garaganta, ao recordar a cicuta imposta a Scrates, a cruz iada a Cristo, ou a fogueira acendida a Bruno; quando te abstrais ao infinito, lendo um dilogo de Plato, um ensaio de Montaigne, ou um discurso de Helvtio; quando o teu corao se estremece, ao pensar na sorte desigual dessas paixes, durante as quais foste, alternadamente, o Romeu de tal Julieta e o Werther de tal Carlota; quando as tuas fontes se gelam de emoo, ao declamar uma estrofe de Musset, que rima de acordo com o teu sentir; e quando, em suma, admiras a mente preclara dos genios, a sublime virtude dos santos, o magno feito dos heris, inclinando-te, com igual venerao diante dos criadores da Verdade ou da Beleza.Nem todos se extasiam, como tu, ante um crepsculo, nem sonham ante uma aurora, nem vibram ante uma tempestade; nem todos gostam de passear com Dante, rir com Moliere, tremer com Shakespeare, crepitar com Wagner; nem todos emudecem diante doDavi, da Ceiaou do Parteno. dada a poucos essa inquietude de perseguir avidamente alguma quimera, venerando filsofos artistas e pensadores, que fundiram, em snteses supremas, suas vises do sr e da eternidade, voando para alm do Real.Os seres da tua estirpe, cuja imaginao se povoa de ideais e cujo sentimento polariza em direo a eles a personalidade inteira, formam uma raa aparte, na humanidade: so idealistas.Quem se sentir poeta, definindo sua prpria emoo, poder dizer: o Ideal um impulso do esprito no sentido da perfeio.II De um idealismo com fundamentoOs filsofos do futuro, para se aproximarem de formas de expresso cada vez menos inexatas, deixaro aos poetas o famoso privilgio da linguagem figurada; e os sistemas futuros, desprendendo-se de remotos resduos msticos e dialticos, iro tomando a experincia como fundamento de toda hiptese legtima.No afoiteza pensar que, na tica do porvir, florescer umidealismo moral,independente de dogmas religiosos e de apriorismos metafsicos; os ideais da perfeio, fundados na experincia social, e evolutivos como ela prpria, constituiro a ntima conexo de uma doutrina de perfetibilidade indefinida, propcia a todas as possibilidades da elevao humana.Um ideal no uma frmula morta, seno uma hiptese perfectvel; para que sirva, deve ser concebida assim, atuante em funo da vida social, perpetuamentein fieri.A imaginao, partindo da experincia, antecipa juzos acerca de futuros aperfeioamentos; os ideais, em todas as crenas, representam o resultado mais alto da funo de pensar.A evoluo humana um esforo contnuo do homem para se adaptar natureza, que evolue por sua vez. Para isso, preciso conhecer a realidade ambiente e prever o sentido das prprias adaptaes: os caminhos da sua perfeio. Suas etanas se refletem na mente humana, como ideais. Um homem, um grupo ou uma rara, so idealistas, porque circunstncias propcias determnam que a imaginao conceba aperfeioamentos possveis.Os ideais so formaees naturais. Aparecem quando a funo de pensar atinge um grau de desenvolvimento tal. que a imaginaro pode antecipar-se experincia. No so entidades misteriosamente infundidas nos homens, nem nascem do acaso. Formam-se, como todos os fenmenos acessveis nossa observaro. So efeitos de causas, acidentes na evoluo universal, investigada pelas cincias e resumida pelas filosofias. E fcil explic-lo. quando se compreende.O nosso sistema solar um ponto no cosmos; esse ponto um simples pormenor do planeta que habitamos; nesse pormenor, a vida um transitrio equilbrio qumico da superfcie; entre as complicaes desse equilbrio vivente, a espcie humana data de um perodo brevssimo; no homem se desenvolve a funo de pensar, como um aperfeioamento da adaptao ao meio; uma das suas modalidades, a imaginao, que permite generalizar os dados da Experincia, antecipando seus resultados possveis e abstraindo, dela, ideais de perfeio.Assim, a histria do futuro, ao invs de neg-los, permitir afirmar a sua realidade como aspectos legtimos da funo de pensar, e os reintegrar na concepo natural do universo. Um ideal um ponto e um momento, em meio dos infinitos possveis que povoam o espao e o tempo.Evoluir variar. Na evoluo humana o pensamento varia incessantemente. Toda variao adquirida por temperamentos predispostos; as variaes teis tendem a conservar-se. A Experincia determina a formao natural dos conceitos genricos, cada vez mais sinticos; deste, a imaginao abstrai certos caracteres comuns, elaborando idias gerais que podem ser hipteses acerca dofieriincessante: assim se formam os ideais, que, para o homem, so normativos da conduta, de conformidade com suas hipteses. Eles no so apriorsticos, sino induzidos de uma vasta experincia; sobre esta se inclina a imaginao, para prever o sentido em que a Humanidade varia. Todo ideal representa um novo estado de equilbrio entre o passado e o futuro.Os ideais podem no ser verdades: so crenas. Sua fora se estriba em seus elementos afetivos; influem sobre nossa conduta, na medida em que neles cremos. Por isso, a representao abstrata das variaes futuras, adquire um valor moral: as mais proveitosas para a espcie, so concebidas como aperfeioamentos. O Futuro se identifica com o perfeito. E, os ideais, por serem vises antecipadas do vindouro, influem sobre a conduta, e so instrumento natural de todo o progresso humano.

Enquanto a instruo se limita a dilatar as noes que a experincia atual considera mais exatas, a educao consiste em sugerir os ideais que se presumem propcios perfeio .***O conceito do melhor um resultado natural da prpria evoluo. A vida tende, naturalmente, a aperfeioar-se. Aristteles ensinava que a atividade um movimento do sr em direo prpria "entelequia": seu estado de perfeio.Tudo o que existe, procura a sua "entelequia", e essa tendncia se reflete na mente dos seres imaginativos .Como acontece a todas as outras funes do esprito, a formao de ideais est submetida a um determinismo que, por ser complexo, no menos absoluto. No so obra de uma liberdade que escapa s leis do todo universal, nem produtos de uma razo pura que ningum conhece. So crenas aproximativas- acerca da perfeio vindoura. O futuro o melhor do presente, posto que sobrevive na seleo natural; os ideais so arremesso no sentido do melhor, enquanto simples antecipaes do vir-a-ser. medida que a experincia humana se amplia, observando a realidade, os ideais vo sendo modificados pela imaginao, que plstica e jamais repousa. Experincia e imaginao seguem caminhos paralelos, muito embora aquela se atraze em relao a esta. A hiptese va, o feito caminha; s vezes tem a aza m direo; os ps pisa sempre em terra firme; mas o vo pode ser retificado, enquanto que o passo nunca pode voar.A imaginao me de toda originalidade; deformando o real, no sentido da sua perfeio, ela cria os ideais, dando-lhe impulso, com o ilusrio sentimento daliberdade; o livre arbtrio erro til para a gestao dos ideais. Porisso, tem praticamente o valor de uma realidade. Demonstrar que simples iluso devida ignorncia de causas inmeras, no implica na negao da sua eficcia.As iluses tm tanto valor, para dirigir a conduta, como as verdades mais exatas; podem valer mais do que elas, quando intensamente pensadas ou sentidas.O desejo de ser livre nasce do contraste entre dois mveis irredutveis: a tendncia a perseverar no sr, implcita na herana, e a tendncia a aumentar o sr, implcita na variao. Uma princpio de estabilidade, outra, de progresso.Em todo ideal, seja qual fr a ordem a cujo aperfeioamento, tenda, h um princpio de sntese e de continuidade: " idia fixa, ou emoo fixa".Como propulsores da atividade humana, equivalem-se e se implicam reciprocamente, muito embora predomine o raciocnio na primeira, e a paixo na segunda."Esse princpio de unidade, centro de atrao e ponto de apoio de todo trabalho da imaginao criadora, isto , de uma sntese subjetiva que tende a objetivar-se, o ideal", disse Ribot.A imaginao despe a realidade de tudo o que mu, adornando-a de tudo o que bom, depurando a Experincia e cristal izando-a nos moldes de perfeio que concebe como sendo os mais puros. Os ideais so, portanto, preconstrues imaginativas da realidade que vir a ser.So sempre individuais. Um ideal coletivo a coincidncia do muitos indivduos num mesmo af de perfeio. No dizer que uma "idia" os unifique, e, sim, que uma anloga maneira de sentir e de pensar converge todos eles para um "ideal" comum. Cada ra, sculo ou gerao pode ter seu ideal; s ser patrimnio de uma seleta minoria, cujo esforo consegue imp-lo s geraes seguintes. Cada ideal pode incarnar-se num gnio; a princpio, enquanto le o define ou plasma, s compreendido pelo pequeno ncleo de espritos sensveis ao ritmo da nova crena.***O conceito abstrato de uma perfeio possvel, recebe sua fora da Verdade que os homens lhe atribuem; todo ideal uma f na prpria possibilidade da perfeio. No seu protesto involuntrio contra o mal, sempre se revela uma indestrutvel esperana no melhor; na sua agresso contra o passado, fermenta uma sadia levedura do porvir.No um fim, sino um caminho. sempre relativo, como toda crena. A intensidade, com que tende a realizar-se, no depende da sua verdade efetiva, e, sim, da que se lhe atribue. Ainda quando interpreta erroneamente a sua verdade ou na sua excelsitude.Reduzir o idealismo a um dogma de escola metafsica, equivale a castr-lo; denominar idealismo s fantasias de mentes enfermias ou ignorantes, que crem sublimar, assim, a sua incapacidade de viver e de se ilustrar, uma das tantas ligeirezas aventadas pelos espritos palavreiros.Os mais vulgares dicionrios filosficos alimentam suspeitas em relao a este embuste deliberado: "Idealismo; palavra muito vaga, que no deve ser empregada sem prvia explicao".H tantos idealismos como ideais e tantos ideais como idealistas; tantos idealistas como homens aptos para conceber perfeies e capazes de viver no senti-do delas.Deve recusar-se o monoplio dos ideais a todos quantos o reclamam em nome de escolas filosficas, sistemas de moral, credos de religio, fanatismos de seitas, ou dogmas de esttica.O "Idealismo" no privilgio das doutrinas espiritualistas, que desejariam op-lo ao "materialismo", denominando, assim pejorativamente, todas as outras; esse equvoco, no explorado pelos inimigos das cincias temidas justamente comofontanriosde Verdade e de Liberdade duplica-se ao sugerir que a matria a sntese da idia, depois de confundir o ideal com idia e esta com o esprito, como entidade transcendente e alheia ao mundo real. Tratava-se, visivelmente, de um jogo de palavras, secularmente repetido pelos seus beneficirios, que emprestam s doutrinas filosficas o sentido que tm os vocbulos "idealismo" e "materialismo", na ordem moral. O anelo de perfeio, no conhecimento da verdade, pode animar, com igual mpeto, o filsofo monista e o dualista, o telogo e o ateu, o estico e o pragmatista. O ideal particular de cada um concorre ao ritmo total da perfeio possvel, ao invs de obter o esforo similar dos demais.E mais mesquinha, ainda, a tendncia a confundir o idealismo que se refere aos ideais, com as tendncias metafsicas, que assim se denominam, pela razo de considerarem as "idias" mais reais do que a prpria realidade, ou pressuporem que elas so a realidade nica, forjada pela nossa mente, como no sistema hegeliano."Idelogos" no pode ser sinnimo de "Idealistas", embora o mau vezo induza a crer que assim seja. Nem poderamos restring-lo ao pretendido idealismo de certas escolas estticas, porque todas as modalidades do naturalismo e do realismo podem constituir um ideal de arte, quando so seu sacerdotes Miguel ngelo, Ti-ciano, Flaubert ou Wagner; o esforo imaginativo dos que buscam uma ideal harmonia de ritmos, de cores, de linhas ou de sons, se equivale, sempre que a sua obra revele uma atitude de beleza ou uma personalidade original.No o confundiremos, enfim, com certo idealismo tico, que tende a monopolizar o culto da perfeio em favor de algum dos fanatismos religiosos predominantes em cada poca, pois, alm de no existir um nico e inevitvel, Bem ideal, dificilmente le caberia nos catecismos para mente obtusas. O esforo individual no sentido da virtude, pede ser to magnificamente concebido e realizado pelo peripattico, como pelo cirenico, pelo cristo, como pelo anarquista, pelo filantropo como pelo epicureu, pois todas as teorias filosficas, so igualmente compatveis com a aspirao individual no sentido do aperfeioamento humano. Todos eles podem ser idealistas, quando sabem iluminar-se em sua doutrina, e em todas as doutrinas podem albergar-se os dignos e os parasitas, os virtuosos e os sem vergonha. O anelo e a possibilidade da perfeio no so patrimnio de nenhum credo: recordam a gua daquela fonte, citada por Plato, que se no podia conter em nenhum vaso.A Experincia, e s ela, decide na legitimidade dos ideais em cada tempo e lugar. No curso da vida social, selecionam-se naturalmente; sobrevivem os mais adaptados, os que melhor prevem o sentido da evoluo, isto , os coincidentes com o aperfeioamento efetivo.Enquanto a Experincia no d o seu veredicto, todo ideal respeitvel, embora parea absurdo. E til, por sua fora de contraste. Se falso, morre por si, no causa dano.Todo ideal, por ser uma crena, pode conter uma parte de erro, ou ser errado totalmente; uma viso remota e, portanto, exposta a ser inexata. O nico mal carecer de ideais e escravizar-se s contingncias da vida prtica imediata, renunciando possibilidade da perfeio moral.***Quando um filsofo enuncia ideais, para o homem ou para a sociedade, a compreenso imediata deles tanto mais difcil, quanto mais se elevam sobre os prejuzos e palavreados convencionais do ambiente que o rodeia; o mesmo acontece com a verdade do sbio e com o estilo do poeta.A sano alheia fcil para o que concorda com rotinas secularmente praticadas; difcil, quando a imaginao pe maior originalidade no conceito ou na forma.Esse desequilbrio, entre a perfeio concebvel e a realidade praticvel, se estriba na prpria natureza da imaginao, rebelde ao tempo e ao espao. Desse contraste legtimo, no se infere que os ideais lgicos, estticos ou morais, devam ser contraditrios entre si, embora sejam heterogneos e marquem passo em ritmo desigual, segundo os tempos: no h uma Verdade amoral ou feia, nem nunca foi a Beleza absurda ou nociva, nem o Bom teve suas razes no erro ou na desarmonia. Do contrrio, conceberamos perfeies imperfeitas.So convergentes os caminhos de perfeio. As formas infinitas do ideal so complementares; jamais contraditrias, embora paream. Si o ideal da cincia a Verdade, da moral o Bem, e da arte a Beleza, formas proeminentes de toda excelsitude, no se concebe que possam ser antagnicas.Os ideais esto em perptuo vir-a-ser, como as formas da realidade, s quais se antecipam. A imaginao os constri observando a natureza, como um resultado da Experincia; mas, uma vez formados, j no esto nela, so antecipaes dela, vivem sobre ela, para assinalar o seu futuro. E, quando a realidade evolui no sentido de um ideal previsto, a imaginao se aparta novamente da realidade, dela afasta o ideal.A realidade nunca pode igualar o sonho, nessa perptua busca da quimera.O ideal um "limite": toda realidade uma "dimenso varivel", que se lhe pode aproximar indefinidamente, sem alcan-la nunca. Por muito que o "varivel" se aproxime do seu "limite", concebe-se que poderia aproximar-se ainda mais; s se confundem no infinito. Todo o ideal sempre relativo a uma imperfeita realidade presente. No h ideal absoluto. Afirm-lo implicaria na abjurao da sua prpria essncia, negando a possibilidade infinita da perfeio. Erravam os velhos moralistas cuidando que, ao ponto onde estava o seu esprito, nesse momento, convergiam todo o espao e todo o tempo; para a tica moderna, livre dessa grave falcia, a relatividade dos ideais um postulado fundamental. S possuem um carter comum: a permanente transformao no sentido de aperfeioamentos ilimitados.Toda moral alicerada em supersties e dogmatismos, prpria de mentes primitivas. E contrria a todo idealismo, alm de excluir todo ideal. A cada momento e em cada lugar, a realidade varia; com essavariao,desloca-se o ponto de referncia dos ideais. Nascem e morrem, convergem ou se excluem, empalidecemou se acentuam; so, tambm eles, viventes como os crebros em que germinam ou se radicam, num processo sem fim. No havendo um padro final e insupervelde perfeio, tambm no h dois ideais hu mamos. Formam-se por mudana incessante; evoluem sempre; sua palingensiaeterna.* * *Essa evoluo dos ideais no segue um ritmo uni forme, no curso da vida social ou individual. H climas morais, horas, momentos, em que toda uma raa, um povo, uma classe, um partido, uma ceita, concebe um ideal e se esfora no sentido da sua realizao. E os h na evoluo de cada homem, isoladamente considerado.H tambm climas, horas e momentos em que os ideais murmuram apenas, ou se calam; a realidade oferece imediatas satisfaes aos apetites, e a tentao da saciedade sufoca toda nsia de perfeio.Cada poca tem certos ideais que pressentem melhor o porvir, entrevistos por poucos, seguidos pelo povo ou sufocados pela sua indiferena, ora predestinados a orient-lo como plos magnticos, ou a ficar latentes, at encontrarem a glria, em momento e clima propcios. E outros ideais morrem, porque so crenas falsas: iluses que o homem forja a respeito de si mesmo, ou quimeras verbais que os ignorantes perseguem, tateando na sombra.* * *Sem ideais, seria inexplicvel a evoluo humana. Sempre existiram e existiro sempre. Palpitam atrs de todo esforo magnfico realizado por um homem ou por um povo. So faris sucessivos na evoluo mental dos indivduos, bem como das raas. A imaginao os acende, ultrapassando continuadamente a Experincia, antecipando-se aos seus resultados. Essa a lei do vir-a-ser humano: os acontecimentos destitudos de significao, de per si, para a mente humana, recebem vida e calor dos ideais, sem cuja influncia jazeriam inertes, e os sculos seriam mudos. Os feitos so pontos de partida: os ideais so faris luminosos que, de trecho em trecho, iluminam a rota. A histria da civilizao mostra uma infinita inquietude de perfeies, que os grandes homens pressentem, anunciam ou simbolizam. frente desses arautos, em cada momento da peregrinao humana, adverte-se uma fora que obstroi todas as sendas: a mediocridade, que uma incapacidade de ideais.* **Assim concebido, convm reintegrar o idealismo em toda filosofia cientfica. Talvez parea estranho aos que usam palavras sem definir o seu sentido, bem como aos que temem complicaes nas logomaquias dos verbalistas.Definido com clareza, separado de suas maldades seculares, ser sempre o privilgio de todos quanto honram, por sua virtude, a espcie humana.Como doutrina de perfectibilidade, superior a toda imaginao dogmtica o idealismo ganhar, certamente. Tergiversando pelos mopes e pelos fanticos, rebaixa-se. Eram os que olham o passado, determinando rumos em direo a prejuzos mortos e vestindo o idealismo com andrajos que so a sua mortalha; os ideais vivem na Verdade, que se vai fazendo; nem pode ser vital aquele que o contradiga quanto ao tempo. cegueira opr a imaginao do futuro experincia do precedente, o Ideal Verdade, como se fosse conveniente apagar as luzes do caminho, para no se desviar da meta. falso: a imaginao e a experincia marcham de mos dadas. Ssinhas, no andam.Ao idealismo dogmtico, que os antigos metafsicos colocaram nas "idias" absolutas e apriorsticas, opomos um idealismo experimental, que se refere aos "ideais" de perfeio, incessantemente renovados, plsticos, volutivos, como a prpria vida.III Os temperamentos idealistasNenhum Dante poderia elevar Gil Blas,Sanchoe Tartufo at o rinco do seu paraso, onde moram Cyrano, Quixote e Stockmann. So dois mundos morais, duas raas, dois temperamentos: Sombras e Homens. Seres desiguais no podem pensar de maneira igual. Haver sempre um contraste evidente entre o servilismo e a dignidade, a necessidade e o engenho, a hipocrisia e a virtude. A imaginao dar, a uns, o impulso original, no sentido do perfeito; a imitao organizar, nos outros, os hbitos coletivos. Sempre haver, por fora, idealistas e medocres.O aperfeioamento humano se efetua com um ritmo diferente nas sociedades e nos indivduos. A maioria possue uma experincia submissa ao passado: rotinas, preconceitos, domesticidades. Poucos eleitos variam, avanando para o porvir; ao contrrio do Anteu, que tocando a terra, recebia novo alento, os poucos eleitos o buscam cravando suas pupilas em constelaes longnquas, e, na aparncia, inacessveis. Esses homens predispostos a se emanciparem do seu rebanho, procurando alguma perfeio mais para alm do atual, so "idealistas".A unidade do gnero no depende do contedo intrnseco dos seus ideais, e, sim, do seu temperamento; a gente idealista perseguindo as quimeras mais contraditrias, sempre que elas impliquem um sincero af de elevao qualquer. Os espritos convulsionados por algum ideal, so inimigos da mediocridade: sonhadores contra os utilitrios, entusiastas contra os apticos, generosos com os calculadores, indisciplinados contra os dogmticos.So algum, ou alguma cousa, contra os que no so ningum, nem cousa alguma. Todo idealista homem qualitativo; possue um sentido das diferenas que lhe permite distinguir, entre o mau, que observa, e o melhor, que imagina. Os homens sem ideais so quantitativos; podem apreciar o mais ou menos, mas nunca distinguem o melhor do pior. Sem idealistas, seria inconcebvel o progresso. O culto do "homem prtico", limitado s contingncias do presente, importa numa renncia a toda perfeio. O hbito organiza a rotina, e nada cria no sentido do porvir; s dos imaginativos que a cincia espera as suas hipteses, a arte, o seu vo, a moral, os seus exemplos, a histria as suas pginas luminosas. So a parte viva e dinmica da humanidade; os prticos nada mais fizeram do que aproveitar do seu esforo, vegetando na sombra. Todo porvir tem sido uma criao dos homens capazes de o pressentir, concretizando-o numa infinita sucesso de ideais. A imaginao, construindo sem trguas, fez mais do que o clculo, destruindo sem descanso. A excessiva prudncia dos medocres paralizou sempre as iniciativas mais fecundas. E isto no quer dizer que a imaginao exclua a experincia: esta til, mas, sem aquela, estril. Os idealistas aspiram conjugar, em sua mente, a inspirao e a sabedoria; por isso, com frequncia, vivem peados por seu esprito crtico, quando os entusiasma uma emoo lrica, e esta lhes empana a vista quando observam a realidade. Do equilbrio entre a inspirao e a sabedoria, nasce o gnio. Nas grandes horas, de uma raa ou de um homem,a inspirao indispensvel para criar; essa fasca se acende na imaginao, e a experincia a converte em fogueira. Todo idealismo , por isso, uma nsia de cul-tura intensa: tem, entre os seus inimigos mais audazes, a ignorncia, madrasta de obstinadas rotinas.A humanidade no chega at onde querem os idea-listas, em cada perfeio particular; contudo, sempre chega mais alm de onde teria ido sem o seu esforo. Um objetivo que foge diante deles, converte-se em est mulo para perseguir novas quimeras. O pouco que todos podem, depende do muito que alguns anhelam. A humanidade n o possuiria seus bens presentes, se alguns idealistas no tivessem conquistado, vivendo com a obsidente aspirao a outros melhores.Na evoluo humana, os ideais se mantm em equilbrio instvel. Todo melhoramento real recebido de tentativas e ensaios de pensadores audazes, postos em tenso no sentido dele, rebeldes ao passado, embora sem a intensidade necessria para viol-lo; essa luta um refluxo perptuo entre o mais concebido e o menos realizado. Porisso, os idealistas so forosamente inquietos, com tudo o que vive, como a prpria vida: contra a tendncia pacfica dos rotineiros, cuja estabilidade parece inrcia de morte. Essa inquietude se exacerba nos grandes homens, nos prprios gnios, se o meio hostil s suas quimeras, como acontece freqentemente. No agita os homens sem ideais, informe argamassa da humanidade.* * *Toda juventude inquieta. S dela que se pode esperar o impulso no sentido do melhor: jamais dos bolorentos e dos senis. E s juventude, sadia e iluminada, aquela que olha para a frente e no para trs; nunca os decrpitos de poucos anos, prematuramente domesticados pelas supersties do passado.O que, nestes, parece primavera, tibieza outonal, iluso de aurora que j amortecimento de crepsculo. S h juventude nos que, com entusiasmo, trabalham para o porvir; por isso, nos caracteres excelentes, pode persistir e sobrepujar a acumulao dos anos.Nada se deve esperar dos homens que entram na vida sem se entusiasmarem por algum ideal; aos que nunca foram jovens, parece desvairado todo sonho. No se nasce jovem; preciso adquirir a juventude. E, sem ideal, no possvel adquir-la.* * *Os idealistas soem ser esquivos ou rebeldes aos dogmatismos sociais que os oprimem. Resistem tirania da engrenagem niveladora, aborrecem toda coao, sentem o peso das honrarias com que se tenta domestic-los, e torn-los cmplice dos interesses criados, dceis, maleveis, solidrios, uniformes, na comum mediocridade. As foras conservadoras, que compem o subsolo social, pretendem amalgamar os indivduos, deca-pitando-os: detestam as diferenas, aborrecem as excees, anatematizam aquele que se aparta, em busca da prpria personalidade.O original, o imaginativo, o criador, no teme dios; desafia-os, mesmo sabendo que so terrveis, porque so irresponsveis. Por isso, todo idealista uma vivente afirmao de individualismo, muito embora andeembusca de uma quimera social: pode viver para os outros, nunca dos outros. Sua independncia uma reao hostil a todos os dogmticos. Concebendo-se incessantemente perfectveis, os temperamentos idealistas querem dizer, em todos os momentos de sua vida, como (Quixote: "eu sei quem sou!".Vivem animados por esta nsia afirmativa. Cifram a sua ventura suprema e a sua perptua desgraa nos seus ideais. Nestes, purificam a paixo que anima a sua t; esta, ao ir de encontro realidade social, pode parecer desprezo, isolamento, misantropia: a clssica"torrede marfim", exprobada em todos quantos se eriam ao contacto dos obtusos.Dir-se-ia que Teresa de vila deixou escrita a eter-na imagem deles:"Gsanos de seda somos ns, pequeninos gusanosquefiamos a seda de nossas vidas; e no pequenino casulo de seda nos encerramos para que o gusano morra e do casulo sia voando a mariposa".***Todo idealista exagerado; precisa s-lo. E deve ser quente a sua linguagem, como se a personalidade se transvasasse sobre o impessoal; o pensamento sem calor morto, frio, carece ae estilo, no tem cunho ca-racterizador. Nunca foram dbeis os gnios, os santos e os heris. Para criar uma partcula de Verdade, de Virtude, de Beleza, mister um esforo original e violento, contra alguma rotina ou preconceito; da mesma forma que, para dar uma lio de dignidade, necessrio deslocar algum servilismo.Todo ideal , instintivamente, extremoso. Deve s-lo com conciencia, se fr preciso, por logo se rebaixa ao incidir na mediocridade da maioria.Diante dos hipcritas, que mentem, tendo em vista objetivos vis, o exagero dos idealistas , apenas urna verdade apaixonada. A paixo o seu atributo necessrio, mesmo quando parece desviar-se da verdade; conduz hiprbole, ao erro, at; nunca, mentira.Nenhum ideal falso, para quem o professa; este o cr verdadeiro, e coopera em prol do seu advento, com f, com desinteresse. O sbio procura a Verdade, pelo gosto de a procurar, e tem prazer em arrancar natureza segredos para le inteis ou perigosos. E o artista procura tambm a sua, porque a Beleza uma verdade animada pela imaginao, mais do que pela experincia. E o moralista a persegue no Bem, que uma reta lealdade da conduta para consigo mesmo e para com os outros. Ter um ideal, servir sua prpria Verdade. Sempre.***Alguns ideais se revelam como paixo combativa e outros com pertinaz obsesso; de igual maneira, distinguem-se dois tipos de idealistas, de acordo com o que neles predomina: o crebro ou o corao. O idealismo sentimental romntico: a imaginao no inibida pela crtica, e os ideais vivem de sentimento. No idealismo experimental, os ritmos afetivos so veiculados pela experincia, e a crtica coordena a imaginao: os ideais tornam-se reflexivos e serenos. O primeiro adolescente, cresce, faz esforos, luta; o segundo adulto, fixa-se resiste, vence.O idealista perfeito seria romntico aos vinte anos, e, estico aos cinquenta; to anormal o estoicismo na juventude, como o romantismo na idade madura.O que, a princpio, inflama a sua paixo, deve cristalizar-se depois, em suprema dignidade: essa a lgica do seu temperamento.IV O idealismo romnticoOs idealistas romnticos so exagerados, porque o insaciveis. Sonham o mais, para realizar o menos; compreendem que todos os ideais contm uma partcula de utopia, e perdem alguma coisa, quando se realizam: de raas ou indivduos, nunca se integram como se pensam. Em poucas coisas o homem pode chegar ao Ideal que a imaginao assinala; sua glria est em mar-char na direo dele, sempre inatingido e inatingvel.Depois de iluminar o seu esprito com todos os respendores da cultura humana, Goethe morre pedin-do mais luz; e Musset quer amar incessantemente depois de ter amado, oferecendo a sua vida por uma caricia,eoseu gnio por um beijo,Todosos romnticos parece que perguntam a si prprios, como o poeta:"Por que no infinito o poder humano, como o desejo?"Tm uma curiosidade de mil olhos, sempre alerta, para no perder a mais imperceptvel titilao do mundo que a solicita. Sua sensibilidade aguda, plural, caprichosa, artista, como se os nervos tivessem centuplicado a sua impressionabilidade. Seu gesto segue prontamente o caminho das inclina es nativas; entre dez partidos, adotam aquele sublinhado pelo latejar mais intenso do seu corao. So dionisacos. Suas aspiraes se traduzem por esforos ativos sobre o meio social, ou por uma hostilidade contra tudo o que se ope aos seus impulsos do corao e aos seus sonhos. Constituem seus ideais sem conceber nada realidade, recusando-se fiscalizaro da experincia, agredindo-a, si ela os contraria. So ingnuos e sensveis, fceis de se comoverem, acessveis ao entusiasmo e ternura; com essa ingenuidade sem dobrez, que os homens prticos ignoram. Um minuto lhes basta para decidir toda uma vida. Seu ideal se cristaliza em firmezas inequvocas, quando a realidade os fere com mais crueldade.***Todo romntico est por Quixote contra Sancho, por Cyrano contra Tartufo, por Stokmann contra Gil Blas: por qualquer ideal contra toda mediocridade. Prefere aflorao fruto, pressentindo que este no poderia existir, jamais, sem aquela. Os temperamentos acomodaticios sabem que a vida norteada pelo interesse abunda em proveitos materiais; os romnticos crem que a sunrema dignidade se enclausura no sonho e na paixo. Para eles, um beijo de tal mulher vale mais do que cem tesouros de Golconda.Sua eloqncia est no corao: dispem essas razes que a razo ignora, como dizia Pascal. Nelas se estriba o encanto irresistvel dos Musset e dos Byron; sua tempestuosidade apaixonada nos estremece, nos sufoca, como se uma garra apertasse o nosso pescoo;fazsobressaltar as veias, humedece as plpebras, entrecorta a respirao. Suas heronas e seus protagonistas povoam as insnias juvenis, como se eles as tivessem descrito com vara mgica molhada no clice de poetisa grega; Safo, por exemplo, a mais lrica. Seu estilode luz e de cr, sempre inflamando, queimando svezes. Escrevem como falam os temperamentos apaixonados, com essa eloqncia das vozes enrouquecidas por um desejo ou por um excesso, essa "voc calda que enlouquece as mulheres finas, e faz um Dom Juan de cada amante romntico. So eles os aristocratas do amor; com eles sonham todas as Julietas e Isoldas. inutilmente conspiram contra eles as embuadas hipocrisias mundanas: os espritos sfios desejariam inventar uma balana para pesar a utilidade imediata de suas inclinaes. Como no a possuem, renunciam a adot-las.O homem incapaz de alimentar nobres paixes, foge do amor. como se fosse um abismo; ignora que o amor acrisola todas as virtudes, eo mais eficaz dos mora-listas. Vive e morre sem ter aprendido a amar. Ridiculariza este sentimento, guiando-se pelas sugestes de sordidas convenincias. Os outrosque lhe elegem primeiro as namoradas, e lhe impem, depois, a esposa. Pouco lhe importa a fidelidade das primeiras, enquantolhe servem de adorno; nunca exige inteligncia na outra, sefr um degrau no seu mundo. Seu amor se in-cuba natibieza do critrio alheio. Musset parece-lhepoucosrio, e acha que Byroninfernal; queimaria George Sand, e a prpria Teresa de vila parecer-lhe-ia um pouco exagerada. Persigna-se, se algum supe que Cristo pode amar a pecadora Madalena. Cr firmemente que Werther, Jocelyn, Mimi, Rola e Manon so smbolos do mal, criados pela imaginao de artistas en-fermos. Aborrece a paixo profundaesentida;detestaos romanticismos sentimentais. Prefere a compra tranqila, conquista comprometedora. Ignora as supremas virtudes do amor, que sonho, anelo, perigo, toda a imaginao concorrendo para o embelezamento do instinto, e no simples vertigem brutal dos sentidos.* * *Nas pocas de depresso, quando a mediocridade est no seu apogeu, os idealistas se enfileiram contra os dogmatismos sociais, seja qual fr o regime dominante. Algumas vezes, em nome do romanticismo poltico, agitam um ideal democrtico e humano. Seu amor, todos os que sofrem, justa animosidade contra os que oprimem a sua prpria individualidade. Dir-se-ia que chegam at a amar as vtimas, para protestar contra o verdugo indigno; mas ficam sempre fora de toda hoste, sabendo que nela se pode incubar uma canga para o porvir.Em tudo o que perceptvel, cabe um romantismo; sua orientao varia com os tempos e com as inclinaes. H pocas em que mais floresce, como nas horas de reao que se seguiram arrancada libertria da revoluo francesa. Alguns romnticos juglam-se providenciais, e a sua imaginao se revela por um misticismo construtivo, como em Furier e Lamennais, precedidos por Rousseau, que foi um Marx calvinista, e seguidos por Marx, que foi um Rosseau judeu. Em outroi, o lirismo tende, como em Byron e em Ruskin, a converter-se em religio esttica. Em Mazzini e em Koussouth, toma cr poltica. Fala em tom proftico, e transcende pela boca de Lamartine e de Hugo. Em Stendhal, acossa com ironia os dogmatismos sociais, e, em Vigny, desdenha-os, amargamente. Queixa-se de Mus-set e se desespera com Amiel. Fustiga a mediocridade com Flaubert e Barbey dAurevilly. E, em outros, converte-se em rebelio aberta, contra tudo que dimi-nue e domestica o indivduo, com Emerson, Etirner, Guayau, Ibsen ou Nietzsche.V O idealismoesticoAs rebeldas romnticas so embotadas pela experincia; esta refreia muitas impetuosidades falazes, e d aos ideais uma firmeza slida. As lies da realidade no matam o idealista: educam-no. Sua nsia de perfeio se toma mais centrpeta e digna, busca os caminhos propcios, aprende a passar por cima das ciladas que a mediocridade arma.Quando a fora das coisas se sobrepe sua inquietude pessoal, e os dogmticos sociais cobem seus esforos no sentido de as corrigir, o seu idealismo se torna experimental. No pode sujeitar a realidade aos seus ideais, mas os defende contra ela, procurando isent-lo de toda diminuio ou envilecimento. O que antes se projetava para fora, polariza-se no prprio esforo, in-terioriza-se."Uma grande vida escreveu Vigny um Ideal da juventude realizado na idade madura". inerente primeira a aluso de impor seus sonhos, rompendo as barreiras que a realidade lhes ope; quando a experincia adverte que a mole no se des-morona, o idealista entrincheira-se em virtudes intrnsecas, custodiando seus ideais, realizando-os at certo ponto, sem que a solidariedade possa conduz-lo a tr-pes cumplicidades.O Idealismo sentimental e rom ntico se transforma em idealismo experimental e estico; a experincia re-guia a imaginao, tornando-o ponderado e reflexivo. A serena harmonia clssica substitue a pujana impetuo-sa; o idealismo dionisaco se converte em Idealismoapolneo, natural que assim seja. Os romancistas no resistem experiencia crtica: si persistem ainda depois de passados os limites da juventude, seu ardor n o se equivale sua eficincia. A avanada idade em que D. Quixote empreende a busca da sua quimera, um erro de Cervantes mais lgico D. Juan casando-se mesma altura em que Cristo morre; as personagens que Murger criou, na vida bomia, se detm nesse limbo da madureza. No pode ser de outra maneira. A acumulao dos contrastes acaba por coordenar a imaginao, orientando-a, sem rebaix-la.E se o idealista uma mentalidade superior, seu ideal assume formas definitivas: plasma a Verdade, a Beleza ou a Virtude, em crisis mais perenes, tende a fixar-se e a persistir em obras. O tempo o consagra, e, o seu esforo se torna exemplar. A prosperidade julga-o clssico. Todo classicismo provm de uma seleo natural entre idias que foram a seu tempo romnticas, e que sobrevivem atravs dos sculos.* * *Poucos sonhadores encontram tal clima e tal ocasio, para lhe exaltar a genialidade. A maioria torna-se extica e inoportuna; os acontecimentos, cujo determinismo no pode modificar, esterilizam seus reforos. Da resulta certa aquiescncia s coisas que no dependem do prprio mrito, a tolerncia detodafatalidade inevitvel. A sentir a coero exterior, certos indivduos no se abaixam, nem se contaminam: apartam-se, refugiam-se em si mesmos, para se elevarem a um extremo, de onde contemplam o arroio lamacento que corre murmurando, sem que, no seu murmura, se oua um grito. So os juzes de sua poca: vem de onde vem e como corre o turbilho enlameado. Descobrem os relapsos que se deixam empanar pelo limo, os que procuram os enaltecimentos falazes, contendentes com o mrito e com a justia.O idealista estico se mantm hostil ao seu meio, como o romntico. Sua atitude de aberta resistncia mediocridade organizada, de resignao desdenhosa ou de renncia altiva, sem compromissos. Pouco lhe importa agredir o mal que os outros consentem; prefere estar livre, para realizar toda perfeio que s dependa do seu prprio esforo. Adquire uma "sensibilidade individualista", que no egoismo vulgar, nem desinteresse pelos ideais que agitam a sociedade em que vive.So notrias as diferenas entre o individualismo doutrinrio e o sentimento individualista; um teoria, outro atitude. Em Spencer, a doutrina individualista acompanhada de sensibilidade social; em Bakounine, a doutrina social coexiste com uma sensibilidade individualista. questo de temperamento, no de idias; aquele a base do carter.Todo individualismo, como atitude, uma revoltacontraos dogmas e os valores falsos, respeitados pelas mediocracias; revela energias ansiosas de expanso, con-tidas por mil obstculos opostos pelo esprito gregrio O temperamento individualista chega a negar o prin-cpio de autoridade, subtrai-se aos preconceitos, desaca-ta qualquer imposio, desdenha as hierarquias independentes do mrito. Os partidos, as seitas e as faces so, para le, coisa igualmente indiferentes, enquanto no descobre nelas ideais que tenham consonncia comos seus prprios. Cr mais nas virtudes firmes dos ho-mens do que na mentina escrita dos princpios tericos; enquanto no se refletem nos costumes, as melhores leis de papel no modificam as tolices dos que as suportam.***A tica do idealista estico difere radicalmente desses individualismos srdidos que recrutam as simpatias dos egostas. Duas morais essencialmente distintas podem nascer da estimao de si mesmo. O digno elege a elevada, a de Zeno ou a de Epicuro; o mediocre opta sempre pela inferior, e se encontra com Aristipo. Aquela se refugia em si, para acrisolar-se; este se ausenta da maioria, para deslizar na sombra. O individualismo nobre, si um ideal o alimenta e o eleva; sem ideal, uma queda a um nvel mais baixo do que a prpria mediocridade.Na Cirenaica grega, quatro sculos antes do evo cristo, Aristipo anunciou que a nica regra da vida era o prazer mximo, obtido por todos os meios, como se a natureza ditasse ao homem a saciedade dos sentidos e a ausncia do ideal. A sensualidade, erigida em sistema, conduzida ao prazer tumultuoso, sem seleo. Os cirenicos chegaram a desprezar a prpria vida; seus ltimos apregoadores elogiaram o suicdio. Esta tica, praticada instintivamente pelos cticos e pelos depravadores de todos os tempos, no foi lealmente erigida em sistema depois de ento. O prazer como simples sensualidade quantitativa absurdo e imprevidente; no pode sustentar uma moral. Seria guindar os sentidos categoria de juzes.Estaria a felicidade na consecuo de um interesse bem ponderado?Um egosmo prudente e quantitativo, que elegesse e calculasse, substituiria os apetites cegos. Ao invs do prazer espesso, ter-se-ia o deleite requintado, que prev, coordena, prepara, goza antes e infinitamente mais, pois a inteligncia gosta de centuplicar os gozos futuros com sbias alquimias de preparao. Os epi-cureus j se apartam do cirenasmo. Aristipo colocava a dita nos grosseiros gozos materiais; Epicuro exalta-a na mente, idealiza-a pela imaginao. Para aquele, valem todos os prazeres, conseguidos por todos os meios, desabridos, sem freio; para este, devem ser recolhidos e dignificados por um cunho de harmonia. A moral origin ria de Epicuro toda requinte; seu criador viveu uma vida respeitvel e pura. Sua lei foi buscar a felicidade e fugir dr, dando preferncia s coisas que deixam um saldo a favor da primeira. Esta aritmtica das emoes no incompatvel com a dignidade, com o engenho e com a virtude, que so perfeies ideais; permite cultiv -las, se nelas pode encontrar-se uma fonte de prazer.* * * em outra moral helnica, sem dvida, onde o idealismo experimental encontra os seus moldes perfeitos. Zeno deu humanidade uma suprema doutrina de virtude herica. A dignidade se identifica com o ideal: a histria no conhece exemplos mais belos de conduta. Sneca, digno na corte do prprio Nero, alm de pregar, com arte requintada, a sua doutrina, aplicou-a, com esplndida coragem, na hora extrema. Somente Scrates morreu melhor do que le, e ambos morreram mais dignamente do que Jesus. So estas as trs grandes mortes da histria.A dignidade estica teve o seu apstolo em Epteto. Uma convincente eloquncia de sofista caldeava a sua palavra de liberto. Viveu como o mais humilde, satisfeito com o que tinha, dormindo em casa sem portas, entregue ao trabalho de meditar e de educar, at o dia do decreto que proscreveu de Roma os filsofos. Ensinou a distinguir, em todas as coisas, o que depende e o que no depende de ns. Os primeiros, ningum pode coibir; o resto est subordinado a foras estranhas. Colocar o ideal no que depende de ns, e se indiferentes a tudo o mais: eis a uma frmula para o idealismo experimental. desdenhvel tudo o que o egosta pode desejar ou temer. Se as resistncias, no caminho da perfeio, dependem de outros, convm fazer delas um caso omisso, como se no existissem e redobrar o esforo enaltecedor. Nenhum contratempo material desvia o Idealista. Se desejesse influir, de imediato, sobre coisas que no dependem dele, encontraria obstculos por toda a parte; contra essa hostilidade de seu ambiente, s pode rebelar-se com a imaginao, olhando cada vez mais em direo ao seu interior. O que serve um ideal, vive dele; nada o forar a sonhar o que no quer, nem o impedir de ascender at seu sonho.***Esta moral no uma contemplao passiva: apenas renuncia a participar do mal. Seu assentimento ao inevitvel no apatia, nem inrcia. Apartar-se no morrer; , simplesmente, esperar a possvel hora de agir, apressando-a com a prdica ou com o exemplo. Em chegando a hora, pode ser afirmao sublime, como foi para Marco Aurlio, nunca igualado em reger destinos de povos: s le que pode inspirar as pginas mais profundas de Renan, e as mais lricas de Paul de Saint Victor. Delicado e penetrante, seu estoicismo foi mais propcio para temperar caracteres, do que para consolar coraes. O pensamento antigo alcanou, com le, a sua mais tranqila nobreza. Entre perversos e ingratos que o circundavam, ensinou a dar seus racimos, como a vinha, sem reclamar preo algum, preparando-se para carregar outros, na vindima futura.Os idealistas esticos so homens de sua estirpe: dir-se-ia que ignoram o bem que fazem aos seus prprios inimigos.Quando aumenta a torrente dos domesticados, quando mais sufocante se torna o clima das mediocridades, eles criam um novo ambiente moral, semeando ideais: uma nova gerao, aprendendo a am-los, enobrecendo-os.Em face das burguesias febricitantes para atingir o nvel do bem-estar material ignorando que a sua maior misria a falta de cultura eles concentram seus esforos para aquilatar o respeito das coisas do esprito e o culto de todas as originalidades preeminentes. Enquanto a obscuridade obstri os caminhos do gnio, da santidade e do herosmo, eles aparecem para restitu-los, mediante a sugesto de ideais, preparando o advento dessas horas fecundas que caracterizamaressurreio das raas: o clima do gnio.* * *Todatica idealista transforma os valores, e eleva a categoria do mrito; as virtudes e os vcios trocam seus matizes, para mais ou para menos, criando equilbrios novos. Esta , no fundo, a obra dos moralistas; e sua originalidade est nas mudanas de tom que modificam as perspectivas de um quadro cujo fundo quase impermutvel. Em face dachaticecomum, que impele a ser vulgar, os caracteres dignos afirmam com veemncia o seu ideal. Uma mediocracia sem ideais como um indivduo, ou um grupo vil, ctica, covarde: contra ela cultivam profundos anelos de perfeio. Diante da cincia tornada ofcio, a Verdade como um culto; diante da honestidade de convenincia, a Virtude desinteressada; diante da arte lucrativa dos funcionrios, a Harmonia imarcescvel da linha, da fore ma e da cr; diante das cumplicidades da poltica me-diocrtica, as mximas expanses do indivduo, dentro de cada sociedade.Quando os povos se domesticam e calam, os gran- dos criadores de ideais levantam a sua voz. Uma cincia,uma arte, um pas, uma raa, estremecidos pelo seu eco, podem sair do seu curso habitual. O Gnio um guio que o destino pe entre dois pargrafos da histria. Se aparece nas origens, cria e funda; se aparece nos ressurgimentos, transforma ou exorbita. Nesse instante, retomam seu vo todos os espritos superiores, adestrando-se e temperando-se em pensamentos latos, para obras perenes.VI SmboloNo vai-e-vem eterno das ras, o porvir sempre dos visionrios. A interminvel contenda entre o idealismo e a mediocridade tem seu smbolo: Cellini no pode encrav-la em lugar mais digno do que a maravilhosa praa de Florena. Nunca mo alguma de ourives plasmou conceito mais sublime: Perseu, exibindo a cabea de Medusa, cujo corpo se agita em contores de rptil sob seus ps alados. Quando os temperamentos idealistas se detm diante do prodgio de Benevenuto, anima-se o metal, revive a sua fisionomia, seus lbios parecem articular palavras perceptveisE diz aos jovens quetodaluta, emprolde um ideal, santa, ainda que o resultado seja ilusrio; que louvvel seguir o seu temperamento, e pensar com o corao, se isso puder contribuir para a criao de uma personalidade firme; que todo germe de romantismo deve ser alimentado, para engrinaldar de aurora a nica primavera que no volta nunca.E os maduros, cujas primeiras cs salpicam de outono as suas mais veementes quimeras, instigam a custodiar seus ideais, sob o plio da mais severa dignidade, em face das tentaes que conspiram para enlame-los no Estige, onde se abismam os medocres.E, no gesto de bronze, como se o Idealismo decapitasse a Mediocridade, entregando sua cabea ao juzo dos sculos.

CAPTULO I UREA MEDIOCRITASI. UREA MEDIOCRITAS ? II. OS HOMENS SEM PERSONALIDADE. III. EM TORNO DO HOMEM MEDOCRE. IV. CONCEITO SOCIAL DA MEDIOCRIDADE. V. o ESPRITO CONSERVADOR. VI. PERIGOS SOCIAIS DA MEDIOCRIDADE. VII. a VULGARIDADE.I urea medicritas?H uma certa hora em que o pastor ingnuo se assombra diante da natureza que o circunda. A penumbra se adensa; a cr das coisas se uniformiza no cinzento homogneo das silhuetas, as primeiras humidades crepusculares levantam, de todas as ervas, um vago perfume; aquieta-se o rebanho para dormir; o sino remoto tange o seu aviso vesperal. A impalpvel claridade lunar vai se esbranqui ando, ao cair sobre as coisas; algumas estrelas inquietam o firmamento com a sua titila o, e um longnquo rumor de arroio brincando nas brenhas, parece conservar sobre misteriosos temas. Sentado sobre a pedra menor spera que encontra beira do caminho, o pastor contempla e emudece. convidando em vo a meditar pela convergncia do stio e da hora. Sua admirao primitiva simples estupor. A poesia natural que o rodeia, ao refletir-se em sua imaginao, no se converte em poema. le , apenas , um objeto no quadro, uma pincelada: como a pedra, a rvore a ovelha, o caminho; um acidente na penumbra. Para le, todas as coisas foram sempre as assim continuaro a ser, desde a terra que pisa at o rebento que apascenta.A imensa massa dos homens pensa com a cabea desse ingnuo pastor; no entenderia o idioma de quem lhe explicasse algum mistrio do universo ou da vida, a evoluo eterna de todo o conhecido, a possibilidade do aperfeioamento humano na contnua adaptao do homem natureza.Para conceber uma perfeio, mister possuir um certo nvel tico, e indispensvel alguma educao intelectual. Sem isso, podem ter-se fanatismos e supersties; ideais, nunca.Os que vivem abaixo desse nvel, e no adquirem essa educao, permanecem sujeitos a dogmas que os outros lhes impem, escravos de frmulas paralizadas pela ferrugem do tempo. Suas rotinas e seus preconceitos parecem-lhes eternamente invariveis: sua obtusa imaginao no concebe perfeies passadas, nem vindouras; o estreito horizonte de sua experincia consti-tue o limite obrigatrio de sua mente. No podem formar um ideal. Encontraro, nos alheios, uma chispa capaz de incendiar suas paixes; sero sectrios, podem s-lo. E no advertiro, siquer, a ironia dos que os convidam e se arrebanharem, em nome de ideais que podem servir, mas no compreender. Todo sonho, seguido pelas multides, pensado apenas por poucos visionrios, que so seus amos.A desigualdade humana no uma descoberta moderna. Plutarco escreveu, h sculos, que "os animais de uma mesma espcie diferem menos entre si, do que um homem de outro"(Obras morais,vol. III).Montaigne subscreveu esta opinio:"H mais distncias entre tal e tal homem, do que entre tal homem e tal animal: quer dizer que o mais excelente animal est mais prximo do homem menos inteligente, do que este ltimo, de outro homem grande e excelente".(Ensaios,vol. I, cap. XLII).OS que continuam afirmando a desigualdade humana, n o pretendem dizer mais do que isso; ela ser, no porvir, to absoluta, como nos tempos de Plutarco ou de Montaigne.H homens mentalmente inferiores ao termo mdio de sua raa, de seu tempo, de sua classe social; tambm os h superiores. Entre uns e outros, flutua uma grande massa impossvel de ser caracterizada por Inferioridades ou por excelncias.Os psiclogos no tm querido tratar destes ltimos; a arte os detesta, por incolores; a histria no sabe seus nomes. So pouco interessantes; inutilmente se buscaria neles uma aresta definida, uma pincelada firme, um rasgo caracterstico. Os moralistas os co-brem com igual desdm; individualmente, no merecem o desprezo, que fustiga os perversos, nem a apologia, reservada aos virtuosos.Sua existncia , sem dvida, natural e necessria. Em tudo o que oferece graus, h mediocridade; na escala da inteligncia humana, ela representa o claro-escuro entre o talento e a estulticia.No diremos, por isso, que sempre louvvel.Horcio no disseurea mediocritasno sentido ge-ral e absurdo proclamado pelos incapazes de sobressair por seu engenho, por suas virtudes, ou por suas obras, Outro foi o parecer do poeta: colocando na tranqilidadee na independncia o maior bem-estar do homem, enalteceu a delcia de um viver singelo, que dista igualmente da opulncia e da misria, denominandoureaessa mediocriade material. Em certo sentido epicreu, sua sentena verdadeira, e confirma o remoto provr bio rabe:"Um mediano bem-estar tranqilo prefervel opulncia cheia de preocupaes".Inferior, da, que a mediocridade moral, intelectual e de carter digna de respeitosa homenagem, implica desvirtuar a prpria inteno de Horcio: em versos memorveis,(Ad Pis.,472), menosprezou os poetas medocres :Mediocribus esse poetisNon di, non homines, non concessereclumnae.E lcito estender o seu direito a todos quantos o so, deesprito.Por que deveramos ns submeter o sentido dourea mediocritasclssico? Por que suprimir diferenas de nvel, entre os homens e as sombras, como se, rebaixando um pouco os excelentes, e levantando um pouco os ncios, se atenuassem as desigualdades criadas pela natureza?No concebemos o aperfeioamento social como produto da uniformidade de todos os indivduos, seno, como combinao harmnica de originalidades incessantemente multiplicadas. Todos os inimigos da diferena o so tambm do progresso; natural, portanto, que consideram a originalidade como um defeito imperdovel.Os que sentenciam por essa forma, esto inclinados a confundir o senso comum com o bom senso, como se, emaranhando a significao dos vocbulos, quisesse criar afinidades entre as idias correspondentes. Afirmemos que so antagonistas. O senso comum coletivo, eminentemente retrgrado e dogmatista; o bom senso individual, sempre inovador e libertrio.Pela obedincia a um ou a outro, reconhecem-se servido e aristocracia naturais, nsitas no engenhou Dessa irremedivel heterogeneidade, nasce a intolerncia dos rotineiros, diante de qualquer cintilao original; cerram fileiras para se defenderem, como se as diferenas fossem crimes.Tais desnivelamentos so um postulado fundamental da psicologia. Os costumes e as leis podem estabelecer direitos e deveres comuns a todos os homens; mas estes sero sempre to desiguais, como as ondas que eriam a superfcie de um oceano.II Os homens sem personalidadeIndividualmente considerada, a mediocridade poderia definir-se como uma ausncia de caractersticos pessoais que permitam distinguir o indivduo em sua so-ciedade. Esta oferece, a todos, um idntico fardo de rotinas, preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens, para que eles coincidam no impessoal."Reuni mil gnios em um conclio, e tereis a alma de um medocre".Estas palavras denunciam o que, em cada homem, no pertence a le mesmo, e que, quando a soma sobe a muitos, se revela pelo baixo nvel das opinies coletivas.A personalidade individual comea no ponto preciso em que cada um se torna diferente dos demais; em muitos homens, esse pontosimplesmente imaginrio. Por esse motivo, ao classificar os caracteres humanos, compreendeu-se a necessidade de separar os que carecem de traos caractersticos: produtos adventcios do meio, das circunstncias, da educao que se lhes proporciona, das pessoas que os tutelam, das coisas que os rodeiam.Ribot chamou "indiferentes" os que vivem, sem que a sua existncia seja advertida. A sociedade pensa e quer por eles. No tm voz, nem eco. No h linhas definidas, nem na sua prpria sombra, que,apenas, uma penumbra. Cruzam pelo mundo, s furtadelas, me drosos de que algum possa reprochar-lhes essa ousa dia de existir em vo, como contrabandista da vida,E o so. Ainda que os homens caream de misso transcendental sobre a terra, em cuja superfcie vivemos to naturalmente, como as rosas e os gusanos, nossa vida no digna de ser vivida, seno quando algum ideal a enobrece: os mais altos prazeres so inerentes proposio de uma perfeio e a sua realizao. As exigncias vegetativas n o tm biografia: na h?*tria da sua sociedade, s vive o que deixa rastros nas coisas ou nos espritos. A vida vale pelo uso que dela fazemos, pelas obras que realizamos.No vive mais o que conta maior nmero de anos, seno o que sente melhor o seu ideal; as cs denunciam a velhice, mas no dizem quanta juventude as percebeu.A medida social do homem est na durao de suas obras: a imortalidade o privilgio dos que as fazem capazes de sobreviver aos sculos, e por elas se mede.O poder que se maneja, os favores que se mendigam, o dinheiro que se acumula, as dignidades que se conseguem, tm certo valor efmero, que pode satisfazer os apetites daquele que no leva em si mesmo, em suas virtudes intrnsecas, as foras morais que embelezam e qualificam a vida: a afirmao da prpria personalidade, e a quantidade de altivez posta na significao de nosso eu. Viver aprender, para ignorar menos; amar, para nos vincularmos a uma parte maior de humanidade; admirar, para compartilhar as excelncias da natureza, bem como dos homens; esforo para melhorar, um af incessante de elevao em direo de ideais definidos.Muitos nascem: poucos vivem. Os homens sem personalidade so inumerveis, e vegetam, moldados pelo meio, como cera fundida no cadinho social. Sua moralidade de catecismo e sua inteligncia quadriculada, os constrangem a uma perptua disciplina do pensamento e da conduta; sua existncia negativa como unidade social.O homem de carter firme capaz de mostrar encrespamentos sublimes, como o oceano; nos temperamentos domesticados, tudo parece superfcie tranqila, como nos lamaais. A falta de personalidade torna-os, a estes, incapazes de iniciativas e de resistncias. Desfilam inadvertidos, sem aprender nem ensinar, diluindo em tdios a sua insipidez, vegetando na sociedade, que ignora a sua existncia; zeros esquerda, que nada qualificam, e que para nada servem. Sua falta de robustez moral os faz ceder mais leve presso, sofrer todas as influncias, altas e baixas, grandes e pequenas, transitoriamente arrastados altura pelo mais leve zfiro, ou emborcados pela onda mida de um riacho. Barco de amplo velame, mas sem leme, no sabe adivinhar a sua prpria rota: ignoram se iro encalhar numa praia arenosa, ou se iro esborrachar-se contra um escolho.Esto em todas as partes, embora inutilmente procurssemos um, capaz de se reconhecer; se achssemos, seria um original, pelo simples fato de se envolver na mediocridade.Quem que no se atribui alguma virtude, certo talento ou um carter firme? Muitos crebros rudes se envaidecem de sua prpria necessidade, confundindo a paralisia com a firmeza, que dom de poucos eleitos; os velhacos se orgulham de sua picardia e da falta de vergonha, confundindo-as com o engenho;os servire os papalvos pavoneiam-se de honestos, como se a incapacidade para praticar o mal pudesse, em algum caso, ser confundida com a virtude.Si se tivesse em conta a boa opinio que todos os homens formam de si prprios, seria impossvel dis-correr sobre os que se caracterizam pela sua ausncia de personalidade. Todos julgam ter uma: e muito sua. Nenhum adverte que a sociedade o submeteu a essa operao aritmtica que consiste em reduzir muitas quantidades a um denominador comum: a mediocridade.Estudamos, pois, os inimigos de toda perfeio, cegos para os astros. Existe uma vastssima biografia acerca dos inferiores e dos insuficientes, desde o criminoso e do delirante, at o retardado e o idiota; h, tambm, uma rica literatura consagrada a estudar o gnio e o talento, razo pela qual a histria e a arte convergem, na manuteno de seu culto. Uns e outros so, entretanto, excees. O habitual no o gnio, nem o idiota; no o talento nem o imbecil. o homem que nos rodeia a milhares, o que prospera e se reproduz, no silncio e na treva: o medocre.Cabe ao psiclogo dissecar a sua mente, com firme escalpelo, tal como fazem com os cadveres aquele professor eternizado pelo pincel de Rembrandt, naLio de Anatomia:seus olhos parecem que se iluminam, ao contemplar as entranhas mesmas da natureza humana, e seus lbios palpitam de eloqncia serena, ao dizer a sua verdade, para quantos o rodeiam.Por que no estendemos o homem sem idias sobre a nossa mesa de autpsias, at saber o que , como , que faz, que pensa, para que serve?Sua etopia constituir um captulo bsico para a psicologia da moral.III Em torno do homem medocreCom diferentes denominaes, e sob aspectos heterogneos, j se tentou, algumas vezes, definir o homem sem personalidade. A filosofia, a estatstica, a antropologia, a psicologia, a esttica e a moral, contriburam para a determinao de tipos mais ou menos exatos:nose advertiu, sem embargo, o valor essencialmente social da mediocridade. O homem medocre como, em geral, a personalidade humana s pode ser definido com relao sociedade em que vive, por sua funo social.Se pudssemos medir os valores individuais, gradu-los-amos em escala contnua, de baixo para cima. Entre os tipos extremos e escassos, observaramos ua massa abundante de sujeitos, mais ou menos equivalentes acumulados nos graus centrais da srie. Mera iluso seria a de quem pretendesse procurar ali o hipottico prottipo da humanidade, oHomem Natural,que Aristteles andou buscando; sculos mais tarde, a peregrina ocorrncia reapareceu no redemoinhante esprito de Pascal.Mediania,com efeito, no sinnimo denormalidade.O homem normal no existe: no pode existir. A humanidade, como todas as espcies viventes, evolue sem cessar; suas mudanas se operam desigualmente, em numerosos agregados sociais diferentes entre si. O homem normal numa sociedade, no no em outra; o de h mil anos no no seria hoje, nem no porvir.Morel se equivocara, por esquecer isto, quando o concebia como um exemplar da "edio princeps" da Humanidade, lanada em circulao pelo Supremo Autor. Partindo dessa premissa, definia a degenerao, em todas as suas formas, como uma divergncia patolgica do perfeito exemplar originrio. Disso, ao culto do homem primitivo, mediava um passo, distanciaram-se, felizmente, de tal preconceito, os antroplogos contemporneos. O homem dizemos agora um animal que evolui nas mais recentes idades geolgicas do planeta; no foi perfeito em sua origem, nem a sua perfeio consiste em regressar s suas formas avitas, surgidas da animalidade simiesca. Se no pensssemos assim, renovaramos as divertidssimas Sendas do anjo cado da rvore do bem e do mal, da serpente tentadora, da ma aceita por Ado, e do paraso perdido.Quetelet pretendeu formular uma doutrina antropolgica ou social acerca doHomem Mdio:seu ensaio uma inquirio estatstica, complicada por inocentes aplicaes do abusadoinmediostatvirtus.No incorremos nesse erro de admitir que os homens medocres podem ser reconhecidos por atributos fsicos ou morais, que representam um meio-termo entre os observado na espcie humana. Nesse sentido, seria um produto abstrato, sem corresponder a indivduo de existncia real.O conceito da normalidade humana s poderia ser relativo a determinado ambiente social; sero normais os que melhor "marcam passo", os que enfileiram com mais exatido nas hostes de um convencionalismo social?Neste sentido,homem normalno seria sinnimo dehomem equilibrado,sino, dehomemdomesticado;a passividade no equilbrio, no uma complicada resultante de energias, e, sim, a sua ausncia.Como confundir os grandes equilibrados, Leonardo e Goethe, com os amorfos?O equilbrio entre os pratos carregados, no pode ser comparado com a quietude de uma balana vazia. O homem sem personalidade no um modelo, sino, uma sombra; se h perigos na idolatria dos heris e dos homens representativas, maneira de Carlyle ou de Emerson, mais ainda os h em repetir essas fbulas que permitiriam encarar como aberrao toda excelncia do carter, de virtude e de intelecto.Bovio assinalou este grande erro, pintando o homem mdio com traos psicolgicos precisos:" dcil, acomodaticio em todas as pequenas oportunidades, adaptabilssimo a todas as temperaturas de um dia varivel, avisado nos negcios, resistente s combinaes dos astutos; mas, deslocado da sua mediocre esfera, e ungido por uma feliz combinao de intrigas, le se desmorona sempre, logo depois precisamente porque um equilibrista, e no leva em si as foras do equilbrio.Equilibristano significaequilibrado.Esse o preconceito mais grave: o homem medocre equilibrado e o gnio desequilibrado".Em seus mais indulgentes comentaristas, esse pretendido equilbrio se estabelece entre qualidade pouco dignas de admirao, cuja resultante provoca mais lstima do que inveja. Certa vez, recebeu Lombroso um telegrama decididamente norte-americano. Era, com efeito, de um grande jornal, e solicitava uma entensa resposta telegrfica a uma pergunta presenteada com a sugestiva recomendao de um cheque:"Qual o homem normal?"A resposta desconcertou, sem dvida, os leitores. Longe de louvar as suas virtudes, traava um quadro de caracteres negativos e estreis: "bom apetite, trabalhador, ordenado, egosta, apegado aos seus costumes, misonesta, paciente, respeitoso a toda autoridade animal domstico". Ou, em palavras mais breves,fruges consumere natus,como disse o poeta latino.Com ligeiras variantes, essa definio evoca a doFilistew.produto do costume, desprovido de fantasia, ornato de todas as virtudes da mediocridade, levando uma vida honesta, graas moderao de suas exigncias, preguioso em suas concepes intelectuais, suportando, com pacincia comovedora, todo o fardo de preconceito que herdou dos seus antepassados". Nestas linhas, refletem-se as invectivas, j clssicas, de Heine, contra a mentalidade que le julgava corrente entre os seus compatriotas. Por sua parte, Schopenhauer, nos seus "Aphorismos", definiu o perfeito filisteu, como um sr que se deixa enganar pela aparncia, e toma a srio todos os dogmatismos sociais, constantemente preocupado com se submeter s farsas mundanas.A estas definies do homem mdio, podem juntar-se outras de carter intelectual ou esttico, no isentas de interesse, embora unilaterais. Para alguns, a mediocridade consistiria na inaptido para exercitar as mais altas qualidades do engenho; para outros, seria a inclinao a pensar terra-a-terra.Medocrecorresponderia aBurgus,em contraposio a Artista; Flaubert o definiu como um homem que "pensa baixamente". Julgado com esse critrio, parece-lhe detestvel.Tal le aparece na magnfica silhueta de Helo, atabalhoado prosista catlico, que nos ensinou a admirar Ruben Drio. Distingue o medocre do imbecil; este ocupa um extremo do mundo, o gnio ocupa o outro; o medocre est no centro.Ser le, ento, o que em filosofia, em poltica ou em literatura, se denominam um ecltico ou um justo meio?De maneira alguma, responde. Aquele que justo-meio, o sabe, tem a inteno de o ser; o homem medocre justo-meio, sem suspeitar que o . -o por natureza, no por opinio; por carter, no por acidente. Em todo instante de sua vida, bem como em qualquer estado de alma, ser sempre medocre. Seu trao caracterstico, absolutamente inequvoco, a sua deferncia para com a opinio dos outros. Nunca fala; repete sempre. Julga os homens como os ouve julgar. Reverenciar o seu mais cruel adversrio, si este conseguir elevar-se; desdenhar 0 seu melhor amigo, si ningum o elogiar. O seu critrio carece de iniciativa. Suas admiraes so prudentes. Seus entusiasmos so oficiais. Essa definio descritiva anloga s que repetira Barbey DAurevilly possue uma eloqncia muito sugestiva, embora parta de premissas estticas, para chegar a concluses morais".O "homem normal" de Bvio e de Lombroso corresponde ao "filisteu" de Heine e de Schopenhauer, aproximando-se ambos do "burgus" anti-artstico de Flaubert e de Barbey DAurevilly. Mas, foroso reconhec-lo, tais definies so inseguras, luz da psicologia social; convm procurar outra, mais exata e menos equvoca, explanando o problema por outros meios.IV Conceito social da mediocridadeNenhum homem excepcional em toda as suas aptides; mas se poderia afirmar que so medocres, redondamente, os que no se sobrelevam por nenhuma. Desfilam, diante de ns, como simples exemplares da histria natural, com tanto direito como os gnios e os imbecis. Existem: preciso estud-los. O moralista dir, depois, se a mediocridade boa ou m; ao psiclogo, por enquanto, isto lhe indiferente: observa os caracteres no meio social em que vivem, descreve-os, compara-os e os classifica, da mesma forma que outros naturalistas observam fsseis no leito de um rio, ou mariposas na corola de urna flor.No obstante as infinitas diferenas individuais, existem grupos de homens que podem ser englobados dentro de tipos comuns; tais classificaes, simplesmente aproximativas, constituem a cincia dos caracteres humanos, a Etiologia, que reconhece em Teofrasto o seu legtimo progenitor. Os antigos fundavam-na sobre os temperamentos; os modernos procuram suas bases na preponderncia de certas funes psicolgicas. Estas classificaes, admissveis sob um aspecto especial, so insuficientes para o nosso.Se observarmos qualquer sociedade humana, o valor dos seus componentes sempre relativo ao conjunto: ohomemum valor social.Todo indivduo produto de dois fatores: a hereditariedade e a educao. A primeira tende a fornecer-lhe os rgos eaofunes mentais que as geraes precedentes lhes transmitem; a segunda o resultado das mltiplas influncias do meio social ern que o indivduo obrigado a viver. Esta ao educativa , por conseguinte, uma adaptao das tendncias hereditrias mentalidade coletiva: uma contnua aclimao do indivduo na sociedade.A criana se desenvolvecomo um animal da espcie humana,at comear a distinguir as coisas inertes dos seres vivos, e a reconhecer, entre estes, os seus semelhantes. Os princpios da sua educao so, nesse tempo, dirigidos pelas pessoas que a circundam, tornando-se cada vez mais decisiva a influncia do meio; desde que esta predomine, a criana evoluicomo um membro da sua sociedade,e seus hbitos se organizam mediante a imitao. Mais tarde, as variaes, adquiridas no curso, da sua experincia individual podem fazer que o homem se caracterizecomo uma pessoa diferenciadadentro da sociedade em que vive.A imitao desempenha um papel importantssimo, quasi exclusivo, na formao da personalidade social; a inveno produz, em troca, as variaes individuais. Aquela conservadora, e atua criando hbitos; esta evolutiva, e se desenvolve mediante a imaginao. A diferente adaptao de cada indivduo ao seu meio, depende do equilbrio entre o que imita e o que inventa. Nem todos podem imitar ou inventar da mesma maneira, pois estas virtudes se realizam tendo por base certa capacidade congnita, inicialmente desigual, recebida mediante a hereditariedade psicolgica.O predomnio da variao determina a originalidade. Variar ser algum; diferenciar-se ter um carter prprio, um penacho, grande ou pequeno; embora, por fim, de que no se vive como simples reflexo dos outros.A funo capital do homem medocre a pacincia imitativa; a do homem superior a imaginao criadora.O medocre aspira a confundir-se com os que o rodeiam: o original tende a diferenciar-se deles. Enquanto um se concretiza, pensando com a cabea da sociedade, o outro aspira a pensar com a prpria cabea. Nisto se estriba a desconfiana que si rodear os caracteres originais: nada parece to perigoso como um homem que aspira a pensar com a sua cabea.** *Podemos recapitular. Considerando cada indivduo em relao a seu meio, ver-se- que trs elementos concorrem para formar a sua personalidade: a hereditariedade biolgica, a imitao social e a variao individual.Todos, ao nascer, recebem, como herana da espcie, os elementos para adquirir umapersonalidadeespecfica, insuficiente para adapt-los mentalidade social.Ohomem inferior um animal humano; em sua mentalidade, predominam as tendncias instintivas condensadas pela herana, e que constituem a "alma da espcie". Sua inaptido para a imitao o impede de se conformar com o meio social em que vive; sua personalidade no se desenvolve at o nvel corrente, vivendo por baixo da moral ou da cultura dominante, e, em muitos casos, fora da legalidade. Esta insuficiente adaptao determina a sua incapacidade para pensar como os outros, e compartilhar as rotinas comuns.A maioria, mediante a educao imitativa, copia, das pessoas que a rodeiam, umapersonalidade socialperfeitamente adaptada.Ohomem medocre uma sombra projetada pela sociedade; , por essncia, imitativo, e est perfeitamente adaptado para viver em rebanho, refletindo rotinas, preconceitos e dogmatismos reconhecidamente teis para a domesticidade.Assim como o inferior herda a "alma da espcie", o medocre adquire a "alma da sociedade". Seu caracterstico imitar a todos quantos o rodeia; pensar com a cabea alheia, e ser incapaz de formar idia prpria.Uma minoria, alm de imitar a mentalidade social, adquire variaes prprias,uma personalidade individual,nitidamente diferenciada.Ohomem superior um acidente proveitoso para a evoluo humana. original e imaginativo, desadap-tando-se do meio social, na medida da sua prpria variao. Esta se sobrepe aos atributos hereditrios da "alma da espcie" e as aquisies imitativas da "alma da sociedade", constituindo as arestas singulares da "alma individual", que o distinguem dentro da sociedade. precursor de novas formas de perfeio, pensa melhor do que o meio em que vive, e pode sobrepor ideais seus s rotinas dos demais.V O esprito conservadorTudo o que existe necessrio. Cada homem pos-sue um valor de contraste, se no o tem de afirmao; um detalhe necessrio na infinita evoluo do proto-homem ao super-homem. Sem a sombra, ignoraramos o valor da luz. A infmia nos induz a respeitar a virtude; o mel no seria doce, se os alos no nos ensinassem o paladar da amargura; admiramos o vo da guia, porque conhecemos o rastejar da serpente; o gorjeio do rouxinol encanta mais depois de se ter escutado o silvo da cascavel. O medocre representa um progresso, comparado com o imbecil, embora se conserve em categoria, se o compararmos com o gnio; suas idiosincrasias scias so relativas ao meio e ao momento em que atua. De outra forma, se fosse intrinsecamente intil, no existiria: a seleo natural extermin-lo-ia. necessrio para a sociedade, como as palavras o so para o estilo. Mas no bastaria, para cri-los, alinhar todos os vocbulos que jazem no dicionrio; o estilo comea onde aparece a originalidade individual.Todos os homens de firme personalidade e de mente criadora, seja qual fr a sua escola filosfica, ou o seu credo literrio, so hostis mediocridade. Toda criao um esforo original; a histria conserva o nome de poucos iniciadores, e, esquece o de inmeros sequazes que os imitam. Os visionrios de verdades novas, os inovadores de belezas desde Renan e Hugo, at Guyan e Flaubert a consideram como um obstculo com que o passado obstrui o advento do seu trabalho renovador.Em face da moral social, sem dvida, os medocres encontram uma justificao, como tudo o que existe por necessidade. O eterno contraste das foras que atuam nas sociedades humanas, se traduz na luta entre duas grandes atitudes que agitam a mentalidade coletiva: o esprito conservador, ou rotineiro, e o esprito original, ou de rebeldia.Dorado consagrou-lhe belas pginas. Cr impossvel dividir a humanidade em duas categorias de homens, uns rebeldes em tudo, outros em tudo rotineiros; se assim fosse, no se poderia dizer quais os que interpretam melhor a vida. No possvel um viver imvel de indivduos todos conservadores, nem o um instvel amotinamento de rebeldes e insubmissos, para os quais nada existe que seja bom, nem h senda alguma digna de ser seguida. verossmel que ambas as foras sejam igualmente imprescindveis. Obrigados a eleger, daramos preferncia a uma atitude conservadora? A originalidade necessita de um contrapeso robusto, que previna os seus excessos; haveria ligeireza em fustigar os homens metdicos e de passo lento, se eles constitussem os tecidos sociais mais resistentes. Como acontece com os organismos, os diferentes elementos sociais servem de mtuo sustentculo; ao invs de se olharem como inimigos, deveriam considerar-se como cooperadores de uma obra nica, embora complicada. Se no mundo no houvesse mais do que rebeldes, o mundo no poderia marchar; tomar-se-ia impossvel a rebeldia, se faltasse algum contra quem se rebelar. E, sem inovadores, quem arrastaria o carro da vida, sobre o qual aqueles vo to satisfeitos? Ao invs de se combaterem, ambas as partes deveriam entender-se, e concordar em que nenhuma teria motivo de existir se a outra no existisse. O conservador sagaz pode abenoar o revolucionrio, e vice-versa. Eis aqui uma nova base para a tolerncia: todo homem necessita de seu inimigo.Se tivessem igual razo de ser, tanto os imitadores como os revolucionrios, como argumenta o pensador espanhol, sua justificao j estaria feita. Ser medocre no uma culpa; sendo-o, sua conduta legtima.Acertam os que extraem da sua vida a maior soma de frutos, e procuram passar, na melhor situao possvel, os seus curtos dias sobre a terra, sem consagrarem uma hora ao seu prprio aperfeioamento moral, sem se preocuparem com os seus prximos, nem com as geraes posteriores? pecado operar por esta forma? Pecam, porventura, os que no pensam em si mesmo, e vivem para os outros; os abnegados, os altrustas, os que sacrificam seus prazeres e suas foras em benefcio alheio, renunciando a suas comodidades e at a sua vida, como freqentemente acontece?Por indefectvel que seja pensar no amanh, dedicando-lhe certa parte de nossos esforos, impossvel deixar de viver no presente, pensando nele, ao menos em parte. Antes das geraes vindouras, esto as atuais; outrora foram futuras, e para elas trabalharam as passadas.Este raciocnio, embora um tanto sanchesco, seria respeitvel, se colocssemos o problema no terreno abstrato do homem extra-social, isto : fora de toda sano presente e futura. Evidentemente, cada homem como , e no poderia ser de outra maneira; fazendo abstrao de toda moralidade, teria to pouca culpa do seu delito o assassino, como o gnio de sua criao. O original e o rotineiro, o folgazo e o trabalhador, o mu e o bom, o generoso e o avarento, todos so assim, apesar de prpria vontade; no o seriam, se o equilbrio entre o seu temperamento e a sociedade o impedissem.Por que, ento, a humanidade admira os santos, os gnios e os heris, todos os que inventam, ensinam ou plasmam, os que pensam no porvir, ou encarnam um ideal, ou forjam um imprio Scrates e Cristo, Aristteles e Bacon, Cesar e Washington?Aplaude-os, porque toda sociedade tem, implcita, uma moral, uma tbua prpria de valores, que aplica para julgar cada um dos seus componentes, no de conformidade com as convenincias individuais, seno, de acordo com a sua utilidade social. Em cada povo, em cada poca, a medida do excelso est nos ideais de perfeio que se denominam gnio, herosmo, santidade.A imitao conservadora deve, pois, ser julgada por sua funo de resistncia, destinada a conter o impulso criador dos homens superiores e as tendncias destrutivas dos sujeitos anti-sociais. Nos prolegmeos do seu ensaio sobre o gnio e o talento, Nordau faz o seu elogio irnico; para toda mente elevada, ofilisteu a besta negra, e, nessa hostilidade, le v uma evidente ingratido. Parece-lhe til; com um pouco de benevolncia, chegaria a conceder-lhe essa relativa beleza das coisas perfeitamente adaptadas ao seu objeto. o fundo de perspectiva, na paisagem social. De sua exiguidade esttica depende todo o relevo adquirido pelas figuras que ocupam o primeiro plano. Os ideais dos homens superiores permaneceriam em estado de quimeras, si no fossem recolhidos e realizados por filisteus, destitudos de iniciativas pessoais, que vivem esperando com uma encantadora ausncia de idias prprias os impulsos e sugestes dos crebros luminosos. verdade que o rotineiro no cede facilmente s instigaes dos originais; mas a sua prpria inrcia garantia de que s recolhe as idias de provada convenincia para o bem-estar social. Sua grande culpa consiste em ser encontrado sem busca nem pesquisa; seu nmero imenso. Apesar de tudo, necessrio; constitui o pblico desta comdia em que os homens superiores avanam at as ribaltas, em busca do seu aplauso e de sua sano.Nordau chega a dizer, com fina ironia:Toda vez que alguns homens de gnio se encontram reunidos, ao redor de uma mesa de cervejaria, seu primeiro brinde, em virtude do direito e da moral, deveria ser para o filisteu". to exagerado este critrio irnico que proclama a sua conspicuidade, como o critrio esttico que o relega mais baixa esfera mental, confundindo-o com o homem inferior.Individualmente considerado, atravs do prisma moral e esttico, uma entidade negativa; mas, tomados os medocres em conjunto, podem-se-lhe atribuir funes de lastro, indispensveis ao equilbrio da sociedade.Merecem esta justia. Seria possvel a continuidade social, sem essa compacta massa de homens puramente imitativos, capazes de conservar os hbitos rotineiros que a sociedade lhe infunde, mediante a educao?O medocre nada inventa, nada cria, no impulsiona, no rompe, no engendra; mas, em compensao, sabe custodiar zelosamente a armao dos automatismos, dos preconceitos e dogmas acumulados durante sculos defendendo esse capital comum contra os assaltos dos inadaptveis. Seu rancor contra os criadores compensado pela sua resistncia aos destruidores. Os homens sem ideais desempenham, na histria humana, o mesmo papel da hereditariedade na evoluo biolgica: conservam e transmitem as variaes teis para a continuidade do grupo social. Constituem uma fora destinada a contrastar o poder dissolvente dos inferiores e a conter as antecipaes atrevidas dos visionrios. So necessrios coeso do conjunto, como o cimento, para sustentar um mosaico bizantino. Mas preciso diz-lo, o cimento no o mosaico.Sua ao seria nula, sem o esforo fecundo dos originais, que inventam o imitado, depois, por eles. Sem os medocres no haveria estabilidade nas sociedades; mas, tambm sem os superiores, no se pode conceber o progresso, porquanto a civilizao seria inexplicvel em uma raa constituda apenas de homens sem iniciativa.Evolver variar; somente possvel variar mediante a inveno. Os homens imitativos se limitam a entesourar as conquistas dos originais; a utilidade do rotineiro est subordinada existncia do idealistas, como a fortuna dos livreiros se estriba no engenho dos escritores. A "alma social" uma empresa annima, que explora as criaes das melhores "almas individuais", resumindo as experincias adquiridas e ensinadas pelos inovadores.Estes so a minoria; mas so leveduras de maiorias vindouras. As rotinas defendidas, hoje, pelos medocres, so simples glosas coletivas de ideais concebidos ontem, por homens originais. O grosso rebanho social vai ocupando, a passo de tartaruga, as posies atrevidamente conquistadas muito antes por suas sentinelas avanadas, perdidas na distncia; e estes j esto muito longe, quando a massa cuida estar batendo na seu retaguarda. O que ontem foi ideal, contra uma rotina, ser, amanh, rotina, por sua vez, contra outro ideal. Infelizmente, porque a perfectibilidade indefinida.Si os hbitos resumem a experincia passada de povos e de homens, dando-lhes unidade, os ideais orientam sua vindoura, e marcam o seu provvel destino. Os idealistas e os rotineiros so fatores igualmente indispensveis, muito embora uns temam os outros. Completam-se na evoluo social, no obstante o fato de se olharem de esconso. Si os primeiros fazem mais para o porvir, os segundos interpretam melhor o passado. A evoluo de uma sociedade, esporeada pelo af de perfeio, e contida por tradies dificilmente removveis, deter-se-ia para sempre, sem o af, e sofreria sobressaltos rpidos, sem as tradies.VI Perigos sociais da mediocridadeApsicologia dos homens medocres caracteriza-se por um trao comum: a incapacidade de conceber uma perfeio, de formar um ideal.So rotineiros, honestos, mansos; pensam com a cabea dos outros, condividem a hiprocrisia moral alheia, e ajustam o seu carter s domesticidades convencionais.Esto fora de sua rbita o engenho, a virtude e a dignidade, privilgio dos caracteres excelentes; sofrem, por isso, e os desdenham. So cegos para as auroras; ignoram a quimera do artista, o sonho do sbio e a paixo do apstolo. Condenados a vegetar, no suspeitam que existe o infinito, para alm dos seus horizontes.O horror do desconhecido ata-os a mil preconceitos tornando-os timoratos e indecisos; nada aguilhoa a sua curiosidade; carecem de iniciativa, e olham sempre para o passado, como si tivessem olhos na nuca.So incapazes de virtude; ou no a concebem, ou ela lhes exige demasiado esforo. Nenhum af de santidade consegue pr em alvoroo o sangue do seu corao; s vezes no praticam crimes, com medo do remorso.No vibram em tenses mais altas de energia; so frios, embora ignorem a serenidade; apticos, sem serem previsores; acomodaticios sempre, nunca equilibrados. No sabem estremecer, num calafrio, sob uma carcia terna, nem desencadear de indignao, diante de uma ofensa.No vivem a sua vida para si mesmos, sino para o fantasma que projetam na opinio dos seus semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se desvanece, como um trao de carvo sob a ao do esfuminho, at desaparecer por completo. Trocam a sua honra por uma prebenda, e fecham a sua dignidade com chave, para evitar um perigo; renunciariam a viver, ao invs de gritar a verdade em face do erro de muitos. Seu crebro e seu corao esto entorpecidos igualmente, como plos de um m gasto.Quando se arrebanham, so perigosos. A fora do nmero supre a debilidade individual: mancomunam-se aos milhares, para oprimir todos quantos desdenham encadear a sua mentalidade nos elos da rotina.Subtrados curiosidade do sbio, pela couraa da sua insignificncia, fortificam-se na coeso do total; por isso, a mediocridade , moralmente, perigosa, e o seu conjunto nocivo em certos momentos da histria: quando reina o clima da mediocridade.pocas h em que o equilibrio social se rompe a seu favor. O ambiente torna-se refratrio a toda nsia de perfeio; os ideais se emurchecem, e a dignidade se ausenta; os homens acomodaticios tm a sua primavera florida. Os Estados convertem-se em mediocrasias; a falta de aspiraes para manter alto o nivel da moral e da cultura, vai tornando mais profundo o lamaal, constantemente.Embora isolados no meream ateno, em conjunto, constituem um regime, representam um sistema especial de interesses irremovveis. Subvertem a tbua dos valores morais, falseando nomes, desvirtuando conceitos; pensar loucura, dignidade irreverncia, lirismo a justia, a sinceridade tolice; a admirao, imprudncia; a paixo, ingenuidade; a virtude, estupidez. ..Na luta das convenincias presentes contra os ideais futuros, do vulgar contra o excelente, comum vr mesclado o elogio do subalterno com a difamao do conspcuo, pois, tanto uma coisa como outra, comovem, igualmente os espritos embrutecidos. Os dogmatistas e os servis aguam os seus silogismos, para falsear os valores na conciencia social; vivem da mentira; alimentam-se dela, semeiam-na, regam-na, podam-na, colhem-na. Assim, criam um mundo de valores fictcios, que favorece a escala dos gnios, dos santos e dos heris obstruindo, nos povos, a admirao da glria. Fecham o curral, cada vez que vibra, nas vizinhanas, o alento inequvoco de uma guia.Nenhum idealismo respeitado. Se um filsifo estuda a verdade, tem de lutar contra os dogmatistas mumificados; si um santo quer atingir a virtude, despedaa-se contra os preconceitos morais do homem acomodatcio; si o artista sonha novas formas, ritmos ou harmonias, as regulamentaes oficiais da beleza embargam-lhe o passo; si o enamorado quer amar, obedecendo ao seu corao, esbora-se contra as hiprocrisias do convencionalismo; si um juvenil impulso de energia leva a inventar, a criar, a regenerar, a velhice conservadora corta-lhe o passo; si algum, com gesto decisivo, ensina a dignidade, ladra a turba dos servs; os invejosos corcomem, com sanha perversa, a reputao dos que tomam os caminhos dos cimos; si o destino chama um gnio, um santo ou um heri, para reconstruir uma raa ou um povo, as mediocracias, tacitamente arregimentadas, resistem. Todo idealismo encontra, nesses climas, o seu Tribunal do Santo Ofcio.VII A vulgaridadeA Vulgaridade a gua-forte da mediocridade. A psicologia do vulgar mora na obstinao do medocre; basta insistir nos traos suaves da aquarela, para se ter a gua-forte.Dir-se-ia que uma revivescncia de antigos atavismos. Os homens se vulgarizam quando reaparece, em seu carter, o que foi mediocridade nas geraes avoengas; os vulgares so medocres de raas primitivas: ter-se-iam perfeitamente adaptados em sociedades selvagens, mas carecem da domesticidade que os fundiria com ou seus contemporneos. Se conserva uma dcil aclimao em seu rebanho, o medocre pode ser rotineiro, honesto e manso, sem ser decididamente vulgar. A vulgaridade uma acentuao dos estigmas comuns a todo sr gregrio; s floresce, quando as sociedades se desequilibram em preiuzo do idealismo. E a renncia do pudor do ignbil. Nenhum esforo original a comove. Desdenha o verbo altivo e os romanticismos compremetedores. Seus esgares so fofos, sua palavra, muda, seu olhar, sem brilho. Ignora o perfume daflor,a inquietude das estrelas, a graa do sorriso, o rumor das azas. a inviolvel trincheira oposta ao florescimento do engenho e do bom gosto; o altar onde Penurgo oficia, e Bertoldo cifra o seu sonho em servir-lhe de coroinha.A vulgaridade o braso nobilirquico dos homens orgulhosos de sua mediocridade; guarda-a, como um avarento, o seu tesouro. Tm o maior prazer em exibi-la, sem suspeitar de que ela a sua afronta. Estoura inoportuna com a palavra ou com o gesto; rompe, num nico segundo, o encanto preparado em muitas horas; esmaga sob seus sapatos, todo desabrlho luminoso do esprito. Incolor, surda, cega, insensvel, rodeia-nos, e nos espreita; deleita-se com o grotesco, vive s escuras, agita-se nas trevas. E, para a mente, o que so, para o corpo, os defeitos fsicos, a coxalgia e o estrabismo: incapacidade de pensar e de amar, incompreenso do belo, desperdcio da vida, toda a sordidez. A conduta, em si mesma, nem distinta, nem vulgar; a inteno enobrece os atos, eleva-os, idealiza-os, e, em outros casos, det