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MEISTER ECKHART

O HOMEM NOBRE

Edição bilingüe. Tradução e comentários deOsmar SCHAEFER e Agemir BAVARESCO

EDUCATEditora da Universidade Católica de Pelotas

PELOTAS - 2004

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© 2004 Osmar Schaefer / Agemir Bavaresco

Direitos desta edição reservados àEditora da Universidade Católica de PelotasRua Félix da Cunha, 412Fone (0xx53)284.0000 - Fax (0xx53)225.3105Pelotas - RS - BrasilE-mail:[email protected] filiada à ABEU

PROJETO EDITORIALEDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAAna Gertrudes G. Cardoso

CAPALuis Fernando Giusti

Foto: Vitral da Catedral São Francisco de Paula

ISBN 85-7590-026-9

E18h Eckhart, MeisterHomem nobre, O / Meister Eckhart; tradução e comentá-

rios Osmar Schaefer e Agemir Bavaresco. - Pelotas: Educat,2004.

61p.

1. Filosofia Medieval. 2. Antropologia FilosóficaI. Schaefer, Osmar. II. Bavaresco Agemir. III. Título.

CDD 193

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO À 2ª IMPRESSÃO.....................................................7

1 - SOBRE A VIDA E A MÍSTICA DE MESTRE ECKHART ........9

1.1 - Os momentos da experiência mística ......................................91.2 - A linguagem mística: “Dois, enquanto Um”. ........................111.3 - A vida de Mestre Eckhart ......................................................121.4 - As obras literárias de Mestre Eckhart ...................................16

2 - SOBRE O HOMEM NOBRE .......................................................21

3 - COMENTÁRIOS ..........................................................................41

3.1 - A NATUREZA HUMANA ..................................................423.1.1- A oposição entre exterior e interior .................................433.1.2 - Os seis degraus do homem nobre ou interior ..................46

3.2 - O PROCESSO DE DIVINIZAÇÃO .....................................493.2.1 - O Filho de Deus ou a fonte viva está no fundo da alma.493.2.2 - A comunhão entre a pessoa e Deus .................................51

3.3 - A ANTROPOLOGIA ESPIRITUAL ....................................523.3.1 - O que é o Homem?..........................................................533.3.2 - Como a pessoa se torna feliz? .........................................54

CONCLUSÃO ....................................................................................57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................59

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INTRODUÇÃO À 2ª IMPRESSÃO

Assistimos, hoje, a volta acentuada da mística, quer seja em níveldas manifestações religiosas, quer seja em nível da reflexão enquantobusca de um eixo unitivo existencial e de resposta ao “sentido da vida”.Se analisarmos o que se passa no pensamento pós-moderno, damo-nosconta que ele fez eclodir a unidade da razão. Por sua vez, a volta depráticas religiosas e místicas são um sintoma da necessidade de umaexperiência fundadora de unidade enquanto ponto de referência à razãofragmentária pós-moderna. Nós pensamos que a mística que seguir orastro da tradição cristã poderá contribuir de uma maneira decisiva arefundar a unidade de uma nova razão, isto é, aberta à alteridade e àpluralidade.

O problema do “sentido da vida” é tratado, de um modo particular,pela filosofia e psicologia da religião, as grandes religiões e a mística. Amodernidade, no século XVIII, institutuindo o “princípio da subjetivida-de” estabeleceu um acesso privado a fim de responder as experiências dedomínio público, tais como o amor, o bem, o mal ou a morte. Então, comoneste tempo de crise, de relativismo e de perda de valores, a tradição cristãpode ainda desvelar a verdade e assim mostrar que ela contém todo onecessário para garantir a experiência mística e, portanto, dar o “sentidoda vida”?

Certamente, recorrendo às figuras que, de modo mais relevante,falaram, influenciaram e fecundaram a história da construção do sentidohumano. Nesta ótica, entre outros, situa-se de maneira privilegiadaMestre Eckhart. Por isso traduzimos e publicamos, em texto bilingüe,uma parte significativa de sua obra - Sobre o Homem Nobre. A opção porEckhart se justifica, para nós, porque sua mística, ao trabalhar o homeminterior e exterior, articula vida ativa e vida passiva, contemplação e ação,sem dissociar o homem empreendedor da simplicidade do homeminterior.

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Optamos pelo texto bilingüe para conservar a riqueza do discursooriginal (deixar o autor falar em sua língua original) e, ao mesmo tempo,torná-lo acessível em nossa língua. Tivemos a preocupação de propiciarao leitor o rigor na escolha dos termos sem alterar a fluidez do estilo deMestre Eckhart.

A tradução foi feita a partir do texto:Meister Eckhart. Traktate lateinische Werke. Werke II, Textos e

tradução de Ernst Benz et alii, Frankfurt am Main, Deutscher KlassikerVerlag, 1993.

O texto original que citamos encontra-se na língua alemã contem-porânea. Observa-se, entretanto, que Eckhart escreveu na língua do alto-médio-alemão, que se encontra junto ao texto supra-citado.

Recorremos ao texto francês (tradução de Gwendoline Jarczyk ePierre-Jean Labarrière. Maître Eckhart. Les Traités et le Poème. Paris,Albin Michel, 1996.), para dirimir dúvidas, estabelecer comparaçõescom uma língua neolatina, sem, entretanto, abandonar a preocupação defazer uma tradução independente.

Iniciamos nosso texto, introduzindo aspectos da vida, da obra e dopensamento místico de Eckhart, antes de apresentar a tradução e ooriginal. Ao final, apresentamos os comentários, frutos de nosso estudo.

Uma palavra sobre a 2ª impressão. Quando publicamos o textoinicial, não imaginávamos que, três anos após, receberíamos solicitaçõesde pessoas de diferentes posições ideológicas para uma nova impressão.

Só este fato é dos mais gratificantes para quem torna público umtexto. Mas, não ficamos só no regozijo. Tentamos averiguar quem havialido o texto. Sem termos feito pesquisa exaustiva, pudemos constatar quenossos leitores foram educadores, jovens e empreendedores.

O que chama a atenção dos leitores é que é preciso, em nossocotidiano, trabalhar mais o “Homem Nobre”. É sob este prisma quetomamos coragem para desafiar o leitor a partir da mística de mestreEckhart. Mantivemos a tradução inalterada em relação à primeira edição.Além da revisão textual, tentamos aprofundar o conceito de mística,relacionando-o com antropologia e linguagem.

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9Introdução sobre a vida e a mística de mestre Eckhart

1 - SOBRE A VIDA E A MÍSTICA DE MESTRE ECKHART

O fenômeno místico manifesta-se em todas as sociedades, desde ascerimônias e ritos secretos das sociedades mais antigas de que temosnotícias, passando pelas religiões de mistérios, e morando hoje nocoração das grandes Religiões Históricas contemporâneas. O que é aMística, perguntar-se-á? Sem dúvida, a resposta não é simples. Para anossa orientação, entendemos a mística como uma “experiência fruitivade um absoluto (...) ou de Deus e sua respectiva doutrina.” 1

As duas palavras iniciais da definição – o substantivo “experiên-cia” e o adjetivo “fruitivo” – são significativos. Com efeito, a místicaassim entendida é um conhecimento e um fazer diferentes do conheci-mento e fazer técnico-científico e, mesmo, filosófico. Trata-se, enquantoexperiência, “de um conhecimento direto e imediato.” 2

É um face a face, presença total, contato. Está experiência seconcretiza na fruição. É “um conhecimento beatificante em cujo objetoa alma do místico se revê e se compraz.” 3

A fruição mostra o quanto o movimento da mística é diferente dosoutros modos de conhecimento. Aqui trata-se de um conhecer que é açãoque responde a “um desejo misterioso, profundo e incoercível de uniãocom o absoluto ...” 4

A busca da união com o absoluto, em nosso entendimento, é adimensão que perpetua a mística através da história. Se no primoevo suasformas eram singelas e revestidas de segredos guardados sob absolutosilêncio, encontramos hoje expressões místicas que levam o ser humanopara a esfera do absoluto nas religiões que vivem em culturas de alto nívelcrítico.

Para a nossa leitura, a mística tem um significado da mais altarelevância hoje. Trata-se de sua dimensão antropológica. O que quere-mos dizer com isto? Não queremos significar com esta asserção um

1 Manoel da Costa FREITAS. A mística. p.893.2 Idem.3 Idem.4 Idem.

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antropocentrismo. Não, pois, esta esgota o mundo dos significados naegologia subjetiva, ou quando muito, intersubjetiva. A antropologia, paranós, tem o significado de descrever e mostrar as múltiplas esferas e facesda realidade humana. Em outras palavras, tem a pretensão de mostrar ariqueza do humano.E quando afirmamos que a mística revela umadimensão antropológica, queremos apenas dizer que o ser humano semanifesta como aquele que continuamente transcende, isto é: vai paraalém de si, para além do outro, em busca de um absoluto. A místicasignifica, ao mesmo tempo, esta abertura originária do ser humano emdireção ao absoluto e a ação e o movimento de sua concretização: oencontro.

“Toda a mística, cristã ou pagã, vive de uma experiência radical,aquela da unidade do mundo com o supremo Princípio ou do Homem como Deus. Trata-se de uma experiência imediata do Deus ou simplesmentedo Uno.” 5

1.1 - Os momentos da experiência mística

Se de um lado, a mística tem como pressuposto a experiência daunidade imediata com Deus, de outro lado ela tem a experiência dadualidade ou da multiplicidade. Para Mestre Eckhart existe um movimen-to da multiplicidade para a unidade e vice-versa. Assim é a contradiçãoexistencial, composta de dois momentos:

a) A experiência da multiplicidade ou da dualidade - A consciên-cia tem a experiência do uno-múltiplo, por exemplo, entreDeus-criação, eu-mundo, eu-comunidade, eu-desejos, eu-pen-samentos etc. A consciência vive a disjunção ou a separação domundo e de si mesma.

b) A experiência da unidade - A unidade está em oposição àmultiplicidade ou à diversidade. A consciência chega à experi-ência do Uno, através de um processo de mediação, que faz“suprassumir” a contradição que existe entre Deus e o mundo,entre o eu e Deus. Como se realiza a unidade do múltiplo, ouseja, como resolver esta oposição entre a consciência e Deus?

5 Leonardo Boff. Mestre Eckhart. O livro da divina consolação e outros textos seletos.p.16.

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11Introdução sobre a vida e a mística de mestre Eckhart

Através de dois movimentos dialéticos: a mística dodespreendimento (détachement6) - ou do desapego - e amística da encarnação.

1) A mística do desprendimento. A pessoa se desprende doexterior: o mundo, os outros; e também do interior: a própria vontade,desejos e pensamentos. É a negação de si mesmo, para que o espírito seuna ao Uno. A linguagem deste momento é a reflexão, a especulação oua meditação. Aqui predomina a unidade com o Uno.

2) A mística da encarnação. O espírito desprendido não se fechaem si mesmo, ou não pára no Uno. Ele se insere no mundo, engaja-se naação. No ato de encarnar-se, o espírito assume o mundo positivamente eeleva toda a realidade para o Uno. O espírito deseja, vê e pensa em tudoe em todos unidos ao Um. A linguagem deste momento é o discursosimbólico.

A mística é a experiência da unidade que passa pela dialética daoposição entre eu-Uno, eu-outros, eu-mundo. A dialética é o diálogo emque há o momento do desprendimento - a negação - e a encarnação - aafirmação - da unidade de tudo no Uno. Aqui ocorre a “coincidência dosopostos”.

1.2 - A linguagem mística: “Dois, enquanto Um”.

A mística é uma experiência imediata de unidade que passa por umprocesso de mediação. Nós conhecemos a realidade através de conceitos,modelos, palavras, enfim, pela mediação da linguagem. As palavras, ossignos, o significado e as coisas, o referente, constituem a mediaçãolingüística da realidade. Os paradigmas ou os modelos organizam o nossoconhecimento, isto é, constroem a realidade. A consciência entra emcontato com a realidade de forma imediata. A linguagem estabelece umamediação ou uma ponte entre nós e o mundo. A mediação é a idéiaformada da realidade. A idéia estabelece a unidade entre o sujeito e oobjeto. Esta unidade é dialética, ou seja, é “dois, enquanto um”: “É da

6 O termo francês détachement corresponde em alemão a abgeschiedenheit = o prefixoab significa desapego, separação, enquanto que o verbo scheiden é separar, divorciar-se. Em português traduziríamos por desapegado, desprendido ou desprendimento.

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natureza do amor o efluir e proceder de dois. O uno, enquanto uno, nãoproduz amor. Tampouco o produz o dois, enquanto dois: o dois enquantouno, sim, necessariamente produz amor espontâneo, vigoroso, ardente”.7

Este texto é fundamental, para se entender que Eckhart recusa osextremos tanto do monismo como do dualismo. Tanto um como outro sãoincapazes de produzir o amor, pois o amor é da ordem da relação e visaà igualdade dos termos diferentes, os quais permanecem com suaidentidade em sua relação. Em linguagem técnica, os termos lógicos - oUm e o Dois - não estão em sua verdade, senão, enquanto se pressupondoum ao outro. O Um reduzido a si mesmo não conhece relação; o Dois,fixado na dispersão de seus termos constitutivos, também não conhecerelação. “Esse é o princípio lógico justamente que permite a MestreEckhart de pensar a radical unidade do homem e de Deus, sem antecedên-cia nem hierarquia, mas sem fusão que reduziria as diferenças”. 8

1.3 - A vida de Mestre Eckhart

A mística expressa sempre o contexto e as contradições do tempohistórico, religioso, político e econômico. O tempo de Mestre Eckhart émarcado por oposições e fragmentações: a síntese medieval entre ciênciae fé, entre trono e altar ameaça dissolver-se. Por exemplo, os papas forampara o exílio de Avinhão (1309-1377), as catástrofes naturais, comoterremotos, enchentes, a peste negra provocam grandes crises. É o tempodo “outono da Idade Média”. Esta crise histórica tem sua expressão nopensamento nominalista. Afirma-se que as palavras são meras palavras- "nomina, flatus vocis" - pois elas não exprimem a realidade dos seres.O estado de contradição encontra uma solução na experiência mística,que supera as oposições religiosas e políticas na verdade do Uno. Amística elabora uma nova síntese da experiência de Deus na história.

7 Sobre esta frase capital G. Jarczyk e P.-J. Labarrière escrevem: “Por oposição aomonismo, para quem todas as coisas são constituídas de uma única e mesmasubstância, o dualismo afirma que o mundo e toda a realidade se explica por doisprincípios. O próprio Eckhart é, ao contrário, de pensar ao mesmo tempo o um e omúltiplo, na sua identidade de origem, sob a égide da relação”. Id. Maître Eckhart oul’empreinte du désert. Paris: Albin Michel, 1995, p. 130.

8 Jarczyk-Labarrière. op. cit. p. 130.

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13Introdução sobre a vida e a mística de mestre Eckhart

Nesse tempo surge um expressivo movimento místico que semanifesta, por exemplo, no teólogo franciscano São Boaventura (+1274), nas místicas Matilde de Marburgo (+1283) e Hadewijch (+1260).Estas influenciam os inumeráveis conventos femininos de Flandres(Bélgica), Alemanha e França. Os dominicanos recebem o encargopastoral de acompanhar os conventos femininos - cura monialium - quesurgiram nestes países. Entre eles temos Mestre Eckhart, um dos grandesmísticos especulativos medievais. Vejamos, brevemente a sua cronolo-gia:

- 1260-1275: O começo.9 Ele nasce em Hochheim perto deGotha na Turíngia (Alemanha). Entra na Ordem dos Dominicanos quehavia sido aprovada em 1216 pelo papa Honório III.

- 1275-1280: A Formação. Eckhart estuda teologia no StudiumGenerale da Ordem dos Pregadores em Colônia, onde ele é aluno de S.Alberto Magno, cientista, filósofo e teólogo aristotélico.

- 1293-1294: O estudante. É a sua primeira estada em Paris, quedurou um ano. Enquanto bacharel em Teologia, faz um comentário dasSentenças de Pedro Lombardo (+1160), que era o texto-base para osestudantes de Teologia.

- 1294-1298: As atividades. No convento de Erfurt (Alemanha)exerce a função de prior e ao mesmo tempo é nomeado vice-provincial -vigário da Província da Turíngia.

- 1302-1303: Paris: o Mestre. Ele retorna uma segunda vez àParis, onde se torna “Mestre em Teologia Sagrada” e é nomeado profes-sor da Universidade de Paris, como exegeta dos textos bíblicos. É nessetempo que ele passa a ser chamado de “Mestre” - Meister, Magister -. Em1303, Eckhart retorna ao seu país. A Província dominicana alemã foidividida em Saxônia e Teotônia pelo capítulo geral de Besançon (França)- Pentecostes, 1303.

- 1303-1311: O administrador e o construtor. Eckhart é eleitoprovincial da Saxônia que abrange todo o norte da Alemanha e Holanda,incluindo 47 conventos de frades e 9 de religiosas dominicanas. Admi-nistra a fundação de novos conventos e, ao mesmo tempo, dirige espiri-tualmente os irmãos e irmãs e conduz negociações com os diferentessenhores feudais.

9 Jean Claude Bologne. Les sept vies de Maître Eckhart. Monaco: Ed. du Rocher, 1997.Nós seguimos J. C. Bologne para descrever os momentos da vida de Eckhart.

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- 1310: O Capítulo geral de Estrasburgo (França) elege Eckhartcomo vigário-geral, substituto do superior-geral dos Dominicanos e lhedá o encargo de reformar toda a Boêmia. No mesmo ano, os frades do sulda Alemanha - província de Teutônia -, tendo conhecimento da compe-tência e do senso espiritual do Mestre, elegem-no como seu provincial.

- 1311-1313: O segundo magistério. Ele retorna a Paris, pelaterceira vez, para assumir a cátedra e escreve a obra Opus tripartitum eelabora vários comentários bíblicos. A finalidade deste retorno foi paraestabelecer um diálogo na polêmica entre as duas escolas teológicas: ados franciscanos e a dos dominicanos. Porém, sendo mais místico quepolemista, deixa Paris.

- 1314-1323: O mestre de vida. Vai a Estrasburgo, enquantovigário geral da Ordem, e exerce também a função de assistência pastoral,de direção espiritual aos conventos das religiosas e prega ao povo, emlíngua alemã.

- 1323-1326: É enviado à Colônia como diretor do StudiumGenerale e ensina a teologia. Produz intelectualmente e prega ao povo.

- 1326-1329: O processo. O arcebispo de Colônia, o franciscanoHenrique II de Virneburg, inicia um processo contra Eckhart, alegandoo ensino de doutrinas heréticas. O arcebispo nomeia uma comissão queencontra 120 proposições consideradas heresias, as quais foram tiradasdo seu livro Da divina consolação, das obras latinas e dos sermõesalemães.

A obra e a linguagem de Eckhart é profundamente especulativa oumística. A comissão tomou frases fora do conjunto de seus escritos. Porisso, não pôde compreender o discurso na sua universalidade e no sentidoespiritual. Diante disso, Eckhart lança mão do privilégio de isenção queos dominicanos e franciscanos tinham e pede para ser julgado pela SéApostólica ou pela Universidade de Paris.

Parte para Avignon, no sul da França, onde se encontrava o Papa.Antes de viajar, no dia 13 de fevereiro de 1327, diante do povo, ele fazuma profissão de ortodoxia: “Eu, Mestre Eckhart, doutor em SagradaTeologia, protesto, diante de todas as coisas, tomando a Deus comotestemunha, que eu sempre reprovei todo erro sobre a fé e toda corrupçãodos costumes, tanto quanto pude, uma vez que tais erros seriam e sãocontrários à minha condição de mestre e contrários também à minhaOrdem. Se, portanto, houver alguma proposição errônea em fé e moral,

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que eu tenha por acaso escrito, dito ou pregado, em privado ou empúblico, em qualquer tempo ou lugar, direta ou indiretamente, expondouma doutrina menos sã e até falsa, então eu a revogo aqui, explícita epublicamente diante de todos e de cada um dos que estão presentes aqui,como não escrita ou não dita”. 10

Eckhart dirige-se a Avignon, acompanhado pelo provincial e maistrês confrades, professores de Teologia. O processo continua em Avignon.As proposições suspeitas de heresia foram reduzidas a 28. Ele explica-sediante da comissão, porém, os resultados parecem ter sido infrutíferos,pois o Papa João XXII, no dia 27 de março de 1329, pela Constituição Inagro dominico, condenou as 28 proposições do Mestre. As palavras dacondenação são duras: “Com dor comunicamos que, neste tempo, alguémdas terras alemãs, Eckhart de nome, doutor e professor de SagradaEscritura, da Ordem dos Pregadores, quis saber mais do que era necessá-rio, em dissonância com a sensatez e com as diretrizes da fé, porqueafastou seu ouvido da verdade e voltou-se às fabulações”. 11 O texto finalconclui: “Nós […] expressamente condenamos e reprovamos os quinzeprimeiros artigos e os dois últimos como heréticos e os outros 11 citados,como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os livrose opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos ou algunsdeles”. 12

Mestre Eckhart não assistiu à sua condenação. Ele morreu em finalde abril de 1328 em Avignon. O documento papal, porém, o dá comomorto e afirma que Eckhart retratara todos os seus possíveis erros, e quesubmetera os seus escritos ao melhor juízo da Sé Apostólica. Mesmoassim, o destino de sua obra não foi revista por Roma. 13 No entanto, a sua

10 Cf. A. Dempf. Meister Eckhart. Friburgo, 1960, p. 19. In Mestre Eckhart. op. cit.,p. 26.

11 J. Quint. Meister Eckhart. p. 449. Citado conforme Mestre Eckhart. O livro daconsolação divina. p. 27.

12 As proposições condenadas encontram-se também no Enchiridion Symbolorum,Denzinger-Schönmetzer, 1963, nº 950-980.

13 Jarczyk-Labarrière afirmam sobre este tempo e o processo contra Eckhart o seguinte:“No frontão deste período, somos tentados a escrever a palavra que Dante decifrouna entrada do inferno: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate. (Abandonai todaesperança, vós que entrais neste lugar). Cf. op. cit. p. 87.

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mística teve grandes discípulos tais como Tauler (1300-1361) e Suso(1296-1366). Eckhart ainda influenciou místicos como Ruysbroeck(1293-1381), Walter Hilton e mais tarde os espanhóis Teresa d’Ávila eJoão da Cruz. Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal, teólogo, diplomata,legado pontifício e filósofo colecionou as obras de Eckhart. Podemos verque a Douta ignorância (1400) e a Apologia da douta ignorância (1449)estão nitidamente sob a influência do Mestre Eckhart. O filósofo Hegeladmirava o pensamento dialético de Eckhart. Com a descoberta, a partirdo século XIX, dos manuscritos de Eckhart, sua mística é seguida eestudada em todo o mundo.

1.4 - As obras literárias de Mestre Eckhart

Como vimos acima, Eckhart desenvolveu, durante toda a sua vida,muitas atividades. Assumiu responsabilidades institucionais, pastorais,direção espiritual, viagens etc. No entanto, ele produziu uma vasta obraliterária. Sua obra é composta de duas partes: uma latina e a outra alemã.A latina é a Opus tripartitum, composta de três partes: Opus propositionum,que deveria encerrar mil questões; Opus quaestionum, que seria umaespécie de Suma Teológica como a de Tomás de Aquino; e a Opusexpositionum, que engloba as exposições sobre o Gênese, o Êxodo, oLivro da Sabedoria e o Evangelho de São João.

A obra alemã contém os 86 sermões e os Tratados. Os Tratados sãoos seguintes:

1 - Liber “Benedictus”a) Das Buch der göttlichen Tröstung: O livro da divina consolação.b) Von dem edlen Menschen: Sobre o homem nobre.

2 - Reden der Unterweisung: Palestras de instrução ou conversaçõesespirituais.

3 - Von Abgeschiedenheit: Do desprendimento.Mestre Eckhart tem uma preocupação pedagógica tanto nos seus

escritos quanto em seu ensino: “Dir-se-á também que não se deve falar ouescrever sobre tais doutrinas para os iletrados. A isso respondo: se não élícito instruir os iletrados, nunca alguém se fará letrado, e já não haverá

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17Introdução sobre a vida e a mística de mestre Eckhart

quem possa ensinar ou escrever. Com efeito, é por isso que se cuida deinstruir os iletrados: para que, de iletrados, se tornem letrados. Se nadahouvesse de novo, nada ficaria velho”.14

Seu intuitus mysticus tem como finalidade a busca da verdade:“Quem não entender este discurso, não se preocupe em seu coração.Enquanto o homem não estiver à altura desta verdade, não entenderá odiscurso. Mas não deixa de ser uma verdade desvelada que veio imedi-atamente de Deus”. 15

Os grandes temas da mística de Mestre Eckhart:a) “Dois enquanto Um”: a dialética místicab) “Deus-nascimento”: o nascimento de Deus na alma e o des-

prendimentoc) “Homem-nascimento”: a mística de “tornar-se filho” e a

divinizaçãod) A ordem da alma: o fundamento da almae) A centelha da alma e o pequeno castelof) O homem nobre: interior e exteriorg) Maria Madalena, Isabel, Marta e outrasApresentaremos agora o texto traduzido por nós juntamente com

o original. No texto - Sobre o Homem Nobre - Eckhart trata da relaçãoentre o homem interior e exterior mantendo uma tensão místico-especulativa que une as duas dimensões da pessoa de forma criativa eoriginal.

14 Mestre Eckhart. O livro da divina consolação. p. 87.

15 Cf. o sermão 32 da edição de J. Quint. Meister Eckhart. Deutsche Predigten undTraktate, p. 309.

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19Introdução sobre a vida e a mística de mestre Eckhart

O HOMEM NOBRE

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21Sobre o homem nobre

2 - SOBRE O HOMEM NOBRE

Nosso Senhor diz no Evangelho: “Um homem nobre partiu paraum país longínquo, a fim de receber um reino e voltou” (Lc 19,12).Nosso Senhor nos ensina, através destas palavras, quão nobre ohomem foi criado em sua natureza e quão divino é o ponto ao qual elepode chegar pela graça, e também mostra como ele pode chegar atéela. Além do mais, por estas palavras é atingida uma grande parte daSagrada Escritura.

Deve-se saber, em primeiro lugar, e isto é muito claro, que ohomem possui em si duas naturezas: corpo e espírito. Por esta razão,diz um escrito: quem se conhece a si mesmo, conhece todas ascriaturas, porque todas as criaturas são ou corpo ou espírito. Eisporque as Escrituras dizem a respeito do homem que existe em nós,um homem exterior, e um outro homem interior. Ao homem exteriorpertence tudo aquilo que é inerente à alma, ao mesmo tempo, envoltoe misturado à carne, e que tem uma ação comum com um membro enum membro de todo e qualquer corpo, tais como o olho, a orelha, alíngua, a mão e outros. E tudo isto a Escritura entende como o homemvelho, o homem terrestre, o homem exterior, o homem inimigo, umhomem servil.

O outro homem que está em nós, é o homem interior, que aEscritura chama um homem novo, um homem celeste, um homemjovem, um amigo, e um homem nobre. E diz Nosso Senhor: “Umhomem nobre parte para um país longinqüo e aí recebe um reino, eentão volta”.

Ainda é preciso saber que São Jerônimo diz, e os mestres emcomum acordo também o dizem, que todo homem, desde que ele éhomem, possui um espírito bom, um anjo, e um espírito mau, umdemônio. O bom anjo aconselha e, incansavelmente, move em dire-ção ao que é bom, ao divino, ao que é virtude, ao celeste e ao eterno.

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23Sobre o homem nobre

O espírito mau aconselha e move constantemente o homem emdireção ao temporal, ao efêmero e ao que é vício, mau e diabólico. Estemesmo espírito mau confabula todo tempo com o homem exterior e,através dele, coloca armadilhas todo tempo ao homem interior; damesma maneira, como a serpente confabulava com a mulher Eva e,através dela, confabulava com o homem Adão (cf. Gn 3,1 ss). Ohomem interior é Adão. O homem na alma é a árvore boa, que sempre,sem trégua, traz bons frutos, dos quais fala também fala Nosso Senhor(Mt 7,17). É também o campo no qual Deus semeou sua imagem e suasemelhança e semeia a boa semente, a raiz de toda a sabedoria, detodas as artes, de todas as virtudes, de toda bondade: semente denatureza divina (2 Pd 1,4). Semente de natureza divina é o Filho deDeus, Palavra de Deus (Lc 8,11).

O homem exterior é o homem inimigo e o maligno que, além domais, tem semeado e lançado o joio (cf. Mt 13,24s). Dele diz SãoPaulo: encontro em mim o que me embaraça e é contrário ao que Deusmanda e ao que Deus aconselha e ao que Deus tem dito, e diz aindano mais elevado, no fundo de minha alma (cf. Rm 7,23). Em outrolugar, ele diz e se lamenta: “Infeliz de mim! homem infortunado quesou! Quem me livrará desta carne e deste corpo mortal?” (Rm 7,24).E ele diz também em outro lugar que o espírito do homem e sua carnelutam entre si, o tempo todo. A carne aconselha vício e maldade; oespírito aconselha amor de Deus, alegria, paz e toda virtude (cf. Gl5,17 s). Quem obedece e vive segundo o espírito, segundo o seuconselho, este pertence à vida eterna (cf. Gl 6,8). O homem interior éeste do qual fala Nosso Senhor, quando diz: “um homem nobre partiupara um país longínquo para aí receber um reino”. É a árvore boa daqual fala Nosso Senhor declarando que sempre ela traz bom fruto ejamais mau, porque ele quer bondade e inclina em direção à bondade,em direção à bondade que paira em si mesma, imune disto ou daquilo.O homem exterior é a árvore má, que jamais seria capaz de dar frutobom (cf. Mt 7,18).

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25Sobre o homem nobre

No que se refere à nobreza do homem interior, do espírito, e daindignidade do homem exterior, da carne, dos mestres pagãos, Cíceroe Sêneca, dizem estes também que não existe alma racional sem Deus;a semente de Deus está em nós. Na medida em que ela dispusesse deum bom operário instruído e inteligente, ela se desenvolveria tantomais e se elevaria até Deus do qual ela é semente, e o fruto tornar-se-ia da mesma maneira uma natureza de Deus. Semente de pereira sedesenvolve em pereira, semente de nogueira em nogueira, semente deDeus em Deus (cf. 1Jo 3,9). Mas, se acontece que a semente boadispõe de um operário estúpido e mau, então se desenvolve o joio erecobre e abafa a boa semente, de tal maneira que ela não poderánascer e nem se desenvolver. Orígenes, um grande mestre, fala:considerando que Deus mesmo semeou, imprimiu e tornou inata estasemente, ela pode muito bem encontrar-se encoberta e escondida, eportanto, jamais destruída nem apagada em si mesma; ela arde ebrilha, ilumina e queima e se inclina sem cessar para Deus.

O primeiro grau do homem interior e novo, diz Santo Agosti-nho, é quando o homem vive segundo o modelo das pessoas boas esantas, mas tateia ainda, segurando-se nas cadeiras e nas paredes, eainda se alimenta de leite.

O segundo grau é quando ele não só considera apenas osmodelos exteriores mesmo que sejam homens de bem, mas ele corree mesmo se apressa em direção ao ensinamento e ao conselho de Deuse da divina sabedoria, dá as costas à humanidade e [volta] o rosto aDeus, livra-se do colo da mãe e sorri ao Pai celeste.

O terceiro grau é quando o homem, cada vez mais, se afasta desua mãe e fica, progressivamente, longe de seu colo, escapa-lhe docuidado, despoja-se do medo, de tal modo que, mesmo que pudesseagir mal e praticar injustiça, sem molestar a quem quer que fosse, elenão teria, no entanto, nenhuma vontade [para tanto]; é tão íntima ezelosa sua união de amor e de diligência para com Deus que não[descansa], enquanto não tiver sido introduzido na alegria e na doçurae bem-aventurança, onde aborrece tudo que lhe [= Deus] é desigual eestranho.

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O quarto grau é quando o homem, cada vez mais, progride efirma raízes no amor e em Deus, de tal modo que se dispõe a aceitartodas as travessias, provações, adversidades, e a suportar sofrimentosvoluntários de bom grado, com desejo e alegria.

O quinto grau é quando ele vive totalmente recolhido em simesmo, em paz, silenciosamente repousando na riqueza e na supera-bundância da indizível e mais sublime sabedoria.

O sexto grau é quando o homem apagou [toda e qualquer]imagem e revestiu a imagem de eternidade de Deus, e chegou aoperfeito, ao total esquecimento da vida efêmera e temporal, e atraídoe transformado em imagem divina, tornou-se Filho de Deus. Alémdisso, não há grau mais elevado, e lá está o repouso eterno e a bem-aventurança, porque a finalidade do homem interior e do homem novoé: a vida eterna.

A respeito deste homem interior nobre, onde a semente e aimagem de Deus foi semeada e está impressa, sobre a maneira pelaqual a semente e a imagem da natureza divina e do ser divino, o Filhode Deus, aparece, sobre a maneira como se a apercebe e, às vezes,também, como permanece oculta, o grande mestre Orígenes apresentauma comparação, a saber: que a imagem de Deus, o Filho de Deus,está no fundo da alma como uma fonte viva. Mas aquele que aí jogaterra, quer dizer, um desejo terrestre, isto a bloqueia e a recobre, de talmaneira que ninguém a reconhece mais, nem mais a percebe; contudoela permanece viva em si mesma e, quando se retira a terra que doexterior lhe foi jogada a mesma aparece então e se pode percebê-la.E ele diz que esta verdade é apontada no primeiro livro de Moisés, láonde está escrito que Abraão cavou, em seu campo fontes vivas e quemalfeitores as encheram de terra; e, depois que esta foi retirada,apareceram as fontes vivas (cf. Gn 26,14ss).

Há ainda uma outra comparação: o sol brilha sem interrupção;no entanto, quando há uma nuvem ou neblina entre nós e o sol, nãopercebemos mais seu brilho.

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Da mesma maneira, quando o olho está debilitado em si mesmo,doente ou coberto, o brilho lhe permanece desconhecido. Sobre istoapresentei uma elucidativa comparação: quando um mestre faz umaimagem a partir de uma madeira ou de uma pedra, ele não introduz aimagem na madeira, mas sim, ele gasta as saliências que mantinhamescondida e recoberta a imagem; ele não acrescenta nada a madeira,mas retira e cava da superfície [e da casca] a ferrugem; e entãoresplandece o que se encontrava escondido lá debaixo. Eis aí o tesouroque estava escondido no campo, como o diz Nosso Senhor noEvangelho (Mt 13,44).

Santo Agostinho diz: quando a alma do homem se volta para oalto na eternidade em direção a Deus só, então brilha e resplandece aimagem de Deus; mas quando a alma se volta para o exterior, mesmoque seja para o exercício exterior das virtudes, esta imagem seencontra totalmente velada. E isto quer significar que as mulheres têma cabeça coberta e os homens [a tem] descoberta, segundo oensinamento de São Paulo (cf. 1 Cor 11,4ss). Eis porque: tudo o queda alma, se volta para baixo, recebe um véu ou um manto; mas aquiloque da alma se volta para o alto, é pura imagem de Deus, sem véu edescoberta na alma descoberta. A respeito do homem nobre, como aimagem de Deus, o Filho de Deus, a semente de natureza divina emnós, nunca se encontra destruída, mesmo se ela se encontra velada,disto o rei Davi diz nos Salmos: mesmo se recaem sobre o homemmuitas privações, sofrimentos e aflições, ele permanece, entretanto,na imagem de Deus e a imagem nele (cf. Salmo 4,2ss). A verdadeiraluz resplandece nas trevas, mesmo se não a percebemos (cf. Jo 1,5).

“Não deis atenção a este o fato, assim fala o livro do Amor, 16

de que eu seja morena; mesmo assim eu sou bonita e, portanto, bemfeita; mas o sol alterou minha cor” (Ct 1,5). “O sol” é a luz destemundo e significa o que há de mais sublime e melhor do que foi criadoe feito, recobre e altera a cor da imagem de Deus em nós.

16 Trata-se do livro: Cântico dos Cânticos.

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“Tirai a ferrugem da prata”, diz Salomão, “e então resplandece ebrilha a taça mais límpida que possa existir” (Pr 25,4), a imagem,Filho de Deus, na alma. E é isto que Nosso Senhor quer dizer com estaspalavras, quando declara que “um homem nobre partiu”, porque épreciso que o homem saia de toda imagem e de si mesmo e que ele setorne muito distante e muito diferente de tudo aquilo; sim, se ele quere deve receber o Filho e tornar-se Filho no seio e coração do Pai.

De qualquer modo, todo intermediário é estranho a Deus. “Eusou”, diz Deus, “o primeiro e o último”(Ap 22,13). Não há distinção,nem na natureza de Deus, nem das Pessoas, segundo a unidade danatureza. A natureza divina é una, e cada Pessoa é una também, e é omesmo Um que é a natureza. A distinção entre ser e modo de ser seencontra tomada como Um e é Um. Lá onde não há interior, lá elerecebe e possui e produz distinção. É por isso: no Um se encontraDeus, e é preciso que se torne Um aquele que deve encontrar Deus!“Um homem”, diz Nosso Senhor, “partiu”. Na distinção, não sedescobre nem o Um, nem ser, nem Deus, nem repouso, nem bem-aventurança, nem satisfação. Seja Um, para que tu possas encontrarDeus! E, na verdade, tu serás verdadeiramente Um, então tu perma-necerás também Um na distinção, e a distinção te tornaria Um e nãopoderia te entravar em nada. Um permanece igualmente Um em milvezes mil pedras tanto quanto que em quatro pedras, e mil vezes mil étanto verdadeiramente um número simples como quatro é um número.

Um mestre pagão diz que o Um nasceu do Deus altíssimo. Suapropriedade é de ser um com o Um. Quem o busca abaixo de Deus,aquele engana a si mesmo. Além disso, o mesmo mestre diz, emquarto lugar, que este Um não tem amizade, de modo mais preciso,com nada senão que com as virgens ou as donzelas, segundo o que dizSão Paulo: “eu vos tenho confiado, virgens e castas, noivas ao Um”( cf. 2Cor 11,2).17 E assim deveria ser o homem, pois assim fala NossoSenhor: “Um homem partiu”.18

17 O texto exato é: “Experimento por vós um zelo semelhante ao de Deus. Desposei-vosa um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura”.

18 Eckhart insiste no Um homem, isto é, o homem em estado de unidade que se opõe aohomem dividido que caracteriza o homem exterior.

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Homem, no sentido próprio do termo em latim, significa deuma, certa maneira, aquele que se inclina completamente diante deDeus e submete tudo o que ele é e o que é seu; levanta o olhar emdireção a Deus, não para o que é seu, que sabe estar atrás dele, abaixodele, ao lado dele. Isso é a plena e franca humildade; esse nome, eleo tira da terra. Disto não quero mais falar agora. Logo que se fala dohomem, a palavra quer dizer também qualquer coisa que é além danatureza, além do tempo e além de tudo o que é inclinado para o tempoou tem o gosto do tempo, e a mesma coisa eu digo também do lugare da corporeidade. Mais ainda, o homem, de uma certa maneira, nãotem nada em comum com nada, o que quer dizer que ele não é formadonem segundo isso, nem segundo aquilo e nem se iguala [com nada],e que ele não sabe nada de nada, de tal sorte que não se encontra nemse percebe nenhuma parte nele nada de nada, e que o nada lhe sejaportanto tirado inteiramente, de tal sorte que lá não se encontrasimplesmente mais que vida, ser, verdade e bondade. Quem é assimfeito é “um homem nobre”, nem mais nem menos.

Existe ainda um outro tipo de ensinamento a tirar disto queNosso Senhor chama um homem nobre. Devemos saber também queaqueles que conhecem Deus face a face, conhecem-no ao mesmotempo [Deus] que a criatura, pois o conhecimento é uma luz da alma,e todos os homens aspiram por natureza ao conhecimento, poismesmo o conhecimento de coisas más é bom. Ora os mestres dizem:logo que se conhece a criatura em sua essência própria, isso significaum conhecimento vespertino, e vemos então a criatura em imagensmúltiplas e diversificadas; mas logo que se conhece a criatura emDeus, isso se chama e é um conhecimento matutino; e assim, contem-pla-se a criatura sem nenhuma diversidade e despojada das imagense de toda imagem e despida da igualdade de toda igualdade no Um,que é Deus mesmo. Isto é também o homem nobre, do qual NossoSenhor diz: “um homem nobre partiu”, nobre por esta razão que eleé Um e que ele conhece Deus e a criatura no Um.

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Eu quero ainda enunciar e insistir num outro sentido no queconcerne o “homem nobre”. Eu digo: quando o homem, a alma, oespírito contempla Deus, ele se sabe também e se conhece conhecen-do, isto é, ele conhece que ele contempla e conhece Deus. Ora pareceua alguns, e isso parece muito credível, que flor e cerne da bem-aventurança se encontram no conhecimento, lá onde o espírito conhe-ce que ele conhece Deus; pois, que eu tivesse todas as delícias e nadadisso soubesse, de que me serviria isso e que delícia me seria isso?Entretanto, eu digo por certo que não é assim. Seria verdadeiro quesem isso a alma não seria bem-aventurada, a bem-aventurança, nãoobstante, não consistiria nisso; pois isso em que, em primeiro lugar,reside a bem-aventurança, que a alma contemple Deus face a face. Láela recebe todo seu ser e sua vida, e tira tudo o que ela é do fundo deDeus, e não sabe absolutamente nada de saber nem de amor nem denada. Ela [a alma] repousa total e unicamente no ser de Deus. Ela nadasabe senão o ser e Deus. Logo, ela sabe e conhece, que ela contempla,conhece e ama Deus, isso é uma vez para o exterior e uma outra vezsobre o que é primeiro, segundo a ordem natural; pois ninguémconhece o branco senão aquele que é também branco. Eis porqueaquele que se conhece [como] branco edifica e constrói sobre o serbranco, e ele não apreende seu conhecer sem intermediário e nãosabendo ainda sobre a cor; mas ele toma seu conhecer e seu saberdaquilo que é atualmente branco, e não tira o conhecimento da únicacor em si mesma, e mais ele tira conhecer e saber daquilo que écolorido, ou daquilo que é branco, e se conhece [como] branco.Branco é bem menos e bem mais exterior que ser branco. Coisa bemdiferente é a parede e o fundamento sobre o qual a parede é edificada.

Os mestres dizem que outra é a energia pela qual o olho vê eoutra a energia pela qual ele conhece que ele vê. O primeiro aspecto,o fato que o olho veja, ele o toma totalmente da cor, não do que écolorido.

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Daí, é totalmente indiferente saber-se que a coisa colorida seja umapedra ou uma madeira, um homem ou um anjo: que ele tenha cor, énisto que reside todo seu ser.

Digo, então, que o homem nobre toma e tira todo o seu ser, vidae bem-aventurança única e exclusivamente de Deus, perto de Deus eem Deus, não do fato de conhecer, contemplar e amar Deus ou coisassemelhantes. É porque Nosso Senhor diz magnificamente que a vidaeterna é: conhecer Deus só como único verdadeiro Deus (Jo 17,3), enão: conhecer que se conhece Deus. Como o homem deveria seconhecer conhecendo Deus, ele que não se conhece a si mesmo? Éabsolutamente seguro, o homem não se conhece a si mesmo absolu-tamente e nem coisa alguma, senão Deus somente, sim, na medida emque ele se torna bem-aventurado e é bem-aventurado: até às raízes eaté o fundamento das bem-aventuranças. Mas na medida em que aalma conhece que ela conhece Deus, ele [o homem] conhece o que éde Deus e de si mesmo.

E agora, diferente é a energia, assim tenho falado, pela qual ohomem vê, e outra a energia pela qual ele conhece e sabe que ele vê.É verdade que, em nós, a energia pela qual nós sabemos e conhecemosque nós vemos é mais nobre e mais elevada que a energia pela qual nósvemos; porque a natureza começa sua obra pelo mais deficiente,quanto a Deus ele começa sua obra pelo mais perfeito. A natureza fazo homem a partir da criança, e a galinha a partir do ovo, mas Deus fazo homem antes da criança, e a galinha antes do ovo. A naturezaprimeiramente aquece e abrasa a madeira, e somente depois faz surgiro ser do fogo; mas Deus confere em primeiro lugar o ser a todacriatura, e é somente após, no tempo e contudo fora do tempo e forade tudo aquilo, que ele faz aquilo que decorre [do ser]. Da mesmamaneira dá o Espírito Santo, antes dos dons do Espírito Santo.

Assim digo que não há bem-aventurança a não ser que o homemnão conheça e não saiba bem que ele contempla e conhece Deus; livre-me Deus, que minha bem-aventurança se fundamente nisso!

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Um outro se contenta com isso, que ele se tenha a si mesmo, mas eutenho compaixão dele. Ardor do fogo e ser do fogo são muitodesiguais e surpreendentemente longe um do outro na natureza,mesmo se eles estão muito próximos segundo o tempo e segundo olugar. O contemplar de Deus e o nosso contemplar são totalmentedistantes e desiguais um em relação ao outro.

Eis porque Nosso Senhor diz muito bem que “um homem nobrepartiu para um país longinqüo para aí receber um reino e volta”.Porque é preciso que o homem seja Um em si mesmo, e é preciso queele procure nele e no Um, e recebê-lo no Um: quer dizer, contemplarDeus unicamente; e “voltar”, significa: saber e reconhecer que sereconhece e sabe Deus. E tudo o que é apresentado neste discurso, oprofeta Ezequiel o predisse, quando falou: “uma águia poderosa, comgrandes asas, uma larga desenvoltura e coberta de todos os tipos deplumas veio para a montanha límpida, tomou o cerne e o coração damais alta das árvores e arrancou a copa de sua folhagem e levou-a parabaixo” (Ez 17,3s). O que Nosso Senhor chama um homem nobre, é oque o profeta nomeia uma grande águia. Quem então é mais nobre doque aquele que, de um lado, nasceu do mais elevado e do melhor quepossui a criatura, e de outro lado, do fundo mais íntimo da naturezadivina e de sua solidão? “Eu conduzirei a alma nobre na solidão”, dizNosso Senhor no profeta Oséias, “e aí eu falarei a seu coração” (Os2,14), Um com Um, Um de Um, Um no Um e, no Um, Um eternamen-te. Amém.

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41Comentários

3 - COMENTÁRIOS

O sermão Sobre o homem nobre é a segunda parte do livro Dadivina consolação. Embora nem todos concordem com esta tese, nósencontramos provas internas e externas que sustentam a unidade da obra.Encontramos, primeiramente, no próprio livro Da Divina Consolação, aseguinte afirmação: “A respeito da maneira pela qual em sua parte maisíntima e mais excelsa a alma haure e recebe, no seio e no coração do Paiceleste o Filho de Deus e vir-a-ser-filho-de-Deus, procura-o depois destelivro [no fim deste livro], onde escrevo ‘sobre o homem nobre que partiupara uma região longínqua, a fim de ser investido na realeza e voltar’”.19

Existe, depois uma ligação quase orgânica entre o homem nobre e o livroda divina consolação, sob o ângulo de sua unidade redacional e literária.Enfim, as duas últimas das quinze proposições retidas contra Eckhart,quando do primeiro processo de Colônia, são tiradas deste texto, entãodesignado sob o título de Benedictus Deus, que qualifica, como se sabeos dois tratados, ou as duas partes deste único tratado. 20

O gênero literário e a estrutura do livro é o sermão. Eckhart o inicia,fazendo uma citação bíblica, como pré-texto para o desenvolvimento doassunto e o conclui com o solene amém. Ele não o finaliza, como se fazhabitualmente, invocando a Deus, mas o conclui com uma afirmaçãometafísica, que resume o conteúdo dos dois livros: “Um com o Uno, Umdo Uno, Um no Uno, e no Uno Um para sempre. Amém”. Na verdade,trata-se da identidade da identidade - ‘um com Uno’ - e da diferença - ‘umdo Uno’.

O tema do livro trata da pessoa interior. Este é qualificado, comosendo novo ou jovem, celeste, amigo e nobre, enquanto que a pessoaexterior recebe os atributos opostos: velho, terrestre, inimigo, servil. Noque se refere ao atributo nobre, compreende-se que se trata de umainfluência cultural, pois, nesta época, a nobreza assumia a representaçãoantropológica máxima da realização humana.

19 Mestre Eckhart. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis:Vozes, 1991, p. 75.

20 Jarczyk-Labarrière. op. cit. nota 41, p. 32.

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A pessoa interior retornou para si mesmo, após ter saído de si.Adquiriu um “reino” que é Deus mesmo. Ele saiu do efêmero, pararetornar à verdade do ser. Esse movimento de sair de si tem dois sentidos:Primeiramente, é sair da “distração” exterior que destrói toda interioridadeverdadeira. Depois, é o movimento de afirmação de se manter no mundoe, portanto, na multiplicidade, sem perder a interioridade. É a lógica daintemporalidade divina que se diz inteiramente na interioridade, quandoo Filho é engendrado no seio da divindade e sempre de novo se exterioriza.Sair de si, permanecendo em si-mesmo. Sair de si, para melhor permane-cer em si-mesmo. Eis a contradição sempre presente no Mestre. Essemovimento tensional é aqui expresso em três momentos ou ondassucessivas: primeiramente, a dupla natureza humana - corpo e espírito;depois, o processo de sua divinização - “Nosso Senhor nos ensina porestas palavras quanto o homem é criado nobre em sua natureza, e o queele pode se tornar por graça”, enfim, o caminho de retorno em direção aesta realidade de origem - “como homem deve chegar até lá”.

3.1 - A NATUREZA HUMANA

O primeiro momento mostra a oposição entre duas naturezas, asquais se encontram na pessoa: exterior e interior. De um lado, o exteriorestá desconectado de sua relação com a origem e se toma como sendo otodo. Aqui, uma parte é isolada e a ruptura, em relação à fonte, seca arealidade que definha e morre. De outro lado, o interior, este mesmo todo,sob a sua forma autêntica, isto é, ao mesmo tempo princípio insondávele dicção exata de si mesmo, enquanto interioridade e exterioridade, é ouniverso inteiro no esplendor de sua irrigação essencial.

Nada de dualismo, pois a pessoa interior é aquela que conjuga emsi a interioridade e a exterioridade. A exterioridade, para o Mestre, é boacomo tal e não é incompatível com a interioridade, na medida em que elaé compreendida como sua dicção e a expressão de sua efetividade. Apessoa exterior é a pessoa dispersa, dividida, alienada de si mesma. Écomo o sujeito platônico que é puxado por um cavalo branco e um preto.Assim, a pessoa eckhartiana possui em si mesma um anjo e um demônio.A estrutura é, potencialmente, conflitual, pois quem se coloca do ladoexterior de si mesmo, será puxado para baixo e para a dispersão, enquanto

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43Comentários

que o lado interior é capaz de reunir em si o interior e o exterior, ou seja,é o sujeito pacificado e clarificado, isto é, o sujeito nobre. Enfim, é osujeito unificado. Eckhart usa aqui a figura bíblica do Gênesis, repetindoa consciência machista da época. Adão representaria o sujeito interior, noqual coexistem, desde as origens, as duas partes essenciais, quando nãose separam uma da outra. Enquanto Eva representaria o exterior que sefixa sobre si mesmo.

É preciso ter em mente que, tanto a exterioridade fixada em simesma é princípio de morte, quanto a interioridade que se mantém puraem si, sem relação com o múltiplo. Duas imagens bíblicas mostram queo sujeito interior é semelhante a uma árvore a qual produz bons frutos. Ouainda, é como o campo bem trabalhado, onde a semente pode amadurecer.Por isso, o sujeito interior é o sujeito nobre, pois ele “sai” e “retorna”enriquecido do reino, porque, ao sair, ele se manteve sob o olhar interior.

O Mestre, neste primeiro momento, estabelece seis etapas, come-çando com a imitação exterior das pessoas, para chegar à verdadeira“transformação” na imagem divina. A última etapa merece um destaqueespecial, pois propõe uma teoria da imagem em que a pessoa deve quererdespojar-se de toda imagem exterior - entbildet -, isto é, de toda fixaçãonele mesmo e revestir a imagem interior - überbildet - que determina seuser, logo que ele se encontra na eternidade de Deus e Deus nele mesmo.Podemos dizer “desimagem” e “sobre-imagem”, onde se encontram arejeição da exterioridade pura e a escolha de uma interioridade que é,simultaneamente, interioridade e exterioridade.

3.1.1- A oposição entre exterior e interior

Mestre Eckhart, no primeiro parágrafo, cita o versículo bíblico deLc 19,12: “Um homem nobre partiu para uma terra distante, a fim dereceber um reino e retornar”. Afirma, com estas palavras, que se atingeuma grande parte da Santa Escritura. O Mestre desenvolve em poucosparágrafos uma profunda antropologia espiritual. Iniciemos descrevendoa dupla natureza humana.

Como foi dito acima, o corpo e o espírito são os dois elementos quecompõem a natureza humana, ou ainda, segundo a Escritura, o homem

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exterior e o homem interior.21 Vejamos como o Mestre caracteriza cadaum desses elementos:

a) O homem exterior. Este se caracteriza, fundamentalmente, porestar ligado aos cinco sentidos - visão, audição, olfato, gosto e tato. OMestre, a partir da Bíblia, caracteriza este homem com cinco adjetivos:velho, terreno, exterior, inimigo e servil.

b) O homem interior. Este homem é igualmente caracterizado porcinco adjetivos: novo, celeste, jovem, amigo e nobre.

Eckhart expõe a oposição entre corpo-espírito, alma-carne, ho-mem exterior-homem interior. A primeira oposição - corpo/espírito -encontra-se em São Paulo, quando ele fala do combate entre o bem e o malno homem: “O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo.Não faço o bem que quero, e sim, o mal que não quero; não sou eu queo faço, mas é o pecado que mora em mim”. 22 A segunda oposição - alma/carne -, é mais próxima do hilemorfismo aristotélico, segundo a qual ohomem é constituído de duas partes distintas: o homem exterior - ohomem carnal - articula a alma e a carne, sob a ordem da carne, enquantoo homem interior - o homem espiritual - os une, segundo a economia daalma ou do espírito.23 Enfim, a oposição homem exterior/interior, ho-mem velho/novo é um tema evocado muitas vezes por Paulo, quando eleconvida os fiéis a deixarem-se revestir da “imagem do Criador”. 24

1) O espírito bom e o espírito mau: a luta entre o anjo e o demônioO Mestre usa agora a figura da luta entre o anjo e o demônio, para

mostrar a luta entre o espírito bom e o espírito mau. É importante notarque estes dois elementos fazem parte da natureza humana desde que elaexiste, isto é, eles são elementos constitutivos da existência humana.

a) O anjo bom incita ao que é divino, à virtude, ao celestial e aoeterno.

21 “É por isso que nós não perdemos a coragem. Pelo contrário: embora o nosso físicová desfazendo-se, o nosso homem interior vai renovando-se a cada dia”. Id. 2Cor4,16.

22 Id. Rm 7,18.

23 Jarczyck-Labarrière. op. cit., Observação. p. 163.

24 Id. Col 3,10: “De fato, vocês foram despojados do homem velho e de suas ações, ese revestiram do homem novo que, através do conhecimento, vai renovando-se àimagem do seu Criador”. Cf. Ef. 4,22-24; 2Cor 4,16.

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b) O demônio, porém, inclina a pessoa ao temporal e efêmero, aovício e ao que é mau e diabólico.

c) Na verdade, a luta entre o anjo e o demônio corresponde à lutaentre o espírito bom e o espírito mau. Assim, o espírito mau está ligadoao homem exterior e, através deste, procura tentar o homem interior.Eckhart aplica este princípio, para interpretar o pecado original em Gen3,1s. A serpente - o espírito mau ou o demônio - fala com Eva e, atravésdesta, tenta Adão que é o homem interior. Eckhart relê de modo nãocrítico o machismo bíblico, que discrimina a pessoa a partir do sexo. Evarepresentaria o exterior que se fixa sobre si mesmo, enquanto Adão,nascido da terra, seria a figura em que coexistem, desde a origem, as duaspartes do “homem”, interior/exterior, ambas essenciais, desde que nãosejam separadas uma da outra. 25

2) Deus semeou a sua imagem e semelhança: a semente divinaEckhart retoma aqui o tema clássico dos santos padres: Deus criou

o homem à sua imagem e semelhança. O homem, na alma, é a árvore boaou o campo que sempre produz bons frutos, pois Deus semeou nele suaimagem e semelhança, isto é, a semente de natureza divina, que é o Filhode Deus ou a Palavra de Deus.

A semente divina que está na alma do homem, encontra-se empermanente luta com o homem exterior. O tornar-se semelhante a Deus,ou seja, o desenvolvimento da imagem divina, semeada em nossa alma,é uma luta que não está ganha. Eckhart enumera uma série de citaçõesbíblicas, para mostrar este combate acirrado, que se trava na almahumana.

Em seguida, o Mestre cita autores pagãos, tais como Cícero eSêneca que elogiam a nobreza do homem interior e a indignidade dohomem exterior: “Não há alma racional sem Deus”. 26

Enfim, ele usa o argumento da botânica: cada semente se desenvol-ve numa árvore e produz o fruto correspondente. Assim, a semente deDeus desenvolve-se em Deus, pois “a semente de Deus está em nós” (1Jo 3,9). Esta semente, segundo Orígenes, Deus a semeou, implantou etornou inata na alma. A semente pode ficar encoberta, escondida, porém,jamais destruída ou apagada: “ela arde e brilha, resplende e queima e, sem25 Cf. Jarczyk-Labarrière. op. cit., p. 36.

26 Cf. Cicéron. Tusculanes III, 1,2; Sénèque, Epist. 73,16. Citado a partir de Jarczyck-Labarrière. op. cit. p. 165.

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cessar, tende para Deus”. 237

A semente divina implantada na alma é o gérmen que se podedesenvolver num processo de divinização. O certo é que esta sementesempre está na alma. Como a pessoa pode fazer crescer esta semente? OMestre enumera seis momentos.

3.1.2 - Os seis degraus do homem nobre ou interior

1. O modelo exterior. A pessoa, neste primeiro degrau, está ligadaao exemplo de uma pessoa boa ou um santo. Ela se parece a uma criançaque precisa agarrar-se ao colo de sua mãe, para tomar leite. Ela nãoconsegue caminhar por conta própria, por isso se apóia nas cadeiras ouparedes para poder movimentar-se.

2. Voltado para o Pai. Aqui há uma superação do momentoanterior, pois a pessoa busca a doutrina, o conselho e a sabedoria do Pai.Ou seja, ela abandona os modelos exteriores volta-se para o rosto deDeus.

3. Na intimidade com Deus. A pessoa vai distanciando-se cadavez mais da mãe, isto é, torna-se cada vez mais autônoma ou adulta na fé.Isto significa que ela se une mais e mais a Deus. Para isso abandona tudoo que não corresponda ao amor de Deus, para introduzir-se na alegria, nadoçura e na felicidade do Pai.

4. No amor mais firme em Deus. Nesta etapa podemos dizer quea pessoa se torna adulta, é capaz de um compromisso sério com Deus. Porisso, ela O ama com determinação, com vontade e gosto, assumindo, porisso, toda sorte de contrariedades, tais como, provação, tentação esofrimentos.

5. Na paz interior. Neste degrau, a pessoa já adquiriu o hábitointerior, portanto ela guarda a serenidade e a paz interior, em todas assituações em que se encontrar. Esta paz é fruto da união com a sabedoriadivina.

6. A imagem divina ou tornar-se filho de Deus. O último degrauinsere os grandes temas místicos de Eckhart em três passos. Primeiramen-

27 Cf. Origène, In Genesim, Hom. XIII, n. 4. Texto citado por Eckhart no seu própriocomentário do Gênesis, (II, n. 193). Citado a partir de Jarczyck-Labarrière. op. cit. p.166.

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te, a pessoa se despreende das imagens exteriores - vida transitória etemporal - para se revestir da imagem divina. Depois, a pessoa se revestepropriamente da imagem divina, na medida em que ela se torna filha deDeus. Enfim, a pessoa, uma vez despreendida de todas as imagensexteriores e deixando desenvolver em si a imagem de Deus, entra emoutro nível: o nível da eternidade. Trata-se da volta do homem interior,a saber, o homem que conseguiu integrar todos os outros degraus e quereconciliou todas as oposições. Por isso a pessoa está em paz. 28

Nós temos encontramos, nestes seis degraus, uma pedagogiaespiritual e uma teoria da imagem.

a) A pedagogia espiritual mostra o crescimento de uma pessoacomeçando por sua infância. Aqui, a pessoa é dependente de sua mãe enecessita, totalmente, do apoio externo para poder andar. Depois, torna-se jovem, isto é, mais autônoma, porém ainda precisa de apoios parapoder deslocar-se. Enfim, ela se torna adulta na fé, ou seja, deixa todosos apoios exteriores, para unir-se totalmente a Deus. Há uma progressãono despreendimento dos apoios exteriores e um crescimento na uniãocom Deus. Ou seja, a pessoa toma, por único apoio o Pai.

b) A teoria da imagem. Na seqüência lógica da pedagogia espiri-tual, o último degrau, introduz a teoria da imagem como o momentomáximo do despreendimento de toda imagem exterior - Entbildung,“desimaginação” - para desenvolver somente a imagem eterna ou divina,a qual já está semeada na alma. Frente ao que caracteriza a civilização dosmeios de comunicação - a saturação de imagens exteriores - a místicaeckhartiana defende a Entbildung, uma desimaginação espiritual, daqual é preciso compreender o sentido: a desimaginação não destrói o sere a substância das imagens, ao contrário, fundamenta as mesmas, a partirda lógica do “homem nobre”. 29

28 O desenvolvimento do homem novo se apóia sobre os “seis degraus do homeminterior”, inspirados nos “setes estados” que Agostinho expôs no De vera religione.Segundo, Quint, encontra-se também um sétimo estado em Eckhart, porém esseúltimo está além de todo degrau, o texto o descreve sem portanto o nomear. Id.Wolfgang Wackernagel. Ymagine denudari. Éthique de l’image et métaphysique del’abstraction chez Maître Eckhart. Paris, Vrin, 1991, p. 70.

29 Id. Wolfgang Wackernagel. op. cit. p. 9. Neste livro, a primeira parte é consagrada aética da Entbildung; a segunda às noções de analogia, de imagem e de abstração; o“retorno às imagens” faz o objeto da terceira parte, onde uma reviravolta no uso dasmetáforas sucede uma reflexão sobre a integração da vida contemplativa na vida ativa.

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O primeiro degrau é constituído ainda do processo d’imitatio, ondeo homem interior “vive, segundo o modelo de pessoas boas e santas”. Osdegraus seguintes descrevem um despojamento progressivo das coisas edas amarras exteriores, se bem que, no sexto degrau, “o homem édespreendido das imagens e transformado acima dele mesmo (entbildetund überbildet), pela eternidade de Deus, quando ele chegou ao esque-cimento total e perfeito da vida efêmera e temporal, transformado, numaimagem divina, tornado filho de Deus”.

No entender de Wolfgang Wackernagel, o entbilden é o leitmotivde uma ética eckhartiana da imagem. A analogia serve para medir adistância e a proximidade ontológicas entre os pólos semânticos daimagem, isto é, entre a semelhança e a alteridade. Assim, a Entbildungpermite a similitude na alteridade através de uma suprassunção progres-siva em direção à unidade. Em síntese, a entbilden significaria atravessaros níveis ontológicos da imagem e tender em direção ao “Um único”,evitando o panteísmo, o que constitui o senso místico eckhartiano. 30

De um lado, a metafísica da imagem é uma “desimaginação” dasimagens. Sob o plano ontológico, a afirmação do nada da criatura que sedespreende de todas as imagens, longe de destruir o ser da criatura, servemelhor para fundamentá-la. De outro lado, a ética da Entbildung, levandoem conta o despreendimento das imagens, propõe o retorno às imagens.Assim, o modelo bíblico de Maria e Marta serve para Eckhart mostrar asíntese entre o nível metafísico e o ético na mística. A vida contemplativasimbolizada por Maria (Lc 10,36-42), encontra-se integrada no interiormesmo da vida ativa, personificada por Marta, a irmã mais velha, isto é,aquela que possui mais maturidade.

A teoria da imagem pode ser situada dentro da narração bíblica dacriação, onde é dito inicialmente: “Façamos o homem à nossa imagem eà nossa semelhança” (Gn 1,26). E logo em seguida: “E Deus fez o homemà sua imagem” (Gn 1,27), sem que se fale de semelhança. A partir dissoOrígenes distingue imagem e semelhança, como dois momentos, umincoativo e outro perfeito, isto é, um começa a progressão e outrorepresenta a chegada do processo. “Eles - os padres da Igreja - vêem naimagem o estado incoativo do homem, no momento da criação, enquanto

30 A dialética eckhartiana que define a relação entre a imagem e o modelo, se inspiramna teologia trinitária. A metafísica da imagem expõe a semelhança e a dessemelhançaontológicas de uma mesma contradição: aquela da relação entre Deus e a criatura.

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a alma está ordenada à participação na vida divina; e eles vêem nasemelhança o estado completo do homem, quando está em possessão deseu fim, a visão [de Deus], a vida beatífica”.31 Meister Eckhart mostracomo acontece o processo entre a imagem e a semelhança, ou seja, adeterminação da semelhança sucede pela ética da “desimaginação”.Aqui, ocorre o retorno à imagem original, semeada na alma, portanto, aohomem novo ou nobre, que é configurado, conforme a imagem divina,pelo processo de divinização, como veremos na segundo momento destelivro.

3.2 - O PROCESSO DE DIVINIZAÇÃO

Na segunda parte, Mestre Eckhart, aborda duas questões. Aprimeira expõe a natureza divina da pessoa, a qual pode encontrar-seescondida, porém jamais destruída. A segunda questão, trata, ao nívellógico e metafísico da relação entre a pessoa e Deus.

3.2.1 - O Filho de Deus ou a fonte viva está no fundo da alma

No que concerne à natureza divina da pessoa, Orígenes afirma quea semente colocada por Deus na pessoa pode encontrar-se coberta eescondida, porém jamais morta. O homem interior ou nobre possui naalma a semente de Deus, ou seja, a imagem de Deus. O Mestre usa cincocomparações para ilustrar como essa imagem se manifesta no fundo daalma: a fonte, o sol, o olho, a estátua e o tesouro.

a) A fonte, segundo Orígenes, é como o Filho de Deus que está nofundo da alma. Mesmo se a fonte for aterrada, ela continua vivaem si mesma. Logo que alguém a descobrir, ela voltará a jorrar.

b) As nuvens podem esconder o sol, mas não apagá-lo.c) O olho doente está velado e não pode ver o brilho, porém não

está cego.d) O escultor que tira lascas do lenho, está descobrindo a imagem

31 Paul Agaësse. L’anthropologie chrétienne selon Saint Augustin. Paris, Médiasèvres,1995, p. 24.

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escondida dentro da madeira.e) O tesouro que se descobre no campo, estava lá, escondido ao

olhar, à espera de um gesto que o encontrasse.Há, nestas comparações, uma simbologia profunda do movimento

entre interior e exterior: primeiramente, a fonte profunda e o sol elevado;depois, o olho face ao brilho da luz e a estátua escondida na madeira;enfim, o tesouro oculto que se torna manifesto.

Estas comparações remetem a três movimento de oposição: paradentro e para fora, para baixo e para cima, distanciar-se e aproximar-se.

a) Para dentro e para fora - Em Agostinho, afirma o Mestre, lê-se quando a alma humana se eleva inteiramente para Deus,então a imagem de Deus irrompe à luz. Quando porém, a almase volta para fora, a imagem de Deus fica encoberta.

b) Para baixo e para cima - O Mestre serve-se do exemplo bíblicodas mulheres que trazem na cabeça um véu, enquanto oshomens têm a cabeça descoberta. Assim o que inclina parabaixo, esconde a imagem divina e o que conduz para o alto, épura imagem de Deus, nascimento de Deus na alma sem véu,isto é , Deus nasce na alma nua.

c) Distanciamento e proximidade - Neste mundo, a pessoa podeser submetida a toda sorte de privações, sofrimentos e calami-dades. Mais ainda, o que há de mais sublime e de melhor nascoisas criadas e feitas, encobre e tira o brilho da imagem deDeus na alma, isto é distancia de Deus. Porém, a imagem, oFilho de Deus estão sempre próximos da alma.

A síntese destes três movimentos esta no ato de partir: “um homemnobre partiu”. O movimento de partir significa, em primeiro lugar, que apessoa deve despreender-se de todas as imagens e de si mesmo -“desimaginação” -, isto é, desassemelhar-se de tudo. Assim, a pessoaestá, depois, pronta para deixar nascer na alma o Filho de Deus - “acolhero Filho” - e, ao mesmo tempo, tornar-se Filha de Deus no coração do Pai.Há um mútuo reconhecimento, pois o Filho nasce na alma, e esta seintroduz no seio do Pai. Em outras, palavra é o processo de divinizaçãoque se determina como dessemelhança ou “desimaginação” e semelhan-ça a Deus, enquanto comunhão divina.

Enfim, nada pode apagar ou fazer desaparecer a “imagem deDeus”, dita ainda “nascimento de Deus” ou “Filho de Deus”, no interior

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da pessoa. Esta realidade essencial não é introduzida na pessoa emsegunda instância, mas nela se encontra desde a origem e faz parte de suaestrutura. Esta realidade se pode esconder, se a pessoa se dirige para oexterior de modo unilateral. A pessoa pode mostrar-se “desigual” à suaessência, mesmo assim, a imagem de Deus permanece nela. Para serrealmente “um”, com esta imagem, a pessoa deve “sair de toda imageme de si mesma”.

3.2.2 - A comunhão entre a pessoa e Deus

A unidade radical estabelece uma relação direta e nu entre Deus ea pessoa, sem que tenha algo que se interponha como intermediário. Oque não significa que não tenha mediação. A unidade verdadeira escapaa toda dispersão, no entanto, ela inclui o múltiplo e permanece idênticanela mesma. Isto é verdade de Deus no seu ser e em cada um dos seusmodos de ser - as Pessoas. Isto é igualmente característico da pessoa, logoque ela é “um” com Deus. “Se fosses devidamente uno, também perma-necerias uno no distinto, e o distinto tornar-se-ia uno para ti”. Assim, ohomem nobre pode “sair” dele mesmo, sem sofrer dano algum, porque eleé “um”.

Nos últimos dois parágrafos da segunda parte, Eckhart trata a nívellógico e metafísico a relação entre a pessoa e Deus. Ele analisa, primei-ramente, a relação intra-trinitária e depois a relação da pessoa com Deus.

1) A unidade ou a comunhão trinitária. A primeira frase foibastante polemica. Ela diz o seguinte: “Qualquer espécie de intermedi-ário - mittel - é estranha a Deus”. A bula de condenação, In agrodominico, art. 24 diz: “Toda distinção é estranha a Deus, na natureza e naspessoas […]”. Eckhart teria pois negado que exista em Deus a pluralidade.Tal não é, portanto, o sentido desta passagem, na qual o termo mittel nãodeve ser entendido como diferença, e nem como mediação, mas comointer-mediário, isto é o que se colocaria entre duas realidades e assepararia uma da outra. A divindade é una nela mesma e em cada uma dastrês Pessoas. Em Deus não existe intermediário, isto é, cada uma das trêsPessoas é o todo, e na sua distinção, não está separada das outras duas. 32

32 Jarczyk-Labarrière. op. cit., nota 34, p. 169.

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Logo após esta frase, o Mestre expõe a doutrina clássica sobre aTrindade, ou seja, a natureza divina é una na diferença das Pessoas.33 Nãohá distinção nem na natureza de Deus, nem nas Pessoas, em relação àunidade da natureza, porém a distinção entre o ser e o modo de ser - wesenet wesung - é tomada como uno e é uno. Trata-se da especificação do ser,segundo uma de suas modalidades, no caso, ele caracteriza a Pessoa emrelação ao Um da divindade. Logo é no Uno, que se encontra Deus. Apartir da unidade trinitária, Eckhart conclui, que quem “quer encontrar aDeus, deve tornar-se uno”.

2) “Sê uno, para que possas encontrar a Deus”! Este é o imperativocategórico eckhartiano. A pessoa que se fixa na distinção, não encontranem o uno, nem a Deus, nem o repouso, nem a satisfação. A pessoa queestá unificada, é capaz de permanecer una na distinção. Esta é a verdadei-ra síntese dialética: na distinção tornar-se uno.

No último parágrafo desta segunda parte, o Mestre expõe asnúpcias ou a amizade virginal com o Uno. Ele faz duas citações de ummestre pagão - Macrobe. 34 Este afirma que o Um nasceu de Deus e queeste uno só tem amizade com as virgens ou donzelas. É assim que SãoPaulo também afirma: Dei-vos em matrimônio e desposei-vos comovirgens puras ao Uno”. 35 É assim, diz Eckhart, que a pessoa deve ser, istoé, unida ao Uno, a exemplo do homem nobre; e Eckhart insiste sobre aidentidade da unidade - “Um homem partiu” - no homem e em Deus. Essaunidade do homem, nele mesmo, é o contrário da dispersão que caracte-riza o homem exterior.

3.3 - A ANTROPOLOGIA ESPIRITUAL

Após ter analisado as duas primeiras partes, onde o Mestre expõea forma pela qual a pessoa deve sair de si mesma, para não colocar emperigo o imperativo da interioridade, na terceira parte do livro, começa

33 Catécisme de l’église catholique. nº 253-255, Paris: Mame/Plon, 1992.

34 Cf. Macrobe, Commentarii in somnium Scipionis I, 6,7-10. Citado a partir de Jarczyk-Labarrière. op.cit., nota 37, p. 169.

35 2Cor 11,2. O texto exato é este: “Eu os entreguei a um único esposo, a Cristo, a quemdevo apresentar vocês como uma virgem pura”.

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com uma definição da palavra “homem”. O que é o homem? Eckhartarticula a resposta em dois níveis: primeiro, identifica o que é o homempara depois mostrar como pode tornar-se feliz.

3.3.1 - O que é o Homem?

a) O homem é o humilde. Ele aproxima a etimologia latina dapalavra homo - homem - de humus - terra -, para mostrar que ohomem é o humilde, isto é, que nasce do húmus da terra. Porisso, ao homem na sua condição primeira de húmus, cabem-lhetrês gestos: inclinar-se, submeter-se e olhar para Deus. Nosermão 14, Eckhart diz: “minha humildade dá a Deus suadivindade”. A humildade é outro nome da universalidade, poisretoma todas as coisas desde o mais baixo, para uni-las ànobreza divina, isto é: a humildade possibilita que Deus nasçaem nossa alma. “Não basta ao homem nobre e humilde ser oFilho único que o Pai tem eternamente engendrado, ele quertambém ser Pai e entrar na mesma similitude com a Paternidadeeterna e engendrar aquele, no qual eu sou engendrado eterna-mente”.36 Essa nobre humildade é própria de quem tudo faz,tudo visa, tudo ama em Deus. Ora, a essa pessoa Deus dá suadivindade.

b) O homem é, ao mesmo tempo nada, pois ele vai além do tempoe do espaço. Eckhart usa a palavra nada no sentido da capaci-dade que a pessoa tem de despreender-se de tudo, ou seja, detudo negar. O nada humano é capaz de tudo negar. O“despreendimento” - nem isso nem aquilo - é o caminho peloqual o homem torna-se um com Deus e se encontra nele: vida,ser, verdade e bondade. Não é de abstração que se trata aqui,mas da totalidade que é Deus. O homem, assim despreendidopela força do nada, é o “homem nobre”. Vemos, portanto, que,inicialmente, Eckhart compreende o homem como humildade,porém, ao mesmo tempo, como elevação em relação ao tempoe ao corpo através do nada.Após estas duas descrições do homem, o Mestre diz-nos que o

36 Mestre Eckhart. Sermão 14.

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homem é por natureza capaz de conhecer.c) O homem é um ser que conhece. Neste sentido há dois tipos de

conhecimento na vida da pessoa: o vespertino e o matutino. Oconhecimento vespertino: É o ato de conhecer as criaturas nelasmesmas. Ora, as criaturas, em si, são múltiplas e diversificadas.No entanto, o conhecimento matutino é o ato de conhecer acriatura em Deus, isto é, contemplar a criatura sem distinção edespida de toda imagem e igualdade com a multiplicidade. Apessoa que é capaz de conhecer as criaturas, segundo o modomatutino, é um “homem nobre”, pois ele é Um e conhece a Deuse as criaturas no Uno.

O homem, como vemos, é alguém capaz de conhecimento dosoutros. E a sua nobreza reside na capacidade de adquirir o conhecimentomatutino que reúne tudo em Deus. No entanto, o homem não só conheceas outras criaturas, bem como se autoconhece, ou seja, ele é um serautoconsciente: “o espírito conhece que conhece a Deus”. Porém, Eckhartdiz que nisto não está a felicidade. Onde a pessoa encontra, então, afelicidade?

3.3.2 - Como a pessoa se torna feliz?

Mestre Eckhart responde: “A bem-aventurança consiste,primacialmente, em que a alma contemple a Deus sem véu. É nisso queela recebe todo o seu ser e a sua vida e tira do fundo de Deus tudo o queela é, sem nada saber de saber nem de amor nem do que quer que seja. Aalma se aquieta total e exclusivamente no ser de Deus”. Trata-se de umacontemplação de Deus, onde a alma repousa totalmente e unicamente noser de Deus.

Aqui está a preferência eckhartiana pelo ponto de vista ontológicoem relação ao psicológico. Há uma identidade entre o conhecer e o ser.Eckhart ilustra essa identidade ontológica dizendo que se trata de umasaída do Primeiro e um retorno a Ele. Ou seja, falando em termoscomparativos, diz Eckhart, uma coisa branca é algo inferior ao ser-branco, ou a brancura como tal. Ou ainda, uma coisa é o muro e outra, ofundamento sobre o qual este foi edificado. Na identidade ontológica,Eckhart mostra que há uma distinção entre o fundamento e o fundado.

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a)O “conhece-te a ti mesmo” e o conhecimento de Deus: O homemnobre forma todo o seu ser, seu viver e sua felicidade a partir de Deus, comDeus e em Deus. Não se trata apenas de saber que se conhece, contemplaou se ama a Deus. Mas, trata-se de conhecer-se a si mesmo e conhecera Deus, pois conhecer a Deus é, de fato, tornar-se bem-aventurado.Enfim, “quando a alma conhece que conhece a Deus, ela obtém, aomesmo tempo o conhecimento de Deus e de si mesma”.

Na introdução da Encíclica Fides et Ratio, o Papa retoma arecomendação conhece-te a ti mesmo que estava esculpida no dintel dotemplo de Delfos. Esta regra, diz a Encíclica, quer testemunhar umaverdade basilar de que o homem se distingue no meio da criação pela suacapacidade de ser conhecedor de si mesmo. Essa autoconsciência conduzao conhecimento do mundo, do sentido das coisas e de sua própriaexistência. No ato da autoconsciência a pessoa se torna feliz, pois nesteato conhece a verdade e o sentido de sua vida.

b) O processo da felicidade humana. O homem começa a partir domais ínfimo, isto é, ele evolui a partir da criança. Enquanto Deus começapelo perfeito, ou seja, Deus dá, primeiramente, o ser a toda criatura, notempo e fora do tempo. Por isso a bem-aventurança está em conhecer aDeus, embora haja uma diferença muito grande entre o ser de Deus e onosso contemplar de Deus. Ou ainda, há uma diferença entre o calor e oser do fogo. Por isso, a pessoa precisa fazer o duplo movimento do homemnobre: de um lado, a pessoa deve ser Una em si mesma e de outro lado,ela deve procurar o Uno. Ou seja, num primeiro momento, a pessoa devecontemplar a Deus, partindo, a fim de receber o reino, e num segundomomento, a pessoa deve regressar, tomando consciência de que conhecea Deus. A bem-aventurança é um processo que a pessoa vai desenvolven-do na procura do Uno.

c) O movimento da águia - O fim do sermão reúne o rigor dopensamento com os símbolos. O homem nobre conjunga saída e retorno,decentramento em Deus e identidade a si, conhecimento livre e conheci-mento; deste conhecimento em sua dimensão ontológica é comparado auma grande águia, da qual fala o profeta Ezequiel. Ele compara a águiacom o homem nobre. A águia arranca a ponta dos ramos e os leva parabaixo. A partir deste movimento de cima para baixo, o Mestre afirma queo homem nobre é a síntese, ao mesmo tempo, do que há de mais elevadona criatura e o que há de mais profundo ou íntimo na natureza humana.

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L. Boff analisa a história da águia e a galinha de James Aggrey eafirma que a águia não voa, se ela não tiver o sol dentro dela. A águia éum arquétipo dentro de nós. “Todos os místicos dizem, - São João daCruz, Santa Teresa, Mestre Eckhart, a tradição budista e taoista - que oser humano tem um sol interior. Os místicos nos dizem que “esse solinterior” é Deus que nos habita. Jung diz que esse sol é a imago Dei. É oDeus que está dentro de nós. Por isso tem duas funções: ele irradia e fazcom que nós tenhamos irradiação na vida, que não sejamos pesados. Eletambém produz calor, aconhego, serenidade, certeza. Quem produz issodentro de si mesmo, criou esse “sol interior”. Consegue, como uma“águia”, enfrentar todos os obstáculos como desafios ao processo deindividuação. Devemos criar esse “sol interior”, diz Boff, essa centralidade,sem a qual não seremos pessoas maduras. Envelhecemos infantilizados;crescemos sem sabedoria; tontos e alienados por esse mundo, carregadosaqui e ali por idéias, grupos, amigos e movimentos, sem termos onde nosfirmar dentro de nós mesmos”.37 A condição para ser águia, isto é, tera capacidade de unir a altura e a profundidade, Deus e a criatura, é deigualar-se a esta forma cheia de nada que é o Um.

d) A plena bem-aventurança da solidão no Uno - “Eu conduzireia alma nobre à solidão e ali falarei ao seu coração” (Os 2,14). A solidãoé divina, pois não se trata de solipsismo ou isolamento, mas da unidadena multiplidade. A solidão é o hábito da interioridade que se tornou Umatravés do despreendimento. A solidão é o Uno: “Um com o Uno, Um doUno, Um no Uno, e no Uno Um para sempre”.

37 L. Boff. A águia e a galinha. Franciscanismo e pós-modernidade. Cadernos doIFAN. Universidade São Francisco, nº 18, 1997, p. 18-19.

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CONCLUSÃO

O Homem Nobre é o modo místico de viver, unindo a vida interiore exterior. Como viver, misticamente, em meio à agitação cotidiana? Épossível manter esta relação interior-exterior no trabalho, no lazer e naconvivência familiar-comunitária? A mística pode ser praticada tanto nasmicro como nas macro-relações, ou seja, ela é viável na esfera privada ena esfera pública?

A resposta a estes questionamentos apareceram, tacitamente, aolongo do texto de Mestre Eckhart e nos comentários dos autores. Porém,cabe dizer, explicitamente, que o ato místico está sempre situado numacomunidade de linguagem, situada num contexto sócio-religioso e eco-nômico-político. Esta é a condição constitutiva da mística, pois ela é,segundo o místico Eckhart, “Dois, enquanto Um”, ou seja, “dois” é ocontexto da “comunidade de comunicação”, onde está inserido o atomístico. Assim, a mística não pode ser confundida como uma práticasolipsista que poderia conduzir a vários reducionismos: A afirmação deum sujeito isolado, que se acomoda em seu próprio mundo,desconsiderando os outros. Ou ainda, o exercício de atividades queapenas idolatram o indivíduo, tornando-o insensível à solidariedade.

A mística é um ato nobre que torna homens e mulheres nobres. Nãono sentido aristocrático, mas enquanto busca de identidade. A mística deMestre Eckhart medita sobre a identidade da pessoa e da comunidade. Aconstrução da identidade dá-se na relação com o Outro e os outros. Comoa carteira de identidade identifica quem nós somos, assim a identidademística identifica e determina o nosso ser e o nosso agir. A identidade nãoé algo estático e pronto. Ela é dinâmica e forma-se na história, ao longode toda a vida. As pessoas e as comunidades entram em crise. Isso é algoconstitutivo do ser humano e do seu processo de crescimento. As crisespodem ser de ordem interna, tais como o desânimo, a desesperança, o semsentido etc. Ou de ordem externa, como o não saber o que fazer, adesintegração, a dispersão, a perda de referência e a fragmentação. Por

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que existem crises de identidade? Quando surge a crise de identidade dapessoa e da comunidade? Como superar a crise de identidade?

Essas questões são meditadas a longo do Homem Nobre, encon-trando na nobreza do ato místico situado na história, a força de uma novaidentidade com sensibilidade solidária para viver a esperança em meio asociedades complexas, repensando horizontes utópicos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3. BOLOGNE, J.C. Les sept vies de Maître Eckhart. Mônaco: Ed. duRocher, 1997.

4. CATÉCHISME de l’Eglise Catholique. nº 253-255, Paris: Mame/Plon, 1992.

5. DEMPF, A. Meister Eckhart. Freiburg: s. e.,1960.

6. FREITAS, Manoel da Costa. Mística. In: Enciclopédia Luso Brasilei-ra de Filosofia Verbo. Lisboa: Editorial Verbo, 1991. p.893-899.

7. JARCZYK, G. e LABARRIÈRE, P.-J. Maître Eckhart ou l’empreintedu désert. Paris: Albin Michel, 1995.

8. MEISTER ECKHART. Predigten. Textos e tradução de J. Quint.Frankfurt an Main: Deutscher Klassiker Verlag, 1993, v.1.

9. MESTRE ECKHART. O livro da Divina Consolação e outros textosseletos. Petrópolis: Vozes, 1991.

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OS AUTORES

Agemir Bavaresco doutorado em filosofia pela Universidade deParis I/Panthéon-Sorbonne, é professor de filosofia. Diretor do InstitutoSuperior de Filosofia da Universidade Católica de Pelotas.

Osmar Miguel Schaefer doutorado em filosofia pela UniversidadeCatólica de Louvain, Bélgica. Professor de Filosofia do Instituto Supe-rior de Filosofia da Universidade Católica de Pelotas e professor titularaposentado da Universidade Federal de Pelotas.

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