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Por G. Wilson Fernandes, Marcel Serra Coelho e Tarcísio Caires O IMPACTO ambiental da poluição luminosa O Brasil tem apenas três leis para proteger a escuridão noturna. Além de desperdiçar em iluminação, essa forma de poluição afeta até ciclos da vida 40 Especial Scientific American Terra 3.0 DESEQUILÍBRIO

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Por G. Wilson Fernandes, Marcel Serra Coelho e Tarcísio Caires

O iMPaCTO ambiental da

poluição luminosaO Brasil tem apenas três leis para proteger a escuridão

noturna. Além de desperdiçar em iluminação, essa forma de poluição afeta até ciclos da vida

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DESEQUILÍBRIO

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Vinte e três horas, cinquenta e seis minutos, quatro segundos e nove centésimos. Esse é o intervalo em que o planeta Terra gira ao redor do seu eixo no sentido anti-horário. Essa rotação define o comprimento dos dias (fotoperíodo) e das noites. Com exceção das regiões equatoriais e durante os períodos de equinócio, em qualquer região do planeta o fotoperíodo pode variar bastante, dependendo da distância do Equador e da estação do ano. Os momentos de fotoperíodos mais curtos e mais longos para cada hemisfério são definidos como os solstícios de inverno e verão, respectivamente.

Os processos evolutivos e os mecanismos ecológi-cos que moldaram e mantêm em funcionamento a vida na Terra evoluem em fina sintonia com esses fenôme-nos astronômicos. O movimento de rotação e transla-ção da Terra em torno do Sol, assim como os ciclos lunares, permitiram o surgimento e a evolução da vida na forma que a vemos hoje. O fotoperíodo influencia o congelamento e o degelo de lagos temperados, corren-tes marinhas e lacustres, amplitudes térmicas dos ecos-

sistemas, índices pluviométricos e outras variações abióticas. Essas variações nas condições abióticas de-terminam processos biológicos como comportamentos migratórios, reprodutivos e o metabolismo dos seres vivos. Algumas espécies, por exemplo, têm seu pico de atividade durante o dia, ou seja, são diurnas, enquanto outras têm picos de atividade à noite e são noturnas. Portanto, as espécies estão adaptadas a um intervalo de condições e qualidade de recursos dentro dos quais sobrevivem, transmitindo seus genes para as gerações futuras por meio dos mais variados processos evoluti-vos. Como exemplo, podemos citar o de roedores em regiões temperadas, que alteram suas atividades repro-dutivas, metabólicas e imunológicas de acordo com mudanças no comprimento dos dias entre as estações.

Também é comum na Natureza o fenômeno de mi-grações realizadas por aves que podem cruzar os he-misférios em busca de situações mais favoráveis a seus processos reprodutivos. Assim como o exemplo descri-to, não são raros os animais que orientam suas ativida-©

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Estudos mostram que o trabalho noturno inibe a produção de metatonina e eleva o risco de câncer

des de forrageio e reprodução pelos ciclos lunares. O Homo sapiens não é exceção: somos animais diurnos e parte do nosso sistema endócrino depende da presença de luz. A luz é indiretamente um forte estimulante do hormônio cortisol, produzido pelo córtex das glândulas adrenais e que desempenha a importante função de nos manter despertos e ativos, além de atuar no metabolis-mo dos lipídios. Esses ciclos se enquadram na catego-ria de ciclos circadianos. A ciência que tenta desvendar esses ciclos é chamada de cronobiologia.

A humanidade vem alterando a iluminação natural de forma gradual. Antes de Thomas Edison e da Re-volução Industrial, a iluminação artificial era possível por meio da queima de carvão vegetal, óleos e outros. Devido à rusticidade dos métodos de obtenção de luz, a alteração da luminosidade natural era limitada, sendo considerada de baixa escala ou baixo impacto.

Com o advento da luz elétrica (1879), o crescimento demográfico da humanidade e o avanço tecnológico na obtenção de energia, a alteração na luminosidade natural se tornou uma grande preocupação. Não demorou muito para que o termo poluição luminosa aparecesse. Por esta entende-se qualquer alteração do padrão natural claro-escuro ambiental. O termo é utilizado usualmente para indicar o resultado da soma de milhares de pequenas fontes luminosas presentes em adensamentos humanos. O fenômeno é conhecido como brilho no céu (sky glow). A luz, por fenômenos de refração e reflexão, se espalha na atmosfera e ofusca até mesmo a capacidade de observação de estrelas em áreas sob forte iluminação. Além do brilho no céu, a exposição direta à fonte luminosa e o ofuscamento leva a alterações no sistema endócrino do ser humano e dos animais, causando distúrbios comportamentais e até mesmo epidemiológicos. O uso cada vez mais comum da lâmpada fluorescente, (comprimento de onda ~469 nm), em detrimento da incandescente (comprimento de

onda acima de ~630 nm), potencializa os efeitos sobre o ser humano. Nosso sistema endócrino é mais sensível às lâmpadas fluorescentes.

Em geral, altas taxas de poluição luminosa estão as-sociadas ao grau de industrialização e desenvolvimen-to econômico de uma região. Os locais mais industria-lizados são também os mais populosos. Dados de 2001 demonstram que 62% da população mundial vivem em locais com níveis de iluminação acima do ideal. Estu-dos também demonstram que países industrializados

CLASSIFICAÇÃO

tipos de poluição luminosa

Glare (ofuscamento) é a luz que pode cegar momentaneamente, ofuscando e atrapalhando a visão quando se olha em sua direção. Pode desorientar e trazer riscos à segurança de motoristas e pedestres. Alguns estudos demonstram que o ofuscamento pode promover cansaço visual, causando sonolência, dores de c abeça e estresse.

Light trespass (transgressão de luz) é quando a luz é excessiva e passa de um lugar onde deveria iluminar para outro onde não é necessária. Por exemplo, a luz refletida dentro do seu quarto a partir da iluminação pública. Para se ter ideia das implicações econômicas dessa luz intrusa, nos Estados Unidos, cerca de US$ 2 bilhões são desperdiçados anualmente com iluminação ineficiente.

Sky Glow (brilho no céu) é o brilho alaranjado visto no céu à noite sobre as cidades, melhor visualizado a maiores distâncias. Pode ser observado espalhado a vários quilômetros das fontes de poluição luminosa, revelando que o impacto não é estritamente local. Esse brilho ofusca estrelas, as torna invisíveis a olho nu e reduz sua visibilidade por telescópios. A cor alaranjada é decorrente do uso comum das lâmpadas de sódio de baixa pressão. Se uma luminária está inclinada, mesmo que levemente, para cima da linha horizontal, a luz é irradiada para cima da fonte luminosa, gerando um impacto direto que é umas das causas desse brilho. A luz também pode ser refratada e dispersa contra partículas e gotículas presentes na atmosfera, agravando o problema. Esse fenômeno também é atribuído à radiação advinda de fontes celestiais e processos luminescentes da alta atmosfera da Terra.

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como os Estado Unidos e boa parte do continente euro-peu perfazem as áreas continentais com maiores índi-ces de poluição luminosa. Aproximadamente 75% da população de ambas as regiões convivem com noites mais claras que noites de lua cheia, independente dos ciclos lunares. O Brasil não está livre desse fenômeno e o Sudeste é a região com maiores índices de poluição luminosa. Aqui discutimos algumas implicações desse fenômeno, as razões de preocupação, assim como as formas de minimizar os impactos.

Consequências biológicasCom exceção de algumas populações tradicionais, a interrupção dos padrões claro-escuro para a humani-dade se estabelece cada vez mais. O cotidiano socio-econômico do ser humano, em prol da produtividade, estimula o aumento das horas de trabalho diárias, sen-do os turnos, principalmente nas grandes metrópoles, estendidos noite adentro. Pelo menos 20% da popula-ção em qualquer sociedade urbano-industrial exercem atividades em turnos alternativos para que a produção não pare. Países já reconhecem as consequências do trabalho contínuo em turnos noturnos e legislam im-

pondo exigências aos contratantes. Os outros seres vi-vos também sofrem essas consequências, uma vez que a poluição luminosa já atinge 18,7% da superfície do planeta, o que significa que é um fenômeno global.

Há evidências de correlações entre estímulos luminosos e danos à saúde de alguns mamíferos, incluindo o ser humano. A forte exposição à luz correlaciona-se com alterações nas taxas metabólicas, resultando em obesidade, diabetes tipo II e doenças cardíacas. Além disso, estudos procuram uma relação de causa e efeito entre alterações no sistema imunológico, alguns casos de câncer com exposição exagerada à luz e a baixos níveis de melatonina. A luz bloqueia a síntese da melatonina, hormônio controlador dos ciclos circadianos em mamíferos. Um interessante estudo comparou os níveis de poluição luminosa de 147 comunidades de Israel com os casos de câncer de mama. Os resultados indicaram um significativo aumento na incidência de câncer em comunidades com altos índices de poluição luminosa. Os resultados foram divulgados no periódico Chronobiology International. Além dos efeitos deletérios causados à saúde pelo estilo de vida de sociedades industriais (sedentarismo, má alimentação, estresse), a poluição luminosa soma-se como forte razão de preocupação.

As interrupções dos ciclos diários claro-escuro ge-ram importantes consequências para a saúde. Alguns processos relacionados à forma como a luz interfere no organismo já são bem conhecidos, especialmente nos mamíferos. Inicialmente, a luz é detectada no olho por um conjunto de células ganglionares que, em conjun-to, formam o trato retino-hipotalâmico. Seus estímulos são conduzidos, via projeção das células formadoras do trato retino-hipotalâmico, até o núcleo supraquiasmáti-co, considerado o principal marcapasso circadiano.

O núcleo supraquiasmático é o principal regulador da síntese do hormônio melatonina, via glândula pineal. Esse órgão, por sua vez, é responsável por várias fun-ções neuroendócrinas, sendo sua liberação estimulada ou inibida em decorrência da alteração dos estímulos luminosos. A melatonina é amplamente encontrada no reino animal e tida como a principal transdutora dos efeitos da luz sobre o organismo. Na presença de luz, sua produção é suprimida. Outros hormônios também são estimulados positivamente ou negativamente pela exposição à luz: prolactina, serotonina, glicocorticoi-des e adrenocorticoides. Entretanto, mecanismos que não os já citados também podem resultar em alterações fisiológicas em consequência da exposição luminosa. Exemplos disso são os mecanismos desencadeados pela supressão das horas de sono.

Poluição luminosa significa alterar o padrão natural claro-

escuro ambiental, resultado de milhares de fontes de luz em

adensamentos humanos

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Como efeito secundário da supressão da produção de melatonina, pode haver aumento na liberação de estrogênio, estimulando a replicação de células-tronco epiteliais da mama, aumentando o risco de tumor ma-ligno. A hipótese da melatonina foi proposta por Scott Davis - do Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle - para explicar o aumento no risco de câncer em populações com elevada exposição à luz noturna. De fato, a melatonina reduz a incidência de câncer de mama induzido experimentalmente em camundongos in vitro. Evidências de que trabalhar no turno da noite pode aumentar o risco de câncer também foram encontradas. A melatonina pode até mesmo ser usada para prevenir o desenvolvimento de câncer, porque células malignas ainda bem diferenciadas e com baixo crescimento são controladas pelo hormônio pineal. Alterações no ciclo circadiano promovem a formação e o crescimento de tu-mores, que podem ser revertidos com o tratamento com melatonina. Fato mais bem documentado é o aumento da probabilidade da incidência de câncer de mama em mulheres que trabalham à noite. Trabalhando em turnos alternados, pelo menos três noites por mês por 15 anos ou mais, provavelmente aumenta também o risco de câncer colo-retal em mulheres.

Consequências ecológicasUm tipo de aranha, a orb spider web, utiliza a atração que a luz artificial exerce em insetos para capturá-los,

construindo sua teia estrategicamente próxima a fon-tes artificiais de luz. Essa estratégia de captura é co-mumente utilizada por pesquisadores, com o uso das armadilhas de luz. Essas armadilhas são eficientes na captura tanto de mosquitos culicídeos - transmisso-res de dengue, febre amarela e malária, dentre outras doenças - quanto para Lutzomyia (transmissores da leishmaniose). Mas o que pouco se sabe é o quanto os programas de eletrificação rural e urbana sabem sobre isso. Certamente muito pouco ou praticamente nada. Com isso, os vetores de doenças podem estar sendo atraídos para dentro das casas inadvertidamente.

Alterações da relação claro-escuro podem influen-ciar negativamente rotas migratórias, embora não esteja

A poluição luminosa altera a orientação de tartarugas e os ciclos migratórios de aves

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elucidado o mecanismo pelo qual a luz interfere nesses padrões. Várias espécies de aves migrantes noturnas se desorientam quando suas rotas atravessam áreas muito iluminadas. Mudanças nessas rotas em resposta a po-luição luminosa já foram documentadas para uma es-pécie de corvo, Corvus brachyrhynchos. Em 1954, 50 mil aves morreram quando seguiram um farol da força aérea americana e voaram diretamente para o solo. Adi-cionalmente, a reprodução das aves é controlada pelo fotoperíodo, e o aumento artificial do dia pode induzir alterações hormonais, fisiológicas e comportamentais, interferindo no comportamento reprodutivo. Não são ra-ras as modificações nos horários de canto de aves devido a alterações na luminosidade natural. Em um trabalho clássico, Mark W. Miller observou que american robins, aves de hábitos de forrageio matutinos, começavam a cantar mais cedo na madrugada. O tempo de forrageio ampliado pela luz artificial resulta no crescimento po-pulacional e assim influencia outras espécies de aves, que têm de enfrentar maior competição por recursos. Também já foram documentadas alterações nos padrões de migração vertical do zooplancton Daphnia em am-bientes lacustres. Exposição à luz altera o número de migrações desses organismos, e como formam a base da cadeia alimentar de ambientes lacustres, interferem em todos os processos da comunidade.

A desorientação mais conhecida é a sofrida pelas tartarugas marinhas. Quando os ovos eclodem, os filho-tes direcionam-se para o mar, orientados pela claridade do horizonte, em contraste com as escuras áreas con-tinentais. Entretanto, em áreas afetadas pela poluição luminosa, os filhotes de tartarugas ficam desorientados e podem percorrer uma rota oposta. São inúmeros os exemplos em que os filhotes terminam mortos em áre-as extremamente ocupadas por humanos.

A bioluminescência é um fenômeno comum na Natureza, tendo implicações em atividade de forrageio e reprodução. Em áreas intensamente iluminadas, esse fenômeno perde sua função, podendo causar redução do desempenho reprodutivo das espécies envolvidas. Inúmeros são os relatos do desaparecimento dos vaga-lumes e pirilampos das áreas urbanas iluminadas. Em várias regiões do mundo, vaga-lumes são cada vez mais escassos. As fêmeas dos vaga-lumes atraem os machos a até 45 metros de distância com flashes de bioluminescência, mas a presença de luz artificial re-duz a visibilidade, prejudicando a comunicação e, por-tanto, reduzindo a reprodução da espécie.

Os principais efeitos para a flora são que certas plantas não florescem se a duração da noite é mais

curta que o período normal, enquanto outras florescem prematuramente, como resultado da exposição ao foto-período necessário para o florescimento. A fotossínte-se induzida pela luz artificial produz um crescimento anormal e uma defasagem nos períodos de floração e descanso das plantas. A desorientação de abelhas por lâmpadas incandescentes e fluorescentes e a diminui-ção dos insetos que realizam a polinização de certas plantas podem afetar a produção de cultivos. Na Ni-géria, as chamas das torres que queimam ininterrup-tamente o gás antes da extração do petróleo atraem as mariposas noturnas que polinizam os campos de man-dioca e as queimam, deixando a lavoura sem seu único polinizador. Consequentemente, as perdas para as já empobrecidas populações humanas são irreparáveis.

Em nível de comunidade, existem sérias implica-ções da poluição luminosa na atividade de forrageio e predação das espécies. Com a alteração da lumino-sidade natural, espécies com picos de atividade cre-pusculares ou até mesmo diurnas, passam a competir com espécies noturnas, podendo levar a um fenôme-no denominado de “exclusão competitiva”. Assim, há riscos reais de extinção de espécies em escala local. Espécies que modificam seu pico de atividade também se expõem a predadores aos quais não estão adaptadas e, por isso, podem ser facilmente predadas, causando também extinções locais.

Os ecossistemas são conhecidos pela sua intrincada conectividade ecológica. Mudanças de comportamentos de algumas espécies podem refletir na dinâmica de toda a comunidade e atingir proporções ecossistêmicas. Como exemplo, as modificações nas migrações do zooplancton Daphnia podem levar a potenciais alterações em toda a ca-deia trófica. Em cidades ao norte de Minas Gerais há regis-tro da invasão de milhões de besouros rola-bosta (Dicho-tomius schiffleri), atraídos pela iluminação de postes. No interior da floresta amazônica, milhares de pequenos lepi-dópteros atraídos por dezenas de quilômetros de distância formam gigantescos turbilhões ao redor de refletores de estádios e minerações, e saciam seus pre-dadores morcegos e lagartos. Mas o efeito da polui-ção lumino- s a

Áreas intensamente iluminadas podem causar redução

do desempenho reprodutivo de várias espécies, como, por

exemplo, os vaga-lumes

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sobre os ecossistemas ainda é pouco conhe-cido e mais estudos são necessários para

se estabelecer o impacto em nível ecossistêmico.

LegislaçãoApesar dos altos índices de po-luição luminosa estarem concen-

trados em regiões de adensamentos humanos, empreendimentos como

rodovias, plataformas de petróleo e mi-neradoras alcançam as mais remotas regiões

do planeta. Ocupações próximo a unidades de conserva-ção não são raras, como a hidrelétrica instalada no Par-que Nacional do Iguaçu - RS. Há casos em que unidades de conservação encontram-se inseridas no contexto ur-bano, como o Parque Nacional da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro; o Parque Estadual Dunas de Natal, em Natal; e o Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, em Belo Horizonte.

Casos como esses suscitam antigas discussões de temas diametralmente opostos resumidos em conser-vação e progresso. Diante do conhecimento acumu-lado sobre as consequências ambientais desse grave problema, órgãos ambientais devem elaborar normas específicas para atividades que venham a causar im-pacto em áreas de preservação. Apesar de, em todo o mundo, haver mais de 700 leis impondo normas sobre a poluição luminosa, existem apenas três delas no Bra-sil. Uma portaria do Ibama, de 1995, referente à pro-

teção de tartarugas marinhas, e duas leis municipais, de Campinas e Caetés, que normatizam a proteção a observatórios contra a poluição luminosa.

A falta de legislação no Brasil sobre poluição lumi-nosa é acompanhada pela ausência de pesquisas sobre o tema. Um estudo no indexador de periódicos científicos Web of science demonstra que foram publicados 72 arti-gos científicos com as palavras light pollution no título, sendo que nenhum foi publicado por grupos de pesquisa brasileiros (Figura 3)[G2]. Entre 1972 e 2008, 2001 foi o ano no qual mais se publicou sobre o tema, mas foram apenas 17 artigos. É fundamental que o Brasil acompa-nhe a preocupação mundial com esse fenômeno. Não somente legislações são necessárias, mas também a pre-visão do impacto da poluição luminosa, causado por no-vos empreendimentos, sobre a biodiversidade, e efeitos diretos na população humana. É necessário a exigência de estudos de impacto ambiental, incluindo as consequ-ências ecológicas da poluição luminosa.

Políticas públicasA crescente preocupação com a poluição luminosa teve alguns marcos que incluem a criação da Associação In-ternacional do Céu Escuro (IDA), em 1988, e a criação do Atlas Mundial do Brilho Noturno Artificial do Céu, em 2001, por pesquisadores da Universidade de Pádua, na Itália, e pela Administração Oceânica e Atmosféri-ca Nacional (NOAA). Em 2002 houve uma conferên-cia, Consequências Ecológicas da Iluminação Artificial Noturna (Ecological Consequences of Artificial Night

Lâmpadas atraem insetos

para residências e escritórios, e também

desorientam as abelhas

O sistema endócrino humano é mais

sensível às lâmpadas fluorescentes, que

cada vez mais substituem as

incandescentes

No Brasil, apenas três leis, duas delas municipais, se preocupam

em regular abusos em iluminação artificial, e nossos pesquisadores

não demonstram interesse pelo tema

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Lighting) promovida pelo Urban Wildlands Group e o UCLA Institute of the Environment. No mesmo ano, muitos parques nacionais nos Estados Unidos começa-ram a desenvolver planos para contenção da poluição lu-minosa, de modo a manter o céu o mais natural possível. Depois de algumas leis estaduais nos Estados Unidos e na Itália, em 2000, a República Tcheca criou a primeira lei federal antipoluição luminosa. A lei entrou em vi-gor em 1o de junho de 2003 e considera como poluição luminosa “todas as formas de iluminação artificial irra-diada para além das áreas destinadas, principalmente se direcionadas acima da linha do horizonte”.

Muitos outros países regulamentam o tema regional-mente como, por exemplo, Itália, Chile, Estados Unidos e Espanha. Algumas ações importantes começam a ser tomadas em alguns países, como a IDA, que está estabe-lecendo parâmetros de iluminação e mapas de brilho.

No Brasil existem apenas três legislações específi-cas que regulam o uso de iluminação. A do Ibama, para proteger áreas de desova de tartarugas, e a de Campinas, em 2001, que criou a área de proteção ambiental onde se encontra o Observatório Municipal Jean Nicolini (Obser-vatório de Capricórnio), de modo a garantir a funcionali-dade do observatório por meio da limitação da instalação e utilização da iluminação. A terceira é uma lei do Muni-cípio de Caeté para proteção dos céus dos arredores do Observatório da Serra da Piedade, em Minas Gerais. Em-bora a lei não se encontre mais nos registros, é respeitada até hoje nas áreas mais próximas ao observatório, e caiu em “desuso” nas áreas mais distantes. A criação dessa lei contou com a colaboração de David Crawford, um dos fundadores do IDA, havendo posteriormente um acordo entre a Prefeitura de Caeté, a Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig), o Observatório e a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam-MG). A ABNT apresenta al-gumas normas que padronizam materiais que permitem uma diminuição da poluição luminosa.

Em alguns casos, a redução da poluição luminosa também trouxe ganhos econômicos. Nas ilhas Caná-rias, medidas contra o excesso de iluminação resulta-ram numa redução do fluxo de luz para o céu de 84,8%, o que significou enorme diminuição da intensidade. A redução nos gastos foi de 65%. Em 1992-1993, na ci-dade de Tucson (Arizona), a troca de 40 mil lâmpadas de mercúrio por lâmpadas de vapor de sódio resultou numa economia de cerca de US$ 2 milhões anuais.

Geraldo Wilson Fernandes, graduado em ciências biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (1983), mestre em ecologia pela Northern Ari-zona University (1987) e doutor em ecologia evolutiva pela mesma instituição (1992). Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais.Marcel serra coelho, bacharel (2006) e licenciado (2007) em ciências biológicas pela Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalha com ecologia de interações animal-planta. Possui especial interesse em filosofia da ciência e etnobiologia. Tarcísio caires, estudante de ciências biológi-cas da Universidade Federal de Minas Gerais. Reali-za pesquisa no Laboratório de Ecologia Evolutiva e Biodiversidade da mesma instituição.

PARA CONHECER MAISA iluminação artificial e o impacto sobre o meio ambiente. A. Barghini & S. B. A. S. de Medeiros. Revista

Brasileira de Estudos Ambientais 5: 5-15, 2005.

The first atlas of artificial night sky brightness. P. Cizano, F.

Falchi & Elvidge. Mon Not Astron Soc 328: 689-707, 2001.

Ecologia Evolutiva & Biodiversidade/DBG, ICB/ Universidade

Federal de Minas Gerais. [email protected]

No Observatório da Serra da Piedade, em Minas, a observação do céu é garantida por lei

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