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N a sequência dos resultados negativos dos referendos francês e holandês, a 29 de Maio e 1 de Junho de 2005, respectivamente, a Europa mergulhou em mais uma crise no seu acidentado percurso. Não seria novidade, se não se tratasse dos processos de ratificação por via referendária, por opção ou por obrigação, vinculativos ou não, de um tratado, já por si de designação tortuosa: o Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa. Pela primeira vez, uma das duas palavras cuidadosamente evitadas no léxico jurídico europeu ao longo destes anos de fino equilíbrio entre o ideal e o possível, nomeadamente «Federalismo» e «Constituição», foi lançada inadvertidamente para o prato de eurocépticos famintos, cidadãos desiludidos e políticos pouco persuadidos, e servida na mais frágil das porcelanas: a unanimidade entre as partes contratantes. A crise com que nos deparamos é, como dizem os autores, uma crise auto-infligida, de anatomia multifacetada, e que se processa em vagas sucessivas. Como diz um provérbio chinês, em cada crise há perigos e oportunidades. Convém reflectir, oportunamente, no que houve de errado num processo que é inédito na Europa e no mundo e reconhecer que há, inevitavelmente, lições a retirar e novos caminhos a prosseguir. Toda a crise tem esse lado positivo: o da sua avaliação e possível solução. O processo constitucional europeu é um processo de aprendizagem mais marcado por erros e omissões do que por sucessos. O que falhou? O momento, o conteúdo ou o processo? Estas e outras questões serão tra- tadas nas três entrevistas que se seguem. As entrevistas foram realizadas como parte de um estudo sobre a Construção Europeia financiado pelo Programa de Estímulo à Inves- tigação da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se da opinião de três autores e actores privilegiados sobre a actual crise europeia. Os três entrevistados são professores de Ciência Política e Direito Comunitário do Instituto Universitário Europeu de Florença (IUE), que se têm debruçado sobre estas matérias ao longo das suas prestigiadas carrei- ras profissionais e participado em várias iniciativas embrionárias do processo constitu- cional desencadeado pela Convenção Europeia. Yves Mény, professor catedrático de Ciência Política, actual presidente do IUE, dirigiu a elaboração dos vários projectos sobre a revisão e simplificação dos tratados, coordena- A Universidade Europeia e o debate sobre a Constituição. Entrevistas… Luís de Sousa 097 O IMPASSE EUROPEU A Universidade Europeia e o debate sobre a Constituição Entrevistas com Yves Mény, Philippe Schmitter e Bruno de Witte Luís de Sousa

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Na sequência dos resultados negativos dos referendos francês e holandês, a 29 de Maio e 1 de Junho de 2005, respectivamente, a Europa mergulhou em mais uma

crise no seu acidentado percurso. Não seria novidade, se não se tratasse dos processosde ratificação por via referendária, por opção ou por obrigação, vinculativos ou não, deum tratado, já por si de designação tortuosa: o Tratado que Estabelece uma Constituiçãopara a Europa. Pela primeira vez, uma das duas palavras cuidadosamente evitadas noléxico jurídico europeu ao longo destes anos de fino equilíbrio entre o ideal e o possível,nomeadamente «Federalismo» e «Constituição», foi lançada inadvertidamente para oprato de eurocépticos famintos, cidadãos desiludidos e políticos pouco persuadidos, e servida na mais frágil das porcelanas: a unanimidade entre as partes contratantes.A crise com que nos deparamos é, como dizem os autores, uma crise auto-infligida, deanatomia multifacetada, e que se processa em vagas sucessivas. Como diz um provérbiochinês, em cada crise há perigos e oportunidades. Convém reflectir, oportunamente, noque houve de errado num processo que é inédito na Europa e no mundo e reconhecer quehá, inevitavelmente, lições a retirar e novos caminhos a prosseguir. Toda a crise tem esselado positivo: o da sua avaliação e possível solução. O processo constitucional europeu éum processo de aprendizagem mais marcado por erros e omissões do que por sucessos.O que falhou? O momento, o conteúdo ou o processo? Estas e outras questões serão tra-tadas nas três entrevistas que se seguem. As entrevistas foram realizadas como parte deum estudo sobre a Construção Europeia financiado pelo Programa de Estímulo à Inves-tigação da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se da opinião de três autores e actoresprivilegiados sobre a actual crise europeia. Os três entrevistados são professores deCiência Política e Direito Comunitário do Instituto Universitário Europeu de Florença(IUE), que se têm debruçado sobre estas matérias ao longo das suas prestigiadas carrei-ras profissionais e participado em várias iniciativas embrionárias do processo constitu-cional desencadeado pela Convenção Europeia.Yves Mény, professor catedrático de Ciência Política, actual presidente do IUE, dirigiu aelaboração dos vários projectos sobre a revisão e simplificação dos tratados, coordena-

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O I M P A S S E E U R O P E U

A Universidade Europeia

e o debate sobre a Constituição

Entrevistas com Yves Mény,

Philippe Schmitter e Bruno de Witte

Luís de Sousa

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dos pelo centro pós-doutoral Robert Schuman Centre for Advanced Studies (RSCAS), doqual foi anteriormente fundador e director. Os seus interesses de investigação incidemsobretudo no domínio das políticas e instituições europeias, corrupção, populismo,governo, administração e políticas públicas comparadas.Philippe Schmitter, professor emérito do IUE, à semelhança de outros académicos ame-ricanos de origem europeia, tem dedicado grande parte da sua já longa carreira ao estudoda integração regional europeia e é hoje um dos autores mais citados sobre o processode democratização da União Europeia. Embora mais conhecido no meio universitárioportuguês pelos seus estudos pioneiros sobre transições democráticas, consolidação dademocracia e neocorporativismo, trabalhou juntamente com Ernst Haas sobre teorias neo-funcionalistas de integração regional. O seu artigo «Three Neo-Functional Hypothesesabout International Integration» (1969) é um contributo decisivo para o estudo teóricoda Construção Europeia.Bruno de Witte é professor catedrático de Direito Europeu no IUE/RSCAS e, desde Abrilde 2005, director de estudos do IUE. Participou no projecto de 2000 sobre a reorganiza-ção e simplificação dos tratados e tem sido responsável por inúmeros projectos sobre areforma constitucional da União Europeia, designadamente a coordenação do FórumEuropeu 2003-2004 intitulado «Constitucionalismo na Europa». Foi convidado a prestaro seu contributo nas audiências convocadas pelos grupos de trabalho da Convenção. É um dos mais prolíferos autores sobre a constitucionalização da Europa.Resta deixar uma pequena nota final sobre a instituição de filiação. O IUE é uma organi-zação internacional europeia fundada em 1972 e da qual Portugal é membro signatáriodesde 1989, cuja finalidade última é a de formar doutorados e pós-doutorados em qua-tro domínios científicos: economia, história e civilização europeias, direito comunitárioe ciências sociais e políticas. O IUE, através do seu centro pós-doutoral RSCAS, tem sidopioneiro e um dos actores académicos com mais autoridade na questão da reorganiza-ção e reconfiguração dos tratados europeus. Desde 1996, o RSCAS desenvolveu quatroprojectos relacionados com a arquitectura e evolução destes documentos, entre os quaiso estudo de viabilidade encomendado pela Comissão Europeia em 2000 e intitulado«A Basic Treaty for the European Union»1. Este estudo, que teve o contributo de peritose académicos de dentro e fora do IUE, contou então com a participação de um dos acto-res-chave da Convenção, o académico e ex-primeiro ministro italiano, Giuliano Amato.O projecto de 2000 dividiu a reorganização dos tratados em duas partes, separando osartigos básicos (ou «constitucionais») do Tratado das restantes provisões. Esta ideia e oseu modo de implementação experimental, descrito no relatório anexo, constituíram umcontributo importante para o enquadramento do actual processo de reforma constitu-cional da União Europeia.

1 Para mais informação: http://www.iue.it/RSCAS/Research/Institutions/EuropeanTreaties.shtml

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Entrevista

com Yves Mény

LUÍS DE SOUSA > Face à presente conjunturapolítica europeia, estamos a viver um período decrise, e que crise?

YVES MÉNY > Bem, existe uma crise, semdúvida. É como um mar de crise com váriasondas. A primeira onda de crise: a ratifica-ção do Tratado Constitucional está parada.A percepção geral é a de que dois resultadosnegativos são já suficientes para parar oprocesso de ratificação. Em termos oficiaiso Tratado Constitucional não está morto,mas morrerá em breve, por não estaremreunidas as condições que permitiriam aosrestantes países, os que têm que realizarreferendos, adoptar o Tratado e pela quaseimpossibilidade de um sim britânico nestequadro. Esta é a primeira onda de crise: acrise imediata. Há, no entanto, uma crisemais profunda. Algumas pessoas maisoptimistas do que eu dizem: «Bem, apesarde tudo, a vida da UE desde o início temsido esta. Em 1954 houve uma crise após arecusa do Parlamento francês em adoptar oTratado que instituiria a Comunidade Euro-peia de Defesa. Depois, em 1964-1965,houve a chamada «crise da cadeira vazia»,finalmente resolvida através do Compro-misso de Luxemburgo.» Tenho, no entanto,o pressentimento de que, desta vez, a natu-reza da crise é diferente. É diferente por-que, por boas ou más razões, se chamou aeste texto Tratado Constitucional e por vezes,de forma abreviada, Constituição. Houveuma tentativa de construir uma quasi-cons-tituição e esta tentativa está a falhar portodo o tipo de razões. É mais do que um tra-

tado sectorial e mais do que a interpretaçãodas disposições existentes. Além disso, é aprimeira vez que a crise política tem origemno «Povo», isto é, na opinião pública. Ascrises anteriores nasceram e foram geridasno interior dos círculos políticos: governose ministros dos Negócios Estrangeiros.Desta vez, a crise é muito mais difícil deenfrentar. Vamos imaginar que podíamoscortar o Tratado em fatias e adoptar partesdele, como sugerem alguns – o que me fazlembrar uma célebre frase de Estaline «émais fácil engolir uma salsicha cortada àsrodelas do que tentar comê-la inteira» –visto que este Tratado foi rejeitado por viado referendo em dois países. Seria extrema-mente difícil, pelo menos em França,impulsionar uma adopção parcial do Tra-tado, apesar de alguns dos seus opositores,como Laurent Fabius, estarem agora atomar uma posição mais subtil. Fabiusargumentou que o grande problema era aparte III, ao passo que as partes I e II erammais aceitáveis. Esta é a sua posição oficiale é uma posição desonesta porque, comosabemos, a parte III é a que já está em vigor(à excepção de uma ou duas alterações demenor relevo). Mas a política é assim! Ter-ceira onda de crise: a rejeição do Tratadopôs ainda mais em perigo o processo dealargamento, até para os países de adesãomenos problemática como a Bulgária e aRoménia, cujos processos de negociações epré-adesão estão quase completos.

LS > O que pensa do polémico e interminável pro-cesso de adesão da Turquia?

YM > Há ainda uma outra vaga de alarga-mento, que é a da Turquia, da Ucrânia e

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dos Balcãs, e este é um processo políticomuito problemático. Em primeiro lugar, a paisagem política da Europa pode mudardramaticamente nos próximos dois anos.Se a CDU da Sr.ª Merkel ganhar na Ale-manha e Sarkozy ganhar as eleições presi-denciais em França, que é o cenário maisplausível, entre o final de 2005 na Alema-nha e o início de 2007 na França, a Europaterá dois grandes países contra a adesãoda Turquia. Além disso, Chirac introdu-ziu na revisão constitucional em Fevereirodeste ano, a obrigatoriedade de referendopara qualquer futuro alargamento após oda Roménia e da Bulgária. Apesar destesdois países não serem abrangidos poresta regra, devido à simples pressão daopinião pública, as coisas podem mudarvertiginosamente até para eles. O cenárioprovável em França é que, se houver alar-gamento, tem que haver referendo.Mesmo que Chirac tente opor-se ao refe-rendo, isso apenas aumentará as suasdificuldades políticas. O meu ponto devista é que, nas circunstâncias actuais, esob as actuais regras constitucionais queexistem apenas em França, mas queoutros países seguirão com satisfação,por exemplo a Áustria, não consigo hojeimaginar que a Turquia se torne membroda UE. Argumentaria até que se passaráprovavelmente o mesmo com a Ucrânia.Basta que um país se oponha ao processode adesão, para que este não se concre-tize. É necessário unanimidade. Contudo,as posições tomadas pelos estados-mem-bros existentes têm pesos diferentes. SeMalta bloquear a Turquia, terá que se ren-der à pressão de outros países a favor.Mas se a França disser não, será difícil de

ultrapassar. A decisão de um país grandeforça outros a rever as suas posições.Penso que os governos e a Comissãodeviam pensar mais sobre estas questões.É uma completa tolice iniciar negociaçõescom a Turquia em Outubro deste anocomo se nada se tivesse passado. Não pre-vejo que a opinião pública em França enoutros estados-membros mude tão radi-calmente que se torne favorável à adesãoda Turquia.

LS > Existe o medo dos custos do crescimento paraas políticas comunitárias com o alargamento?

YM > Não penso que o alargamento sejauma questão de dinheiro. Penso que éuma questão de identidade, e bastantecomplexa. Quando perguntamos às pes-soas se a Rússia faz parte da Europa, nãoobtemos respostas claras. Os própriosrussos têm dúvidas sobre essa identifica-ção. Na extremidade da Europa, temosesta ambiguidade face à identidade euro-peia. A Rússia é parcialmente europeia eparcialmente outra coisa qualquer, é «elamesma», o que não é completamenteeuropeu. O mesmo é válido para a Tur-quia. A Turquia tem muitas dimensõeseuropeias, em particular ao nível das eli-tes, mas, ao mesmo tempo, não se asse-melha ao resto da Europa. De facto, parteda identidade europeia foi construída con-tra os turcos. O problema da identidadeeuropeia é muito profundo e, de certaforma, inconsciente, mas é essa incons-ciência acerca da identidade da Europa queestá a voltar e a pairar por aí numa diversi-dade de formas. Não somos como os Esta-dos Unidos da América no século XIX,

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expandindo-se incorporando territóriosvazios, com muito poucos habitantes,alguns dos quais eliminados. Não estamosa incorporar territórios que depois se tor-nam estados; estamos a incorporar estadosnacionais muito antigos com a sua própriacultura, identidade, povo. Penso que hálimite para a capacidade de a União Euro-peia digerir alargamentos.

LS > Alguns autores questionaram a oportuni-dade deste Tratado. Precisávamos de um TratadoConstitucional? E precisávamos dele agora? Asdificuldades criadas com o Tratado de Nice pode-riam ser resolvidas com pequenos ajustamentosdos mecanismos de votação?

YM > Se pensarmos na substância desteTratado, na sua maior parte é constituídopor pequenos ajustamentos às disposi-ções de tratados existentes. Não hánenhuma revolução, mas há erros, tantoem termos de conteúdos como de proces-sos. De um ponto de vista estratégico, foiinsensato incluir a parte III do TratadoConstitucional, que tem o desmérito deser um complexo e muito longo conjuntode disposições. Esta parte atraiu a maioriada oposição. Houve muitas mentiras einterpretações incorrectas e fizeram-semuitas insinuações de má-fé sobre o seuconteúdo… era claramente desnecessárioincluir a parte III neste Tratado. Se o docu-mento tivesse sido apresentado em duaspartes separadas, um país como a Françatê-lo-ia ratificado em parte através de refe-rendo e o resto por aprovação no Parla-mento com a boa desculpa, que não é umadesculpa, de que este documento é prati-camente o mesmo que os tratados exis-

tentes, é apenas uma simplificação e reor-denação dos tratados que tinham sidoadoptados ao longo do tempo. Este foi oprimeiro erro. O segundo erro foi fingirque esta era uma quasi-Constituição,enquanto se mantêm as modalidades dedebate e processo de ratificação de um tra-tado internacional. Não se previu nadapara fazer a elaboração, discussão e rati-ficação deste Tratado, aquilo a que osamericanos chamam «o momento cons-titucional». Não tivemos um «momentoconstitucional» na Europa. Todo o pro-cesso passou praticamente desconhecidoe alheio ao debate público. Além disso, éinsensato ratificar aquilo a que se chama«uma Constituição» durante um longoperíodo de tempo, e tendo cada um dosestados as suas próprias regras. Isto seriaaceitável apenas se tivéssemos algo equi-valente ao que existe em certos estadosfederais como os EUA, isto é, a interven-ção, num dado momento, de um poderfederal ou órgão que toma posição sobre otexto no seu todo. Neste caso, temos um«momento federal», o que nunca existiuna Europa. Do meu ponto de vista, haviaduas possibilidades para criar ummomento constitucional na Europa:1) tendo adoptado o Tratado Constitucio-nal suficientemente cedo para que o textopudesse ter servido como uma plataformapara as eleições para o Parlamento Euro-peu de Junho de 2004; 2) organizando umúnico referendo consultivo para todos os estados-membros. Em vez disso, osgovernos adoptaram o Tratado umasemana depois das eleições. As eleiçõestiveram lugar por volta do dia 10 de Junhoe a Cimeira para adoptar o Tratado decor-

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reu dez dias depois. Foi um fiasco. Nadasabíamos do que tinha sido mantido dotexto original da Convenção porque haviamuitas negociações a decorrer nos basti-dores. Ninguém sabia nada acerca destedocumento e, portanto, não podia servircomo uma plataforma para mobilizar oscidadãos por toda a Europa durante aseleições. Foi uma oportunidade perdida. O segundo erro foi não organizar, nomesmo dia, um referendo consultivo emtodos os países europeus, de forma a daraos governos uma base legítima sólidapara decidirem ratificar ou não o Tratado.A situação política teria sido diferente.Num contexto em que o texto era apro-vado pela maioria dos países no mesmodia, a probabilidade de que a minoria «sig-nificativa» remasse contra a maioria eramais limitada e, por certo, teríamos tidoum maior debate público na Europa. Aolongo do processo em curso, temos ape-nas tido debates isolados e todos assentesna nacionalidade. O chamado efeito decontaminação teria também sido menorou inexistente. Outra possibilidade, aindamelhor, teria sido a adopção de um novotratado para lidar com futuras revisões atratados. Se, antes de adoptar o TratadoConstitucional, os vinte e cinco estados--membros tivessem pensado em adoptaroutro tratado no qual as adaptações ourevisões futuras aos tratados relacionadoscom a União Europeia pudessem ser apro-vados de acordo com um sistema de ratifi-cação de duplo controlo: por exemplo,dois terços dos países representando trêsquartos da população. Neste caso, teriasido uma verdadeira constituição, porqueteríamos tido um salto maior do processo

de unanimidade, que está associado à rati-ficação de tratados internacionais. Nãoexiste nenhuma constituição no mundoque requeira a regra da unanimidade paraser aprovada. Enquanto este processo derevisão não for modificado, penso quenunca poderemos falar numa constituiçãointeiramente acabada. Mesmo assim,temos uma constituição, a soma de todosos tratados, directivas, jurisprudência,etc., mas o conceito de «ConstituiçãoEuropeia» sofreu claramente um retro-cesso depois da sua recusa popular emdois países fundadores.

LS > As instituições da UE tiveram um papel secundário neste processo… Por exemplo, a Comissão…

YM > Sim. Penso que a Comissão está real-mente nos bastidores, em parte porquetem havido um declínio contínuo do seupapel político desde o Presidente Delors.Jacques Delors foi um líder muito forte,era estratégico nas suas jogadas; sabia queé mais fácil fazer passar as coisas se hou-ver um jogo positivo para todas as partes:por exemplo, conseguiu ultrapassar aposição hostil da Sr.ª Thatcher em relaçãoa mais integração através da introdução doActo Único, oferecendo-lhe assim a aber-tura dos mercados e depois o reembolso.Foi um jogo positivo: todos perceberamque tinham algo a ganhar se jogassemjuntos. O que aconteceu com o TratadoConstitucional, e o que está também aacontecer com as chamadas PerspectivasFinanceiras, é que há mais jogadores a vero jogo como sendo negativo em vez depositivo.

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LS > Pensa que o Tratado revela alguma inova-ção nas políticas comuns? A maior parte delassão dos anos 60 e 70… a Europa está com faltade «inovação comunitária»?

YM > Este problema tem várias dimensões.Em primeiro lugar, apesar de a interven-ção da UE estar limitada a algumas áreas,que se reflectem no espaço das suas pró-prias competências, há também informa-ção parcial ou limitada em muitas outrasáreas. Há uma espécie de efeito de disper-são. Temos as intervenções da UE emcampos como o da educação ou cultura,que são muito limitadas em princípio jáque a UE não tem competências de maiornestas áreas. Contudo, há muitas reco-mendações ou comunicações políticasque influenciam o debate e por vezes oresultado de políticas nacionais. Por-tanto, em alguns países, existe algumafrustração ou irritação contra este tipo de intromissão da Comissão Europeia em campos em que em princípio não temcompetência. Em segundo lugar, emáreas onde a Comissão intervém comregulamentação, directivas, financia-mento, há um claro processo de sobrebu-rocratização. Do meu ponto de vista, aComissão cometeu um erro estratégico:quer ser ou nalguns casos aceitou ser ogestor de políticas muito limitadas, masao mesmo tempo detalhadas. Hoje, há umgrande número de pessoas a trabalhar naComissão, aumenta o número de intér-pretes e burocratas que estão a gerir e acontrolar os «cartões de embarque» parapessoas que viajam de um ponto paraoutro na burocracia da Europa. Comoreacção aos escândalos relacionados com

a Comissão Santer, que conduziram à suademissão, a Comissão implementou umsistema de controlo, auditorias e regula-mentos extremamente incómodos e com-plexos. Estes controlos são, por vezes,inaplicáveis ou contribuem para a inefi-ciência. Por exemplo, testemunhamosfrequentemente em algumas áreas umconsumo muito baixo de créditos devido auma excessiva burocratização dos proce-dimentos de acesso. O sistema, tal comoestá neste momento, não funciona nempode funcionar bem porque é baseado nadesconfiança. Em algumas áreas, mesmoaquelas em que há menos dinheiro envol-vido, como por exemplo a investigação, o sistema de candidatura aos fundos éincómodo. Os fundos da UE para a inves-tigação podem não ser consideráveis emtermos de percentagem de dinheiro gastona totalidade dos países europeus, massão uma contribuição crucial. Os fundosda UE para a investigação são uma somaadicional marginal que é acrescentada aodinheiro estruturante que cobre os custoscom pessoal e com infra-estruturas a nívelnacional. Portanto, em muitas áreas, oúnico dinheiro realmente disponível parainvestigação é o europeu. Paralelamente,não conheço nenhum académico que,individualmente, esteja satisfeito com aforma como o sistema funciona. Todos sequeixam que o sistema é demasiadopesado; demasiado incómodo. Isto obrigaas unidades de investigação, empresas eoutras entidades, a procurar peritos emprocedimentos burocráticos da UE, deforma a poderem candidatar-se a estesapoios, gerando toda uma indústria deconsultadoria em Bruxelas.

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LS > A forma «pouco democrática» como secriou o Tratado que estabelece uma Constitui-ção para a Europa, foi uma questão repetida eveementemente atacada por alguns dos seusopositores. Contudo, mesmo a nível nacional,os processos constitucionais foram sempre pro-cessos elitistas…

YM > A maioria das constituições nacionaisé produto de um pequeno número de pes-soas após uma guerra, uma revolução,independência, descolonização… Esta crí-tica baseia-se, em muitos casos, numa teo-ria, o que é muito bonito no papel mas quenunca encontramos em termos empíricos:a ideia de que precisamos de um poderconstitutivo para criar uma Constituição –isto é, o Povo. Na prática, as constituiçõessão feitas por um reduzido número de pes-soas mesmo que, numa fase posterior, ten-tem obter a aprovação «do povo». Desteponto de vista, não penso que o processode elaboração deste Tratado Constitucio-nal fosse menos democrático que os pro-cessos nacionais. Se olharmos para a «mãede todas as constituições», a Constituiçãoamericana, os representantes chegaramaté a trair o seu mandato. Estavam manda-tados para melhorar a confederação, nãopara construir uma federação. Portanto, oargumento é simplesmente um bonitoreescrever da História.

LS > Qual é a sua opinião sobre a forma como oSr. Barroso está a lidar com a situação actual?

YM > Acredito que a Comissão e o Presi-dente da Comissão estão numa situaçãoextremamente difícil. Os números con-tam. No passado, um Presidente da

Comissão forte que fosse apoiado pelaFrança, pela Alemanha, pelos países doBenelux ou pela Itália podia mais facil-mente criar um momentum. Hoje em dia, o problema que o Sr. Barroso enfrenta é queestá a liderar uma Comissão que é consi-deravelmente mais fraca do que no tempode Delors. Em segundo lugar, seja qual foro caminho que ele sugira – parar proviso-riamente o alargamento ou avançar comele, avançar com a ratificação ou fazeruma pausa – seja qual for a solução que ele sugira será uma proposta de divisãoque não seria aceite por metade ou pordois terços dos governos. Esta Comissãoterá muitas dificuldades até para fazeravançar a legislação do dia-a-dia, porque,por um lado, ela não beneficia do aperfei-çoamento avançado por este TratadoConstitucional e, por outro, porque, poli-ticamente, toda a regulamentação possívelserá alvo de forte resistência e oposição.Estamos a viver um período de tendênciascentrífugas no processo de integração, emque a defesa de interesses nacionais temprevalecido sobre os objectivos comuns.Este é o maior risco do desígnio britânicode alargar simplesmente o mercado.Os mercados apenas produzem vencedo-res e vencidos. Os estados ou os corpospolíticos têm a missão oficial ou não-ofi-cial de compensar os fracassos do mer-cado tornando-os assim mais aceitáveis.Podemos ter um sistema exclusivamenteorientado para o mercado que aparenta sernão-político… Podemos ser bem sucedi-dos no desencantamento da política, maso encanto da política ocorrerá noutrolugar qualquer através da proliferação dopopulismo e outras reacções negativas que

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abundam. Por essa razão, tenho algumadificuldade em aceitar a ideia da Europaapenas como um mercado comum, nãoapenas devido a razões pessoais políticase ideológicas, porque acredito que issonão chega, mas também porque vejo astensões que resultam de termos apenasum mercado e nada mais. Em que maispoderíamos pensar? Poderíamos pensarem políticas compensatórias dos fra-cassos do mercado, mas também pode-ríamos pensar nalguma espécie deobjectivos idealistas, que de algumaforma são compensações simbólicas, porexemplo, a reunificação da Europa, a cir-culação de jovens, o sonho das pessoasadicionando à sua identidade local ounacional uma identidade europeia. Todosestes grandes ideais estão a esbater-seporque os políticos parecem não acreditarrealmente neles e não parecem tomar ospassos necessários para lhes dar algumasubstância. Seja o que for que o Sr. Bar-roso proponha será alvo de resistênciapor um certo número de países. Durantedois anos estaremos envolvidos em elei-ções nacionais: primeiro na Alemanha,depois na Itália e na Polónia e, em 2007,as eleições presidenciais em França.

Até 2007, todas as propostas possíveisserão difíceis de fazer e manter, devido aopoder de veto da França. A minha suges-tão é dupla: por um lado, o Sr. Barroso e asua equipa deviam esquecer grandesambições para os anos vindouros; poroutro, deviam colocar na mesa propos-tas/programas com mais substância quenão terão qualquer hipótese de ser reali-zados nos próximos dois ou três anos,isto é, durante o mandato da sua Comis-são, mas que poderiam ser debatidos naspróximas eleições para o ParlamentoEuropeu. Eu sugeriria que nas próximaseleições europeias as pessoas fossem con-sultadas sobre alguns temas quentes atra-vés de um vasto referendo europeu. Nestalinha, o papel da Comissão seria primor-dialmente o de construir o consenso ecriar as condições para tornar possívelesta consulta. Até agora, isto nunca foifeito. Tal proposta não devia ser descar-tada facilmente porque ela vai no sentidode compensar o défice democrático. Ela étambém uma ocasião para consultar aopinião pública europeia em larga escala,ajudando assim a fortalecer a construçãode um espaço público europeu. FLORENÇA, JUNHO DE 2005

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Entrevista

com Philippe Schmitter

LUÍS DE SOUSA > Tanto no plano nacional quantoeuropeu, a palavra «crise» passou a fazer parte dovocabulário político quotidiano. Face à presenteconjuntura política europeia, estamos a viver umperíodo de crise, e que crise?

PHILIPPE SCHMITTER > Por um lado, estamos aviver um momento de «dificuldades seve-ras» na prática da democracia a nívelnacional. Temos um grande número decidadãos desencantados com a prática daspolíticas nacionais, descontentes com osseus líderes e partidos no poder. A UE, poroutro lado, não estava num período decrise suficiente para merecer a sua consti-tucionalização. À excepção da Suíça, hámuito poucos casos de países que altera-ram significativamente as suas constitui-ções na ausência de algum tipo dedescontinuidade importante: emancipaçãocolonial, guerra, revolução, etc. Para justi-ficar a reconstitucionalização (porque a UE

já tem uma quasi-constituição baseada emtratados) precisamos de um momento decrise bastante significativo, isto é, ummomento em que os actores tenham cons-ciência de que, a menos que mudem asregras, todos irão ficar pior… e não é aindaeste o caso da UE. Portanto, há aqui umparadoxo. A UE não estava suficientementeem crise e os seus estados-membros esta-vam demasiado em crise. Queremos justa-mente o oposto: o momento certo paraconstitucionalizar a UE é quando tivermoscidadãos relativamente satisfeitos a nívelnacional, mas que reconheçam que exis-tem problemas sérios a nível da UE.

LS > Disse que já temos uma constituição que é asoma de todos os tratados, então, porquê umanova constituição?

PS > As pessoas chamam-lhe uma quasi--constituição… e resulta! Não houvenenhum sinal manifesto de que a acumu-lação de tratados, incluindo o Tratado deNice, estivesse a ameaçar o processo deintegração. Claro que estes tratados serepetem e, em muitos casos, se contradi-zem, mas, e depois? Isso já dura há algumtempo. Tanto quanto percebo, a razãopara convocar a Convenção foi o fracassodo Tratado de Nice. Penso que eram osalemães quem estava particularmente des-contente. Tanto quanto sei, eles concorda-ram em aceitar a posição francesa sobre aquestão da igualdade do peso dos votosfrancês e alemão no Conselho, mas insis-tiram em que devia haver alguma reconsi-deração subsequente das regras básicasrelativas ao peso dos votos. Isto levou àConvenção, cuja tarefa devia apenas dizerrespeito às chamadas «sobras» de Nice,conforme afirmado na Declaração de Lae-ken. O primeiro grande erro foi declarar, epenso que isto foi inicialmente produto doego inflamado de Giscard d’Estaing, que aConvenção não iria lidar apenas com estassobras de menor importância, mas esbo-çar toda uma nova Constituição para a UE.

LS > Vários autores, entre os quais Buchanan,têm sugerido uma analogia entre o processo cons-titucional americano e o actual processo constitu-cional europeu. Concorda?

PS > Essa é uma comparação desadequada.No caso da Constituição americana, os

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pais-fundadores isolaram-se: durante operíodo de redacção da Constituição dosEstados Unidos, não foi escrito um únicoartigo de jornal sobre ela. Foi um processoprivado e secreto após o qual chegaram aum produto final, que apresentaram aopúblico numa base de «é pegar ou largar».No caso da UE, o processo foi tudo menossecreto. Cada frase e cada vírgula foi dis-cutida nos media! Todas as elites em cadaum dos estados-membros (sem falar nosgrupos nas suas respectivas sociedadescivis) o conhecem e tiveram oportunidadede o discutir. Foi por isso que acabarampor produzir um documento que era maisextenso e substancialmente menos coe-rente do que a Constituição americana.Toda a gente que era alguém era capaz deo atafulhar com mais qualquer coisa!

LS > No seu ponto de vista, qual devia ser oaspecto de uma Constituição europeia ideal?

PS > Há algum tempo tivemos um debatena Universidade de Warwick entre JürgenHabermas, Ralf Dahrendorf e eu próprio.Habermas era um grande entusiasta afavor da Constituição Europeia. Eu argu-mentei contra ela nos moldes do que disseanteriormente e sugeri que apenas dentrode vinte anos ou mais é que a Europa pre-cisaria de uma constituição. Dahrendorfapresentou uma posição intermédia,nomeadamente, que a UE precisa de umaconstituição agora, mas que devia ser umaconstituição minimal. Por outras palavras,o que estávamos efectivamente a discutirera «o que é uma Constituição?». O que éque um documento fundador base tem deconter para que possa ser considerado

uma Constituição? Na minha opinião,uma Constituição para a Europa devia terbasicamente três coisas. Em primeirolugar, devia ter uma Carta dos DireitosFundamentais que já existe. E temos sem-pre a Convenção dos Direitos do Homem etodos concordam com ela. A Carta dosDireitos Fundamentais é uma mera com-pilação. Não há ali nada de novo e nada departicularmente controverso, mas faz sen-tido torná-la numa lei suprema. Emsegundo lugar, precisa de um conjunto deregras sobre como as várias instituições anível europeu trabalham em conjunto. E,claro, neste contexto podia referir-se atransformação do Parlamento numacâmara baixa e do Conselho de Ministrosnuma câmara alta, fazendo com que aaprovação da Comissão ficasse sujeita àaprovação, pelo menos, da câmara baixa.Em terceiro lugar, precisa de uma espéciede Competenz Katalog, isto é, uma especifi-cação formal da autoridade para agir – com-pétences – atribuída aos diferentes níveis degoverno (europeu, nacional e, talvez, sub-nacional). Todas as constituições federaistêm algo parecido com este Katalog, com-plementado por uma cláusula de «poderesde reserva» para o que sobrar. E basta! Nãoé preciso mais nada. Estamos a falar deum documento com cinquenta páginas,no máximo (o que ainda assim seria odobro da Constituição americana). O itemmais importante nessa constituição seriaesta famosa Competenz Katalog que iriaespecificar para o futuro imediato ospoderes exclusivos da UE e os dos seusestados-membros. No Tratado que esta-belece uma Constituição para a Europa háalgo parecido com isto, mas um número

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muito elevado destas compétences são cha-madas «poderes partilhados». Daí que,mesmo que fosse ratificado, continuaria anão ser claro quem deve fazer o quê emquestões específicas. Tal falta de nitidez éprecisamente o que já existe no actual sis-tema de tratados múltiplos.

LS > Quais foram as políticas nos bastidores?Quais eram os interesses em risco para as váriaspartes e qual era o seu significado para os novosmembros? Já sublinhou o aspecto de os alemãesterem feito pressão para que a Convenção rectifi-casse os maus resultados conseguidos com o Tra-tado de Nice em questões de votação…

PS > A Alemanha fez pressão porque, acer-tadamente, sentiu que o Tratado de Nicenão tinha lidado correctamente com oproblema da sobre-representação de paí-ses pequenos e que, com o alargamento aLeste, isto iria obviamente tornar-se umproblema ainda maior. À excepção daPolónia e eventualmente da Roménia,todos os países do Leste pós-comunistasão pequenos, para não falar de Malta eChipre. A sua dimensão média é menor doque a actual dimensão média. Os fundado-res arriscavam-se a perder o controlo doseu bebé, ou seja lá o que for que deram àluz em 1958, com o Tratado de Roma.A motivação original foi esta, em paralelocom a questão associada do peso relativoatribuído à França e à Alemanha no Con-selho de Ministros. Voltando à questãocrítica da oportunidade, o maior erro foitentar redesenhar as regras do jogo antesde completar o processo de alargamento.Enquanto os dez países candidatos eramconvidados a enviar observadores à

Convenção e um dos seus representantestinha assento no crítico Comité Executivode esboço, todas as provas empíricasdemonstram que eles não desempenha-vam qualquer papel na produção doesboço. Daí que os estados-membrosexistentes tenham escrito uma constitui-ção da UE, mas com a intenção de a apli-car aos novos. Este é um erro políticofundamental! Ainda não sabemos se istoirá reflectir-se no processo de ratificação,mas deve certamente ter deixado umamemória amarga que irá afectar o seusubsequente comportamento enquantomembros.

LS > É também uma questão de teoria de rupturade regime do constitucionalismo, não é? Se elestivessem entrado primeiro e se o sistema de deci-são política tivesse ficado bloqueado, como espe-ravam os alemães, nesse caso estaríamos a viveruma verdadeira crise…

PS > Mas isso teria sido muito melhor parao desenvolvimento institucional da UE!Não deviam ter sido alterados em anteci-pação ao alargamento a Leste. Claro queisto teria representado um problemamuito sério porque as regras de Nice, seaplicadas, iriam decididamente originaruma crise de tomada de decisão. Haveria(e haverá agora) casos em que os mem-bros originais podem ser derrotados porvotos ou quando uma coligação de paísespobres bloqueará algo que os ricos dese-jem. Países pequenos contra grandes, eco-nomias pobres contra ricas, membrosantigos contra os mais recentes, tudo istoconstitui potenciais clivagens. O meuponto de vista era (e ainda é) que isto é

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bom para as políticas da UE, desde queestas clivagens se auto-anulem e não seacumulem. Os países de Leste deviam terentrado sob as regras e políticas existentesque eles compreendem, o que os iriarealmente beneficiar porque são rela-tivamente pequenos e muito menosdesenvolvidos. Assim, haveria uma crisemanifesta… e isso poderia ter gerado omomento constitucional que é tão neces-sário.

LS > Irão os governos agora reagir, depois deterem falhado, depois de o processo estar a decor-rer antes da entrada destes novos membros serefectiva?

PS > Esse é um problema diferente. Agoraestamos perante a situação de termos ten-tado ratificar um tratado fora de tempo emal especificado, e de termos falhado.Talvez possa haver uma resposta «flexí-vel». As novas regras do Tratado de Nicefacilitam efectivamente a chamada «geo-metria variável». Facilitam que um certonúmero de estados-membros, creio que olimiar é oito, avancem sozinhos pela prá-tica da «cooperação reforçada». Isto já éteoricamente possível desde o Tratado deAmesterdão, mas nunca foi usado, emparte porque as condições eram muito res-tritas. Podemos imaginar que, em reacçãoà não-ratificação, um grupo nuclear deoito ou mais países avancem concordandoem implementar partes do Tratado ou quepodem mesmo ameaçar esboçar todo umnovo documento. Compreensivelmente,com a simples ameaça de o fazer, pode-riam criar alguma reacção entre os esta-dos-membros mais recalcitrantes. Na

minha opinião, contudo, isto seria umerro. Nem os britânicos, nem os dina-marqueses nem, para esse efeito, qual-quer dos escandinavos faria parte desses«oito» e, se agissem em conjunto, issodevia ser suficiente para desfazer a ideia.Lembre-se também de que nada de«ameaçador» pode acontecer se a Françae a Alemanha não estiverem de acordo enão vejo o Governo francês a agir credi-velmente contra uma larga maioria dosseus cidadãos.

LS > Alguns comentadores consideram o TratadoConstitucional demasiado neoliberal, outros con-sideram-no demasiado dirigista. Este debate temalgum significado face à prática da UE?

PS > A minha leitura daquele esboço deTratado é de que ele não é mais nemmenos neoliberal do que o que a UE já temvindo a fazer. Algumas das pessoas que seopunham ao Tratado em França parecemter achado o argumento de que «a Europaé demasiado neoliberal» convincente.Enquanto isso, o mesmo argumento édepois invertido na Grã-Bretanha (e, tal-vez, na Holanda) e é proclamado que aconstituição proposta é demasiado diri-giste. Todos têm direito a ler e interpretareste tratado de trezentas e cinquenta pági-nas como quiserem (e creio que muitopoucos o fizeram). As interpretaçõesdependem fortemente das elites políticas(e especialmente das elites políticas não--governantes) a nível nacional. O meu ins-tinto diz-me que a verdadeira questão nãofoi a do liberalismo contra o dirigismo.O que mais contou foi um sentimentodifuso de «os que estão por dentro contra

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os que estão por fora» e a maioria doscidadãos sentiu que estava por fora emrelação à UE, e, por assim dizer, em rela-ção aos seus políticos nacionais. Se umesboço de tratado melhor agendado emais sucinto podia ter superado esta sen-sação de alienação, isso é assunto paraconjectura.

LS > A ratificação do Tratado por referendo oupelo Parlamento está a decorrer em datas diferen-tes por toda a Europa. Não será isto um pro-blema para o processo de ratificação através dereferendos nacionais devido ao chamado «efeitode contaminação»?

PS > O meu argumento é que deviam terusado a eventual necessidade de umaConstituição Europeia para criar aquilo aque eu chamaria um «espaço públicoeuropeu simultâneo» e isso devia tercomeçado com a decisão inicial de convo-car uma assembleia constitucional ouconstituinte. O processo só devia tercomeçado quando houvesse por toda aEuropa um mandato popular manifestoque dissesse: «Precisamos de uma consti-tuição que limite ou amplie os poderes daUE.» Se isso tivesse sido feito, ter-se-iamaberto muitas possibilidades sobre aforma de exercer legitimamente um talpoder constituinte. A Comissão e os esta-dos-membros podiam ter aproveitado aseleições para o Parlamento Europeu paraperguntar, na mesma data, se os cidadãosda UE aprovavam ou não a criação de umParlamento Europeu com poderes paraesboçar uma nova constituição. Essa erauma forma de ter obtido apoio popularpara tal iniciativa. Também sugeri a ideia

(de que ninguém parece ter gostado) deque os cidadãos podiam ter votado emreferendo por uma reforma minimalistaou maximalista. Podia até ter havido umencontro de duas assembleias constituin-tes, lado a lado, uma tentando esboçar umtratado que limitasse os poderes da UE,outra tentando esboçar um tratado que osampliasse. Provavelmente partilhariam,digamos, as primeiras vinte ou trintapáginas do esboço actual, e.g., a Carta dosDireitos Fundamentais e algumas disposi-ções gerais sobre as instituições, e a partirdaí seguiriam em diferentes direcções em relação às compétences. No final, osdocumentos deviam ser ratificados ou porum único referendo à escala europeia (nospaíses, como a Alemanha, em que não hádisposições para os referendos nacionais,estes poderiam ser realizados a nível deLänder ou subnacional) ou por um refe-rendo simultâneo em alguns países e umaratificação pelo parlamento nos outros, nomesmo dia. Penso que a grande vantagemdeste cenário seria dupla. Por um lado,teria criado o tal «espaço público europeusimultâneo» que tanta falta tem feito aolongo deste desconcertante processo deratificação. Por outro, poderia ter centrali-zado a atenção dos cidadãos nas questõeseuropeias em vez das nacionais. O factode votarem todos no mesmo dia numdocumento comum teria diminuído oincentivo para usarem esse voto para puniro governo nacional pelo seu desempenho.Poderia ter sido um acontecimento genui-namente «europeu».

LS > O que pensa sobre a possibilidade de esboçarantecipadamente outro tratado que estabelecesse

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um modo estandardizado de ratificação parafuturas revisões aos tratados e eliminasse a regrada unanimidade?

PS > Isso teria sido inteligente, mas não ofizeram. Duvido que eles tenham mesmoponderado essa solução. Voltamos nova-mente a uma versão ligeiramente revistadaquela expressão constitucional alemã:Kompetenz Kompetenz. Para ser uma verda-deira constituição, o documento deveestabelecer a capacidade para se reformar.Quer dizer, deve dar o poder de modificaras suas próprias regras seja a que conjuntoespecífico de órgãos crie. É irrelevante sedevem ou não ser sujeitas a referendo.Uma verdadeira constituição cria umórgão político que pode, pelas suas pró-prias operações, reformar a sua própriaconstituição. Mais uma vez, as regrasespecíficas não são importantes. Tal comoestá, o presente Tratado Constitucionalnão possui tal disposição. A única formade este Tratado poder ser modificado nofuturo é pela ratificação unânime de outrotratado por todos os estados-membros!Portanto, nesta acepção técnica, não éuma constituição!

LS > O que pensa acerca da forma como o Sr. Bar-roso está a lidar com a crise actual?

PS > Claramente, as circunstâncias destanomeação não o colocaram numa posiçãoforte. Ele era o segundo, terceiro ouquarto nas listas de toda a gente, por issoa sua nomeação não levantou grandesobjecções. Ele está numa posição extre-mamente difícil. Mesmo que não existisseo problema da ratificação (acerca do qual

ele pode fazer muito pouco, excepto man-ter-se em silêncio), as próprias condiçõesem que ele foi escolhido tornariam muitodifícil para qualquer um deixar a suamarca distinta na administração. Inde-pendentemente das mais-valias que Bar-roso possa trazer ao cargo, esta é umaaltura em que o Presidente da ComissãoEuropeia «governará melhor» se «gover-nar menos».

LS > Cenários futuros?

PS > A questão base é o que fazer agoraque o alargamento ocorreu e a ratificaçãonão. Algumas coisas podem avançarmesmo sem a entrada em vigor deste tra-tado. Não é preciso nenhum tratado novopara que a UE possa continuar com o seutrabalho e, até agora, os novos membrosnão desempenharam um papel obstru-tivo. Se as negociações actuais sobre ofuturo orçamento plurianual forem bemsucedidas e não os penalizarem excessi-vamente, estes países podem até desem-penhar um papel criativo em termos deapoio a políticas pendentes, especial-mente as que tiverem a ver com segu-rança e assuntos internos, assim comodefesa e política externa. Eles devem tam-bém propiciar um forte ímpeto para pro-jectos de infra-estruturas de larga escalaem transportes e energia. Numa perspec-tiva institucional, há toda uma série decoisas que podiam ser feitas sem recorrerà ratificação do tratado existente ou esbo-çar outro. Por exemplo, seria possívelnomear um ministro para os NegóciosEstrangeiros da UE e os Vice-Presidentesda Comissão, alterar o peso dos votos no

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Conselho de Ministros, conceder infor-malmente ao Parlamento Europeu autori-zação orçamental adicional, avançar coma criação de um corpo administrativo eempreender planos de contingência paraum exército comum e polícia de segu-rança, etc. A ideia mais audaciosa seriausar aquelas disposições do Tratado deNice para avançar com a chamada «geo-metria variável» juntando um gruponuclear de oito ou nove estados que esti-vessem preparados para avançar com oprocesso de reforma institucional. Mas émuito difícil imaginar que isto aconteçasem os franceses ou, talvez, mesmo semos holandeses, e estes governos respecti-vos podem ter dificuldades em o fazerface à desaprovação pelos seus públicos.Não pode ser ignorado que dois dos paí-ses que rejeitaram o Tratado são mem-bros fundadores do Euroclube e que,graças à geografia, são jogadores-chavena formação de qualquer tipo de áreanuclear europeia. Devemos fazer notarque, tanto na França como na Holanda,não havia qualquer obrigação constitu-cional de realizar o referendo e que, emcondições normais, deviam ser os seusparlamentos respectivos a fazer a ratifica-ção. Talvez que, e este é que é o risco, seo tivessem feito, outros países saltassemsubsequentemente para a carroça e a UE

seria poupada, tornando-se num acordoainda mais estratificado (um Condomínio,no meu vocabulário exótico) do que já é.A minha esperança é que este cenáriopermaneça hipotético. Outro cenáriomenos arriscado: os actuais vinte e cincoestados-membros (talvez, acrescidos daBulgária e da Roménia dentro de alguns

anos) podiam simplesmente sentar-se àespera. Fariam a sua vida normal até osefeitos perversos do Tratado de Nicecomeçarem a acumular-se e provocaremum manifesto e decisivo impasse sobreuma qualquer questão urgente. Nessaaltura, com o acordo do ParlamentoEuropeu, decidiriam convocar umaassembleia constituinte genuína, eleitapopularmente, em coordenação com ohabitual ciclo eleitoral de cinco anos doParlamento Europeu. Esperançosamente,uma vez eleita, esta assembleia abrir-se--ia em múltiplas audiências, como fez a Convenção, para se aconselhar com asociedade civil, partidos políticos, parla-mentos e governos nacionais e subnacio-nais. Algo assim aconteceu durante aconstitucionalização da Espanha e daÁfrica do Sul, ambos frequentementecitados como exemplos de países queesboçaram e ratificaram com sucesso assuas constituições, tendo assim ajudadoa consolidar as suas respectivas democra-cias. De uma forma interessante, estesdois países são cultural e linguisti-camente sociedades altamente diversas eno entanto foram capazes de encontrarum conjunto de regras comuns que pro-vou ser respeitado por aqueles que lheestavam afectos. Porque não pode a UE

aprender com exemplos tão encoraja-dores?

LS > Precisamos de um Presidente da Comissãoforte para escolher os oito países?

PS > Não, de maneira nenhuma. A Comis-são, ou o seu Presidente, não podemsequer tentar isso, e espero que não o

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façam. A história da integração europeiasugere que só há um caminho: para queeste grupo nuclear de países avance sozi-nho, precisará não apenas do acordo pré-vio, mas também da participação activa daFrança e da Alemanha.

LS > Isso parece pouco provável a curto prazo, jáque os dois países, a Alemanha no final deste ano

e a França em 2007, vão ter eleições (gerais e pre-sidenciais, respectivamente)…

PS > Sim. Mais uma vez, o momento nãopodia ser pior… FLORENÇA, JUNHO DE 2005

* N.T. – «De uma só vez».

Entrevista

com Bruno de Witte

LUÍS DE SOUSA > Face à presente conjuntura polí-tica europeia, estamos a viver um período decrise, e que crise?

BRUNO DE WITTE > De certa forma estamos aviver uma crise, mas é uma crise auto--infligida porque resulta de uma iniciativapara esboçar uma Constituição que nãoera necessária. Não é uma crise causadapelo ambiente exterior. Foi criada por umainiciativa interna que correu mal. Podía-mos ter imaginado uma situação semqualquer constituição. Teria sido perfeita-mente possível seguir em frente dessaforma. Se não existisse nenhuma conven-ção, nenhuma constituição, não haverianenhum sentimento de crise. Contudo, aspessoas continuariam a lutar acerca daperspectiva financeira da UE para os próxi-mos anos.

LS > As constituições surgem frequentemente apósrupturas de regime, o que não foi o caso com esteTratado Constitucional. Qual é a sua opiniãoacerca da oportunidade da Constituição?

BW > Não foi esse o caso, de todo. O Tra-tado de Nice servia para lidar com as con-sequências institucionais do alargamento.Depois da adopção do Tratado de Nice, o Conselho Europeu disse que todas ascondições para o alargamento tinhamsido alcançadas, todas as condições insti-tucionais internas à UE haviam sido alcan-çadas…

LS > E tinham realmente sido alcançadas?

BW > O critério de que a própria UE temque estar preparada para absorver aentrada de novos estados (um grandenúmero de novos estados neste caso) sem-pre foi, desde o critério de Copenhaga,uma condição para o alargamento.O mesmo é dizer que as instituiçõestinham que estar suficientemente robus-tas para lidar com os dez membros extraque estavam a aderir à UE. Este foi o objec-tivo declarado após a Conferência Intergo-vernamental (CIG) de Nice, que, em certamedida, já tinha sido mencionado emAmesterdão. A ideia na altura era quedevíamos reformar as instituições parapermitir a adesão de dez novos membros.

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Isto foi o que disseram oficialmente naDeclaração anexa ao Tratado de Nice:«Confirmamos agora que todas as condi-ções institucionais para a adesão foramalcançadas.» Portanto, se os recém-chega-dos também atingirem as suas própriascondições, não há problema, podemosavançar. De certa forma, isto significavaque não havia necessidade de maisnenhuma reforma. Contudo, ao mesmotempo, acrescentaram na mesma Declara-ção de Nice que ia ser lançado um grandedebate sobre certas questões institucio-nais. Foi assim que tudo começou. Disse-ram: «Vamos analisar novamente algumasquestões de governo» e mencionaramquatro: as competências; o papel dos par-lamentos nacionais; a simplificação dostratados; e a integração da Carta de Direi-tos Fundamentais. Todos concordaramem analisar estas quatro questões consti-tucionais mais tarde, sem especificarcomo o iriam fazer. Foi apenas um anomais tarde, na Declaração de Laeken, quedecidiram lançar a Convenção para lidarcom estes e outros problemas. Entre Nicee Laeken acontecem duas coisas: 1) aagenda foi alargada, ao ponto de se tornaruma agenda de reforma institucional damaior importância; e 2) havia tambéminovação no método adoptado convo-cando uma Convenção. O terceiro passofoi dado pela própria Convenção, isto é, adecisão para escrever uma Constituição,porque tal intenção não era clara anterior-mente… e também não era necessária.Podiam ter simplesmente dito: «Temosuma convenção que é um novo método deolhar para a revisão de um tratado e anali-saremos um certo número de questões de

um modo mais deliberativo do que estãohabituados a fazer numa CIG, mas esta-mos apenas a lidar com a revisão de umtratado.» Em vez disso, a Convenção deci-diu chamar-lhe outra coisa: esboçar umaConstituição para a Europa. Um passomuito ambicioso e talvez o passo errado.Pôr o carro à frente dos bois…

LS > Pensa que foi uma iniciativa livre, unilate-ral de Giscard d’Estaing? Tinha acontecido omesmo com os constitucionalistas americanos.Tinham um mandato para fortalecer a confede-ração e «traíram» o seu mandato fazendo algodiferente, algo maior, isto é, iniciaram umaconstituição federal que é hoje a Constituição dosEstados Unidos. Pensa que se passou o mesmoem relação a este processo constitucional?

BW > Um pouco, sim, apesar de eles nuncaterem simulado que esta Constituição nãofosse um tratado. Portanto, não é umacompleta traição ao mandato, porque con-tinuava a ser um tratado, mas um tratadoestabelecendo uma constituição. Logo,não era uma traição formal ao mandato,mas acrescentava uma dimensão que nãoestava inicialmente prevista. A Declaraçãode Laeken afirmava que este processo dereforma podia eventualmente levar, numafase posterior, à adopção de uma Consti-tuição para a Europa. Era claramente afir-mado que era algo que não podiaacontecer num futuro próximo, mas ape-nas numa fase posterior. A Convençãodecidiu bruler les étapes, avançar mais rapi-damente, e penso que a decisão emergiudo Presidium, de Giscard e dos outros.Como aconteceu isso exactamente? Aindaé uma história por contar. Onde foi exac-

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tamente tomada a decisão de lhe chamarConstituição?… Penso que o próprio Gis-card deve ter desempenhado um papelcentral nessa iniciativa. O interessante,porém, é que ninguém realmente protes-tou. Assim que esta ideia de chamar à revi-são do tratado um «Tratado Estabelecendouma Constituição para a Europa» foi lan-çada, a maior parte das pessoas concor-dou com ela.

LS > Por que enveredaram os estados por essecaminho?

BW > Penso que foi devido ao uso do termoconstituição ser ambíguo. Não diz nadasobre o conteúdo. Assim, o Governo britâ-nico disse: «Por que não ter uma constitui-ção dizendo claramente o que a UE podefazer e o que compete aos estados-mem-bros?» Podemos interpretá-lo daquelamaneira, não necessariamente como algoque levará a uma Europa federal, mas umdocumento que especifica mais clara-mente e de uma forma mais estável asfronteiras entre o que a UE faz e o que osestados-membros fazem. Assim, há mui-tas formas de ver a constituição. É por issoque todos a aceitaram, sem qualquerobjecção ao conceito. No entanto, o pro-blema é que o conceito tem também vidaprópria em termos de opinião pública.Este problema não foi levado em consi-deração. Em alguns estados-membros, oconceito pode ter tido uma função sinali-zadora, querendo dizer que a opiniãopública o interpretou de maneira dife-rente. Na Holanda, e talvez também emFrança, os governos não teriam convocadoo referendo se o termo «constituição» não

tivesse sido usado. Se lhe tivessem sim-plesmente chamado tratado, «Tratado deRoma para rever os tratados», prova-velmente nunca teria havido qualquerreferendo…

LS > Pensa que esse devia ter sido o caminho detodo este processo, tratá-la simplesmente apenascomo uma simplificação dos tratados, especial-mente porque tudo aconteceu antes da entradados dez? O processo constitucional teve lugarantes do alargamento efectivo e apesar de ter sidodado aos dez um papel de observador, não foi umprocesso que os abarcasse a todos…

BW > …Sim, mas eles não se queixarammuito acerca disso. Havia representantesdos novos estados-membros na Conven-ção e, apesar de terem um estatuto especialcomo observadores, estavam autorizados aparticipar nas discussões. Uma vez quenão foi realizada qualquer votação, não erarealmente importante se eles eram mem-bros de pleno direito ou meros observado-res. Podiam falar e participar como osoutros estados-membros. Portanto, pensoque não tiveram a sensação de seremexcluídos dos trabalhos da Convenção.O maior problema era porquê embarcarem tão ambiciosa reforma. O problema emjogo é esse. A reorganização dos tratadosnão é suficiente e temos isto mesmo nonosso relatório de 2000. Nessa altura, aComissão tinha-nos dito que víssemoscomo o poderíamos fazer em droit constant,por outras palavras, não podíamos mudarnada nos tratados em vigor, devíamos ape-nas ver como os podíamos reorganizar.Fizemos esse estudo de viabilidade noRSCAS, mas, no final, também concluímos

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que tal exercício não faz muito sentido amenos que sejamos capazes de modificar,de adaptar alguma coisa nos tratados emvigor. Por exemplo, se fundirmos a Comu-nidade e a União Europeia, isto é, o pri-meiro pilar e o segundo, somos forçados atomar decisões sobre o nome da nova enti-dade, sobre se a personalidade se estende atoda a UE, sobre a UE enquanto personali-dade legal única, etc. É preciso tratar demuitas questões semelhantes. Ainda per-sistem diferenças sobre o que é umamodesta reorganização e simplificação dosistema e o que deve ser uma reformaambiciosa, que foi o caminho escolhidopela Convenção.

LS > Em relação ao conteúdo deste tratado, pensaque houve inovações importantes e em que áreas?O que era mais premente mas, no final, foi dei-xado de fora?

BW > É uma questão importante… Pensoque algumas das reformas não eram efec-tivamente necessárias e não estou nadaconvencido de que viessem mesmo a serboas. Por exemplo, a reforma dos instru-mentos legais. Os instrumentos legaisforam completamente reorganizados:substituíram-se regulamentos por leis,etc. Tenho dúvidas sobre se isto foi real-mente uma grande melhoria. A mesmacoisa com a criação do lugar de ministropara os Negócios Estrangeiros da UE.A maioria das pessoas era grande entu-siasta da ideia e consideravam-na mesmouma das melhores coisas do TratadoConstitucional. Não tenho a certeza quefosse assim, porque é uma figura institu-cional estranha: alguém que era ao

mesmo tempo membro da Comissão eque recebia instruções do Conselho?Como iria isso realmente funcionar? Doexterior vejo vantagem, porque se tives-sem que falar com uma única pessoa, issoiria simplificar as coisas mas, interna-mente, isso podia acabar por ser muitocomplicado nos processos de tomada dedecisão da UE. Portanto, não estou muitoseguro de ter sido uma boa reforma. Noaspecto mais positivo deste documento,gostei da ideia de integrar a Carta dosDireitos Fundamentais na Constituição,das reformas sobre liberdade, segurança ejustiça, e da ideia de fundir os tratados queé, com certeza, uma boa reforma porquetodos concordariam com ela. Contudo, épena que não seja efectivada agora. Conti-nuamos a ter uma «Comunidade Euro-peia» e uma «União Europeia» e ninguémentende realmente porque são diferentesestas duas coisas. É pena que algumasdestas modestas reformas não possam terlugar agora, porque toda a Constituiçãofoi bloqueada. Não penso que teria sidouma melhoria ao sistema actual assim tãogrande, portanto, nessa medida, a nãoentrada em vigor do Tratado Estabele-cendo uma Constituição para a Europanão é uma catástrofe. Em si, a Constitui-ção não é aquele documento fantásticoque mudaria as coisas radicalmente, mas asua rejeição pode implicar outros tipos derepercussões negativas.

LS > As negociações para a adesão da Turquiatêm sido um osso duro de roer. O processo temvindo a arrastar-se desde 1959. A Turquia can-didatou-se à associação em 31 de Julho de 1959(dois meses mais tarde que a Grécia) e a Comuni-

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dade começou a negociar a sua entrada emSetembro de 1959 (em paralelo com a adesão daGrécia). A Grécia já entrou na CEE, e a Turquianão. Desde então, os critérios da adesão foramenumerados e clarificados (Critério de Cope-nhaga, Junho de 1963), tornando a sua entradanegociável à luz desses princípios. Alguns comen-tadores defendem que o Não dos franceses e dosholandeses também foi um voto contra o alar-gamento e um aviso à adesão da Turquia.Concorda?

BW > Apesar de não ser perito em opiniãopública e de não saber mais nada do queaquilo que li nos jornais, penso que houveum pouco de tudo: o euro, os últimos alar-gamentos, a adesão da Turquia, etc. EmFrança houve a percepção de que a Europaé demasiado liberal e insuficientementesocial. Na Holanda houve também a sen-sação de que a Europa está a fazer coisas amais, está a ficar com demasiadas compe-tências e demasiados poderes e que tinhaque se acabar com essa tendência. Houvemuitos elementos de base nacional quecontribuíram para o voto no Não.

LS > Em relação ao argumento neoliberal queacaba de mencionar, de certa forma parece que oseleitores, ao rejeitarem o Tratado, deram um tirono pé. A Constituição, apesar de imperfeita, erauma tentativa para criar melhores bases para aspolíticas comunitárias e ajustamentos de mer-cado. Ao rejeitarem-na, os eleitores ficam apenascom a solução do mercado e a intenção do mer-cado nunca foi reforçar a solidariedade e assegu-rar a redistribuição. Por outras palavras, semuma Constituição como aquela, o neoliberalismoprosperará provavelmente de forma menos con-trolada. O que pensa disto?

BW > Penso que naqueles dois países tam-bém houve a percepção, que está provavel-mente errada, de que, se pusessem fim àConstituição, a interferência com as políti-cas sociais nacionais seria menor do quecom a Constituição. Talvez não seja tantoo caso de os eleitores não apoiarem aadopção de políticas sociais da UE, mas deestarem mais interessados em protegeruma maior autonomia dos estados-naçãopara terem as suas próprias políticassociais e preferências.

LS > O método da Convenção foi organizadodurante o ciclo político anterior. Desde então,alguns estados-membros tiveram eleições eempossaram novas formações governamentais.O trabalho da Convenção começou no ciclo polí-tico anterior, ao passo que os seus resultadosestão a ser sujeitos a aprovação durante um novociclo político. Isto explica parte das incertezas edificuldades em ratificar o Tratado?

BW > Nunca pensei nisso dessa maneiraporque, na minha opinião, o problemasurgiu da opinião pública através do refe-rendo. Sem o referendo, eu não previanenhum problema de maior com a ratifi-cação parlamentar excepto, talvez, naPolónia. Na Polónia houve uma mudançana constelação política. Os partidos maiseurocépticos tornaram-se bastante pode-rosos e isso podia ter trazido dúvidassobre a ratificação parlamentar. De facto,na Polónia as pessoas pediram o referendopara beneficiar a ratificação e não o con-trário… Excepto neste caso, não creio quepudesse ter havido qualquer problema emtermos de ratificação parlamentar do Tra-tado, indicando desta forma que a conste-

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lação política não mudou assim tanto, é mais um problema de opinião pública.

LS > Qual é o seu ponto de vista sobre a formacomo o Sr. Barroso está a lidar com a situação, asua decisão de retardar todo o processo para darmais tempo aos governos para repensarem?

BW > A ideia foi dele? Penso que foi algoque emergiu de um consenso. Eu argu-mentei que este era o único caminhológico a seguir. Qual era a alternativa? Seeles disserem: «Todos os outros paísestêm de continuar com os processos deratificação». É, certamente, um problemaem países com referendo porque estamosa pedir à população que vote um tratado,um texto, sabendo que provavelmente nãoentrará em vigor. Avançar para a ratifica-ção só faz sentido se assumirmos que ospaíses que tiveram dificuldades e o rejeita-ram, a França e a Holanda, poderão aderira ele numa fase posterior. Eles irão vertoda a gente a ratificar o Tratado e depoisratificam-no também. Faz sentido, mas éirrealista. É irrealista pensar que se poderealizar um segundo referendo em Françaou na Holanda. E se houver um segundoreferendo, é irrealista esperar um resul-tado positivo. Em tal contexto, penso queé muito difícil pedir aos eleitores britâni-cos, polacos ou irlandeses que votem umtexto que não vai entrar em vigor. Naminha opinião, parece-me mais lógicoparar o processo, pensar, esperar até quese encontrem melhores condições. Talvezno próximo ano ou dentro de dois anostenhamos ideias melhores sobre a formade avançar. Não mataremos completa-mente a Constituição, vamos apenas

deixá-la no congelador e depois veremos.Neste momento é difícil ver o que poderáacontecer, mas nunca se sabe… Resu-mindo, penso que este é o único caminhológico a seguir e não é uma ideia de Bar-roso, é algo que emergiu das circunstân-cias. No princípio os governos estavammuito entusiasmados por seguir rapida-mente em frente, mas à medida que o pro-cesso de ratificação começou todosperceberam que, afinal de contas, não éassim tão simples.

LS > Durante quanto tempo pensa que este tra-tado deve ficar «congelado», por assim dizer? Quecenários futuros prevê? Ainda temos o Tratado deNice operacional, mas funcionará ele com os deznovos membros? Teremos que repensar as refor-mas institucionais a curto prazo e exactamentequando, tendo em mente que os três ou quatrojogadores mais importantes enfrentarão eleições(gerais ou presidenciais) nos próximos dois anos:a Alemanha terá eleições gerais no final deste ano(2005), a França terá eleições presidenciais em2007 e a Itália também será chamada às urnasno próximo ano (2006)…

BW > As regras actuais podem funcionardurante mais de um ano porque temosdez novos membros desde 2004. Visto deuma perspectiva institucional apertada, osistema funciona, continua a funcionar:o Conselho, a Comissão, o ParlamentoEuropeu continuam a operar normal-mente… Dessa perspectiva não há umaurgência absoluta. Por outro lado, hámuitas ideias boas na Constituição e seriauma pena deixá-las cair completamente.Eu poderia prever que os governos, talvezdentro de dois anos, se sentarão e chega-

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rão a acordo sobre os temas da Constitui-ção que puderem salvar: em primeirolugar as coisas sobre as quais possamchegar a acordo entre eles, e em segundolugar as coisas que não são demasiadocontroversas para os cidadãos, especial-mente nos países que realizaram referen-dos. Nessa altura, faríamos um pequenopacote dessas questões, colocá-las-íamossob a forma de uma revisão de um tratadoe convocaríamos uma pequena Conven-ção para uma análise prévia… e tentaría-mos tudo outra vez! Se esse novodocumento não for demasiado ambi-cioso, talvez a necessidade do referendodiminua, o documento poderia ser apro-vado apenas pelos parlamentos nacio-nais. Essa é uma possibilidade, tentar,dentro de alguns anos, extrair da Consti-tuição um pacote mais modesto e prosse-guir com ele.

LS > Não teme que uma «Convenção II» se tor-nasse bastante problemática porque as pessoasiriam inevitavelmente estabelecer comparaçõescom os magros resultados conseguidos por estemétodo de esboço do Tratado Constitucional naprimeira tentativa e os problemas de défice demo-crático que levantou? Apesar de as constituiçõesnão serem esboçadas pelo «homem da rua», noplano europeu, o método da Convenção levantoualgumas críticas, e até suspeitas sobre a suanatureza democrática. Alguns comentadoressugeriram que devia ser convocada uma espéciede constituinte o que seria interpretado comouma solução mais democrática para o processoconstitucional europeu. Poderíamos continuar achamar-lhe «Convenção II», mas apenas se esti-vesse baseada nos trabalhos do ParlamentoEuropeu…

BW > Penso que isso é difícil de alcançarporque seria interpretado como umaespécie de furo federalista. O que elesprecisam de fazer antes de embarcarnuma nova revisão ou reforma é reflectirsobre aquilo a que chamo «as regras damudança», isto é, os processos que per-mitem que a mudança se dê. Isso é algo aque eles ainda não dedicaram muitaatenção. A única coisa que fizeram pre-viamente foi acrescentar o método daConvenção, mas o resto ficou comoantes. Em primeiro lugar, o método CIG:será boa ideia ter uma CIG a negociar ascláusulas finais de um dia para o outro edepois tentar encontrar imediatamenteum acordo? Não poderia haver um passointermédio em que houvesse um acordoconseguido entre os governos, seguidopor um debate em cada um dos parla-mentos nacionais para avaliar se era umbom compromisso, antes de os paísesavançarem com a ratificação? Seria algobastante fácil de organizar e que permi-tiria um debate mais alargado. Com um debate alargado, se os países decidi-rem depois assinar o documento, hámelhores hipóteses de as coisas resul-tarem. A outra reforma urgente, que émais difícil de alcançar, devia ser umareflexão séria sobre a regra que obriga aque todos os estados têm de concordarcom todas as emendas aos tratados. Issojá não é funcional, mas, claro, aindacontinua a ser uma questão tabu. A Con-venção não tratou da regra da unani-midade, o que foi um grande lapso. O «Tratado Estabelecendo uma Consti-tuição para a Europa» afirma claramenteque as futuras revisões aos tratados terão

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que ser aprovadas por todos os estados--membros e ratificadas de acordo com assuas próprias exigências constitucio-nais… não podemos continuar assimmais tempo!

LS > Portanto, pensa que, muito antes de a «Con-venção II» ter lugar, deve ser debatido e adoptadoum processo de mudança, mesmo em termos demétodo de ratificação adoptado, isto é, referendoou ratificação parlamentar…

BW > Sim, e também devíamos pensarsobre se ainda podemos dar-nos ao luxode ter referendos nacionais em datas dife-rentes como método de ratificação. Nãodeveriam os países chegar a acordo sobreum único referendo europeu?

LS > Para isso seria preciso fazer alterações cons-titucionais a nível nacional, já que países como aAlemanha não têm disposições constitucionaispara realizar referendos…

BW > Sim, concordo. Isso implicaria que ospaíses cujas constituições nacionais nãoestipulam o uso do referendo tivessem queacrescentar essa possibilidade. Não sei se éa melhor solução, mas devíamos de ante-mão pensar seriamente em todas estasquestões e não apenas nos conteúdos, deoutra forma, mais cedo ou mais tarde, fica-remos atolados numa situação semelhanteàquela que estamos a viver neste momento.Penso que devíamos pensar seriamentesobre duas questões da maior importância:1) a introdução de procedimentos demudança, regras de mudança e olhar paraelas separadamente dos conteúdos; e2) tentar olhar para o que é verdadeiramenteválido nesta reforma constitucional, para oque é realmente necessário para melhorar ofuncionamento da UE. Não prevejo, pelacerta, qualquer possibilidade de adopçãodeste documento tal como está*. FLORENÇA, JUNHO DE 2005

TRADUÇÕES: JOSÉ CARLOS POMBO

* Uma versão mais extensa destas entrevistas pode ser consultada na website do IPRI – UNL (www.ipri.pt).